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plástico bolha é involuntário 2113 um dia eu sei farão estátuas peroladas de nós dois assim artistas tão claramente escuros no centro ardido das multidões estreitas e seremos mais eficazes que todas as placas e mais abertos que todas as avenidas porém entre os corpos muitos somente nos amarão os pombos que nunca descobriram bem onde se depositar entre um voo e outro. Maíra F. www.angeloabu.com.br @OPlasticoBolha | jornalplasticobolha.blogspot.com | www.jornalplasticobolha.com.br Distribuição Gratuita Ano 8 - Número 34 DESTAQUES NOSSOS LEITORES-COLABORADORES ENTRAM NA ONDA DAS MANIFESTAçõES NO DESAFIO POÉTICO MIRIAM SUTTER E OS SEMPITERNOS ADáGIOS NA COLUNA ORÁCULO ALICE SANT’ANNA E MARILIA GARCIA NA COLUNA DOBRADINHAS MAURO FERREIRA ANALISA DISCO BASEADO NO GRANDE SERTãO NA COLUNA NOTAS DO PLÁSTICO ENTREVISTA COM RICARDO STERNBERG POR CAMILA JUSTINO SALAZAR TRADUçãO EXCLUSIVA DE POEMA POR PAULO HENRIQUES BRITTO TEXTOS DE JOãO PAULO CUENCA, CHACAL, ANA PAULA KIFFER, MARIA DE LOURDES SOUZA, BRENO CÉSAR DE OLIVEIRA GóES E THIAGO PICCHI POEMAS DE LU MENEZES, MARIA DE ANDRADE, ÉBER INÁCIO, GRECO BLUE, RICARDO STERNBERG, ANDRÉ CAPILÉ, FLÁVIO MORGADO, ANELISE FREITAS MARINA V. MEDEIROS, EDUARDO LACERDA, EDUARDO LEãO TEIXEIRA QUENTEL, RAFAEL MAGALHãES, CARLOS PITTELLA-LEITE E LEINIMAR PIRES

plástico bolha fileNão tinha lógica trazer um pé, mas é tempo de manifestações, de amor, de roça e ua r augusta, por isso trouxemos um búfalo para estreitar a relação entre

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plástico bolhaé involuntário

2113

um dia eu sei farãoestátuas peroladas de nós doisassim artistas tão claramente escurosno centro ardido das multidões estreitase seremos mais eficazes que todas as placase mais abertos que todas as avenidasporém entre os corpos muitossomente nos amarão ospombos que nuncadescobriram bemonde sedepositarentre um vooe outro.

Maíra F.

www.angeloabu.com.br

@ O P l a s t i c o B o l h a | j o r n a l p l a s t i c o b o l h a . b l o g s p o t . c o m | w w w. j o r n a l p l a s t i c o b o l h a . c o m . b r D i s t r i b u i ç ã o G r a t u i t a Ano 8 - Número 34

DESTAQUESNossos leitores-colaboraDores eNtram Na oNDa Das maNifestações No DESAFIO POÉTICO

MIrIAM SUTTEr e os sempiterNos aDáGios Na coluNa OrÁCULO

ALICE SANT’ANNA e MArILIA GArCIA Na coluNa DOBrADINHAS

MAUrO FErrEIrA aNalisa Disco baseaDo No GraNDe sertão Na coluNa NOTAS DO PLÁSTICO

eNtrevista com rICArDO STErNBErG por CAMILA JUSTINO SALAzAr

traDução exclusiva De poema por PAULO HENrIQUES BrITTO

textos De JOãO PAULO CUENCA, CHACAL, ANA PAULA KIFFEr, MArIA DE LOUrDES SOUzA, BrENO CÉSAr DE OLIvEIrA GóES e THIAGO PICCHI

poemas De LU MENEzES, MArIA DE ANDrADE, ÉBEr INÁCIO, GrECO BLUE, rICArDO STErNBErG, ANDrÉ CAPILÉ, FLÁvIO MOrGADO, ANELISE FrEITAS MArINA v. MEDEIrOS, EDUArDO LACErDA, EDUArDO LEãO TEIxEIrA QUENTEL, rAFAEL MAGALHãES, CArLOS PITTELLA-LEITE e LEINIMAr PIrES

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BOLHETIMcada vez mais lindo...

eDição lucas viriato

coNselho eDitorial isabella pacheco | marilena moraes | tomé lavigne

DiaGramação mariana castro Dias

revisão isabella pacheco | marilena moraes

equipe mariana salim | luisa Noronha

webDesiGN henrique silveira

edição dedicada à chegada de bento Justino salazar

eDição de novembro de 2013

Distribuição rio de Janeiro, minas Gerais, são paulo, espírito santo, bahia, piauí, Distrito federal, mato Grosso, mato Grosso do sul, Goiás, paraná, santa catarina e rio Grande do sul. tiraGem 13.000 | impresso na Zm Notícias

envie seus textos através do nosso site.

aNuNcie No PLÁSTICO BOLHA [email protected]

Heinz Langer

o plástico bolha nunca se foi, mas está de volta! com o brilho das almas de nossos colaboradores, como um tríptico relâmpago, eles passarão, sem medo dos urubus que caçam os passarinhos! Não tinha lógica trazer um pé, mas é tempo de manifestações, de amor, de roça e rua augusta, por isso trouxemos um búfalo para estreitar a relação entre o brasil e o canadá. Delicie-se com o contemporâneo nas páginas do plástico bolha!

antologia de poesia está a caminho mais um livro do plástico bo-lha. Junto com a organoGrama livros, esta-mos em pleno processo de produção da An-tologia de Poesia Plástico Bolha, seguindo os passos da Antologia de Prosa Plástico Bolha (oito e meio, 2010). prevista para 2014, esta edição trará mais de 70 poetas que já figu-raram nas páginas do jornal, trazendo o que aqui já passou de melhor. aguardem...

pZ no pb Nesta edição temos a estreia de nosso mais novo ilustrador, pedro Zylber, com seus be-los traços nas páginas do jornal. pedro já participou de diversos eventos junto com o plástico bolha, como a feira de publicações do comuna e o labirinto poético; agora, en-tra em cena ilustrando os poemas de lu me-nezes e de ricardo sternberg (nas páginas 3 e 16). conheça mais sobre o artista no site: www.pedrozylber.com

estouro no centro-oeste o jornal plástico bolha, já distribuído há al-gum tempo em brasília, agora pode ser en-contrado também nas cidades de cuiabá, rondonópolis, campo Grande e Goiânia. temos o maior prazer em estabelecer essa ponte com os poetas da região e estamos de páginas abertas para receber seus textos. participem!

colabore com o plástico bolha você pode nos ajudar a montar a próxima edição do plástico bolha! basta entrar em nosso site e fazer uma contribuição de qual-quer valor através do pagseguro. mesmo a menor das doações é muito importante para arcarmos com os custos da edição e distri-buição do jornal impresso e a manutenção de nossas plataformas virtuais. contamos com a colaboração de todos para construir-mos um mundo com mais literatura! desconcentre a mídia

crie seu jornal

3

brilho De almas

alma, obsoletamedida demográfica vigentenas povoações brasileiras de outrora...hoje sobreviventequando anoitece, quando se acendemas lâmpadas das casase reanimam-se as cidadezinhasrepovoadasde almas que luzem ao longe — ao largo da estrada.

Não luzemna mondrianesca quadriculescência da urbe,no boogie-woogie noturno tão belo da urbeou em qualquer refulgentefavela nela incrustada.

Gente demais apaga a lâmpada da alma — ela ao redorrequervazio que reacendaa sua aura — elétrica na erada reprodutibilidade eletrônica.

chama para a qualé clara condição a solidãochama-se alma.

Lu Menezes Pedro Zylber

4

 

i. NoiteOu blues para Peim

abre a tua cara, ri, naufragaNa sepultura desta noite.Deixa que a música te açoite,engole o arpão da madrugada,

chupa a estalactite, o chicotefrio do ar, música gelada,o blues que o som do trem apaga...Dança, antes que a razão te afoite.

pé ante pé, desce os degrausDesta estação velha — bauhaus —tanto barata quanto rara,

De graça... vida de palhaço;contorce em macarrão teu aço: — Naufraga, ri, abre a tua cara.

iii. meio-DiaOu dissoneto de Rogério “Caos”

tal como shakespeare cantou southampton.Não. como Neruda quebrou as rimas. Não. como pessoa quebrou o ego?Não! Nem petrarca nem camões. Já chega!

quero um soneto de verdade, vivo, que rime como um furacão demente, que fale como o céu cuspindo gelo;na primavera rime de repente,

cantando um sapo bobo de haikai e termine faltando um quarteto

— ou não termine nunca, como o céu e te arrebente de azul e te arrebente de azul e te arrebente de azul

Carlos Pittella-Leite

escarro primaveral

os tigres cinzentos voadorese os cachorros bípedesuivam silenciosas salivas de chuva.

os relógios derretidos de Dalicongelam a minha bílise a mão-formigueiro de buñuel.

ah! Giz de cera reluzentedo arco-íris no cerrado.

quimeras, sapos amarelos,unicórnios aquáticos e guitarras aladasassistem ao espetáculo da morte à vida.

Rodrigo Fernandes Ferreira Brito

soneto de quebra

às vezes como se fosseoutras vezes quase pertoos troços que a vida trouxeos truques a céu aberto

os traços em movimentona tela depois do almoçoe um soneto sonolentofabricado osso a osso

passo a passo peça a peçaos pés após a cabeçaos braços saem dos ombros

as pernas saem das coxasem ondas heterodoxasquebrando em versos de escombros

Luiz Henrique

ii. amaNhecerOu semiose chinesa para Ezra Pound sorrir

Não sei pra que serve o ego,esta di-visão, quimerade-marcar “era” & “não era”,ego ainda quando nego...

que tal ver a forma inteira,que o partido aparta, cego?sigo a ponte ao meio e regosignos para a sementeira

de acordar acordos. rogo,pois a forma flor aflorademonstrando a estrada, agora...

pura analogia. logo,quem já for treinado em fogo lerá em vez de aurora.

trÍptico

lugar estranho

lado a ladonossas mãoscolidem querendo seencontrar, mas o mundoé vasto e nãoimaginamos que a mortepossa vir agora

Anelise Freitas

5

relâmpagos

tava tão vivomas tão vivoque me lancei via satélite

o peixe no aquário

que inventou o lado de fora

Eber Inácio

na falta de assuntopuxe uma pistola

mundo não gagueja

tu não chia nem cuspindo no ferrode passar roupa

cobra não tem sovaco pra medir febre

goiaba que nunca foi verdejá nasceu com vida dentro

voltei a fumarsó pra ser proibido

a água é profunda para não ser bobinha

cair de um prédio de 40 andares

não amarrota um paletó

a felicidade é uma lata a ser aberta com os dentes

bota mais forro neste caixãoque ela morreu de minissaia

entre roer as unhasou se jogarprefira uma coxinha e um guaraná

na hora que o assunto tava pegando fogovocê me diz que é sequestro relâmpago

é o cumulo perder o n˚ do seu túmulo

o melhor do exemplo

é sua abreviação

ex.

perdi não sei quantos quilos

pergunte ao carrasco

o aviãozinho só é um aviãozinhopor estar longe

a galinha tem tanta pena de voar

mas tanta pena

que cisca

letrinha miúda não engana piolho

senhor,

tem uma calcinha dentro do seu ouvido

toda vez que entro no banco

faço cara de mocinho

toda vez que passo por um policialcismo que eu é que sou o bandido

um elogio que não existe:

nossa! como você xeroca bem

foto na identidade merece perdão

vozes irritantesmerecem um workshop com as baleias

o papa me comeu

e fui presa

não me venha esfregar esse bife na cara e dizer que isso é performanceque eu sei da sua macumba

o mundo é cheio de gente esquisita

querendo a mesma coisa

o céu sou eu duas vezes

mesmo não tendo

é prudente inventar segredos

agora não adiantajusto agora você falar malda sua operadora telefônica

eu disse eu te amo

justo na hora do estrondo dos trovões

é pela lua que a terra fica nua

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que você tanto elogia riem da sua cara o tempo todo e você nem percebe. outro dia uma delas, sim, essa de cabelo curto por quem você mal consegue dissimular sua paixão ridícula, veio me perguntar qual é o seu problema. entende? queria saber se você é perturbado! essa expres-são de melancolia e esperança que você se esforça para simular, franzindo a testa e apertando os olhos toda vez que ela passa por nós, um James Dean calvo e enrugado de 51 anos, não transmite nada além de cansaço e pena. Não à toa, ontem, depois que você foi embora, escutei as enfermeiras às gargalhadas: “cruz credo, quem gosta de pau velho é cupim”. Digo isso porque sou sua irmã e quero o seu bem, não suporto ver alguém se expondo tanto ao ridículo. essas roupas amassadas e desfiadas que você deu para vestir agora, em vez de transmitirem um estilo libertário e transgressor; denunciam, até para os mais ingênuos, que você está desempregado e sem dinheiro. quando as pessoas veem um homem da sua idade usando uma calça jeans rasgada, elas não pensam:

“olha, que cara despojado e moderno. Não. elas imaginam que você foi atacado por um cachorro, ou que caiu e se machucou ao descer do ônibus. Não percebe? preste atenção: Ninguém se perfuma tanto assim para ir de dia a um hospital, ainda mais esse perfume doce que você deve ter pegado da nossa avó falecida, capaz de matar um diabético à distância. mas faça o que quiser, só digo isso porque quero o seu bem.

assim os dois se tratavam. É claro que ele não deixou de visitá-la, queria ser o último a insultar, mas sempre recebia o contragolpe, o que estendia a batalha frater-na. ambos se irmanavam na provocação e no insulto. a irmã vivia o criticando por ele nunca ter se casado, tido filhos (sendo que ela mesma nunca engravidou), acusava-o de ser infeliz de nascença, inepto social e desprovido da capacidade prosaica de ter e de dar prazer. para ana clara, o mundo era tão injusto; pois ela, que sempre fora bem-sucedida — tinha uma carreira, era advogada de uma grande empresa, e, não fosse a doença, provavelmente teria se casado com romualdo, com quem namorou por sete anos. sim, ela, que pelo menos vislumbrara a felicidade como algo tangível no futuro, morreria inexoravelmente em breve, já o irmão... ana clara nunca completava as reticências, segura de que ele preencheria a lacuna do discurso interrompido da pior forma possível. invariavelmente o irmão saía devastado do quarto com cheiro de éter, tentando esconder a raiva, a dor e a humilhação, principalmente da enfermeira de cabelos curtos, por quem, de fato, se enamorara. quem via aquele ser encurvado, de olhos esbugalhados e úmidos caminhando pelos corredores do hospital pensava que ele sofria por testemunhar a

sorria

Naquela manhã andava tudo em alvoroço dentro dele. acordara com um sussurro que o fizera gritar de medo,

“libertas quæ sera tamen”. Julgou ter flagrado um rabi-cho do eco, que rapidamente desapareceu numa fissura da parede do quarto como se fosse uma lagartixa. apesar de ter ouvido, nitidamente, “libertas quæ sera tamen”, desconfiou que seu inconsciente tivesse algum proble-ma de dicção e adaptou a frase ao que lhe pareceu fazer sentido: “liberta que serás também”. tinha que fazer algo a respeito. afinal, não era todo dia que ouvia vozes.

Na verdade, ouvia vozes o tempo todo: a televisão lo-quaz, as pessoas no ônibus, a buzina histérica dos carros na rua, e a irmã; única sobrevivente da família, que ele visitava duas vezes por semana no hospital (segundo o médico, ela não resistiria por mais um mês à doença implacável, uma orquídea irremovível de tumores que se instaurara em seu organismo e que se alimentava de vida). mas uma voz de dentro, assim, tête-à-tête consigo mesmo, cheia de sonoridade e convicção foi a primeira vez que ele ouviu: “liberta que serás também”. como nunca soube o que fazer da própria vida, resolveu acatar a ordenança interior:

— olha, ana clara, eu acordei com isso na cabeça. uma frase tão bonita deve ter um significado. pensei muito antes de vir aqui hoje. você não me tolera desde a ado-lescência, não me suporta nem mesmo agora, quando venho te fazer uma simples visita. por que não gosta de mim? por que faz essa cara? você não pode me acusar de ter sido um irmão frio. lembra como eu era carinhoso? lembra que às vezes você chegava em casa chorando sem me dizer o motivo e mesmo assim eu me compade-cia e chorava também e tentava te abraçar e te morder? e meus beijos e lágrimas não beiravam a volúpia, de tanto amor? o que eu recebia em troca? a mesma careta indisfarçável de nojo que você faz agora. pois a partir de hoje decidi ficar em casa e ter notícias suas apenas pelos médicos. “liberta que serás também”. É isso aí, libertarei você da minha presença; embora goste muito da sua companhia e de passear pelos corredores deste hospi-tal, que tem uma ótima máquina de café e enfermeiras solícitas que tratam os enfermos com tanta dignidade, não dispensando um sorriso amistoso a nós, parentes, que nos sentimos, assim, um pouco melhor acolhidos neste ambiente de paredes frias e luzes brancas. pode comemorar sua liberdade. assim espero me libertar também, nem sei de quê. quem não quer ser livre? eu também quero; embora nada me prenda. “liberta que serás também”.

— seu idiota. “libertas quæ sera tamen” está em latim e significa: “liberdade, ainda que tardia”. tem a ver com os inconfidentes, tiradentes. burro. e essas enfermeiras

vida da irmã se esvair rapidamente; ninguém imaginava que o irmão sentia na alma os golpes recebidos numa batalha feroz, e que remoía vinganças.

há muitas maneiras de se vingar de uma irmã em estado terminal sem que se pareça cruel. uma delas é saber que a mana querida adora, desde pequena, bombons sonho de valsa, e dizer que comprou duas caixas, mas:

— cadê meus bombons?

— comprei duas caixas como havia prometido; mas lembrei que o médico disse que açúcar não é recomen-dável. Juro que comprei, estão lá em casa. quando você sair daqui...

— porra, eu não vou sair daqui, eu vou morrer!

— Não fale assim, maninha, sempre há esperança.

outra boa desforra é pedir emprestada a câmera profis-sional do ex-namorado dela e fotografá-la nesse estágio, vela derretida no leito do hospital, irreconhecível, uma boneca do farnese de andrade cheia de escaras na pele e a morte no coração quebrantado, que mal tem forças para protestar:

— Não.

— olhe para cá, sorria, por favor, sorria. você não tem o direito de privar as pessoas que te amam de guardar uma recordação. Deixe de ser boba, vou tirar apenas duas cópias, uma para mim e outra para o romualdo. ele está noivo, você sabia? mas jurou para mim que nunca vai esquecer você. sorria. sorria.

Naquela mesma tarde, enquanto aguardava a revelação da foto numa lojinha de rua, recebeu uma chamada no celular: ana clara havia morrido. foi para casa feliz por ter conseguido chorar com sinceridade. fez até uma espé-cie de santuário em homenagem à irmã dentro de uma gaveta do armário. abriu as caixas de sonho de valsa e os espalhou no fundo, deitando a foto da irmã por cima.

todas as tardes, solene, ele abria a gaveta e, embora não gostasse de doces retirava um bombom e puxava lentamente as duas extremidades da embalagem de plástico cor-de-rosa. o bombom girava sobre o próprio eixo como se fosse um planeta gay, antes de ser desvela-do. Deixava o chocolate derreter na boca, sem mastigar, enquanto olhava para o retrato da irmã, tentando, sem sucesso, sentir-se culpado por ter sido o último a desferir um ataque. aquela cerimônia era quase religiosa, uma espécie de eucaristia em homenagem à ana clara.

foi numa dessas cerimônias que veio a pontada. a dor era inconfundível. uma orquídea crescera dentro dele.

7

Freire canta ‘causos’ do grande sertão no toque da viola em ‘Alto grande’

ao ler o livro Grande sertão: Veredas (1956), obra-prima do escritor mineiro Guimarães rosa (1908 - 1967), o então aspirante a jornalista paulo freire resolveu morar em urucuia, no sertão das Geraes. lá, começou a tocar viola, instrumento que lhe daria projeção no meio musical. Alto Grande — o cD ora lançado pelo compositor e músico paulista, através do selo vai ouvindo, neste segundo semestre de 2013 — é álbum entranhado no grande sertão mineiro. a ponto de a música que dá título ao disco, alto Grande (paulo freire), se referir ao local do sertão mineiro onde as mulheres esperavam os maridos que haviam partido nas comitivas de gado. No cD, freire canta causos no belo toque de sua viola, sob a influência desse universo ruralista. con-tudo, o artista se embrenha por esse sertão brasileiro sem xenofobia ou ranço folclórico. tanto que o repertório concilia tema em tributo ao trompetista e cantor norte-americano de jazz chet baker (1929 - 1988) — celebrado na faixa Pintando o Chet na viola (paulo freire) — com regrava-ção de A cobra e a onça, música da lavra de manoel de oliveira, o violeiro e compositor mineiro conhecido pelo nome artístico de seu manelim e nascido em ucruia, região-musa inspiradora das veredas de Guimarães rosa. fora do grande sertão, freire dá voz a bom dia, parceria com swami Jr lançada por Zizi possi no cD valsa brasileira (1994).

NOTAS NO PLÁSTICO por mauro ferreira

confira mais Notas Musicais em blognotasmusicais.blogspot.com

os avós haviam morrido disso, os pais, os tios e a irmã. aceitou sem dramas o próprio destino, até com certo alí-vio: “liberdade, ainda que tardia”, pensou. procurou pela casa uma escova de dente, pijama, sabonete, cobertor, sandálias; pôs tudo dentro da mala e partiu de bom gra-do para o hospital, com a certeza de que jamais voltaria. aliás, quase voltou, ao constatar que havia esquecido o pente, depois sorriu do lapso: “coisa mais inútil, daqui para frente”. o médico perguntou se ele preferia quimio ou rádio, como quem diz: “escolhe a balinha”.

No hospital passava os dias pensando na família que não teve, nos filhos. como seriam? a orquídea crescia na proporção em que ele definhava. sentiu uma solidão atroz, antes pelo menos se distraía nos embates com a irmã. a irmã! claro, como podia morrer e deixá-la esque-cida na gaveta do armário? implorou que trouxessem a fotografia de ana clara. que ficassem com os bombons, podiam pegar o que quisessem na casa, podiam até ficar com a casa desde que lhe trouxessem o retrato.

Naquela manhã andava tudo em alvoroço dentro de-le, um alvoroço diferente, o último. acordou com um sussurro: “senhor, me pediram para lhe entregar essa foto”. tudo em alvoroço, seu corpo agora era uma estufa perfeita onde muitas orquídeas grassavam. apesar da vista embaçada, conseguiu identificar a enfermeira de cabelos curtos entrando no aposento, estendia-lhe uma fotografia. era a primeira vez que ela fora escalada para ficar naquele quarto. quando viu o paciente, irmão da irmã, todo carcomido pela doença, ela, apesar de acos-tumada com o sofrimento alheio, não conteve a lágrima:

— o senhor era tão bonito.

— pensei que você me achasse velho e perturbado.

— velho? o senhor era um gato, cheguei até a comentar com a sua irmã. as outras enfermeiras brincavam comigo porque eu corava cada vez que você aparecia.

ele olhou para a foto da irmã, e ela sorria. sorria.

Thiago Picchi

www.leonardodavinci.com.brav. rio branco, 185 – subsolo – ed. marquês do herval

centro – rio de Janeiro/rJ tel.: (21) 2533-2237

8

DESAFIO POÉTICONesta edição, propusemos um

desafio poético em cima da hora.

inspirados pelas manifestações

que ocorreram por todo o país

nos últimos meses, decidimos

não ficar de fora, e convocar

nossos leitores-colaboradores

a botar também a boca no

trombone, ou melhor, o lápis no

papel! assim, para esta edição,

fizemos uma seleção de escritos

de autores especialmente

convidados para figurar lado a

lado dos participantes da coluna.

confira os textos abaixo, mas

sem violência.

sou contra o leilão de um novo plano de carreira para biografias não autori-zadas de beagles vândalos.

Breno César de Oliveira Góes

cadê o amarildo

Na robustez dos homensDa lei, perdemosum amigo

alçado ao aressem alaridoalgum nenhum

trancafiado no ladrilhoDos sonhos, lá estáo amarildo

certo de que outrossujeitos estão por vir

e que grito nenhumserá auscultado

pois cala-se profundoem céu obtusoNovos amigos

outros amarildos

Rafael Magalhães

peguei o ônibus.passei o riocard e fiquei olhando.doisvírgulasetecinco.sorri.e rodei a roleta.

*sou dessas!

Leinimar Pires

manifesto

a voz reprimida rompeu a inércia.Juventude partida se uniu em orquestra;e gritou aos políticos que a fartura acabou.o congresso tremeu, e pensou e votou.sem união força não há!a hora é essa — reformas já!

Eduardo Leão Teixeira Quentel

sinal preto

bombas pela esquerdabombas pela direitasão bombas por todos os ladosbombas em nossas cabeças

e eu vou ficar parado?e eu vou aguentar calado?eu não.escudo, pimenta e balavinagre, pedra e barricadaquando pensarem que calaram o povo “olha eu aqui de novo”

meu amigo black bloceu resolvi fazer um rocksó pra te agradecerpelas balas de borrachaou por cada cacetadaque você não me deixou receber

Greco Blue

talvez amanhã eu consiga relatar, narrar, pensar, elucidar sobre a violência desmedida que sofre-mos todos que comíamos algo, com o coração tocado pela potência pacífica e potente que saiu da candelária até a cinelândia, quando comíamos eu e minha amiga de mais de vinte anos, tatiana roque, e mais tantas famílias, crian-ças, trabalhadores, gringos, professores, no bar vila rica, glória com candido mendes, bairro já completamente fora do perímetro da manifes-tação... e como justificar ou entender quando um restaurante é cercado pelo batalhão de choque, quando ninguém sequer pode esperar e não tem para onde correr... enfim... cheguei agora sobrevivi, ainda tomada pelo gaz, medo, indignação, falta de chão, democracia suspen-sa, retirada de todas as esquinas... agradeço a solidariedade das pessoas desconhecidas que ajudaram... esperando que um dia, amanhã quem sabe, com sorte todos nós... um dia, ama-nhã quem... um dia quem sabe... quem sabe se consiga falar.

Ana Paula Kiffer

9

para a próxima edição, seguimos de-safiando nossos talentosos leitores a compor um palíndromo de qualquer tamanho. uhu!

envie suas frases de trás para a frente para [email protected]

em meio a isso tudoninguém vai repararse você quebrar uma vidraça disser o que deveras pensae tirar a sua máscara.

Lucas Viriato

a mídia, os artistas, o medo e o silêncio

você, articulista de jornal, rádio e tv, que ajudou a criminalizar os protestos e abriu espaço para a porrada da polícia no povo: a culpa é sua.

você, editor preguiçoso, que jamais contou o número de manifestantes feridos, mas sim o número de cacos de vidro no chão: a culpa é sua.

você, repórter, que fechou uma matéria sem ouvir nem sequer um manifestante, comprando a versão da pm como fato depois de décadas de assassinato e abuso: a culpa é sua.

você, profissional liberal com voz na sociedade, que prefere não emitir nenhuma opinião porque tem medo de perder o emprego, o contato, a boquinha ou a pulserinha na área vip: a culpa é sua.

você, indigente intelectual militante de “esquerda”, que fica quieto para manter seus negócios, conchavos ou empreguinhos no governo dilma ou cabral: a culpa é sua.

você, escritor, cineasta, diretor de teatro, ator, músico, artista plástico, que se cala com medo de queimar seu filme para os próximos editais, prêmios, bolsas e regadores de mão oferecidos pelas três esferas de poder estatal: a culpa é sua.

chegou o futuro: somos todos políticos agora. o silêncio é a sua mão suja.

João Paulo Cuenca

o q veremos primeiro: 1 estrela global gri-tando na rua contra a violência e a midia ou a globo vir com um personagem anarquista black bloc na próxima novela para descons-truir o movimento? cartas à redaçāo.

Chacal

10

por miriam sutter

as manifestações populares do mês de junho de 2013, no rio de Janeiro, tiveram como estopim o aumento de vinte centavos no preço das passagens do transporte coletivo. mas o movimento ultrapassou em muito o protesto contra o aumento do preço da passagem de ônibus! Na realidade, os vinte centavos incluíam o indignado e até então sufocado protesto contra a carestia, a inflação, a falta de recursos básicos nas áreas de educação e saúde, contra a vigência da corrupção, dos impostos extorsivos cobrados dos cidadãos, da falta de transparência na aplicação do dinheiro público, das negociatas que envolvem obras estatais, etc. — Vox populi, vox Dei!

pois é! a Res publica, na figura de Dilma rousseff, foi forçada a ouvir a vox juvenum, a voz dos jovens nas ruas do brasil, e foi forçada a declarar a legitimidade do movimento. e nem poderia ser diferente, pois a ideia de que uma opinião compartilhada por todos não pode ser falsa já se encontra na literatura grega desde hesíodo e, na romana, desde sêneca, o velho, em que se lê que “a língua do povo é sagrada” (Sacra populilingua est) que confirma o dito medieval A voz do povo é a voz de Deus.

em roma, acreditava-se, até mesmo, que a primeira palavra ouvida ao sair-se porta afora poderia ser uma palavra profética. assim, se um romano tivesse algum assunto a tratar e estivesse em dúvida sobre que decisão tomar, a primeira palavra ouvida na rua seria a voz de um deus. em outras palavras, seria a resposta à dúvida. De fato, nosso romano indeciso sempre poderia invocar o deus Aius Locutius, que cer-tamente se manifestaria, nem que fosse pela força do pleonasmo de seu nome. aio significa “afirmo”, “digo”,

OrÁCULOa vida pela hora da morte! — sempiternos adágios

aqueronte, a barca atracava na margem oposta, e a alma chegara em definitivo ao hades, o reino de plutão e perséfone, cujo imponente saguão era guardado pelo tricéfalo cérbero, o cão do mundo subterrâneo.

um óbolo, portanto, era o preço da passagem pa-ra o mundo dos mortos. É por isso que na Grécia antiga existia o costume religioso de se colocar a dita moeda na boca ou por sobre a pálpebra do morto. o óbolo era a medida grega de menor va-lor: a sexta parte de uma dracma ou meio grama de prata. Nosso centavo de real, que já nem mais circula, apesar de continuar a ser computado no preço de mercadorias e produtos, não serve como comparação. Já vinte centavos, quem sabe?

só que, em nossa história, os vinte centavos de aumento seriam cobrados (não fosse o movimen-to passe livre) pelo transporte de pessoas vivas em viagens diárias, verdadeiras vivências de um inferno surreal. Nenhum carioca, obrigado a usar o transporte público, terá dificuldade em imaginar a barca de caronte! ele a conhece dos ônibus e do metrô que servem à população.

ao fim e ao cabo, não é de estranhar que tenhamos a morte em tão alta conta: — Fulano vale mais mor-to que vivo! pela fria lógica de mercado, um morto tem um polpudo saldo de créditos por tudo que pagou em vida, sem esquecer o custo derradeiro: o do funeral. ainda que macabra, fica a irônica sugestão de uma nova reivindicação, não de todo descabida. — Abaixo o óbolo de Caronte: cemitérios públicos livres para todos!

“falo”. Locutus sum, por sua vez, é a origem da forma Locutius, e significa “falei”, “disse”. Deveras loquaz este misterioso deus Falo e digo e repito ou aio locúcio!

parecem ter sido vítimas desta misteriosa e diverti-da divindade pagã aqueles funcionários da notícia que, antes da declaração oficial de legitimidade do movimento das ruas, ridiculamente o repudiaram e desclassificaram. — pois é, arnaldo Jabor, “anarquismo inútil” é forte até mesmo em um discurso de retratação pública! o ridículo de vozes deste tipo me fez associar os sintagmas “vinte centavos”, “preço do transporte”,

“passagem” a outro adágio estampado em cartazes de manifestantes do movimento: — O tomate está pela hora da morte! uma bem humorada paráfrase do velho A vida está pela hora da morte.

se o custo de vida anda alto, o da morte, parado-xalmente, anda altíssimo. e aí vai uma questão a ser pensada: se em vida já pagamos altas taxas de juros e impostos, por que temos de pagar pela morte? Não seria o caso de protestar também contra o custo do transporte para o mundo dos mortos? sem abordar o abjeto assunto da “máfia dos cemitérios”, a morte nunca foi grátis. o pagamento da passagem para a morte não é novo e nem moderno. assim nos testifica a figura de caronte, o barqueiro do mundo dos mortos da mitologia grega.

Diz o mito que quando a alma abandonava o cadáver, ela era conduzida ao mundo subterrâneo dos mortos por hermes, que a deixava às margens do rio aqueronte. Dali, se o corpo tivesse sido sepultado e mediante o pagamen-to de um óbolo, era permitido à alma entrar na sombria barca de caronte. cruzando as tenebrosas águas do

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mormormorToda última quinta do mês às 20h

http://cepvintemil.wordpress.comTeatro Sérgio Porto, Humaitá, Rio de Janeiro

Arrependei-vos e rejubilai-vos!

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ao caçar passarinhos

Tudo é exílio. Tudo, exceto a poesiaDante Milano

um passarinho(sistema singular)

é um voo sem palavras — não pertence ao poema —mantém-se estranho

daí ao caçá-loquerer sê-lo;e me aplumo no poema

o voo que só é sendoàs asas não se diz — nós é que estamos dizendo

(colecionamos pássaros mortos)

o pássaro não se interroga não se publica não se pertence

tal qual o poemaque se pretende voo em outras asas

mas vale a ele se aterno que dele tenhoe a ele não posso me ter

nos resta então este jogo, um voo do escrito:

entre o que me deixopassarinho permanecidoe o que minhas asasnão sabem ao que bater

Flávio Morgado

urubu

para Fabrícia Vale

um bichoavançado na cordacome o necessário íntimoo bichose encosta ao acessóriosuspenso euum bichoassumo o riscode ver o arrepio-bichoque nenhuma pernaenganada vai dizercínicoo gelado do ritmode bichoavançado na corda

atento ao frio feitoum bicho que escorrega feitoum vermerói a parede ciã da carne viradada fruta intestinae rói maise rói e larga os ossosos cabeloso peso do mortonão menos enão menosbichotorna ao fio da cordapanço sem precisarmedir o equilíbrio

eunão maisme sei sequerum bichome sei talvezo bichoque na cordaé hábil e levepássaro rapacebicho queave-não carece ninho

André Capilé

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amor de viajante

o rio de águas claras corria lentamente, e o sol já ia se escondendo atrás das montanhas. cansada, eu buscava algo além da realidade. coisas como estrelas que falam, rosas que choram... a fantasia era para mim um desvio da realidade bruta. Diante daquele sol, dos ventos e homens em verdadeira harmonia, parei. sentei na relva úmida. sentia a natureza, meu mundo borbulhando em latência plena.

percebi que a uns metros de mim repousava um homem de aparência rude. cabelos despenteados, barba por fazer e uma sacola com roupas como um pesado fardo. sentado, com os joelhos junto ao peito, parecia se proteger da dor. a noite caía e ele permanecia ali, quase imóvel. assobiava como se cantasse uma canção de adeus para alguém. olhei-o pelas costas. havia uma mistura de sentimentos fechados no peito. me aproximei.

“triste?” me atrevi a perguntar. “Não sei”, respondeu-me com voz mansa. Não falei mais nada. sentei ao seu lado e fiquei admirando sua fisionomia austera e amável ao mesmo tempo. o vento soprava doce.

“sabe, há muitos anos eu vivi nesse lugar...” começou a me dizer.

“Do lado esquerdo do rio havia uma palmeira. Já me banhei aqui quando menino”.

De repente parou de falar, como se eu não fosse digna de tais confissões. mas suas confusões pareciam ser maiores que as desconfianças. então, prosseguiu:

“foi numa tarde como essa que eu, cansado de andar, parei aqui para descansar. Desse mesmo lugar onde estou agora, vi uma menina. estava de costas. e eu só pude ver aqueles longos cabelos negros que lhe caíam nas costas, como um manto. Depois disso, corri mundo. Naveguei os sete mares. conheci mulheres deslumbrantes. cheguei a lutar numa guerra, apesar de acha-la ridícula. fiz o diabo nesse mundo de Deus. mas nem todas as loucuras, nem todos os bordéis de beira de estrada, nem os vinhos que me embebedaram, me fizeram esquecê-la. aquela menina sempre viveu nos lugares mais bonitos de minha memória. se ela existiu realmente, não sei. alucinação, talvez.”

a essa altura o viajante não externava angústia. era como se contasse mais uma de suas aventuras. falava como se buscasse, num fundo qualquer, um jeito adocicado de me contar sua vida.

“talvez ela tenha se transformado numa estrela, ou esteja à beira de um outro rio, despedaçando outros corações. quem sabe, esteja despertando outros amores. mas viverá em mim até o fim dos meus dias”.

e nessa mistura de amor, aventura, ilusão e doçura, levantou, se despediu e seguiu viagem. sem perceber que a mulher que tanto procurava estava ali, a seu lado.

Maria de Lourdes Souza

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r. augusta

rua augusta.vacas de presépioe um coração tatuado a calno muro vermelho.

três coroas golpeiam-sena sobreloja.ataque. Defesa.taco no taco.

vitrine parada,luz de passarela.artigos à venda.É festa, é Natal.

um indiano cristãoestaca na vitrine.Na Índia as vacas circulam,como ele, pelas ruas.

rua augusta.o coração lhe cabia.farol vermelho,coração parado,vitrine piscante,coração no muro.passarela.

É Natal.o indiano someno fundo preto.

luz fria.três coroas na sobreloja.ataque. Defesa.

fregueses se abraçam feito alambrados.ataque. Defesa.rua augustasobre muro pichado.

É branco, é preto,é prata, é Natal.

chove na augusta.a freguesia ri,um cara passa,o cara ri.ataque. Defesa.É augusta. É efêmera.farol vermelho.

Na Índia um rio brota da cabeça de Deus.É o Ganges. É sagrado.

corre a rua augusta.buzina. sirene. silêncio.água no muro.tatuagem. aqui, brota água dos bueiros brota um tiro da cabeça.

Na Índia, os rios são três,dois de água, um de alma.lá vão os velhosao Ganges morrer.É sagrado.

Janelas fechadas na sobre-loja.Da cabeça dos coroas brota festa. É pecado.

Maria de Andrade

o falso enforcado

todo homemé arcanoem seu jogoe destino.

Digo,

todo homem o enforcado. todo homem seu demônio.todo homem seu impossível

significado.

o poeta, o poeta é sibilino.

face à forca.

ele forçaseu pescoçocontra corda.

acordao grito

vibra a vida,

engasgada na garganta.

o poeta canta,mesmo mortoa carta da morte.

Eduardo Lacerda

amor viúvo

o tempo passa e a saudadeteima em trazer recordações.seus pedidos de sexosussurrados em meus ouvidossuas mãos cobrindominhas curvas de caríciasseu corpo pesandoem cima do meunos levando ao êxtase.ah, meu amado,até quando esse amor viúvodestroçará meu coração?tu, com ternuraresponderias mais uma vezusando a palavra mágicado nosso amor: toujours.

Marina V. Medeiros

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capítulo iv, por intermédio do naturalista

no portão esperando a vez,

percebe que esqueceu de

devolver a chave

esqueci de devolver sua chave.

e ela diz, pode ficar.

sai com a chave guardada na bolso do casaco

e as duas frases repetindo

na cabeça.

mas o capítulo iv começa

com um avião cruzando o céu de madrugada, o brilho da

asa no escuro, chegar do outro lado as luzes

piscando, o ruído na estrada.

talvez se o portão se deformasse em paralaxe,

uma frase passaria por ele. ou as duas frases

iriam parar no apartamento com um piano

no meio, o ruído dos frascos na bolsa

quando atravessa o corredor.

percebe não um corvo, mas uma folha seca

batendo na janela. percebe o que dizer a ela

já meio tarde. as ruas quadradas, percebe a chave no bolso

quando sai de casa na primeira manhã.

quase todos os dias,

charles darwin se sentava no banquinho de jardim

em frente ao pomar de tomateiros. quase todos os dias, charles

darwin ficava por minutos a fio

tocando trombone para estimular o crescimento

dos tomates. talvez se o portão se

deformasse não precisaria

da chave. se lembra do ruído

algum tempo depois e do que disse

daniel f. no importa qué,

algo que estuvo no está,

y ni siquiera brilla por su ausencia

Marilia Garcia

não tinha lógica trazer um pé

de manjericão pra casa

mas e quando você for embora

que fim vai dar ao vaso

vai ter coragem de tirar as folhas

colocá-las numa panela fumegante

até as folhas murcharem e mastigar

a planta de que você cuidou

com tanto esmero como se fosse

um bicho de estimação

será que na verdade você não comprou

esse vaso para que algo dependesse do

seu cuidado algo

ainda mais frágil que

você não está pensando

em levar isso na mala

está?

Alice Sant’Anna

DOBrADINHASpor alice saNt’aNNa & marilia Garcia

cais.ato.br

Cais é um site dedicado ao intercâmbio en-tre poesia e artes plásticas, com conteúdo de qualidade, navegação prática e design atraente. editado por luana carvalho, com a colaboração de autores de diferentes áreas, conta também com uma agenda de shows cools da cidade do rio de Janeiro, e uma in-teressante sessão de dicas de livros, discos e filmes feita por um pessoal da pesada, como antónio Zambujo, Geraldo azevedo e otto.

mallarmargens.com

No ar desde maio de 2012, a revista digital de poesia e arte contemporânea mallarmar-gens tem como objetivo aglutinar a diversi-dade artística nacional e internacional. atu-alizada diariamente, conta com 112 autores fixos e 255 autores periódicos, proporcio-nando à revista uma diversidade de conteú-do que garante ao leitor encontros com bons textos a cada visita. a arte gráfica do site, que “esconde” os textos sob imagens das mais variadas obras de arte, também merece olhos atentos.

vale o clique!

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Raïssa Degoes

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Ingrid Bittar

por camila JustiNo salaZar ENTrEvISTA

ricardo sternberg: uma produção atravessada de charme e lirismo

livros publicados: The Invention of Honey (vehicule press, montreal, 1990, 2a edição 1996), Map of Dreams (vehicule press, montreal, 1996) e Bamboo Church (mcGill-queen’s university press, 2003, republicado em 2006).Some Dance (mcGill-queen’s university press) tem sua publicação prevista para 2014. site de ricardo sternberg: http://ricardosternberg.com

temos muitas antologias para jovens e até para crianças, como The Rattle Bag, editado pelo seamus heaney e o ted hughes. mas não me lembro de ter lido uma antologia, uma seleção ou algo do gênero. quando penso nas primeiras lembran-ças, lembro muito bem do disco que meu pai tinha do João villaret, um ator português que recitava poesia brasileira. isso me marcou bastante. até hoje, quando leio alguns poemas, me lembro da música e a entonação que villaret colocava na poesia. ele dramatizava. Deste disco me marcaram Nega Fulô do Jorge lima, Pátria Minha do vinicius e O caso do vestido do Drummond de andrade, que eu ainda estou traduzindo. outra lembrança muito viva é a poesia da música infantil. Se essa rua se essa rua fosse minha, eu mandava... essa rua, esse bosque até hoje me dá um frisson.

A produção começou em inglês, já nos EUA?

sim, comecei a escrever poesia nos estados unidos. quando a gente ensina aqui nas universidades da américa do Norte, a gente pode observar um aspecto interessante. os estudantes estão aprendendo francês, por exemplo, e nunca escreveram um poema antes, mas de repente estão escrevendo poesia em francês ou em espanhol. eu acho interessante esse con-tato com a nova língua, que é exatamente o que a poesia precisa, essa coisificação das palavras. cada palavra é mis-teriosa, tem um peso, então minha iniciação na escrita está relacionada com o aprender de uma nova língua, o inglês. o início da minha produção também está relacionado com a tradução. eu traduzia poemas e músicas de que gostava, foi um caminho. assim que comecei a escrever, comecei a traduzir. traduzi muitos poemas do Drummond e publiquei sem nenhuma permissão dele. hoje em dia isso seria difícil. Na época eu traduzia e mandava para as revistas e, quando eram publicados, eu mandava as revistas para o Drummond. ele sempre me respondia. me lembro da primeira vez que ele me respondeu uma carta. Nessa época eu morava em pocatello, idaho. ele escreveu: Me agrada muito saber que estou sendo traduzido por um jovem brasileiro em Pocatello,

em sua última passagem pelo rio de Janeiro, o poeta ricar-do sternberg visitou a oficina de poesia do professor paulo henriques britto na puc-rio. Desde então, o plástico bolha firmou contato com ricardo, publicando alguns de seus poe-mas, acompanhados de traduções feitas por alunos do curso de letras. Dessa vez, o plástico bolha foi até a university of toronto, onde sternberg leciona. lá tivemos o privilegio de ser recebidos em seu escritório, cercado de pinturas, escultu-ras, fotografias e, claro, livros. ricardo sternberg é brasileiro, estudou na famosa escola de padres santo antônio, em são João Del rei (mG), e mudou-se com a família para os eua aos 15 anos, onde mais tarde iniciou sua carreira acadêmica, passando pela university of califórnia e harvard, até chegar à tradicional universidade canadense. Nesta conversa ele conta um pouco de sua trajetória, da descoberta da poesia e de sua troca de correspondências com Drummond.

A primeira pergunta é do Paulo Henriques Britto. Ele está curioso e quer saber quando vai poder ler seu pró-ximo livro.

essa é uma notícia recente. há umas poucas semanas, mandei a versão final do meu próximo livro para a editora mcGill uni-versity press, que publicou meu último livro, Bamboo Church. (ricardo mostra o manuscrito em formato a4). para mim, eu fechava o livro com 50 páginas. prefiro um livro com menos poemas, mas eles pediram mais; então eu mandei mais sete poemas. eles escolheram cinco e justamente o favorito do editor, era o poema que eu mais hesitava publicar e não incluí no primeiro manuscrito que mandei para mcGill. comentei até com a christine, minha esposa, que iria aceitar 4 dos 5 poemas e pedir para que aquele não fosse incluído. mas acordei à noite e pensei que o poema poderia, sim, encerrar o livro. No dia seguinte, escrevi para o editor, disse que havia aceitado publicar o poema, desde que fosse o último. mas ele me respondeu que não poderia encerrar o livro com esse poema; ele queria encerrar com Some Dance, título do livro. era preciso entrar em acordo para finalizar o livro, e o editor me convenceu. eu aceitei algumas sugestões, outras não. Não é uma relação antagônica.

Quando um poema fica pronto?

para mim é cada vez mais difícil acabar, mas eu gosto daquela frase — eu acho que era o valéry quem dizia — “o poema nunca é terminado, ele é abandonado”.

Começamos pelo fim, falando do seu último trabalho. Conte como começou seu contato com a poesia. Foi ainda no Brasil?

foi no brasil, mas eu não tenho lembrança de ter lido poesia na escola. Devo ter lido olavo bilac, não sei. hoje em dia, aqui,

Idaho (risos). eu senti uma ironia do Drummond. eu também traduzi Um escritor nasce e morre, para a revista ploughshares e o mark strand traduziu também três poemas nessa edição. o Drummond me respondeu agradecendo por ter mandado a revista com as traduções de mark strand. Não fosse você, eu não saberia das traduções do Mark Strand etc. eu fiquei angustiado porque ele não comentou nada sobre minha tradução. passaram algumas semanas, e eu mandei mais uma carta perguntando se ele havia lido a tradução para o inglês de Um escritor nasce e morre. um tempo depois, ele respondeu com uma página datilografada dizendo ter sentado para agradecer a tradução, mas não agradeceu, e a única explicação só podia ser de ordem psicológica: era um conto que foi escrito num momento de amargura e que ele mais tarde rejeitou, e, em vez de se vingar do escritor, se vingou do tradutor, ele escreveu.

Você também traduziu João Cabral de Melo Neto e Jorge de Lima...

traduzi, e traduzir João cabral é bem mais difícil. Não é fácil conseguir manter a complexidade da sintaxe do cabral sem que o poema traduzido fique com aquele ranço traduçoide. traduzir Drummond é mais simples. se você consegue pegar o tom de Drummond, o tom irônico, e equilibrar essa ironia do poema na tradução, fica mais fácil.

Os leitores e críticos dos seus livros são unânimes quando comentam sobre o charme da sua escrita, so-bre o prazer que a leitura dos seus poemas proporcio-na. Como você enxerga esses comentários?

acho que no início o que pode ter me ajudado a publicar rapidamente é esse curb appeal para o leitor, eu brinco que o poema é reader-friendly. talvez aconteça uma atração imediata e até superficial, mas eu espero que tenha outras camadas depois desta mais imediata, mais superficial. mas são poemas que, pelo menos num nível, você entende logo, não é um quebra-cabeça. sem querer sugerir comparações ridículas: um romance como Cem Anos de Solidão tem es-te charme imediato (o que nós chamamos a good read) e, claro, aspectos menos acessíveis. meus filhos leram o Garcia marques ainda adolescentes e adoraram, sem en-tender muito os aspectos históricos, toda a triste história da exploração do caribe que subjaz a narração. eu acho que esse próximo livro, some Dance, talvez tenha menos deste curb appeal. a música é mais complexa. a primeira parte do livro é mais chegada ao inglês coloquial. essa é a minha impressão e a maior dificuldade foi escrever usando esse tom coloquial sem perder a força da poesia. o escritor acha que está sempre fazendo alguma coisa diferente até alguém apontar e dizer, “olha, mas aqui está a mesmíssima voz do seu primeiro livro!”.

Brun

o Pi

res

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buffalo

i have wrestled a buffalo into this poemthe least i could dofor an endangered species.

i have given him a treefor shade, a streamto slake his thirst.

a hulk of night, strandedon my gold-green pasturehe shakes stars from his fur, paws thunder into the ground.

the reader is to blamewho brings red into the poem

Ricardo Sternberg

búfalo

arrastei um búfaloaté este poemao mínimo que pude fazerpor uma espécie ameaçada. Dei-lhe uma árvorepara fazer sombra, um riachopara saciar-lhe a sede. um pedaço de noite, presono meu pasto dourado,ele esparge estrelas ao sacudir-se,planta trovão no solo ao escarvá-lo. será o culpado o leitorque puser vermelho no poema.

Paulo Henriques Britto

Pedro Zylber