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1 “CRIANÇAS-PROBLEMA” EM ESCOLAS PÚBLICAS PERIFÉRICAS: PODER, DISCURSO E (DES) CAMINHOS Alexandre César Gilsogamo Gomes de Oliveira Universidade de São Paulo A árvore que não dá frutos É xingada de estéril. Quem Examina o solo? O galho que quebra É xingado de podre, mas Não havia neve sobre ele? Do rio que tudo arrasta Se diz que é violento, Ninguém diz violentas As margens que o cerceiam Bertold Brecht INTRODUÇÃO O presente texto traz características de uma pesquisa que se inicia a partir de inquietações que me acompanham desde quando ingressei na rede pública de ensino no início da década de 90. Desde então, enquanto professor e gestor tive contato diário e profundo com esta complexa rede, suas contradições e desafios. Minha instigação cotidiana é problematizar os abismos formados pelas teorizações, discursos e práticas junto às crianças e adolescentes e de como tais aspectos possam favorecer uma “aproximação curricular” entre discência e docência. Neste sentido, compreender as educandas 1 em sua inteireza, considerando sua formação enquanto sujeito, respeitando suas características históricas, sociais e culturais é fundamental, tanto para as relações que de constituem no ambiente escolar, como para o processo ensino-aprendizagem. Portanto, lidar com as estudantes como se todas fossem “iguais”, não considerando a diversidade que as constituem o que ainda, infelizmente, é bastante comum nas práticas e discussões nas unidades educacionais suscita uma necessária reflexão, sobretudo, quando se pensa em uma escola calcada nos princípios democráticos. Nesta perspectiva, no calor destas contradições que matizam a educação pública 1 O texto toma a liberdade de adotar, sempre, o gênero feminino por reconhecer a importância da mulher no campo educacional, assim como em toda a sociedade.

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“CRIANÇAS-PROBLEMA” EM ESCOLAS PÚBLICAS PERIFÉRICAS:

PODER, DISCURSO E (DES) CAMINHOS

Alexandre César Gilsogamo Gomes de Oliveira

Universidade de São Paulo

A árvore que não dá frutos

É xingada de estéril. Quem

Examina o solo?

O galho que quebra

É xingado de podre, mas

Não havia neve sobre ele?

Do rio que tudo arrasta

Se diz que é violento,

Ninguém diz violentas

As margens que o cerceiam

Bertold Brecht

INTRODUÇÃO

O presente texto traz características de uma pesquisa que se inicia a partir de

inquietações que me acompanham desde quando ingressei na rede pública de ensino no início

da década de 90. Desde então, enquanto professor e gestor tive contato diário e profundo com

esta complexa rede, suas contradições e desafios. Minha instigação cotidiana é problematizar

os abismos formados pelas teorizações, discursos e práticas junto às crianças e adolescentes

e de como tais aspectos possam favorecer uma “aproximação curricular” entre discência e

docência. Neste sentido, compreender as educandas1 em sua inteireza, considerando sua

formação enquanto sujeito, respeitando suas características históricas, sociais e culturais é

fundamental, tanto para as relações que de constituem no ambiente escolar, como para o

processo ensino-aprendizagem. Portanto, lidar com as estudantes como se todas fossem

“iguais”, não considerando a diversidade que as constituem – o que ainda, infelizmente, é

bastante comum nas práticas e discussões nas unidades educacionais – suscita uma necessária

reflexão, sobretudo, quando se pensa em uma escola calcada nos princípios democráticos.

Nesta perspectiva, no calor destas contradições que matizam a educação pública

1 O texto toma a liberdade de adotar, sempre, o gênero feminino por reconhecer a importância da mulher no

campo educacional, assim como em toda a sociedade.

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periférica, em particular, um aspecto me provoca e me conduz a uma investigação: os

distintos discursos e práticas que são produzidos pela educação, saúde e assistência social

acerca das “crianças-problema”2. Estas minhas inquietações acentuam-se ao constatar,

cotidianamente, nos últimos anos, um crescimento dos encaminhamentos3 de crianças e

adolescentes à profissionais de outras áreas provocados por um comportamento

“inadequado” no ambiente escolar e, acima de tudo, pela “não aprendizagem”. Corroborando

com tais angústias, Souza (2016, p. 59) salienta que:

Diariamente os serviços de atendimento à educação, saúde e assistência recebem

encaminhamentos de crianças, jovens e adultos com dificuldades em seu processo

de escolarização. Esses encaminhamentos chegam por meio de relatos que, de

maneira geral, buscam encontrar na criança, em suas famílias e em seu meio cultural

as causas do não aprender na escola. E, de alguma forma, esses encaminhamentos

revelam práticas que durante décadas foram realizadas no campo da educação,

utilizando, principalmente, explicações da área da saúde para compreender o mau

desemprenho escolar.

Destarte, baseado nas constatações apresentadas, penso que há a necessidade de

refletirmos sobre um aspecto da educação escolar que “de tão frequente, parece natural: a

presença de um contingente de alunos problemáticos que enfrentam dificuldades de

adaptação ao ambiente escolar” (LIMA, 2006, p. 127).

Os discursos voltados à “criança-problema” sempre pautaram a educação pública no

país. Contudo, é a partir da década de 30 que as ações públicas começaram a delinear e

implantar políticas para sanar os “problemas” causados por “crianças problemáticas”. De

acordo com Patto (1990), Lopes (2002) e Lima (2006), nomes como Arthur Ramos e

Raimundo Nina Rodrigues compunham uma geração de cientistas imbuídos pela busca de

soluções médicas para os “males da sociedade”. Lima (2006), aponta que:

2 Entende-se por “criança-problema”, a menina e o menino que destoa dos “padrões” estabelecidos por uma escola

calcada na concepção de que todas são “iguais”, ou seja, um ambiente escolar que desconsidera as características

sociais, históricas e culturais de suas educandas. Escolas assim, partem do pressuposto de que a criança que “não

aprende” ou que possui um comportamento “inadequado“, traz consigo, em princípio, alguma disfunção biológica

e/ou intelectual. 3 Estes encaminhamentos são relatórios elaborados pela escola. Geralmente, coordenadora pedagógica e professora

– algumas vezes, os responsáveis são convidados, também, a compor o documento – descrevem aspectos

relacionados à “indisciplina” da educanda, ou ainda, características ligadas a “não aprendizagem”.

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Criou-se o conceito de “criança-problema” em substituição ao termo pejorativo e

estreito de “criança anormal”, para indicar todos os casos de desajustamento

caracterológico e de conduta da criança ao seu lar, à escola e ao currículo escolar.

Alguns autores tomam a expressão num sentido largo, englobando no conceito de

“problema”, todas as dificuldades infantis – físicas, mentais e sociais. A expressão

ficou, porém, para designar mais especialmente os casos de desajustamentos psico-

sociais que não cheguem aos casos-limites do distúrbio mental constitucional. (RAMOS, 1939 apud LIMA, 2006, p. 134)

Percebe-se que a expressão “criança-problema” – embora representasse certo

“avanço”, pois substituía o termo “criança anormal” – é um conceito que convive com as

discussões educacionais há muito tempo, trazendo as questões neurológicas e biológicas

como preponderantes nos diagnósticos realizados, características que ainda permeiam a

educação contemporânea. Os aspectos sociais eram utilizados apenas para justificar as

“disparidades” comportamentais e intelectuais – crianças de classes populares e

desfavorecidas eram mais propensas a apresentarem algum distúrbio ou transtorno em relação

às demais, e não como um meio para compreender as situações adversas que identificavam

certas crianças. Com efeito, a grande preocupação dos precursores da Psicologia Escolar era

voltada aos que não aprendiam e que não aceitavam as regras impostas pelas escolas.

A década de 80 aponta uma guinada nos debates acerca do que vem a ser esta “criança-

problema”, ou seja, há uma ruptura com os modelos de compreensão das dificuldades

escolares até então. Nesta perspectiva, Souza et al. (2014) enfatiza que o conceito de

“fracasso escolar” (Patto, 1990) ampliou a visão a respeito das chamadas crianças que não

aprendem ou, simplesmente, “crianças-problema” e que o foco da discussão recai sobre

processos que constituem o aluno que fracassa, considerando o fenômeno do mau rendimento

escolar como originário de questões macroestruturais do sistema capitalista que se articulam

nas políticas educacionais e no cotidiano escolar. De acordo com Patto (1990), o fracasso

escolar é “produto da escola” e por isto, não pode ser tratado como um fenômeno individual

e descontextualizado das relações institucionais, pedagógicas, sociais e culturais.

Na esteira destas discussões, Souza (1996), Moysés (2001) e Lima (2004) apontam

que as características históricas, sociais e culturais das crianças e de suas famílias têm

fundamental importância quando analisamos situações que fogem aos “padrões”, quase

sempre instituídos por concepções ligadas a uma cultura dominante, posturas estas, que não

favorecem a compreensão das realidades predominantes nas classes mais pobres. “Há

concepções que produzem ficções sobre os homens, falam de homens abstratos, encobrem a

realidade e somem com a desumanização; há concepções que a desvelam, em nome do

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compromisso expresso com a vida justa” (PATTO, 2000, p. 73).

Diante disto, remeto-me à realidade das escolas públicas municipais paulistanas, em

especial as periféricas, no que se refere às crianças que são encaminhadas e, na maioria das

vezes, diagnosticadas com alguma doença a ser tratada. Parte-se da hipótese de que as

decisões de submeter tais estudantes a psicólogas, médicas e assistentes sociais, devido às

atitudes comportamentais e/ou de aprendizagem, são provenientes dos discursos que são

construídos no contexto escolar. Estes discursos parecem-me, em princípio, alimentados por

conceitos e concepções calcados numa “visão medicalizante” que assola as escolas

contemporâneas. Os discursos não estão dissociados das relações de poder que, por sua vez,

não estão apartadas da sociedade. “Viver em sociedade é, de qualquer maneira, viver de modo

que seja possível a alguns agirem sobre a ação dos outros. Uma sociedade “sem relações de

poder” só pode ser uma abstração” (FOUCAULT, 1995, p. 246).

Quando falamos de escolas públicas localizadas em regiões com maior

vulnerabilidade social, a impressão é de que os efeitos que emergem do “poder”, numa

concepção foucaultiana, são acentuados. As relações que caracterizam o ambiente escolar

são, em sua maioria, pautadas de acordo com a hierarquização dos indivíduos presentes no

cotidiano escolar. Portanto, as escolhas, as posturas e as decisões são construídas e

determinadas por aqueles que detêm o “poder” ou são designados para tal. Neste sentido,

Foucault aponta que:

O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura

que se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de

procedimentos mais ou menos ajustados (...) poderíamos dizer que as relações de

poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas,

racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado. (FOUCAULT, 1995, p. 247)

Com efeito, entende-se que as relações de poder existentes nas escolas públicas, em

especial as que estão presentes em regiões periféricas paulistanas, são fatores determinantes

no lidar com as crianças que apresentam alguma “anormalidade”. Desta forma, tais posturas

podem impedir de se considerar todos os fatores que podem caracterizar o estereótipo de uma

“criança-problema”. Lima (2006), quando analisa alguns precursores da Psicologia Escolar,

na década de 30, conclui que:

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É verdade que as crianças pertencentes às camadas desfavorecidas da população

continuaram sendo aquelas que se considerava necessário vigiar mais de perto, pois

as suas condições tornavam-nas especialmente predispostas aos desvios. O governo

da “criança-problema” não teve em vista apenas as crianças da população infantil,

mas todos os indivíduos, na medida em que incluía a prevenção dos

desajustamentos e, em princípio, nenhuma criança estava livre do risco de se tornar

um “problema”. (LIMA, 2006, p.148)

Por outra perspectiva, ainda, infere-se que condições sociais distintas, neste caso,

entre educadoras4 e educandas, favorecem posturas que não condizem com os princípios

democráticos de uma instituição pública, pois criam entraves nas “relações pedagógicas” que,

no limite, podem chegar, inclusive, a negação de direitos. Tais posicionamentos no contexto

escolar, de acordo com Oliveira (2015), podem revelar o que o autor chama de “paradoxo do

professor periférico” (p. 66), um movimento de “aproximação” e “distanciamento” entre

escola e estudantes. O pesquisador nos revela – após investigação em uma escola pública

periférica paulistana – que o fato das educadoras, em sua grande maioria, terem nascido

também em regiões periféricas – a maioria ainda mora nas regiões onde trabalham – em

muitos casos, não favorece a relação professora-aluna. Para Oliveira, termos como “eu

também já fui pobre, mas venci” e “não fazem porque não querem” – captados nas entrevistas

com o corpo docente – revelam o movimento paradoxal defendido em seu texto:

Aproxima os quando o objetivo é justificar as dificuldades no processo educativo. O

fato de que os professores vivenciaram as “mesmas” dificuldades de seus alunos no

passado “obriga” os mesmos, de algum modo, a se comportarem, no presente, de

maneira análoga. Ao mesmo tempo, um afastamento, pois percebe-se que não há

uma preocupação em fazer da escola um ambiente que contemple as características

históricas, sociais e culturais presentes na comunidade e que caracterizam, de certo

modo, professores e alunos. (OLIVEIRA, 2015, p.66)

Em que medida os discursos produzidos pela escola favorecem ou não os estigmas

acerca da “criança-problema”? Será que as relações (de poder) que permeiam as escolas, são

as responsáveis pela delimitação desta linha tênue que separa a “anormalidade” da

“normalidade”? Até que ponto os fatores sociais, históricos e culturais são considerados

quando rotulamos as crianças “que não aprendem” e as que possuem um comportamento que

fogem dos “padrões aceitáveis” pela escola?

4 Entende-se por educadoras todas que trabalham em uma escola: gestoras, professoras e funcionárias.

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A ESCOLA E SUAS ESCOLHAS

Um dos pressupostos que atravessa este texto e pesquisa é que os “entraves

pedagógicos” causados pelas “crianças-problema” na escola originam-se, particularmente,

pelas concepções de sociedade e indivíduo e, consequentemente, pela “aceitação” deste no

cotidiano escolar. O modo como as educadoras compreendem os sujeitos são fundamentais

para as relações humanas, assim como para o processo ensino-aprendizagem. Deste modo,

propomos considerar, rapidamente, alguns posicionamentos sociológicos e filosóficos que

possam auxiliar na compreensão dos processos de exclusão e, consequentemente, de

medicalização que permeiam a Educação em sua contemporaneidade.

Duas correntes de pensamento, que me parecem centrais – embora, tantas outras se

desenvolveram ao longo do tempo – podem significar o início de uma reflexão sobre a ideia

de constituição do indivíduo em uma determinada sociedade: o idealismo e o materialismo.

O idealismo, segundo Johnson (1997), calcado nas obras de Platão (428-348 a.C.),

Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Hegel (1770-1831) é uma maneira de compreender a

relação entre os seres humanos e o mundo tal como é vivenciado por eles, assim:

A realidade consiste primariamente no modo como indivíduos nela pensam, e isso

depende de ideias e teorias humanas. O homem não é uma lousa branca na qual a

realidade grava impressões de si mesma. É, ao contrário, um sujeito ativo que utiliza

ideias e outros elementos da cultura para construir o que julga ser a realidade.

(JOHNSON, 1997, p.126)

Por esta ótica idealista – alimentada pelo racionalismo de René Descartes (1596-1650)

e que mais tarde influenciaria o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) – as pessoas,

particularmente, suas ideias “moldam” a realidade, não o contrário. Neste sentido, grosso

modo, as contradições sociais, os desafios cotidianos e as relações humanas não são,

necessariamente, elementos primordiais na constituição da individualidade humana e de seu

pensamento.

Para os idealistas o “campo das ideias” está associado a algo imaterial, inerente à

natureza humana, intrínseca a cada indivíduo e, no limite, algo inato. Nesta perspectiva, as

características históricas, sociais e culturais que caracterizam os seres humanos, em toda

sociedade, não seriam, necessariamente, fatores de extrema relevância.

Esta concepção idealista emerge no campo educacional quando, no ambiente escolar,

consideramos as crianças e adolescentes como “iguais”, ou seja, quando as responsabilizamos,

devido às suas “naturezas”, pela (in) disciplina pelo (não) aprendizado. Neste sentido, não

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consideramos razões outras que possam ter influenciado, por exemplo, em seu fracasso

escolar.

Patto (1990, p.9), se apropriando das discussões geradas por Chauí (1981, p. 10-16),

esmiúça, com a devida propriedade, as características do idealismo. Sendo assim, penso ser

oportuno o trecho que diz:

Quando falamos em visão de mundo trazemos à tona a questão da natureza das

ideias: serão elas resultado de “puro esforço intelectual, de uma elaboração teórica

objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da observação científica e da

especulação metafísica, sem qualquer laço de dependência com as condições sociais

e históricas” ou “são ao contrário, expressão destas condições reais”? As ideias

explicam a realidade histórica e social ou precisam ser explicadas por ela? Quando

um teórico elabora uma explicação do mundo, ele está produzindo ideias verdadeiras

que nada devem à sua existência histórica e social ou está realizando uma

transposição involuntária para o plano das ideias relações sociais muito

determinadas?

O materialismo, por outro lado, pensamento onde se afirma que o espírito e a mente

são precedidos pela matéria na constituição do indivíduo, tem em Gottfried Leibniz (1646-

1716) e Julien La Mattrie (1709-1751) seus principais mentores. Segundo Johnson (1997, p.

139), o materialismo é utilizado para compreender a vida social “que se fundamenta na ideia

de que todos os aspectos da vida humana – biológicos, psicológicos, sociais, históricos etc. –

possuem uma base material original da reprodução humana e da produção econômica de bens

e serviços”. Para Johnson (1997), o enfoque materialista tem caráter fundamental na obra de

Karl Marx (1818-1883), que atribui aos padrões de mudança histórica (materialismo histórico)

um de seus aspectos fundamentais. Outra aplicação bastante difundida é a teoria de mudança

social conhecida como materialismo dialético. “Neste caso, Marx associa o materialismo ao

conceito de uma dialética – a luta entre odeias opostas sobre forças sociais (tese e antítese) –

que resulta em uma nova síntese” (p. 140).

Convido, novamente, Patto (1990, p.9) para subsidiar a discussão sobre as concepções

que se referem à formação do indivíduo – consequentemente, da educanda, da professora e da

comunidade escolar como um todo – e sociedade, assim como da importância da escola e de

suas educadoras considerarem as características intrínsecas, provenientes dos contextos onde

se insere, de suas crianças e adolescentes no cotidiano escolar. Diz ela:

Partindo do modo materialista histórico de pensar esta relação é que afirmamos a

necessidade de conhecer, pelo menos em seus aspectos fundamentais, a realidade

social na qual se engendrou uma determinada versão sobre as diferenças de

rendimento escolar existentes entre crianças de diferentes origens sociais.

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Tomando como pressuposto o fato de que crianças e adolescentes que “não aprendem”

e/ou são “indisciplinadas” não, necessariamente, possuem uma disfunção biológica e/ou

intelectual, o modo de como as concebemos, na escola, enquanto indivíduo é fundamental no

processo de ensino e aprendizagem destas que, muitas vezes são estigmatizadas precocemente

pela educação, saúde ou assistência social. O fato de considerarmos os contextos sociais,

históricos e culturais de todas e todos quando avaliamos o seu desenvolvimento escolar, seus

costumes e hábitos é primordial para que não sejamos, precipitados, injustos e excludentes.

Não defendo aqui, em hipótese alguma, que crianças desfavorecidas socialmente sejam menos

capazes, ao contrário, o que proponho é uma reflexão acerca do cotidiano escolar que, em meu

entender, interfere, diretamente, na formação destes sujeitos. Neste sentido, parte-se da

hipótese que questões outras, para além das psicológicas e/ou psiquiátricas, contribuem,

significativamente para o que se convencionou como “criança-problema”. Com efeito, as

educadoras não podem, de modo algum, “diagnosticarem” previamente uma criança, apenas

pelo fato de seu comportamento não estar “adequado”, tampouco por aspectos relacionados à

“não aprendizagem”, algo que, infelizmente, é muito recorrente.

Neste sentido, não se trata de olharmos para estas características pessoais como algo

metafísico, imaterial e, até mesmo, inato, mas discutirmos, com propriedade e seriedade que

relações humanas e de poder atravessam as vidas destas crianças e suas comunidades, em

especial, as periféricas.

CULTURAS ESCOLAR E DE PODER

A cultura escolar, definida pelo “jogo das complexas relações sociais que ocorrem no

processo institucional da educação” (AZANHA, 1991, p. 66), pauta as práticas e decisões

que regem estes ambientes. Desta forma, (in) conscientemente educadoras constroem

normas, regras, identidades e, consequentemente, “modelos” que são aceitos ou não em

contextos educacionais. Certamente, como vimos anteriormente, estas características do

ambiente escolar são definidas por concepções que se tem de indivíduo e sociedade que, nem

sempre, comtemplam as características identitárias de nossas crianças e adolescentes. Com

efeito, tais posturas levam, geralmente, a formalizações de estereótipos que excluem, de

forma contínua, àquelas e àqueles que, de alguma forma, não coadunam com os formatos

“aceitáveis” no ambiente escolar. Neste sentido, as relações (de poder) – entre gestoras,

professoras, funcionárias, educandas e responsáveis – que permeiam as escolas e que,

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consequentemente, as constituem e caracterizam, em meu entender, são as principais

responsáveis pelas estigmatizações em relação à algumas crianças e adolescentes que

destoam dos “padrões” aceitos por educadoras e educadores. Bourdieu & Saint-Martin (2011,

p. 193) traz à tona esta discussão sobre as formas de classificação, inclusive contexto escolar:

Não há dúvida de que os julgamentos que pretendem aplicar-se à pessoa em seu todo

levam em conta não somente a aparência física propriamente dita, que é sempre

socialmente marcada (através de índices como corpulência, cor, forma do rosto), mas

também o corpo socialmente tratado (com a roupa, os adereços, a cosmética e

principalmente as maneiras e as condutas) que é percebido através das taxinomias

socialmente construídas, portanto lido como sinal de qualidade e do valor da pessoa.

A discussão que está posta é a de que as rotulações e estigmatizações que são

desencadeadas pelas unidades educacionais em relação às crianças e adolescentes que, de

algum modo, destoam da “normalidade” são produzidas, diretamente, por educadoras que

estão cotidianamente envolvidas com estas educandas. Neste sentido, cabe à escola, na

maioria dos casos, decidir sobre a “taxinomia” (Bourdieu; Saint-Martin, 2011) de certas

crianças, em outras palavras, se elas passarão a ser denominadas de “criança-problema” ou

não.

Cabe ressaltar, que as decisões em relação às estas crianças que, em princípio,

possuem algum “problema” são, de fato, muito complexas. Salas numerosas, carga

extenuante de trabalho das educadoras e baixas remunerações são pontos relevantes.

Cotidianamente, as gestoras da escola recebem “pressões” das educadoras, muitas vezes, das

responsáveis pela criança e, até mesmo, das próprias colegas de sala. Isso porque, as

“crianças-problema”, geralmente, alteram a rotina das aulas e da escola, seja por impedir que

as demais alunas “avancem” no aprendizado, seja pela “indisciplina” causada. Tais fatores

são importantes e “consideráveis”, porém, em hipótese alguma, podem desencadear ações

excludentes provenientes de processos medicalizantes.

Não tenho a intenção, neste momento, de discorrer com o devido cuidado que o tema

requer, sobre os laudos que são emitidos por profissionais da área da saúde, assim como os

diagnósticos provenientes dos mesmos. No entanto, é importante considerar que, atualmente,

o diagnóstico por TDAH5 é o maior responsável pelo início de processos medicalizantes nas

escolas. Além do rótulo que ele estabelece na criança, para sempre, impedindo que ela, muitas

vezes, conviva e desenvolva com as “normais” da turma, há o caráter nocivo e preocupante

da medicação em si. Souza (2016, p. 65), alerta que:

5 Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade

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(...) a medicação oferecida hoje para os supostos casos de TDAH são

psicoestimulantes, remédios “tarja preta” que atuam sobre p Sistema Nervoso

Central e produzem seríssimos efeitos colaterais no sistema cardiovascular, podendo

causar inapetência, insônia, hipertensão, comportamento compulsivo em qualquer

faixa etária e mais ainda em crianças. O principal medicamento utilizado no Brasil

é o Cloridrato de Metilfenidato, comercializado com os nomes de Ritalina e

Concerta.

Neste sentido, todo o zelo pode ser muito pouco. Não se trata de dissiparmos um

“problema” pontual, de mediarmos um conflito causado por “indisciplina”, de pensarmos em

outras metodologias e propostas curriculares para facilitar a aprendizado. Trata-se do futuro

destas crianças e adolescentes, pois uma ação desencadeada no calor das “pressões”

cotidianas em uma escola pode comprometer uma trajetória de sucesso ou abrir o caminho

para o fracasso de escolar.

A discussão é ampla e está difícil de acumular consensos. Nesta perspectiva, tais

procedimentos devem permitir discussões e, talvez, compreensões sobre o que está posto,

principalmente em escolas públicas periféricas, em relação às “crianças que não aprendem”

ou que fogem aos “padrões comportamentais”, uma vez que:

O campo de pesquisas educacionais recentes, em vasta literatura, tem demonstrado,

quase à exaustão, que o fracasso escolar é o resultado previsível de políticas

educacionais, produzido no cotidiano da própria instituição escolar. Entretanto, as

áreas da saúde, medicina, psicologia, fonoaudiologia etc. permanecem

impermeáveis a esses conhecimentos, continuando a atuar como se as crianças não

aprendessem em decorrência de doenças e defeitos inerentes a elas. (MOYSÉS,

2001, p. 62)

CONSIDERAÇÕES

Diante destas considerações preliminares optou-se pela observação de duas escolas

geograficamente próximas – ou seja, que de alguma forma, em princípio, se caracterizem

historicamente, socialmente e culturalmente – mas que mediam, distintamente, as relações,

intervenções e procedimentos junto às educandas no que concerne à “não aprendizagem” e

ao comportamento “inadequado”. Desde já, parte-se da hipótese que, de algum modo, a

“cultura escolar”, assim como os discursos e práticas produzidos pelas educadoras favorecem

a “rotulação” e, consequentemente, o (não) desenvolvimento do processo ensino

aprendizagem das “crianças-problema”.

Com efeito, parte-se da compreensão de que a quantidade de encaminhamentos de

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“crianças-problema”, por parte das unidades escolares, para avaliações psicológicas e

médicas está diretamente ligada aos discursos forjados nas/pelas relações de poder que são

produzidos no ambiente escolar, alimentados, muitas vezes, por preconceitos e

desconhecimentos da realidade das alunas mas, sobretudo, pelo desencorajamento de

repensar práticas e propostas curriculares que conversem com os contextos que estão postos

na contemporaneidade.

Portanto, entende-se que “culturas escolares” distintas revelam distintos lidares com

as crianças que fogem aos “padrões” estabelecidos e/ou esperados pelas escolas. O desafio

que está posto é o de compreender em qual medida as “ações pedagógicas” discursos e

práticas são responsáveis pelos “processos medicalizantes” em curso nas escolas públicas

paulistanas, sobretudo, nas periféricas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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