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AMÉDIS GERMANO DOS SANTOS PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO Doutorado em Comunicação e Semiótica PUC/SP 2005

PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

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AMÉDIS GERMANO DOS SANTOS

PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO

Doutorado em Comunicação e Semiótica

PUC/SP 2005

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AMÉDIS GERMANO DOS SANTOS

PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Doutor em Comunicação e

Semiótica

Área de concentração: Sistemas Semióticos

em Ambientes Midiáticos.

Orientador: do Prof. Doutor Eugênio Rondini

Trivinho.

PUC/SP 2005

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BANCA EXAMINADORA

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DEDICATÓRIA

Esta obra é dedicada àqueles que, em nossos objetivos, sempre somaram.

À Ânnÿ-Maria, Dönnerssön e Maria das Graças que se mantiveram pacientes e compreensivos em todos os momentos de ausência.

In Memorian:

À Ana Maria, que mesmo partindo na chegada deixou seu registro no percurso de nossa vida.

À Helda Barracco, pelos ensinamentos que moldaram o nosso pensamento.

A Renato Cohen, pelo carinho e apoio no momento mais crucial desta caminhada.

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Agradecimentos Ao Dr. Eugênio Trivinho, pela confiança e segurança transmitidas, pelo crédito e a ousadia no aceite da condução do processo num momento de obscuridade total e pela sua sapiência e perseverança na orientação do melhor caminho para a realização dos nossos objetivos.

À Fundação Educacional de Caratinga, em especial aos professores Antônio Fonseca e Celso Simões, que nos deram todo o apoio para a consecução deste empreendimento. Aos professores José Lacerda e Walter Zavatário pela inestimável assessoria nos domínios da gramática Aos professores que comprometeram seu tempo substituindo-nos como navegantes. Às bibliotecárias da UNEC, da PUC-SP e à Biblioteca Mário da Andrade pelo apoio às nossas demandas. Aos funcionários da UNEC, em especial ao Sr. João Pena, a quem não demos um segundo de trégua monetária. Aos funcionários do Museu Paulista, que compartilharam suas experiências no manuseio de documentos valiosos. Aos professores do Programa de História da Ciência da PUC/SP, pela determinação que nos infundiu durante nossa convivência. Aos professores do Programa de Comunicação e Semiótica pelo irrestrito apoio que nos deram ao longo da caminhada. Às funcionárias Cida e Edna, do COS, sem as quais muito teria ficado a meio-caminho. Aos colegas e cúmplices João Reis, Ivoni e Magalhães, que compartilharam viagens, angústias, decepções, mas também alegrias, emoções e realizações. Ao Alberto C. de Braga, pelo incentivo constante. A todos aqueles que foram olvidados pela emoção e memória.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo compreender, à luz dos conceitos sóciopolíticos e filosóficos contemporâneos, o projeto legislativo denominado “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva, quando Deputado pela Província de São Paulo junto à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil. Esse documento, composto de 44 artigos, foi apresentado à Assembléia em 1º de junho de 1823, na tentativa de preencher o vazio legislativo a respeito do assunto. Não foi aprovado devido à dissolução e ao fechamento da Assembléia Geral em 12 de novembro do mesmo ano, por ordem de D. Pedro I.

José Bonifácio alicerça seu projeto na filosofia clássica para justificar os conceitos de guerra justa, degeneração, humanidade, perfectibilidade e civilização. Como membro da administração direta do governo português – Ministro do Império ou Deputado Constituinte – apresenta-se com o discurso do Estado absolutista, justificando os meios para legitimar o domínio do espaço sob controle indígena.

Para consumar a reflexão sobre esse objeto de estudo, em seu recorte histórico específico, optou-se pela Análise do Discurso, então aplicada de maneira flexível, desprovida das formalidades rígidas que lhe retirariam o brilho, e sem perda do necessário vigor.

A releitura do discurso e do pensamento de José Bonifácio é, nesse caminho, constituída com base em prismas conceituais extraídos da filosofia contemporânea, representada por autores que se mostraram os mais apropriados e coerentes com esse empreendimento: Gilles Deleuze, Pierre Bordieu, Paul Virilio, Michel Maffesoli e Pierre Clastres.

São utilizados de Gilles Deleuze, os conceitos de espaço liso e estriado, máquina de guerra, ciência nômade e estatal e a idéia de sedentarismo, inspirada nesse autor, como forma de resistência ao avanço do Estado absoluto português; de Pierre Bourdieu as noções de poder e violência simbólicos, discurso dominante, arbítrio cultural e ação pedagógica como contraponto às propostas de apresamento, aldeamento e amansamento gradual dos índios; de Paul Virilio, os conceitos de desterritorialização, dromologia, vagabundagem e máquina-de-guerra, para entender a exploração, o deslocamento dos índios para as aldeias, a domesticação e a endocolonização em função da logística do Estado português; e de Michel Maffesoli e Pierre Classtres, as categorias de nomadismo, errância, profetismo, território flutuante e terra sem mal, para questionar à idéia de José Bonifácio, segundo o qual os índios eram ladrões, guerreiros e vagabundos.

A metodologia de Análise do Discurso e tais prismas teórico-epistemológicos permitem compreender de maneira inovadora as idéias de José Bonifácio projetadas sobre os índios brasileiros. Além do poder e da violência simbólicos, do espírito cultural expressos em seu projeto, toda uma ciência do aparelho de Estado seria imposta às comunidades indígenas, por meio da educação, da saúde, da produção, do transporte, da defesa, do comércio e das finanças, fato que não se constituiria senão numa verdadeira desconstrução das culturas seculares então gestadas conforme as exigências das dinâmicas sedentárias.

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ABSTRACT

This work has as i ts main objective to understand, in the context of the contemporary ideas about social polit ics and philosophy, the legislative project called “Notices to the civilization of the índios bravos of the empire of Brazil”, elaborated by José Bonifácio de Andrada e Silva, when deputy of São Paulo’s province, directed at the Constituency and Legislative General Assembly of Brazil’s empire. This document, compounded by 44 articles, was presented to the Assembly in June the first of 1823, in an attempt to fill the emptiness concerning the issue. The project wasn’t approved because of the breakup and termination of the General Assembly in November 12t h of the same year, ordered by Dom Pedro I .

José Bonifácio based his project on the classic philosophy to justify the concept of fair war, degeneration, humanity, perfectibili ty, and civilization. As a member of the Portuguese government – emperor minister or constituent deputy – bring in the absolute state speech, justifying the meanings to legitimate the control over the Indian Territory.

To fulfill the reflection over this object of study, in i ts specific historical age, the author decided for the speech’s analysis, applied in a flexible way, destitute of rigid formalities, which could take away the brightness of the work but maintaining the necessary emphasis.

The new reading of José Bonifácio’s speech and ideas is , in this way, compounded and based on concepts extracted by the contemporary philosophy, represented by appropriated authors and coherent with this subject: Gilles Deleuze, Pierre Bourdieu, Paul Viril io, Michel Maffesoli and Pierre Clastres.

From Gilles Deleuze was applied the concepts of the flat and groove space, war machine, nomad and public politics science and the idea of sedentary, inspired in this actor, as a way of resistance towards the advance of the Portuguese absolute state; from Pierre Bourdieu, notions of power and symbolic violence, dominant speech, arbitrary culture and pedagogic action as a counterbalance by the seizure proposals, Indian settlement and gradual domestication of the Indians; from Paul Viril io, the thoughts about the steal of the territory, laziness and war machine, to understand the exploitation, the shifting towards the Indian settlement, the domestication and the colonization caused by the logistics of the Portuguese state; from Michel Maffesoli and Pierre Clastres, the categories of nomads, mistaken, prophetism, unstable territory and pacific land, to inquire José Bonifácio’s ideas, based on the facts that the Indians were considered thieves, warriors and vagabonds.

The methodology of this speech analysis and the theory epistemological subjects, allowed a new comprehension about the José Bonifácio’s ideas projected over the Brazilian Indians. Besides the power and symbolic violence, the cultural spirit expressed in his project, a complete science, which belongs to a state organization, could be imposed to the Indians community, by meanings of education, health, production, transport, defense, commerce and the finances, fact compounded in a decomposition of secular cultures led by the exigency of the sedentary dynamics.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------------- 9

PRIMEIRA PARTE

JOSÉ BONIFÁCIO NO CONTEXTO HISTÓRICO: DA FORMAÇÃO ACADÊMICA AO ADMINISTRADOR E LEGISLADOR ------------------------- 22

CAPÍTULO I – Formação e Produção Científica – o Burocrata e Legislador de Estado---------- 23 CAPÍTULO II – Idéias Político-Filosóficas e Religiosas no Século XIX---------------- 40 CAPÍTULO III – Legislações Referentes às Relações entre Civilizados e Selvagens -----------------64 CAPÍTULO IV – Discurso de José Bonifácio sobre a Administração do Estado ------- 97

SEGUNDA PARTE

RELEITURA DE JOSÉ BONIFÁCIO: NOVOS PRISMAS TEÓRICOS E CONCEITUAIS ------------------------------------------------------------ 119 CAPÍTULO I – Máquina de guerra, territorialização e espaço -------------------------- 120 CAPÍTULO II – Poder, sistemas e violência simbólicos---------------------------------- 146 CAPÍTULO III – Desterritorialização, endocolonização e guerra justa ----------------- 168 CAPÍTULO IV – Nomadismo e território flutuante --------------------------------------- 191 CONCLUSÃO --------------------------------------------------------------------------------- 221 BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------- 225 ANEXO I – Museu Paulista ------------------------------------------------------------------ 251 ANEXO II – Directorio ----------------------------------------------------------------------- 270

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------09

PRIMEIRA PARTE José Bonifácio no Contexto Histórico: da Formação Acadêmica ao Administrador e Legislador --------------- 22 CAPÍTULO I Formação e Produção Científica - o Burocrata e o Legislador de Estado -------------------------------------------- 23 CAPÍTULO II Idéias Político-Filosóficas e Religiosas no Século XIX ---------------------------------------------------------------- 40 1. Guerra Justa---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 46 2. Perfectibilidade e Degeneração ----------------------------------------------------------------------------------------- 52 3. Civilização ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 55 4. Humanidade---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 60 CAPÍTULO III Legislações Referentes às Relações entre Civilizados e Selvagens--------------------------------------------------- 64 CAPÍTULO IV Discurso de José Bonifácio sobre a Administração do Estado --------------------------------------------------------- 97

SEGUNDA PARTE

Releitura de José Bonifácio: novos prismas teóricos e conceituais-------------------------------------------------119

CAPÍTULO I 1. Máquina de Guerra-------------------------------------------------------------------------------------------------------121 2. Territorialização e Desterritorialização--------------------------------------------------------------------------------123 3. Ciência---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------126 4. Religião e nomadismo ---------------------------------------------------------------------------------------------------134 5. Espaço liso e estriado----------------------------------------------------------------------------------------------------136 6. Organização numérica de homens -------------------------------------------------------------------------------------139 CAPÍTULO II 1. O poder simbólico--------------------------------------------------------------------------------------------------------147 2. Ação Pedagógica ---------------------------------------------------------------------------------------------------------149 3 Habitus --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------155 4. Sistemas Simbólicos -----------------------------------------------------------------------------------------------------161 5. Estigma dos dominados -------------------------------------------------------------------------------------------------162 6. A Comunicação ----------------------------------------------------------------------------------------------------------164 CAPÍTULO III 1. Dromologia ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------169 2. Desterritorialização ------------------------------------------------------------------------------------------------------171 3 Máquina-de-guerra -------------------------------------------------------------------------------------------------------173 4. Endocolonização ---------------------------------------------------------------------------------------------------------174 5. Povos esperançosos e desesperançosos -------------------------------------------------------------------------------177 6. Domesticação-------------------------------------------------------------------------------------------------------------179 7. Guerra justa ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------187 8. Velocidade e tecnologia -------------------------------------------------------------------------------------------------188 CAPÍTULO IV 1 Nomadismo ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------193 2. Errância--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------195 3. Território flutuante-------------------------------------------------------------------------------------------------------212 4. Profetismo ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------218 CONCLUSÃO--------------------------------------------------------------------------------------------------------------221 BIBLIOGRAFIA ----------------------------------------------------------------------------------------------------------225 ANEXO 1 – Museu Paulista ---------------------------------------------------------------------------------------------251 ANEXO 2 – Directorio----------------------------------------------------------------------------------------------------270

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INTRODUÇÃO

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A transformação do Brasil de colônia a sede do reino português colocou os

governantes em face de um problema que a distância havia tornado menor: a proporção

entre os europeus e seus descendentes nascidos no Brasil, os negros e os índios. A

violência exercida sobre os dois últimos grupos parecia ter sido solucionada, até então,

através de algumas ações governamentais que, em diferentes períodos, foram tornadas

públicas na forma de Portarias1, Leis, Alvarás, Cartas Régias, Regimentos, Provisão,

Diretório, etc., com o objetivo de legitimar os atos de dominação exercidos sempre pelo

Estado por meio de seus representantes legais e ilegais, os colonizadores.

Com a instalação da Corte no Rio de Janeiro em 1808 e a sua permanência nessas

terras mesmo depois que o perigo demonstrado pelas pretensões de Napoleão Bonaparte

1 Na concepção do padre João Daniel (1722-1776), cronista da Companhia de Jesus, que viveu de 1741 a 1757 na região amazônica, o termo Portaria designava “licenças não só para subir, passar as fortalezas, e navegar o Amazonas, mas também para tirar índios pelas aldeias”. Com este documento os índios eram requisitados junto aos Diretores das Aldeias e, após efetuado o devido pagamento, eram levados em expedições extrativistas, dentre outras.

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havia passado, a composição étnica da população na colônia brasileira não podia deixar de

se constituir numa questão a ser pensada. Para se ter uma idéia de como estava composta a

população, no ano da Independência, o Brasil contava com aproximadamente cinco

milhões de almas que, conforme o estudioso Gondim da Fonseca2, estavam divididas em

2,8 milhões de homens livres, 1,3 milhões de escravos e 0,9 milhão de índios. Outro

estudioso da história brasileira, o médico Manoel Bomfim3, calculou que apenas 30% do

contingente populacional era de sangue português.

Tratava-se, por um lado, de buscar saídas que pudessem minimizar o temor que o

segmento constituído por portugueses e “brasileiros”4 sentia junto de tão grande

contingente de escravos e índios, descontentes com sua situação. Por outro lado, os

clamores europeus pelo fim da escravidão humana, gerados por diferentes interesses, já

não podiam ser ignorados, uma vez que se concretizavam em sanções aos países que ainda

comercializavam escravos. Também encontrava ecos nas discussões o Estado sempre

deplorável dos nativos nas colônias dos diferentes países europeus. Uma outra preocupação

dizia respeito ao resultado pouco positivo, em termos econômicos, da utilização do

trabalho escravo tendo como objeto os escravos da África, ou da “participação” forçada

nem sempre denominada ou oficialmente reconhecida como escravidão indígena.

A independência do Brasil criou de alguma forma, uma nova situação: a daqueles

homens livres que resolveram se colocar ao lado do então auto-proclamado Imperador, ao

escolherem a permanência na América. Isso significava, entre outras coisas, a convivência

2 G. da Fonseca, A revolução francesa e a vida de José Bonifácio, p. 126. 3 M. Bomfim, O Brasil na América, p. 115. 4 Devemos lembrar que “brasileiro” só passou a designar os nascidos no Brasil no início do século XIX. Conforme J.J. Chiavenato, Bandeirantismo: dominação e violência, p. 73, o termo foi usado, inicialmente, para especificar os comerciantes do pau-brasil. Mais tarde passou a indicar os filhos de mães brancas européias residentes no Brasil e, no fim do século XVIII, “indicava o português que retornava enriquecido do Brasil”. Neste trabalho o termo “brasileiro” será utilizado para designar todos aqueles nascidos no Brasil.

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obrigatória com uma população segmentada em termos étnicos, de que advinham direitos e

obrigações diferenciados gerando descontentamentos de todos os tipos.

Nesse contexto, é perfeitamente compreensível que José Bonifácio de Andrada e

Silva (1763-1838) – “brasileiro”, cujo nome está indissociavelmente ligado à

Independência do Brasil – tenha elaborado, como deputado pela Província de São Paulo,

um documento para apresentar à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império

do Brasil, sobre os índios. Vejamos o que ele nos diz a respeito:

Como cidadão livre e deputado da nação dois objetos me parecem ser,

fora a Constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste

império. O primeiro é um novo regulamento para promover a civilização

geral dos índios do Brasil, que farão com o andar do tempo inúteis os

escravos; cujo esboço já comuniquei a esta Assembléia. Segundo, uma

nova lei sobre o comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis

cativos5.

A escravatura tema da “Representação à Assembléia Geral Constituinte e

Legislativa do Império do Brasil”, foi composta provavelmente em 1823, mas não

apresentada à Assembléia devido à sua dissolução em 12 de novembro do mesmo ano.

Quanto à questão da escravatura africana no Brasil, não faremos dela o centro de nossa

atenção, posto que este assunto foi tratado pela pesquisadora Ana Rosa Cloclet da Silva,

em Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio. O centro de

nosso estudo é outro segmento étnico que também padeceu nas mãos do escravizador: o

índio. Este teve outra sorte, porque ele foi objeto do documento “Apontamentos para a

civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, que foi apresentado à Assembléia no

dia 1º de junho de 1823, em que ele propunha o “modo de catequizar e aldear” esses índios.

5 J. B. de Andrada e Silva, “Representação à Assembléia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura”, in: M. Dolhnikoff, org. Projetos para o Brasil, pp. 45-86; citação à pp.45-6.

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Parece que a idéia de que os índios eram capazes de civilização ocorreu a José Bonifácio

num período bem anterior à apresentação do projeto à Assembléia. Numa carta escrita ao

Conde de Funchal, datada de 30 de junho de 1812, quando manifesta o desejo de voltar ao

Brasil, ele diz que poderia “criar pescarias e salgações e experimentar o meu projeto de

civilizar a Cristão os índios”6. Numa outra carta ao mesmo conde ele expõe mais uma vez

a sua preocupação com o Brasil e a situação dos índios. Neste texto ele teme pelo

desaparecimento dos “pobres índios, assim gentios como domésticos” e diz ser “mais que

tempo que o governo pense nisso”7.

Contudo, ele reconhecia que o seu projeto seria de difícil execução devido a dois

obstáculos principais: por um lado, a “natureza do estado” em que os índios se

encontravam até o momento, e que deveria ser modificado; por outro, o tratamento que

portugueses e brasileiros deviam aos índios, que deveria também mudar. No terceiro

capítulo da primeira parte estas dificuldades serão discutidas com mais detalhes. Em sua

proposta, José Bonifácio procurava dar solução aos problemas econômicos gerados pelo

modelo escravista do negro e do índio. Assim, ele se opunha ao tráfico de escravos

enquanto pensava a “integração” tanto do negro quanto do índio na sociedade brasileira,

almejando com isso o fim de uma população heterogênea que ele pretendia unificar.

As palavras de José Bonifácio, que podemos ler abaixo sobre o segmento de origem

africana, valem também para o elemento indígena. Ele considerava fundamental:

[...] formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca

seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior

necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois

6 J. B. de Andrada e Silva, “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do império do Brasil”, in: E. de C. Falcão, org. Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio, pp. 103-114. 7 E. de C. Falcão, org. Estudos vários sobre José Bonifácio de Andrada e Silva, p. 127. Neste trabalho usaremos o termo “Apontamentos...” ao nos referir a esse documento. Na presente pesquisa fizemos uso de uma reprodução facsimilar que se encontra no volume II da obra supracitada, como também da obra organizada por Miriam Dolhnikoff.

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desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários,

e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo

e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova

convulsão política. Mas que ciência química, e que desteridade não são

precisas aos operadores de tão grande e difícil manipulação? Sejamos pois

sábios e prudentes, porém constantes sempre8.

Conhecedor da arte mineralógica e metalúrgica como poucos em sua época, José

Bonifácio encontrou a analogia perfeita para expressar suas idéias. Ele sabia que uma liga

metálica, além de seu aspecto homogêneo, é muito mais resistente – e, portanto, melhor

para os diversos usos – que os metais que a compõem. Seu texto combina as várias facetas

de sua formação e atuação como homem de ciência e administrador em sua “fase”

portuguesa, assim como político e legislador, no Brasil.

Como veremos José Bonifácio se contrapunha às idéias então vigentes sobre a

degeneração e decadência dos índios. Ele discordava de muitos pensadores influentes em sua

época, como Johann Baptist von Spix, Carl Friedrich von Martius e Cornellius de Pauw que

consideravam a América e tudo aquilo que nela fora criado como defeituosos por natureza.

Dessa forma, a união do nativo com o europeu deveria originar um homem degenerado. Estas

idéias estão bem claras na impressão deixada por Louis Agassiz, ao referir-se ao índio brasileiro.

O mestiço de branco com índio, denominado mameluco no Brasil, é pálido e

efeminado, fraco, preguiçoso, embora obstinado. Parece que a influência do

índio tem a força justamente precisa para anular os altos atributos do branco,

sem comunicar ao produto nada da sua própria energia9.

8 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil. p. 48-9. 9 Jean Louis Rodolphe Agassiz. Viagem ao Brasil (1865-1866), 1938, p. 625. Agassiz (1807-1873), naturalista especialista em ictiologia, nasceu na Suíça, mas naturalizou-se americano. Foi professor de história em Nouchatel e posteriormente em Cambridge. Ele veio para o Brasil onde permaneceu de 1865 a 1867 chefiando a “Expedição Thayer”, e realizou estudos zoológicos e paleontológicos no norte e no nordeste brasileiro. Sobre ele, ver Visconde de Taunay, Amor ao Brasil: catálogo de estrangeiros ilustres e prestimosos (1800-1892), Sérgio Faraco, org. 1998. Ou Jean Gaudant, Louis Agassiz (1807-1873), fondateur de la paléoichthyologie, Revue d’Histoire des Sciences, 2 (Avr. 1980), Tome 33, pp. 151-162.

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Os “Apontamentos...” foram elaborados, como veremos no terceiro capítulo desta

primeira parte que trata das legislações indígenas, na tentativa de preencher um certo vazio

legislativo a respeito do assunto. Da primeira legislação a respeito do indígena, que

apareceu em nossas terras a partir de 1548, até o Diretório de 1757, extinto em 1798, várias

Portarias, Leis, Alvarás, Cartas Régias, Regimentos, Provisões, etc., serviram para

regulamentar as relações entre os colonos e os índios. Da extinção do Diretório até a

apresentação dos “Apontamentos...”, apenas três Cartas Régias – as de 1806, 1808 e 1809 –

fizeram menção aos índios.

Dessa forma, tendo como preocupação principal à questão relativa à civilização dos

índios do Brasil do século XIX, nosso objetivo no presente trabalho é reinterpretar, à luz

dos conceitos sociopolíticos e filosóficos contemporâneos de Gilles Deleuze, Pierre

Bourdieu, Paul Virilio, Michel Maffesoli e Pierre Clastres, os “Apontamentos...”

elaborados por José Bonifácio.

Na análise do texto, importa-nos o discurso de José Bonifácio em relação à cultura

indígena, mas esclarecemos que o sujeito do discurso não será físico, mas discursivo, ou

seja, sujeito de e sujeito a. Será sujeito de porque ocupou uma hierarquia na corte como

sujeito de Estado - quer na condição de membro do Executivo como Ministro representante

da monarquia, quer na condição de membro do Legislativo, como Deputado Constituinte

representante da Província de São Paulo - e será sujeito a na qualidade de subordinado à

monarquia representada por D. Pedro I. Esse assujeitamento discursivo a que ficou

subordinado é que explica as contradições do sujeito, posto que ele é livre, mas, ao mesmo

tempo, submisso. Assim, o sujeito é apenas um ideal de completude, no dizer de Orlandi10.

Para esta autora, não devemos procurar verdades escondidas por trás dos textos porque eles

10 E.P. Orlandi, Análise do discurso, p. 37 e seg.

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ocultam apenas gestos de interpretação que precisam ser compreendidos. Tais gestos estão

organizados numa relação entre sujeito e sentido, que nos fornece novas leituras.

Segundo Helena Brandão, o sujeito é totalmente ideológico porque é marcado

temporal e espacialmente e sua fala é produzida a partir de um lugar, um espaço social

(status) e de um espaço-tempo (produtivo).

No que diz respeito aos sentidos, lembramos que nunca será apresentado como

verdadeiro. E por ser ideológico, o sentido do discurso jamais será literal. Assim, uma

mesma palavra, numa mesma língua, poderá apresentar diferentes significados, haja visto

ser ela dependente da posição do sujeito e da formação discursiva. A palavra terra, por

exemplo, terá diferentes sentidos se dita por um índio ou por um colonizador, por um

geógrafo ou por um geólogo, por um agricultor ou por um astrônomo, por um especulador

imobiliário ou por um navegador.

Segundo José Pinto11, a transparência na linguagem é um mito porque na emissão

do discurso, o sujeito é somente um representante das relações, identidades sociais e

condicionamentos (crenças, educação etc.) que moldaram a identidade do sujeito. Segundo

este autor, todo texto se constrói por debate com outros textos. Assim, é no dialogismo

textual que sobressaem os conhecimentos históricos que determinam a produção do sujeito

enunciador. Daí a afirmação de Orlandi12, segundo a qual somente no imaginário existe o

texto original, porque ele é sempre constituído de múltiplos planos com diferentes visões e

formulações.

Desta forma, teremos como corpus o discurso de José Bonifácio, em especial os

“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do império do Brasil”, - de natureza

descritiva, política e jurídica - e como mediação compreensiva os conceitos sociopolíticos

e filosófico da teoria social contemporânea francesa conforme antes assinalado.

11 M. J. Pinto, Comunicação e discurso, p. 40. 12 E. P. Orlandi, Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico, p. 14.

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Como forma de realçar o entendimento do trabalho, fizemos a opção pela

intercalação de textos de José Bonifácio com os autores que abordaram os conceitos

epistemológicos da teoria social contemporânea, tendo ainda como suporte histórico,

autores que trabalharam a problemática dos índios nos séculos precedentes ao nosso

objeto.

Para analisar o discurso de José Bonifácio, levamos em consideração o

intradiscurso inscrito em sua memória como o já dito, o dizível ou, aquilo que não consta

na frase dita – suas experiências personificadas na convivência de sua formação coimbrã e

sua passagem pelos centros de estudos da Europa – e que estão presentes no enunciado dos

textos escritos por ele.

Este trabalho é composto de duas Partes, ambas divididas em quatro Capítulos. Na Primeira

Parte, faremos uma contextualização tendo como foco o período que abrange a formação básica de José

Bonifácio de Andrada e Silva na Província de São Paulo, a sua partida para Portugal em busca de sua

formação em Leis e Filosofia na Universidade de Coimbra, os cargos e funções que ele ocupou junto ao

governo português após as viagens filosóficas de especialização pela Europa e o breve período que

atuou como pesquisador no Brasil, de 1819 a 1822, antes de assumir importantes cargos na

administração da monarquia brasileira.

Ainda na Primeira Parte, trataremos dos conceitos que serviram de suporte a José Bonifácio na

elaboração dos documentos que foram enviados à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do

Império do Brasil, órgão no qual ele tinha assento como Deputado, além de Vice-Presidente da

Província natal. A guerra justa, a degeneração, a perfectibilidade, a humanidade e a civilização eram

conceitos comuns nos discursos proferidos em toda a Europa, principalmente após o advento da

Revolução Francesa, que acabou pondo em cheque tudo o que dizia respeito às relações entre os

homens. Além de terem contribuído para a formação de José Bonifácio, estes conceitos foram a base

das legislações que se propuseram regulamentar o quotidiano das diversas etnias que viviam no

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território brasileiro. Finalizando esta parte, faremos uma análise da percepção e propostas de José

Bonifácio para a reestruturação do Estado brasileiro em função das reformas que vinham operando

no continente europeu.

Na Segunda Parte, os “Apontamentos...” de José Bonifácio serão sendo

revistos no Capítulo I sob a ótica dos conceitos de Gilles Deleuze para reinterpretar

os atos do aparelho de Estado. Como membro do governo imperial, na qualidade de

Deputado provincial ou Ministro de Estado, José Bonifácio teve todos os seus

trabalhos pautados pela legislação e administração dos interesses do Estado na

ocupação de uma área que Deleuze chamou de “espaço liso”, ou seja, um determinado

ambiente demarcado por todo um modus operandi estatal, incluindo aí a ciência do

Estado. O resultado disto é o confronto dos aparelhos estatais com a máquina de

guerra13 nômade ora representada pelo sedentarismo e a errância dos índios e outros

que por muitas vezes lhes fizeram companhia.

No Capítulo II adotaremos os conceitos de Pierre Bourdieu para analisar o

discurso em função dos usos que se pretendia fazer dos “Apontamentos...”, para

legalizar uma violência que já vinha sendo praticada contra as comunidades

indígenas. Os “Apontamentos...”, antes que um discurso dominante, agiria também

como um instrumento legitimador do arbítrio cultural imposto pelos atos e ações das

autoridades pedagógicas, acrescidas das autoridades civis e militares a que estariam

sujeitos os índios aldeados conforme planejava o legislador José Bonifácio.

13 Nesse trabalho o conceito de máquina de guerra será abordado, na Segunda Parte, sob o prisma epistemológico de dois autores: Gilles Deleuze e Paul Virilio. No Capítulo I, Deleuze concebe a máquina de guerra como malta, uma potência exterior e contra o aparelho de Estado. Ela é nomos e atua no espaço liso, territorializando-o e desterritorializando-o enquanto o Estado apenas codifica este espaço. No Capítulo III, Virilio concebe máquina-de-guerra como comunicação, vetoração, velocidade de expedição, organização de agrupamentos nomádicos especializados na arte da guerra. O fato dos termos estarem grafados diferentemente, é porque fomos fiel à forma que foi empregada por seus respectivos autores.

Page 20: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

19

No Capítulo III, veremos como Paul Virilio concebe o vetor de

velocidade agindo para a sedução, o domínio, a exploração do outro, o de

fora, tudo isto em função da logística do Estado. Os “Apontamentos.. .”

deveriam cumprir esta função sedutora para com os índios, na tentativa

de deslocá-lo de seu espaço liso para aprisioná-lo no espaço estriado do

Estado. Este fenômeno é tratado por Virilio como um processo de

desterritorialização, isto é, um processo em que há um deslocamento de

corpos, o esfacelamento da máquina de guerra nômade, um

desenraizamento, o êxodo, a perda da identidade, a errância, a

vagabundagem. Na tentativa de corrigir estes desvios sociais que foram

vistos como distorções proféticas dos feiticeiros indígenas, José Bonifácio

propunha os aldeamentos, as fortificações, e as instruções educativas e

religiosas, de conformidade com o habitus europeu, num processo que

Virilio denominou endocolonização, em substituição ao processo

exocolonizador até então praticado pela ex-metrópole.

E no Capítulo IV, veremos outros conceitos, como: nomadismo,

errância, território flutuante e o profetismo, instrumentos desenvolvidos

por Michel Maffesoli e Pierre Clastres, os quais serão utilizados na análise,

porque José Bonifácio achava que os índios eram “[.. .] vagabundos, e dados

a contínuas guerras, e roubos” 14. Com os conceitos teóricos de Maffesoli ,

estaremos em condições de propor uma reinterpretação para a eterna

discriminação e marginalização a que foram relegadas as culturas

indígenas, bem como entender a errância dos índios em busca da “Terra

sem Mal”.

14 J. B. de Andrada e Silva, “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do império do Brasil”. in: E. de C. Falcão, org, Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio, p. 103.

Page 21: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

20

Como conclusão, pretendemos demonstrar que os discursos de José

Bonifácio, a despeito de suas pretensas boas intenções, não deixam de ser

importantes como discurso, mas apresentavam problemas que as teorias

filosófico-políticas da época não tinham como resolver, como ele já

antecipava no seu projeto encaminhado à Assembléia “Vou tratar do modo

de cathequizar, e aldear os Índios bravos do Brasil: materia esta de summa

importância; mas ao mesmo tempo de grandes difficuldades na sua

execução” 15.

Os atos e ações das autoridades pedagógicas que deveriam ser

desenvolvidos pela Congregação São Felipe Neri 16 - adicionados aos

instrumentos do aparelho de Estado na forma de colonizadores, militares,

bandeirantes, mercadores etc. legitimados que fossem pelos

“Apontamentos.. .” - viriam apenas a oficializar a exterminação que estava

em andamento nas aldeias que ainda persistiam em permanecer nomádicas.

Na tentativa de atingir o seu fim, José Bonifácio propunha uma verdadeira

assepsia política, social e econômica através da educação, da religião, da

saúde, da produção, do transporte, da defesa, do comércio e finanças etc.,

que certamente iria corroborar na desconstrução das culturas que vinham

sendo desenvolvidas conforme as exigências das dinâmicas sedentárias.

As notas de rodapé têm como função complementar o que não se

completa por ser traço de um outro sentido, pois os textos são formulados

em múltiplos planos, visões e memórias, conforme Orlandi 17. Assim, nas

notas desse trabalho optamos pela metodologia em vigor na Pós-Graduação

15 J. B. de Andrada e Silva, “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do império do Brasil”. in: E. de C. Falcão, org, Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio, p. 103. 16 Congregação proposta por José Bonifácio para substituir aos missionários da Companhia de Jesus. 17 E.P. Orlandi, Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico, p. 13.

Page 22: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

21

em História da Ciência da PUC/SP, desta Instituição, em função de sua

estabilidade, estética e praticidade. Supomos que tal escolha possa melhor

orientar o deslocamento do leitor nas várias possibilidades de compreensão.

Page 23: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

PRIMEIRA PARTE

JOSÉ BONIFÁCIO NO CONTEXTO HISTÓRICO: DA FORMAÇÃO ACADÊMICA AO ADMINISTRADOR E LEGISLADOR

Page 24: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

23

CAPÍTULO I

FORMAÇÃO E PRODUÇÃO CIENTÍFICA

O BUROCRATA E O LEGISLADOR DE ESTADO

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24

José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos, a 13 de junho de 1763, sendo

batizado com o nome de José Antônio de Andrada e Silva. Posteriormente, o nome

Antônio foi substituído por Bonifácio, conforme consta do recenseamento feito em Santos,

em 17761.

O pai de José Bonifácio, Sr. Bonifácio José de Andrada - Capitão, Escrivão e Tesoureiro da Junta

da Fazenda da Província de São Paulo - considerado a segunda fortuna de Santos, enviou quatro de seus

nove filhos para estudar em São Paulo, no ano de 1779, na intenção de fazê-los clérigos, no que foi

correspondido apenas por um deles, Patrício Manoel de Andrada. Como não aceitou seguir a carreira

religiosa tal qual o irmão Patrício, José Bonifácio e também os seus irmãos Antônio Carlos e Martim

Francisco fizeram o requerimento de “Habilitação de Gênere”2, que os permitiria viajar para Portugal e

1 E. de C. Falcão, org. Estudos vários sôbre José Bonifácio de Andrada e Silva, p. 62. 2 De acordo com Maria Luiza Tucci Carneiro a “Habilitação de Genere” era exigida “também por entidades laicas, através de minuciosas investigações sobre a vida da pessoa e seus ascendentes, que ela não possuía vestígios de mulato, negro, mouro, judeu ou cristão-novo. Só após essa comprovação é que o indivíduo poderia ocupar cargos públicos, freqüentar universidades ou colégios religiosos [...] ou desfrutar de situações honoríficas”. Veja-se M.L.T. Carneiro, Preconceito racial: Portugal e Brasil-Colônia, 1988, p. 13. Conforme O. T. de Sousa, José Bonifácio, 1972, p.7. J. Bonifácio teve o seu requerimento datado de 22 de abril de 1779.

Page 26: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

25

freqüentar a Universidade. Na cidade de São Paulo, José Bonifácio permaneceu dos 14 aos 17

anos, onde passou “a fazer seu curso de lógica, metafísica e ética e de retórica e língua

francêsa, nas escolas que o bispo Dom Frei Manuel da Ressurreição, nome caro às ciências,

erigira naquela capital”.3

A formação de José Bonifácio com o seu preceptor, o franciscano Dom Manuel

(1718-1789) foi importantíssima haja vista o engajamento do bispo com a renovação

intelectual iluminista que estava ocorrendo na Europa. Além de o bispo ter sido Conselheiro de

Estado dos reis de Portugal, ele estava associado à reforma implementada pelo Marquês, pois

“formou resolutamente ao lado de Pombal, na reforma dos estudos”4 da Universidade de

Coimbra.

Com uma boa formação José Bonifácio foi enviado para a cidade do Rio de Janeiro

em 1783, com destino a Portugal5. Em 30 de outubro deste mesmo ano, José Bonifácio

fez sua matrícula no Curso Jurídico da Universidade de Coimbra6. Esta instituição sofreu

em 1772 uma reforma dirigida pelo Ministro de Dom José I, Sebastião José de Carvalho e

Melo (1669-1782), o Marquês de Pombal7.

3 B. F. do Amaral, José Bonifácio, p. 17. 4 Dom Manuel trouxe em sua bagagem para o Brasil 1.548 volumes contendo obras em Latim, Português, Francês e Espanhol, além de duas gramáticas estrangeiras: uma grega e outra hebraica. Destas obras constam autores como Verney, Lineu, Voltaire, Camões, Buffon e Pufendorf. Veja-se Amaral, op. cit., pp. 46. 5 A maioria dos autores que trabalharam com temas ligados a José Bonifácio informa que ele permaneceu no Rio de Janeiro por aproximadamente três anos. Contudo, encontramos na obra do pesquisador Amaral, op. cit., p. 17 e seg., informações de que ele teria estado em Santa Catarina para conhecer as indústrias baleeiras e também em Minas Gerais – Vila Rica e Serro Frio – para conhecer os trabalhos de extração de diamantes. 6 F. Morais, “Lista dos estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra”, Brasília, 1949, suplemento ao volume IV, pp. 326-7. As demais matrículas de José Bonifácio foram: Curso de Filosofia Natural em 12/10/1784, 20/10/1785 e 11/10/1786. Ainda em 11/10/1784 ele matriculou-se no Curso de Matemática e no Curso Jurídico. As demais matrículas de José Bonifácio na Universidade de Coimbra foram: em 1784, Curso Jurídico, Curso de Filosofia e Matemática; em 1785, Curso de Leis (Direito Civil) e de Filosofia; em 1786, Curso de Leis e de Filosofia; em 1787, último ano do Curso de Leis. Neste ano, ele adquire o grau de Bacharel em Leis em 3 de junho e Bacharel em Filosofia em 16 de julho. Veja-se F. Morais, op. cit., pp. 326-7. Importante ainda lembrar que os dois primeiros anos dos Cursos Jurídicos eram comuns; apenas no terceiro ano o aluno optava pelo Curso de Direito Canônico ou Direito Civil. Veja-se Estatutos da Universidade de Coimbra, Vol. II. 7 Pombal foi feito Conde de Oeiras em 15/07/1759 e Marquês em 16/10/1769. O seu primeiro trabalho referente ao Brasil foi a tarefa de extinguir as fraudes que eram cometidas na subtração do “quinto” do ouro da quota do Estado, proveniente do subsolo brasileiro. Como Ministro ele fundou a Companhia do Grão-Pará, decretou a liberdade dos índios promovendo com isso a ira dos Jesuítas da colônia. Mandou inventariar os bens da Companhia de Jesus – que em 1759 foram seqüestrados por sua ordem – e proibiu o comércio, a pregação e a confissão dos Jesuítas.

Page 27: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

26

Os ideais reformistas do Marquês de Pombal tiveram sua gênese nos contatos

mantidos enquanto representante do governo português nas Embaixadas de Londres e

Viena. De volta a Portugal, ele foi nomeado Ministro dos Negócios do Rei e da Guerra, em

1750, adquirindo o grande poder político que exerceu até o seu afastamento do governo em

1779, com a morte de D. José I.

A reforma levada pelo Marquês atingiu vários aspectos da vida do Reino Português.

No que respeita à Universidade de Coimbra, as modificações tinham como objetivo alterar

“Os sextos estatutos de 1548” e a “Reforma de 1612”, considerados assaz ineficientes para

atender às necessidades da era da ilustração8. O Estatuto da reforma de 1772 provocou

uma reorganização nos Cursos Jurídicos (Leis e Cânones) e no Curso de Teologia, além de

realizar uma profunda modificação no Curso de Medicina e, ainda, fundar o Curso de

Matemática e o de Filosofia Natural.

Essa reforma contou com os conhecimentos de vários estudiosos, dos quais

destacaram-se o padre Luís António Verney (1713-1792) da Congregação dos Oratorianos,

autor de O verdadeiro método de estudar, e António Ribeiro Sanches (1699-1782), médico

da corte russa por dezesseis anos, autor da Carta para a educação da mocidade e dos

Métodos de como aprender a estudar a medicina. Esse último documento pode ser

considerado segundo muitos historiadores como base para a confecção da reforma

pombalina da Universidade, posto que as modificações9 visavam, sobretudo, ao ensino

dessa área do conhecimento10. É quase certo que o matemático José Anastácio da Cunha

8M. H. M. Ferraz, As ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822): o texto conflituoso da química, p. 39. 9 As modificações propostas para a Universidade de Coimbra estão expressas nos Estatutos que foram publicados em 1772. Para este trabalho, foi utilizada a edição facsimilar, dada a público pela mesma Universidade em 1972, em três volumes. 10 M. H. M. Ferraz, op.cit., pp. 38-9.

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27

(1744-1787)11, tenha sido, também, professor de José Bonifácio – a despeito de não termos

encontrado, ainda, referências explícitas quanto à presença de José Anastácio em seus

discursos.

As modificações feitas nos Cursos Jurídicos contemplaram as Faculdades de Leis e

Cânones. Neste trabalho centraremos nossa atenção na Faculdade de Leis, pois foi nela que

José Bonifácio se graduou. Segundo o Estatuto da Universidade, neste curso, os estudantes

deveriam adquirir conhecimentos de Direito Natural Público Universal e das Gentes,

História Civil dos Povos, Direito Romano, História Civil de Portugal e das Leis

Portuguesas. No Direito Civil constava também Jurisprudência Canônica, História da

Igreja e Direito Canônico.

A primeira disciplina: Direito Natural e das Gentes parece ser fundamental para

pensar a relação entre os vários grupos sociais. Segundo os Estatutos nessa disciplina se

deveria estudar:

A Colleção destas Leis, com que a Natureza regulou as acções dos Póvos

livres; e o aggregado dos reciprocos Officios, com que ella os ligou para

os seus interesses communs, e para o bem universal de toda a

11 O matemático José Anastácio da Cunha foi nomeado 1º Tenente do Regimento de Artilharia do Porto, onde teve contato com oficiais de várias culturas e aprendeu Latim, Grego, Francês, Inglês e Italiano. Em 1767, foi nomeado Tenente-Coronel. Em1769, apresentou um trabalho denominado “A teoria da pólvora em geral, e a determinação do melhor comprimento da peças em particular”. Em 1773, Pombal o fez Lente de Geometria da Universidade de Coimbra, cargo que exerceu até 1778. Em 1776, ele apresentou à Congregação da Faculdade de Matemática o trabalho “Compendio de Ellementos praticos”, versando sobre geometria. Em 1778, foi denunciado à Inquisição e levado ao cárcere sob a acusação de “ter relacionado com camaradas militares protestantes ingleses, de ter lido Voltaire, Rousseau, Hobbes e outros autores que defendiam o deísmo, indeferentismo e tolerantismo e de ter emprestado a uma de sua disciplina livros que estavam impregnados de ´filosofismo`. Por tudo isso José Anastácio foi condenado e sentenciado a“concluir reclusão por três anos [...] seguidos de quatro anos de degredo para Évora e ficou ainda interdito de entrar em Coimbra e Valença”. A sua obra maior foi “Princípios de Methematica”, publicada em 1790, três anos após sua morte, tendo causado um grande impacto nos meios acadêmicos por ter sido traduzida para o francês – obra considerada das mais importantes do gênero no século XVIII. Sobre este assunto, veja-se o site: www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminário/acunha/, 22 de dez. 2004.

Page 29: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

28

Humanidade, constitue a quarta, e ultima parte do Direito Natural

conhecida pelo nome de Direito das Gentes.

Sendo o principio fundamental deste Direito das Gentes a perfeita

igualdade; a omnimo da independencia dos Corpos das Nações: Devendo

estes reputar-se como Pessoas Moraes: E competindo-lhes todas as

faculdades, e Direitos, que em razão da mesma igualdade competem aos

homens particulares do Estado natural: Claramente se conhece, que para

se dirigirem, e regularem as causas, acções, e negocios dos Póvos livres,

e dos Soberanos, que os representam, se podem muito bem applicar as

mesmas Leis, que a razão estabeleceo para a regulação dos Officios dos

homens no Estado natural, e que o Professor deverá ter já explicado nas

Lições do Direito da natureza Social12.

O capítulo V do Livro II, na parte referente à disciplina Jurisprudencia Natural dos

Cursos Jurídicos, pode-se ver a importância que este curso deve ter tido para a formação

de José Bonifácio, principalmente para entendermos a sua preocupação para com o

indivíduo, a economia e a política do Brasil. O texto alerta que o estudante:

Geralmente procurará ampliar, e profundar o conhecimento de outras

Disciplinas Filosoficas: Pondo cuidado muito particular na maior instrução

da Politica, e da Economica, as quaes lhe hão de dar muitas luzes para a

exploração, e demonstração dos Officios do Homem no Direito da Natureza

Social; no Social Economico; no Social Politico, ou Público Universal; e no

Direito das Gentes. E por causa do Direito das Gentes cuidará tambem a

Estadistica, ou a Razão de Estado.

Da mesma sorte cuidará em aperfeiçoar-se na Historia da Filosofia Antiga, e

Moderna; na noticia das Vidas, e Opiniões dos Filósofos Antigos, e

Modernos; dos seus differentes Systemas, Escritos, e Sentenças Moraes;

principalmente dos Estoicos, que mais se avançáram na Filosofia Moral13.

12 UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Estatutos da Universidade de Coimbra, pp. 322-3. Os Estatutos formam um conjunto de três volumes: o primeiro referente ao Curso de Teologia, o segundo aos Cursos Jurídicos e o terceiro os “Cursos das Ciências Naturais e Filosóficos”, que compreendiam: Curso de Medicina, Curso de Matemática e de Filosofia Natural. Sempre que fizermos referência aos Estatutos, usaremos EUC. 13 EUC, p. 332.

Page 30: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

29

Os mesmos Estatutos consideravam Hugo Grotius (1583-1645)14 e Samuel von

Pufendorf (1632-1694)15 os restauradores da disciplina do Direito Natural apesar de

criticar algumas de suas idéias e recomendar que os professores não utilizem, em suas

aulas, os textos destes autores. Detenhamo-nos nos Estatutos:

Como Cidadão livre, do Império da Razão procurará o Professor a

verdade, a ordem, a deducção, o methodo, e a demonstração, onde quer

que a achar. Onde aquelles dous Doutores se tiverem desviado da Justiça

Natural; onde tiverem claudicado; onde os seus Discipulos se lhes

tiverem adiantado em qualquer das referidas circunstancias; onde tiverem

passado com a perspicacia dos seus discursos além dos marcos, e balizas,

que Elles fixáram; onde Elle mesmo com o seu proprio entendimento

atinar melhor com a Razão; deixará de seguillos, e abraçará sempre o

melhor [...] Daqui vem serem diversos os Fundamentos, e Principios do

Direito das Gentes; deverem ser procurados por outra parte, que não

sejam os puros, e simples fundamentos, e principios dos Officios do

Homem no Estado Natural [...] He pois impreterivel o estudo desta parte

do Direito Natural. E com razão tanto mais forte, quanto mais

consideraveis são os damnos, e mais funestas as consequencias da

ignorancia della; pois que della póde resultar nada menos, que a

perturbação do sosego, e a ruina, desolação das mesmas Nações16.

O que acabamos de expor aponta para a importância que os Estatutos conferiam ao

estudo da Filosofia por permitir:

14 Hugo Grotius é considerado o fundador do Direito Internacional, uma disciplina em que ele tentava buscar o equilíbrio do contexto internacional excessivamente belicoso em sua época. A sua obra De Iure Belli ac Pacis Libri Três (Direito da Guerra e da Paz) é considerada a matriz do Direito Internacional. Especificamente no que se refere ao caso brasileiro, Grotius é importante não só pelo seu profundo conhecimento das causas portuguesas como também pelo seu tratado sobre os povos da América (Dissertatio de Origine Gentium Americanarum). 15 Samuel von Pufendorf é considerado o mestre do Direito Natural das Gentes. Ele defendia a tese da existência de um contrato duplo entre a vontade individual e as obrigações dos governados para com os governantes. 16 EUC, pp. 328 e 323-4.

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[...]conhecer bem a natureza das idéas simples, e compostas; em saber a arte

de combinallas; em ser bem instruido no methodo de descubrir as verdades

por meio da meditação; de communicallas com ordem, precisão, e clareza; e

em adquirir hum bom criterio da verdade para saber discorrer com

segurança, e certeza, e não se enganar na deducção das Leis Naturaes17.

Justamente por isso, os aspirantes ao Curso Jurídico deveriam ter o conhecimento

de Filosofia Racional e Moral. No caso de não terem estudado esta disciplina, antes de

chegar à Universidade, eram obrigados a fazer dois anos do Curso Filosófico.

Além destes estudos preparatórios, os estudantes do Curso Jurídico eram obrigados

a cursar um ano de geometria, junto ao Curso de Matemática18. Os Estatutos na parte

referente ao Curso Jurídico consideravam que a geometria era:

[...] o melhor meio de se confirmar, e radicar no bom uso do espirito

Geometrico, que deve ter adquirido; para poder discorrer com a ordem,

com a precisão, e com a certeza, que pede o Methodo Demonstrativo; de

que o mesmo Professor deverá usar nos progressos das suas deducções, e

das demonstrações, que fizer dos Officios do Homem19.

Como vimos anteriormente, em 1784, José Bonifácio fez a sua matrícula no Curso

de Matemática, cumprindo certamente as disposições dos Estatutos. Ao contrário de

muitos de seus colegas, ele não foi obrigado a cursar as disciplinas do Curso Filosófico

antes de matricular-se no Curso Jurídico. Parece-nos que as aulas do Frei Dom Manuel da

Ressurreição teriam cumprido adequadamente o seu papel.20

17 EUC, p. 331. 18 Ibid., p. 152. 19 Ibid., p. 333. 20 Uma análise da “Lista dos estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra”, realizada por F. Morais, nos mostra que muitos dos alunos se matricularam primeiramente no Curso Filosófico, para depois, no segundo ano da Universidade, matricular-se nos Cursos Jurídicos, cumprindo também um ano na Matemática. Outros, foram matriculados no primeiro ano do Curso Jurídico para depois seguir um no da Matemática.

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De fato, em 1784, quando ele está cursando o 2º ano do Curso Jurídico, matriculou-

se também no Curso Filosófico, mas, como aluno “Ordinário”21, uma denominação usada

para aqueles que pretendiam obter pelo menos o Bacharelado em Filosofia Natural.

Vejamos alguns detalhes desse curso, que foi criado, como vimos, com a reforma da

Universidade de Coimbra.

Na Faculdade de Filosofia, José Bonifácio teve contato com disciplinas como

História Natural, Física Experimental e Química, introduzidos pela primeira vez na

Universidade de Coimbra.

As lições de História Natural, pormenorizadas nos Estatutos, deveriam dar aos

alunos:

[...] huma idéa da Natureza, e constituição do Mundo em Geral, e do

Globo terrestre em particular. E ainda que a História natural comprhende

todo o Universo; limitando-se com tudo aos objectos mais vizinhos ao

Homem, e mais necessarios ao uso da vida; dividirá as suas Lições em

três Partes, segundo a divisão dos tres Reinos da natureza, que são o

Animal, o Vegetal e o Mineral22.

Terminados os estudos da História Natural, os alunos passariam à Física

Experimental onde “se incluem os factos conhecidos pela experiencia; que he uma

observação mais subtil, procurada por artificio para descubrir o véo da Natureza; e para lhe

perguntar os segredos mais reconditos das suas operações, quando ella por si mesma não

falla”23.

Também a química tinha o seu lugar como ciência no curso de Filosofia Natural,

que segundo o Estatuto acima referido:

21 EUC, pp 227 e 151. 22 Ibid., pp. 239-40. 23 EUC, p. 245.

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32

[...] ensina a separar as differentes substancias, que entram na Composição

de hum Corpo; a examinar cada huma das partes; a indagar as propriedades,

e analogias dellas; a comparallas, e combinallas com outras substancias; e a

produzir mixturas differentemente combinadas novos compostos, de que na

mesma Natureza se não acha modello, nem exemplo24 .

Para as cadeiras das ciências naturais, foram contratados professores estrangeiros,

devido às dificuldades de encontrar estudiosos portugueses com a formação necessária.

Para a Física Experimental, foi nomeado Antonio Dalla Bella (1730 – 1823), que alguns

anos antes havia ensinado a disciplina no Colégio dos Nobres de Lisboa. Para a História

Natural e a Química foi nomeado Domingos Vandelli (1735-1816)25, professor também de

origem italiana como Dalla Bella26.

Em seus trabalhos, Vandelli insistia na importância de formar naturalistas que, recebendo

cargos do governo, realizariam viagens de reconhecimento do Reino Português e se incumbiriam de

outras atividades ligadas à indústria. Assim, poderemos entender a importância que Domingos Vandelli

depositava na figura do naturalista em suas viagens filosóficas27. A complementação dos estudos

desses naturalistas deveria ser mediante viagens de estudos pelos principais centros da Europa.

24 Ibid., p. 250. 25 Foi sócio fundador da Academia de Ciências de Lisboa e mestre de José Bonifácio. 26 Giovanni Antonio Dalla Bella foi nomeado pelo Marquês de Pombal como professor de Física Experimental na Universidade de Coimbra – considerada a melhor da Europa em sua época – de 1773 a 1790, quando então elaborou um compêndio de Física Experimental intitulado Physics Elementa. Foi também um dos fundadores da Academia de Ciências de Lisboa. Veja-se mais sobre este assunto em Márcia Helena Mendes Ferraz, As ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822): o texto conflituoso da química, p. 72 e seg. 27 Na obra citada de M. H. M. Ferraz, p. 153, encontramos os pontos idealizados e exigidos por Vandelli a um naturalista, extraído da sua obra: Memorias Economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, para o adiantamento da Agricultura, das Artes e da Indústria em Portugal e suas conquistas”. São eles: . análise das terras examinando seus principais constituintes para determinar a melhor conjugação planta-terreno; . atenção aos bosques e minas de carvão fóssil; . estudo dos metais e minerais pesando no estabelecimento de fábricas para substituir os materiais importados; . conhecimento das plantas alimentícias e medicinais; e . análise das águas minerais para fins medicamentosos. Segundo Rômulo de Carvalho, o termo “viagens filosóficas” refere-se aos “espaços onde se buscavam animais, vegetais e minerais [...] A escolha de ‘filosóficas’ para qualificar as referidas viagens tem sua razão de ser no motivo que levou a denominar Faculdade de Filosofia ao departamento universitário criado pela Reforma Pombalina, onde se estudava, em disciplinas separadas, embora obviamente não independentes, a Física, a Química e a História Natural”. Rômulo de Carvalho, A história em Portugal no século XVIII, p. 81.

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Entretanto, cumpre-nos ressaltar que algumas viagens de estudo realizadas nos centros

europeus tinham outras finalidades que aquelas sugeridas por Vandelli. Essas viagens de

estudos foram supervisionadas pela Academia de Ciências de Lisboa, fundada em 1780 pelo

Duque de Lafões com a finalidade de incentivar as pesquisas científicas e utilizar suas

aplicações em prol da economia do reino. Por influência e amizade com o Duque (que admitia

um certo parentesco com os Andradas)28, os “brasileiros” José Bonifácio, Manuel Ferreira da

Câmara Bittencourt e Sá (1762-1835) e o português Joaquim Pedro Fragoso foram indicados

para a viagem de estudos pela Europa29. Às expensas da Coroa Portuguesa eles visitaram os

grandes centros europeus de conhecimento – todos amparados por uma Portaria datada de 1º

de março de 1790 30.

Conforme instruções do Ministro dos Estrangeiros e da Guerra, Luiz Pinto de

Souza, expedidas em 31/5/1790, a viagem pela Europa constava de realização de cursos

em química e mineralogia e visitas aos laboratórios e minas. Eles estavam ainda

autorizados a:

[...] “quando houver necessidade de se fazerem compras de livros da

profissão, máquinas e modelos, que se devam adquirir e remeter para a

Côrte de Lisboa, o chefe da expedição o representará ao Embaixador ou

Ministério da Côrte onde se achar, para que mande satisfazer as despesas

necessárias de semelhantes aquisições 31.

Eles partiram para a capital francesa em 18 de fevereiro de 1790, onde José

Bonifácio freqüentou o curso de Química na École de Mines, no tumultuado período de

1790 a 1791. Neste estabelecimento, ele foi aluno de Antoine François Fourcroy (1755-

28 Veja-se O. T. de Sousa, José Bonifácio: história dos fundadores do Império do Brasil, p. 21. 29 M. H. M. Ferraz, op cit., p.159. 30 Esta Portaria lhes concedia um ajuda de custo de 600$000 a 800$000 (seiscentos a oitocentos mil-réis) para despesas conforme circunstâncias. Veja-se O. T. de Sousa, op. cit., p. 22. 31 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 170.

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1809)32 e René Just Haüy (1743-1822)33. Pelos notáveis trabalhos que realizou José

Bonifácio acabou sendo eleito membro da Société Philomatique de Paris e da Société

d’Histoire Naturelle de Paris. Para esta última, ele escreveu um trabalho intitulado

“Mémoire sur les Diamants du Brésil”34.

O envolvimento de José Bonifácio com Fourcroy e J. Chaptal (1756-1832) foi de

suma importância para a sua formação, não somente profissional como também para a

filosofia política, uma vez que estes franceses estavam por demais envolvidos no

movimento revolucionário que estava então em plena efervescência35.

A partir de 1792, José Bonifácio segue para a Saxônia onde freqüentou a Escola de

Minas de Freiberg, aperfeiçoando-se em Minas, Metalurgia, Orictognosia e Geognosia36.

Nesta escola, ele foi aluno do conceituado estudioso Abraham Gottlob Werner (1750-1817) e

colega de estudos de Alexander von Humboldt (1769-1859). Ainda no final deste ano foi

conhecer as minas do Tirol (Áustria), indo a seguir para Pávia (Itália), tendo recebido lições de

Alessandro Volta (1745-1827)37. Como se vê, José Bonifácio teve contato com estudiosos

importantes de sua época.

32 Fourcroy foi professor de química do jardim do rei desde 1794. Ele foi um dos responsáveis pela nomenclatura química e pela reorganização do ensino público francês. Foi também membro da Academia de Ciências e da Sociedade de Medicina. Mais tarde foi-lhe concedido o título de Conde de Fourcroy. Segundo Paul Virilio, além de engenheiro ele foi ainda diretor de fortificações. Em 1782 ele publicou “Ensaio para uma tabela paleométrica ou divertimento de um apreciador de mapas sobre os tamanhos de algumas cidades com uma planta ou tabela oferecendo comparação dessas cidades por meio de uma mesma escala”. 33 Abade Haüy, mineralogista de renome na França, foi um dos grandes estudiosos da cristalografia. 34 Veja-se E. de C. Falcão, op. cit., pp. 50-6. Conforme G. da Fonseca , op. cit., p. 108, o trabalho de José Bonifácio sobre os diamantes consta da Ata da Société d’Histoire Naturelle por influência de Fourcroy. 35 Jean Chaptal, foi professor de química e, posteriormente, intitulado Conde de Chanteloup e Ministro do Interior de Napoleão Bonaparte. No ano II da Revolução (1794), Fourcroy trabalhava no aperfeiçoamento da metalurgia e manufatura de armamentos enquanto Chaptal e Vauquelin dirigiam a indústria do salitre. É importante lembrar que quando da invasão de Lisboa pelas tropas francesas, sob o comando do Gal. Junot, a partir de 30 de novembro de 1806, José Bonifácio aliou-se à resistência portuguesa “dedicando-se ao fabrico de munições de guerra”, conforme consta de G. da Fonseca, op. cit., p. 114. 36 Por Orictognosia entende-se o estudo dos corpos minerais fósseis; e Geognosia o estudo da estrutura e composição da camada sólida da terra. 37 O. T. de Sousa, op. cit., p. 26-7.

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35

José Bonifácio vai ser encontrado na Suécia e Noruega a partir de 1796, onde

pesquisou as minas de Arendal, Sahla, Krageroe e Laugbansita38. Foi justamente neste período

que sua fama de mineralogista se fez pela descoberta de quatro novas espécies de minerais:

petalita, espodumênio, escapolita e criolita. Além destas, José Bonifácio descreveu mais oito

espécies já conhecidas: epídoto, ealita, cocolita, ictiftalmio, indicolita, agrigita, alocroíta e

wernerita, sendo que esta última foi assim denominada em homenagem ao seu mestre A . G.

Werner 39.

José Bonifácio teve seu primeiro reconhecimento científico em Portugal ao ser

indicado em 1799, para membro da Academia Real de Ciências de Lisboa, quando ainda

estava em viagem de estudos pela Europa. A partir de então, tornou-se membro de várias

outras instituições acadêmicas importantes40.

Após dez anos e três meses de incursões de estudos pela Europa, José Bonifácio

retornou a Portugal e a partir de 1801 começou a assumir cargos importantes no governo

português, com destaque para:

a) Intendente Geral das Minas e Metais do Reino em 25/8/1801 e designado

Membro do Tribunal de Minas – tribunal encarregado de dirigir as Casas da Moeda, Minas

e Bosques de todos os domínios portugueses;

38 O. T. de Sousa. José Bonifácio: história dos fundadores do Império do Brasil, pp. 27 e seg. 39 Conforme o Dicionário de Mineralogia e Geologia, a Petalita é uma variedade de feldspato formada de silicato natural de alumínio e lítio (Li Na) (AlSi4O10); o Espodumênio é um mineral de alumínio e lítio LiAl (Si2O6); a Escapolita é um mineral intermediário entre meionita e marialita, contendo de 46% a 54% de sílica; e a Criolita é um fluoreto duplo natural de sódio e alumínio existente na Groêlandia. Posteriormente Werner retribuiu a homenagem a José Bonifácio com uma de suas descobertas, a Andradita , ou seja, uma variedade de granada ferro-calcária, formada de silicato natural de calcário e ferro Ca3Fe2 (SiO4)3, conforme o Dicionário supramencionado. Abraham Gottlob Werner (1749-1817) é considerado um dos fundadores da moderna mineralogia juntamente com o escocês James Hutton (1726-1797). Ele defendia a tese do netunismo, teoria que tentava explicar as formações geológicas a partir de um oceano em que as formações se davam por depósitos. Também foi mestre de José Bonifácio. 40 As outras academias para as quais José Bonifácio foi nomeado foram: Sociedade de História Natural de Paris 1791; Sociedade Filomática de Paris 1791; Sociedade dos Amigos das Ciências Naturais de Berlim 1797; Sociedade de Mineralogia de Iena 1798; Academia Real de Ciências de Estocolmo 1798; Academia Real de Ciências de Copenhague 1801; Academia Real de Ciências de Turim 1801; Sociedade Weneriana de Londres 1802; Sociedade das Ciências Físicas e Naturais de Gênova 1802; Sociedade das Ciências Filosóficas de Filadélfia 1802 e Sociedade de Ciências do Instituto de França 1819. E.C. Falcão, op. cit., fala também na Sociedade Marítima de Lisboa da qual José Bonifácio fez parte.

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36

b) Diretoria do Real Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa, em 12/11/1801;

c) Responsável pela cadeira de Metalurgia da Universidade de Coimbra, em 1801;

d) Desembargador da Relação e Casa do Porto, em 08/8/1806; e

e) Secretário Perpétuo da Academia Real das Ciências de Lisboa, em 181041.

De todos os cargos que José Bonifácio assumiu, nem todos foram exercidos a

contento, devido, em parte, aos excessos das obrigações e a falta de material adequado para

realizar seu trabalho. Há, ainda, que se considerar os obstáculos impostos pela burocracia

portuguesa, que, aliada à “inveja”42 e aos ressentimentos, acabaram por tornar

desagradável a permanência dele em solo lusitano. Um único caso pode bem exemplificar

isso: ao ser nomeado para a cátedra de metalurgia na Universidade de Coimbra, José

Bonifácio recebeu o capelo doutoral na Faculdade de Filosofia em 20/6/1802, sendo

dispensado da defesa de tese43. Ele aceitou o cargo com a ressalva de que o faria ‘como

vassalo fiel, bem que não fôsse êste lugar de gôsto e vontade sua’44. Em uma carta

endereçada ao Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (1804-1808),

41 Além dos cargos mencionados a seguir, José Bonifácio assumiu também outros encargos tais como: administrador das “Minas de carvão de Buarcos (mina de carvão e pedra) para restabelecer as fundições de Figueiró dos Vinhos e de Avelar” (fundição de ferro), em junho de 1801; Superintendente das Obras Públicas de Coimbra; Encarregado de ativar as sementeiras de pinhais de Couto de Lavos, tendo em vista a proteção do litoral Português, em 1802; Superintendente do Rio Mondego e Obras Públicas de Coimbra e Diretor das Obras de Encanamento e Serviços Hidráulicos e provedor de Finta de Maralhães em 1807. José Bonifácio criou, ainda, o Corpo Militar Acadêmico em Coimbra, tendo em vista a resistência às invasões das tropas francesas em Portugal, tendo sido promovido ao posto de Major e, posteriormente, Tenente Coronel e Coronel. Foi também Intendente da Polícia do Porto e Superintendente da Alfândega e da Marinha em 1809. 42 Segundo O. T. de Sousa, op. cit., p. 54., encontramos uma reclamação de José Bonifácio em relação a Portugal, “onde a inveja e a presunção suscitam a cada canto e a cada hora inimigos”. A inveja que ele se refere é certamente devida ao Conde de Figueiró - Luís de Vasconcelos e Souza (1742-1807) – 4º Vice-Rei do Brasil no Rio de Janeiro (1779-1790), que hostilizou José Bonifácio quando este foi Intendente Geral das Minas e Moedas do Reino. 43 Isto se deu pela Carta Régia de 15/4/1801, conforme O. T. de Sousa, op. cit., p. 36. 44 O. T. de Souza, op. cit., p. 38.

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37

Antônio de Araújo Azevedo (Conde da Barca)45, ele dizia que na universidade “não há

coleção mineralógica que sirva e valha coisa alguma”46.

Ao que tudo indica, o desinteresse pela cátedra não era um atributo exclusivo de

José Bonifácio, haja vista que apenas seis estudantes estavam matriculados no segundo ano

de funcionamento do curso. Um texto de sua autoria denominado “Causas da não-

prosperidade das ciências naturais em Portugal”, enumera 20 prováveis causas

responsáveis pelo atraso científico, dentre elas algumas ligadas às condições em que se

encontrava o sistema de ensino português nesse período, a saber:

[...] a falta de museus, gabinetes de física, e laboratórios; [...] o péssimo

estado das mesmas ciências naturais na universidade por falta de mestres

hábeis etc.; a ignorância crassa do povo, e dos chamados sábios; [...] a

carestia de imprensas, e a falta de gravadores hábeis para abrir estampas

[...] falta de aulas de desenho [...] 47.

As críticas de José Bonifácio não pouparam sequer seus colegas do corpo docente

da instituição, que foram classificados como “sátrapas da universidade atrevidos e

pedantes”48. Não bastassem todas essas dificuldades, José Bonifácio teve que suportar as

conseqüências de ter um inimigo no poder, o Ministro D. Luís de Vasconcelos, autoridade

máxima do Real Erário e substituto de D. Rodrigo de S. Coutinho. A este Ministro José

Bonifácio havia feito referência em discurso numa sessão da Academia de Ciências de

Lisboa, no qual o chamou de “ignorante”. A partir de então, a burocracia portuguesa se

45 O conde foi também ministro plenipotenciário na Rússia de 1801 a 1804. Foi nomeado Conselheiro de Estado em 1807 e Secretário dos negócios dos Estrangeiros e da Guerra. Em 1814, foi nomeado Ministro da marinha e recebeu o título de conde em 1815, sendo o responsável direto pela vinda da Missão Artística Francesa ao Brasil. 46 O. T. de Souza, op. cit., p. 38. É digno de nota que, o inventário e a classificação da coleção do Museu Real da Ajuda, foi obra de José Bonifácio, como também “arrolou pacientemente a maior parte das inscrições romanas que encontrou em velhas pedras e monumentos do país, transcrevendo-as e traduzindo-as” (conforme o mesmo autor, p. 54). 47 J. B. de Andrada e Silva, op. cit., p. 340-1. 48 O. T. de Sousa, op.cit., p. 54.

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38

voltou contra as intenções de José Bonifácio, por um lado, impedindo a realização de seu

trabalho, por outro, não atendendo às suas solicitações, de tal forma que:

[...] na Intendência-Geral das Minas nada mais funcionou direito,

suprimiram-se os recursos financeiros, interromperam-se os trabalhos; a

mina de carvão de Buarcos foi inundada e os depósitos se perderam;

uma máquina de valor de 20.000 cruzados, chegada da Inglaterra, ficou

abandonada no pôrto de desembarque49.

José Bonifácio tentou por várias vezes retornar ao Brasil. Em 1809, ele havia

conseguido uma licença com o Ministro Conde de Aguiar válida por um período de 12

meses, mas na obrigação de retornar à Europa assim que fosse esgotado o prazo.

Entretanto, a sua viagem foi protelada para o ano seguinte50, e outra vez mais por mais um

ano, até que em 1811 ele desistiu. Em 1818 ele voltou a pedir a referida licença quando

então foi vítima de mais um incidente com a burocracia portuguesa, o que dificultou a

realização de suas pretensões de retornar à terra natal. Após vencer uma série de

obstáculos, José Bonifácio conseguiu finalmente o visto de saída em seu passaporte com

data de 19 de agosto de 1819.

Ao chegar ao Brasil, ele encontrou o seu irmão Martim Francisco, Inspetor das

Minas de São Paulo, com o qual realizou uma viagem de pesquisa mineralógica pelo

interior desta província, entre 23 de março e 5 de maio de 1820, envolvendo-se, como em

Portugal, com os trabalhos em história natural, mineralogia e metalurgia51.

49 Idem., p. 43.

50 Em janeiro de 1810, José Bonifácio chegou a encaixotar seus pertences e pediu “três mil cruzados” emprestados de seu irmão Martim Francisco para viajar no mês de agosto. Veja-se O.T. de Sousa, op. cit., pp. 58-60 e 65. 51 Veja-se descrições completas desta viagem em E. de C. Falcão, op. cit., p. 477-500., ou ainda em David Carneiro, A vida gloriosa de José Bonifácio de Andrada e Silva e sua atuação na Independência do Brasil, 1977, pp. 66 e seg. ou ainda em E. de C. Falcão, org, Estudos vários sôbre José Bonifácio de Andrada e Silva, p. 117.

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39

Algum tempo depois, José Bonifácio começa a exercer cargos que o tornariam

conhecido como político e que exigiram muito mais de seus conhecimentos em Direito,

distanciando-o, de certa forma, de seus interesses em Ciências Naturais. Assim, em janeiro

de 1822, José Bonifácio tornou-se Vice-Presidente da Junta Governativa da Província de

São Paulo, mas já estava nomeado Ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros, cargo

que, com a Independência, passaria a ser denominado de Ministro do Império e dos

Estrangeiros. Aí permaneceu até 17 de julho de 1823, quando foi demitido por

divergências com D. Pedro I. Retornou assim à Assembléia Geral Constituinte e

Legislativa para ocupar a cadeira de deputado conquistada pela província natal.

Na Assembléia, José Bonifácio iria permanecer até o dia 12 de novembro de 1823,

quando aquele órgão foi dissolvido pelo Imperador. Juntamente com seus dois irmãos,

acabou sendo preso e enviado para o exílio na França em 20 de novembro do mesmo ano,

passando a viver em Bordeaux.

Foi justamente como deputado que José Bonifácio apresentou o seu projeto

“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, que será o

objeto central de nossa análise a partir da Segunda Parte do presente estudo.

No próximo capítulo, veremos como os discursos de José Bonifácio foram

permeados pelas idéias políticas e filosóficas que estavam em discussão na Europa do

século XIX.

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CAPÍTULO II

IDÉIAS POLÍTICO-FILOSÓFICAS E RELIGIOSAS NO SÉCULO XIX

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A formação de naturalista de José Bonifácio na Universidade de Coimbra, bem

como suas viagens de exploração e conhecimento pelos melhores centros de ensino

europeu, lhe deram a oportunidade de estar em contato com o que havia de melhor em

termos de produção científica e filosófica da época. A sua formação deu-se num período de

efervescência política na Europa - de 1783, quando se matriculou na Universidade a 1800,

quando retornou de suas viagens. Conforme exposto no Capítulo anterior, as excursões

científicas que ele realizou proporcionaram-lhe conhecer vários centros de pesquisas e

cientistas de renome, como: Fourcroy, Werner, Volta, Priestley, Chaptal, Haüy, Vauquelin,

Duhamel, Jussieu, Le Sage, entre outros.

Além de ter conhecido vários laboratórios, ele teve a oportunidade de trabalhar com

o que havia de melhor em termos de conhecimentos e equipamentos. Por meio de seus

mestres ou por influência de amigos, ele teria sido introduzido no pensamento iluminista

pelas obras dos mais eminentes filósofos de seu tempo, como Rousseau, Montesquieu,

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42

Voltaire, Diderot, D’Alembert, Raynal, Buffon, Montaigne, Locke, Peine, Pope,

Condorcet, Hume, Kant, Leibniz, Maquiavel, Newton, entre outros1.

Nesse Capítulo apresentamos alguns pensadores e suas idéias relativas ao homem

americano, os quais julgamos importantes, pois deixaram as suas marcas não só nas

propostas de José Bonifácio, mas também em muitos políticos e legisladores dos séculos

XVIII e XIX: Raynal, Rousseau e Voltaire. Em seguida, apresentaremos e discutiremos

alguns conceitos que têm lugar em muitos dos documentos sobre esse Capítulo. A seguir

passaremos a expor e comentar as legislações sobre os índios do Brasil, nos períodos que

abrangem da fase colonial ao reinado.

Somente conhecendo os conceitos de que se serviram os legisladores na formulação

de seus artigos, podemos compreender as idéias e propostas expressas nos discursos de

José Bonifácio encaminhados à Assembléia Legislativa. E, para conhecermos melhor o

pensamento do autor, não podemos esquecer que ele foi o produto de uma época em que os

novos conceitos não estavam restritos apenas às mentalidades de alguns iluminados, mas

também se concretizavam em todos aos setores que se relacionavam ao homem, à natureza,

ao trabalho, à religião, ao poder, à liberdade etc. Dessa forma, pode-se compreender

melhor o texto de José Bonifácio a ser objeto principal do presente estudo, os

“Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil” 2.

Raynal, ou Abade Raynal, como é mais conhecido, foi membro da Companhia de

Jesus até 1748. Desiludido com a Companhia, começou a freqüentar os famosos salões

parisienses onde eram discutidas as propostas para uma nova sociedade. Neste ambiente, o

1 O. T. de Sousa, op. cit., p. 16 e seg. 2 Este último texto consta da obra organizada por Miriam Dolhnikoff, José Bonifácio: projetos para o Brasil, 1998, pp. 156-8. Considerando a extensão do título desse trabalho de José Bonifácio, sempre que nos referirmos a ele usaremos da expressão “Apontamentos...”, para diferenciá-lo de outro texto, também de José Bonifácio, denominado apenas “Apontamentos”.

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43

Abade Raynal conheceu as idéias de Claude Adrien Helvétius, Paul Henri Dietrich, barão

d’Holbach, Denis Diderot, Jean-Jacques Rousseau e outros.

Em 1770, Raynal publicou uma obra denominada Histoire philosophique et

politique des établissements et du commerce des européens dans des indes, na qual expõe

suas idéias permeadas “de obras contemporâneas, como fez com o Senso Comum de

Thomas Peine, Recherches philosophiques sur les Americains, de Cornelius Pauw, ou

Homme Mora,l de Levesque. E mescla Voltaire, Montesquieu, Helvétius, Holbach e

Rousseau, plagiando todos à mão solta”3. Para o que nos interessa, um dos livros de sua

Histoire Philosophique diz respeito especificamente à colônia portuguesa na América e

está intitulado: O estabelecimento dos portugueses no Brasil. 4

É importante o estudo das obras de Raynal, pois nela encontramos a idéia de se

trabalhar a heterogeneidade étnica brasileira, a indolência e a questão das terras indígenas.

Conhecedor da situação em que se encontravam os índios – através das informações

de “um dos homens mais esclarecidos que jamais viveu no Brasil”, Raynal critica a

formação das aldeias, onde um chefe branco regulava todas as ações. Inicialmente

favorável à liberdade dos índios, em detrimento da tutela defendida por José Bonifácio,

Raynal dizia que “os índios que permaneceram senhores de suas ações na colônia

portuguesa são muito superiores em inteligência e indústria aos que foram mantidos sob

tutela perpétua”.

Atento ao processo de miscigenação que estava ocorrendo no Brasil, nas Províncias

de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, observava ele:

[...] os brasileiros miscigenaram-se aos portugueses e aos negros, e não

mudaram o caráter, porque não se trabalhou para esclarecê-los, não se

3 L.R. de A. Figueiredo & O. M. Filho, “Prefácio”, in G-T. F. Raynal, A revolução na América, p. 3. 4 G. T-F. Raynal, Os estabelecimentos portugueses no Brasil, pp. 99-100.

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tentou vencer sua indolência natural, não se lhes atribuíram terras e não

se fizeram os avanços necessários que poderiam estimular sua emulação5.

Ou seja, Raynal deixou claro que seriam necessárias ações do governo para

incentivar a integração dos mestiços levando à formação de “um só povo”6. A estas

questões levantadas por Raynal - miscigenação, caráter e indolência foram objetos de José

Bonifácio que, em “Apontamentos...”, imaginou poder homogeneizar as diferenças do

povo brasileiro. Entretanto, lembramos que Raynal foi produto do progressivismo de sua

época e, conseqüentemente, eurocêntrico, já que advogava a idéia clássica de um certo

evolucionismo linear que julgava terem os povos civilizados sido, um dia, também

selvagens. Esta idéia de homogeneização de Raynal será um dos objetos de José Bonifácio

em seu projeto de civilização dos índios do Brasil.

Rousseau é possivelmente o filósofo que mais teve acolhida nas leituras de José

Bonifácio. Em suas obras há sempre a idealização do selvagem americano nos modos de

vida dos seus personagens. Segundo Afonso Arinos, o pensador francês foi sempre bem

informado sobre o “Novo Mundo”, especialmente o que dizia respeito às descrições de

viagens7, quer de Charles Marie de La Comdamine, Daniel Defoe, Samuel von Pufendorf,

John Locke ou Michel Eyquem de Montaigne, sendo este último o mentor da idealização

de “o bom selvagem“, idéia tão cara a Rousseau8.

Em Rousseau vamos encontrar não somente a idealização do homem do Novo

Mundo, mas também o estilo de governo monárquico que ele imaginou em O Contrato

5 G. T-F. Raynal, Os estabelecimentos portugueses no Brasil, p. 99. 6 Ibid., p. 99. 7 Charles Marie de La Comdamine (1701-1774), naturalista francês, foi encarregado da chefia de uma expedição científica à América do Sul entre 1735-1745, patrocinada pela Academia de Ciências de Paris. Sobre este assunto vejam-se Victor W. von Hagen, A América do Sul os chama, [1956], pp. 9-98; Daniel Defoe (1660-1731), escreveu Robinson Crusoé em 1719; Barão Pufendorf (1632-1694), jurista alemão, foi autor de O direito natural dos povos; John Locke (1632-1704), autor de O segundo tratado do governo civil, e Montaigne (1531-1592), autor bastante influenciado pelos relatos dos viajantes André de Thevet e Jean de Léry. 8A. A. de Melo Franco, Os índios e a Revolução Francesa, p. 183.

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Social: “Vimos, através das relações gerais, que a monarquia só é conveniente aos vastos

Estados”9.

Voltaire foi um rico e impetuoso burguês que devotou boa parte de sua vida em

querelas filosóficas, despejando sua cólera contra a monarquia, em parte por causa de sua

briga com o rei da Prússia, Frederico II. Também não poupou rancores contra Rousseau

“cujo gênio ele, por ódio, nunca soube compreender”10.

Contrariando a corrente de Montaigne e Rousseau, os quais pintaram o selvagem

americano com certa dose de ingenuidade e pureza, Voltaire pintou o selvagem e o seu

mundo em cores obscuras através do filtro de Jean de Léry11 e André de Thevet12. Senão

vejamos:

Il faut payer à nos voisins quatre millions d´un article, et cinq ou six d´un

autre, pour mettre dans notre nez une poudre puante venue da

l´Amérique; le café, le thé, le chocolat, la cochenille, l´indigo, les

épiceries, nous coûtent plus de soixante millions par an13.

Na sua obra denominada Candide, Voltaire ridiculariza a tudo e a todos. Os seus

personagens fazem um périplo pelo mundo, e quando chegam à América são postos em

fuga do Paraguai para as terras brasileiras, quando então matam dois macacos que

9 J-J. Rousseau, O contrato social, p. 78. 10 A. A. de Melo Franco, op. cit., p. 163. 11 O calvinista francês Jean de Léry (1534- ? ), esteve no Rio de Janeiro de 1557 a 1558 como integrante da esquadra de Nicolas Durant de Villegaignon. Durante a sua permanência no Rio, conviveu com os índios Tupinambás, tendo a oportunidade de observar os seus costumes, o que resultou na obra “Histoire d´un voyage fait en la terre du Bresil autrement dite Amerique”, editada pela primeira vez em 1578. Ele achava que os índios sequer poderiam ser considerados gente pagã, já que estavam situados aquém daqueles povos que, ao menos, foram politeístas. Ele via os cerimoniais indígenas como obras demoníacas, e nos maracás, instrumentos de possessão. 12 O frei capuchinho André de Thevet (1502-1590), cosmógrafo do rei francês Henrique II, viajou com a esquadra comandada por Villegaignon, tendo permanecido no Rio de Janeiro entre 1555 e 1556. Também, como Jean de Léry, não reconhecia a religiosidade nos índios tupinambás, além de criticá-los por não conhecer os livros. Sobre o Brasil, ele publicou em 1557 “Lês singularitez de la France antartique”. 13 “É necessário pagar a nossos vizinhos quatro milhões por um artigo, e cinco ou seis por outro, para que coloquem em nosso nariz um pó mal-cheiroso vindo da América; o café, o chá, o chocolate, a cochonilha, o índigo, as especiarias, nos custam mais de sessenta milhões por ano”. Tradução nossa. Voltaire, “L´homme aux quarante écus”, in: L´ingénu., p. 81.

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mordiam duas índias, descobrindo depois que os símios eram os amantes das jovens14.

Essas referências deixam claras as suas jocosas idéias sobre os índios.

Após tratar as idéias sobre o homem americano, presentes nos trabalhos de alguns

pensadores do período que estamos estudando, vamos discutir alguns conceitos que

merecem ser cuidadosamente aprofundados, pois, se mal interpretados, poderiam levar-nos

a uma incompreensão total ou parcial da obra de José Bonifácio. Tais conceitos são: guerra

justa, perfectibilidade e degeneração, civilização e, humanidade.

1. Guerra Justa

A “guerra justa” foi um pretexto para justificar legalmente a prática da escravidão e

era “aplicada aos povos que, não tendo o conhecimento prévio da fé, não podem ser

tratados como infiéis”15. Ela também poderia ser feita quando da recusa à conversão,

quando houvesse alguma hostilidade aos vassalos ou aliados da coroa ou, ainda, quando

houvesse a quebra de um pacto, o uso da antropofagia e também pela salvação da alma.

Nestes casos a “guerra justa” deveria ser declarada por autoridades competentes, como o

Rei ou a Igreja.

A expressão “guerra justa” encontra-se numa obra denominada Las justas causas

de la guerra, do espanhol Juan Ginés de Sepúlveda, impressa pela primeira vez em Roma

no ano de 1550. Sepúlveda escreveu esta obra no contexto da pós-reforma luterana, no

14 Voltaire, Candide, 1994, p. 43 15 B. Perrone-Moisés, “Índios livres e índios escravos”, in: Manuela Carneiro da Cunha, org, História dos índios no Brasil, p. 123.

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intento de justificar as crueldades levadas aos extremos pelos espanhóis, durante as

conquistas das terras do “Novo” Mundo16. Sepúlveda enumerou quatro condições para que

uma guerra pudesse ser considerada justa: “Causa justa, autoridad legitima, recto animo e

recta maneira de hacerla”17, o que passamos a detalhar em seguida.

a - Como causa justa Sepúlveda entendia: a superioridade cultural, o castigo aos

malfeitores, a cobrança das coisas arrebatadas injustamente ou as do aliado e o emprego do

homem para a guerra contra os animais. No confronto entre os europeus e americanos,

quaisquer destes quatro entendimentos poderiam ser aplicados, uma vez que ele alegava

serem os naturais da terra inumanos, bárbaros e animais. Assim, nada mais justo, seguindo

esta interpretação, que o perfeito (neste caso seriam os europeus de um modo em geral)

imperasse sobre o imperfeito (os índios americanos).

b - Por autoridad legitima entendia como sendo o poder público, isto é, o Príncipe,

a Igreja e os seus delegados.

c - Por recto animo ele invocava Santo Agostinho para afirmar que o fazer a guerra

não seria um delito, mas seria um pecado se o fosse pelos bens materiais.

d - Ao tratar de recta manera de hacerla ele afirmava que a guerra não poderia ser

feita simplesmente por uma vingança pura e simples, mas sim pelo bem público, e que

“não se façam injúria aos inocentes, nem se maltratem os embaixadores, os estrangeiros e

os clérigos”18.

16 Sepúlveda entrou em atrito com o dominicano Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566), devido à publicação da obra do Frei, denominada Brevíssima Relación de la Destrución de las Indias Ocidentales, no ano de 1552 – onde ele defendia a liberdade e os costumes dos índios. Esta obra relata a crueldade e a corrupção dos espanhóis, fazendo com que a sua imagem passasse à denominação de “Leyenda Negra” por toda a Europa. Veja-se mais sobre este assunto em Juan Ginés de Sepúlveda, Las justas causas de la guerra, 1996. 17 J. G. de Sepúlveda. Las justas causas de la guerra, p. 18. 18 Idem., p. 27. Tradução nossa.

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Por fim, Sepúlveda justificava a conquista não como um direito, mas sim como um

dever de caridade. Isto deixa claro que as condições para a existência da guerra justa ou

não, atendiam muito mais aos interesses e caprichos dos colonos, bem como os da Igreja,

que propriamente ao cumprimento de um código de princípios, leis, mores ou normas por

parte dos colonizados. No que se refere às hostilidades aos vassalos e a quebra do pacto

fica mais patente ainda que ao indígena restava a sujeição ao jugo do homem branco, a

qualquer custo, uma vez que sua resistência forneceria subterfúgios para o início da guerra.

Quando do interesse dos colonos, em último recurso, a guerra era justificada pela

frieza, crueldade e barbaridade dos inimigos indígenas. Fica evidente, assim, que na visão

do colono a guerra era de puro e simples extermínio de um sujeito portador de instintos

animalescos. Este discurso nos faz crer que, para os nobres e comerciantes, a guerra era

apenas um meio de incorporar o índio à mão-de-obra barata, preferencialmente em forma

de escravidão, num gesto considerado por eles até mesmo humanitário.

Fazendo um transporte destes conceitos para as condições impostas pelo processo

colonial em terras brasileiras, veremos que elas foram aplicadas quase ipsis litteris. O

padre Antônio Vieira, discorrendo sobre os índios que se encontravam no Maranhão, dizia

que eles eram de três tipos19; a saber: os escravos da cidade, que serviam aos colonos; os

escravos das aldeias de el-rei, que Vieira considerava livres, e ainda os que viviam nos

sertões, estes os mais visados pelas bandeiras, e “só poderiam ser tirados aqueles que já

estivessem cativos de tribos inimigas [...] trazendo-os à cidade como escravos”20.

Não foi somente Jean de Léry quem pensava a inumanidade, barbaridade e

animalidade dos índios. O próprio Diretório afirmava estas características nos Art. 3º

dizendo que “...os índios deste Estado se conservaram até agora na mesma barbaridade...”

19 Note-se que esta classificação é diferente daquela apresentada pela pesquisadora B. Perrone-Moisés, já comentada na contextualização da obra. 20 A .Bosi. Dialética da colonização, p. 139.

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E no Art. 37º acrescenta que eles “[...] pela sua rusticidade, e ignorância, não podem

compreender a verdade, e legítima reputação dos seus gêneros [...]”, acusações estas

negadas competentemente pelo padre João Daniel.

Quando às operações de resgate, o historiador Luiz Felipe de Alencastro afirma que

os índios poderiam ser apropriados de três formas: resgates, cativeiros e descimentos. Em

princípio só eram resgatados os índios de corda21 pois os cativos originários da “guerra

justa” tornar-se-iam escravos ad infinitum, o que concorria para o benefício da facilidade

de mão-de-obra para o sistema.

O ato de fazer escravos através da guerra - justa ou não - remonta à Grécia antiga.

Segundo Alencastro, o mesmo argumento clássico continuou sendo utilizado para justificar

a fonte escravista que perdurou até meados do século XIX. A guerra como benemérita da

escravidão pode ser encontrada em Xenofonte que, além de justificá-la, considerava a

escravidão um método didático-educativo próprio para os animais. Daí que ele

elogia os guerreiros e conquistadores benévolos, benfeitores, os quais, em

vez de massacrar seus prisioneiros de guerra, reduziam-nos à escravatura,

´forçando-os a se tornar melhores, e levando-os assim a ter uma vida mais

fácil`. Ou seja, a escravização se define como um ato de generosidade,

reiterativo da natureza humana do prisioneiro, do cativo, na medida em

que o resgata de uma morte certa para integrá-lo numa sociedade

eventualmente mais avançada. O argumento será retomado por grandes e

pequenos escritores ao longo dos séculos, a ponto de constituir o

fundamento ideológico do substantivo que designa a aquisição de

escravos africanos ou índios: resgate22.

21 - O termo que designava os índios prisioneiros de outros índios, à espera da morte, por meio de um ritual específico para tal fim. Os índios resgatados nessas condições deveriam permanecer cativos de seus novos donos por dez anos. 22 - L. F. de Alencastro, O trato dos vivente, p. 152.

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Essa metodologia clássica de escravidão foi encontrada no Amazonas, quase dois

milênios após, pelo jesuíta padre João Daniel. Segundo ele, as tropas de resgate da coroa

“[...] instituídas para livrar da matança os miseráveis índios encurralados com muita

piedade pelos Fidelíssimos Reis de Portugal [...] com muito aplauso dos mesmos

portugueses, que nos tapuias23 resgatados tinham escravos e servos para os seus serviços

de lavouras”24.

A esses atos os portugueses denominavam operação de resgate e os índios

capturados eram os índios de corda. Esta era uma operação que denominavam “guerra

justa”, justificada então pela causa justa de Sepúlveda.

No intuito de fomentar e dar manutenção a estas operações, os colonos incitavam as

tribos a guerrear entre si visando o aprisionamento do adversário e não o seu extermínio. E

isto se explica pelo fato das tropas serem pagas com moedas silvícolas ou, índios

aprisionados. Confirmando esta asserção, vejamos um trecho de uma Carta do Padre Vieira

[...] Os inheiraquaras, gente de grande resolução e valor [...] foram

caçados, achados, rendidos, sem dano mais que de dois índios nossos

levemente feridos [...] Ficaram prisioneiros 240, os quais, conforme as

leis de vossa majestade, a título de haverem impedido a pregação do

evangelho, foram julgados escravos, e repartidos aos soldados” 25.

José Bonifácio fez referência ao comércio escravocrata indígena no texto “A maior

infelicidade que suportou a massa geral dos homens foi a conquista do novo mundo”,

23 O termo Tapuia é uma designação dada pelos povos Tupis às demais tribos de outras etnias tais como: aimorés, charruas, tremembés, gitacses, canindés, kariris, icós, etc., enfim, a todos “os inimigos falantes de outras línguas”. Estes grupos, localizados mais no interior do Brasil, foram os que mais resistências ofereceram à colonização, principalmente nas províncias do Espírito Santo, Bahia e Minas Gerais. Sobre este assunto, veja-se Dicionário do Brasil Colonial, de Ronaldo Vainfas. 24 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 311. 25 M. Bomfim, O Brasil na América, p. 164.

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afirmando que “Em 1539 vendiam-se em Lisboa, além de africanos, também índios do

Brasil”26.

Alencastro relata a deportação do cacique potiguar Zorobobé, segundo ele

“deportado para Évora”27, no ano de 1609, como punição pelas suas ações como “jagunço

do senhorio” da coroa portuguesa. Estranha esta deportação em se tratando de índios em

um contexto rigorosamente escravocrata.

Essa prática é objeto de estudo de vários historiadores. Assim, Manoel Bonfim fez

referência à venda de índios como uma transação comercial de forma tal que se supõe

estivessem eles sendo utilizados como moedas pelos colonos “O mal ainda se agravou

porque especuladores desalmados trataram de converter os índios em gênero de negócio –

capturando-os para vendê-los como escravos”28. Se a “guerra justa” teve o apoio inconteste

dos colonos, o mesmo não se pode dizer do clero, apesar de alguns setores da instituição

jesuítica ter apoiado os colonos neste tipo de negócio, como bem o demonstra Emília

Viotti:

Um contemporâneo de Vieira, Jorge Benci, S.J., numa pregação feita na

Bahia, aconselhava aos senhores que dessem aos escravos um tratamento

cristão, mas justificava o cativeiro como fruto do pecado original. Um

capuchinho italiano, o padre José Bolonha, no Tribunal da Reconciliação

recusava-se absolver penitentes sem que eles lhe prometessem averiguar

se seus escravos haviam sido tomados em guerra justa ou não29.

O historiador Ronaldo Vainfas fala das escravizações “lícitas” a que foram

submetidos os índios por ordem de Tomé de Souza (1503-1579) - 1º Governador Geral do

26 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 136. 27 L. F. de Alencastro, O trato dos viventes, p. 124-5. 28 M. Bonfim. O Brasil na América, p. 155. 29 E. Viotti da Costa. Da Monarquia à República: momentos decisivos, p. 275.

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Brasil entre 1549 e 1553 - guerras estas autorizadas pelo Regimento de 1548 que

legalizava a “guerra justa” contra os inimigos Tupinambás e seus aliados, os franceses.

Para Paul Virilio a “guera justa” seria como uma ação calcada numa teologia

temerária que, ao sustentar a existência de uma vida post-mortem, faz neste pensamento

uma perigosa arma no jogo político-ideológico.

Luiz Felipe de Alencastro registrou que o Governador da Bahia, Mathias de

Albuquerque (1595-1647), deflagou uma “guerra justa”, cujos objetivos seriam a retomada

da escravidão indígena, os quais eram comercializados na Bahia, Pernambuco “e até para o

Reino [...]”30.

2. Perfectibilidade e Degeneração

Esses conceitos são devidos ao pensador Jean-Jacques Rousseau que os definiu

como um atributo do ser humano que poderia levá-lo à perfeição. Segundo suas palavras,

[...] “a perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural

tinha recebido em potência nunca se podiam se desenvolver por si próprias...”31. O que

quer dizer que o homem era totalmente capaz de perfeição, estando apto então para

solucionar uma série de problemas. Porém, na incapacidade de dar solução a tais

problemas, o homem em questão poderia atingir a “decadência”, a “degeneração natural”.

O conceito de “degeneração natural” foi empregado por Buffon32 primeiramente para

explicar a decadência verificada entre plantas e animais. Através do abade Cornellius De

Pauw33, a “degeneração natural” passou a ser aplicada, também, aos índios americanos como

30 L. F. de Alencastro, O trato dos viventes, p. 192-3. 31 J-J. Rousseau. Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 52. 32 Veja-se mais em Antonello Gerbi, O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900), p. 19. 33 O germânico De Pauw era antijesuíta convicto. Ele publicou na cidade de Berlim em 1768 uma obra denominada Recherches philosophiques sur les Américains intéressants pour servir à l’histoire de l’espèce humaine. Nesta obra ele desacreditava por completo na bondade do homem americano e afirmava que ele era um bruto

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uma condição de seu estado original e a-histórico, uma vez que não possuíam traços

marcantes de uma produção material que pudesse fazer uma história, tal qual fora feita

pelos povos europeus34. Além disso, De Pauw considerava que os índios americanos não

tinham percepção de tempo linear, uma vez que passado e presente fundiam-se dando a

impressão de imobilidade temporal, própria de uma “natureza decaída”.

Cornellius De Pauw afirmava que:

[...] o homem se aperfeiçoa somente na sociedade, que o homem só, em

estado natural, é um bruto incapaz de progresso [...] não é, portanto, nada

por si só; deve aquilo que é à sociedade: o maior metafísico, o maior

filósofo, abandonado durante seis anos na ilha de Fernandez, se tornaria

embrutecido, mudo, imbecil e nada conheceria em toda a natureza35.

Ao considerar o americano um homem degenerado, De Pauw discordava de

Buffon36. Para De Pauw o homem da América não era moderno, portanto, a grande

diferença ao compará-lo ao homem europeu devia-se, isto sim, à degeneração originária do

meio. Ele achava que o americano era pior que os animais já que “possuem menos

sensibilidade, menos humanidade, menos gosto e menos instinto, menos coração e menos

inteligência, numa palavra, menos tudo. São como bebês raquíticos, irreparavelmente

indolentes e incapazes de qualquer progresso mental”37. Esta capacidade degenerativa do

Novo Continente era para De Pauw uma qualidade intrínseca também aos animais. Nesse

ponto, ele concordava com Buffon ao afirmar que na América:

que só se aperfeiçoaria na sociedade, contrariando assim a tese de Rousseau. Dizia que o americano era indolente devido a imperfeição da natureza do Novo Mundo. 34 K. M. Lisboa, A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820), p. 147. 35 C. De Pauw, Recherches philosophiques sur les Américains, apud, Antonello Gerbi, “O novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900)”, p. 56. 36 G. L. Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), naturalista francês autor de L’Histoire naturelle Em “De la dégénération des animaux”, ele não mencionou o homem, disse apenas que a natureza estava em fase de organização no Novo Mundo.

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os insetos, as serpentes, os animais nocivos prosperavam e são maiores,

mais fortes e apavorantes que no Velho Continente. Porém, todos os

quadrúpedes, os poucos que ali se encontram, são menores [...] Até os

grandes répteis murcharam e se abastardaram [...]38 .

A visão que o europeu tinha dos índios brasileiros estava condicionada pelo

conceito de “perfectibilidade moral”. E é por este ângulo que os naturalistas germânicos

Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich von Martius (1794-1868)39 iriam

observar os índios brasileiros, afirmando que:

Lastimamos dizê-lo: a nossa convicção, baseada em alguns anos de

observação dos aborígenes brasileiros, não concorda com a opinião geral

acerca da perfectibilidade da raça vermelha40.

Em Pierre Clastres há um texto meditativo em que a filosofia guarani, no que

concerne à imperfectibilidade do ser humano, revela-se de uma profundidade só

compreensível à luz das recentes descobertas acerca da constituição do ser humano no

campo da genética:

Meu pai! Ñamandu! Tu fazes com que novamente eu levante! [...] Pois

em verdade, eu existo de maneira imperfeita. Ele é de natureza

imperfeita, o meu sangue, ela é de natureza imperfeita, a minha carne, ela

é assustadora, desprovida de toda qualidade. As coisas estando assim

dispostas, a fim de que meu sangue de natureza imperfeita, a fim de que

37 C. De Pauw, op. cit., p. 58. 38 A. Gerbi, O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900), p. 58. 39 Estes naturalistas eram médicos de formação, sendo Spix especialista em zoologia e Martius em botânica. Eles vieram ao Brasil numa expedição bávaro-austríaca em 1817. Spix permaneceu até 1820, publicando posteriormente a Viagem pelo Brasil e Flora brasiliensis, além de ter inventariado 3.381 espécies de animais brasileiros. Martius permaneceu até 1831, conseguiu reunir 6.500 espécies de plantas e deixou um ensaio denominado Como se deve escrever a história do Brasil, para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Martius e Spix deixaram escrito um Glossário das línguas brasilienses, onde catalogaram vocabulários de mais de 50 línguas dos nossos índios. 40 Spix e Martius, apud., K. M. Lisboa, op. cit., p. 163.

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minha carne de natureza imperfeita, se mexam e rejeitem longe deles sua

imperfeição [...]41.

Certamente esta prece ou meditação, mesmo que incognoscível em seu contexto, se

fosse posta à prova no século XVIII, serviria ao menos para confirmar as teses de De

Pauw, Buffon, Spix e Martius.

3. Civilização

Os europeus entendiam civilização como sendo uma capacidade de transformação

que atuava nos indivíduos e em suas produções materiais, podendo operar nos planos

concreto e abstrato. No plano concreto, a civilização atuava no sentido de fazer com que o

indivíduo fosse capaz de produzir segundo o modelo então vigente. Em relação ao índio,

isto implicava torná-lo um produtor sedentário a serviço do senhor, quer fosse este o

Estado, o nobre, o clero, o colono etc. No plano abstrato, a civilização deveria atuar no

sentido da conversão dos valores étnicos dos autóctones em valores europeus.

Conseqüentemente, isto implicava eliminar do índio a selvageria, a bravura, a indolência,

os mitos, os ritos etc., e incutir-lhes a civilização da doçura, do labor, do cristianismo, das

efemérides... Enfim, da submissão total do indivíduo aos interesses mercantis da

metrópole.

Para se referir à falta de civilidade por parte dos índios, o Diretório recorre aos

termos rusticidade, ignorância, barbaridade, ociosidade, nações incultas etc. O padre João

Daniel recomendava que, dependendo das circunstâncias, seria de bom grado afastar-se

dos índios porque além de bárbaros e selvagens “são feras bravas, e como tais se devem

41 P. Clastres, A sociedade contra o estado, p.115.

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acautelar”42, mas contrariando o Diretório ele escreveu que eles eram valentes, animosos e

esforçados.

Sabemos que as culturas inglesa e francesa influenciaram sobremaneira o

pensamento português, e por isso mesmo remetemo-nos a eles na análise dos atos e ações

praticadas no processo civilizador do continente americano. Por considerarem que o

processo civilizatório era condição sine qua non na construção da história da humanidade,

podemos pensar facilmente que a ações civilizatórias agiram no sentido da transformação

de tudo que estivesse relacionado ao meio, incluindo aí o homem. Para tanto, a extinção

daquilo que estivesse obstacularizando o processo linear da civilização, era fato

consumado e plenamente explicado, não importando se o obstáculo a ser removido fosse o

índio.

Mesmo considerando as diferentes formas de perceber a civilização, alguns

europeus viam os índios num plano inferior. Colocando-se a si mesmos num plano

superior, justificavam o predomínio sobre a “raça inferiorizada”, mas passível de civilizar-

se, desde que absorvesse o caldo nutritivo da cultura européia.

Em José Bonifácio, o termo “civilização” traz em si o reflexo de sua formação

jurídica, amparada pela educação científica. Em um elogio que elaborou para a Academia

de Ciências, em homenagem à D. Maria I, datado de 20 de março de 1817, ele trata da

“civilização” sob a ótica jurídica. No seu entender, a educação, a obediência aos preceitos

legislativos e às normas emanadas pelos soberanos era um pré-requisito para atingir a

condição de civilizado, conforme deixou claro no texto a seguir:

Vigor e lei são os factores de tamanhos bens, sciencia e civilização, quem

os promove e acompanha [...] porque as leis são as regras que

encaminhão nossas acções; os preceitos, pelos quaes o homem, esta

42 Pe. J. Daniel, op.cit., p. 384. Vol. 2.

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creatura dotada de razão e vontade, deve dirigir suas nobres faculdades

para sua maior felicidade43.

O padre João Daniel entendia como civilização a possibilidade da transformação

dos modus operandi e vivendi dos povos através de um denominador de comunicação

comum entre eles: a língua. Ao falar das diversidades lingüísticas dos índios da Amazônia,

ele questionava a eficácia da Língua Geral como mediadora na comunicação entre os

índios e os colonizadores. Segundo ele, das várias nações lingüísticas nem todas se

entendiam através da Língua Geral e, portanto, a Língua Portuguesa é que deveria cumprir

este papel, pois:

[...] bastaria se essa língua fosse geral a todas aquelas nações, mas como

para eles é a língua antiga tão estranha como a mesma portuguesa, melhor

lhes convém aprender a língua portuguesa, que a geral; porque com a

portuguesa eles se fazem hábeis para tratar com os brancos, e com a geral

só podem comunicar com os índios antigos nas missões, que são só os

que a sabem44.

Com este argumento, ele se volta então para a questão da civilização tendo a língua

como instrumento mediador:

Mas enfim, se o que se pretende nos índios é civilizá-los, e faze-los gente,

este fim só, ou mais depressa, e com mais facilidade se consegue com a

língua portuguesa, do que com a linguagem dos índios45.

O que ele chama de “fazer gente” pode ser traduzido pela capacidade de educar e

transformar o ser através da leitura e da escrita, passando pela escola, pois ele afirma que:

43 O. T. de Sousa, op. cit., pp. 65-6. 44 Pe. J. Daniel, op. cit., p. 335. Vol 2. 45 Idem., p. 335.Vol.2.

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[...] não tem outro meio para se fazerem gente, senão as escolas, em que

com as letras aprendam a tratar com gente, e se façam homens.[...] porque

com o estudo aprendem as letras, com a comunicação o trato, com o

ensino os costumes, a cultura, a urbanidade e polícia.[...] Devem pois

introduzir nas missões dos índios as escolas de ler, e escrever como meio

único, e mais proporcionado de os civilizar [...] 46.

Para José Bonifácio, a civilização era multiforme, e os seus métodos deveriam ser então

adaptados conforme as circunstâncias contextuais. Para civilizar os índios do Mato Grosso, ele

propôs “[...] tentar o novo sistema de civilização pela índole das tribos, não cortadas pelo ferro de

conquistadores bárbaros e cruéis”47, convertendo-os de caçadores a pastores e, finalmente,

transformando-os em cultivadores. Ele questionava o processo civilizatório europeu que tentou

atrair os índios “pelo ferro, pela astúcia e pela imoralidade” enquanto os próprios europeus não

estavam ainda cultos e civilizados.

No texto “Avulsos”, podemos perceber os parâmetros de civilização que ele gostaria

que fossem utilizados. Ele cita os Estados Unidos como nação de modelo civilizacional para o

Brasil, porque eles tinham:

[...] um alfabeto próprio, e uma versão impressa do Novo

Testamento. Tem um governo representativo com duas câmaras,

divisão regular de seu território, tribunais de diferentes graus,

instituição do júri, impostos moderados, força pública organizada,

enfim, um sistema completo de civilização. Que lição para o

Brasil!!!48.

46 Pe. J. Daniel, op. cit., p. 337, Vol.2. 47 J. B. de Andrada e Silva, op. cit., p. 125. 48 Ibid., pp. 148-9.

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Para Pierre Clastres, o termo civilização aplicado à América Latina entrou no

vocabulário europeu em oposição à selvageria dos autóctones, e que, ao longo do tempo,

acabou por cristalizar na tradição sócio-antropológica. Assim, este autor expõe os axiomas

de que se serviram os europeus para fundamentar os preconceitos que aplicaram contra as

sociedades indígenas, pois “[...] o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se

desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo

categórico: é necessário trabalhar”49.

Porém, pelo segundo axioma as sociedades indígenas estavam condenadas, uma vez

que as suas economias estavam baseadas na abundância da caça, coleta e pesca, o que não

exigiam o trabalho extenuante a que estavam acostumados os europeus; pelo primeiro

axioma, a condenação seria maior ainda porque em sendo sociedades segmentarias não

haviam desenvolvido, ainda, a instituição monopolista do poder, isto é, o Estado.

Finalmente, veremos o conceito de civilização pela ótica antropológica de Marshall

Sahlins, para o qual a civilização não seria a culminância dos avanços progressivos pelos

quais haviam passado as sociedades tribais, mas sim “um avanço em organização” de um

estado de qualidade na sua produção cultural. Para este autor, a diferença mais premente

entre uma sociedade tribal e outra civilizada repousa nos conceitos de Guerra e Paz, pois

em suas palavras a:

[...] civilização é uma sociedade especialmente constituída para manter ‘a

lei e a ordem’; complexidade social e a riqueza cultural da civilização

dependem de garantias institucionais da Paz. Na ausência desses recursos

e garantias institucionais, as sociedades tribais vivem em uma condição

de Guerra, e a Guerra limita a escala, a complexidade e todas as direções

da riqueza de sua cultura, e é responsável por alguns de seus costumes

mais ‘curiosos’50.

49 P. Clastres, op. cit., p. 135. 50 M. Sahlins, Sociedades tribais, p. 14.

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A Guerra de que trata Sahlins é um estado em que a predisposição à luta é uma

constante intergrupos, mesmo que a Paz reine em absoluto intragrupo. Dessa forma,

Sahlins admite o Estado como o organismo diferenciado no processo civilizatório que, por

não estar presente no seio das sociedades tribais, faz diferenciar as sociedades entre civilização

(estatal) e primitivismo (tribal).

Segundo Sahlins, outros parâmetros utilizados para diferenciar o civilizado do primitivo

não se sustentariam, com por exemplo a escrita e a urbanização porque a antropologia já

comprovou a existência de sociedades altamente sofisticadas, a despeito de serem ágrafas

(quéchuas e aimáras no Peru); por outro lado, comprovou-se também a existência e sociedades

letradas sem o respectivo desenvolvimento urbanístico (como os nômades do deserto do Sahara).

Em suma, o Estado é essencial para a definição de civilização, pois somente através dele

pode-se obter a garantia da Paz, já que ele é o detentor do monopólio da Guerra.

Por tudo que acabamos de expor, o termo “civilização”, neste trabalho, passará a

designar todas as ações formais ou não, que tenham como objetivo converter o índio a satisfazer

os interesses do colonizador.

4. Humanidade

Para o europeu, o termo “humanidade” estava necessariamente ligado ao conceito de

“civilização”, a tal ponto que Martius afirmava somente ser possível atingir a “humanidade”

através da “civilização”. Entretanto, é necessário lembrar que o ser humano era, antes de tudo,

ser europeu, pertencente à etnia caucásica e que se considerava superior aos demais povos.

Historicamente, a questão humanitária foi discutida, tendo como base os conceitos de

“raça”, então em debate pela intelectualidade européia. Esses debates realizavam-se em torno

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da “monogenia” defendida pela Bíblia e da “poligenia” defendida por alguns naturalistas, como

Buffon e Lineu51.

Enquanto isso, os germânicos Emanuel Kant (1724-1804) e Johann Friedrich

Blumenbach (1752-1840) fugiram aos estereótipos linneanos. Em Kant foi a tonalidade da

pele “branca, amarela, negra e vermelha”52, que serviam de parâmetros definidores, aliados

ao espaço geográfico e clima.

Blumenbach, diferentemente de Kant, usou como parâmetros seus conhecimentos

de medicina, uma vez que ele era considerado celebridade em anatomia humana

comparada. Os tipos sugeridos por Blumenbach eram caucásicos, mongólicos, etiópicos,

americanos e malaios, sendo estes dois de caráter transitório e os dois primeiros

degenerados. E obviamente que, em sendo degenerados, estavam condenados a

permanecerem no estágio em que se encontravam, pois a degeneração comportava

obstáculos ao seu desenvolvimento. Restou estável apenas o primeiro, obviamente aquele

em que se enquadrava o europeu. O interessante é que ao não aceitar o homo ferrus e

monstruosus de Lineu e tampouco fixando seus tipos, Blumenbach iria abrir caminho para

a construção da uma teoria que comportasse um processo evolutivo.

No que se refere à cor da pele dos índios, o autor que melhor trabalhou o assunto

foi padre João Daniel que em suas observações in loco junto às comunidades amazônicas

teve a oportunidade de verificar as diferentes tonalidades de pele, contrariando assim os

preconceitos europeus quanto aos índios sul-americanos. Segundo ele os índios:

51 Carl von Linné (1707-1778), naturalista suíço, autor de um sistema botânico de classificação de plantas em 24 classes cuja nomenclatura binomial divide-se em gênero e espécie. Enquanto Buffon defendia a tese de que o fator preponderante na determinação racial era a coloração epidérmica e o clima, Lineu dividia o homo sapiens em subgrupos: ferrus (selvagem), americanus, europeus, asiáticos, afer (negro) e monstruosos (neste grupo encontravam-se os patagônios, canadenses e chineses). 52 K. M. Lisboa, A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820), p. 139.

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Só na cor é que mais se distinguem, e diferençam: não é de todo branca,

falando em geral, e no ais comum; porque há algumas nações tão brancas,

como os brancos, mas no mais comum não são como os europeus, nem

azevichados, ou como cafres, nem tão pardos, côo os canarins da Índia.

São avermelhados, ou entre brancos e vermelhos, mas um vermelho

escuro, baço, e tisnado do sol, bem como os timorés, que em tudo são

vivo retrato dos tapuias, e como eles chamuscados pelo monarca das

luzes, que a uns, e outros se avizinha quase igualmente: porque não

obstante ser o sol planeta tão claro, os faz escuros53.

Mesmo não sendo considerado um homem das ciências de sua época, João Daniel

apresentou argumentos mais elaborados que os dos cientistas renomados do mesmo

período. Ele se perguntava: “qual será a razão porque os tapuias são vermelhos estando

debaixo do equinocial onde os ardores do sol são mais veementes, e os cafres da África são

pretos, azevichados, com distarem mais da linha e serem mais vizinhos ao pólo?”54.

A resposta de João Daniel era calcada na lógica geográfica:

Supondo como cousa certa que tanto uma como a outra cor, preta e

vermelha, são efeitos dos calores do sol, como bem se prova das nações

mais vizinhas aos pólos, onde predomina muito mais o frio que o calor,

as quais são muito mais brancas, e claras, e quanto mais chegadas aos

pólos e terras mais frias, tanto mais é a gente clara. E no mesmo rio

Amazonas há nações que por viverem mais ordinariamente em matos, e

à sombra das árvores, são tão brancas, como os mais brancos europeus; o

que bem indica que o serem comumente avermelhados e baços são

efeitos do sol ardente, como também na áfrica o serem negros grande

parte de seus íncolas, principalmente em toda a cafraria55.

53 Pe. J. Daniel, op. cit., p. 264. 54 Ibid., p. 264. 55 Ibid., p. 264-5.

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63

Estudando um crânio de um índio Botocudo, Blumembach concluiu que o mesmo

se encontrava em um estágio intermediário entre o Orangotango56 e o Homem. Assim

sendo, a humanidade foi cientificamente negada aos índios, corroborando, portanto, com as

teorias filosófico-naturalistas da época.

Do exposto no presente Capítulo, podemos perceber o quanto a ciência foi usada

para justificar o status quo do homem europeu, enquanto discriminava os demais povos.

Maria Luiza Tucci Carneiro descreveu muito bem a forma utilizada pelos colonizadores

para imporem-se ao colonizado:

[...] dessa forma passou a existir, de um lado [...] os pertencentes a uma

raça pura, superior e inteligente, e, de outro [...] os párias, membros de

uma raça inferior. Esses signos compõem a ordem simbólica estipulada

pelo grupo dominante, que, para manter a sua posição privilegiada,

organiza toda a estrutura legal e social, manipulando leis e convenções,

além de controlar os meios de propaganda e comunicação57.

56 O termo vem do malaio Orang-outans, designativo de homens da floresta e também, de uma espécie antropóide arborícola muito comum em Sumatra e em Bornéu. 57 M. L. Tucci Carneiro, Preconceito racial: Portugal e Brasil-Colônia, p. 19.

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CAPÍTULO III

LEGISLAÇÕES REFERENTES ÀS RELAÇÕES ENTRE CIVILIZADOS E SELVAGENS

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65

No presente capítulo, trataremos das legislações utilizadas como forma de

domínio metropolitano sobre os colonizadores, em especial sobre as comunidades

autóctones. Foi justamente tentando preencher o vazio deixado por essas legislações que

José Bonifácio elaborou os seus “Apontamentos...”, redigidos 65 anos após o

surgimento do Diretório (1758) e 15 anos após a outorga da Carta Régia (1808-1831),

que reintroduziu a Guerra Justa.

Serão abordados também, as questões e os aspectos referentes aos documentos

oficiais que, ao longo da história do contato entre os colonizadores e os índios, serviram

para regulamentar as relações entre culturas tão distintas. Esse encontro não poderia

produzir interação de igualdade, na medida que envolvia Ele, o colonizador, perante o

Outro, o colonizado, negando o poder político às sociedades indígenas quer pela falta,

por serem consideradas sociedades sem organização, ou seja, anárquicas; quer pelo

excesso, por serem consideradas sociedades com extrema organização, vale dizer,

Page 67: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

66

tirânicas. Por esse prisma, negou-se ao outro a existência como ser, simplesmente por

desconhecer uma instituição exclusivamente sua, a existência do órgão de poder.

Tudo o que existe no outro pode deixar de ser pensável se for aniquilado, assim

que for percebido, ou seja, quando diante de algo que não se pode resolver, aniquila-se

de imediato para que não crie problemas futuros. Dessa forma, optamos por encaminhar

os fatos exóticos por caminhos que levem aos parâmetros culturais de nosso grupo, para

com isso demonstrar o quanto é inexeqüível a exoticidade do outro e, por conseguinte, a

própria existência do outro perante a nossa cultura. É dessa forma que o outro é negado,

o que não quer dizer que ele não tenha existido; pelo contrário, a sua própria negação é

a condição de sua existência. O que se lhe nega é a possibilidade de torná-lo um de nós,

um semelhante – da semelhança enquanto ser – pois chegando ao extremo de lhes negar

a humanidade, posto que, em vários momentos, só foram reconhecidos como meros

animais1.

Para Pierre Clastres, a sociedade clássica ocidental não concebe a possibilidade

de pensar uma sociedade que não seja mediatizada pelos valores que norteiam suas

percepções quanto ao controle exercido pela submissão política. Assim, o etnocentrismo

ocidental torna-se o instrumento pelo qual o ocidental nega ao outro os valores que lhes

parecem estranhos, perigosos, diabólicos, heréticos etc.

De um lado o europeu, senhor de si e portador de uma tecnologia2 destruidora à

base “[...] de cavalos, soldados, arcabuzes e canhões”3; do outro, a máquina de guerra

dos habitantes de um mundo ainda selvagem, portador de instrumentos que, se também

1 Vejam-se De Pauw, Buffon, Spix e Martius etc. 2 Usamos o termo tecnologia ao invés de técnica porque esta, na definição de P. Clastres, refere-se ao [...] conjunto de processos de que se munem os homens [...] para garantir um domínio do meio [...] conforme as suas necessidades. Assim entendido, o colonizado sempre esteve cercado de refinadíssimas técnicas para extrair do meio as necessidades básicas. Mas as apuradas e diversificadas técnicas indígenas não puderam fazer frente às tecnologias deletéreas dos europeus; instrumentos por instrumentos, as destes foram capazes de sobrepujar todas as técnicas indígenas – arco e flecha x arma de fogo, por exemplo. 3 A. Bosi, Dialética da colonização, p. 72.

Page 68: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

67

poderiam matar: arcos, flechas, tacapes, bordunas, zarabatanas etc, não tinham o apoio

de uma tecnologia que pudesse reproduzir dromologicamente uma grande mortalidade.

Esta diferença tecnológica quando posta em contato colocou de frente dois modus

operandi que em momento algum se complementariam, antes , puseram o outro – o

autóctone - face ao aniquilamento caso tentasse resistir às intenções deles – os

europeus.

Estas duas diferentes culturas: do colonizador e do colonizado, se mostraram tão

díspares que de imediato a primeira, etnocentricamente, se viu no direito de resgatar a

segunda do seu estágio de barbaridade, e por isto mesmo credenciou a si mesma como

um elemento superior na hierarquia colonizadora. Para regulamentar esta nova posição

hierárquica, foi necessário mostrar ao outro algumas normas que deveriam permear o

relacionamento entre brancos e índios. Daí surgirem da metrópole uma série de

documentos que estão sendo comentados neste capítulo. E, somente a partir da análise

histórica de alguns destes documentos, é que podemos entender o pensamento de José

Bonifácio de Andrada e Silva em relação aos índios do Brasil.

Segundo o estudo realizado por Mércio Gomes4, as leis que tiveram por objetivo

regulamentar as relações do colonizador com os habitantes do Novo Mundo sofreram

várias alterações ao longo do histórico da colonização. Num período que se estende de

1548 a 1822 estas relações foram objetos de Leis, Alvarás, Provisões, Cartas Régias,

Resoluções, Diretório, em geral atenderam aos interesses da Coroa, da Igreja ou das

empresas colonizadoras. Aos habitantes do Novo Mundo restavam apenas o

cumprimento irrestrito das letras frias desses documentos que legislaram sempre contra

os interesses dos índios. Dentre esses documentos, alguns artigos serão destacados, em

ordem cronológica, o que não esgota as documentações referentes à temática indígena.

4 M. P. Gomes, Os índios e o Brasil, p. 69.

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Em 15 de dezembro de 1548, apareceu o primeiro documento que estabelecia as

relações entre branco e índio, denominado Regimento de Tomé de Souza, que

“Recomenda paz com os índios, [...] guerra aos inimigos”5. Este documento já deixa

bem clara a posição que uma das partes assume em relação àqueles que então se

interpunham nos caminhos então traçados pelos interesses do colonizador.

A terra que então se abria aos encantos e interesses comerciais do Velho Mundo

oferecia, também, obstáculos que deveriam ser transpostos pela persuasão - daí a

recomendação à paz – ou pela agressão através da guerra na qual os obstáculos

deveriam ser eliminados para dar curso ao fim que propunha a ideologia mercantilista. E

foi assim que procederam os primeiros governantes que aportaram nos costados do

Brasil.

Tomé de Souza, a quem o Regimento ora em análise leva o nome, foi o primeiro

a introduzir a escravidão no Brasil, utilizando para isso da mão-de-obra e comércio

africanos, o que contribuiu para a utilização da mão-de-obra autóctone. Quanto à guerra

contra os inimigos, foi ela um dos meios que o governador encontrou para demonstrar

aos gentios o valor guerreiro do colonizador português e, com isso, deixar bem claro o

quanto a hierarquia deveria ser levada em consideração nas relações entre os brancos e

os índios. Em uma carta do padre Manuel da Nóbrega6, endereçada ao Governador

Tomé de Souza, encontra-se a seguinte afirmação:

Estes pecados tem a sua raiz e princípio no ódio geral que os

cristãos têm ao gentio [...]. Louvam e apoiam ao gentio o

comerem-se uns aos outros, e já se achou cristão a mastigar

carne humana para darem disto exemplo ao gentio. Outros

matam em terreiro à maneira dos gentios, tomando nomes, e

5 M. P. Gomes, Os índios e o Brasil, p. 69. 6 O padre Manoel da Nóbrega dizia que os tupis que eram “gente”, e chamava os tupinambás de “gentilidade”, mas negava-lhes o estatuto de igualdade sóciopolítica face ao branco, só aceitando-os como ser, para atender aos propósitos da catequização e aos interesses mercantilistas.

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não somente homens baixos e mamelucos, mas o mesmo

capitão, às vezes. Ó cruel costume! Ó desumana abominação! Ó

cristãos tão cegos!”7.

Em 20 de março de 1570, tem-se o conhecimento de uma Lei que autorizava a

“guerra justa” contra os inimigos Aimorés. Esta mesma Lei também proibia “[...] o

cativeiro dos índios”8, que neste caso supomos que fossem aqueles que não aceitassem

de bom grado a sujeição às determinações dos empreendimentos coloniais. Esta é a

primeira Lei em que aparece a expressão “guerra justa”, que foi objeto de análise

conceitual no Segundo Capítulo.

Aparentemente, esta guerra foi usada não só como artifício para o estriamento do

espaço físico-geográfico, mas também para a aquisição do objeto de produção em forma

de recursos humanos para a empresa mercantil. A isso, adiciona-se, ainda, a conquista

de um possível e numeroso rebanho para o admirável mundo novo cristão, de um Novo

Mundo pagão. E é do padre Manuel da Nóbrega que vem a confirmação dessa dupla

conquista, escrita em uma carta enviada ao Governador Tomé de Souza:

[...] pequeno nem grande morre sem ser de nós examinando se

deve ser baptizado, e asy N. Senhor vay ganhando gente para

povoar sua gloria e a terra se vai pondo em subjeição de Deus e

do Governador [...]9 .

Esta conquista, que tanto podia expressar uma missão militar quanto religiosa,

envolvia uma série de manobras em que é difícil desvincular os interesses do Estado dos

da Igreja. Este fenômeno é bem visível quando se analisam os combates empreendidos

7 M. Bonfim, O Brasil na América, p.157. 8 M. P. Gomes, op.cit., p. 70. 9 L. F. B. Neves, O combate dos soldados de cristo na terra dos papagaios, p. 74.

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pelas forças coloniais portuguesas – envolvendo a Companhia de Jesus, os Soldados e

as Milícias de colonos – contra os invasores franceses tidos como hereges (huguenotes)

aliados aos índios inimigos (pagãos). É o padre Manuel da Nóbrega quem escreve

afirmando o caráter duplo dessa conquista:

[...] porque terão os homens escravos legítimos, tomados em

guerra justa10 e terão serviço e vassalagem e a terra se povoará e

Nosso senhor ganhará muitas almas e S.A . terá muita renda

nesta terra [...]11.

Manuel Bonfim diz que na guerra justa “o soldo das tropas era pago em índios

escravizados [...]”12.

Em 24 de fevereiro de 1587 surgiu outra lei que estabelecia quais índios

poderiam ou não ser objeto de cativeiro, desde que se tivesse o conhecimento da

Companhia de Jesus. Esta lei deixava bem clara a importância de que se revestia a

Companhia no que diz respeito ao controle e acesso sobre a mão-de-obra útil aos

empreendimentos coloniais.

No entender de Alencastro, especificamente no que diz respeito ao acesso à

mão-de-obra indígena, três impedimentos deveriam ser levados em consideração: o

primeiro diz respeito ao transporte litorâneo na costa brasileira, em sentido norte/sul,

uma vez que a frota mercantil atuava para atender aos interesses comerciais em sentido

leste/oeste (metrópole-colônia), o segundo se referia à política metropolitana que havia

proibido a navegação intercapitanias entre 1549 e 1766; e, por fim, o fato da não existir

10 Uma excelente e prática interpretação do conceito de “guerra justa” aplicado ao processo colonial foi dado pela pesquisadora Rita Heloísa de Almeida, na sua obra O diretório dos índios, p. 77, para a qual ela “[...] é uma intervenção com uso da violência, a fim de atender às necessidades econômicas da ordem do povoamento e do cultivo de terrenos inexplorados”. 11 G. Azanha & V. M. Valadão, Os povos indígenas do Brasil: da colônia aos nossos dias, p. 19. 12 M. Bonfim, op.cit., p. 133. Veja-se também sobre a “guerra justa” a excelente obra de Alfredo Bosi, A dialética da colonização, p. 142.

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um comércio que privilegiasse a dulocracia indígena, exceto no que se refere ao

bandeirantismo que enfrentou abertamente os interesses da Companhia de Jesus no

processo de escravização. Sobre tais fatos Alencastro informa que:

As praças do Norte e Angola importam de São Paulo cal,

farinha de mandioca e de trigo, milho, feijão, carnes salgadas,

toucinho, lingüiça, marmelada, tecidos rústicos e gibões de

algodão à prova de flechas. Tirante a cal marinha cavada dos

sambaquis do litoral, os produtos desciam da serra do Mar nas

costas dos índios. Em sentido inverso, subiam – sempre

carregados pelos índios – os importados: sal, tecidos,

especiarias, vinho, ferramentas, pólvora. Toda essa mercancia,

toda essa carga, intensificava o uso de cativos no transporte, nos

pousos, roças e trigais paulistas, onde a média de escravos

indígenas por proprietário atinge seus maiores índices

históricos: 3,6 nos anos 1640 e 37,9 nos anos 1650. Números

bastante altos, mesmo quando comparados aos das áreas

irrigadas pelo tráfico negreiro.[...] Não era só nas roças de trigo,

mandioca e milho que labutavam os índios. Transporte do

sertão, equipagem de remadores nos rios e na orla marítima,

pesca e caça para ração de tropa, criação de gado nas fazendas

jesuíticas e particulares, corte e preparo de madeiras, serviço em

olarias e teares, alvenaria nos fortins, paliçadas, casas, barracos,

abertura de caminhos fabrico de barcos, estiva e trabalho de

embarcações, tudo isso e mais alguma coisa cabia em geral aos

índios públicos. Na capitania vicentina 2800 casais indígenas –

de 11 mil a 124 mil indivíduos – estavam concentrados nos

aldeamentos de São Miguel, Guarulhos, Pinheiros e Barueri no

final dos anos 1640. [...] São Paulo, Santana de Parnaíba e

arredores possuíam índios públicos e particulares que podiam

ser alugados para transportar carga e gente serra acima13.

13 L.F. de Alencastro, O trato dos viventes, pp. 195-6.

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72

Conforme Alencastro, além dos franciscanos [...] beneditinos e carmelitas do

Brasil, bispos do Paraguai, capuchinhos do Congo, dominicanos da China, padres da

Índia também malhavam a cobiça dos jesuítas”14.

No entender do pesquisador Mércio Gomes, de todas as legislações instituídas

até o Diretório de 1557, “apenas entre 1605, 1611, 1680 e 1684 é que a legislação se

declarou contra qualquer forma e justificativa de escravidão”15.

Manoel Bonfim também fez uma observação quanto à utilização do índio como

mão-de-obra escrava:

[...] Os jesuítas acusaram os colonos pela escravização e os

martírios que impunham aos pobres índios. [...]. Os colonos

apossavam-se dos índios, e não deixavam aos jesuítas

possibilidades de conquistarem todas aquelas almas [...].

Piores que os simples colonos eram, muitas vezes, os clérigos

de algumas ordens. [...] O índio é a possibilidade de explorar a

terra e de haver riqueza; e desde que a moral do momento

admite a escravidão, escravizaram-no, para tirar-lhe o trabalho

[...] converte o mísero cativo em besta de trabalho, ilude os

regimentos [...] provoca dissensões e guerras entre as tribos,

porque daí tirará escravos; [...]16.

Enquanto em Manoel Bonfim vemos acusações contra o clero no que se refere à

escravidão dos índios, Nilson Lage explica o motivo do processo escravista, alegando

que o embate entre colonos e missionários tinha como justificativa as mudanças

advindas das leis que regulamentavam as relações de trabalho colonial, que ora proibia,

ora facilitava a escravidão indígena. Segundo ele:

14 L.F. de Alencastro, O trato dos viventes, p. 207. 15 M. P. Gomes, op. cit., p. 73. 16 M. Bonfim, op. cit., pp. 103-7.

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Ao enfrentar os missionários, os colonos lutavam pela

sobrevivência. [...] se fosse realmente cumprido o Alvará de 15

de maio de 1624, que proibia a escravidão negra no Maranhão e

Grão-Pará, eles estariam condenados à desaparição. [...].

Ademais, na hipótese de uma colonização com criaturas

libertas, de que maneira competir com outros empreendimentos

coloniais baseados no escravismo?17.

Em Gilberto Azanha encontramos uma informação parecida “Os Tupinikín

começaram assim a alterar o destino de seus prisioneiros: ao invés de comê-los,

entregavam-nos aos portugueses como escravos em troca de mercadorias européias”.18

Essas guerras fomentadas ora pelos colonos, ora pelos missionários, serviam

acima de tudo, para a obtenção de mão-de-obra escrava, que nem sempre foi utilizada

com exclusividade na terra brasílis. Houve caso em que os prisioneiros foram enviados

à Europa, conforme relato de Gilberto Azanha, no ano de [...] 1512, por exemplo, o

navio Bretoa capitaneado por Cristóvão Pires, relaciona, entre suas mercadorias para

levar para Lisboa, 35 índios escravos”19. A confirmar esta informação, José Bonifácio

dá conta da venda de índios em Portugal 27 anos após, o que nos faz entender que este

comércio foi constante: “Em 1539, venderam-se em Lisboa, além de africanos, também

índios do Brasil”20. E mais: “A escravidão pessoal ou servidão compulsória eram mais

regra que exceção [...]”21.

Nos “Apontamentos...”, José Bonifácio deixa bem clara esta situação afirmando

que além de D. Sebastião, [...] conheceram os Reis de Portugal todas as injustiças e

17 N. Lage, “A fé e os índios”, in: Os grandes enigmas de nossa história. Rio de Janeiro, Otto Pierre, pp. 219-20. 18 G. Azanha & V. M. Valadão, Senhores destas terras: os povos indígenas do Brasil da colônia aos nossos dias, p. 14. 19 Ibid., p.45. 20 J. B. de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil, p. 136. 21 Ibid., pp. 52-3.

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horrores, que com eles praticaram os colonos do Brasil, matando-os, cativando-os até

para mercados estrangeiros [...]”22.

No que diz respeito ao direito ou não à escravidão, o professor de Direito da

Universidade de Salamanca, Francisco de Vitória (1483-1546)23 chegou a não

reconhecer: “no ocupante, salvo casos excepcionais, não só o direito de escravizar o

selvagem, bem como no Papa o direito de outorgar, de modo absoluto, soberania a

qualquer estado” 24.

O padre Vieira, em seus discursos aos colonos do Maranhão, dizia que havia três

tipos de índios, dos quais dois eram escravos: ‘os da cidade e os das aldeias do rei’25,

restando em liberdade apenas àqueles que viviam nos sertões, sujeitos às entradas e

bandeiras.

Para Novais, a escravidão indígena foi um grande negócio interno na colônia

enquanto a escravidão negra foi o negócio da metrópole26.

As teses de Alencastro e as de Novais, se consideradas corretas, trariam então

sérias conseqüências para os “Apontamentos...” de José Bonifácio, pois o status que ele

pretendia fosse dado aos índios, bem como o seu projeto de abolição da escravatura

negra, não encontrariam o apoio da classe dominante de seu tempo.

Num trabalho bem aprofundado de Heloísa de Almeida, a respeito do Diretório

dos Índios, todas essas informações que dizem respeito à escravidão são confirmadas e,

a elas, são adicionadas outras que corroboram tudo que foi escrito a respeito da situação

22 Ibid., de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil, p. 98. 23 Esse jurista espanhol foi professor em Paris, Valladolid e Salamanca. Ficou conhecido pela defesa da idéia da sociabilidade humana, da liberdade das idéias, da liberdade dos produtos e da liberdade circulação dos homens. Demonstrou também, que os índios eram os verdadeiros donos da América. 24 O. Rodrigo, Os selvagens americanos perante o direito, p. 17. Sobre este assunto veja-se também A. Bosi, A dialética da colonização, p. 153. 25 Sobre esta discussão veja-se, ainda, A. Bosi , op. cit., p. 139. 26 Sobre esse tema leia F. Novaes, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial 1777-1808, p. 105.

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dos índios: “[...] a condição dos índios no período de prosperidade das missões, só se

diferenciava da escravidão efetiva pelo fato de não estarem à venda”27. E acrescenta:

A mão-de-obra com que contava era, quase unicamente a do

indígena sob a forma de escravo ou não era ele o caçador, o

remador, o serviçal de casa, o coletor de drogas,28 o

identificador da variedade de flora e fauna, o operário dos

estaleiros, o lavrador e o soldado das unidades militares29.

O índio foi a força-tarefa fundamental na solução dos problemas da produção

colonial: ele foi as pernas dos colonizadores, na medida em que delas se serviram para o

deslocamento em todos os quadrantes do continente, em busca de todo de riquezas que

alimentavam os seus sonhos; ele foi os braços dos colonizadores, na medida em que

deles se serviram para os serviços caseiros, a coleta de drogas, a caça das mais variadas

espécies de nossa fauna, a coleta de nossa flora e a força que impelia os barcos no

tráfico de nossas riquezas; ele foi os olhos dos colonizadores, na medida em que deles

se serviram para identificar as nossas variedades dos três reinos da natureza; ele foi a

besta de carga do colonizador, na medida em que dela se serviram para exaurir as nossas

riquezas; ele foi o cérebro do colonizador, na medida em que dele se serviram para a

decodificação de todos os traços culturais que pudessem ser úteis às ganâncias da

metrópole européia, e finalmente, ele foi o ventre em que o colonizador gerou a antítese

de sua própria existência.

Segundo Heloísa de Almeida, em uma Carta do Governador do Grão-Pará,

Francisco Xavier de Mendonça Furtado, datada do ano de 1754, encontra-se o registro

27 R. Heloísa de Almeida, O Diretório dos Índios, p. 172. 28 Por drogas entendem-se os produtos de que necessitavam os europeus para a comercialização na Europa. As mais requisitadas das colônias eram cravo, canela, castanha-do-pará, fumo, salsaparrilha, urucum, guaraná, anil, abacaxis, maracujás, tabaco, essência de perfumes, entre outras. 29 R. Heloísa de Almeida, op.cit., p. 242.

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da escravidão a que os índios estavam sujeitos; índios ‘alforriados’ que ‘vagueavam’

pelos povoados sem permanecerem com qualquer morador [...] e índios mantidos sob o

controle de moradores que não lhes pagavam pelos serviços prestados, nem os

devolviam às suas povoações”30. Além desses, existiam também os índios encarregados

da execução dos serviços gerais, denominados “índios públicos”, designação entre eles

que eram cativos privados, utilizados pela população na prestação de serviços vários.

Segundo a informação de R. Heloísa de Almeida D. Francisco de Souza

Coutinho foi outra autoridade que também relatou o processo escravocrata a que os

índios estavam sujeitos no Grão-Pará, por imposição dos diretores das aldeias, os quais

tentavam evitar:

[...] que os índios se instruíssem e se comunicassem com

moradores brancos, impedia que promovessem suas lavouras,

fizessem expedições ao sertão, ou se dedicassem ao serviço

real, apenas consentindo que servissem ao próprio, segundo

seus interesses, serviço quase sempre retribuído com castigos

físicos, em vez de salários.31.

Conforme Mércio Gomes, em 11 de novembro de 1598, surgiu outra Lei que veio a

revogar a Lei de 1570 que deu aval à “guerra justa”. Contudo, ela permitiu também a guerra e o

cativeiro, desde que expressos em lei, tornando-se assim excessivamente ambígua em seu conteúdo.

Em seguida, veio uma Provisão datada de 05/07/1605, que prescrevia a “Liberdade total aos

índios”32, reconhecendo, no entanto, que, em determinados casos, o cativeiro era aceitável.

30 R. Heloísa de Almeida, O Diretório dos Índios, p. 245. 31 R. Heloísa de Almeida, op.cit., p. 334. 32 Ibid., p. 70.

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Em 10 de setembro de 1611, surge outra Lei revogando todas as normas

anteriores e declarando a liberdade dos gentios33 da terra, exceto aqueles que por

ventura tivessem sido aprisionados em “guerra justa”. Esta lei tratava também

da “escravidão dos cativos e índios comprados ou resgatados que estivessem

condenados à morte”34, bem como estabelecia em 300 o número de casais autóctones nas

aldeias. Esta lei permaneceu até o dia 17 de dezembro de 1653, quando então apareceu

uma Provisão que “criava as Juntas das Missões e permitiu as entradas”35, neste caso

sem a necessária presença de um missionário.

As Missões36 podem ser entendidas de várias formas e denominações, conforme

a localidade a ser estudada. Rita Heloísa define assim uma missão: “[...] ‘povoação’,

‘aldeamento’, ‘posto indígena’, transcorre uma mesma ação que coetaneamente seria

compreendida como sendo uma obra religiosa, uma empresa colonial, um serviço

assistencial”37.

Uma Provisão, de 12 de setembro de 1663, eliminou o poder jesuítico e permitiu

as “entradas” e “repartições”. Entretanto, uma outra Provisão datada de 9 de abril de

1665 concedia aos Jesuítas o direito às “entradas”.

Em primeiro de abril de 1680, entrou em vigor uma lei colonial readmitindo o

cativeiro dos índios e a “guerra justa”. Uma Carta Régia datada de 21 de setembro de

1686 reduziu para 150 o número de casais indígenas que estava previsto em 300 pela

Lei de 1611. Esta Carta também determinou a repartição dos índios entre missionários e

33 Termo geralmente utilizado para designar os autóctones do novo Mundo. Era empregado também para denominar os povos tidos como pagãos ou não cristianizados e os selvagens. 34 R. Heloísa de Almeida, op.cit., p. 71. 35 Termo que designava uma missão militar. Neste caso, as entradas referiam-se às expedições que tinham por objeto a promoção dos descimentos para as aldeias. 36 As missões foram formalizadas como Regimento das Missões por uma Carta Régia de 21 de dezembro de 1686, e perdurou até que entrasse em vigor o “Diretório dos Índios”, por ordem do Marquês de Pombal. 37 R. Heloísa de Almeida, op. cit., p. 45.

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moradores, o que seria futuramente uma fonte de sérios problemas para a administração

das relações envolvendo colonizadores e colonizados.

Em 19 de fevereiro de 1696, surgiu outra Carta Régia tratando de regulamentar

as relações entre escravos negros e índios, relação esta a que José Bonifácio fará

oposição em um texto denominado “Os índios devem gozar dos privilégios da raça

branca”, afirmando que o Brasil deveria incentivar os [...] casamentos entre brancos e

índios, índios e mulatos, mas não negros para cruzar as raças; e acabar com a isolação

das aldeias”38. Entretanto, em outro texto, “Banir a ignorância e antiga barbárie de

costumes”, ele via qualidades nos negros ao dizer que:

O índio não tem essa mobilidade de sensações, e de gestos, nem a

imaginação e atividade de espírito, que têm eminentemente várias

tribos de negros, por isso os índios gostam muito de pretos. Daqui o

aferro aos seus usos, e ao seu habitual desleixo e apatia39.

Finalmente, no texto “Misturemos os negros com as índias”, ele já aceita a

mistura com o negro e, ao propor “Misturemos os negros com as índias, e teremos gente

ativa e robusta – tirará do pai a energia, e da mãe a doçura e bom temperamento”40.

Uma Provisão de 12 de outubro de 1727, proibiu a utilização da Língua Geral

nas aldeias e determinou que se fizesse o uso da Língua Portuguesa. Esta questão

também foi tratada por José Bonifácio, que no texto intitulado “Civilização dos índios e

coisas do Brasil”, diz que se deve “acabar nas aldeias com a língua da terra, e ensinar

aos rapazes o português, [...]”41 . Esta preocupação com a abolição da língua geral está

também no parágrafo 6º do Diretório, no qual se lê:

38 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 128. 39 Ibid., p. 131. 40 Ibid., p. 156. 41 Mais detalhes a respeito podem ser encontrados em Projetos para o Brasil, obra organizada por Miriam Dolhnikoff.

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79

“Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as

nações, que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos

povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável,

que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos

rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrada

a experiência, que ao mesmo passo que se introduz neles o uso

da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica

também o afeto, a veneração , e a obediência ao mesmo

Príncipe. Observando pois todas as nações polidas do mundo

este prudente, e sólido sistema, nesta conquista se praticou tanto

pelo contrário, que só cuidaram os primeiros conquistadores

estabelecer nela o uso da língua, que chamaram geral; invenção

verdadeiramente abominável, e diabólica, para que privados os

índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar,

permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora

se conservavam. Para desterrar este pernicioso abuso, será um

dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas

respectivas povoações o uso da Língua Portuguesa, [...]”42 .

Segundo Ronaldo Vainfas, um dos processos de demonização da diferença

iniciou-se pelos jesuítas que dela se serviram através de “[...] palavras, imagens e

práticas associadas [...] a um conceito específico: idolatria”43, que como tal foi passível

de julgamentos extremados perante os tribunais inquisitoriais:

Autoridades seculares, eclesiásticos e missionários, sobretudo

no México e no Peru não tardaram em ver a força das idolatrias

na persistência das religiosidades indígenas. Trataram-na como

crime passível de pena secular, inclusive a morte, delegando-se

aos bispos poderes inquisitoriais para julgar os idólatras à

semelhança de hereges44.

42 R. Heloísa de Almeida, O Diretório dos índios, p. 3 (do Anexo). 43 R. Vainfas, A heresia dos índios, p. 25. 44 Ibid., p. 27

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80

Em 3 de maio de 1757, surgiu o Alvará ou Diretório - um documento criado por

iniciativa das observações do Governador do Grão-Pará, o irmão do Marquês de

Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que governou de 1751 a 1759 -

composto de 95 artigos, que regulamentavam as relações espírito-temporal dos

missionários e dos índios, bem como estabeleceu as regras de convivência entre a

Metrópole e a Colônia. Destas observações é que a corte Portuguesa emitiu o Alvará em

17 de agosto de 1758, ratificando assim as observações do governador, intitulada

“Diretório, que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão”.45.

Em seus 95 artigos, o Diretório contém algumas determinações que merecem ser

destacadas, e algumas, comentadas:

6º - Seja abolida a Língua Geral.

No que se refere ao uso da língua portuguesa em substituição à língua

denominada geral, nos informa Heloísa de Almeida que, com o uso da língua geral

“diluía-se a conquista, tornando-a porta aberta para a invasão e tentativas de

estabelecimento de poder”46 . Já a obrigatoriedade do uso da Língua Portuguesa atendia

a um aspecto maior ainda, qual seja, o estabelecimento de um controle ideológico sobre

o colonizado que seria utilizado como instrumento de condicionamento do colonizador.

No artigo 15º dos “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do

Império do Brasil”, que José Bonifácio encaminhou à Assembléia Geral Constituinte e

Legislativa do Império do Brasil, esta preocupação com o ensino da língua portuguesa

ainda persistiu “por isso se esmerarão principalmente em ganhar a mocidade com bom

modo e tratamento, instruindo-a na moral de Jesus Cristo, na língua portuguesa [...]”.

7º - Sejam fundadas escolas públicas em todas as povoações.

45 Mais detalhes podem ser encontrados na obra já citada de Heloísa de Almeida, p.152-3. 46 R. Heloísa de Almeida, op. cit., p. 177.

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81

Nessa determinação encontra-se bem clara a divisão sexual dos papéis a serem

desempenhados no processo de aprendizado que se esperava acontecer na colônia, pois

neste artigo a escola masculina47 se identifica com a feminina apenas no que se refere à

leitura cristã, ao ler e ao escrever. O aprendizado do “contar na forma” era assunto

exclusivamente masculino, como eram também assuntos exclusivamente femininos o

fazer rendas e cultura.

10º - Proíbe que os índios sejam chamados de negros48 .

11º - Exige que os índios usem sobrenome e os mesmos apelidos de famílias

portuguesas.

12º - Exige que os índios construam suas casas idênticas às dos brancos.

Neste artigo percebe-se que o colonizador tentou impor ao índio o padrão

urbanístico europeu, razão pela qual rejeitou por completo o formato utilizado pelo

colonizado. E para justificar sua proposta, o artigo 12º diz que:

[...] tem ocorrido muito a indecência, com que se tratam em

suas casas , assistindo diversas famílias em uma só, na qual

vivem como brutos; faltando aquelas Leis de Honestidade, que

se deve à diversidade dos sexos; [...] Cuidarão muito os

diretores em desterrar das povoações este prejudicialíssimo

abuso persuadindo aos índios que fabriquem as casas à

imitação dos brancos [...]49 .

13º - Proíbe que os índios se utilizem do álcool.

47 Ao assumir o governo da Província de São Paulo, o Governador D. Luís António de Souza percebeu que era escasso o número de alfabetizados. Assim, ele determinou que “houvesse na Cidade de São Paulo um mestre de meninos [...]” – conforme nota de M. B. Nizza da Silva, coord, O império luso-brasileiro (1750-1822), p. 446. 48 “Negros da terra” foi uma denominação dada aos índios do Brasil. Sobre este assunto consultar J. M. Monteiro. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. 49 R. Heloísa de Almeida, op. cit., p. 185.

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82

O uso de bebidas alcóolicas como forma de submeter o colonizado era uma

prática corrente utilizada pelos europeus em suas experiências colonizadoras. O

pesquisador norte-americano Frederick Turner, ao abordar a questão da impressão

cultural européia na América, diz o seguinte:

Para pagar o mínimo possível pelas peles, os comerciantes brancos

adotaram o costume generoso de oferecer aos caciques e líderes uma

ou duas tragadas de uma bebida alcoólica. O costume logo se tornou

uma instituição, pois os brancos perceberam os seus efeitos

dissolventes no comportamento dos nativos. Em breve a prática

comum era embebedar completamente os índios logo no início das

negociações para depois comprar todas as suas mercadorias por alguns

goles a mais. Quando afinal superavam os efeitos da bebedeira,

descobriam, ainda tontos com a luz do dia, que nada mais possuíam.

Precisavam então implorar que os comerciantes brancos lhes

adiantassem os suprimentos necessários, a serem pagos mais tarde

com outras peles. Os nativos caíam assim num ciclo cada vez mais

profundo de dependência50.

No caso do Brasil, essa prática de alcoolizar os índios arraigou-se ainda mais

com a implantação do ciclo da cana-de-açúcar e a produção caseira da cachaça, que a

princípio servia como arma de dominação físico-psicológica e “[...] também para o

aniquilamento cultural dos indígenas, alimentando-os e derrubando suas resistências

interiores à exploração”51.

Apesar das desordens que o álcool causava nas tribos, era justamente delas que

se aproveitavam os comerciantes para tirar o máximo de proveito possível nas

transações comerciais com o índio embriagado. Por isso, o artigo 40 do Diretório

determina que os diretores não permitam que os índios troquem seus produtos por

50 F. Turner. O espírito ocidental contra a natureza: mito, história e terras selvagens, p. 263. 51 N. Lage. “A fé e os índios”, in: Grandes enigmas da nossa história, p. 197.

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aguardente que “[...] neste estado é o seminário das maiores iniqüidades, perturbações e

desordens”52.

A despeito da insistência do Diretório nessa proibição - reforçada ainda mais

pelo artigo 41, no que se refere à sua comercialização - pode-se perceber que a

legislação pretendia apenas a regulamentação de tais práticas, uma vez que ela era

considerada “[...] para uso dos mesmos índios que arremam na forma abaixo

declarada”53.

Em uma Carta de D. Francisco de Souza Coutinho, de 1790, encontra-se um

trecho em que ele fala do uso da aguardente e de seus efeitos sobre os índios:

As mais populosas povoações do Estado se achavam com

tabernas de aguardente e arrematadas quase todas pelos mesmos

diretores; em todas as outras onde não haviam tabernas os

diretores negociavam com os índios comprando-lhes os seus

efeitos com aguardente e os negociantes praticavam o mesmo

do que tem resultado não só a ruína das povoações e a pobreza

dos índios, não só as imensas desordens que nas mesmas

povoações sucedem e tem sucedido, mas este grande número de

engenhos e engenhocas de aguardentes único gênero que servia

para comércio com os índios arruinando inteiramente a

importação das fazendas que antes eram da metrópole para o

consumo dos mesmos índios54.

E o mesmo D. Francisco reforça o seu relato afirmando que “a aguardente era

gênero de primeira necessidade, porque era moeda do sertão”55.

52 R. Heloísa de Almeida, O Diretório dos índios, p. 18, (do anexo). 53 Ibid., p. 18, (Anexo, do presente trabalho) 54 D. F.de Souza Coutinho, apud, R. Heloísa de Almeida. O Diretório dos índios, p. 239. 55 R. Heloísa de Almeida, op. cit., p. 240.

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Reconhecendo os desastres que a aguardente produziram e ainda estavam

produzindo no seio das sociedades indígenas, José Bonifácio afirmou, em um de seus

textos, denominado “Banir a ignorância e antiga barbárie de costumes” que:

Para fortalecer a constituição física dos índios introduzir o uso

de carnes, e diminuir a dieta vegetal, e sobretudo livrá-los da

cachaça, que os enfraquece e mata, e em vez dela dar-lhes vinho

de uvas, ou de jabuticaba e outras frutas, bem fermentado, e

generoso; [...]56.

Ainda no mesmo texto, José Bonifácio pede “proibir quanto possível for o

nímio uso da cachaça, que os enfraquece, e faz morrer de hidropsia.”57.

Em outro texto de José Bonifácio, intitulado “Avulsos”, ele volta a falar do

álcool insistindo em “proibir nas aldeias dos índios o venda livre de cachaça, e

introduzir o aluá58, e outras cervejas da terra”59.

Segundo o padre João Daniel, na lista dos produtos de exportação da colônia a

aguardente era destaque ao lado do cacau, do algodão e do arroz. A melhor e mais

completa informação a respeito da importância da aguardente para a pauta de

exportação dos produtos coloniais, que teve início a partir da reconquista de Angola no

ano de 1648, é de Alencastro, e diz que “no rastro da invasão militar, no farnel dos

milicianos brasílicos desembarca uma mercadoria de escambo que conquista as feiras

negreiras da África Central: a cachaça”60. Para esse autor, essa bebida partia das

capitanias do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco sob a denominação de “jeribita”61

56 J. B. de Andrada e Silva, op. cit., p. 130. 57 Ibid., p. 134. 58 Bebida fermentada de farinha de arroz ou de milho torrado, muito comum no Norte do Brasil. 59 J. B. de Andrada e Silva, op .cit., p. 182. 60 L. F. de Alencastro, O trato dos viventes, op. cit., p. 148. 61 Ao longo do tempo a cachaça recebeu várias denominações. Jeribita designou o produto exportado para os portos angolanos, mas na colônia ela era chamada também de meu-consolo, birita, piribita, jurubita, cajebrina, mãe-de-luanda, maçangana, pinga, água-que-passarinho-não-bebe, malofo e centenas de outros mais.

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para concorrer com o comércio de bebidas européias representadas pelos tradicionais

vinhos e aguardentes62.

15º - Proíbe que os índios andem nus.

O padre João Daniel relatou que os índios:

Andam, e vivem à ligeira, e sem cerimônia vestidos só das finas peles

que lhes dão suas mães, e primeiras galas de nossos primeiros pais:

enfim vivem totalmente nus, como suas mães os pariram, e à maneira

dos bichos e feras do mato, ou como no estado da inocência trajava

Adão: e por isso nem fazem gastos em galas, nem invejam os mais

bem trajados palacianos, que toda a sua glória trazem como estampada

no belo e custoso traje, embora que os filhos morram à fome, e os

credores gemam necessitados”. E finaliza: “Não assim os índios do

Amazonas, que só trajam à libré que lhes deu a natureza [...]”63

22º - Permite que as tropas do Estado sejam guarnecidas pelos índios.

Esse artigo apenas confirma a regra do jogo da dominação colonial. A força

militar estatal atuava como máquina de dominação para a melhoria da exploração dos

recursos naturais e a garantia da mão-de-obra a serviço da Metrópole. A força militar é

por si não só impositiva como também assimiladora por parte do colonizado, que nela

via uma forma de sobressair-se em termos de status e assim diferenciar-se perante os

seus. Neste jogo, a utilização do índio na força militar foi feita em proporções tais que

chegaram à quase totalidade das tropas, como descreveu Manoel Bonfim:

62 A expressão aguardente era utilizada para designar as bebidas destiladas ou fermentadas de frutas ou cereais. Outras nações também tinham suas bebidas alcoólicas comercializadas sob outras denominações: malafo, vinho de palma da África Central, bagaceira, aguardente de uvas de Portugal, gim, destilado dos Países Baixos, pisco, aguardente de uvas do Peru, vodca, destilado de cereais da Rússia e Polônia, wiski, destilado de cereais da Escócia e Inglaterra, marc, destilado da França, grippa, destilado da Itália, branntwein, fermentado alemão, pulque, fermentado do agave do México, chinquirito, aguardente de cana do México, rum, destilado das Antilhas etc. 63 Pe. J. Daniel, op.cit., p. 273.

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[...] toda a tropa conquista do Norte – de Pernambuco pra lá,

foram feitas com exércitos onde os índios entravam, sempre,

numa proporção de 50 a 90%. Houve forças, como a de Costa

Favila, contra o comandante do Gurupá, cuja composição era de

10 portugueses para 400 índios [...]64.

Conforme Alencastro, Garcia D´Ávila controlava mais de 20.000 arqueiros

indígenas. Forças militares eram usadas também para a expansão das colônias,

apresamento de índios e resistência às invasões dos bandeirantes, tanto na colônia

portuguesa quanto na espanhola:

[...] reserva-se atenção especial aos exercícios militares de

simulação de luta, as quais intensificam na medida em que o

governo espanhol requisitava índios para combater os

paulistas65.

Até mesmo nas construções de residências para os indígenas, a nomenclatura

seguia os padrões militares:

É digno de destaque a denominação ‘quartéis’, que também está

empregada para indicar casas com acomodações para 420 casais

de índios, o que mais uma vez confirma o caráter de

acampamento militar [...]66.

23º - Pede que os índios façam roças de feijão, milho , arroz e maniba67.

24º - Pede que plantem algodão, tendo em vista o comércio exterior.

25º - Pede que se façam plantio de tabaco.

64 M. Bonfim, op. cit., p. 105. 65 R. Heloísa de Almeida, op. cit., p. 171. 66 Ibid., p. 191. 67 Outra denominação para a mandioca.

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26º - Pede castigar os que não produzem.

27º - Obriga ao pagamento do dízimo.

A instituição do dízimo, se de uma parte agradou aos missionários, de outra,

certamente gerou descontentamentos por parte daqueles sobre os quais os impostos

recaíram, principalmente os índios. Afinal, esse imposto cristão não fazia sentido algum

recair sobre os colonizados, justamente eles que não eram cristãos – e mesmo os

cristianizados, o fora por imposição de uma estrutura detentora da força do poder, e do

poder da força. Mas, o dízimo foi introduzido como uma obrigação extensiva a todos:

[...] será preciso desterrar de todas estas povoações o diabólico

abuso de se não pagarem Dízimo. Em sinal do supremo

domínio reservou Deus para si, e para os seus Ministros, a

décima parte de todos os frutos, que produz a terra, como Autor

universal de todos eles68.

Neste aspecto, José Bonifácio atacou severamente a idéia da cobrança do dízimo

em um documento denominado “Os índios devem gozar dos privilégios da raça

branca”: “Animar os índios, isentando-os nas terras, que cultivarem de novo, do dízimo

por dez anos”69.

34º - Obriga os índios a pagar a sexta parte de seus frutos aos Diretores.

39º - Nega aos índios a venda de seus produtos sem a presença dos diretores.

40º - Proíbe os índios de negociar a aguardente.

41º - Proíbe aos negociantes comercializar aguardente com os índios.

46º - Pede o aumento do comércio das drogas do sertão: manteiga de tartaruga,

salgas de peixe, óleo de cupaiva70, azeite de andiroba e outros.

68 R. Heloísa de Almeida, O Diretório dos índios, p. 12 (do Anexo). 69 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 128. 70 Árvore da família das Leguminosas Cesalpináceas, originária do Brasil e do Peru, mais conhecida hoje pelo nome de copaíba, geralmente utilizada na medicina rústica.

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47º - Alerta os Diretores sobre o prejuízo causado pela comercialização de um

único produto.

48º - Pede que produzam cacau, salsa e cravo.

58º - Obriga o Tesoureiro Geral a comprar fazendas para os índios, com o

dinheiro dos próprios índios.

74º - Obriga os índios a fazer casas decentes nas povoações.

77º - Determina o número mínimo de 150 moradores nas povoações indígenas e

exige que os Diretores expliquem o conceito de Nações Indígenas.

88º - Promove a união do índio com o branco, via casamento.

A questão das uniões envolvendo as três etnias que faziam a composição da

nação brasileira foi objeto de preocupação até mesmo da metrópole, onde surgiu uma

Lei datada de 4 de abril de 1755 que “[...] declarava que todos os brancos que casassem

com índias não ficavam com infâmia alguma”71, além de terem a preferência na

ocupação de terras.

Segundo Manoel Bonfim, a colonização trouxe em seu bojo, logo no início, a

miscigenação, pois “o colono traz para as suas carícias a índia, como, depois, traz a

negra [...]”72.

Neste aspecto, o Diretório chegou mesmo a prever punição para quem

desobedecesse às suas normas, mormente no que se refere à resistência em descumprir

as exigências de casar índio com branco.

José Bonifácio também entendia que a manutenção de uma nação tão dividida

etnicamente seria um péssimo negócio para a administração da política da colônia.

Tanto assim que ele considerava como um entrave à civilização a “heterogeneidade

racial e cultural, a escravidão, a equivocada política indigenista e a profunda ignorância

71 M.B. Nizza da Silva, op. cit., p. 225. 72 M Bonfim, op. cit., p. 117.

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que grassava entre os brancos e negros, ricos e pobres”73. Quando ele falava da

dificuldade de “propagar as luzes e aumentar as riquezas do Brasil”74, estava em

verdade reclamando do processo que não admitia convivência entre escravos negros e

etnias indígenas, tudo isso em convívio com o europeu, que se dizia superior.

No texto “Avulso”, José Bonifácio queria que “todo filho de mulato com branco

deve ser reputado branco e gozar de todos os privilégios de homens brancos, e

índios”75, mas fez uma ressalva, alegando que “os mulatos são mais ativos, e passam

melhor; e parece que o Brasil, como nas colônias espanholas, a mistura de branco e

preto é mais ativa que a mistura de brancos e índios”76.

José Bonifácio queria misturar o negro e o índio para fazer derivar um indivíduo

forte: “misturemos os negros com as índias, e teremos gente ativa e robusta – tirará do

pai a energia, e da mãe a doçura e bom temperamento”77.

Em outro texto denominado apenas “Apontamentos” José Bonifácio escreve 13

itens a respeito da aculturação indígena. No 11º, ele trata do aldeamento que poderia ser

feito de [...] aldeias mistas de índios mansos nas terras do sertão, de 35 casais pelo

menos com um terço de brancos ou mestiços”78.

Na carta que José Bonifácio escreveu ao Conde de Funchal, datada de 13 de

junho de 1813, fala das dificuldades de se trabalhar uma nação composta de elementos

tão heterogêneos. Por isso, achava que essa tarefa de homogeneizar a sociedade caberia

ao governo que deveria “[...] animar por todos os meios possíveis os casamentos dos

homens brancos e de cor com as índias, para que os mestiços nascidos tenham menos

horror à vida agrícola e industrial” 79.

73 J. B. de Andrada e Silva, op.cit., p. 21. 74 Ibid., p. 23. 75 Ibid., p. 87. 76 Ibid., p. 132. 77 Ibid., 156. 78 Ibid., p. 39. 79 Ibid., p. 23.

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90º - Prevê castigos aos casais que se separassem.

92º - Ameaça os Diretores que não cumprirem as Leis.

93º - Faz críticas ao paganismo.

Para o colonizador, o fato de não se acreditar no poder de um Deus todo-

poderoso era algo simplesmente impensável. Entretanto, qualquer outra modalidade de

crença que não tivesse amparo nos parâmetros do europeu era simplesmente

considerada mera heresia, feitiçaria, bruxaria ou assemelhado. No caso dos índios, a

crença que eles depositavam em uma entidade não se enquadrava no modelo europeu de

rituais hierárquicos, chocando-se frontalmente com a manipulação física dos rituais dos

pajés, para quem os espíritos de seus mortos se revestiam de significado incomum para

os olhares cristãos.

Conforme notou Bosi, a visão dos europeus em relação aos cultos indígenas

estava envolta em uma ideologia baseada na psicologia do pavor:

a – negavam [...] a existência de religião entre os tupis80;

b - trovões [...] como a manifestação de uma divindade, Tupã;

c - narram casos de perseguição e morte dos índios por espíritos

maus,

d – [...] reportam-se a influência dos pajés e caraíbas81.

A tática do europeu passou então a fazer do medo a sua ponta de lança para

penetrar no seio da cultura do outro e demonizá-la para destruí-la. A este respeito

afirmou Bosi:

80 “Os índios do Brasil não têm fé, nem lei, nem rei, diziam os portugueses do século XVI”, conforme M. P. Gomes, op. cit., p. 54. 81 A. Bosi, op. cit., p. 69.

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O método mais eficaz [...] generalizar o medo, o horror, já tão

vivo no índio, aos espíritos malignos, e estendê-los a todas as

entidades que se manifestarem nos transes. Enfim, diabolizar

toda a cerimônia [...]. É o tempo da perseguição implacável à

magia, o tempo da caça às bruxas e aos feiticeiros [...]82.

O mesmo processo será aplicado aos animais que passam então a representar

entidades malfazejas, as mesmas que o padre João Daniel chamou de entidades

estranhas, entre as mais conhecidas, são: Iuneperi e curupiras ou caaporas. A primeira

designa o que os europeus chamavam de diabo; as outras são entidades antropomórficas

das matas, “nus como tapuias, e de cabeça raspada [...] e com eles falam, e mostram

algumas vezes o que os índios querem”.

Segundo M. Sahlins, os espíritos tribais desempenham o papel de entidades

tutelares cujo objetivo é a proteção da coletividade como um todo, enquanto “os

espíritos da floresta, ou ainda o poder mágico das ‘plantas medicinais` influenciam

particularmente o destino familiar e individual”83. As crenças, segundo ele, não podem

ser consideradas como modelos explicativos contraditórios, porque se fazem agir em

contextos diferenciados.

Sobre a religiosidade dos nossos índios, o padre Manoel da Nóbrega afirmava

que:

Esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhecem a Deus

[...] o nosso trabalho com o gentio consiste em desviá-los dos

hábitos de canibalismo e a poligamia [...] comer os contrários e

ter muitas mulheres, porque tudo mais é fácil, pois não têm

‘idolos’84.

82 A. Bosi, op. cit., p. 49. 83 M. Sahlins, Sociedades tribais, p. 33. 84 M. Bonfim, O Brasil na América. p 165.

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O canibalismo para Manoel da Nóbrega, é traduzido como prática vigente no

seio das comunidades indígenas, o que só pode ser considerado verdadeiro em se

tratando de mortes ritualísticas. Segundo Pierre Clastres, a morte de um prisioneiro era a

forma de incorporá-lo definitivamente ao seu grupo, ao passo que a manutenção do

prisioneiro e sua posterior eliminação eram somente a forma de obtenção de status

perante o grupo, pois:

[...] a posse de um ou de muitos prisioneiros de guerra gerava tal

prestígio para os guerreiros tupinambás que estes preferiam, em casos

de escassez, privar-se eles próprios de comer do que fazer os seus

prisioneiros passarem fome85.

Entretanto, a visão eurocêntrico-cristã dos cronistas, missionários e viajantes não

permitiu a interpretação do simbolismo contido nos rituais do canibalismo. Nas

observações de João Daniel o ritual foi visto como:

[...] o mais brutal e ferino vício, e o mais bárbaro e abominável

abuso que têm não todas, mas algumas nações dos índios do

Amazonas, que é o comerem carne humana e uns aos outros

com tal ferocidade, que vencem nisto os mais carniceiros lobos,

vorazes tigres, e mais famintos leões; pois com serem feras, que

respiram braveza, antes morrerão à fome, do que faltar ao amor,

com que cada animal ama os seus semelhantes e indivíduos da

mesma espécie; e é vício tão especial dos tapuias, que não tem

nas histórias exemplares [...]86.

85 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, 1990, p. 50. 86 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 305.

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Na concepção desse padre, guerras e canibalismo se complementam, pois delas

se alimenta o tão “ferino vício”, não importando a compleição física, sexo ou idade,

excetuando-se os magros que primeiramente os índios:

[...] os engordam, bem como cá se faz em cochinos antes da

matança. Se algum adoece, ou foi apanhado ferido, antes que

morra, cajado vai; à mesma fortuna correm as mulheres, e só

reservam as moçatonas, e mais formosas, para abusarem delas,

exceto se elas estão gordas, e têm bom toucinho, porque então,

nem a mesma formosura as isenta da morte de bezerra87.

O conceito de canibalismo em padre João Daniel é tão distorcido que, se

verdadeiro fosse, dificilmente haveria, em uma nação indígena, taxa de reposição que

permitisse a reprodução do grupo, tal a suposta voracidade de seu antropofagismo:

porque ordinariamente vivem destas rapinas em vivas guerras

umas nações com outras. Convidam para a festa e para a mesa

as nações vizinhas suas aliadas, e para se brindarem têm já de

antemão preparadas e bem atestadas as iguaçabas88, e bem

providas as adegas com suas costumadas vinhaças [...] que as

comparamos com uma lavagem de porcos, não ficará

desproporcionada e suja a semelhança. Preparam-se também as

mulheres com grandes fogueiras, e bons espetos para os

assados, e as velhas as panelas para a olha; por outra parte

também o algoz, que sempre é alguém dos mais abalizados, afia

e amola a sua espada, que é um varapau de pau duro, como

ferro, com três quinas, e também é pesado como chumbo, e por

causa de seu ofício lhe chamam pau de jocá, pau de matar. [...]

E assim se remiram muitos índios, que estavam destinados para

87 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 305. 88 Pe J. Daniel usou este termo para designar uma espécie de talha (pote de barro) que os índios usavam como recipiente para depósito de água, farinha de mandioca e outros gêneros alimentícios. Também, era usada como urna funerária. Os dicionários de língua portuguesa registram o termo igaçaba em vez de iguaçaba.

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94

vítimas do ventre daqueles epicuristas, trocando em perpétua

escravidão da morte, com muita utilidade dos portugueses89.

A poligamia, termo que passou séculos incompreendido pela historiografia,

ainda permanece resistindo no imaginário da civilização ocidental. Segundo Pierre

Clastres, quase todas as sociedades reconhecem a poligamia em uma de suas variantes:

a poligênica ou a poliândrica, sendo a primeira a forma mais citada e mais aceita e nem

tão bem compreendida como deveria, pois “apenas um vigésimo das sociedades

indígenas pratica a monogamia rigorosa”90.

No que se refere às sociedades sul-americanas, a poliginia, em geral, foi

privilégio exclusivo dos chefes – no caso dos tupis só havia a “poliginia sororal”91 – o

que elimina a idéia de uma prática generalizada e desregrada dos grupos em questão.

Pierre Clastres aponta ainda outra razão pela qual a poliginia generalizada era

biologicamente inconcebível: “a sex ratio natural, ou a relação numérica dos sexos, não

poderiam nunca ser bastante baixa para permitir a cada homem esposar mais de uma

mulher [...]92.

A poliginia só não encontra limites específicos em sociedades excessivamente

bélicas e escravistas, nas quais a necessidade de reposição de guerreiros para o grupo

tornava obrigatória a captura de mulheres dos seus inimigos para fazer delas escravas de

guerra e, por conseguinte, reprodutoras do grupo – característica marcante dos Jivaros,

segundo Pierre Clastres.

89 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 306. 90 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 25. 91 Essa expressão serve para designar uma união em que o marido casa-se coma irmã mais nova de sua mulher. É diferente do “sororato” em que o marido só pode casar uma única vez com a cunhada, mas em caso de viuvez. Veja-se mais sobre este assunto em Hoebel & Frost, Antropologia cultural e social, pp. 190-1. 92 P. Clastres, op. cit., p. 25.

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95

Em relação à outra variante da poligamia, o autor relata, como exemplo, a tribo

dos guaiqui em que a proporção de uma mulher para cada dois homens exigiu uma

solução única para a sobrevivência do grupo: a poliandria consensual. Dentre outras

alternativas, o suicídio – pelo infanticídio masculino – era impensável e

demograficamente perigoso para o grupo, uma vez que a caça era um meio de

abastecimento da tribo; o celibato incorreria nos mesmos riscos anteriores, podendo

ainda provocar homicídios quando não fosse totalmente observado. Assim, optaram pela

poliandria como instituição de uma relação em que os homens excedentes eram

absorvidos “pelas mulheres sob a forma de maridos secundários, de jepetyva, que

ocuparão ao lado da esposa comum um lugar tão invejável como o do imété ou marido

principal”93, o que torna o sistema literalmente meio democrático porque “[...] um

homem só é um marido se aceitar sê-lo pela metade”94.

Como conseqüência, temos que a caça tornou-se o elemento mediador da relação

homem-mulher, porque, através dela, há a garantia simultânea da existência alimentar

do grupo e, ao mesmo tempo, do acesso à mulher do outro, quando segundo homem ou,

torna a sua mulher acessível ao outro, quando primeiro homem, retro-alimentando o

sistema homem-mulher-caça-homem.

José Bonifácio não deixou de falar da ação administrativa que o clero exerceu

sobre as comunidades indígenas. Para ele o clero “[...] é uma das classes mais

corrompidas e desprezíveis que há, geralmente falando, no Brasil”95.

95º- Estabelece o objetivo do Diretório pombalino: a dilatação da fé, a extinção

do gentilismo, a propagação do evangelho, a civilidade dos índios, o bem

93 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 82. 94 Ibid., p. 82. 95 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 129.

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96

comum dos vassalos, o aumento da agricultura, a introdução do comércio, o

estabelecimento da opulência e a total felicidade do Estado.

A Carta Régia de 12 de maio de 1798, pôs fim ao Diretório e às parcas garantias

dadas aos índios, que a partir de então voltaram a ser tratados como órfãos. Por uma

Carta Régia de D. João VI, em 180896, a “guerra justa” tornou a ser o destaque das

relações entre colonizadores e índios, o que permitiu a completa dizimação dos

Botocudos de Minas Gerais, dos Coroados e Gueréns. Essa Carta, só revogada em 1831,

permitiu também a escravização dos prisioneiros de guerra por um período de 10 a 15

anos.

O exposto configura, sucintamente, o contexto histórico em que se inserem as

idéias de José Bonifácio de Andrada e Silva. Ao apresentar à Assembléia Geral

Constituinte e Legislativa os seus “Apontamentos para a civilização dos índios bravos

do Império do Brasil”, tentava, então, equacionar os problemas das relações entre

colonizadores e colonizados – ação de significativas conseqüências para as culturas

indígenas brasileiras, conforme interpretação crítica proposta na Segunda Parte do

presente estudo.

No próximo capítulo, enfocaremos o discurso título da tese em que José

Bonifácio propõe a construção de um Estado segundo os moldes da monarquia

européia, bem como a forma produtiva e as gentes que deveria ser escolhidas para

dirigir a produção desse Estado.

96 Após a chegada da corte portuguesa ao Brasil, “foram promulgadas as mais duras e cruéis leis contra povos indígenas específicos, reinstituindo as guerras ofensivas oficiais, promovendo a violência particular e a escravidão de cativos, em outras palavras, a volta do bandeirantismo [...]”, conforme M. P. Gomes, op. cit., p. 78.

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CAPÍTULO IV

DISCURSO DE JOSÉ BONIFÁCIO

SOBRE A ADMINISTRAÇÃO DO ESTADO

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José Bonifácio pensava que o país, para civilizar-se, deveria acolher os estrangeiros

para “[...] servir de mestres nos ramos da instrução”1. Ele entendia que o Brasil carecia de

instrução em todos os sentidos, não somente na área da educação. Em outros textos, ele

sugeria a instituição de manufaturas nas capitanias, a serem ocupadas por europeus no sul,

chineses e malaios no norte. Esta escolha, que a princípio sugere ter sido feita em função

de critérios climáticos, foi em verdade, foi feita tendo em vista a adaptabilidade do homem

ao meio, porque em outro texto, denominado “Avulso”, ele diz que “os climas nada

fazem”, [...] como o escultor faz de pedaços de pedra estátuas, faz de brutos, homens”2,

induzindo o leitor a pensar no poder da legislação em transformar a espécie.

Ele propunha, ainda, que a vasta nação brasileira fosse explorada em toda a sua

extensão, de norte a sul, de este a oeste, por expedições de equipes especializadas,

compostas por engenheiros, para providenciar o mapeamento do país; intérpretes,

especializados preferencialmente na língua geral, para divulgar os interesses da

1 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 173. 2 Ibid., p. 174.

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99

exploração; botânicos, para conhecer e explorar as especificidades da flora brasileira;

mineralogistas, para identificar e mapear as riquezas do país – estes dois ele sugeria fossem

italianos ou franceses –, além de “[...] um construtor de barcos e canoas, com os proeiros e

remeiros necessários, um ferrador, um correeiro, com instrumentos e ferramentas

necessárias, quinquilharias para presentes aos selvagens, os cavalos e bestas de bagagem e

víveres, e bois etc”3.

Especialmente no que se refere às quinquilharias, o padre J. Daniel fazia séria

ressalva quanto a que fossem “instrumentos de ferro, armas, e metais”4. E tinha duas

razões para justificar essa atitude: a primeira, de caráter religioso, e a segunda, de caráter

tático-defensivo. Por razões religiosas, o padre argumentava com base na Bula da Cea que

proibia “o passar armas, e metais para os inimigos de Cristo; e da fé católica”5. Armados,

os índios não teriam mais motivos para se submeter às táticas de aliciamentos dos brancos

e missionários, dificultando assim os descimentos às aldeias. Por razões tático-defensivas

o padre alegava que a existência de instrumentos europeus em mãos indígenas, além de

obstaculizar a conversão, armava os índios para combater os brancos, e causava assim

“grande prejuízo ao estado”6.

José Bonifácio entendia que os métodos utilizados na produção agrícola brasileira,

à base da mão-de-obra escrava, deveriam ser suprimidos imediatamente, por dois motivos:

primeiro, porque não auferia lucros suficientes para a sustentação das fazendas, e, segundo,

porque envolvia questões humanitárias. Por isso, ele argumentava:

A lavoura do Brasil, feita por escravos boçais e preguiçosos, não dá os

lucros, com que homens ignorantes e fantásticos se iludem. Se

calcularmos o custo atual da aquisição do terreno, os capitais empregados

3 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 179-80. 4 Pe. J. Daniel. Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 383 Vol.2. 5 Ibid., p. 283. Vol. 2. 6 Ibid., p. 284. Vol. 2.

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100

nos escravos que o devem cultivar, o valor dos instrumentos rurais com

que deve trabalhar cada um destes escravos, sustento e vestuário,

moléstias reais e afetadas, e seu curativo, as mortes numerosas, filhas do

mau trato e da desesperação, as repetidas fugidas aos matos, quilombos,

claro fica que o lucro da lavoura deve ser mui pequeno no Brasil, ainda

apesar da prodigiosa fertilidade de suas terras, como mostra a

experiência7.

Em “Lembranças avulsas”, José Bonifácio recomenda o favorecimento da

emigração [...] de gente pobre do reino, e dos estrangeiros ativos[...]”8, mas para

determinadas tarefas ele especificou quais poderiam ser tais estrangeiros, num claro sinal

de que tinha restrições a algumas profissões e “nacionalidades”. Para o cultivo do chá, ele

propõe que sejam casais de artífices chins, de Macau, alegando que o clima brasileiro tinha

certa analogia com o da China; para os trabalhos comuns e mestres, seriam os suecos e

alemães, além de camponesas portuguesas; distribuição de terras para os italianos e

franceses. Em “Avulso”9, ele especifica outras profissões que qualificariam os estrangeiros,

candidatos à colonização no Brasil: lavradores, carpinteiros, pedreiros, fiandeiros,

serralheiros etc.

Nesse caso, cabe indagar: o Brasil já não tinha estes profissionais?

Como resposta, temos somente duas alternativas: ou teve enquanto perdurou a

presença da Companhia de Jesus no Brasil até a expulsão dos missionários pelo Marquês

de Pombal, ou somente na região amazônica e nas missões do sul, sendo posteriormente

extintas, razão pela qual José Bonifácio clamava por elas. Se afinal for a hipótese válida,

temos de admitir que a expulsão dos jesuítas foi um mal para o desenvolvimento das artes

e, até mesmo, para a questão da liberdade dos índios.

7 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 58. 8 Ibid., p. 154. 9 Ibid., p. 271.

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101

Entretanto, o Padre João Daniel afirma que os missionários tinham estes

profissionais formados no seio da cultura indígena:

Donde procede haver entre eles adequados imaginários, insignes pintores,

escultores, ferreiros, e oficiais de todos os ofícios; e têm tal fantasia que,

para imitarem qualquer artefato basta mostrar-lhes o original, ou cópia, e

a imitam com tal magistério, que ao depois faz equivocar qual seja o

original, e qual a cópia10.

Em “Reformas”, texto de caráter econômico, José Bonifácio discursa sobre a

pobreza do reino português, cuja causa ele faculta à ausência de uma política manufatureira

e à incapacidade de seu povo de homens [...] sem capacidade, sem indústria, estúpidos e

demais supersticiosos [...]”11. José Bonifácio tinha muitas reservas contra o caráter do

povo português, que segundo ele era miúdo, ignorante, obstinado, desconfiado e baixo,

opressor, enganador e cheio de má fé. E chegou mesmo a confessar asco por certas

pessoas: “A coisa que mais me enoja em Portugal é o tom precioso e impostor de meus

naturais”12. Para ele, os homens de bem eram detestados por dizer as verdades; os homens

e governo só tinham autoridade nas aparências; os membros do clero eram “[...]

turbulentos e hipócritas perseguidores [...] ”13. José Bonifácio se considerava uma pessoa

desprovida de liberdade e clamava “Já que não posso viver com liberdade em Portugal,

vivamos ao menos com paz, ou fujamos dele”14.

Em um texto sob a denominação de “Guiné”, José Bonifácio acaba generalizando

suas reservas quanto aos estrangeiros, mormente o europeu, que para ele “[...] tem feito

10 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 341. 11 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 143. 12 Ibid., p. 356. 13 Ibid., p. 337. 14 Ibid., p. 361.

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tantas invenções morais, e tantos constrangimentos à natureza, que lhe é muito difícil ser

homem honrado e de bem ao mesmo tempo”15.

José Bonifácio afirma ainda que: “[...] as outras nações necessitam chamar

dinheiro, nós só carecemos de o reter – levantar manufaturas etc”.16 Justificando sua tese,

ele cita como exemplo a capitania do Espírito Santo, “[...] porque abunda em açúcar,

queijos, gados, algodão, madeiras e ouro nas serras do Mar, nas minas do Castelo, e

Lençóis“17.

José Bonifácio queria que o Brasil tivesse uma agricultura moderna e para tanto

desejava que ela fosse ensinada, na prática, de forma ambulante e diretamente no campo.

Essa idéia demonstrava que ele já descartava a instrução abstrata, puramente informativa,

bem ao estilo do contexto da época. Para melhor eficácia do modelo sugerido, ele queria,

ainda, que os pequenos agricultores fossem premiados em prol dos interesses do Brasil, da

seguinte maneira:

1º) para os que lavrarem com gente alugada. 2º) para os que romperem

novas terras e fizerem novos sítios. 3º) os que aproveitarem e fertilizarem

as taperas e sapezais. 4º) os que dividirem as grandes terras por novos

colonos. 5º) os que introduzirem melhor giro de sementeiras e colheitas.

6º) que prepararem maior extensão de terra para a lavra de arado. 7º) os

que souberem melhor fazer estrumes, e estrumarem mais terras. 8º) que

introduzirem criações de gado, e melhor o souberem criar com prados e

alimento cultivado. 9º) [ilegível] lavrarem ao arado os terrenos. 10º) que

fizerem novas misturas de terras, margagens, etc. 11º) os que

introduzirem boa horticultura e jardinagem. 12º) os que fizerem bons

queijos, ou manteigas. 13º) que cultivarem olivedos e vinhas, ou

aperfeiçoarem os vinhos e azeites da terra”.18

15 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 320. 16 Ibid., p. 267. 17 Ibid., pp. 267-8. 18 Ibid., pp. 177-8.

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José Bonifácio acreditava que, nas províncias de “Mato Grosso e Goiás, podem

haver todos os gêneros do Peru, e Pará e Maranhão todas as drogas da Índia. Pernambuco

pode ter vinhas, porque o tempo é quente sem chuvas”19. Ele não explica quais seriam os

gêneros do Peru, mas quanto às drogas da Índia a serem cultivadas no Pará e Maranhão,

provavelmente estaria se referindo às especiarias que já vinham sendo produzidas nas

províncias do norte. Segundo o relato do Padre João Daniel20, Pará e Maranhão produziam:

cacau, algodão, arroz, cravo, salsa, bálsamos, canela, quinaquina, óleo de copaíba, âmbar,

manteiga de ovos de tartaruga e baunilha, sendo estes três últimos itens monopólio

exclusivo dos jesuítas.

Apesar de a aguardente fazer parte dos produtos de exportação dos Missionários,

José Bonifácio se opunha à sua produção. Em outro texto catalogado como “Miscelânea”,

ele diz que: “Se os romanos conhecessem a aguardente no tempo das incursões e guerras

com os germanos, com ela os teriam destruído, como os ingleses os selvagens da Norte-

América, seus análogos em costumes, força, sociedade e cultura”21 . Outra cultura a que

ele se opunha era a da cana de açúcar, sob a alegação de que ela era prejudicial aos povos:

1º) porque tem abandonado ou diminuído a cultura do milho e feijão, e a

criação dos porcos; e estes gêneros têm encarecido: assim como a cultura

de trigo, e a do algodão e azeites de mamona. 2º) porque tem introduzido

muita escravatura, que não só empobrece aos lavradores, corrompe os

costumes e caridade cristã, mas faz preguiçosos os mestiços e mulatos,

que acham desprezo de puxar pela enxada. 3º) porque tem devastado as

belas matas e reduzido a taperas muitas herdades . 4º) porque rouba

muitos braços à agricultura, que se empregam no carreto dos africanos.

5º) porque exige grande número de bestas muares que não procriam e que

19 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 262. 20 O padre J. Daniel (1722-1776), membro da Companhia de Jesus, esteve no Maranhão e Pará entre os anos de 1741 a 1757. Formou-se no Colégio São Luiz e viajou durante seis anos por várias aldeias indígenas da região. Enquanto esteve no cárcere, escreveu uma obra completa sobre os costumes e economia da região, denominada “Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas”. 21 J.B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 345.

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consomem muito milho. 6º) [ilegível]. 7º) porque diminuiria a feitura da

cachaça que tão prejudicial é do moral e físico dos moradores do

campo22.

Acreditamos que José Bonifácio sabia da importância da aguardente para o

mercado exportador brasileiro, posto que em um texto denominado “debilidade e pobreza

do reino”, ele dizia: “a capitania do Espírito Santo deve comerciar diretamente porque

abunda em açúcar [...]”23. Ora, os engenhos de açúcar eram também conhecidos pelo

fabrico de aguardente e, em muitos casos, ela era tão importante comercialmente que

gozava de monopólio específico. O padre J. Daniel relata que das três feições das Fazendas

da Companhia24 sobressaía a produção de açúcar e aguardente. Quanto ao destino desta

produção, ele acrescentou:

[...] e daqui fica respondido aos que admiram da pouquidade de açúcar

que do Amazonas se embarca nas frotas para a Europa, porque mais se

ocupam com aguardentes, tanto que tem alguns anos em que se têm

experimenta do grandes faltas de açúcar ainda nas mesmas cidades, e

povoações maiores, e se não fossem privilégios que gozam os senhores

de engenho todos se exporiam na fatura de aguardentes [...]25.

Na concepção de José Bonifácio, o Estado deveria se utilizar de todos os meios

para a extensão e o aperfeiçoamento da agricultura, porque ele a considerava a alma da

produção, e esta, o alimento da sociedade. Ele dizia que “A agricultura é para o físico

como os costumes para a moral, isto é, o mais vasto e útil ramo da alimentação. Feliz o

governo que olha para estes dois objetos com cuidado”26. A agricultura era para ele a fonte

de promoção do Estado além de cumprir a sublime missão de suprir as cidades com o seu 22 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil. p. 181. 23 Ibid., p. 267. 24 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 21. 25 Ibid., p. 42, Vol. 2. 26 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 261.

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excedente. Por isso, ele exigia do governo uma proteção especial para a agricultura porque

ela “[...] está exposta a mil inconvenientes, epidemias de homens, e animais [ilegível],

velharias das gentes, dos amos etc.”27. Quanto aos inconvenientes da agricultura, ele

entendia que o Brasil haveria de combater, ainda, as cobras, as formigas, as baratas e os

pauis. O padre João Daniel enumera ainda outras pragas (ou sevandijas) tais como:

micuins, tombura28, pulgas, bernes, percevejos, baratas, bagre dos livros29, moçoroca,

varejas, mutucas, vespas, abelhas, carrapatos, aranhas, lagartas, lacraias, escorpiões, sapos,

formigas, cobras etc.

A partir de então, poderiam ser produzidos abóboras, melancias, couves, arroz,

feijão, milho, cana-de-açúcar, cereais da Europa, vinhas e olivais.

No texto Colônia de pretos, ele propunha que fossem cultivados os seguintes

produtos: seda, linho, trigo, anil, azeitonas, amendoim, mamona, hibiscus da Bahia,

ananás, jabuticabas, cambucis, algodão e cânhamo; e deveria, também produzir: sabão de

azeite de amendoim e mamona, sabão de sebo e velas, azeite de mamona, cachaça, panos

de tucum, vinho de ananás, peixes em viveiros, preás, coelhos, pombos e outros animais

domesticáveis. Aqui temos uma aparente contradição: se para os negros ele não via

impedimento que se produzissem a cachaça, então somos levados a concluir que a

produção da aguardente só era interditada aos índios porque ele não a queria como

monopólio dos missionários como o fora até então.

Ele queria, ainda, que a nossa agricultura fosse melhorada com a introdução de

equipamentos europeus, especialmente o arado e instrumentos rústicos para que as

fazendas se tornassem estáveis e, também, melhorasse a fertilidade do solo. Ele estava

ciente de que:

27 Ibid., pp. 265-6. 28 Hoje conhecido como bicho-de-pé. 29 Também conhecido como letrados ou doutores, que se instalam nos livros e “os vão furando, e comendo até a última letra, e folha até os acabarem de todo, comendo só o papel branco, e não tocando nas letras”. Conforme o Pe. J. Daniel, op cit., p. 217.

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O vastíssimo Brasil, situado no clima o mais ameno e temperado do

Universo, dotado da maior fertilidade natural, rico de numerosas

produções, próprias suas, e capaz de mil outras que facilmente se podem

nele climatizar, sem os gelos da Europa, e sem os ardores da África e da

Índia, pode e deve ser civilizado e cultivado sem as fadigas demasiadas

de uma vida inquieta e trabalhada, e sem os esforços alambicados das

artes e comércios exclusivos da velha Europa30.

José Bonifácio queria que o Brasil desenvolvesse uma indústria forte e segura, mas

advertia que isto somente seria possível com uma agricultura que não estivesse assentada

sobre braços escravos, os quais que ele considerava forçados, indolentes, viciosos e boçais.

Para ele, a pobreza de Portugal devia-se em parte à ausência das artes, de uma agricultura

forte e de “fábricas precisas”. Agora, estando o Brasil, livre das amarras do Tratado de

Methuen31, o argumento de José Bonifácio era que o excedente de mão-de-obra e os

“jornais baixos” das lavouras seriam deslocados em proveito da fortificação da indústria,

mas advertia que as fábricas de lã, seda e algodão não seriam de grande interesse para o

Brasil por causa de seus custos excessivos e maquinários adequados, o que tornaria os

nossos produtos menos competitivos e de pior qualidade que os concorrentes europeus. O

que José Bonifácio pensava industrializar incluía a instituição de um laboratório químico, o

fomento à pesca da baleia, a apicultura com abelhas oriundas da Europa, confecção de

pólvora, faiança e louça, estabelecimentos de curtumes de peles, a confecção de vinhos da

terra, aguardentes e [...] introduzir máquinas para poupar braços e gente”32.

30 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 79. 31 Este tratado de apenas três artigos foi assinado entre a Inglaterra e Portugal, em 17 de dezembro de 1703, e leva este nome em homenagem ao seu idealizador John Methuen. Segundo J. Lúcio de Azevedo “Portugal obrigava-se para sempre a admitir os panos e outras manufacturas de lã britânicas [...] a Inglaterra prometia, também para sempre, receber os vinhos portugueses, pagando estes a dois terços dos direitos impostos nos vinhos franceses”. Desta forma, Portugal assegurava o comércio aos seus vinhos e a Inglaterra garantia o mercado para suas manufacturas – com prejuízo para os portugueses, sempre. Sobre este assunto veja-se J. L. de Azevedo, Épocas de Portugal econômico, p. 396 e seg. 32 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, op. cit., p. 161.

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Um problema que preocupava José Bonifácio estava na conformação do caráter dos

componentes da nação. De um modo geral, ele considerava que o brasileiro não tinha bom

caráter, tanto entre os dirigentes quanto entre o povo em geral. Dos dirigentes, ele os

chamava de:

[...] pseudo-estadistas; os nossos vendedores e compradores de carne

humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados [...] pela

maior parte, venais, que só impunham a vara da justiça para oprimir

desgraçados, que não podem satisfazer à cobiça, ou melhorar a sua

sorte33.

José Bonifácio utilizou uma série de adjetivos para qualificar a nobreza e o clero.

Dos nobres ele dizia que eram: imbecis, ignorantes, fracos, egoístas, soberbos,

imprudentes, despóticos, vis, intrigantes, pérfidos, viciados etc; do clero dizia que eram:

imorais, ignorantes, desacreditados, turbulentos, hipócritas, perseguidores, odiosos,

supersticiosos, desprezíveis, corruptos etc. Do povo em geral ele dizia que eram pacíficos e

talentosos, mas ignorantes devido à escassez de instrução básica; supersticiosos, generosos

e imaginativos, mas incapazes de grandes realizações porque deles não se podia exigir

trabalhos árduos. Reclamava ele das leis que no Brasil eram excessivamente permissivas

quanto à luxúria e à prostituição. E isto tinha uma explicação porque o [...] escravo da

Guiné34, o índio, o mulato, o europeu, e o natural, todos são governados pelas mesmas leis,

já em si contraditórias, trapaceiras, imensas, abusivas, e incompletas”35.

Em “Avulsos”, ele dizia, ainda, que os brasileiros eram vaidosos, mas preguiçosos

para os negócios e a lavra da terra porque a natureza dava-lhes gratuitamente muito do que

necessitavam. Dos brasileiros do interior ele dizia que eram simples e hospitaleiros, mas

33 J. B. de Andrada e Silva, op. cit., p. 54. 34 Os escravos da Guiné eram também chamados de negros da Guiné, para diferenciar dos escravos índios ou negros da terra. Sobre este assunto veja-se R. Vainfas, A heresia dos índios, p. 47. 35 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil., p. 185.

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eram mais devotos que virtuosos, e de uma religião sem moral; os roceiros eram

preguiçosos e miseráveis, falsos, dissimulados, curiosos e inquietos, mas sem atividade e

aplicação. Especificamente dos paulistas ele dizia que eram parcimoniosos no vestir e

miseráveis no comer. Os únicos afazeres a que os brasileiros estavam dispostos a

participar consistiam em três coisas: tornar-se padre, escrivão ou rábula, porque estes

serviços não demandavam esforço árduo e nem boa conduta. A sua descrença com relação

à possibilidade de dotar os brasileiros de um caráter que valesse a pena ficou bem clara em

um texto em que ele diz “[...] não me admira que sejam maus e corrompidos; [...] pelos

meios ordinários nenhuma esperança me fica de sua regeneração”36.

Na concepção de José Bonifácio, a formação do caráter do brasileiro era complexa

porque envolvia uma gama de povos na constituição de nossa gente. Em “Escravidão”, ele

dizia que precisaríamos formar uma nação homogênea em poucas gerações, se

quiséssemos nos tornar livres posto que éramos por demais heterogêneos, civil e

fisicamente. E deixou escrito:

[...] cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos

discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que

saia um todo homogêneo e compacto, que não se esfarele ao pequeno

toque de qualquer nova convulsão política37.

E no texto “Índios” ele afirmou que o processo de homogeneização era tarefa

“sagrada” e obrigatória do governo brasileiro.

No processo de homogeneização, preconizado por José Bonifácio, estavam em jogo

uma série de culturas distintas. Em dois momentos, ele fala em estabelecer colônias: uma

com europeus e outra de pretos, mas em nenhum texto ele diz se estas colônias deveriam

conter especificamente colonizadores de uma dada nação, o que nos permite pensar que 36 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 187. 37 Ibid., p. 49.

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109

esta idéia seria válida tanto para os europeus quanto para os negros. Entretanto, ao longo

de seus vários escritos, ele cita os povos que teriam a sua preferência no processo

colonizador: da Europa são mencionados os italianos, franceses, portugueses, suecos e

alemães; do Oriente os chins de Macau e, da África, ele não faz referências específicas

com relação a algum povo em especial.

Nesta tentativa de homogeneizar os povos do Brasil, há uma mistura que José

Bonifácio condenou: a de negros e índios. Contudo, ele aceitava o cruzamento de índios

com brancos e índios com mulatas. Em “Banir a ignorância e antiga barbárie de

costumes”, ele sustenta que os negros eram providos de sensações, gestos, imaginação e

atividade de espírito, razão pela qual os índios eram amigos dos negros. Porém, ele conclui

alegando que os valores que caracterizavam os negros seriam os responsáveis pela apatia e

desleixo dos índios, o que nos leva à conclusão de que a mistura de índio e negro seria

realmente maléfica.

Em “Os índios são muito imaginativos”, José Bonifácio diz que os índios, apesar

de ativos, careciam de valores de honra e necessidades sociais, mas que “misturados com

os portugueses, e pretos, e será uma raça melhor”38. Neste caso, somos abrigados a

entender que o português estava atuando como elemento catalisador nesta mistura de três

elementos, uma vez que ele não aconselhava a mistura de índio e negro. Ainda no mesmo

texto, a corroborar esta hipótese, ele diz que os escravos, “entes vis e corrompidos, afogam

nos meus patrícios os sentimentos nobres e liberais desde o berço, cercando-os desde a

infância de uma atmosfera pestilenta”39. Entretanto, José Bonifácio se contradiz em outro

texto, que pelo próprio título já sugere estranheza: “Misturemos os negros com os índios”.

Neste, ele fala em melhorar a sorte dos mulatos, legalizar a união de brancos com mulatas,

atrair os chins para o Brasil, e acrescenta: “Misturemos os negros com as índias, e teremos

38 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 142. 39 Ibid., p. 142.

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gente ativa e robusta – tirará do pai a energia, e da mãe a doçura e bom temperamento”40.

Neste caso a nossa conclusão é bem outra: a mistura de índio e negro seria muito benéfica

para a nação brasileira.

Como resolver esta contradição?

Pela formação de José Bonifácio, seria plausível que defendesse a idéia, assaz

comum na época, da inferioridade intelectual do negro em relação ao europeu. Entretanto,

foi ele quem apresentou à Assembléia Geral um projeto de abolição da escravatura, em que

ele propunha extinguir o escravismo dentro de “quatro ou cinco anos”41. Assim sendo,

seria difícil de continuar a defender a idéia de inferioridade do negro no território brasileiro

para contribuir com o seu projeto de homogeneização da população brasileira.

Simplesmente dizer que a mistura de negro e índio era impossível por algum motivo

invalidaria todo o seu projeto homogeneizador.

No pensamento de José Bonifácio a forma ideal de governo que ele sempre quis

para o Brasil era a monarquia. Ele evocou Platão para justificar a sua escolha: “Platão

estabelece cinco formas de governo, de que a primeira é só boa e sã; que é a aristocracia,

ou o governo dos bons ou filósofos; ou seja, a monarquia [...]’42. Platão era bastante

conservador e pessimista quanto às formas de governo, posto que ele não viveu o ápice e

sim a decadência da polis grega. Por isso, as formas de governo eram más porque não se

ajustavam à constituição ideal, a monarquia ou a aristocracia – conforme a direção do

governo estivesse assentada em um ou mais dirigentes. As quatro constituições más eram

para ele, em ordem crescente de corrupção: a timocracia, a oligarquia, a democracia e a

tirania..

Em uma nota política denominada “Pro Domo”, ele afirmou que os homens de

sangue ibérico com mescla africana e de religião católica não foram feitos para a república, 40 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 156. 41 Ibid., p. 65. 42 Ibid., p. 311.

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para então concluir que o Brasil não poderia abraçar a causa republicana e sim a

monárquica “temperada”. Entretanto, ele temia pela plausibilidade da monarquia brasileira

alegando que: “O Brasil não tem nobreza como a da Europa porque não tem morgados

nem feudalismo; e sem nobreza a realeza ou não pode durar ou cai no despotismo.”43. Ele

justificava sua crítica à nobreza brasileira por achá-la excessivamente mecânica e aviltante.

E perguntava:

E quem são os novos fidalgos? São ordinariamente os que sacrificam a

honra, e os direitos nacionais.[...] Sem recorrer a espias, a prisões

arbitrárias, os ministros de Estado devem conhecer a direção da opinião

pública, e dirigir-se segundo esta; é preciso antes um Exército que

obedeça como uma máquina, ou fortalecer-se com os sentimentos da

nação.

Os que sacrificam a honra e a própria dignidade a título e comendas são

como os selvagens que trocam seu ouro por grãos de miçanga.[...]

Desgraçada da nação em que não há admiração senão pela espada44.

José Bonifácio voltou a questionar os títulos da nobreza brasileira no texto “O

mecanismo do interesse destrói os sentimentos honrados e sublimes”, perguntando quais

[...] títulos, dignidades e honras dados sem justiça, e como paga servil da escravidão e dos

vícios?”45.

José Bonifácio achava que a democracia não poderia frutificar no Brasil se

primeiramente não passasse pela aristocracia “ou o governo dos sábios e honrados, que é o

único que pode durar e consolidar-se”46. Nesse momento, ele discursa sobre a aristocracia

ao invés da monarquia, mas se estas duas constituições foram consideradas por Platão as

43 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, pp. 254-5. 44 Ibid., pp. 194-6. 45 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 219. 46 Ibid., p. 209.

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únicas merecedoras de crédito por não comportar a corrupção, fica então a dúvida que

possivelmente deve ter ocorrido a José Bonifácio sobre a escolha da monarquia, já que

para ele a nossa era corrupta.

A possibilidade da opção do Brasil pela democracia não era bem vista por ele,

apesar de achar que os escravos e as diferenças na cor da pele eram mais favoráveis à

democracia que à monarquia, sendo esta última a sua forma preferida. Entretanto José

Bonifácio reconhecia a dificuldade de se governar sob o manto da uma monarquia porque

o Brasil encontrava-se:

[...] dividido em províncias distantes e isoladas, com costumes e

prevenções diversas com povoação heterogênea, e dispersa? Donde sairá

de um país por ora pobre e arruinado pela escravidão e guerras o ouro

necessário para satisfazer o luxo de uma corte, e de uma nobreza nova e

sem cabedais? Onde estão os palácios, e ainda as estradas por onde rodem

as carroças da casa imperial?47.

Para o autor, o Brasil vivia uma espécie de governo monstruoso, “[...] uma mistura

de theocratia, monarquia, despotismo e oligarquia”48. Justificando o despotismo que José

Bonifácio julgava imperar no Brasil, dizia que D. Pedro não era como Frederico49 e sim

um governante “[...] pérfido cruel, e perigoso, sem caráter e nobreza d´alma...”50. No texto

“Avulsos”, ele volta a fazer referência ao despotismo que vigorava no governo de D. Pedro

ao afirmar que “O despotismo de certo país que conheço é açucarado e mole; mas por isso

mesmo perigoso [...]”51. Para José Bonifácio, o imperador estava rodeado de falsos amigos

que o faziam crer estarem eles dizendo a verdade. Entretanto, essa era apenas uma tática de

47 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 256. 48 Ibid., p. 230. 49 Trata-se de Frederico II (1712-1786), O Grande, monarca absolutista considerado um déspota esclarecido. Foi responsável pelas reformas no sistema de ensino e jurídico, além do respeito à tolerância religiosa e proteção às artes. 50 J. B. de Andrada e Silva, op. cit., p. 247. 51 Ibid., p. 250.

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113

que se utilizaram para poder continuar merecendo sua confiança e desfrutar da sua

convivência. Ele comparava o processo educacional a que fora submetido na Europa com a

instrução recebida por D. Pedro I, para com isso o acusar de imprudente, vaidoso e dono de

um caráter “[...] corrompido pela má educação [...]”52 e que as intenções do imperador

eram boas apenas na aparência, mas na realidade seus erros eram visíveis dentro e fora do

Império. Também, acusou o Imperador de perseguir os únicos homens que José Bonifácio

achava serem capazes de defender um projeto monárquico para o Brasil, numa clara alusão

ao processo de cassação e exílio de que foram vítimas os irmãos Andradas: José Bonifácio,

Martim Francisco e Antônio Carlos. E acrescentava que era “[...] do caráter de Pedro o

preferir a atividade do crime à tranqüilidade da virtude [...]”53, e de somente dar ouvidos

aos invejosos e inimigos tanto dele quanto do Estado. E dizia mais:

Os ladrões antigos e modernos, que ele antes conhecia e desprezava,

souberam iludi-lo, e aproveitar-se para a ruína do Estado, e desonra dele;

e tomaram as rédeas do governo. Putas e criados levantaram a cabeça, e o

levaram pelo beiço, que ele sonhava que fazia só o que queria.

Dilapidações do tesouro público, perdularidade, guerras ruinosas,

recrutamentos contínuos e opressivos reduziram o Estado a um cadáver,

que corre a passos apressados à morte, ou à sublevação.54.

A sua desilusão para com o Imperador foi tamanha que chegou a afirmar: “Fiz mal

em aceitar o ministério; fiz ainda pior em fiar-me na palavra de um príncipe – não nasci

para ser dissimulado com arte – falso e egoísta”55.

Os antídotos que José Bonifácio julgava serem ideais para combater os males a que

estava sujeito o Estado brasileiro encontram-se espalhados aleatoriamente. Entretanto, há

52 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 228. 53 Ibid., p. 240. 54 Ibid., pp. 248-9. 55 Ibid., p. 370.

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um texto específico - “Para conservar-se o Estado” – em que resume os preceitos a serem

seguidos na concepção de um Estado ideal, a saber:

1º) Observância das leis [ilegível] e à letra. 2º) Antes diminuí-las, que

aumentá-las. 3º) Igualdade de justiça, e superioridade de merecimento.

4º) Bom sistema de imposição, arrecadação, e despesas; o que faz

pagarem os vassalos com presteza e boa vontade, e chegar o pouco para o

muito. 5º) Ser infame o soldado fraco, o ministro ladrão, e não escapar à

lei o que furta ao Estado por comissão ou omissão. 6º) Não dar

comendas, hábitos, capelas e ofícios senão aos beneméritos, e não dá-las

por vidas.7º) Prover os cargos seguidamente e não por saltos. 8º) Dão o

governo mostras continuadas [de] que sabe castigar o duque, o

desembargador, o general, como sapateiro, logo que o merecem. 9º) Que

as graças assim como os castigos sejam conferidos por tribunais bem

regulados e contidos, e não por indivíduos, quais os favoritos, ministros,

damas etc.10º) Liberdade da imprensa só sujeita à lei ex post facto porém

não ante factum. 11º) Liberdade pessoal sagrada. 12º) Direito de

liberdade sagrado. 13º) Procurar estar em paz todos, e pronto a fazer a

guerra a qualquer. 14º) Não fiar negócios de potros, de que não se sabem

as manhas, nem de velhos, que já estão caducos. 15º) Folgar de saber

tudo; mas não intentar tudo56.

Nesse texto, José Bonifácio sugere nos três primeiros itens que o Estado brasileiro

não estava cumprindo as funções que se lhe destinavam, mormente no que concerne ao

estabelecimento e manutenção da ordem pública, porque o excesso de leis implicava a

impossibilidade de dirimir judicialmente os conflitos. Outra falha apontada pelo autor diz

respeito à função extrativa e alocadora dos recursos públicos, uma vez que não conseguia

boas arrecadações e, conseqüentemente, não conseguia efetuar os devidos pagamentos a

contento. No que se refere aos impostos, por exemplo, ele sugeria que eram excessivos e

forçados, porque: “Nenhuma nação sobrecarregada de impostos é própria para grandes

56 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, pp. 151-2.

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coisas; sobretudo quando os impostos não são voluntários”57. Para ele, os tributos das

grandes nações não deveriam ser pagos à base da força, deveriam, sim, pagos em modos

“voluntários, ou donativos”58.

A monarquia que José Bonifácio tanto sonhou para a grandeza do Brasil não passou

de uma experiência mal sucedida, mas nem por isso deixou de sonhá-la. Senão vejamos:

Há muita gente que deseja e espera o estabelecimento do antigo

absolutismo, a pior de todas as anarquias; há outra que deseja e espera

pelos tumultos da república: eu porém, apesar de tão sinistros desejos e

predições, quero ainda esperar que o império constitucional se arraigará

no Brasil, se a nação e o governo desejarem realmente o seu próprio

bem59.

José Bonifácio temia que o Estado brasileiro entrasse em convulsões políticas,

econômicas e sociais, e isso fez com que ele pensasse numa fórmula para reforçar o

Império do Brasil. Nos “Avulsos”, ele propõe “[...] reformar o sistema de capitães-mores,

milícias, tropas de linha, magistrados [...] introduzir polícia ativa contra os vadios”60.

Também, temia que qualquer reforma do Estado pudesse partir da sociedade e

pedia muita prudência para com quaisquer reformas que pudessem advir, advertindo que:

“Sem muito sangue a democracia brasileira, que se possa estabelecer, nunca se

estabelecerá senão quando passar à aristocracia republicana, ou governo dos sábios e

honrados, que é o único que pode durar e consolidar-se”61. Para ele, as reformas teriam

que ser feitas de forma gradual “como obra a natureza”, atendo-se àquilo que deve ser

57 J. B.de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil, p. 272. 58 Ibid., p. 272 59 Ibid., p. 243. 60 Ibid., pp. 173-4. 61 Ibid., p. 208.

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reformado, mas preservando, porém, o que “deve ficar como antigo”, o que revela um

certo conservadorismo.

Oito dias após o episódio do fechamento da Assembléia Geral Constituinte e

Legislativa do Brasil, ocorrido em 12/11/23, José Bonifácio e seus irmãos Martim

Francisco e Antônio Carlos foram presos e deportados para Bordeaux, na França. Mesmo

no exílio, ele continuou escrevendo sobre vários assuntos e, especificamente, sobre a

política brasileira, não escondeu as mágoas que nutria contra D. Pedro I e os rumos que

estava dando ao Estado brasileiro:

[...] mas hoje que tenho os olhos abertos, desejo que entre eu e ele haja de

permeio a cordilheira dos Andes, ou o grande oceano. Quando tivesse

todas as boas qualidades que não tem, basta-lhe um só defeito, ser filho

de rei, e também rei nascido e criado no despotismo, com 25 anos de

hábito sultânico, cujo espírito é já para ele uma segunda natureza62.

José Bonifácio acreditava que a sua deportação para a França teve como causa o

medo que a corte sentia a respeito de sua presença junto ao monarca, e assim denunciou:

Fomos presos, e fomos deportados violentamente sem crime e sem

sentença: assim a nossa liberdade pessoal, e os nossos interesses

individuais foram atrozmente violados, o que nunca se praticou em

nenhum governo absoluto europeu, que tem consciência e vergonha. [...]

A nossa deportação, pois, foi e continua a ser um atentado não só

injusto e inconstitucional, mas igualmente impolítico e imoral, [...]63.

E para justificar a tese de que a sua deportação tinha como causa o medo, ele

escreveu esta passagem: “Embora no meu desterro mil cães gozos brasileiros ladrem contra

62 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 205. 63 Ibid., pp. 244-5.

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mim; um só escrito meu se pudesse, ou quisesse publicá-lo, lhes meteria o rabo entre as

pernas”64. Já no texto denominado “Todo governo em revolução só faz descontentes”, ele

atribuiu a sua deportação a uma provável intriga provocada por interesses de Mareschall,

Embaixador da Áustria65: “Essa dissolução fora de tempo foi obra de orgulho e da

vaidade, de intrigas e ódios ridículos, e talvez das insinuações do agente da Áustria”66.

A relação de José Bonifácio com a imprensa foi bastante contraditória, porque há

momentos em que ele defendeu a liberdade de imprensa da mesma forma que insurgiu-se

contra ela. No texto “Para conservar-se um Estado” ele referia-se à conservação do

Estado, alegando que a liberdade [...] de imprensa só sujeita à lei ex post facto porém não

ante factum”67. Entretanto, ele questionou a Constituição no texto “De que serve a

constituição de papel?”, dizendo que o brasileiro deveria derramar o sangue para

conservar: “a liberdade de imprensa”68.

Em outro texto sobre as reformas, ele defendeu a idéia de que todas as cidades das

províncias brasileiras deveriam possuir uma imprensa, a despeito de ele achar que ela era

um pouco devassa. Ele chegou até mesmo a propor “Recolher todas as gazetas e panfletos

políticos; extrair o que nos possa dizer respeito, e comentá-lo”69.

José Bonifácio reclamou do Imperador pelo fato de o governo não concordar em

dirigir a imprensa enquanto ela declamava contra os ministros. Entretanto, quando o

jornalista Luiz Augusto May, redator do periódico A Malagueta, falou mal do Imperador e

de José Bonifácio, a repressão foi imediata culminando com ferimentos graves no

jornalista.

64 J. B. de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil, p. 247. 65 O Barão Wenzel von Mareschall, foi embaixador austríaco no Brasil na época da independência. Por ser defensor do absolutismo monárquico ele era contrário à Assembléia Geral Constituinte. 66 J. B. de Andrada e Silva. op. cit., pp. 207-8. 67 Ibid., p. 152. 68 Ibid., p. 235. 69 Ibid., p. 218.

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118

Após a cisão entre o Imperador e José Bonifácio, esse acusa o periódico O Diário

de anunciar somente “[...] viagens e passeias de Pedro, mas porque não anuncia igualmente

quantas vezes ele mija e cag... diariamente?70.

Encerramos assim a primeira parte da presente obra. A segunda parte será dedicada

à releitura crítica do discurso de José Bonifácio por mediação da teoria social francesa

contemporânea.

No primeiro Capítulo, faremos uma releitura nos discursos de José Bonifácio segundo os

termos conceituais de Gilles Deleuze: territorialização, desterritorialização, ciência régia e nômade,

religião e nomadismo, espaço liso, espaço estriado e máquina de guerra. Lembramos, entretanto, que

este último conceito se encontra também no terceiro Capítulo, em que Paul Virilio será utilizado para

explicar a gênese conceitual do casamento.

Em Deleuze veremos que a máquina de guerra é usada para esclarecer a irrupção de

um fenômeno contra os aparelhos de Estado. O conceito de desterritorialização é utilizado

tanto no primeiro como no terceiro Capítulos. Entretanto, Deleuze utiliza-o no primeiro

Capítulo para justificar a forma de desfazer e confundir o espaço territorializado pelo

inimigo, e Virilio utiliza-o para justificar a capacidade de aniquilamento que têm as

tecnologias em determinado espaço em função da velocidade potencial de destruição.

70 J. B. de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil, p. 252.

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SEGUNDA PARTE

RELEITURA DE JOSÉ BONIFÁCIO: NOVOS PRISMAS TEÓRICOS E CONCEITUAIS

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CAPÍTULO I

MÁQUINA DE GUERRA,

TERRITORIALIZAÇÃO E ESPAÇO

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Nesta Segunda Parte faremos uso dos conceitos de Deleuze, Bourdieu, Virilio,

Maffesoli e Clastres para confrontar as ações dos aparelhos de Estado. No discurso de José

Bonifácio, nem sempre a presença desses aparelhos estão explícitas. Ao comunicar à

Assembléia Geral e Constituinte do Império do Brasil as suas intenções de transformar a

sociedade indígena em prol da construção de uma nação homogênea, ele recorreu aos

mecanismos do aparelho de Estado absolutista para fazer valer seu pensamento.

Os conceitos de Deleuze presentes neste primeiro Capítulo - máquina de guerra,

territorialização, desterritorialização, ciência, religião e nomadismo, espaço liso e espaço estriado se

encontravam no discurso de José Bonifácio, e serão usados como crivo de análise.

1. Máquina de Guerra

Gilles Deleuze propõe que a máquina de guerra seja anterior e exterior ao Estado e,

para justificar sua proposição, ele apóia-se na mitologia indo-européia estudada por

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Georges Dumézil e na teoria dos jogos do Xadrez e do “Go”1. No mito, o poder do Estado

revela-se numa díade não excludente, “[...] a do rei-mago, a do sacerdote-jurista [...]”2 sem

no entanto utilizar-se da máquina de guerra para atingir os seus fins porque a soberania de

um rei, de um imperador, de um sacerdote ou de um déspota é ritualmente justificada por

regras e códigos de valores predeterminados; já a máquina de guerra, não sendo estatal,

apresenta-se na forma de “[...] malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose”3.

Na teoria dos jogos, o Xadrez, representa o poder estatal institucionalizado com

toda uma corte pré-estabelecida, em que cada peça tem valor próprio e intrínseco ao seu

movimento e hierarquia, num espaço estriado; já o go, representando uma máquina de

guerra, compõe-se de peças simples, mas com poder de aniquilamento sem precedentes e,

acima de tudo, sem hierarquia num espaço indeterminado. O embate dar-se-á entre o

“Espaço ‘liso’ do go, contra espaço ‘estriado’ do xadrez. Nomos do go contra o Estado do

xadrez, nomos contra polis”4.

Os projetos de José Bonifácio podem ser vistos pelo prisma dessa teoria. O Estado,

como ele defendia em seus “Apontamentos...”, tinha como objetivo o estriamento do

espaço então ocupado pelos índios, para, posteriormente, reterritorializá-lo em função dos

interesses políticos e econômicos, como deixou claro em “Avulsos”, no qual ele propunha

a exploração do Brasil e [...] seus vastos sertões em duas expedições, uma de norte a sul, e

outra de leste a oeste”. 5

A essa proposta de estriamento espacial em que haveria a desterritorialização do

espaço indígena, segue a de ocupação e reterritorialização desse espaço para [...] os que

1 O “Go” é a denominação japonesa para um jogo criado na China cerca de quatro mil anos, bastante conhecido nos países orientais – Wei-chi na China ou Baduk na Coréia. O “Go” e o Xadrez apresentam aparente similaridade. Contudo, os seus objetivos são opostos: enquanto o Xadrez tem como objetivo a captura do rei e a destruição de cada peça, com valores diferenciados, o “Go” tem como objetivo o cerco e a manutenção do território inimigo utilizando-se de peças de igual valor. 2 G. Deleuze, Mil platôs, p. 12. 3 Ibid., p. 13. 4 Ibid., p. 14. 5 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 179.

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123

dividirem as grandes terras para novos colonos [...] prepararem maior extensão de terra

para a lavra e arado”.6

Ainda em outro texto “Avulsos” também avulsos, ele especifica a forma de

produção: “Agricultura, e mais agricultura e todos os meios de estendê-la e aperfeiçoá-la –

depois minas e bosques”7.

2. Territorialização e Desterritorialização

Para o nosso contexto de pesquisa, importam-nos nesse aspecto, dois conceitos:

territorialização e desterritorialização8. O primeiro conceito refere-se à demarcação de um

espaço em que fica clara a hegemonia do demarcante pela mediatização do território

geográfico. Quando isso é feito pelo Estado, a mediação dá-se pela introdução do regime

de propriedade privada do solo. O segundo conceito importa na utilização do espaço

apenas como suporte de deslocamento. É nesse sentido que Deleuze explica o porquê do

nômade valorizar a desterritorialização enquanto o migrante o faz pela territorialização.

Ao proceder a demarcação do território onde se desenvolve o jogo, o Xadrez

territorializa o espaço demarcando-o para sua operacionalização, o que não ocorre com o

go porque enquanto esse territorializa o espaço para fazer frente ao inimigo, pode ao

mesmo tempo desterritorializar esse mesmo espaço para tornar confusas as suas ações e,

assim, confundir o adversário.

A máquina de guerra será sempre anti-estatal e, quando capturada pelo Estado,

perde o estatuto de irracionalidade para tornar-se instituição militar – então tornada estatal

6 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 178. 7 Ibid., p. 272 8 Esse termo será utilizado no Capítulo III, da Segunda Parte, quando estivermos analisando os conceitos de Paul Virilio. Entretanto, esse autor concebe a desterritorialização como a capacidade potencial de destruição dos artefatos dromológicos, em relação à demarcação de espaços geográficos. Para Virilio isso se traduz em domínio sob o prisma das elites e desenraizamento para as massas.

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124

e moldada segundo os interesses de soberania do Estado. Isso justifica plenamente a razão

pela qual Deleuze afirma a desconfiança dos Estados frente às instituições militares.

Combatendo os clássicos da ciência política, que defendem o evolucionismo das

sociedades a partir da formação dos grupos clânicos até a das sociedades mais complexas –

já que esse pressuposto começa da anarquia dos clãs e bandos até as organizações dos

impérios e Estados –, Deleuze afirma que o Estado soberano não é, necessariamente, o

predecessor de um estado anárquico, posto que a soberania só se materializa sobre um

outro externo aos seus interesses. Logo, o Estado soberano só o é em relação a um outro

que se apresenta alienado, fora do controle do soberano. É nesse fora que Deleuze enxerga

as máquinas de guerra que tanto podem se apresentar em forma de “[...] bandos, margens,

minorias, que continuam a afirmar seus direitos de sociedades segmentarias9, contra os

órgãos de poder do Estado” ou máquinas autônomas em relação ao Estado tais como os

“[...] complexos industriais, ou mesmo formações religiosas como cristianismo, o

islamismo, certos movimentos de profetismo ou messianismo etc.”10

Para Marshall Sahlins, o Estado é concebido como uma sociedade civilizada em

que:

1) existe uma autoridade pública oficial [...] 2) o domínio dessa

autoridade governante é territorialmente definida e subdividida [...] 3) a

autoridade reinante monopoliza a soberania [...] 4) todas as pessoas e

grupos do território são como tal [...] súditos do soberano, de sua

jurisdição e coerção11.

9 Para M. Sahlins uma sociedade segmentária é caracterizada pela descentralização e funcionalidade, em que os grupos de parentesco ou grupos locais assumem as funções de controle que normalmente seriam deveres exclusivos de instituições voltadas para esse fim, como educação, saúde, política, religião, economia etc. Para P. Clastres a economia dessas sociedades pode ser entendida como a resistência “[...] em se deixar tragar pelo trabalho e pela produção, através da decisão de limitar os estoques às necessidades sóciopolíticas, da impossibilidade intrínseca da concorrência [...]”. Sobre este tema veja-se P. Clastres, op cit., p. 139. 10 G. Deleuze, Mil platôs, p. 23. 11 M. Sahlins, Sociedades tribais, p. 16.

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125

Se a soberania do Estado sobre o espaço só pode se dar a partir do momento em que

ele tiver o pleno controle sobre o território e seus ocupantes, o Estado brasileiro

necessitaria impor sua soberania perante às comunidades indígenas. O estriamento do

espaço seria a primeira medida como estratégia territorial, e como [...] sistema de

imposição, arrecadação, e despesas [...]12, como ardil político-econômico.

Segundo Deleuze, o homem de guerra sempre foi estigmatizado pelo Estado, que vê

no guerreiro “[...] estupidez, deformidade, loucura, ilegitimidade, usurpação, pecado

[...]”13. O estigma do homem de guerra está na própria essência do ser “homem de guerra”,

porque como tal, ele representa constantemente um perigo para o Estado, posto que é um

estranho, um portador de anomalias, e como estranho ele será tratado, a não ser que se

deixe capturar pelo aparelho de Estado, para aos poucos, ir perdendo o estigma negativo.

Segundo P. Bourdieu, a destruição do estigma só se dá a partir da destruição mesma

dos “fundamentos do jogo [...] e que se façam desaparecer os mecanismos por meio dos

quais se exerce a dominação simbólica e, ao mesmo tempo, os fundamentos subjectivos e

objectivos da reivindicação da diferença por ela gerados”14. Entretanto, ele aponta o

separatismo como o único meio eficaz no combate aos efeitos da dominação produzidas

pelos bens culturais, dos quais o estigma se tornou parte, mesmo que simbolicamente.

No caso exclusivo do domínio cultural português sobre a colônia brasileira, a

imposição da língua portuguesa em detrimento de centenas de línguas autóctones é um

exemplo de como as línguas indígenas foram estigmatizadas simplesmente porque foram

objetos de um estigma negativo.

12 J. B. de Andrada e Silva, p.151. 13 M. Sahlins, Sociedades tribais, p. 15. 14 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 127.

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126

3. Ciência

A ciência é outro conceito que Deleuze estudou, demonstrando que ela tanto pode

estar a serviço do Estado, ciência régia, ou da máquina de guerra, ciência nômade. Para ele,

a ciência tem sua origem no “modelo hidráulico” dos fluidos e não nos sólidos como

afirmam os manuais científicos. A ciência nômade é não só exterior ao Estado como até

mesmo “[...] inibida, ou proibida pelas exigências e condições da ciência de Estado”15. A

ciência régia normatiza todo o conhecimento adquirido pelos seus cientistas, bem como

aqueles que ela consegue capturar da ciência nômade. Exemplo disso foi Vauban (1633-

1707)16, Marechal Francês e Comissário Geral de Fortificações de Luís XIV e responsável

pela colonização francesa no Canadá.

O interesse do Estado em domar a ciência nômade justifica-se por sua necessidade

de controlar o fluxo de movimentos não só dos fluidos: (rios, lagos, mares etc.) como

também do contingente humano (sob as formas de minorias rebeldes, bandos, maltas etc.).

A ciência régia age no estriamento dos espaços, territorializando-os para se fazer soberana

frente ao Estado soberano, enquanto a ciência nômade, por não obedecer tais normas

disciplinares, tende a fluir nos espaços lisos, desterritorializados e fora do alcance da

soberania estatal. Isto nos faz entender o controle que o Estado exerce sobre as construções

que regulam os fluxos humanos: (pontes, viadutos, arcos, etc.), bem como o fluxo do

comércio por todas as vias (fluvial, lacustre e marítima, através de canoas, barcos, navios,

fortificações etc.).

O padre João Daniel também pensou no controle do fluxo de índios do mato para os

aldeamentos, de forma a não permitir a sua fuga em retorno ao local de origem. Assim, ele

15 G. Deleuze, Mil platôs, p. 26. 16 Sébastien le Preste de Vauban foi também membro da Academia de Ciências da França. Ele foi considerado um dos mais renomados engenheiros militares especialista em fortificações. Seu grande mérito estava em adaptar o sistema de defesa às condições geográficas.

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sugeriu mantê-los bem longe de suas terras “e não os aldear perto, porque quanto mais

longe estiverem, mais seguros estão de tornar a fugir, e pelo [contrário] estando perto,

estão prontos a abalarem em tendo qualquer desconsolação na aldeia [...]”17.

No texto “Para ajuizar sobre o estado político da nação”, José Bonifácio

manifestou, também, sua preocupação com o controle dos fluxos, tanto de índios, quanto

do comércio. Nesse documento ele propôs que fosse feita:

1º) Uma boa carta, em que os diversos distritos estejam notados, e

distintos por seus nomes, e ainda por cores.

2º) Uma exata descrição do país, sua história natural, suas produções, e

cultivação, sua divisão por comarcas; o número, grandeza, e situação das

cidades, vilas, e freguesias, o cálculo mais exato da gente, o estado das

fortalezas; e portos de mar; a indústria, artes, e marinha; o comércio que

se faz, e o que se poderia fazer etc18.

No texto “Colônia de pretos”, ele queria o estabelecimento de [...] pescarias bem

dirigidas e salgações e barcos de costas com negros marinheiros e pilotos brancos [...]. Não

comprar nada da Europa senão para vestidos finos e coisas de acepipes”19. Em “Avulsos”,

ele acrescenta ainda “formar uma flotilha [...] à maneira sueca [...] reformar o sistema de

capitães-mores, milícias, tropas de linha, magistrados”20. Ele questionava as distâncias que

separavam as províncias e, principalmente, a falta de estradas que pudessem fazer a ligação

entre os pontos de comércio e administração - “Onde estão os palácios, e ainda as estradas

por onde rodem as carroças da casa imperial?”21. E finalmente ele lamenta a inoperância

17 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 381 Vol. 2. 18 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 162. 19 Ibid., pp. 158-9. 20 Ibid., p. 173. 21 Ibid., p. 256.

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128

da polícia brasileira por ser ela “[...] uma potência oculta, que não recebe forças senão da

opinião que se tem no seu chefe [...]”22.

Pelo exposto, percebem-se as falhas e obstáculos operacionais que José Bonifácio

percebeu existirem nos aparelhos da máquina burocrática estatal. No ramo do comércio,

deixou entender que o Brasil não deveria importar o que tinha condições de produzir,

desde que fossem feitos investimentos adequados no setor da pesca. No que se refere à

justiça e defesa do Estado, propôs que fossem reformadas tendo em vista a administração,

a segurança, a proteção do Estado e, conseqüentemente, do comércio. Entretanto, ao

lamentar a ineficácia do aparelho repressivo do Estado brasileiro, ele não percebeu que o

seu funcionamento obedecia justamente à relação entre o corpo disciplinado (corporação

militar) e a administração estatal. Segundo Deleuze, a relação que o Estado mantém com o

trabalho de seus funcionários é muito diferente daquela que a máquina de guerra tem com

os seus afiliados. O Estado não consegue manter um mínimo de solidariedade em seu

corpo de funcionários, porque a relação que os nutre é assaz hierarquizada, vigiada,

suspeita dentro do corpo coletivo estatal, posto que o Estado retira toda a capacidade de

operação dos seus funcionários, porque:

[...] não confere um poder aos intelectuais ou aos conceptores; ao

contrário, converte-os num órgão estreitamente dependente, cuja

autonomia é ilusória, mas suficiente, contudo, para retirar toda potência

àqueles que não fazem mais do que reproduzir ou executar.23

Já o nomadismo da máquina de guerra opera numa relação de profundidade tal com

o seu corpo de simpatizantes que acaba por torná-lo uma ‘solidariedade agnática’ ou

natural – na expressão de Deleuze. Esta solidariedade original, natural, tem seu

fundamento nos laços e linhagens familiares que acabam formando um verdadeiro 22 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 231. 23 G. Deleuze, Mil platôs, p. 35.

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129

“espírito de corpo” agnático, nutrindo e fazendo uma máquina de guerra perene, quase

como mágica. Esta mesma posição é defendida por Sahlins segundo o qual a solidariedade

do grupo está na sua descendência comum de linhagens.

Ao impor uma camisa-de-força à ciência, o Estado buscou estriar o conhecimento

científico para poder domá-lo e legalizá-lo segundo seus preceitos ideológicos de

racionalização científica. Portanto, essa pretensa racionalidade não se sustenta porque os

segredos científicos estatais ficam tão bem guardados nas magias laboratoriais, que acabam

por igualarem-se às magias sacerdotais, que imperavam nas ciências nomádicas. Segundo

Deleuze, só existe a magia, o mistério e a irracionalidade nas ciências régias a partir do

momento em que elas caem em desuso, a exemplo do que ocorreu com a astrologia e a

alquimia.

O Estado se acha política e juridicamente no direito de ser a única instituição capaz

de agir como catalizador entre o corpo rebelde da máquina de guerra (bando, malta etc.,) e

o corpo disciplinado de “sujeitos dóceis” do aparelho estatal (funcionalismo, sociedade

civil etc.). Contudo, esse Estado aparentemente racional exigirá cada vez mais a obediência

do sujeito. O seu postulado é obediência [...] sempre, pois quanto mais obedeceres, mais

serás senhor, visto que só obedecerás à razão pura, isto é, a ti mesmo”24. Mas isto contraria

toda a filosofia da máquina de guerra nomádica, pois ela obedece tão-somente ao espírito

de corpo, o nomos da tribo.

Vejamos o que Deleuze disse sobre a tribo:

A tribo-raça só existe no nível de uma raça oprimida, e em nome de uma

opressão que ela sofre: só existe raça inferior, minoritária, não existe raça

dominante, uma raça não se define pela sua pureza, mas, ao contrário,

24 G. Deleuze, Mil platôs, p. 45.

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pela pureza que um sistema de dominação lhe confere. Bastardo e

mestiço são dois verdadeiros nomes de raça25.

Outro estudioso da tribo, o pesquisador e antropólogo Marshall Sahlins, definiu-a

como:

[...] um corpo de pessoas de origem e costumes comuns, que possui e

controla toda a extensão de seu território [...] suas várias comunidades

não estão unidas sob o governo de uma autoridade soberana, nem os

limites do todo estão clara e politicamente determinados26.

Outras características usadas para a definição de tribo relacionam o parentesco e a

conduta do grupo pautada em instituições que regulamentam a vida econômica, social,

ritual e as crenças do grupo como um todo. Last but no least, outra característica é a

ausência de uma identidade, porque segundo a expressão de Sahlins “não tem nome,

exceto enquanto as pessoas são consideradas ‘indesejáveis’ ou algo semelhante por seus

vizinhos”27.

As características que marcam o espaço cultural e territorial das tribos, não raro sua

trajetória se prestam a se confundir com a dos imigrantes. Entretanto, o imigrante é o

sujeito que parte de um ponto definido em direção a outro, mesmo que incerto.

A imigração proposta por José Bonifácio tinha origem certa, mas os pontos de

chagada eram difusos, com referências apenas regionais, sem pontos específicos de

fixação. Como exemplo, ele fala em trazer o índio do mato para a aldeia, mas não

especifica um local, alegando apenas que não sejam aldeados índios de nações inimigas.

Ele dizia ainda que não se deveria aldear menos de “150 almas” ou 35 casais nas aldeias

mistas, contendo estas não mais que “um terço de brancos”. Já o nômade difere do

25 G. Deleuze, Mil platôs, p. 50. 26 M. Sahlins, Sociedades tribais, p. 7. 27 Ibid., p. 30.

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131

imigrante justamente pelo fato de não caminhar tendo em vista um itinerário prescrito,

demarcado, porque “[...] os pontos são para ele alternância num trajeto”28, e não um fim a

ser definido, como o é para o imigrante que parte em um espaço demarcado, estriado, à

procura da polis estática, cercada, murada. Os pontos nomádicos são distribuídos num

espaço liso, portanto, não comportam uma chegada, um fim, porque a partida é uma

constante no nomos fluído, aberto. Era justamente esse nomos fluído, que os índios

procuravam em sua errância sob a denominação de Yvÿ Marã Eÿ ou Terra sem Mal.

Dessa forma como foi colocada a questão da imigração, para José Bonifácio, não

passava de um simples deslocamento numérico de corpos de um ponto a outro, atendendo

assim à eficácia territorializante de interesse do Estado. Ocorre, porém, que o índio não

poderia ser tratado como imigrante, e sim como nômade. Conseqüentemente, não se

poderia administrar um deslocamento de corpos e territorializá-lo, porque sendo nômade

importaria a eles o deslocamento desterritorializado. Em que pesem as experiências dos

jesuítas no processo de aldeamentos indígenas, era de conhecimento na época que a

Companhia de Jesus só obteve êxitos onde houve a atuação de aparelhos repressivos. De

outro modo, as fugas seriam constantes.

Na afirmação de Toynbee de que o nômade é “aquele que não se move”, temos

claramente que a posição do nômade é de uma mobilidade constante. Ele não se move

porque ele é o próprio móvel, inversamente do que ocorre com o imigrante, que é, por

natureza, fixo. Por isso, é tão difícil e estranho compreender seu deslocamento. E é

justamente por ser fixo que o imigrante é capturado pelo aparelho de Estado para,

posteriormente, tornar-se senhor e fustigar o nomadismo em nome de uma razão estatal.

Esse papel de captura foi desempenhado tanto pelos bandeirantes, quanto pelos

bugreiros do sul do país e, em especial, sob o comando dos senhores de engenho do

28 G. Deleuze, Mil platôs, p. 51.

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132

nordeste – Garcia D’Ávila, Teles Barreto, Cristóvão de Barros, Fernão Cabral29 etc.

Nesses exemplos, o capturado na qualidade de força de trabalho, cumpre o papel

determinado pelo aparelho de Estado, como também atua como força policial, na captura

dos nômades, a serviço do seu opressor, o Estado. Segundo Alencastro, uma:

provisão régia de 1672 dá aos moradores um desconto de dois

terços nos direitos de entrada dos escravos angolanos

importados no Maranhão. Motivo alegado à concessão do incentivo

fiscal: ‘se diminuirá a ambição daqueles moradores no cativeiro dos

índios’. Logo depois, a fim de iniciar o cultivo do anil – encarecido em

Lisboa por causa da perda das zonas de comércio asiáticas especializadas

no produto -, o governador do Maranhão traz de Lisboa um ‘engenheiro

anileiro’ e manda vir cinqüenta escravos de Angola30.

Em conseqüência desta Provisão, ocorreu um episódio conhecido como revolta de

1684, liderada por Manuel Backman31. O padre João Daniel relatou que, na tentativa de

dominar os nômades, os portugueses exterminaram entre 1615 e 1652 “com morte violenta

para cima de dous milhões de índios, fora os que cada um chacinava às escondidas”32. E

nesta matança até os escravos negros eram utilizados no extermínio dos índios:

um mineiro, entrado em um rio com o intento de tomar os seus haveres e

comércio com os índios, como costumava quando os viu mais

descuidados, de repente os investiu com uma boa comitiva de pretos, e

fizeram tal matança neles, que corria o sangue em rios; e destas áfricas

têm feito muito outros portugueses33.

29 Sobre as ações destes senhores, veja-se R. Vainfas, A heresia dos índios, cap. 3. 30 L. F. de Alencastro, O trato dos viventes, p. 141. 31 Os irmãos Thomas e Manuel Backman lideraram em 1684, no Maranhão, o que ficou conhecido como Revolta de Backman. Contrários à Companhia de Jesus por defender os índios da escravidão, os revoltosos destituíram o governador e a Companhias de Comércio de Estado do Maranhão. Em 1685, Thomas foi preso pelo novo governador Gomes Freire de Andrada; seu irmão, Manuel, juntamente com outros revoltosos, foram enforcados e decapitados. 32 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 352. 33 Ibid., p. 352.

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José Bonifácio não tinha certeza da eficácia de seu projeto. Nos artigos 10º e 11º

dos “Apontamentos...”, ele previu medidas para evitar as possíveis reações contra o desejo

de aculturação que permeava seu discurso. Por isso, propôs a construção de presídios e

cadeias, com o propósito de conter os tumultos e as desordens que eventualmente poderiam

ocorrer. Impedir os imigrantes oriundos da África, era bem diferente, porque a eles não

restava a possibilidade de territorialização, exceto pelas quilombadas; quanto aos índios,

somente pela desterritorialização poderiam ceder aos interesses de aculturação que estava

sendo propostos nos discursos de José Bonifácio.

A territorialização é um conceito que só pode ser aplicado ao sedentário – daí ser

extensivo ao imigrante – porque a relação do sujeito com o espaço, o território a ser

ocupado “[...] está mediatizado por uma outra coisa, regime de propriedade, aparelho de

Estado [...]”34. No caso do nômade, a sua relação com a terra não sofre a mediação advinda

de propriedade codificada na jurisprudência da polis, que pela delimitação, demarcação –

cercas, muros, vertentes, rios etc. – reterritorializa o espaço em nome daqueles que acatam

a soberania do Estado. Mas, no caso do nômade, a territorialização dá-se pelo próprio ato

da reterritorialização, numa clara expressão do possuir sem ter, do estar sem ser, já que não

é demarcado por liames.

A mediação da terra para o índio está simplesmente no estar, sem permanecer. Esse

estar é tão-somente uma passagem que territorializa pela desterritorialização e vice-versa.

Entretanto, o que dificulta a compreensão desta aparente contradição é a visão etnocêntrica

ocidental, pautada pela produção baseada na instituição da propriedade privada.

34 G. Deleuze, Mil platôs, p. 153.

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4. Religião e nomadismo

O fazer com que o absoluto apareça num lugar – não é esta uma

característica das mais gerais da religião [...]? num centro que repele o

nomos obscuro. O absoluto da religião é essencialmente horizonte que

engloba, e, se ele mesmo aparece num lugar, é para fixar ao global o

outro sólido e estável35.

A lição que se pode tirar desta afirmação é que, pelo poder de conversão do

absoluto, a religião acaba por servir ao interesse do Estado, que almeja a conversão do

nômade: (bando, malta, turba etc.), bem como do outro, do imigrante. Para tanto, o Estado

utilizou-se de vários artifícios para promover a transformação das sociedades segmentárias

em sociedades produtivas conforme os interesses estatais através das ações missionárias

que “[...] impuseram: a forma da aldeia e das casas, as atividades cotidianas, a economia, o

sistema de parentesco, as relações intertribais... tudo isso transformado. Sobre a ruína da

sociedade antiga, edificou-se uma sociedade de tipo inteiramente diferente”36. Acrescenta-

se ainda que, competia aos missionários em nome do Estado, não só a transformação

espiritual dos selvagens tidos como gente na forma de homens e feras na rusticidade como

também pelos instrumentos de fervor e fé torná-los produtores para o Estado. Por isso

constituiu-se em missão da conversão o:

[...] visitar, curar, despedir e assistir aos doentes, repartir a todos o que

pedem, e enfim ser pedagogos, diretores, padres espirituais, e acariciá-los

como fazem as mães a seus filhos; [...] Levou esta [roto o manuscrito]

Majestade o Senhor D. João V de gloriosa memória para visitar as

missões do Amazonas, que administravam os regulares de diversas

religiões [...]37.

35 G. Deleuze, Mil platôs, p. 54. 36 H. Clastres, Terra sem Mal, p. 11. 37 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 343. Vol. 2.

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Porém, a conversão do nômade não era fácil, e até mesmo quase impossível de ser

realizada, visto que ele não admitia limitação do absoluto, porque esse podia estar em

qualquer lugar. Por isso a afirmação de Deleuze, para quem “Os nômades têm um

‘monoteísmo’ vago, literalmente vagabundo, e contentam-se com isso, como fogos

ambulantes. Os nômades têm um senso absoluto, mas singularmente ateu”38.

O projeto de José Bonifácio foi concebido em função do Estado absoluto e, assim,

não poderia admitir a soberania nomádica, razão pela qual, em seu discurso, não

encontramos um só artigo que incentive ou reconheça a autonomia e soberania cultural dos

índios.

O que há de absoluto e ateu no nômade é a presença do divino na legalidade que

sanciona os atos acometidos na sociedade segmentária: o seu comportamento moral, ético,

disciplinar, produtivo, guerreiro, reprodutivo etc., que os tornam dependentes de suas

deidades. Segundo o pensamento de Sahlins:

[...] as crenças espirituais espelham a estrutura da sociedade; que os

deuses, mitos e práticas rituais simbolizam os valores e relações sociais

básicos, de que tudo isso funciona para integrar a sociedade, prover

coesão, promover solidariedade e manter a continuidade39.

É por isso que o Estado nunca abandonou a idéia de estriar o espaço religioso

tragando-o para o seu seio. Mediante o controle do sobrenatural, pode controlar o outro em

suas incertezas e contradições. Daí a afirmação de Sahlins de que:

[...] as culturas encontram deuses nas trincheiras. Quando os meios

econômicos e políticos normais falham, as reservas sobrenaturais são 38 G. Deleuze, Mil platôs, p. 55. 39 M. Sahlins, Sociedades tribais, p. 150.

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utilizadas para cobrir a brecha e dirigir a defesa.[...] No curso de seus

deveres gerais ou como um de seus aspectos, a religião pode aquietar

medos pessoais, instigar confiança, encorajar alguém a prosseguir40.

Entretanto, o ato próprio da religião querer absolutizar o horizonte, faz com que ela

ultrapasse não só os seus limites como também as fronteiras do Estado que a legitima.

Desta forma, paradoxalmente a religião acaba por infringir os liames da soberania para cair

no terreno da máquina de guerra pelas mãos do profetismo41. Este é o fenômeno que

explica os movimentos dos nômades que caracterizam a errância no espaço liso dos

profetismos.

Em nome do Estado, José Bonifácio propôs estriar o espaço sugerindo a

observância das leis, a implantação de um sistema de arrecadação de impostos, direito de

propriedade, legalização de títulos de terras numa quantidade máxima de 1300 jeiras42 ao

preço de duas patacas43 por jeiras, construção de estradas e canais para escoamento da

produção, reanimação da pescaria de baleias, aquisição de máquinas e instrumentos

europeus etc.

5. Espaço liso e estriado

O espaço liso nomádico é finito e tem como limites os espaços estriados pelos

meios “o da floresta, com suas verticais de gravidade; o da agricultura, com seu

quadriculado e suas paralelas generalizadas, sua arborescência tornada independente, sua

arte de extrair a árvore e a madeira da floresta”44. Para Deleuze, não resta ao nômade outra

40 M. Sahlins, Sociedades tribais, p. 151. 41 Os feitos de Fernão Cabral ilustram bem essa afirmativa. Sobre isso veja-se R. Vainfas, A heresia dos índios, Cap. 3. 42 Antiga unidade usada para medição de terras. 26 jeiras era o equivalente a aproximadamente 01 alqueire. 43 Antiga moeda da colônia. Uma pataca equivalia a 320 réis. 44 G. Deleuze, Mil platôs, p. 57

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137

alternativa que enfrentar o espaço estriado vertical da floresta e, posteriormente, os espaços

agrícolas. Isto faz com que o nomadismo jamais consiga uma organização que resista aos

efeitos das turbulências revolucionárias tal como consegue o Estado. Este, por sua vez, por

estar organizado numa composição não apenas “de homens, mas de florestas, campos ou

hortos, animais e mercadorias”45, acaba sofrendo o efeito revolucionário, mas transforma-

se com ele e ressurge em outro Estado. Isto explica o porquê dos Estados – no nosso caso o

absolutismo da metrópole – ter estado tão interessado no controle dos homens, nas riquezas

florestais, nos campos, nas várias espécies de animais e nas mercadorias do nosso

continente, posto que sem isto ele não poderia justificar sua existência, sua soberania.

Uma das tarefas fundamentais do Estado é estriar o espaço sobre o qual

reina, ou utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a

serviço de um espaço estriado. Para qualquer Estado, não só é vital

vencer o nomadismo, mas controlar as migrações e, mais geralmente

fazer valer uma zona de direitos sobre todo um ‘exterior’, sobre o

conjunto de fluxos que atravessam o ecúmeno. Com efeito, sempre que

possível o Estado empreende um processo de captura sobre fluxos de toda

a sorte, de populações, de mercadorias ou de comércio, de dinheiro ou de

capitais, etc.46.

José Bonifácio, como homem de Estado, Ministro e legislador, tentou capturar

todos os fluxos no espaço liso que representava o Brasil de sua época. Ao sugerir a

imigração para ocupar o espaço liso do nomadismo indígena, ele queria submeter não só o

homem como também estriar o espaço territorial; ao sugerir os produtos que deveriam ser

cultivados, ele queria manter o controle sobre o fluxo produtivo para atender às exigências

do comércio europeu e à riqueza do Estado.

45 Ibid., p. 58. 46 Ibid., p. 59.

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O mar é talvez o principal espaço liso, o modelo hidráulico por

excelência. O mar é também, de todos os espaços lisos, aquele que mais

cedo se tentou estriar, transformar em dependente da terra, com caminhos

fixos, direções constantes, movimentos relativos, toda uma contra-

hidráulica dos canais ou condutos47.

Assim, entre os artigos 19º e 31º dos “Apontamentos...”, José Bonifácio propôs que

os índios especializassem na pesca, na pecuária extensiva (gado vacum, carneiros e

cabras), além da obrigação de cultivarem algodão, tabaco, mamona, café, linho, cânhamo,

arroz, batata, trigo, feijão, centeio, milho, manduba (amendoim), mairá (mandioca-açu).

Entre tantas explicações elencadas pelos estudiosos do mercantilismo, essa é mais

uma que propõe esclarecer o motivo pelo qual Portugal e Espanha se tornaram os senhores

das navegações e, em especial, Portugal, que conseguiu manter um fluxo comercial

marítimo triangular auto-sustentável, tendo Lisboa como sede do empreendimento

europeu, Luanda como enclave Africano e a Costa Brasileira no continente sul-americano.

Na tentativa de absolutizar o espaço liso do Atlântico, estriando-o com as suas frotas

regulares, Portugal fez deste oceano a “estrada” que serviu para escoar as riquezas que

sustentaram a soberania do absolutismo estatal lusitano.

Alencastro ilustrou bem a manutenção do triângulo mantenedor do fluxo comercial

que drenou as riquezas do Brasil para sustentar a metrópole. Segundo ele, o comércio

Europa-Brasil-África era sustentado em sua vertente africana pela exportação da jeribita48

que chegou em Luanda entre 1699 e 1703 num total de 3447 pipas49, totalizando “uma

média anual de 689,4 pipas (310. 230 litros), a cachaça brasileira corresponde a 78,4% do

total das bebidas alcoólicas legalmente importadas em Luanda no decurso desses cinco

47 G. Deleuze, Mil platôs, p. 61. 48 Nome pelo qual era conhecida a aguardente brasileira, a “cachaça”. 49 Uma pipa equivalia a 450 litros, aproximadamente. Para se ter uma idéia da importância da exportação da jeribita brasileira em relação ao vinho português, no decênio de 1678 -1687 o vinho do Porto atingiu apenas 7768 pipas. Sobre esse assunto veja-se J.Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal económico, cap. VII.

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anos”, movimentando o comércio angolano até a independência brasileira, quando então a

jeribita foi tributada pelo Conselho Ultramarino Português. Ainda, segundo Alencastro, as

exportações de jeribita e fumo do Brasil foram responsáveis pela aquisição de 48% dos

escravos chegados à América entre 1701 e 1810.

6. Organização numérica de homens

Este tipo de organização apresenta diferenciações quantitativas quando representam

as máquinas de guerra e o Estado. Na concepção de Deleuze:

É nos exércitos de Estado que se colocará o problema de um tratamento

das grandes quantidades, em relação com outras matérias, mas a máquina

de guerra opera com pequenas quantidades, que ela trata por meio de

números numerantes50.

Assim sendo, a questão da organização numérica opera na máquina de guerra

diferentemente da organização estatal. Na máquina de guerra a formação numérica cumpre

uma função meramente subjetiva, ou seja, serve apenas para coordenar a ocupação do

espaço liso sem com isso demarcá-lo, porque “O número é o ocupante móvel, o móvel no

espaço liso, por oposição à geometria do imóvel no espaço estriado”51. O número neste

caso é tão-somente uma cifra, conforme explica Deleuze, “[...] e é a este título que ele

constitui o ‘espírito de corpo’, inventa o segredo e as conseqüências do segredo (estratégia,

espionagem, astúcia, emboscada, diplomacia, etc.)”52.

O espírito de corpo nomádico é por excelência heterogêneo, uma vez que, por atuar

no espaço liso, necessita de maior liberdade para atuação e articulação dos movimentos dos

50 G. Deleuze, Mil platôs, p. 65. 51 Ibid., p. 65. 52 G. Deleuze, Mil platôs, p. 66.

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140

homens, armas, animais – e, no caso dos índios, a articulação se fez mais com armas: arco,

flechas, tacape e barcos, como veículos, zarabatana, borduna, caiaques, bestilha etc.

Quanto à organização estatal, ela privilegia o número como possibilidade

quantitativa e geométrica, posto que os exércitos necessitam demarcar geometricamente o

seu espaço, estriando-o nas formas de muralhas, quartéis, fortificações etc, tendo em vista

o controle por parte do Estado para o controle estatístico.

Para José Bonifácio o Estado deveria estar organizado de forma a ser

reterritorializado segundo uma estrutura de segurança militar. Os índios eram amantes da

guerra, por isso mesmo, poderiam ser cooptados em função da defesa do Estado, motivo

pelos qual José Bonifácio previa a construção de instituições militares nos aldeamentos.

Com efeito, quando o Estado se apropria da máquina de guerra e a transforma em

um corpo de Exército, não é incomum que por questões táticas o Estado incorpore

elementos totalmente estranhos à base militar estatal (uma etnia, uma religião etc.) para

operar como servidores de um corpo especial que irá contrapor aos demais componentes

do aparelho estatal. Por esse motivo Deleuze notou que:

[...] o corpo especial, e particularmente o escravo-infiel-estrangeiro, é

aquele que se torna soldado e crente, mesmo permanecendo

desterritorializado em relação às linhagens e em relação ao Estado. Deve

ter nascido infiel para tornar-se crente, deve ter nascido escravo para

tornar-se soldado53.

José Bonifácio queria utilizar dos índios brasileiros como elementos na composição

de seus quadros militares, especialmente na guarda dos aldeamentos - como no caso dos

Batalhões do Exército Brasileiro, localizados no pantanal mato-grossense e na floresta

amazônica.

53 Ibid., p . 70.

Page 142: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

141

Considerando-se que os povos nômades não possuem uma história e sim uma

geografia, conforme a concepção de Deleuze, entendemos a história neste caso não como

um recorte seletivo de traços culturais de um povo específico, mas um referencial

instantâneo deste povo numa determinada coordenada no espaço liso em que ele se insere

como um móvel. Dessa forma, só nos resta concebê-lo pela ótica geográfica desde que

estejamos despidos dos pré-conceitos etnocêntricos.

É exatamente pelo etnocentrismo que as sociedades mediatizam as diferenças para,

posteriormente, identificá-las e tentar o seu aniquilamento. E esta não é uma característica

exclusiva da cultura ocidental posto que todas as culturas, sem exceção, julgam a sua

própria cultura como sendo a melhor em detrimento de quaisquer outras.

Os povos sedentários, muito pelo contrário, têm sua gênese e progressão espaço-

temporal parametrada na história de seus traços culturais, que tem como objetivo legitimar

os atos e fatos que explicariam a sua existência como povo específico, que estriam um

dado espaço geográfico num tempo, também específico. Como o sedentarismo leva à

criação de uma instituição que objetiva a legitimação da soberania deste povo sobre o

espaço que estriaram, tem-se assim o Estado. “É verdade que os nômades não têm história,

só têm uma geografia. E a derrota dos nômades foi tal, tão completa, que a história

identifica-se com o triunfo dos Estados”54.

O discurso de José de Bonifácio não foi questionado nem debatido por seus pares

ou aqueles a quem caberiam a sua execução; menos ainda, por aqueles que seriam

vitimados pelas ações advindas da aplicação dos “Apontamentos...” .

Se a geografia é o continente repositório da cultura dos nômades, em José

Bonifácio ela é apenas o espaço que seria estriado pelo Estado, para demarcar a cultura

produtiva, segundo a demanda metropolitana. Por isso, a máquina de guerra nômade

54 G. Deleuze, Mil platôs, p. 71.

Page 143: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

142

precisava ser desarticulada pelos aparelhos do Estado e convertida em instrumento dócil do

aparato estatal.

Segundo Deleuze:

[...] cada vez que um Estado se apropria da máquina de guerra, tende a

aproximar a educação do cidadão, a formação do trabalhador, o

aprendizado do soldado. Mas se é verdade que todo agenciamento é de

desejo, a questão é saber se os agenciamentos de guerra e de trabalho,

considerados em si mesmos, não mobilizariam primordialmente paixões

de ordem diferente55.

O aparelho educativo do Estado encontra-se presente em várias passagens do

discurso de José Bonifácio. No artigo 7º dos “Apontamentos...”, ele exigia dos

missionários que se instruíssem na língua geral, para que assim pudessem compreender a

cultura indígena e, conseqüentemente, miná-la com a introdução da Língua Portuguesa.

No texto “Civilização dos índios e coisas do Brasil”, ele deixou claro o papel que

deveria exercer os línguas (conhecedores da língua geral) no ensinamento da Língua

Portuguesa a todos os índios contatados.

Conforme o padre João Daniel, o projeto civilizatório lusitano prescindia da língua

portuguesa para poder surtir os efeitos desejados, porque “se o que se pretende nos índios é

civilizá-los, e fazê-los gente, este fim só, ou mais depressa, e com mais facilidade se

consegue com a língua portuguesa, do que com a linguagem dos índios”56. Essa é a mesma

proposta de José Bonifácio, para o qual deveria extinguir [...] nas aldeias com a língua da

terra, e ensinar os rapazes o português [...]”57, posto que ele considerava a Língua Geral

própria somente para as mulheres.

55 G. Deleuze, Mil platôs, p. 79. 56 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 335. Vol. 2. 57 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 128.

Page 144: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

143

José Bonifácio pretendia subtrair o indivíduo de sua condição nomádica para inseri-

lo num modelo de trabalho produtivo em função dos interesses do Estado. Isto implicaria,

dentre outras coisas, desarmar os índios e fazê-los adotar as ferramentas fornecidas pelo

Estado. “É que o modelo trabalho, que define a ferramenta, pertence ao aparelho de

Estado”58. Entretanto, essa proposta implicaria ainda educar o índio segundo os preceitos

do aparelho estatal. Daí José Bonifácio ter relacionado os trabalhos que ele considerava

próprios para os índios, a saber: sacerdócio, tropeiros, condutores, manufaturas, pesca,

navegação, soldados, pedestres, pescadores, caçadores, abridores de valas, derrubadores de

matas, puxadores de enxadas, peões, guardas de gado etc.

Para que haja trabalho, é preciso uma captura da atividade pelo aparelho

de Estado, uma semiotização da atividade pela escrita. Donde a afinidade

de agenciamento signos-ferramentas, signos de escrita-organização de

trabalho59.

Em sendo verdade fonética, que os nômades não necessitam de escrita, já que

poderiam utilizar a de seus vizinhos, temos o máximo, de que nossos índios necessitavam

da expressão de suas idéias através dos pictcogramas ou itacoatiaras, o que não quer dizer,

que eles não tenham tido história, até porque está inscrita tanto em seus mitos, quanto em

seus artesanatos, o que substitui a ourivesaria como arte bárbara, no dizer de Deleuze.

No encontro dos povos europeus com os índios verificamos aquilo que Deleuze

denomina quilt, isto é, [...]“a reunião de duas espessuras de tecidos pespontados

conjuntamente, entre os quais introduz-se freqüentemente um enchimento”60.

Deleuze fala do modelo de quilt que os europeus introduziram no Novo Mundo, e

que ao longo de um processo de adaptação foi incorporando traços das culturas dos

58 Ibid., p. 80. 59 G. Deleuze, Mil platôs, p. 80. 60 G. Deleuze, Mil platôs, p. 182.

Page 145: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

144

indígenas americanos. Metaforicamente temos então que na junção da cultura européia

com a americana formou-se um quilt cujo enchimento foi o resultado dos processos de

imposições e assimilações culturais, acrescidas ainda de certos traços exclusivos de uma ou

outra cultura.

No espaço estriado marítimo, as linhas e os trajetos são subordinados aos pontos,

indo de uma ponta A para outra B. Neste caso, as paradas são pré-fixadas, dando assim

mais importância à dimensão ou à métrica, a ser ocupada.

No espaço liso, os pontos são subordinados ao trajeto e é este trajeto que provoca as

paradas. O espaço liso comporta tão-somente uma direção em função dos objetivos do

grupo nomádico e a ocupação dá-se por “hecceidades”, acontecimentos efetivos ou

aleatórios que propriamente por atos pré-concebidos, porque nesse caso:

[...] o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as

forças e as qualidades tácteis e sonoras, como no deserto, na espete ou no

gelo. [...] O que cobre o espaço estriado, ao contrário, é o céu como

medida, e as qualidades mensuráveis que derivam dele61.

Ao índio, no seu espaço, comportava muito mais a natureza que se manifestava em

codificações áudio perceptivas, os sons e seus mínimos ruídos, as cores e suas matizes – e

as codificações que só poderiam ser percebidas pelo tato, num processo de

aperfeiçoamento ao longo de milhares de anos, enquanto aos colonizadores importava as

limitações formais aritmético-geométricas, a quadratura do espaço a ser estriado em função

de uma produção métrico-quantitativa.

O liso e o estriado se distinguem em primeiro lugar pela relação inversa

do ponto e da linha (a linha entre dois pontos no caso do estriado, o ponto

61 Ibid., p. 185.

Page 146: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

145

entre duas linhas no caso do liso). Em segundo lugar, pela natureza da

linha (liso-direcional, intervalos abertos; estriado-dimensional, intervalos

fechados)62.

“[...] desde os tempos mais remotos, seja no neolítico e mesmo no paleolítico, é a

cidade que inventa a agricultura: é sob a ação da cidade que o agricultor, e seu espaço

estriado, se superpõem ao cultivador em espaço ainda liso [...]”63. Ora, a polis necessita de

nutrir-se e, para tanto, cria a agricultura. José Bonifácio precisava das vias para controlar a

agricultura – daí o seu projeto civilizatório – e para tanto precisava sedentarizar o

nomadismo indígena, treinando-o para a agricultura.

62 G. Deleuze, Mil platôs, p.187. 63 Ibid., p. 188.

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CAPÍTULO II

PODER, SISTEMAS E VIOLÊNCIA SIMBÓLICOS

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147

Neste segundo capítulo, abordaremos o discurso de José Bonifácio pelo prisma dos

conceitos elaborados por Pierre Bourdieu: poder simbólico, ação pedagógica, autoridade

pedagógica, habitus, sistemas simbólicos e estigma dos dominados.

1. O poder simbólico

Segundo Pierre Bourdieu o poder simbólico não se apresenta tão concretamente

quanto à sua forma de manifestação, e que somente pode ser desnudado quando da

observação atenta de seus atos. Esse poder simbólico, por ser um elemento construtor da

realidade que nos rodeiam, Bourdieu propõe que, para desvendá-lo, seria:

[...] necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é

mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico

é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a

Page 149: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

148

cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou

mesmo que o exercem”1.

É necessário que o poder simbólico seja reconhecido o quanto antes, porque o seu

poder de mobilização para a construção ou desconstrução dos fatos, a despeito do mundo,

está assentado na sua força arbitrária. Entretanto, ele é legitimado tanto por aqueles que o

exercem quanto por aqueles que sofrem os seus efeitos.

Na concepção de Bourdieu, o poder simbólico é eficaz porque reside nas relações

da crença que envolve os dominantes e os dominados, de forma eufemisticamente tal que é

difícil ser destruído. E, para aniquilar o poder simbólico, não é suficiente a destruição dos

seus símbolos de – o cetro, o traje, a farda, a divisa, o brazão, o escudo, a logomarca, a

toga etc. – pois estes representam tão-somente o capital simbólico. O que é necessário

aniquilar mesmo é a crença, mas isto somente se fará pela conscientização de que:

A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos princípios

de hierarquização: as fracções dominantes, cujo poder assenta no capital

económico, têm em vista impor a legitimidade de sua dominação quer por

meio da própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos

conservadores os quais só verdadeiramente servem os interesses dos

dominantes [...]2.

Estes ideólogos, como manipuladores de uma heterodoxia ou ortodoxia do

conhecimento a serviço da dominação, acabam promovendo o afastamento dos dominados,

reforçando assim a crença especulativa no campo da doxa. Disso resulta na afirmação de

Bourdieu, de que é “[...] função propriamente ideológica do discurso dominante [...] impor

1 P. Bourdieu, O poder simbólico, pp. 7-8. 2 Ibid., p. 12.

Page 150: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

149

a apreensão da ordem estabelecida como natural (ortodoxia) por meio da imposição

mascarada [...]”3.

Haverá sempre violência simbólica quando o poder estiver representado um

momento em que determinado ato venha exigir a legitimação da arbitrariedade desse poder

meiante seus sistemas simbólicos – “[...] instrumentos de imposição ou de legitimação da

dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra [...]”4.

Para Bourdieu, a violência simbólica não se manifesta de forma clara, a ser

percebida de imediato, para não manifestar o arbítrio e sua corte de brutalidades. Assim, o

que vemos exposto na verdade são as formas etnocêntricas de comportamentos arbitrários

que, já internalizadas como traços culturais de uma dada sociedade, agem como se fossem

formas polidas e naturais de ações pedagógicas (AP) no tratamento do sujeito. Nem por

isso deixa de ser um “instrumento de repressão sutil que constitui a retração da afeição,

técnica pedagógica que não é menos arbitrária [...] que os castigos corporais ou a

reprimenda infamante”5.

2. Ação Pedagógica

Os modus operandi dos conceitos de ação pedagógica (AP) e autoridade

pedagógica (AuP), desenvolvidos por Bourdieu, remetem ao campo da Educação.

Entretanto, neste trabalho, tais conceitos serão ampliados para o desenvolvimento da

análise que envolve a questão da aculturação no seio das comunidades indígenas. Embora

outros conceitos pudessem ser utilizados para analisar os problemas gerados pela

3 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 14. 4 Ibid., p. 11. 5 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 39.

Page 151: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

150

aculturação, julgamos que, tanto a ação quanto a autoridade pedagógicas, atendem melhor

aos nossos objetivos.

Sob esse prima, analisaremos a pedagogia missionária que foi implementada pela

Companhia de Jesus e outras instituições religiosas que trabalharam junto às tribos

brasileiras.

As ações pedagógicas a serviço da violência simbólica fazem-se sentir no seio das

mais variadas instituições:

[...] em universos sociais tão diferentes como a Igreja, a escola, a família,

o hospital psiquiátrico ou mesmo a empresa e o exército, tendem todas a

substituir à ‘maneira forte’, ‘a maneira doce’ (métodos não directivos,

diálogo, participação, human relations, etc.) faz ver, com efeito, a relação

de interdependência que constitui em sistema as técnicas de imposição da

violência simbólica, características do modo de imposição tradicional

assim como aquele que tende substituir-se a ele na mesma função6.

Segundo Bourdieu, mediante as ações pedagógicas que a classe dominante exerce o

poder de reprodução de seus mecanismos de controle sobre a classe dominada,

mecanismos estes que objetivam, sobretudo, “assegurar o monopólio da violência

simbólica legítimo”7, exercidos pelas instituições também legitimadas pela estrutura de

poder instalada no seio da sociedade.

No discurso de José Bonifácio, a autoridade pedagógica (AuP) que deveria

legitimar as ações propostas em seus “Apontamentos...”, originar-se-iam das instituições

religiosas e militares. Os valores religiosos europeus que deveriam ser inculcados na

cultura indígena seriam transmitidos pela Congregação São Felipe Neri em substituição

aos trabalhos, que até então vinham sendo realizados pelos missionários jesuítas. Quanto

6 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 39. 7 Ibid., A reprodução, p. 25.

Page 152: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

151

aos valores militares, deveriam eles complementar os trabalhos dos religiosos, além da

introjeção dos valores cívicos necessários à defesa e à manutenção da unidade nacional.

José Bonifácio acreditava que as instituições religiosas e as militares pudessem

servir de canal de comunicação entre os interesses do Estado e as comunidades indígenas,

visto que sobre elas, ele depositou toda a esperança de disciplinar e civilizar os índios

bravos do império do Brasil.

No que se refere ao processo educativo, Bourdieu afirmou que era papel da

instituição escolar:

Inculcar pela educação implícita e explícita o respeito por disciplinas

‘lógicas’ tais como as que sustentam o sistema mítico-ritual ou a

ideologia religiosa e a liturgia e, ademais, impor as observâncias rituais

que, ao serem vividas como a condição de salvaguarda da ordem cósmica

e da subsistência do grupo [...] significa [...] perpetuar as relações

fundamentais da ordem social8.

Uma ação pedagógica é legitimada sempre por uma Autoridade pedagógica que, em

seu exercício de violência simbólica, acaba por contribuir para a sedimentação dos valores

da classe dominante, tornando-os quase universais em todos os segmentos sociais, dando

origem, assim, àquilo que Bourdieu denominou de “capital cultural” daquela sociedade.

A existência de uma Autoridade pedagógica é condição sine qua non para que a

ação pedagógica possa fazer sentir os efeitos desejados de sua violência sobre a sociedade.

Por isso, Bourdieu evoca o paradoxo de Epimêmides:

[....] ou acreditais que não minto quando vos digo que a educação é

violência e o meu ensino não é legítimo, logo não podeis acreditar-me; ou

8 P. Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, pp. 71-2.

Page 153: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

152

acreditais que minto e o meu ensino é legítimo, logo não podeis mais

acreditar naquilo que digo, quando digo que ela é violência9.

Nesses temos, fica evidenciado que todas as propostas cívico-educativas de José

Bonifácio, convergiam para a aplicação da violência simbólica, acrescida de violência

física, originada nas intenções de aldeamentos dos índios, pois além de propor a instituição

de uma educação utilitária, voltada para o aprendizado de interesse comercial – ler,

escrever, fazer contar, artes e ofícios –, revelava-se também doutrinária em sua essência

ético-religiosa, caracterizando assim uma violência contra os valores culturais indígenas.

Essa idéia de doutrinação não é exclusividade de José Bonifácio, porque ela

encontra-se no último capítulo do “Diretório dos Índios”, que assim se expressa:

Deste modo se conseguirão sem dúvida aqueles altos, virtuosos, e

santíssimos fins, que fizeram sempre objeto da Católica piedade, e da

Real beneficência dos nossos Augustos Soberanos; quais são; a dilatação

da fé; a extinção do Gentilismo; a propagação do Evangelho; a civilidade

dos Índios; o bem comum dos Vassalos; o aumento da Agricultura; a

introdução do Comércio; e finalmente o estabelecimento, a opulência, e a

total felicidade do Estado10.

A questão doutrinária foi abordada por Bourdieu que propôs duas alternativas como

resolução desse problema vinculado ao ensino:

[...] o ‘relativismo cultural’, i.e., o caráter arbitrário de toda a cultura, a

indivíduos que já foram educados conforme os princípios do arbítrio

cultural dum grupo ou [...] dar uma educação relativa, i.e., produzir

9 P. Bourdieu J-C Passeron, A reprodução, p. 32-3. 10 R. Heloísa de Almeida, O Diretório dos índios, p. 38. (do Anexo).

Page 154: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

153

realmente um homem cultivado que fosse o indígena de todas as

culturas11.

A legitimidade da ação pedagógica encontra-se no fato de que à classe dominada

não é dado perceber, que a tomada de consciência de sua própria força seria o mecanismo-

chave para romper os grilhões, que a mantém vítima do poder da violência simbólica, que

age sobre o seu corpo social. Sob esse prisma, a correlação de forças entre a sociedade

segmentária indígena - como a classe dominada - e o dominador europeu, o pensamento

de uma tomada de consciência por parte dos índios acaba tornando-se tarefa meramente

especulativa. Isto porque seria necessária a existência de uma instituição que pudesse

assumir de fato as atribuições de uma autoridade pedagógica (AuP), que pudesse

conscientizar os seus membros da idéia de sua supremacia cultural, numérica e tático-

guerreira. Em princípio, a Confederação dos Tamoios pareceu cumprir este papel,

entretanto só existiu enquanto perdurou como mecanismo de interesses comerciais, que

envolveram os portugueses e os franceses, jamais os interesses das tribos confederadas.

A violência simbólica pode manifestar-se em forma de técnicas, coercitivas e/ou

psicológicas, e sanções corporais físicas (chantagens, uso de réguas, cascudos, palmadas),

e até mesmo o uso intensivo de imposição dos traços culturais da classe dominante,

fazendo com que os valores da classe dominada pareçam impotentes perante os da classe

dominante. Daí a afirmação de Bourdieu para quem:

[...] toda a AP em exercício dispõe, por definição, duma AuP, os

emissores pedagógicos são logo designados como dignos de transmitir o

que transmitem, autorizados pois, a impor a recepção e a controlar a

inculcação por sanções socialmente aprovadas ou garantidas12.

11 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 33. 12 Ibid., p. 42.

Page 155: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

154

Por isso, o efeito de uma ação pedagógica (AP) é tanto maior quanto se aplica a

grupos ou classes mais dispostas a reconhecer a autoridade pedagógica (AuP) que a impõe.

Assim, conclui-se que a legitimidade de uma ação pedagógica (AP) nada mais é que a

“imposição do arbítrio cultural dominante”.13 O arbítrio cultural é fundamentado

basicamente nos atos mais simples que nos foram introjetados ao longo de nossa formação

cultural, a partir das instituições formadoras dos aparelhos ideológicos e repressivos do

Estado. Foi justamente este arbítrio cultural que foi imposto sobre as sociedades indígenas

do Brasil, mediante as Cartas Régias, Leis, Alvarás, Portarias, Regimentos, Provisões ou

Diretório, mediante as propostas contidas nos “Apontamentos...” de José Bonifácio, tais

como: casas de branco, roupas de branco, nomes de branco, calças, camisas, jaleco largo à

chinesa, jogos de bola e barra, armas de fogo, tiro ao alvo etc... Ainda, em suas obras, José

Bonifácio fez questão do uso de técnicas coercitivas, tais como: impedimentos nas

brincadeiras, açoites com varinhas, tronco, dietas forçadas, exposição ao ridículo,

exercícios repetitivos, exercícios de ginástica de luta, saltos, corridas etc., utilizando-se

para isso dos aparelhos ideológicos de Estado, principalmente da escola, que, como

sistema de ensino deveria “[...] contribuir para a reprodução da estrutura das relações de

classe, dissimulando, sob as aparências da neutralidade, o cumprimento desta função”.14

Em todos os documentos, vemos claramente que o discurso da metrópole oferecia

aos índios os meios técnicos de apropriação da cultura européia como forma de legitimá-la

e torná-la assim a cultura dominante nos domínios do dominado ou a cultura do

colonizador sendo apropriada pelo colonizado para legitimar a ilegítima cultura do

colonizador.

A ideologia dos discursos oficiais do colonizador foi tão convincente que

raríssimos foram os colonizadores que perceberam na equação dos benefícios subtraídos

13 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 44. 14 P. Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, p. 296.

Page 156: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

155

dos colonizados, que ele foi o único beneficiado, pois segundo Albert Memmi “esses

discursos são redigidos por ele, ou por seu primo, ou por seu amigo; as leis exorbitantes e

os deveres dos colonizados, é ele que os concebe [...]15.

3) Habitus

Como legislador ou Ministro de Estado, José Bonifácio desempenhou o papel de

colonizador, posto que trabalhou na condição de redator dos discursos oficiais do Estado,

em função de seu conhecimento da máquina administrativa, vale dizer, de um habitus.

No pensamento de Bourdieu, o habitus é designado como sendo a resultante de um

trabalho pedagógico que leve à “interiorização dos princípios dum arbítrio cultural capaz

de se perpetuar depois da cessação da AP e, por isso, de perpetuar nas práticas os

princípios do arbítrio interiorizado”16. Ainda, de conformidade com o mesmo autor, o

habitus pode ser um: “[...] conhecimento adquirido e também um haver, um capital [...]17.

Desta forma, o habitus pode ser interpretado como um princípio dinâmico em que

se fundamentam os atos individuais ou coletivos na mediação dos confrontos das idéias. O

habitus torna-se assim uma espécie de moeda, cujo valor de investimento na forma de

capital cultural forma o lastro que lhe confere os devidos créditos de argumentação em

discursos nas transformações das relações sociais.

Os efeitos do trabalho pedagógico em função de uma dada ação pedagógica (AP),

só podem se transformar em habitus se o trabalho for realizado de forma contínua e num

espaço de tempo consideravelmente longo, para que a imposição cultural possa surtir os

efeitos desejados, porque a violência simbólica que vem embutida no trabalho pedagógico

15 A. Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, p. 25. 16 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 55. 17 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 61.

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156

precisa reproduzir “[...] as condições nas quais foram produzidos os reprodutores, i.e., as

condições de sua reprodução”18.

Podemos concluir que a longa ação pedagógica exercida no seio das etnias, quanto

à formação dos índios, só poderia ser destruída no decorrer de um período extremamente

longo, de tal monta que pudesse apagar todos os traços culturais remanescentes de uma

cultura tida como selvagem. Em suma, no trabalho pedagógico dos missionários lusitanos

teria que ser desenvolvido uma ação pedagógica (AP), que visasse primeiramente romper o

habitus tradicional dos índios para, posteriormente, inculcar novos habitus que não

comportassem o tradicionalismo tribal. Assim, o trabalho que foi desenvolvido pelos

jesuítas junto às comunidades indígenas foi provavelmente aquele que tenha mais se

aproximado, qualitativa e quantitativamente, como ação pedagógica (AP) duradoura e em

condições de formar um habitus que pudesse atender ao arbítrio cultural português.

Ao preterir os jesuítas em função dos padres da Congregação de São Felipe Neri,

José Bonifácio estaria cometendo um erro de ação pedagógica (AP), porque os italianos

não teriam nem trabalho pedagógico, nem ação pedagógica (AP) que pudessem preencher

os requisitos necessários para uma dominação eficaz e geradora de “[...] práticas

conformes aos princípios do arbítrio cultural dos grupos ou classes que delegam na ação

pedagógica (AP) a autoridade pedagógica (AuP) necessária à sua instauração e à sua

continuação [...]”19. Isto quer dizer que estaria faltando à Congregação o capital cultural

originado do habitus. Assim, valemo-nos dos argumentos de Bourdieu, para o qual o:

Instrumento fundamental da continuidade histórica, a educação

considerada como processo através do qual se opera no tempo a

reprodução do arbítrio cultural pela mediação da produção do habitus

produtor de práticas conformes ao arbítrio cultural [...] é o equivalente, na

18 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 55. 19 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 56.

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157

ordem da cultura, do que é a transmissão do capital genético na ordem

biológica: sendo o habitus análogo ao capital genético [...]20.

O trabalho pedagógico é em si o equivalente à violência física, e tem como objetivo

“[...] sancionar os insucessos da interiorização dum arbítrio cultural [...] tão eficaz no fim

como a violência física”21. Quando José Bonifácio propõe aldear primeiramente os jovens

e as crianças, ele tinha a consciência de que a interiorização do arbítrio cultural sobre os

mais velhos não poderia surtir os efeitos esperados. Daí, ele ter proposto atingi-los pelo

orgulho ao afirmar que o projeto civilizatório deveria ter como objetivo primeiro as

crianças indígenas, pois só assim:

[...] se conseguirá que os pais folguem de ver seus filhos adiantados e

premiados, por suas boas ações e comportamento; e com essas funções e

jogos se divertirão e instruirão ao mesmo tempo, sem constrangimento

da nossa parte22.

José Bonifácio entendia que os índios jovens poderiam ser persuadidos se os

missionários os cativassem com “presentes, promessas, e bom modo”, posto que somente

desta forma as missões conseguiriam eliminar a ignorância e a barbárie de seus costumes.

Ele acreditava ainda que as técnicas utilizadas pelos jesuítas, em especial os desenvolvidos

por Manoel da Nóbrega, seriam as ideais uma vez que o “cristianismo, pelas suas festas,

procissões, foguetes, repiques de sino etc. são para os índios um manancial fecundo de

divertimento e alegria. Folgam com a música e dança; mas deve-se-lhes dar outras mais

vivas e alegres”23.

20 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 56. 21 Ibid., p. 60. 22 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 109. 23 Ibid., pp. 131-2.

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158

As festas indígenas bem como os jogos deveriam ocorrer com freqüência, sendo

bem “aparatosas”, pois no seu entender elas é que injetariam a animosidade, à letargia e à

preguiça, que eram naturais nos índios, denotando assim o filtro etnocêntrico que José

Bonifácio usava para referir-se aos índios.

Contudo, José Bonifácio fez uma ressalva no que dizia respeito à política jesuíta de

isolamento do índio, bem como o fato de os missionários insistirem na conservação da

língua mater indígena. Ele propunha a instrução na língua portuguesa e acrescentava: “é

preciso que os meninos sejam os mestres dos pais”24.

A comunicação foi apenas um instrumento pelo qual José Bonifácio pretendia

tornar o índio civilizado. Entretanto, a comunicação não podia se fazer enquanto as línguas

indígenas permanecessem livres para as manifestações culturais e interesses dos

autóctones. Por isso, José Bonifácio propôs a introdução da Língua Portuguesa como

instrumento de comunicação entre os índios e os colonizadores, o que promoveria a

destruição da cultura dos índios, configurando o que Bourdieu denominou violência

simbólica.

Para Bourdieu, o trabalho pedagógico:

[...] enquanto assegura a perpetuação dos efeitos da violência simbólica,

tende a produzir uma disposição permanente para dar, em toda a situação,

(v.g., em matéria de fecundidade, de opções económicas ou de

compromissos políticos) a boa resposta [...]”25.

A ação pedagógica (AP) e o trabalho pedagógico sobre os índios são concebidos de

tal forma a dar suporte ao habitus do grupo, formando assim um capital cultural próprio

daquele específico grupo.

24 Ibid., p. 141. 25 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução, p. 60.

Page 160: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

159

José Bonifácio propôs buscar, por meio da escola, o reconhecimento por parte das

tribos da superioridade técnica quanto ao saber-fazer do europeu, através da inculcação de

habitus ao mesmo tempo em que promovia a desaculturação ou a liquidação do capital

cultural indígena. Diante da supremacia tecnológica do europeu, os índios foram aos

poucos absorvendo a cultura européia – mais por dissimulação que assimilação – como

tática e estratégias de subserviência para não perder de todo um pouco da identidade do

grupo.

Vejamos como Bourdieu abordou esta problemática:

[...] um dos efeitos menos observados na escolaridade obrigatória

consiste no facto de que ela consegue obter das classes dominadas um

reconhecimento do saber e do saber-fazer legítimos [...] conduzindo à

desvalorização do saber e do saber-fazer que elas dominam efectivamente

[...]”26.

O descaso de José Bonifácio para com o saber-fazer da classe dominada é patente

em todo o seu discurso em que os índios foram o alvo, não sendo portanto, exclusividade

dos “Apontamentos...” .

No texto “Colônia de pretos”, José Bonifácio idealizou uma colonização exclusiva

de negros, na ilha de Santo Amaro. Nesse lugar ele previa a escolarização apenas para “ler

e escrever”, em instruções que seria na língua portuguesa, porque o seu projeto previa a

aquisição de livros em francês e alemão – para obras referentes à pesca e navegação, com

“pilotos brancos”. Ainda no mesmo texto ele fala em comprar livros de economia e

tecnologia, na parte em que ele trata da confecção de pólvora e estabelecimento de

curtumes. Mais adiante ele dizia ser necessário “Fazer coleções de história natural”27,

26 P. Bourdieu & J-C Passeron, A reprodução p. 67. 27 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 160.

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160

deixando entender toda a sua preocupação com os conhecimentos técnico-científicos em

detrimento do saber humanístico dos jesuítas28, fato confirmado pelo Art, 16º, em que ele

pediu: “Recolher todos os livros novos portugueses e espanhóis”29.

No texto “Avulsos”, ele propunha que os “línguas” ensinassem o idioma português

a todos os índios. Em uma carta ao Conde de Funchal30 em 1813, José Bonifácio se dirige

ao nobre português questionando a educação brasileira: “Que educação física e científica

tem o nosso povo, principalmente no Brasil ?”.31

Para José Bonifácio, a educação era um meio de se evitar revoluções. No texto

“Avulsos”, ele queria que os governos das capitanias tivessem uma “livraria pública”.

Entretanto, a confirmar o quanto o seu projeto de educação cognosciva tinha como objetivo

a camada dirigente, ele escreveu um texto sobre filosofia dizendo que “A filosofia é a

mestra da vida, a educadora dos povos e do príncipe, a guia da legislação, a protetora da

agricultura e abundância interna do Estado [...]”32.

Quanto ao ensino e exclusão no processo de educação para os índios, José

Bonifácio refere-se a ele no Art. 20º dos “Apontamentos...”, nos seguintes termos:

Nas grandes aldeias centrais, além do ensino de ler, escrever, e contar, e catecismo, se

levantarão escolas práticas de artes e ofício, em que irão aprender os índios dali, e

das outras aldeias pequenas, e até os brancos e os mestiços das povoações vizinhas,

que depois serão distribuídos pelos lugares em que houver falta de oficiais [...]33.

Esse modelo educativo proposto pelo autor, objetivava a produção em detrimento da educação,

privilegiando assim os interesses dos segmentos sociais tal como observou Bourdieu. Para esse

28 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 160. 29 Ibid., p. 160. 30 Trata-se de Domingos de Souza Coutinho, irmão do Conde de Linhares – D. Rodrigo de Souza Coutinho. 31 J.B. de Andrada e Silva, op. cit., p. 168. 32 Ibid., pp. 306-7. 33 Ibid., p. 109.

Page 162: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

161

pensador, os sistemas de ensino são elaborados de forma a privilegiar um determinado segmento

social, reservando para os demais, um ensino de exclusão, porque:

[...] o sistema de ensino se contenta em registrar a auto-eliminação

imediata ou adiada (por exemplo, a composição de classes ´especiais`para

crianças das classes inferiores) ou a favorecer a eliminação através

exclusivamente de uma pedagogia de privação eficiente capaz de

mascarar sob as operações patentes de seleção a ação dos mecanismos

tendentes a assegurar, de forma quase automática, (isto é, missão

cultural) a exclusão de certas categorias de destinatários da mensagem

pedagógica34.

4. Sistemas Simbólicos

Para Bourdieu os sistemas simbólicos são os “[...] instrumentos de conhecimento e

de comunicação [...]”35, ou tudo aquilo de que se pode lançar mão para auferir e transmitir

o conhecimento que se deverá acumular na geração do capital simbólico. Assim, todos os

mecanismos de que José Bonifácio pretendia colocar em prática para “civilizar” os índios

do Brasil – pela religião cristã, pela educação formal, pela imposição da língua portuguesa,

pelo estilo de vestir, pelo modelo de moradia, pelo trabalho que ele queria que

elaborassem, enfim, pelo modus vivendi que ele pretendia que adotassem, etc. –

compunham aquilo que Bourdieu denomina de sistemas simbólicos. Estes sistemas

simbólicos europeizados deveriam, com o tempo, operar uma transformação tão profunda

no seio das culturas indígenas, que levaria à extinção do capital simbólico autóctone em

prol de um novo capital simbólico exógeno, antropocêntrico.

34 P.Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, p. 311. 35 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 9.

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162

5. Estigma dos dominados

Este foi um problema sério enfrentado pelas etnias que tiveram contato com a

colonização européia, dado que foram tratados sempre como grupos dominados e, pela

resistência e sobrevivência, tiveram que abrir mão de um capital cultural a favor da

assimilação de uma cultura alienígena, modificando assim a sua identidade cultural.

Segundo Bourdieu:

Quando os dominados nas relações de forças simbólicas entram em luta

em estado isolado, como é o caso nas interações da vida quotidiana, não

têm outra escolha a não ser a da aceitação (resignada ou provocante,

submissa ou revoltada) da definição dominante de sua identidade ou da

busca da assimilação a qual supõe um trabalho que faça desaparecer

todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no estilo de vida, no

vestiário, na pronúncia, etc.) e que tenha em vista propor, por meio de

estratégias de dissimulação ou de embuste, a imagem de si menos

afastada possível da identidade legítima36.

Esse excerto de Bourdieu nos permite compreender o porquê dos índios terem

promovido a adaptação do seu antigo modus vivendi, posto que o habitus europeu impunha

mudança radical em relação ao modo de se vestir, o que em determinadas regiões era

incompatível com o meio físico, o tipo de trabalho e o clima – especialmente no que se

refere às tribos amazônicas.

José Bonifácio pediu, nos artigos 21º e 33º dos “Apontamentos...”, que os

missionários das aldeias introduzissem “maior asseio e luxo de vestido” para que os índios

procurassem “vestir-se melhor”, e sugeriu o uso de calças, camisas e jalecos, feitos de

algodão branco ou tinto; para os soldados, ele sugeriu, em um outro texto também

36 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 124.

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163

denominado “Apontamentos”: “Dar-se novos fardamentos de algodão aos soldados,

acomodados ao clima, e novo calçado de alparcatas à maneira de vários regimentos de

espanhóis”.37

Os aldeamentos sob a proteção dos jesuítas levavam um modo de vida voltado para

a produção mercantil, não raro sustentado por um modelo de produtividade escravista ou,

muito próxima a ele. Segundo R. Vainfas, a fazenda do “rei” de Jaguaribe – o senhor

Fernão Cabral de Taíde – era movida a escravos “índios e forros, muitos deles

seqüestrados nas aldeias jesuíticas, conforme o padrão baiano da época”.38 Além de

escravos, os índios eram comumente usados como soldados a serviço da coroa portuguesa

ou dos fazendeiros, a exemplo da expedição comandada por Garcia D´Ávila – com 150

soldados e 300 flecheiros – contra os guerreiros de Baepeba de Sergipe. Segundo Vainfas,

derrotada a expedição, a coroa portuguesa revidou ao ataque com “150 soldados e 3000

flecheiros [...] responsáveis pela chacina de mais de 6 mil índios e pela escravização, em

‘guerra justa’, de outros 4 mil”.39 Segundo Alencastro, D. João de Lencastre, governador

da Bahia entre de 1694 a 1702, tentou embargar a administração das aldeias indígenas “a

fim de evitar que Garcia D´Ávila, controlando mais de 20.000 arqueiros indígenas, se

convertesse num régulo do sertão e desafiasse as autoridades metropolitanas”40.

José Bonifácio propôs no Art. 23º dos “Apontamentos...”, que os missionários adotassem de

imediato as vestimentas estrangeiras nos índios ao mesmo tempo em que introduzissem “o maior asseio

e luxo de vestido e ornato de suas casas”; e no Art. 33º ele sugeriu que os desleixados fossem punidos

pelo pároco e maioral da aldeia, com “certa coima pecuniária”. O tipo de vestimenta por ele proposto

37 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 158. 38 R. Vainfas, A heresia dos índios, p. 86. 39 Ibid., p. 79. 40 L. F.de Alencastro, O trato dos viventes, p. 139.

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164

constava de “calças, camisa, e jaleco largo à la chinesa – tudo de algodão branco, ou tinto”, conforme

consta em seu texto “Os índios são preguiçosos e voluptuosos”.41

6. A Comunicação

Também foi radical a mudança na forma de comunicação, que era pautada por uma

linguagem codificada visando aos interesses dos colonizadores.

José Bonifácio expressou seu interesse em dominar a comunicação com os índios e para tanto

dizia que, para a eficácia do processo de civilização, os missionários deveriam estudar as línguas, os

costumes, o caráter e as inclinações naturais dos índios no sentido de apreender os mores indígenas ao

mesmo tempo em que iriam ganhando a sua confiança. Além desse objetivo missionário, ele previa

ainda o envio de sertanejos às aldeias para que, pelo estabelecimento e casamento entre os índios,

pudessem apreender a língua e os costumes e, posteriormente, servissem de guias às bandeiras e

missões. Ele considerava que a Língua Geral era remanescente de “uma antiga civilização”, mas apesar

de reconhecê-la pela sua riqueza e sonoridade – “A língua geral, mormente na boca da mulher, é

muito sonora e própria para a música”42 – quis ele que a língua portuguesa fosse a Língua Geral,

afirmando que os línguas deveriam ensinar o idioma português.

No Art. 7º ele diz que os missionários deveriam instruir-se na Língua Geral ou guarani [...] e se

possível for também nas particulares das raças numerosas”43. Contudo, o fato de os missionários terem

feito uso da Língua Geral foi motivo de preocupação do padre João Daniel que defendia o uso da

Língua Portuguesa, pois, segundo ele, os missionários só deveriam aprender a língua vernácula dos

povos somente quando ele fosse a única, e dizia:

41 L. F.de Alencastro, O trato dos viventes, p. 134. 42 Ibid., p. 327. 43 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 104.

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165

[...] já se vê que a língua vernácula dos povos é a que se usa e a que

costumam estudar os missionários como na China, Etiópia, Egito, Grécia,

e as mais missões, que estão espalhadas por todo o mundo, não aprendem

esses donos a língua dos missionários, para os ouvirem, e serem

instruídos por eles, mas os missionários são os que aprendem a sua língua

[...]44.

Este certamente não era o caso do Brasil que tinha centenas de línguas e dialetos, o

que levou o padre a pensar na necessidade de fazer com que os índios aprendessem a

língua do colonizador.

José Bonifácio propõe acabar com os estigmas que maculavam a imagem dos

índios brasileiros, logo no preâmbulo de seus “Apontamentos...”: “se quisermos pois

vencer estas dificuldades, devemos mudar absolutamente de maneiras, e comportamento,

conhecendo primeiro o que são e que devem ser naturalmente os índios bravos, para depois

acharmos os meios de os converter no que nos cumpre que sejam”.45 Ainda no mesmo

documento, encontramos várias expressões que estigmatizavam os índios: animal silvestre,

apáticos, assassinos, antropófagos, autômatos, bárbaros, corrompidos, desumanos,

desagradecidos, estúpidos, grosseiros, gulosos, ignorantes, índios bravos do Brasil, [...] não

terem freio algum religioso, [...] não tem idéia de propriedade nem desejos de distinções e

vaidades sociais, preguiçosos, povos vagabundos e dados a contínuas guerras e roubos [...],

raça de homens inconsiderados [...], sua presumida valentia [...], suas contínuas bebedeiras,

a poligamia em que vivem [...], viver em matas esconderijos [...], etc.

Bourdieu sugere que a abolição dos estigmas:

[...] implicaria que se destruíssem os próprios fundamentos do jogo que,

ao produzir estigma, gera a procura de uma reabilitação baseada na auto-

44 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 333. 45 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 91.

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166

afirmação exclusiva que está na própria origem do estigma, e que se

façam desaparecer os mecanismos por meios dos quais se exerce a

dominação simbólica e, ao mesmo tempo, os fundamentos subjectivos e

objectivos da reivindicação da diferença por ela gerados46.

José Bonifácio quis combater a dominação que se abatera sobre os índios, sob a

administração dos jesuítas e colonizadores, com outro modelo, também, de dominação.

Entretanto, suas propostas não poderiam anular a dominação que já estava em andamento

há três séculos, pois como observou Bourdieu:

[...] o separatismo aparece bem como único meio realista de combater ou

de anular os efeitos da dominação que estão implícitos, inevitavelmente,

na unificação do mercado de bens culturais e simbólicos, desde que uma

categoria de produtores esteja em condições de impor as suas próprias

normas de percepção e de apreciação47.

Assim, os “Apontamentos...” seriam tão somente mais uma forma de inculcação de

habitus e exportação de um capital cultural, pois além de não poder civilizar pela própria

essência das heterogeneidades culturais européias e indígenas, não comportava a

unificação das diferenças culturais e, em momento algum, sugere a possibilidade de tolerar

quaisquer idéias de separatismo como sugere Bourdieu:

[...] na lógica propriamente simbólica da distinção – em que existir não é

somente ser diferente mas também ser reconhecido legitimamente

diferente e em que, por outras palavras, a existência real da identidade

supõe a possibilidade real, juridicamente e politicamente garantida, de

afirmar oficialmente a diferença – qualquer unificação, que assimile

46 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 127. 47 Ibid., p. 128.

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167

aquilo que é diferente, encerra o princípio da dominação de uma

identidade sobre outra, da negação de uma identidade por outra48.

Quando José Bonifácio propõe substituir os jesuítas pela Congregação São Felipe

Neri (Art. 7º dos “Apontamentos...”), ele não estava pensando apenas na mudança da

metodologia a ser utilizada no processo civilizatório, mas sim em uma forma de manter a

ordem do processo por meio do capital cultural que deveria ser incutido nos aldeados.

Além do mais, a nova congregação deveria contribuir49 “[...] para a manutenção da ordem

política, ou melhor, para o reforço simbólico das divisões desta ordem, pela consecução de

sua função específica, qual seja a de contribuir para a manutenção da ordem simbólica”.

A substituição dos jesuítas pela Congregação São Felipe Neri explica-se mais em

função de suas desavenças com os inacianos. A respeito deles, José Bonifácio escreveu um

texto em que dizia “O clero é uma das classes mais corrompidas e desprezíveis que há,

geralmente falando, no Brasil!”50. Em outro texto em que ele fala dos novos aldeamentos

ele diz que os jesuítas, além de déspotas “afugentavam tudo o que podia dar aos neófitos

idéias da dignidade dos homens, e de cultura material”51. Dizia ainda que os membros da

Companhia de Jesus adotaram uma teocracia druida tal que “frustrou pela insultação e falta

de comunicação”, e acusava-os de excessivo cuidado com o dogma e menos com a moral,

e de serem escravos dos reis ao invés de amos e, por isso mesmo, sugeria o afastamento

dos “frades e clérigos”.

48 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 129. 49 Idem., A economia das trocas simbólicas, p. 70. 50 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 129. 51 Ibid., p. 140.

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CAPÍTULO III DESTERRITORIALIZAÇÃO,

ENDOCOLONIZAÇÃO E GUERRA JUSTA

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169

Nesse Capítulo os conceitos de Paul Virilio que servirão para a leitura do discurso de José

Bonifácio, são: a dromologia, a desterritorialização, a máquina de guerra, a endocolonização, os povos

esperançosos e desesperançosos, a domesticação, a guerra justa, a velocidade e tecnologia.

O conceito de desterritorialização, conforme já foi esclarecido é aplicado

diferentemente da forma que foi visto no capítulo referente a Deleuze. O mesmo se aplica

ao conceito de máquina-de-guerra1

1. Dromologia

Paul Virilio defende a dromologia como a “lógica da corrida”2, isto é, a velocidade

que sempre esteve impressa nos processos de tomada de poder. Ele demonstra que,

historicamente, estes processos vêm adquirindo uma velocidade cada vez maior passando

da cavalaria ateniense à romana; dos navios à vela do século XVIII ao vapor do século

XIX; do motor a explosão do diesel ao nuclear; dos aviões subsônicos e supersônicos aos

mísseis continentais e intercontinentais etc., configurando a importância da velocidade para

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170

a supremacia militar, que caminha para o que ele denomina de “arma absoluta” - também,

de “capacidade absoluta”.

Até o advento da “arma absoluta”, o homem trabalhou sob o vetor do tempo-espaço

tendo a geografia como mediadora. Entretanto, a geografia como espaço real migrou para o

espaço virtual do “complexo capacitador teleinfocomputrônico”3 e sua unidade deixou de

ser o espaço em detrimento dos terminais digitais dos complexos industriais militares.

Segundo Virilio, há um movimento da geo para a cronopolítica: a distribuição do território

torna-se a distribuição do tempo. A distribuição do território está superada, é “minimal”4.

Virilio denomina de “revolução dromocrática”, todo complexo industrial que

elevou a velocidade das armas a ponto de torná-las absolutas. Essa revolução teve como

parâmetros a capacidade de produção acelerada, até atingir a arma absoluta, de velocidade

absoluta – o laser – o qual retira do homem a capacidade de se recolher, porque:

[...] um raio laser move-se na velocidade da luz, em milissegundos. Isto

não é absolutamente nada. Praticamente, isto significa a aquisição da

instantaneidade. O que significa que ao final do século a arma final terá

adquirido velocidade absoluta5.

A utilização do conceito de “revolução dromocrática”, é importante para que

possamos compreender o quanto o vetor velocidade contribuiu para eliminar a noção de

ocupação do espaço, que foi por muito tempo parâmetro para explicar a capacidade de

mobilização dos povos ao longo do tempo.

1 Veja-se as páginas 19 e 124 para os conceitos de máquina-de-guerra e desterritorialização, respectivamente. 2 P.Virilio, Guerra pura, p. 48. 3 Expressão de René Armand Dreifuss, A época das perplexidades, p. 25. 4 P. Virilio, Guerra pura, p. 109. 5 Ibid., p. 61.

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171

2. Desterritorialização

A desterritorialização de que trata Virilio refere-se à capacidade que a tecnologia de

aniquilar as noções de um espaço demarcado como região, cidade ou nação, pela

capacidade de estes conceitos teóricos conterem vetor velocidade inserido nos artefatos

dromológicos.

Segundo Virilio, “[...] desterritorialização significa para as elites uma intensificação

do domínio, para as massas significa desenraizamento, destruição do habitat, privação de

identidade, exclusão, perda da anima, do movimento”6.

Em se tratando da colonização européia no espaço indígena, a desterritorialização

como intensidade de domínio significou, de imediato, para os povos autóctones, a tomada

pura e simples de suas terras incluindo não só o desenraizamento, como também a

destruição de seus habitats. Quanto à privação da identidade indígena, foram vários os

mecanismos propostos e impostos pelos colonizadores para a sua consecução: da

imposição do pensamento religioso, por meio do cristianismo, à imposição da língua

européia; do vestuário, à alimentação; do modo de produção aos instrumentos de trabalho

etc, todos eles passando pela tentativa de assimilação da cultura do colonizador – uma vez

que os indígenas não eram reconhecidos jurídica, política ou socialmente pelas diferenças.

Segundo Pierre Bourdieu, “qualquer unificação, que assimile aquilo que é diferente,

encerra o princípio da dominação de uma identidade sobre outra, da negação de uma

identidade por outra”7.

É o processo de desterritorialização que nos ajuda a entender a questão dos grupos

errantes em constante movimentação em busca de um espaço, configurando assim no

êxodo incessante. Muitas vezes foram identificados como estradeiros e destituídos de

6 P. Virilio, Velocidade e política, p. 12.

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172

identidade ou de outra forma “Objetos itinerantes de mercados e feiras, como o resto dos

meeiros, sua condição, desde a Antigüidade, em nada difere da do escravo que em tempo

de guerra podia ser emancipado e incorporado como soldado [...]”8. O que percebemos nos

discursos de José Bonifácio são propostas de estriamento e desterritorialização dos espaços

ocupados pelos povos indígenas, mesmo sem ter discutido a sua emancipação e, a priori, a

forma de sua incorporação aos mores europeus – não esquecendo de que José Bonifácio

chegou a propor a incorporação do índio como soldado, como já demonstrado

anteriormente.

Paul Virilio denomina de violência dromocrática a aplicação da força para

submissão de grupos considerados indesejáveis aos interesses do poder hegemônico que

deles extrairiam o máximo de energia, nas formas experimentais de “Exploração nas

minas, nos canteiros de obras logísticas [...] toda uma economia clássica que é a do refém,

do rapto, do deslocamento, formas privilegiadas da violência dromocrática”9.

No que se refere à exploração nas minas para extração de energia utilizando a força

de grupos submissos, esse mesmo processo foi aplicado pela metrópole para subtrair

riquezas da colônia. Segundo Alencastro, os índios brasileiros eram usados pelos

bandeirantes [...] nos trabalhos de mineração desde a descoberta do ouro em Minas Gerais.

Graças aos cativos indígenas [...] Fernão Dias Pais, obtém o contrato régio (1699) para

abrir o Caminho Novo entre o Rio e Minas, tornando-se [...] o primeiro grande empreiteiro

de estradas do Brasil”.10

7 P. Bourdieu, O poder simbólico, p. 129. 8 P. Virilio, Velocidade e política, p. 82. 9 Ibid., p. 80. 10 L. F. de Alencastro, O trato dos viventes, p. 245.

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3. Máquina-de-guerra

A máquina de guerra conceituada por Deleuze tem como papel confrontar o

Estado em forma de potência exterior a ele. Entretanto neste capítulo, Virilio trata a

máquina-de-guerra mais precisamente como aparelho intrínseco ao Estado. Para esse

autor: “A máquina-de-guerra não são só explosivos, também é comunicação, vetorização.

É, essencialmente, a velocidade de expedição”11. Neste sentido, a máquina-de-guerra é

todo um complexo sócio-econômico, industrial-militar e científico, que promove os

insumos de guerra em detrimento do crescimento de outros setores da sociedade que não

estejam comprometidos com os interesses bélicos. E por isso mesmo Virilio afirma que a

máquina-de-guerra acaba tornando-se um empecilho ao desenvolvimento da sociedade

enquanto os interesses da máquina-de-guerra tendem à guerra pura.

Em sua gênese, a protomáquina-de-guerra foi o casal, pois segundo Virilio, além da

reprodução, a mulher liberou o homem para que ele dedicasse à guerra enquanto ela agia

no sentido da logística de manutenção e sustento da família, incluindo aí o guerreiro, que

explica a hipótese de Virilio para o qual “[...] o casamento é uma máquina-de-guerra”12.

A máquina-de-guerra, após ter se iniciado com o casamento, tomou formas mais

complexas até chegar à organização de agrupamentos nomádicos especializados

exclusivamente na arte da guerra, constituindo assim nas máquinas-de-guerra portadoras

de artes e ofícios desconhecidos dos povos sedentários ou de outras máquinas similares.

Por isso mesmo é que “[...] a construção daquelas fortalezas impenetráveis que nada

tinham a temer das máquinas-de-guerra de então, e tudo a temer, constantemente, das

surpresas e ardis trazidos de fora, do exterior, de longe, com a massa nômade”13.

11 P.Virilio, Guerra pura, p. 28. 12 Ibid., p. 105. 13 P. Virilio, Velocidade e política, p. 24.

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174

Tudo que é de fora é estranho ao nosso meio e, como tal, permanece fora do nosso

esquema tático-defensivo. Assim, o fora, o estranho, o estrangeiro, o outro etc, serão vistos

sempre com temor e jamais gozarão de nossa confiança e, portanto, será eterno adversário.

Na expressão de Milton Bins, o “adversário é nítido, é portador de uma ordem e dum

sentido, embora adverso. O adversário é diabólico [...]”14.

Desde o século XVI, os índios do Brasil sofreram com o processo de dominação

em que o elemento colonizador era estranho, estrangeiro, adversário e até mesmo diabólico

– características da exocolonização. A partir da abolição do “Diretório dos Índios”, em

1798, outro processo de denominação passou a atuar contra a liberdade dos índios, a

endocolonização, um processo não menos adversário e, até mesmo, mais diabólico ainda.

4. Endocolonização

É o processo pelo qual a sociedade sofre uma interferência colonizadora, a partir de

suas próprias entranhas, tendo em vista a canalização de recursos na produção e aquisição

de equipamentos bélicos para a manutenção da máquina-de-guerra. Na expressão de

Virilio, “agora só se coloniza a própria população. Apenas se subdesenvolve a própria

economia civil”15. Neste processo há um condicionamento dos povos a favor da

hegemonia da classe industrial-militar sobre o restante da população civil. Virilio sustenta

que, ao falar de sociedades de classe, temos de considerar que a prerrogativa primeira da

classe foi um topos, um espaço geográfico de controle de privilégios, antes econômicos

que sociais. Conforme esse autor, a endocolonização visa primeiramente a população

citadina porque:

14 M. Bins, Curso de sociologia, p. 65. 15 P. Virilio, Guerra pura, p. 92.

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175

As cidades correspondem a um estatuto civil, à cidadania, ao surgimento

do político num espaço que se opõe à endocolonização. Basta ver as

medidas tomadas pelos jesuítas quando chegaram à reducciones. A

primeira coisa que fizeram foi destruir a estrutura tribal dispersando a

aldeia, dando-lhe um traçado que não tinha nada a ver com o que existira

anteriormente. O que significou que os nativos estavam perdidos16.

O domínio que a metrópole exercia sobre os colonizados tinha como força-tarefa

grupos armados recrutados aleatoriamente para a proteção e expansão das fronteiras

comerciais no território do inimigo, o colonizado, num processo exocolonizador. Contudo,

quando o Estado usa da força repressiva para o domínio da sua população civil, temos

então a endocolonização configurada num “Estado mínimo” de pobreza de sua população

civil.

Analisando o caso brasileiro sob esse prisma, veremos que os bandeirantes

desempenharam muito bem o papel de força-tarefa na expansão do domínio da metrópole

sobre os colonizados na forma de preação de índios para suprir a mão-de-obra colonial –

bem como dos colonizadores, pois estes foram seus eternos dependentes na relação do

comércio da mão-de-obra autóctone. Segundo Alencastro, os bandeirantes:

[...] e outros bandos paulistas capturam entre 40 mil e 60 mil guaranis dos

pueblos e reducciones da província jesuítica do Guairá, no coração do

atual estado do Paraná, já investida pelas bandeiras dos irmãos Manuel

(1606 e 1619) e Sebastião Preto (1612), de Fernão Dias Paes (1623), de

Paulo do Amaral e do próprio Raposo Tavares (1627)17.

Através de sua força, coragem e audácia, eles eram, acima de tudo, temidos e

respeitados por onde quer que tenham andado, porque eram:

16 P. Virilio, Guerra pura, p. 108. 17 L. F. de Alencastro, O trato dos viventes, p. 192.

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176

Mestiços, armados, indisciplinados, imbatíveis nos combates do mato,

avançando no rastro de índios e negros, os paulistas assustam – quase

tanto quanto os quilombolas – as autoridades e os senhores de engenho

do Norte. Ocupada por dezenas de bandeirantes arranchados e chefiados

por quatro paulista que mandavam na vila ‘como se fosse sua’, Porto

Seguro já havia sido teatro de um levante em 169118.

No texto “Rapaz mal-educado”, José Bonifácio se insurgiu contra D. Pedro I, pelo

fato de o monarca estar aumentando a tropa de linha, supostamente estrangeira, em

detrimento de milícias locais. E conclui lamentando “mas por fim vim a conhecer que já

contava como tropas mercenárias para apoio de seu futuro despotismo”19. Entretanto, no

texto “Avulso”, ele se contradiz, porque propõe no Art. 8º “reformar o sistema de capitães-

mores, milícias, tropas de linha, magistrados”20.

Os governos destes tempos remotos serviram-se de grupos armados, tanto dos

colonizadores, quanto dos colonizados, vindo a confirmar o pensamento de Virilio,

segundo o qual “os governos negociam e intercambiam prontamente seu plantel de

trabalhadores, gabando ‘sua resistência às baixas temperaturas, sua sobriedade e resistência

no trabalho’; eles se abastecem, em grande medida, nas possessões coloniais [...]21.

Nesta linha de raciocínio, a metrópole foi obrigada a ter, sempre, exércitos

regulares para a manutenção de seus interesses antes econômicos que militares. Daí a

conclusão de Albert Memmi para o qual “o privilégio do colonial é função da metrópole e

dos metropolitanos. O colonialista ignora que obriga a metrópole a manter um exército,

18 Ibid., p. 243. 19 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 242. 20 Ibid., p. 173. 21 P. Virilio, Velocidade e política, p. 68.

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177

que se a colônia para ele só representa vantagens, custa ao metropolitano mais do que lhe

rende”22.

5. Povos esperançosos e desesperançosos

Virilio desenvolve o conceito de “Progresso Dromológico” para explicar a evolução

das estratégias de domínio de um espaço a ser conquistado, em função da “velocidade do

assalto”. As primeiras táticas consistiam em lançar-se sobre um território específico,

subordiná-lo pelas armas, desterritorializá-lo pela remoção dos obstáculos, subtrair-lhes a

riqueza e deixá-lo inerte sem condições de reação. A evolução das técnicas fez com que as

táticas se subordinassem às estratégias que visam não mais ao domínio pelo confronto

direto num espaço/tempo específico, mas sim na capacidade de estar em permanente

estado de afrontar o inimigo a qualquer momento, estando sem estar, num espaço/tempo

dinâmico qualquer. Isto é o que caracteriza o fleet in being ou:

[...] a logística realizando plenamente a estratégia como arte do

movimento dos corpos não vistos, é a presença permanente de uma frota

invisível no mar podendo golpear o adversário em qualquer lugar e a

qualquer momento, aniquilando sua vontade de poder com a criação de

uma zona de insegurança global onde ele nunca estará em condições de

‘decidir’ com segurança, de querer, isto é, de vencer 23.

Essa insegurança não é privilégio exclusivo das sociedades contemporâneas. Os

índios da costa brasileira criaram uma área de segurança tal, que o seu registro ficou

marcado principalmente pelos episódios da Confederação dos Tamoios.

22 A. Memmi, O retrato do colonizado precedido pelo retrato o colonizador, p. 64. 23 P. Virilio, Velocidade e política, p. 50.

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178

Conforme os relatos históricos a respeito das façanhas do primeiro chefe da

Confederação dos Tamoios – Cunhambebe – e seus guerreiros, a região costeira que

compreende Cabo Frio no Rio de Janeiro a São Vicente em São Paulo pode ser

considerada área de insegurança na segunda metade do século XVI. Segundo os relatos as

frotas de canoas dos Tamoios sob a liderança de Cunhambebe foram presença permanente

no litoral brasileiro. Sheila de Castro assim descreve o chefe Tamoio e seus atos:

[...] homem notável pela capacidade de controlar todos os recôncavos e

angras, através de canoas, atacando São Vicente e Santos, por mar, bem

como pela abordagem às galés e caravelas que passavam por aqueles

portos ou neles fundeavam. Seu nome seria conhecido e temido por todos

os navegantes da costa, que lhe atribuíam os mais espetaculares feitos.

Considerado guerreiro excessivamente ousado, não respeitava peças de

artilharia [...]24.

Como conseqüência dessa estratégia dromológica, o fleet in being provoca a divisão

dos povos em esperançosos e desesperançados. Os primeiros são aqueles a quem tudo é

possível, posto que, como classe dominante com acesso e controle do monopólio da força,

podem dar-se ao direito de vislumbrar um amanhã pela administração da dromocracia. Os

segundos são aqueles a quem tudo é negado, porque não podendo imprimir velocidade à

sua máquina-de-guerra, não lhes restam alternativas senão permanecer em constante

prontidão contra a opressão dos primeiros ou aceitar ser cooptados por eles.

O fleet in being não permite que a unidade do mundo seja espacial como foi

caracterizada até o advento da tecnologia, quando tudo era mensurado em função do

espaço, como demonstrou historicamente Virilio: “os faraós, os romanos, os gregos foram

agrimensores. Isso era geopolítica. Organização, proibições, interrupções, ordens, poderes,

24 S. F. de Castro, “Cunhambebe”, in R. Vainfas, dir, Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), pp.154-5.

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estruturações, sujeições agora são do âmbito da temporalidade”25. A partir do momento em

que a dromologia abandonou o processo de controle do espaço em função do tempo,

fecharam-se as portas à exocolonização, espacial, e invadiram o advento da

endocolonização, temporal.

6. Domesticação

Segundo Paul Virilio a domesticação como violência dromocrática não pode ser

vista apenas como sistema de enclausuramento, mas também como parte de:

toda uma economia clássica que é a do refém, do rapto, co deslocamento

[...] da massa imensa de corpos domesticados, de corpos desconhecidos e

irreconhecíveis [...] uma categoria de corpos inteiramente domesticados,

classe ao mesmo tempo prolífica e tracionando engenhos, presença

fantasmagórica no relato histórico da população flutuante ligada à

sofisticação das exigências da logística 26.

O processo de domesticação dos corpos colonizados não difere muito da

domesticação dos corpos animais – ainda mais em se tratando do corpo do índio que quase

sempre fora considerado animal como testemunhou o padre J.Daniel:

[...] houve europeus que chegaram a proferir que os índios não eram

verdadeiros homens, mas só um arremedo de gente, e uma semelhança de

racionais; ou uma espécie de monstros, e na realidade geração de

macacos com visos de natureza humana27.

25 P. Virilio, Guerra pura, 1984, p. 110. 26 P. Virilio, Velocidade e política, pp. 80-1. 27 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 263.

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Primeiro eram aprisionados pelo uso abusivo da força e, em seguida, sofreram o

processo de domesticação sob coerção – eufemisticamente denominado assimilação,

civilização, cristianização etc. – por meio do aprendizado dos hábitos de subordinação ao

senhor. Para o colonizador quaisquer técnicas coercitivas eram válidas para domesticar o

colonizado, pois eram justificadas com “atributos de legitimidade magistral numa cultura

tradicional onde não se arriscam a trair a vaidade objectiva duma AP de que são o modo de

imposição legítimo”28. Neste processo de domesticação, os rituais sagrados ou profanos

são também de grande valia, pois através deles é que o colonizador acreditava abrandar a

coerção e “canalizar o bárbaro, para domesticar o que é estranho”29.

No processo de domesticação dos nossos índios, José Bonifácio não esqueceu de

incluir os rituais cristãos, como forma de abrandamento da barbaridade que ele julgava

estar contida nas ações dos índios. Vejamos o que escreveu Virilio sobre a domesticação

do estranho:

Começa-se por exercer coações por meio da força. Veja só o que se fez

com os animais de estimação. Primeiro aprisionam os animais, em

seguida os domesticam, no sentido de que lhes foram ensinados alguns

truques e hábitos. Eles, então, foram levados a uma mutação biológica.

[...] A repressão externa, o controle de forças externas sobre a população

são progressivamente substituídos por uma ‘mediatização’ desta

repressão e, finalmente, por uma auto-repressão muito clara, muito

banal30.

Os métodos sugeridos por José Bonifácio para domesticar os índios estão espalhados em todos

os textos em que ele fez menção a eles. Especificamente no que diz respeito às técnicas a

serem utilizadas para atraí-los aos aldeamentos, as propostas de José Bonifácio não são

28 P. Bourdieu & J-C. Passeron, A reprodução, p. 37. 29 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, p. 102. 30 P. Virilio, Guerra pura, p. 139.

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muito diferentes daquelas utilizadas pelos jesuítas. Segundo ele, “O melhor método de

amansar os índios é casar com as índias os nossos, a quem elas preferem aos seus”31. No

”Avulsos”, ele sugere que os missionários encarregados da catequização e civilização dos

índios bravos iniciem pelo estudo da “sua língua e costumes, o seu caráter e inclinações

naturais [...] ganhem sua confiança e vontade; e então farão deles o que quiserem”32.

Entretanto, ele sugere outros meios menos democráticos admitindo mesmo a escravidão

como forma de assujeitamento das crianças indígenas aos valores portugueses, afirmando

que “Seria útil admitir que os pais dos índios bravos que quiserem reconhecer o domínio

português possam sujeitar os filhos a uma espécie de domesticidade ou escravidão

temporária que não deve exceder a cinco anos [...]”33.

José Bonifácio fala da introdução de utensílios europeus para a domesticação do

índio, um processo ideológico de aculturação com o objetivo de transformá-los em animais

dóceis e úteis aos interesses do mercado colonial. Segundo o padre João Daniel, esses

instrumentos foram até mesmo desejados pelos índios “pela razão, que por vezes temos

dado, de não terem uso, nem instrumentos de ferro [...] fazem dela muita estimação”34.

Clastres diz que na utilização dos equipamentos da metrópole, os europeus os justificavam

pela “incapacidade das sociedades primitivas de sair da estagnação de viver o dia-a-dia,

dessa alienação permanente na busca de alimentos, invocam-se o subequipamento técnico,

a inferioridade tecnológica”35.

As conseqüências da introdução dos equipamentos europeus nas sociedades

indígenas foram nefastas, porque:

31 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 137. 32 Ibid., p.145. 33 Ibid., p.133. 34 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 383. Vol. 2. 35 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 133

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[...] ao descobrirem a superioridade produtiva dos machados dos homens

brancos, os índios os desejaram, não para produzirem mais no mesmo

tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais

curto. Mas foi exatamente o contrário que se verificou, pois, com os

machados metálicos, irromperam no mundo primitivo dos índios a

violência, a força, o poder, impostos aos selvagens pelos civilizados

recém-chegados”36.

A domesticação, como sugere Virilio, sendo uma violência dromocrática não pode

ser vista apenas como métodos de enclausuramento, mas também como parte de “toda uma

economia clássica que é a do refém, do rapto, do deslocamento”37.

Nos “Apontamentos...”, José Bonifácio cita os instrumentos que deveriam ser

introduzidos na cultura indígena como forma de domesticar, amansar, atrair os índios aos

interesses dos projetos de aldeamentos. Neste documento, ele trata destes instrumentos nos

Arts. 3º, 14º, 15º, 25º e 29º. A abertura do comércio com os índios seria o primeiro passo

para o início da troca de produtos indígenas com instrumentos europeus, em forma de

“quinquilharias de ferro e latão, espelhos, miçangas, facas, machados, tesouras, prego,

anzóis, tabaco, vinhos doces e brandos, açúcar, carapuças, e barretes vermelhos, galões

falsos, fitas, lenços de cores subidas ou listradas, mantas, cães de caça etc”38. A estas

quinquilharias somam-se outros utensílios e manhas, citados nos demais artigos dos

“Apontamentos...”, quais sejam: presentes, promessas, arados, enxadas, machados e foices.

José Bonifácio conferiu aos missionários o poder de estabelecer comércio com os

índios, como também, o de cobrar-lhes os devidos tributos na forma de dízimos.

Segundo Virilio, essa prática de cobrança por parte dos religiosos vem de longo

tempo:

36 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 137. 37 P. Virilio, Velocidade e política, p. 80. 38 J.B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 103.

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A importância do padre (do mago), do patriarca, deve-se à sua capacidade

de estabelecer e realizar esse comércio de troca com os deuses/natureza,

de atenuar-lhes os caprichos, as violências. É ele quem, graças ao seu

empirismo científico, sabe fazer com que o sacrifício e o aluguel da terra

sejam aceitos (ele coleta, fixa e recebe os impostos; o dízimo, hoje em

dia, o óbolo, são remanescências disso)”39.

Com relação ao dízimo, no texto “Avulsos”, José Bonifácio critica o Art. 27º do

Diretório que determinava aos índios o pagamento do dízimo aos diretores. Ele

argumentava que “[...] é risível o deverem pagar o dízimo e o sexto do que fossem apanhar

no mato!”40. Entretanto, nos “Apontamentos...”, no Art. 28º, ele propõe o pagamento do

“dízimo da produção das terras, depois de passados seis anos livres, e o dízimo o único

tributo que paguem durante os doze anos que se seguirem”41.

O clero e o Estado estavam de tal forma imbricados no projeto de José Bonifácio, que as suas

funções se confundam. A construção de quartéis na área demarcada para os aldeamentos, obedecia a

uma estratégia específica. Vejamos como este fenômeno pode encontrar uma explicação em Virilio:

Alem de sua função militar, a muralha dessa praça forte assume uma

função de classe; é sua concepção poliorcética que a capacita a prolongar

indefinidamente o enfrentamento social.[...] O poder burguês é militar

antes de ser econômico, mas ele se relaciona mais precisamente à

permanência oculta do estado de sítio, ao surgimento das praças fortes,

‘essas imensas máquinas imóveis diferentemente fabricadas’42.

E o mesmo Virilio acrescenta:

39 P. Virilio, Velocidade e política, p. 92. 40 J.B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 147, numa referência aos Arts. 56 e 57 do Diretório. 41 Ibid., p. 112. 42 P. Virilio, op. cit., p. 25.

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[...] os quartéis-generais das forças policiais instalados nas proximidades,

todo esse aparato é tão-somente a reconstituição das diversas peças do

motor da fortaleza, com seus flancos, [...] a admissão e o escapamento de

suas portas, todo esse controle primordial da massa pelos órgãos da

defesa urbana 43.

Nos Arts. 10º e 11º, José Bonifácio sugere a construção de presídios militares com

a capacidade de atender de 20 a 60 homens visando à manutenção da ordem nos

aldeamentos. No Art. 20º que trata da instrução das artes e ofícios nos aldeamentos, ele diz

que os índios, apos instruídos no “ler, escrever, e contar, e catecismo”44, seriam

“distribuídos pelos lugares em que houver falta de oficiais concedendo-lhes a isenção de

servir na tropa paga”45. Isto leva-nos a entender que na composição das tropas militares os

índios aldeados e em formação de ofício eram presença obrigatória nas tropas pagas.

Entretanto, no Art. 5º ele deixa claro que na composição dos postos civis e militares do

aldeamento “haja pelo menos igualdade entre ambas as raças”, confirmando assim a

utilização do índio no serviço militar das aldeias.

No que se refere ao poder de polícia, este cargo ele reservou ao pároco, conforme

consta no Art. 8º “[...] párocos para as novas aldeias, que terão não só toda a jurisdição

eclesiástica, mas a de polícia civil [...]46.

Esta escolha obedecia a uma lógica de comando e obediência, que José Bonifácio

sabia que poderia ser exercida pelos membros do clero

O poder político do Estado só é, secundariamente, ‘o poder organizado de

uma classe para a opressão da outra’. Num plano mais material, ele é

polis, polícia, isto é, serviço de manutenção do sistema viário [...]

retomada mais ou menos consciente de uma série de bandeiras da velha

43 P. Virilio, Velocidade e política, p. 29. 44 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 109. 45 Ibid., p. 109. 46 J.B. de Andrada e Silva, op. cit., pp. 104-5.

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poliorcética comunal, confundindo a ordem social com o controle da

circulação (das pessoas, das mercadorias), e a revolução, o levante, com o

engarrafamento, o estacionamento ilícito, o engavetamento, a colisão47.

O poder de controle no sentido de coação sobre o outro está em vários textos, de

José Bonifácio, manifestando-se na forma de coação direta, com a introdução do índio nas

tropas militares, ou indiretamente, na construção de fortificações, presídios militares e

manutenção das estradas que fariam a ligação entre os aldeamentos.

O poder do Estado no plano material, de conformidade com Virilio –“polis, polícia,

manutenção do sistema viário” – está implícito no Art. 24º dos “Apontamentos...”, em que

José Bonifácio reserva algumas tarefas consideradas mais propícias aos índios, uma vez

que ele achava que os índios não eram “[...] muito próprios para os trabalhos aturados da

agricultura”48. Dentre outros, ele sugeriu “[...] transportar madeiras dos montes aos rios e

estradas, e abrir picadas pelo sertão, para o que são muito próprios [...]”49.

No texto “Nas aldeias novas, cada família deve ter terra precisa para se

sustentar”, José Bonifácio tratou das questões indígenas, propondo uma série de afazeres

que seriam distribuídos nas novas aldeias, em função da idade e sexo: “[...] as raparigas

serão a limpar o algodão, a afugentar os pássaros das roças etc., os rapazes a limpar os

caminhos, de noite treco para ambos, e nos domingos doutrina e catecismo”50. No texto

“Apontamentos sobre as sesmarias do Brasil”, ele previa a existência de uma caixa que

seria mantida pela venda dos produtos colhidos nas sesmarias e que tinha como finalidade

custear “[...] as despesas de estradas, canais e estabelecimentos de colonização de

europeus, índios, e mulatos e negros forros”51.

47 P. Virilio, Velocidade e política, p. 28. 48 J.B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 111. 49 Ibid., p. 111. 50 J.B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 139. 51 Ibid., p.153.

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No texto em que José Bonifácio trata da “Colônia de pretos”, no 28º item, ele

previa o estabelecimento de pensões [...] nas estradas de Santos para São Paulo e Rio de

Janeiro”52.

No que se refere ao poder de polícia e serviço militar, José Bonifácio não se

descuidou, valendo-se de sua experiência em Portugal, quando se aliou à resistência

portuguesa a partir de 30 de novembro de 1806. Inicialmente, fabricando munições de

guerra e, posteriormente, como militar quando criou o Corpo Militar Acadêmico em

Coimbra – tendo sido promovido a Major, Ten. Coronel e Coronel, além de Intendente da

Polícia do Porto e Superintendente da Alfândega e da Marinha - chegando a lutar na tropa

de resistência à invasão francesa comandada pelo General Junot.

Ainda no mesmo documento, no Art. 44º que trata da composição e dos deveres do

Tribunal Conservador dos Índios, ele disse no item 8º “Para extirpar a apatia habitual dos

índios, e influir-lhes novos brios, mandará formar companhias cívicas com fardamento [...]

e se vão assim acostumando à subordinação militar, e sirvam para polícia das mesmas

aldeias e distritos”53.

No texto “Os índios devem gozar dos privilégios da raça branca”, José Bonifácio

disse que “Enquanto não houver boas estradas para carros, os índios podem empregar-se

em tropeiros e condutores [...] e ainda mesmo o de soldados, conquanto que não os matem

à fome, sobretudo para pedestres e caçadores”54.

Nos Arts. 10º e 11º dos “Apontamentos...”, José Bonifácio previa a construção de

presídios militares tendo como fim “[...] coibir prontamente os tumultos e desordens que

estes fizerem depois de aldeados”55.

52 J.B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 161. 53 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p.120. 54 Ibid., p. 127. 55 Ibid., p. 105.

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Estes presídios teriam na sua composição entre “vinte até sessenta

homens de guarnição, com duas ou três peças de pequeno calibre, e se o

exigirem as circunstâncias locais, poderão também estes destacamentos

ter alguns soldados de cavalo56.

José Bonifácio fala do caráter geral do brasileiro no texto “Avulso”, expondo a

questão militar que para ele era um problema sério a ser resolvido pelo governo. O autor

disse textualmente que: “as ordens militares que poderiam, dadas só a serviços relevantes,

ser uma grande força consolidante do governo, são objeto de risadas e desprezo”57.

As fortificações são objetos de representações referenciais de um espaço estriado

que precisam ser vistos como zonas demarcadas para o exercício da guerra.

7. Guerra justa

Virilio trata a guerra justa como um processo ideológico que tem como justificativa

o apoio teológico – conforme já tratado no capítulo II, da primeira parte - firmado pela

cúpula religiosa quer cristã, judaica ou islâmica. A invocação da “guerra justa” partindo

das religiões tem o seu fundamento na autoridade, credibilidade e infalibilidade das

instituições que as pregam. Esta guerra, segundo ele, ao fugir ao controle do poder político

acaba tornando-se numa ‘guerra completa’, em que sendo desenvolvida pelos recursos

tecnológicos, incorpora à violência dromológica e, finalmente, deságua na ‘descarga

completa’ ou, o aniquilamento total da ética e do ser – levando inclusive à morte. Para

Virilio:

A morte só existe enquanto fundamento da religião porque há

intercessores – [...] – mediadores da questão da morte ao nível individual:

56 J. B. de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil, p. 105. 57 Ibid., p. 188.

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aqueles que vêm apertar a sua mão quando você está morrendo, aqueles

que fazem um sinal da cruz sobre o condenado, aqueles que dão a

absolvição, etc58.

As guerras de extermínio levadas avante por Tomé de Souza, segundo Vainfas,

foram amparadas por ordens régias que ordenavam os “ataques contra os tupinambá

aliados dos franceses, de que resultaram escravizações ‘lícitas’, uma vez que efetuadas em

‘guerra justa’, como rezava a legislação da época”59. As “guerras justas” travadas no

nordeste contra os potiguares tinham como objetivo a preação de índios para ‘despojos dos

soldados, e ainda o soldo [da tropa]’60, segundo Alencastro.

8. Velocidade e tecnologia

Virilio diz que a velocidade e a tecnologia têm um lado negativo que o positivismo

se encarregou de eliminar usando como recurso a censura ao afirmar que tecnologia e

velocidade são progressos, criando assim uma verdadeira tecnofilia na massa consumidora.

Entretanto, ao imprimir a velocidade ao objeto, as ciências criaram a tecnofilia e

preencheram o nosso universo de acidentes. “No fim do século dezenove, os museus

exibiram máquinas; no fim do século vinte acho que, num novo museu, deveremos conferir

à dimensão formadora do acidente o seu lugar de direito”61.

Paul Virilio diz que a política tem um lado pouco conhecido que é o vetor

velocidade, a despeito de ter sido estudada sempre pela ótica de um de seus aspectos, a

riqueza. Entretanto, esta é tão somente conseqüência da velocidade expressa nos processos

de decisões que envolvem questões que vão da produção à distribuição de bens das

58 P. Virilio, Guerra pura, p. 54 59 R. Vainfas, A heresia dos índios, p. 47. 60 L. F. de Alencastro, O trato dos viventes, p. 192. 61 R. Vainfas, op. cit., p. 41.

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estruturas de materiais às “subestruturas matematizadas”62. Desta forma, todas as

sociedades em maior ou menor grau são, em essência, dromocráticas.

No confronto de dois povos de diferentes graus de dromocracia – os europeus e os

indígenas – os primeiros fizeram valer os seus direitos impondo-se por meio do vetor

velocidade: na produção, na distribuição, no poder de aniquilamento do outro e na sua

capacidade hegemônica enquanto poder volitivo.

Paul Virilio afirma que “Em geral, até o século XIX, não havia produção de

velocidade. Podia-se produzir freios por meios de muralhas, da lei, das normas, das

interdições, etc. Podia-se frear usando todo tipo de obstáculos”63. Entretanto, mesmo

considerando os obstáculos impostos pela metrópole – normas, leis, interdições, alvarás,

cartas régias, provisões, portarias, regimentos, diretório, etc. – não podemos desconsiderar

que o uso das armas de fogo, dos cavalos, dos paquetes, das caravelas etc., antes que freio,

não tenham representado ganhos enormes em termos de velocidade de conquista sobre os

povos autóctones em toda a América Latina.

Segundo Costa Marques, os portugueses foram os primeiros povos a utilizar a

desmaterialização, o que lhes possibilitou o controle do comércio e suas respectivas rotas,

além do domínio de centenas de povos de que se serviram para a manutenção da

hegemonia lusitana, mesmo que tudo isso tenha custado o desaparecimento de dezenas de

povos e culturas, através da repressão que o colonialismo impôs às tribos gerando assim

um “desaparecimento trágico de pessoas mortas ou diminuídas, degradadas a ponto de não

conhecerem mais suas próprias identidades”64.

62 Expressão de Edmund Husserl. Sobre este assunto veja-se Ivan da Costa Marques, O Brasil e a abertura dos mercados: o trabalho em questão, p. 21. 63 P. Virilio, Guerra pura, p. 50. 64 Ibid., p. 85.

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Este desaparecimento, segundo Virilio, foi traduzido no processo colonial pela

“recusa da cidadania, de direitos, de habeas corpus, etc.”65, num processo em que foram

desaparecidos – aniquilados – milhões de índios.

Virilio sustenta que este desaparecimento está ligado ao espaço tecnológico ou,

espaço estriado, de que a Europa se utilizou para testar as suas tecnologias gerando assim

um desinvestimento dromocrático e demográfico nos povos que foram suas vítimas.

65 P. Virilio, Guerra pura, p. 129.

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CAPÍTULO IV NOMADISMO E TERRITÓRIO FLUTUANTE

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No quarto e último Capítulo de nossos estudos, analisaremos os conceitos de

errância, território flutuante, profetismo e nomadismo, desenvolvido por Michel Maffesoli,

e os aplicaremos para reler o discurso de José Bonifácio no contexto histórico de seu

pensamento.

Assim como Deleuze, Maffesoli também trabalhou com o nomadismo. Entretanto,

Deleuze usou do conceito para explicar o senso religioso nomádico, porque em seu

pensamento o trajeto de deslocamento do nômade não comporta fronteira ou delimitação.

O nômade não tem um ponto como fim – o que caracteriza o migrante – mas apenas

alternância. Maffesoli o utiliza o conceito de nomadismo para justificar o senso de

deslocamento bárbaro sobre um determinado espaço territorial, e esse bárbaro nômade

apresenta-se à sociedade de várias formas: pela riqueza identitária, pelo desprezo, pela

virtude, pela integração, pelo sedentarismo, etc.

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1. Nomadismo

Um problema que sempre preocupou a coroa portuguesa e também os missionários

foi o fato de os índios brasileiros serem nômades, pois isso estava prejudicando

sobremaneira o projeto de ação catequizadora, como também dificultava a formação de

mão-de-obra necessária ao desenvolvimento da produção colonial.

Para Maffesoli, o nomadismo tem sua origem na circulação dos bárbaros ou estrangeiros, dos

errantes, ou ainda na dispersão de conglomerados humanos em um espaço territorial indefinido. Como

fenômeno inerente ao ser humano, o nomadismo está configurado no histórico do processo evolutivo

das sociedades, podendo ser encontrado em todas as formas de manifestações culturais históricas,

religiosas e até no imaginário1 social, através dos contos, lendas, fábulas, mitos etc., que nenhuma

sociedade conseguiu eliminar. Segundo Maffesoli, até mesmo “[...] os fanatismos contemporâneos, as

diversas vagabundagens e múltiplas anomias são, conscientemente ou não, convocações mais ou

menos violentas a um ideal comunitário”2.

Em qualquer parte do mundo, este fenômeno é recorrente, quer pela denominação que aqui

utilizamos – nomadismo – quer por suas variantes como errantes, vagabundos, anômicos, viajantes,

andarilhos, deambulantes, peregrinos, aves de passagem, aves migrantes, pássaros migratórios, itinerantes,

marginais etc., em busca de um objetivo imposto pela necessidade ou pela essência cultural do grupo.

Maffesoli sustenta que os nômades têm uma motivação que pode variar de um

grupo para outro entre:

1 Aqui o imaginário será percebido como uma espécie de artimanha mental que colocamos em ação para evocar uma mensagem que possa expressar um objeto, um pensamento, etc., seja através de símbolos reais ou virtuais. A força e o poder do imaginário estão justamente na sua capacidade de envolver o sujeito numa aura de afetividade, criando assim um campo emotivo forte o suficiente para definir o seu objeto de desejo e, assim, contrapor à dura realidade da razão. 2 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, p. 41.

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[...] comércio, viagem de iniciação, simples vagabundagem, o viajante

não é mais que uma ‘ave de passagem’, e como tal deverá ser acolhido,

certamente, ‘mas fora da cidade’ [...] o viajante apresenta um risco moral

inegável, e isso por ser portador de novidades! Na verdade, essas são as

próprias características da errância 3.

Aos olhos do sedentário, o nômade é portador de uma novidade que pode trazer

riscos à manutenção da ordem estabelecida pelo consenso administrativo intra-muros. A

possibilidade de pôr em contato o modus vivendi sedentário com o nomádico, provoca

repulsa aos administradores sedentários não só pela novidade que poderia advir desse

encontro, mas, sobretudo, pela força de lei de que goza a anomalia nomádica. Para

Maffesoli, o:

[...] nomadismo não se determina unicamente pela necessidade

econômica, ou a simples funcionalidade. O que o move é coisa totalmente

diferente: o desejo de evasão. É uma espécie de ‘pulsão migratória’

incitando a mudar de lugar, de hábito, de parceiros, e isso para realizar a

diversidade de facetas de sua personalidade 4.

E foi justamente essa espécie de “pulsão migratória”, expressa por Maffesoli, que

obstacularizou o processo jesuítico de catequização porque os projetos missionários foram

concebidos a partir da ótica sedentária européia. Aos objetivos das missões, os

deslocamentos constantes dos índios não permitiam a apreensão completa dos ideais de

produção, de evangelização e dos mores dos colonizadores.

Analisando o projeto de José Bonifácio, percebe-se que a sua tentativa de conter a

“pulsão migratória” dos índios – por meio do processo de catequização da Congregação

3 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, pp. 42-3. 4 Ibid., p. 51.

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São Felipe Neri – não iria surtir efeitos porque o projeto foi elaborado segundo a

cosmovisão européia sedentária.

Assim, não seria por uma simples permuta de instituição que se resolveria a questão

do modus vivendi nomádico.

Outro autor que também tratou do fenômeno da “pulsão migratória” foi Paul

Virilio. Para esse pensador a “pulsão migratória” faz com que o nômade entre em contato

com o outro – portador de estranheza e novidades – contato este que acaba contaminando

as concepções de ser-e-agir nomádico e, conseqüentemente, acaba alterando a identidade

nômade, o que é repugnante para qualquer sedentário.

2. Errância

Maffesoli fez referência a Portugal que em função de sua posição geográfica optou por um

modelo comercial privilegiando a “pulsão migratória” e para isso lançou mão da expressão de Gilberto

Freire para justificar a errância portuguesa no Brasil: “[...] o papel desempenhado pelos degredados,

pelo herege, até pelo criminoso como membros fundadores de uma terra a conquistar, de um império a

fundar”5.

O paradoxal nisso tudo é que, tanto pela ótica de Maffesoli quanto de Gilberto Freire, a mesma

nação que se desenvolveu sob o signo da errância, voltou-se de imediato contra a cultura errante dos

povos indígenas que estavam realizando o seu “desejo de evasão” e viviam à procura da “Terra sem

Mal”.

Curiosamente, José Bonifácio foi um errante na Europa e também viveu esta dupla

tensão entre o Brasil e Portugal. Conforme vimos no capítulo I da primeira parte, a sua

vida profissional foi pautada opor momentos de errância, quer acadêmica, na qualidade de

5 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, pp. 53-4.

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estudante pesquisador, quer na qualidade de homem de Estado como Ministro e Deputado

Constituinte e, finalmente, como político exilado na França, de 20 de novembro de 1823

até o seu retorno ao Brasil, em julho de 1829.

A liberdade do errante não é a liberdade do sujeito, mas sim a liberdade à procura da própria

existência como membro de um determinado grupo, portanto, liberdade coletiva. Assim, cada membro

da coletividade está em franca dependência do outro, do seu semelhante. A melhor definição para este

outro, em função do nosso objeto de trabalho, encontramos no pensamento de Maffesoli, segundo o

qual o outro é:

[...] aquele da pequena tribo ‘a qual se aderiu, ou o grande Outro da

natureza, ou de tal ou qual divindade. O dinamismo e a espontaneidade

do nomadismo estão justamente em desprezar fronteiras (nacionais,

civilizacionais, ideológicas, religiosas) e viver concretamente alguma

coisa de universal [...]6.

O nômade potencializa em si uma independência dependente, pois sendo livre

enquanto sujeito mantém-se dependente de uma ação coletiva. Por isso, “[...] estando

desligado, isto é, estando livre em relação às instituições de todos os tipos, é que é possível

comunicar-se, entrar em correspondência, viver uma forma de ‘religação’ com a natureza

que nos cerca e com o mundo social”7.

Mas então, estar livre em relação a uma instituição, seria não estar sujeito à

obediência ao Estado?

O que é este Estado então?

Vamos considerar que as sociedades indígenas não se constituíam de uma

instituição que pudesse exigir-lhes uma certa fidelidade institucional na forma de

6 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, p. 70. 7 Ibid., p. 71.

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obediência a um Estado ou a uma religião, por exemplo. A religião não foi encontrada no

Brasil segundo os conceitos expressos pelo eurocentrismo cristão. Resta então avançar à

procura do Estado, ou de um mecanismo de controle e obediência civil encontrado em suas

várias formas ao longo da história dos povos.

O autor que deu o melhor tratamento à questão do surgimento do Estado no seio

das sociedades tidas como “selvagens” ou civilizadas, foi Pierre Clastres. Segundo esse

pensador, há uma:

[…] grande divisão tipológica entre selvagens e civilizados [...]. Tem-se

freqüentemente descoberto – e com razão – no movimento da história

mundial duas acelerações decisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi

o que se denomina a revolução neolítica (domesticação dos animais,

agricultura, descoberta da artes da tecelagem e da cerâmica,

sedentarização conseqüente dos grupos humanos etc.). Estamos ainda

vivendo, e a cada vez mais (se nos é lícita expressão) no prolongamento

da segunda aceleração, a revolução industrial do século XIX8.

A chamada “revolução neolítica” não levou os povos indígenas necessariamente à

sedentarização pelo simples fato de passar da domesticação de plantas e animais ao

domínio da agricultura, das artes e da cerâmica. Estes processos podem muito bem ser

vivenciados por um grupo sem que necessariamente tenha deixado de ser nômades.

Segundo Pierre Clastres, a mudança [...] do nomadismo à sedentarização seria a

conseqüência mais rica da revolução neolítica, no sentido de que permitiu, através da

concentração de uma população estabilizada, a formação de cidades e, mais adiante, dos

aparelhos de Estado”9.

8 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 140. 9 Ibid., p. 140.

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Historicamente são vários os exemplos de sociedades que permaneceram nômades

na passagem da revolução neolítica sem, contudo, terem-se transformado em sociedades

sedentárias, pois “[...] tanto na América como em outros lugares, o atestam: a ausência de

agricultura é compatível com o sedentarismo”10. Exemplos deste sedentarismo não

agrícola podem ser encontrados em povos distintos, como nas planícies da América do

Norte e nos chacos da América do Sul. Em ambos os casos, encontramo-nos diante de uma

revolução dromológica antes que neolítica, pois a introdução do cavalo e da arma de fogo

como vetores de velocidade fez com que estes povos abandonassem a agricultura,

excessivamente lenta, por vetores de maior mobilidade. Segundo Pierre Clastres o uso do

cavalo foi fator de mudança substancial para as tribos que o adotaram como vetor de

velocidade e transporte, contribuindo assim para a eficácia dromológica e logística da

máquina de guerra em tempos de conflito e de paz.

O processo de colonização no Brasil beneficiou-se o máximo do uso do cavalo

como meio de transporte e comunicação. O padre João Daniel confirma a importância do

cavalo no circuito produtivo colonial a ponto de ter tornado um dos principais objetos de

interesse dos ladrões, juntamente com o gado vacum:

Mas os que mais furtam são os curraleiros, e pastores de gado, que têm os

senhores nos seus currais; são incríveis os modos, e indústrias, de que

usam nos seus furtos, já vendendo aos passageiros as vitelas, já vendendo

os queijos que fazem, já matando os bois no campo só para lhes tirarem, e

venderem, as peles, já vendendo os potros, e cavalos, e já repudiando a

vaca, que todas as semanas se mata para o seu sustento [...]11.

10 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 140. 11 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 206. Vol. 2.

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Consideramos que estes são exemplos de que a transformação material de uma

sociedade, provocada pela revolução neolítica, não leva necessariamente à sua conseqüente

mudança social. Exemplo disso encontramos em Pierre Clastres ao afirmar que:

Grupos de caçadores-pescadores-coletores, nômades ou não, apresentam

as mesmas propriedades sócio-políticas que seus vizinhos agricultores

sedentários; ‘infra-estruturas’ diferentes, ‘superestrutura’ idêntica.

Inversamente, as sociedades mesoamericanas – sociedades imperiais,

sociedades com Estado – eram tributárias de uma agricultura que, mais

intensiva que alhures, não ficava muito longe, do ponto de vista de seu

nível econômico, da agricultura das tribos ‘selvagens’ da Floresta

Tropical: ‘infra-estrutura’ idêntica, ‘superestruturas’ diferentes, uma vez

que, num dos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de

Estados acabados12.

Concluímos que o fator decisivo no processo de mudança é a crise política e não a

crise econômica. Desta forma, podemos aceitar a idéia de que a revolução neolítica, apesar

de toda a sua importância nas transformações que operaram nas sociedades indígenas, não

levou necessariamente a uma transformação política e, conseqüentemente, à introdução do

Estado como instituição de controle e obediência social.

Pierre Clastres sugere que tenhamos de inverter a dialética marxista segundo a qual

a infra-estrutura determina a superestrutura. O que ele propõe é justamente o inverso: a

superestrutura política sobrepondo e determinando a infra-estrutura econômica. Conforme

o pensamento desse autor, “se se quiser conservar os conceitos marxistas de infra-estrutura

e superestrutura, então talvez seja necessário aceitar reconhecer que a infra-estrutura é o

político e a superestrutura é o econômico”13.

12 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 141. 13 Ibid., p. 141.

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O Estado seria então o instrumento que, ao ser instituído, provocaria uma

metamorfose completa nas relações sociais do grupo?

Se se interpretamos Estado pelo prisma de Pierre Clastres, como o: “instrumento

que permite à classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classes

dominadas”14, teremos que admitir, por conseqüência, a existência do antagonismo entre

dominantes e dominados no seio das tribos brasileiras. A existência de uma classe

dominante implica ainda a sua subseqüente existência de conceitos de posse e propriedade,

em que os proprietários dos meios de produção exploram os despossuídos destes ditos

meios. Supomos assim que, este antagonismo só pode ser levado adiante se for mediado

por uma força ou um poder de imposição que tenha o “monopólio da violência física

legítima”, ou seja, o Estado.

Ao verificarmos a produção econômica dos povos indígenas, não encontramos um

exemplo sequer de acúmulos de bens privados, uma vez que as “[...] sociedades de

abundância, não deixam nenhum espaço para o desejo de superabundância”15. O que

podemos compreender a respeito da abundância nas sociedades indígenas, sob o prisma do

pensamento de Pierre Clastres, é que a disponibilidade de bens materiais não é fator sine

qua non para levar à superambundância. Seria necessário então a existência de um

instrumento institucional que pudesse levar o abundante ao super.

Conforme as observações do padre João Daniel, a ambição indígena estava restrita

a “[...] ter uma pouca farinha-de-pau, que é o seu pão ordinário [...]”16, isto a despeito da

superabundância que o próprio padre descreve em detalhes alegando que os índios os

desprezavam, pois os “[...] bens terrenos vem o perderem-se entre eles os estimados

cacaus, cravos, salsas, preciosos bálsamos, prata, ouro, diamantes, e toda a riqueza de que

14 P. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 142. 15 Ibid., p. 143. 16 Pe. J. Daniel. Tesouro descoberto do máximo Rio Amazonas, p. 274.

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abunda o Amazonas [...]”17. O desprezo que o padre arrogava para os índios não se verifica

somente a estes produtos supracitados, pois isto aplica-se também à prata e outras pedras

preciosas.

José Bonifácio imaginava poder introduzir na cultura indígena esse desejo de

abundância. Vejamos então como ele comunica esse desejo nos “Apontamentos...”:

[...] é muito conveniente que nos anos férteis faça uma reserva de

farinha, milho, e feijão, que se conservará em celeiro para os anos de

escassez. [...] que não falte o sustento aos mesmos índios, sejam em

grandeza quase dobrada do que exige o seu sustento anual, para que haja

sempre em excesso que se guarde nos celeiros apontados.18

Mas por que exatamente estas sociedades são destituídas do “desejo de

superabundância”?

Para Hélène Clastres, a abundância só poderia ser encontrada na Terra sem Mal

porque local onde “o milho cresce sozinho, as flechas alcançam espontaneamente a caça...

Opulência e lzeres infinitos. Mais nenhum trabalho, portanto: danças e bebedeiras podem

ser as ocupações exclusivas”19.

Somente o fato de viver em abundância não responde à pergunta porque ela mesma

ou, a própria essência da abundância, deveria gerar uma ambição sem precedentes em seus

membros, fato que não ocorreu aos povos indígenas. Para Pierre Clastres, “As sociedades

primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas o Estado é impossível”20. Então ele

propõe, que busquemos as respostas não na vida produtiva dessas sociedades, mas sim na

ausência do Estado que essas sociedades esconjuravam. Eis então o motivo pelo qual ele

17 Pe. J. Daniel. Tesouro descoberto do máximo Rio Amazonas, p. 274. 18 José Bonifácio, Projetos para o Brasil, p. 112. 19 H. Clastres. Terra sem Mal, p. 67. 20 H. Clastres, A sociedade contra o Estado, p. 143.

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propõs explicar a preponderância da superestrutura sobre a infra-estrutura para que

pudéssemos compreender, a priori, os mecanismos que levaram os índios a não aceitar o

Estado ou, o não-Um. Assim, tentando verificar a proposta de Pierre Clastres, recorremos à

superestrutura religiosa como fonte institucional do poder estatal.

Para justificar a falta de ambição existente entre os índios do Amazonas, o padre

João Daniel dizia que na “América acharia não um, mas milhares e milhões de índios tão

despidos de toda afeição e ambição das preciosidades mundanas, que ainda das que Deus

lhes repartiu nas suas terras não se utilizam, não fazem apreço, nem caso algum, antes as

desprezam”21.

Nos discursos dos cronistas é comum encontrarmos a afirmação de que os nossos

índios eram destituídos de fé, lei e rei.22 O padre João Daniel também não reconhecia a

religiosidade entre os índios brasileiros, pois segundo seu parecer:

Pelos costumes e teor de vida dos índios do rio máximo Amazonas, se

pode já conhecer a sua lei: é a de Epicuro, e dos ateus, que só reconhecem

e adoram os seus apetites, a sua vontade, e o seu ventre [...] Só de comes

e bebes; no demais vida de brutos23.

Segundo o padre João Daniel, a certeza de haver a adoração de uma divindade ou

uma idolatria nas Américas só se poderia encontrar nos impérios peruano e mexicano. No

21 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 274. 22 Essa idéia dos índios não possuir fé, lei e rei difundiu-se através das impressões deixadas por Pero de Magalhães Gandavo, para quem a ausência das letras F, L e R era evidência de que “os índios não têm fé, nem lei, nem rei”. O mesmo foi dito pelo historiador português Oliveira Martins, para quem os índios “Letras nenhuma conheciam, nenhuma religião cultivavam. Nenhumas leis os ligam, nem se servem de alguns pesos e medidas, nem ao governo de algum rei vivem sujeitos”. Essa mesma postura foi assumida pelo padre João Daniel em Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, p. 317, ao admitir que os “índios do Amazonas e América vivendo à lei da natureza, sem Deus, sem Lei e sem Rei, conforme a vontade de cada um” . 23 Pe. J. Daniel, op. cit., p. 321.

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entanto, apesar da afirmação categórica, o padre admite dúvidas em relação aos índios do

rio Tapajós, pois ele relata a alegria dos índios quando do aparecimento da lua nova:

[...] porque então saem de suas choupanas, dão saltos de prazer, saúdam-

na, e dão-lhe as boas-vindas, mostram-lhe os filhos, e a modo de quem os

oferece, estendem os braços, além de muitas outras ações, ostensivas, de

quem na verdade a adora.Tudo isso presenciei eu mesmo [...]24.

Estaria então nos astros a explicação de uma possível origem da emanação de um

poder supra ou transocietário?

Segundo a interpretação de Helda Barracco, a adoração de entidades lunares é um

fenômeno representativo da eterna batalha estabelecida no inconsciente do ser humano,

porque “as várias lutas do Bem e do Mal, da Lua e do Sol, do Dia e da Noite, dos filhos de

Arimã e dos filhos de Ormuz são alguns dos mais conhecidos entre os inúmeros relatos do

mesmo evento simbolizado de maneira apenas superficialmente diversa”25.

Em se tratando de sociedades indígenas brasileiras, esta interpretação reforça a

idéia de que os astros foram antes elementos mediadores da comunicação entre o ser e seu

inconsciente, jamais gênese de uma estrutura de poder.

Na afirmação das ausências de lei e rei, está subentendida a idéia de uma sociedade

destituída de um comando, o que vem a ser confirmado pela ausência de uma instituição

que pudesse regulamentar as relações sociais em nome de uma “máquina estatal”, quer

como “[...] grandes despotismos arcaicos – reis, imperadores da China ou dos Andes,

faraós –, as monarquias recentes – O Estado sou eu – ou os sistemas sociais

24 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 322. 25 H. B. Barracco, A praia do Morena, p.49.

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contemporâneos [...]”26. Pierre Clastres argumentou que, dos chefes das tribos não

poderíamos extrair a gênese de um aparelho estatal, simplesmente porque um chefe não é

possuidor de uma autoridade, “[...] de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar

ordens”27.

Apesar de insistir na idéia de que os índios eram povos destituídos de leis que

deviam obedecer, o padre João Daniel chegou a reconhecer a existência de um pouco de

comando apenas no tocante ao exercício da autoridade dos Principais. Conforme ele

mesmo disse, existia uma certa obediência aos “[...] seus maiores, ou cabeças, a quem os

espanhóis chamam Caciques, e os portugueses Principais chamados na sua língua

tobixabas, aos quais prontamente obedecem [...]”28. Fora esse contexto, só haveria

obediência explícita dos filhos para com os pais, dos jovens em relação aos idosos e, de

todas em relação às velhas da tribo, que segundo o mesmo padre “[...] o que elas dizem são

para eles oráculos, e evangelhos [...]”29.

A despeito das possíveis controvérsias, sabemos que um chefe de uma tribo não

comandava porque os componentes da tribo não lhe deviam nenhuma obediência, quer de

fato ou de direito. Daí resulta que a chefia em uma tribo indígena era incompatível com a

idéia de uma autoridade como nós a concebemos segundo o modelo ocidental. A chefia em

uma sociedade indígena só pode ser entendida concomitante e inseparavelmente do

conceito de prestígio, pois somente esse poderia assegurar ao ocupante do cargo de chefe

de que as suas intenções para com o grupo eram relevantes e, conseqüentemente, dignas de

serem objeto de reflexão.

Usamos o termo reflexão porque a fonte da qual emanavam as verdadeiras

intenções do chefe estavam canalizadas pela capacidade de ele se fazer ouvido no uso

26 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 143. 27 Ibid., p. 143. 28 Ibid., p. 269. 29 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 269.

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adequado e exclusivo que lhe era reservado de proferir as palavras. Entretanto, a

eloqüência do chefe só teria validade como palavras e, faria efeitos de sentido, quando ela

fosse capaz de fazer “[...] apaziguar, de renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que

sempre viveram no bom entendimento”30. Mesmo assim, as palavras do chefe não

gozavam dos direitos da força de lei e, por isso mesmo, podiam levar ao fracasso na

tentativa de promover o apaziguamento para a qual foram pronunciadas. Caso isso

ocorresse, as atribuições da chefia estariam condenadas ao fracasso bem como o prestígio

de que até então gozava o chefe.

No fracasso do chefe retomavam-se então os conflitos levando-o à derrocada e ao

descrédito totais. Assim, como Pierre Clastres, concluímos que o chefe só o é:

[...] em função de sua competência `técnica`: dons oratórios, habilidade

como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras,

ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma, a sociedade deixa o chefe ir

além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se

transformar em autoridade política”31.

Em suma, se o chefe não detinha autoridade para fazer valer a sua vontade, ao

mesmo tempo em que ele era obrigado a satisfazer à vontade de seus pares, resulta que a

autoridade da tribo – autoridade no sentido de se fazer no exercício do poder – estava

localizada nas ações da própria tribo. A autoridade tribal era inversa em relação à

autoridade da sociedade ocidental, pois nesta ela manifesta-se em descenso vertical, isto é,

de cima para baixo, partindo do chefe para a sociedade; naquela ela manifestava-se em

ascenso vertical, isto é, de baixo para cima, partindo da sociedade para o chefe. Assim,

30 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 144. 31 Ibid., p. 144.

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temos que “a sociedade primitiva nunca tolerará que seu chefe se transforme em

déspota”32.

A conclusão que chegamos ratifica o pensamento de Pierre Clastres, segundo o qual

o chefe é antes de tudo um sujeito escolhido para servir à tribo e não para ser o seu Senhor.

Os únicos e raros momentos em que era admitido o uso da autoridade por parte do chefe,

eram os momentos de guerra, mesmo assim no exercício de uma autoridade fundamentada

exclusivamente nos ardis técnicos relativos à arte da guerra. Nesse momento, o chefe

manifestava todo o seu prestígio na experiência de conhecedor das artes guerreiras, jamais

em manifesto de poder. Caso viessem a ser felizes nas batalhas tribais, o chefe levava

consigo, no máximo, as glórias da vitória, de forma alguma “o comando que lhe é proibido

exercer”33.

A questão da chefia na América do Sul só pode ser verificada e entendida quando

estão em jogo as duas partes em busca da supremacia, pois segundo a pesquisadora Helda

Barracco:

Na América, não se nasce rei por direito divino, como entre os europeus,

não se herda esta divindade através do primeiro filho. Na América Latina

criam-se Chefes através da compensação adequada que permitirá alcançar

a supremacia através do ato competitivo concluído brilhantemente34.

De certa forma é isso que explica a compulsão dos chefes para as guerras, dado que

eram elas as únicas fontes de prestígio para alguém manifestar o desejo de externar

autoridade. Entretanto, ele sabia que estaria sempre condicionado à vontade dos seus

guerreiros em aceitar fazer parte de mais uma guerra que, bem o sabiam, poderia não lhes

32 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 144. 33 Ibid., p. 145. 34 H. B. Barracco, A praia do Morená, p. 50.

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ser vantajosa. Assim, a recusa dos guerreiros em levar adiante o desejo do chefe era

conseqüentemente, a derrocada do ego do seu chefe. Disso resulta que “[...] a infelicidade

do guerreiro selvagem é que o prestígio adquirido na guerra se perde rapidamente, se não

se renovam constantemente as fontes”35, ou seja, a provocação deliberada de novas

guerras. Isto explica também a vontade do índio de participar das tropas, pois esta poderia

lhes proporcionar a chance de glorificação. Relata o padre João Daniel que os índios,

principalmente os mais jovens:

[...] não se negam às empresas árduas, e perigosas batalhas com seus

inimigos: antes muitas vezes se oferecem. E daqui vem a sua grande

prontidão para irem nas tropas, quando estas vão batalhar com algumas

nações levantadas, ou rebeldes, de sorte que repugnarão a ir remar nas

canoas, e servir aos brancos, quando para isso são requeridos; mas para

irem nas tropas, ordinariamente não se negam, especialmente os

mancebos, que querem alegar certidões de valor”36.

Para um chefe que alimentava seu ego de prestígio “[...] não tem escolha; ele está

condenado a desejar a guerra”37.

Não obstante desejoso de uma guerra que não atraía os interesses dos jovens

guerreiros, o chefe estaria condenado a jamais exercer o poder ou, condenado à morte, pois

ele estaria sempre a serviço dos desejos da tribo e não a tribo a serviço de seus desejos.

Pierre Clastres ilustrou isto muito bem na descrição do destino reservado a um chefe

guerreiro Yanomami:

35 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 146. 36 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 272. 37 P. Clastres, op. cit., p. 146.

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Tal foi o destino do guerreiro sul-americano Fousiwe. Por ter querido

impor aos seus uma guerra que eles não desejavam, foi abandonado por

sua tribo. Só lhe restava lutar sozinho nesta guerra, e ele morreu crivado

de flechas. A morte é o destino do guerreiro, pois a sociedade primitiva é

tal que não permite que a vontade de poder substitua o desejo de

prestígio. Ou, em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe, como

possibilidade de vontade de poder , está antecipadamente condenado à

morte38.

O padre João Daniel expressou a mesma idéia ao afirmar que aos índios faltava um

certo poder centralizado. Senão vejamos:

E na verdade se tivessem quem os capitaneasse não (são) seria suficiente

toda a Europa para os desalojar das suas terras, nem ainda acometer,

porque bastava aos tapuias jogarem as suas flechas nas bordas dos rios

contra os navegantes, escondidos e amparados não só com o sombrio do

arvoredo imenso das suas matas, mas também detrás das árvores, donde

muito a seu salvo podem desbaratar grandes exércitos, e vencer aos mais

invencíveis gigantes [...]39.

Partindo da premissa de que nas sociedades indígenas, o comando não era exercido

segundo a forma ocidental clássica de descenso, mas de ascenso vertical, conclui-se que

toda estrutura administrativa prevista nos “Apontamentos...” estaria fadada ao fracasso,

até mesmo naquelas em que José Bonifácio reservou ao chefe, o poder de decisão sobre os

componentes dos aldeamentos.

Isso posto temos então as bases pelas quais podemos nos fundamentar para

sustentar a hipótese de que o poder, entendido como vontade manifesta de subjugar a

outrem, não podia ser exercido nas tribos. Para Pierre Clastres, esta afirmativa é válida

38 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 146. 39 Pe. J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 319.

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209

somente para as tribos pouco numerosas porque num universo mais numeroso haveria

sempre a tendência ao surgimento de um processo unificador das vontades sociais, o que

poderia dar origem assim à constituição de um Estado. Contudo, no que se refere aos tupis-

guaranis esta asserção não encontra fundamento porque estes grupos não só eram

constituídos de um grande número de índios como também revelaram a existência de

chefes com uma certa autonomia de poder, sem com isso terem constituído um Estado.

Os chefes tupi-guaranis eram certamente déspotas, mas não eram mais de

modo algum chefes sem poder. [...] os cronistas franceses e portugueses

da época não hesitarem em atribuir aos grandes chefes de federações de

tribos de ‘reis de província’ou ‘régulos’40.

Se não se chegou à configuração de um Estado Tupi-guarani – a despeito da

existência do poder e do grande número de índios nas aldeias – sem a constituição de

cidades, como explicar então esse aparente paradoxo?

Pierre Clastres defende a tese de que a constituição de um Estado Tupi-guarani só

não foi possível por causa da ocorrência de um fenômeno que impediu que a manifestação

de poder dos chefes pudesse levar a totalidade das tribos à instituição de uma instância

política, de autonomia tal, que pudesse configurar num futuro próximo em um Estado

indígena.

O fenômeno ou fato que impediu o nascimento de um proto-estado tupi-guarani

deu-se na forma de errância, que teve como objetivo encontrar um lugar que, na linguagem

dos índios, denominava-se Yvÿ mara eÿ ou, Terra sem Mal. A tentativa de encontrar este

local fez com que os índios não tivessem tempo suficiente para desenvolver uma

40 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 149.

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210

instituição, que pudesse canalizar as forças capazes de catalisar os poderes exercidos pelos

chefes e transformar as federações tribais41 em um nascente estado indígena.

Não bastasse o exercício de poder dos chefes tupi-guaranis que até então vinha se

constituindo exceção ao que estivemos apresentando até o presente momento, acrescenta-

se ainda o poder da palavra inerente a uma outra figura bem característica da cultura tupi-

guarani, o caraí.

Para o entendimento do poder da palavra, é necessário primeiramente definir o

poder, segundo sua empregabilidade, na análise que ora vem sendo feita para a

compreensão da extensão do seu sentido no seio das comunidades indígenas brasileiras,

segundo a intencionalidade de sua aplicação, porque ela foi o principal veículo de

comunicação de poder simbólico do caraí.

No entender de Vainfas, o poder da palavra era manifesto pela mediação do

maracá42, objeto símbolo do poder de manipulação dos caraís - também chamados de

pajé-açu ou, de profetas - quando em seus rituais de santidade. Este autor assim descreve

parte do ritual:

[...] - o transe do pajé ocorria por meio de uma erva, o petim ou petum

[...] isto é, o tabaco. O pajé defumava cada maracá, chocalhando-o e

dizia: ‘fala agora, e deixa-te ouvir; estás aí dentro?’. E, assim, fazendo-se

de intérprete dos maracás [...] o pajé exortava os índios à guerra 43.

41 A mais conhecida e difundida foi a Confederação dos Tamoios, designativo que relaciona a guerra entre os portugueses e seus aliados, os índios Temiminós ou tupiniquins, contra os franceses e seus aliados, os índios Tamóios ou tupinambás, numa faixa que ia de Cabo Frio (RJ) a Bertioga (SP). Os Tamoios eram chefiados por Cunhambebe, primeiro chefe da Confederação; os Temiminós chefiados por Araribóia (mais tarde batizado de Martim Afonso Araribóia). Entretanto, para H. Clastres houve apenas “tentativas (episódicas e muitas vezes fracassadas, é verdade) de confederação” – sobre este assunto veja-se H. Clastres, op. cit., p. 45. 42 Segundo o entendimento de R. Vainfas o maracá é um “instrumento mágico feito do fruto seco da cabaceira (cohyne), que funcionava como chocalho nas danças tupis, furado nas extremidades, perpassado por uma seta feita de brejaúba, enchido com miolo miúdo, sementes ou pedras, e adornado com penas e plumas de arara”. Já para H. Clastres traduz o maracá como “acessório principal do profeta, o mediador tangível pelo qual deve necessariamente passar toda comunicação com o sobrenatural”. Sobre o maracá vejam-se mais em R. Vinfas, op. cit., p. 54 e H. Clastres, op. cit., p. 48. 43 R. Vainfas, A heresia dos índios, p. 57.

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211

A autora Hélène Clastres considera que o maracá seja tão somente “o acessório

principal do profeta, o mediador tangível pelo qual deve necessariamente passar toda a

comunicação com o sobrenatural”.44 Fica claro então que o poder das palavras

pronunciadas pelo pajé residia no fato de serem consideradas não como palavras de um

simples mortal, mas sim emanadas de um poder além da capacidade de cognição dos

ouvintes. E conforme este autora, os tupis davam tanto crédito àqueles que tinham o dom

das palavras que chegavam mesmo a desistir de matar um guerreiro caso ele manifestasse o

dom de cantar.

Os efeitos de sentidos das palavras só podem ser compreendidos à luz do radical

das expressões Ayvu porã (a bela linguagem), Ñe´e porã (belas palavras) e Ñe´e (palavra,

voz, eloqüência), não porque elas eram ditas pelos caraís, mas porque passavam e eram

reproduzidas por eles na forma de belas metáforas que materializavam os desejos dos

espíritos. Segundo Hélène Clastres “[...] as belas palavras nem designam nem comunicam:

só podem servir para celebrar [...]”45. Foi por isso que Pierre Clastres afirmou que os

chefes detinham o “quase-monopólio” do poder sobre a linguagem a ponto de ninguém ter

tido a coragem de usá-las, e acrescentou: “[...] se nas sociedades de Estado a palavra é o

direito do poder, nas sociedades sem Estado ela é, ao contrário, o dever do poder”46.

Isso obrigava o chefe a usar das palavras para a manutenção de seu cargo, pois “um

chefe silencioso não é mais chefe”. E isto não quer dizer que do discurso do chefe emanava

o poder – pois o chefe era destituído dele – mas sim que o chefe falava sem dizer, porque

como foi dito anteriormente, as palavras não designavam nem comunicavam, apenas

celebravam as normas das quais a sociedade devia ser lembrada para não se esquecer no

percurso do quotidiano.

44 H. Clastres, Terra sem Mal, p. 48. 45 Ibid., p. 87. 46 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 107.

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212

Conquanto todo caraí tenha sido um pajé, um pajé não chega necessariamente a

tornar-se um caraí “[...] apenas uns raros pajés chegam a caraís e desde esse momento não

era mais sua função cuidar dos doentes”47. A diferença básica entre estes dois reside nas

funções que eles exerciam na sociedade tribal: ao caraí era reservada a comunicação com

os espíritos da natureza, tendo o maracá como instrumento mediador deste discurso; ao

pajé restava tão somente providenciar a cura dos seus semelhantes através dos

conhecimentos adquiridos junto à natureza. Para Hélène Clastres, além da cura, os caraís

deveriam ser capazes de descobrir os nomes dos recém-nascidos da tribo; ao caraí era dado

o direito e o dever de percorrer todas as aldeias da região, fossem amigas ou não, e:

[...] só eles podiam fazer; qualquer outra pessoa que tentasse seria

aprisionada e executada [...] nunca se sabe de onde vêm os caraís: nem

de qual lugar do espaço, nem [...] de que pontos da genealogia. Indo e

vindo constantemente, portanto sem residência, estão em toda parte e por

isso mesmo em nenhum lugar48.

3. Território flutuante

O que Michel Maffesoli define como território flutuante ou, espaço de consumação,

é “[...] um território que não predispõe a coisas estabelecidas com seu cortejo de certezas e

de hábitos [...]”49, é o equivalente ao “espaço liso” de Deleuze. O que há de singularidade

no território flutuante é o fato de ser concebido como lugar idealizado pelos profetas para o

encontro com o divino ou, na expressão de Maffesoli, “[...] tudo aquilo que leva à busca de

Deus”.

47 H. Clastres, Terra sem Mal, p. 39. 48 H. Clastres, Terra sem Mal, p. 41. 49 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, p. 181.

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Aliás, o próprio Maffesoli recorre a Pierre Clastres a propósito da explanação deste

território flutuante e sua importância para os índios guaranis naquilo que eles

denominavam Yvÿ mara eÿ ou, Terra sem mal. Este lugar na concepção de Maffesoli é a

antítese ambiental, lugar de descarga de toda a maldade e tensão contidas nos territórios

em que os índios passavam, tendo que se submeter ao labor para o sustento do grupo.

Assim, este território flutuante tornava-se o ambiente digno de resistência do desejo tribal,

porque:

[...] o desejo de errância é um dos pólos essenciais de qualquer estrutura

social. É o desejo de rebelião contra a funcionalidade, contra a divisão do

trabalho, contra uma descomunal especialização a transformar todo

mundo numa simples peça de engrenagem na mecânica industriosa que

seria a sociedade. Assim se exprime o necessário ócio, a importância da

vacuidade e do não-agir na deambulação humana. [...] a errância pode ser

considerada uma constante antropológica que, sempre e mais uma vez,

não pára de penetrar em cada indivíduo e no corpo social em seu

conjunto50.

Para Maffesoli a errância passa então a ter uma função importante que é a de

“Viver uma dupla tensão de um lado em direção ao estrangeiro e suas potencialidades, de

outro lado em direção ao mundo das riquezas”51.

No entendimento de Clastres, o nomadismo tupi-guarani tem sua aplicação na sua

forma de produção da “vida econômica” que priorizava, sobretudo, a caça, a coleta e a

pesca, “[...] nomadismo em que recaem geralmente os bandos de caçadores-coletores

[...]”52 e, no profetismo. Desta forma, eles necessitavam de uma vastíssima área para

satisfazer os seus dois desejos. Primeiramente o que diz respeito à produção alimentar, pois

50 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, pp. 32-4. 51 Ibid., p. 157. 52 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 141.

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214

sendo grupos formados por comunidades extensas, conseqüentemente, necessitariam de

um grande volume de alimentos; e o segundo diz respeito ao profetismo de seus caraís que

exigiam dos componentes dos grupos deslocamentos constantes à procura do Yvÿ mara eÿ

ou, Terra sem Mal.

O profetismo de que aqui tratamos refere-se a um ato deliberado por um sujeito em

que, na liderança de um dado movimento social, consegue congregar uma tribo em torno

de um discurso de promessas do renascimento de um novo mundo, em substituição ao

mundo corrompido, o atual. Pierre Clastres via nos discursos do caraí não somente palavra

de promessa de um novo mundo, mas:

[...] palavra virulenta, eminentemente subversiva que chama os índios a

empreender o que se deve reconhecer como a destruição da sociedade. O

apelo dos profetas para o abandono da terra má, isto é, da sociedade tal

como ela era, para alcançar a Terra sem Mal a sociedade da felicidade

divina, implicava a condenação à morte da estrutura da sociedade e do

seu sistema de normas .53

Esse autor afirmou que o poder das palavras dos profetas – caraís – era de tal

magnitude que seus discursos conseguiam neutralizar toda a ação dos chefes, pois os

profetas “[...] eram capazes de se fazer seguir por massas surpreendente de índios

fanatizados, diríamos hoje, pela palavra desses homens, a ponto de acompanhá-los até na

morte”54, e por isso mesmo o autor via a possibilidade de estar escondido por traz deste

poder de palavra a gênese de uma “figura silenciosa do Déspota”.

A Terra sem Mal desses índios era o local para onde partiam, grandes ondas de

migrações indígenas em busca de um lugar em que a maldade não poderia ser encontrada -

53 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 150. 54 Ibid., p. 151.

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215

numa referência à Terra má ou Yvÿ mba´e megua. Esta Terra má era justamente aquela em

que eles viviam, onde reinavam as imperfeições e as desgraças humanas. Segundo Pierre

Clastres:

Yvÿ mba´e megua é o reino da morte. De toda coisa em movimento sobre

a trajetória de toda coisa mortal, dir-se-á [...] que ela é uma. O Um:

Ancoragem da morte. A morte: destino daquilo que é um. Por que são

mortais as coisas que compõem o mundo imperfeito? Porque são finitas,

porque são incompletas. Aquilo que é corruptível morre de inacabamento,

o Um qualifica o incompleto55.

O Um é interpretado por Pierre Clastres como sendo a imperfeição ou,

desequilíbrios provocado pela natureza na forma de maldade. Assim, o mal acaba se

constituindo numa totalidade explícita na face da terra, maldade esta que precisa ser

evitada a todo custo, o que vem a justificar então a tão desesperada procura da Terra sem

Mal, um lugar que não é precisamente este aqui, conhecido como Yvÿ mba´e megua ou

terra da maldade ou, reino da morte segundo o autor.

O Um como crise está inscrito nos objetos que lhes rodeiam por ser “Aquilo que

nasce, cresce, e se desenvolve somente para perecer [...]”56. Assim, a dinâmica do

nascimento à morte era uma maldade que os índios acreditavam poder ser evitada se

pudesse residir no Yvÿ mara eÿ ao invés de estar residindo no Yvÿ mba´e megua, terra da

incompletude, da finitude das coisas.

Se o Um contido em todos os fenômenos da natureza, inclusive o homem, pudesse

estar concentrado em um único aparelho orgânico, como regente das ações dos povos e não

dividido em micro-esferas de subordinação nas formas de pajé, cacique e caraí – já que

55 P. Clastres, A Sociedade contra o Estado, p. 121. 56 Ibid., p. 120.

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216

nenhum mantém a totalidade – aí teríamos então a gênese de um órgão concentrador do

monopólio das maldades, ou seja, o Estado.

Corroborando com esta idéia que o mal é inerente à incompletude da natureza,

Hélène Clastres reafirma a tese de Pierre Clastres ao dizer que a maldade está no trabalho,

nas regras sociais e nos mores vivendi e operandi da sociedade porque, atingindo a Terra

sem males cessa o mal “Quer dizer que o mal – trabalho, lei – é a sociedade”.57 Assim, a

maldade, a lei, a ordem, etc, necessitavam de uma contra-ordem para satisfazer plenamente

os desejos dos índios e por isso mesmo, não seria o Estado, com todo seu processo

ordenador o organismo, que traria a plena satisfação aos índios.

Na concepção do etnólogo alemão Kurt Nimuendaju58, a Terra sem Mal seria o

lugar onde os índios poderiam adquirir a eternidade já que nela não haveria a morte. Em

conseqüência, a procura desta terra teria toda uma motivação religiosa, idéia combatida por

vários cronistas que, como já foi visto, não admitiam a religiosidade no seio das tribos

brasileiras. Entretanto, em Vainfas encontramos uma outra hipótese que, se não explica

origem da procura da Terra sem Mal, ao menos lança mais luz sobre a manutenção e

reforço da procura desta terra em função do “impacto colonizador” sobre as culturas

indígenas. Assim se expressa Vainfas:

O ambiente de frenesi religioso que os europeus observaram entre os tupi

no éculo XVI – embora quase todos negassem haver religião entre os

índios - relaciona-se historicamente com a implantação do colonialismo,

seus flagelos, cativeiros, massacres59.

57 H. Clastres, Terra sem Mal, p. 67. 58 Esse alemão, estudioso das questões indígenas brasileiras, esteve no Brasil e viveu no litoral de São Paulo, entre os índios apopocuva-guarani, que haviam partido do Paraguai por volta de 1810 atingindo o litoral paulista guiados pólos seus “profetas”. 59 R.Vainfas, A heresia dos índios, p. 50.

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217

Em defesa do reforço da procura da Terra sem Mal, em função do avanço do

colonialismo, Vainfas confronta a tese de Hélène Clastres, para a qual o mito da busca da

terra estava totalmente desvinculado das guerras de resistência do colonialismo europeu60,

porque para essa autora:

Desde o começo da conquista [...], todo o contexto, todos os elementos do

profetismno já estão presentes: as personagens dos caraís, com sua

posição de exterioridade espacial e genealógica; o tema da Terra sem

Mal; o mito da destruição da primeira terra; e a crença num cataclisma

futuro. Quer dizer que não se trata, em absoluto, de um ‘messianismo`que

se teria produzido em reação à colonização61.

Não é nosso objetivo resolver esta polêmica, mas não há dúvidas de que o contato

entre duas culturas díspares em todos os sentidos: dos mores à filosofia, das técnicas às

tecnologias, do modus vivendi ao modus operandi só poderia existir de comum a

resistência por parte das sociedades – os índios, no caso em questão. Por isso Ronaldo

Vainfas afirma:

A descoberta da terra e povos americanos havia colocado o europeu

diante do grave dilema entre reconhecer o outro – inventariar as

diferenças que o separavam do homem cristão ocidental – e afirmar o

ego, isto é, hierarquizar as diferenças, rejeitando o desconhecido por meio

de animalização e da demonização62.

60 Sobre essa discussão, veja-se a obra supramencionada de R. Vainfas, pp. 67-8. 61 H. Clastres, Terra sem Mal, p. 51. 62 R. Vainfas, A heresia dos índios, p. 23.

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218

4. Profetismo

Os profetas indígenas, que aos olhos dos missionários eram a personificação

própria do demônio, não passavam de caraís, isto é, um membro da tribo que tinha como

deveres o encaminhamento da tribo à Terra sem Mal. Este profeta ou, caraí, exercia no

seio da tribo uma função de importância ritualística, que os missionários jesuítas

classificavam como totalmente diabólica, uma vez que os discursos caraís pregavam a

errância da tribo rumo à terra do espírito criador - ou espírito da natureza - que o criador

havia lhes reservado para a sua benesse. Desta forma, a atuação dos caraís era vista como

maléfica devido a sua competência no poder de seduzir os índios a favor de seus discursos,

dificultando, assim, a catequização, objeto de todo os trabalhos exaustivos dos

missionários.

Para Maffesoli a pessoa do profeta ou:

[...] qualquer que seja o nome que se lhe dê, exprime de maneira

paroxística a realização dessa ´distância unida`. Em constantes

peregrinações, sempre à margem, vivendo e suscitando a aventura, o

profeta está nas encruzilhadas. Seu discurso está sempre no limite, sua

atitude é um desafio ao instituído. Na comunidade é que ele se situa,

fazendo-a viver na inquietude63.

Uma descrição não muito diferente daquela feita por Maffesoli, encontramos em

Bourdieu, para o qual o profeta:

[...] é o homem das situações de crise quando a ordem estabelecida

ameaça romper-se quando o futuro inteiro parece aberto. O discurso

profético tem maiores chances de surgir nos períodos de crise aberta

63 M. Maffesoli, Sobre o nomadismo, p. 83.

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219

envolvendo sociedades inteiras; ou então, apenas algumas classes, vale

dizer, nos períodos em que as transformações econômicas ou

morfológicas determinam, nesta ou naquela parte da sociedade, a

dissolução, o enfraquecimento ou a absolescência das tradições ou dos

sistemas simbólicos que forneciam os princípios da visão do mundo e da

orientação da vida64.

O padre João Daniel argumentava que a catequização não poderia surtir efeitos

enquanto estivesse atendendo aos interesses meramente temporais que eram:

[...] tão fracos, e insuficientes, em todo o tempo podem variar e faltar;

além de que a conversão das almas não é obra doa homens, é só de Deus,

é só o bom fruto das missões, e pregações; os homens são só uns meros

instrumentos, pelos quais quer Deus fazer patentes as luzes evangélicas

[...]65.

O fenômeno da demonização dos índios tem suas raízes na própria essência do

processo colonizador. O encontro do europeu com o outro, foi mediatizado pelo

eurocentrismo que via nas diferenças culturais motivos mais que racionais para ver a

idolatria demoníaca em todos os rituais indígenas, que assim expressa:

[...] nos sacrifícios humanos, nas práticas antropofágicas, no culto de

estátuas, na divinização de rochas ou fenômenos naturais, no canto, na

dança, na música... Os missionários e eclesiásticos, em geral, em quase

tudo veriam a idolatria diabólica com que estavam habituados a conviver

no seu universo cultural66.

64 P. Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, pp. 73-4. 65 J. Daniel, Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, p. 379. Vol. 2. 66 R. Vainfas, A heresia dos índios, p. 26.

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Segundo Pierre Clastres, as numerosas queixas dos missionários em relação aos

índios eram justamente contra o poder de sedução dos caraís porque os missionários

achavam que continha neles “todo o poder do demônio”.

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CONCLUSÃO

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Se a incompletude é a condição da linguagem, os sujeitos e os sentidos são,

conseqüentemente, incompletos. Assim, mesmo esta tese tendo sido elaborada dentro do

maior rigor acadêmico possível, não teve a pretensão de esgotar as possibilidades

analíticas, deixando-as em aberto para posteriores análises aditivas ou subtrativas, pois não

tendo o controle do interdiscurso, outros sentidos ideológicos poderão ser construídos.

Todos os discursos são afetos de sentidos em seu relacionamento com os outros,

gerando assim um impasse discursivo. Eles não têm começo nem fim, pois todos os

enunciados analisados e imaginados são possíveis.

Na qualidade de sujeito do enunciado José Bonifácio relacionou-se com outros

discursos que, por sua vez, apontou para vários outros numa interminável cadeia

rizomática. É por essa razão que ele foi capaz de antecipar a seus interlocutores

produzindo os efeitos mais variáveis, quer como Ministro de Estado do Império, quer

como deputado Constituinte – os lugares em que ele diz.

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223

Os enunciados de José Bonifácio devem ser compreendidos no contexto de sua

produção, posto que visava aos interesses de um Estado monárquico constitucional,

pensamento esse que não comungava a pequena e influente oligarquia monárquica, e

menos ainda os latifundiários escravistas instalados na corte e nas principais províncias.

Contrariando os interesses desses grupos, José Bonifácio elaborou projetos que tinham

como alvo o fortalecimento e a construção do Brasil como nação, incluindo os segmentos

que, apesar de alijados dos processos sociais, sustentavam a infraestrutura nacional –

índios, negros, brancos e seus derivados genéticos. Os “Apontamentos...”, foram um dos

vários documentos em que ele deixou manifesta esta vontade.

No discurso de homem de Estado, José Bonifácio forneceu os meios que

possibilitassem o estriamento e o domínio do espaço confrontando a resistência da

máquina de guerra nômade indígena. Ele propôs o apresamento e amansamento gradual

dos índios, utilizando-se de práticas arbitrárias, mas legitimadas pelos habitus, coerção das

autoridades civis, militares e religiosas européias, o que caracterizaria o uso do poder e

violência simbólicos, do arbítrio cultural, da legitimidade e das ações e autoridades

pedagógicas.

A dinâmica da desterritorialização dos corpus autóctones propostas em seu discurso

levaria certamente ao êxodo, à perda da identidade, à vagabundagem e à violência

dromocrática como forma de domesticação para a produção, em função dos interesses do

Estado mercantil absolutista.

A hipotética aprovação de seu projeto “Apontamentos para a civilização os índios

bravos do império do Brasil”, legitimaria a violência que já vinha sendo imposta pelo

aparelho de Estado lusitano no estriamento e reterritorialização do espaço nômade através

das ações e autoridades pedagógicas da Congregação São Felipe Néri, o que viria a

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224

configurar na endocolonização em substituição a exocolonização praticada pela ex-

metrópole.

Além do poder simbólico, da violência simbólica e do arbítrio cultural implícitos

em seu projeto, toda ciência do aparelho de Estado europeu estaria sendo imposta às

comunidades indígenas, através da educação, da saúde, da produção, do transporte, da

defesa, do comércio e das finanças, que poderia se constituir na desconstrução das culturas

seculares, que vinham sendo elaboradas e reelaboradas conforme as exigências das

dinâmicas sedentárias.

Mesmo não sendo aprovado, os “Apontamentos” de José Bonifácio foi o primeiro

documento brasileiro a permitir que os nossos índios pudessem contribuir para a

constituição da nação. Além disso, seu projeto antecipou a outros órgãos que, implantados

posteriormente objetivando a proteção dos índios acabaram corroborando com os projetos

de estriamento do espaço indígena, de desterritorialização, de domesticação, de destruição

de identidades, enfim, e de todo um processo etnocêntrico, aculturante e nefasto.

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ANEXO I

Page 253: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

MUSEU PAULISTA

Arquivo José Bonifácio

Dir.: Prof. Raquel Gleser FICHAS CATALOGRÁFICAS 01 - CARTAS De D. Pedro I a José Bonifácio: Secretário de Estado na Repartição do Reino e Estrangeiros no Rio de Janeiro. I. 1-2 [2] - Parahiba, 26/3/1822. Sobre uma Bernarda* e sua repercussão em São João D'El Rey. * - de 23 de maio de 1822, pronunciamento feito em São Paulo contra Martin Francisco. I. 1-2 [4] - São João D'El rey, 3/04/1822. Antecedentes da Independência; sua posição perante as decisões da Corte Portuguesa. I.1-2[5]. - São João D'El Rey, 5/4/1822. Intimidação da Junta Provisória Mineira e expedição de portarias. I. 1-3[7]. - Vila Rica, 16/4/1822 Notícias políticas I.1-2[10]. - ? Revista nos Batalhões e vigilância nos Clubs e botequins. I.1-6[25]. - São João D'El Rey, 3/4/1822 Antecedentes da Independência. Da Princesa Leopoldina a José Bonifácio. I.1.2[28]. - Sobre a nomeação do Governador de Santa Catarina em 1822. I..1-2[30/38 ? ]. Pró Independência e pede providências contra um Club secreto e inimigo da causa brasileira em 1822. I. 1-2[31]. - ? Sobre o atrevimento dos inimigos da causa brasileira. I. 1-2[33]. - Questão do Convento Santo Antônio onde havia brigas entre "bicudos" e brasileiros em 1822.

Page 254: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

I.1-2[34]. - ? Presença de espião de Lisboa: Augusto Brand, em 1822. I.1-2[36]. - ? Sobre a viagem de D. Pedro I a São Paulo em 1822. NOTA Da Princeza Leopoldian a José Bonifácio em 01/9/1822. Apresentando Paulo Bregaro. CARTA De José Bonifácio a D. Pedro I I.1-13[45]. Notícias da Bahia e sobre a resistência a entrega de livros da Biblioteca Real e do Museu Real a agentes portugueses em 28/3/1822. 1-2[46]. - 31/3/1822. Comentários sobre o ofício do Governador de Minas Gerais, situação política em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. I. 1-2[47]. - 10/4/1822 Sobre o movimento da sublevação no Rio de Janeiro: os primeiros rumores. I.1-2[48]. - 12/4/1822 Sobre uma conspiração articulada no Rio de Janeiro, pelo Mal. Joaquim de Oliveira Alvares. I.1-2[49]. - 14/4/1822 Sobre a projetada sublevação no Rio de Janeiro: depoimentos, mexericos e boatos. I.1-2[50] - 17/4/1822. Sobre a situação no Rio de Janeiro, desassossego e agitações na Imprensa. Notícias da Bahia e das Cortes. I.1-2[51]. - 20/4/1822 Pedindo rápido regresso ao Rio e fala sobre a tensão dos ânimos. I.12-2[52]. - 14/4/1822 Sobre diversos negócios administrativos e referências à viagem a São Paulo. I.1.2[54]. - "em fins de agosto". [... referente a seus adversários políticos paulistas, principalmente aos Chefes do movimento "bernardista". I.1-2[55]. - 1/9/1922 Estado geral dos negócios do país e progresso do movimento para a Independência. Notícias das Províncias Contém trecho decisivo para a Proclamação da Independência.

Page 255: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

CARTA Provavelmente da D. Pedro I em 21/8/1822. I.1-3[56] - 21/8/1822 ... "que hu Europeo arrependido escreveu a hum meu amigo". I.1-7[57]. - s.d. { 3fls. 15,8 x 21,3 } Roteiro dos caminhos de que os moradores de São Paulo servem para os rios de Cuyaba e Província de Cochiponé. s.d. Roteiro precedido de notas sobre construção de embarcações, geografia e minas etc. I.1-7[60]. - ? Referência de José Bonifácio a W.C. von Schwege. I.1-11[64]. - ? Referência de José Bonifácio a Hans Staden . I.1-9[67]. - ? { 2fls. 19 x 23,7 } Referência de José Bonifácio a Hans Staden Resumo incompleto das viagens de H. Staden. I.1-1 [70]. - ? Extrato da obra intitulada "Corografia brasílica", pelo padre Manuel Ayres de Cazal, copiada e comentada por José Bonifácio.

CARTA de Guilherme Guindet a José Bonifácio, Inspetor Geral das Minas do Reis de Portugal. I.1-12[74] - Em 6/5/1820. Sobre as minas de São João de Ipanema. 4 Fls escritas em francês, 21 x 30,3. CARTA a Rainha D. Maria I I.1-2[76]. - ? Proposta ao plano apresentado por Francisco Barbosa de Miranda Saldanha sobre o método utilizado na cobrança do quinto de S.M. na capitania de Minas Gerais . { Segunda metade do século XVIII}. I.1-9[77]. - Salzbourg, 11/9/1794. Carta de recomendação aos Senhores Camara e de Andrada. { Fls 18,9 x 23}. I. 1-5[79]. - em 1797. Discurso político sobre as Minas de Ouro do Brasil por J.S.Feijó. { Fls. 17,5 x 21,5} I.1-3[81/82]. - ? Notas sobre as minas do Brasil extraídas da Cultura e Opulencia do Brasil, impresso em Lisboa em 1711 - obra de Antonil [ Pe. João Antonio Andreoni] . Letra de José Bonifácio.

Page 256: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

I.1-7[83/4]. - ? Nota sobre os "lugares que devem ser examinados pelos minerais que contém no Brasil". Letra de José Bonifácio. I.1-12[85]. - Parnaiba, março de 1820. Roteiro para descobrir o morro do Tayó. I.1-12[86]. - Santos, 27/11/1820. Roteiro e instruções para os descobrimentos das minas de Au, Ag e pedras preciosas das terras dos Agudos, Pucarama, Ytayó e outras. I.1-7[89]. - ? Apontamentos extraídos das obras "Des colonies et la revolution culturelle de l'Amerique, par De Pradt ( 2.Vol. Paris, 1817). ; Des trois derniers mois de l'Amerique Méridionale et du Brésil. Apontamentos com letra de José Bonifácio. I.1-7[91]. - ? Resumo feito por José Bonifácio de diversas partes da obra de Pero Magalhães Gandavo: História da Província da Santa Cruz. Letra de José Bonifácio. I.1-4[92]. - ? Sobre Marques de Pombal. I.1-6[93]. - ? Sobre A.R .Ferreira. I.1-11[96]. - ? "Contas com a Sociedade de Instrução Elementar", de 1831 a 1833. I.1-1[97]. - ? Cálculo de despesas. I.1-1[98]. - ? Horário escolar, distribuição e educação das atividades escolares. I.1-13[99]. - ? Comentário da inscrição gravada na Serra de Itaguatiá (MG), mandada copiar em 1730. I.1-6[105]. - ? "Liste des principaux écrivains physiocrates allemands". 5 Fls. I.1-11[113]. - ? Realizações dos portugueses nas letras, ciências e artes. Correção de punho de José Bonifácio.

Page 257: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

I.1-7[116]. - ? Memórias históricas , políticas e críticas para se fazer presentes nas nossas negociações com Inglaterra. I.1-13[130]. - ? Mapa estatístico da Província de São Paulo nos anos de 1805, 1810, 1819 e 1820. 1 Fl, de 31.5 x 43,5. I.1-13[131]. - ? Mapa dos habitantes da Capitania de Minas Gerais e dos nascidos e falecidos em o ano de 1775. Em baixo está anotado os rendimentos e as despesas da referida Capitania no ano de 1778. I. 1-13[133]. - São Paulo, 14/12/1821. Cópia de um ofício do Governador provisório de São Paulo ao de Minas Gerais, assinado por José Bonifácio como 1º Vice-Presidente. Propunha aliança para fazer frente às exigências das Cortes Portuguesas. 1 Fl. 23,2 x 33,2. I.1-9[137] - ? Cópia da pedra e inscrição romana que se achou junto ao edifício subterranio da rua Bella da Rainha, nas casas que edificou Manuel José Ribeiro na cidade de Lisboa. Anotações de José Bonifácio. I.1-10[138]. - Paris, 1816. Extrato da obra de M. Raynouard: Elements de la Grammaire de la langue Romane avant l'na 100 - 8º . Emendas de José Bonifácio 2 Fls de 15 x 21,2 I.1-11[140]. - ? Princípios gerais de Gramática: palavras gregas. Punho de José Bonifácio 8 Fls de 15,4 x 21,4 I. 1-4[147]. - ? Anotações sobre higiene 2 Fls. 10,4 x 15,3. I.1-11[149] - ? Extratos de Humboldt 16 Fls de 16,5 x 20,5 Letra de José Bonifácio. I.1-5 [150] - ? Ante-projeto de alvará, dispondo sobre a restauração da agricultura em Portugal. 17Fls, 17,5 x 22,.2

Page 258: PODER E VIOLÊNCIA DO DISCURSO - PUC-SP

I. 1-12[155] - ? "Notícias de algumas fontes memoráveis em Portugal". Fontes de água mineral. 1 Fl. de 20,8 x 29,9. I.1-9[159]]. - Freybourg, em 5/7/1794. Dois recibos em alemão, referente a Camara e d'Andrada. 2 Fls 20,5 x 33,1`. I. 1-5[160]. - Em 28/12/1802 ou 8 Nivose na 11 de la Republique. Discussão sobre a primazia de Colombo na descoberta da América, a propósito do Mapa de André Bianchi. 3Fls, 17 x 22. Doc. Em francês. I.1-2[161B]. - ? Descoberta de antigos monumentos romanos I.1-7[165].- - Lisboa, 15/6/1821. Fragmento de Projeto de Constituição. I.1-13[167]. - Em 18/8/1809. Cópia das Ordens do Dia do QG Porto. José Bonifácio demite-se do cargo de Ten.Cel. Do Corpo Acadêmico. I.1-9[168]. - ? Carta onde o autor pretendia estabelecer na Capitania de São Paulo a Capital do novo "Império Português". 5 Fls, 15,4 x 21,4. I.1- [169]. Em 16/6/1797. Salvo Conduto de José Bonifácio. I.1-13[174] - São Paulo, 24/12/1821. Formar alianças contra as Cortes e o governo de Lisboa. Assinado: Vice-Presidente da Província de São Paulo ao Governador Provincial da Província de Minas Gerais. I. 1-3[175]. - Rio de Janeiro, 24/10/1822. Ofício de José Bonifácio ao Governador Interino da província de São Paulo Declarando pessoas inocentes da Bernarda de Francisco Inácio.

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2º BLOCO I - 1-9 (192) - 02 OUT ? - Diário de observações e notas sobre as minhas leituras , conversações e passeio. José Bonifácio - 3Fls. 18,7 x 23 I - 1-9(193) - ? Cópia de um artigo de Jornal Alemão - o verídico - "D. Rodrigo de Souza" Assunto: Consideração sobre o Conde de Linhares. Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 15,3 x 21,5 I - 1-9( 195) - s.d. Sobre censura da obra Corografia Brasílica. Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 15,3 x 21,5 I - 1-1(197) - s.d Índios: consideração de como devem ser tratados pelo Estado. 1Fl., 11 x 15,7 I - 1-1(198) - ? Uma folha com a indicação "Bosqueja Estatístico" do Grão-Pará. 1783-1816 Letra de José Bonifácio - 1Fl. 16 x 21,2 I - 1-2(199)- s.d "Rol das pipas novas que se fizeram apara a mina do carvão". 1Fl. 21 x 30. I - 1-11(200) - ? "Cântico dos cântares que se atribui ao mesmo Salomoh". Letra de José Bonifácio - Tradução portuguesa incompleta - 2Fls. 16 x 20,2 I - 1-2(201)- ? Letra de José Bonifácio, que em continuação escreveu algumas notas sobre mineralogia, paleontologia, etc. I- 1-4(202) s.d Extratos e apontamentos, entre elles de Lala Roukn de Thomas More e pensamentos a respeito da dificuldade de o Brasil tornar-se Independente. Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 12 x 18,2. I - 1-1(203)- ? Notas e autógrafos de José Bonifácio sobre o tetracórdio dos gregos.

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I-1-1(204)- ? Extrato sobre: economia, política e história antiga. Letra de José Bonifácio - 2Fls. 15,7 x 21. I - 1-1(206)- ? No verso da 2ª Folha há uma relação de roupas , em francês (Documento em mau estado). Letra de José Bonifácio. I- 1-1(208)- ? Senancour. Rêveries sur le nature primitive de l'homme. Letra de José Bonifácio - Trecho traduzido para o português por JB - 1Fl. 14 x 20,6. I - 1-1(209) ? Notas sobre a influência das línguas bárbaras sobre o Latim no aparecimento dos dialetos entre os povos da Gália, Itália e Espanha. O interesse do estudo em uma língua em épocas diferentes. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 12,5 x 20,3 I - 1-4(210)- s.d. Notas sobre o problema da tradução . Letra de José Bonifácio - 2Fls. 15,2 x 21,3 I - 1-4(212)- s.d Pensamentos extraídos de Raton. 2Fls. 11 x 08. I - 1-2(213)- s.d Relação de livros e anotações de alguns assuntos neles tratados. Assunto: Arquitetura, Medicina e Tecnologia. Letra de José Bonifácio - 2Fls. 15,5 x 21,4 I - 1-4(215)- s.d Anotações sobre algumas publicações. Letra de José Bonifácio - 1Fl. 10,5 x 17. I - 1-2(217)- ? História do Brasil (?), de Beauchamp. I - 1-1(218)- s.d "Apontamentos pro domunez. 1 Fl. 12,5 x 30. I - 1-1(219) - s.d Pro-Domo. Considerações sobre o Brasil. Letra de José Bonifácio - 3 Fls.12,5 x 19,8.

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I - 1-4(220) - Letra de Gênoves que //////////// servir ao comercio. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 10,8 x 16,2. I - 1-10(223)- ? Trecho sobre a pecuária no Brasil extraído de trabalhos em francês e de outros anônimos. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 16,5 x 21,5. I - 1-10(228) - ? Os tolos, o amor e gosto apurado; nação ignorante. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 11 x 75. I - 1-10(229)- ? Apontamentos vários. Mentira, Bacon, conversa variada, prudência do governo. Letra de José Bonifácio - 2Fls. I - 1-10(230) - ? Notas políticas. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 13 X20,5. I - 1-1-(231)- ? Política. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 15,3 x 21,4. I - 1-10(232) - ? Política Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 15,3 x 21. I - 1-10(233) - Notas Política ( fechamento da Assembléia, demissão de José Bonifácio...). 2 Fls. 12,5 x 20,1. I - 1-10(234) - ? Política Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 12 x 18. I - 1-10(235) - ? Política, consideração sobre o partido dos Corcundas. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 15,1 x 21. I - 1-10(236) - s.d Política Letra de José Bonifácio - 1Fl. 15 x 20,2

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I - 1-10(238)- ? Despotismo, plantações, sociedade etc... Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 11,4 x 18,4. I 1 -8(239) - s.d Notas sobre política. Dissolução da Assembléia e deportação dos Andradas. Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 16,3 x 20. I - 1-8(240) - s.d Notas e Lembranças. Letra de José Bonifácio - 1Fl. 15,5 x 21,2. I -1-8(241) - s.d "Notas pro Domo". Observações com respeito à política. Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 15,7 x 21. I -1-8(242) - s.d "Extractos". Considerações sobre o Brasil, as mulheres e os índios. 2 Fls. 15,6 x 20,9. I - 1-8(243) - ? "Pensamentos". Fortuna, Orgulho, Esperança. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 11,5 x 18,7. I - 1-8(246)- s.d Considerações de José Bonifácio sobre política brasileira e críticas ao "Imperador". Letra de José Bonifácio - 2Fls. 12,8 x 20,4. I - 1-8(247)- Considerações sobre a necessidade de envio de expedições ao interior do Brasil, composta por batávos e mineralogistas vindos do estrangeiro. Letra de José Bonifácio. 1 Fl.12,1 x 18,3. I -1-8(258)- ? Louça, método de ensaiar minas de cobre. Letra de José Bonifácio. 1 Fl. 10,5 x 15. I - 1-8(254)- ? Notas diversas ; Papel selado - época de D. João VI. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 14,8 x 21. I - 1-8(255) - s.d Relação de Livros. 1 Fl. 9 x 10,5.

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I - 1-8(259)- ? Notas sobre a agricultura (fragmento) - Documento em mau estado. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 15,5 x 21,5 I - 1-8(260)- s.d Apontamentos sobre a história de Portugal. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 15,3 x 21,3. I - 1-8(261)- s.d Relação de itens necessários a um Relatório referente às despesas de uma certa mina. Letra de José Bonifácio - 1 Fl. 15 x 21,5. I - 1-8(262) - s.d Notas diversas de José Bonifácio . Documento semi destruído . 1 Fl. 13 x 19. I - 1-8(263) - ? Notas. Patriotismo, honra, riqueza, preguiça, impaciência. Letra de José Bonifácio - 1 Fl 15,3 x 19,8 (Documento semi destruído). I - 1-8(264) - s.d O que deve ser uma boa tradução. Letra de José Bonifácio - 1 Fl 11 x 9,5 - Documento em mau estado. I - 2-1(268)- s.d Notas sobre economia, finanças de Portugal e Brasil. Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 15,5 x 21,5. I -1-2(269)- s.d Catálogo de mineralogia em português e alemão. 2 Fls. 20 x 30 I - 2-1(271) - ? Notas sobre a povoação da Capitania de São Paulo em 1813, e observações críticas ao 2º Vol. da obra de Varnhagem. Letra de José Bonifácio - 15,5 x 21,5. I - 2-1(272) - ? Apontamentos, autógrafos de José Bonifácio sobra a Corografia, história, etnografia etc., do Brasil. Letra de José Bonifácio - 8 Fls. 16 X 20.

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I - 2-2(275)- Recife, 24/06/1799. Carta de Manuel de Arruda da Câmara a Frei José da Conceição Veloso. Assunto: Referente às memórias enviadas a D. Rodrigo de Souza Coutinho, e dá outras observações e descobertas sobre o Algodão, Anil e outros serviços e intrigas. 5 Fls. 22,5 x 35,5. I - 2-1(277)- ? Ensaio econômico da quina do Piauí oferecida ao Governador e Capitão-General do Maranhão, por Vicente Jorge Dias Cabral, Bel. em Filosofia e Direito Civil. 22 Fls. 15,3 x 21,3. I-2-1(278) - Rio de Janeiro, 05/06/1794. Carta de João Manso Pereira à Rainha D. Maria I. Assunto: Envio de alcali; de bananeira e do respectivo sabão. Uma correção de José Bonifácio - 5 Fls. 15 x 20. I -2-2(279)- s.d (18...). "Mapa anual do Engenho de marapicu", não preenchido , destinado à estatística dos escravos. 1 Fl. 21,2 x 33,5. I - 2-11(280) - s.d Fragmentos de algumas notas sobre a agricultura e produtos do Brasil. Em parte, Letra de José Bonifácio - 2 Fls. 15,5 x 12. I - 2-2(283) - ? Marinha Grande. Resposta da Freguesia da Marinha ao Inquérito sobre a condição da agricultura no reino, 1787. Informes remetidos ao Intendente Geral da Polícia Diogo Inácio de Pina Manique. 10 Fls. 16,8 x 29,5 e 12 Fls. 14,8 x 21,2. I - 2-1(290 a 292) - ? Memórias sobre mineralogia. I - 2-1(297) - s.d Rascunho de um relatório sobre a mina de carvão. 4 Fls. 15,2 x 21,4. I - 2-2(294) - Maio de 1803. Carta-Relatório sobra a Real Mina de Carvão de Buarcos. 6 Fls. 21,9 x 32,2.

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I - 2-2(299) - São Paulo de Assunção de Loanda, 19 de Setembro, 1799. Carta de D. Miguel Antônio de Mello a D. Rodrigo de Souza Coutinho. Assunto: Dando conta de observações e indagações históricas sobre as minas de Prata e outras do Reino de Angola. 12 Fls. 22 x 35. I-1-4(300)- ? Papéis relativos às minas de Kongsberg (Noruega) : 1774-1798. Em Norueguês e Alemão, com correções de José Bonifácio. 9 Fls. Avulsas. I -2-1(302) - Santos, 10 de maio de 1867. Carta do alemão Guilherme Delios a José Bonifácio, o moço (?). Assunto: Pedido de proteção para um projeto de imigração alemã. 2 Fls. 13,3 x 20,5. I- 2-2(305) - ? Notícias , em duas partes, feita à "Aurora Fluminense", sobre a abertura do curso de Medicina Legal na Academia Médico Cirúrgica, pelo Dr. J. F. Tavares, e sobre o discurso que este fez a título de primeira lição. 4 Fls. 20,5 x 25. I - 2-2(306) - s.d Carta de José Bonifácio, o moço, à sua mãe D. Gabriela Frederica Ribeiro de Andrada. 1 Fl. 13,3 x 20,5. 1184 - Rio de Janeiro, 1º de abril de 1823. Instrução do Imperador D. Pedro I, através da Secretaria de Estado do negócio do Império ao Governador Provisório da Província de São Paulo. Assunto: Diplomação de Deputados Suplentes para a Assembléia Geral do Império. 2 Fls. 20,3 x 20. 1216 - Lisboa, 26 de abril de 1818. Cópia da carta de José Bonifácio a D. José Maria de Souza. Assunto: Crítica 1a edição da obra de Camões: Os Lusíadas. 1217 - ? Notas e apontamentos sobre a agricultura e economia rústica do Reino. (1814 ?). Assunto: Causa da decadência da agricultura em Portugal, remédios, fomento e reforma agrária, saúde pública, vadiagem e mendicância, impostos, reflorestamentos, transportes, estradas, companhias de capitalistas nacionais e estrangeiros. 30 Fls. 15,4 x 21,4 Correção emendas de José Bonifácio.

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1496 - s.d Fragmento Reflexões sobre política. 1Fl. 10,8 x 15,5. 1497 - s.d Fragmento Assunto: Mineralogia (Europa). 1 Fl. 15 x 21,1 1498 - s.d Fragmento Assunto: Curtimento de couros no Brasil. 1 Fl. 13,7 x 20,2 1499 - s.d Fragmento. Assunto: Agricultura: "Livro de Sementeiras para as terras de S.A .R". 1 Fl. 15,2 x 17,3. 1500 - s.d Fragmento. Assunto: Reflexão de José Bonifácio a respeito de seu próprio caráter. 1 Fl. 10,2 x 17,3. 1502 - s.d Fragmento Assunto: Mineração no Rio de Samambaia e em Araçariguama. 1 Fl. 12,8 x 10,4. 1503 - s.d Relação de Livros Mineralogia e Geologia 1 Fl. 15,1 x 20,5. 1504 - s.d Relação de Livros Assunto: Portugal e Colônias. 2 fls. 11.6 x 18,8. 1506 - s.d Pensamentos. Assunto: O medo, a imaginação dos brasileiros, a natureza do Brasil. 1 Fl. 10,8 x 15,4.

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1507 - s.d Pensamentos Assunto: As mulheres, as vaidades, o medo da morte. 1508 - s.d Notas Políticas Assunto: Críticas de José Bonifácio à política do Imperador Pedro I e o episódio da sua prisão e deportação. 1509 - s.d Carta de José Bonifácio a um amigo anônimo. Assunto: Crítica à dissolução da Assembléia Constituinte e queixas do exílio. 1 Fl. 12 x 19 1510 - s.d Notas Políticas Assunto: Reflexão sobre a dissolução da Assembléia e a situação financeira dos ministros demitidos sem pensão. 1 Fl. 12,6 x 15,8. 1511 - s.d. Notas políticas e pensamentos. Assunto: opção do Brasil entre Democracia e Despotismo e críticas à intervenção militar contra a Assembléia Nacional Constituinte. 1 Fl. 12,4 x 18,5. 1512 - ? Notas Políticas e Pensamentos. Assunto: Críticas ao Imperador Pedro I acusando-o de despotismo e reflexões sobre o governo dos homens. 2 Fls. 12,1 x 19,1. Autógrafo de José Bonifácio. 1513 - s.d Pensamentos e Notas Políticas. Assunto: As mulheres, o reumatismo e queixas do Imperador Pedro I. ! Fl. 14 x 15,4 Autógrafo de José Bonifácio. 1514 - s.d Notas políticas. Assunto: Crítica à dissolução da Constituinte por Pedro I, à sua formação e ao seu caráter. 1 Fl. 13,3 x 20,4. Autógrafo de José Bonifácio.

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1515 - s.d Pensamentos e Notas Políticas. Assunto: críticas ao Imperador Pedro I, reflexões sobre o bom viver e queixas da atitude do Imperador quanto à prisão e desterro de José Bonifácio. 2 Fls. 12 x 18 Autógrafo de José Bonifácio. 1517 - ? Pensamentos e Notas Políticas. Assunto: Temor pelo destino do Império brasileiro, críticas ao Imperador Pedro I contra sua política e queixas pessoais. 2 Fls. 20,2 x 25. Autógrafo de José Bonifácio. 1518 - s.d Pensamentos e notas políticas. Assunto: Temor pelo destino do Império brasileiro entre o despotismo e a república, segundo José Bonifácio, Crítica aos empréstimos externos. 1 Fl. 12,2 x 18,4. Autógrafo de José Bonifácio. 1520 - ? Pensamentos Assunto: As fraquezas humanas, as intrigas políticas etc. 1 Fl. 17,9 x 17. Autógrafo de José Bonifácio. 1521 - s.d Notas políticas. Assunto: Transcrição de críticas feitas a José Bonifácio por jornais da época contra a tutela do Príncipe D. Pedro II. 1 Fl. 21,5 x 31. Autógrafo de José Bonifácio. 1522 - s.d Notas Assunto: Nova Ordenação sobre a Imprensa na Dinamarca e a Feira de Livros de São Miguel em 1799. 1524 - s.d Nota sobre Livros. Assunto: Relação de obras em francês de cunho histórico, lidas ou por ler. 1 Fl. 10,2 x 15. Autógrafo de José Bonifácio.

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1525 - s.d Notas. Assunto: Descobrimentos no século XVI. 1 Fl. 11,6 x 21,1 . Autógrafo de José Bonifácio. 1527 - s.d Notas. Assunto: Lei de D. Afonso III. 1 Fl. 10,5 x 15,5 . Autógrafo de José Bonifácio. 1530 - s.d Notas. Assunto: Comparação de vocábulo entre vários povos. 2 Fls. 15,5 x 21,5 Autógrafo de José Bonifácio. 1533 - s.d Notas. Assunto: Topografia da Capitania de São Vicente. 1 Fl. 15,1 x 20,7. Autógrafo de José Bonifácio. 1534 - s.d Notas Assunto: População da Província de São Paulo no ano de 1820. 1 Fl. 21,4 x 29,3. Autógrafo de José Bonifácio. 1606 - s.d Pensamentos. Assunto: Reflexões sobre a embriagues, o trabalho, o luxo, a desnecessidade do comércio externo para o Brasil etc. 2 fls. 15,5 x 21,3 Autógrafo de José Bonifácio. 1644 - s.d Impresso. Assunto: Assinatura de José Bonifácio em letra de imprensa. 1 Fl. 29,5 x 12. 1645 - s.d Croquis de José Bonifácio

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1648 - Rio de Janeiro, 08/12/1827. Jornal "L'Echo de L'Amerique du Sud". 1650 - 08 de agosto de 1834. Representação enviada ao Imperador pelo Cons. Dr. Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto. Assunto: Escola de Medicina pela equiparação dos cirurgiões. 2 Fls. 29,3 x 20. 1652 - s.d Fragmentos de uma obra. Assunto: Ensaio sobre a história e processos de metalurgia. 4Fls. 22 x 16. 11574 - São Paulo, 08/12/1696. Roteiro do Ouro e Pedras Preciosas. Assunto: Roteiro de haveres de ouro e pedras preciosas dos campos de preatura. a)- Antônio Mendes Marzagão. 1 Fl. 17 x 21. 4384 - ? Cartão de Visita do Cons. José Bonifácio de Andrada e Silva e de D. Raphaela de Souza Andrada. Impresso de 9,3 x 5,6. 4743 - Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1833. Decreto suspendendo José Bonifácio de Andrada e Silva das funções de tutor de D. Pedro II e suas Irmãs. 1 Fl. 22 x 33. 11576 - Rio de Janeiro,. 20/01/1823. Ofício de José Bonifácio de Andrada e Silva, Secretário de Estado dos Negócios do Império , ao governo Provisório da Província de São Paulo. Assunto: concedendo abertura de uma subscrição para erigir um monumento à Independência no Ipiranga. 1 Fl. 21,2 x 25,3 Autógrafo de José Bonifácio.

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ANEXO II

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DIRECTORIO, QUE SE DEVE OBSERVAR NAS Povoacoens dos Indios do Pará, e Maranhaõ em

quanto Sua Mageftade naõ mandar o contrario. 1 SENDO Sua Mageftade fervido pelo Alvará com força de Ley de 7 de Junho de 1755. abolir a adminiftraçaõ Temporal, que os Regulares exercitavaõ nos Indios dos Aldeas defle Eftado; mandando-as governar pelos feus refpectivos Principáes, como eftes pela laftimofa rufticidade, e ignorância, com que até agora foraõ educados, naõ tenhaõ a neceffaria aptidão , que fé requer para o Governo, fm que haja quem os poffa dirigir, propondo-lhes naõ fó os meios da civilidade, mas da conveniência, e perfuadindo-lhes os próprios dictames da racionalidade, de que vivião privados, para que o referido Alvará tenha a fua devida execução, e fe verifiquem as Reáes, e piiffimas intençoens do dito Senhor, haverá em cada huma das fobreditas Povoaçoens, em quanto os Indios não tiverem capacidade para fe governarem, hum Director, que nomeará o Governador, e Capitaõ General do Eftado, o qual deve fer dotado de bons coftumes, zelo, prudencia, verdade, fciencia da lingua , e de todos os mais requifitos neceffarios para poder dirigir com acerto os referidos Índios debaixo das Ordens, e determinações feguintes, que inviolavelmente fé obfervarão em quanto Sua Mageftade o houver affim por bem, e nao mandar o contrario. 2 Havendo o dito Senhor declarado no mencionado Alvará, que os Indios exiftentes nas Aldeas, que paffarem a fer Villas, fejaõ governados no Temporal pelos Juizes Ordinários, Vereadores, e mais Officiáres de Juftiça; e das Aldeas independentes das ditas Villas pelos feus refpectivos Principaes: Como fó ao Alto, e Soberano arbítrio do dito Senhor compete o dar jurisdicçaõ ampliando-a, ou limitando-a como lhe parecer jufto, naõ poderaõ os fobreditos Directores em cafo algum exercitar jurisdicçaõ coactiva nos Indios, mas unicamente a que pertence ao feu minifterio, que he a directiva; advertindo aos Juizes Ordinários, e aos Principáes, no cafo de haver nelles alguma negligencia, ou defcuido, a

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indifpenfavel obrigaçaõ, que tem por conta dos feus empregos, de castigar os delictos pûblicos com a feveridade, que pedir a deformidade do infulto, e a circumftancia do efcandalo; perfuadindo-lhes, que na igualdade do premio, e do caftigo, confifte o equilíbrio da Juftiça, e bom governo das Republicas. Vendo porém os Directores, que faõ infructuofas as fuas advertencias, e que naõ bafta a efficacia da fua direcçaõ para que os ditos Juizes Ordinários, e Principáes, caftiguem exemplarmente os culpados; para que naõ aconteça, como regularmente fuccede, que a diffimulaçaõ dos delictos pequenos feja a caula de fe cõmetterem culpas mayores, o participaráõ logo ao Governador do Eftado, e Miniftros de Justiça, que procederão nefta matéria na fórma das Reáes Leys de S. Mageftade, nas quaes recomenda o mefmo Senhor, que nos caftigos das referidas culpas fe pratique toda aquella fuavidade, e brandura, que as mefmas Leys permittirem, para que o horror do caftigo os naõ obrigue a defamparar as fuas Povoaçoens, tornando para os efcandalofos erros da Gentilidade. 3 Naõ fe podendo negar, que os Indios defte Eftado fe conferváraõ até na mefma barbaridade, como fe viveffem nos incultos Sertoens, em que nafcêraõ, praticando os peffimos, e abomináveis costumes do Paganifmo, naõ fó privados do verdadeiro conhecimento dos adoráveis myfterios da noffa Sagrada Religiaõ, mas até das mefmas conveniências Temporáes, que fó fe podem confeguir pelos meios da civilidade, da Cultura, e do Commercio: E fendo evidente, que as paternáes providencias do Noffo Augufto Soberano, fe dirigem unicamente a chriftianizar, e civilizar eftes até agora infelices, e miferaveis Povos, para que fahindo da ignorância, e rufticidade, a que fe achaõ reduzidos, poffaõ fer uteis a fi, aos moradores, e ao Eftado: Eftes dous virtuofos, e importantes fins, que fempre foi a heroica empreza do incomparavel zelo nos noffos Catholicos, e Fideliffimos Monarcas, feraõ o principal objecto da reflexão, e cuidado dos Directores.

4 Para fe confeguir pois o primeiro fim, qual he o chriftianizar os Indios, deixando efta materia, por fer meramente efpiritual, á exemplar vigilancia do Prelado defta Diecefe; recomendo unicamente aos Directores, que da fua parte dem todo o favor, e auxilio, para que as determinaçoens do dito Prelado refpectivos á direcção das Almas, tenhão a fua devida execuçaõ; e que os Indios tratem aos feus Parocos com aquella veneraçaõ, e refpeito, que fe deve ao feu alto caracter, fendo os mefmos Directores os primeiros, que com as exemplares acçoens da fuá vida lhes perfuadão a obfervancia defte Paragrafo.

5 Em quanto porém á civilidade dos Indios, a que fé reduz a principal

obrigação dos Dirictores, por fer propria do feu minifterio; empregaráõ eftes hum efpecialiffimo cuidado em lhes perfuadir todos aquelles meios, que poffaõ fer conducentes a tão útil, e interffante fim, quáes faõ os que vou a referir.

6 Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Naçoens, que conquiftaraõ novos Dominios, introduzir logo nos Póvos conquiftados o feu próprio idioma, por fer indifputavel, que efte he hum dos meios mais efficazes para defterrar dos Póvos ruftivos a barbaridadde dos feus antigos coftumes; a ter moftrado a experiencia, que ao mefmo paffo, que fe introduz nelles o ufo da Lingua do Principe, que os conquiftou, fe lhes radîca também o affecto, a veneraçaõ, e a obediencia ao mefmo Principe. Obfervando pois todas as Naçoens polîdas do Mundo efte prudente, e fólido fyftema, nefta Conquifta fe

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praticou tanto pelo contrário, que fó cuidarõ os primeiros Conquiftadores eftabelecer nella o ufo da Lingua, que chamaráõ geral; invençaõ verdadeiramente abominavel, e diabólica, para que privados os Indios de todos aquelles meios, que os podiaõ civilizar, permaneceffem na ruftica, e barbara fujeiçaõ, em que até agora fe confervávaõ. Para defterrar efte perniciofiffimo abufo, ferá hum dos principáes cuidados dos Directores, eftabelecer nas fuas refpectivas Povoaçoens, o ufo da Lingua Portugueza, naõ confentindo por modo algum, que os meninos, e Meninas, que pertencerem ás Efcólas, e todos aquelles Indios, que forem capazes de inftrucçaõ nefta materia, ufem da Lingua propria das fuas Naçoens, ou da chamada geral; mas unicamente da Portugueza, na forma, que Sua Mageftade tem recomendado repetidas ordens, que até agora fe naõ obferváraõ com total ruina Efpiritial, e Temporal do Eftado. 7 E como efta determinaçaõ he a bafe fundamental da Civilidade, que fe pertende, haverá em todas as Povoaçoes duas Efcólas pûblicas, huma para os Meninos, na qual fe lhes enfine a Doutrina Chriftãa, a ler, efcrever, e contar na forma, que fe pratica em todas as Efcólas das Naçoens civilizadas; e outra para as meninas, na qual, álem de ferem inftruidas na Doutrina Christãa fé lhe enfina a let, efcrever, fiar, fazer renda, cuftura, e odos os mais miniftérios proprios daquelle fexo. 8 Para a fubfiftencia das fobreditas Efcólas, e de hum Meftre, e huma Meftra, que devem fer Peffoas dotadas de bons coftumes, prudencia, e capacidade, de forte, que poffaõ defempenhar as importantes obrigaçoens de feus empregos; fe deftinaráõ ordenados fuficientes, pagos pelos Pays dos mefmos Indios, ou pelas Peffoas, em cujo poder elles viverem, concorrendo cada hum delles com a porçaõ, que fe lhes arbitrar, ou em dinheiro, ou em effeitos, que fera fempre com attençaõ á grande miferia, e pobreza, a que elles prefentemente fe achaõ reduzidos. No cafo porém de naõ haver nas Povoaçoens Peffoa alguma, que poffa fer Meftra de Meninas, poderaõ eftas até á idade de dez annos ferem inftruidas na Efcóla dos Meninos, onde aprenderaõ a Doutrina Chriftãa, a ler, e efcrever, para que juntamente com as infalliveis verdades da noffa Sagrada Religiaõ adquiraõ com maior facilidade o ufo da Lingua Portugueza.

9 Concorrendo muito para a rufticidade dos Indios a vileza, e o abatimento, em que tem fido educados, pois até os mefmos Principaes, Sargentos maiores, Capitaens, e mais Officiaes das Povoaçoens, fem embargo dos honrados empregos que exercitavaõ, muitas vezes eraõ obrigados a reinar as Canôas, ou a fer Jacumáuhas, e Piltos dellas, com efcadalofa defobediencia ás Reáes Leys de Sua Mageftade, que foi fervido recomendar aos Padres Miffionários por Cartas do I., e 3. de Fevereiro de 1701. firmadas pela fua Real Maõ, o grande cuidado que deviaõ ter em guardar aos Indios as honras, e os privilégios competentes aos feus póftos: E tendo confideraçaõ a que nas Povoaçones civîs deve precifamente haver diverfa graduaçaõ de Peffôas á proporçaõ dos miniftérios que exercitaõ, as quáes pede a razaõ, que fejaõ tratadas com aquellas honras, que fe devem aos feus empregos: recomendo aos Directores , que affim em pûblico, como em particular, honrem, e eftimem a todos aquelles Indios, que forem Juizes Ordinários, Vereadores, Principáes, ou accuparem outro qualquer pofto honorifico; e também as fuas familias; dando-lhes a affento na fua prefença; e tratando-os com aquella diftinçaõ, que lhes for devida, conforme as fuas refpectivas graduaçoens, empregos, e cabedaes; para que, vendo-fe os ditos Indios eftimados pûblica, e particularmente, cuidem em merecer com o feu bom procedimento as

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diftinctas honras, com que faõ tratados; feparando-fe daquelles vicios, e defterrando aquellas baixas imaginaçoens, que infenivelmente os reduzirão ao prefente abatimento, e vileza.

10 Entre os laftimofos princípios, e perniciofos abufos, de que tem refultado nos

Indios o abatimento ponderado, he fem duvida hum delles a injufta, e efcandalofa introducçaõ de lhes chamarem Negros; querendo talvez com a infâmia, e vileza defte nome, perfuadir-lhes, que a natureza os tinha deftinado para efcravos dos Brancos, como regularmene fe imagina a refpeito dos Pretos da Cofta de Africa. E porque, além de fer prejudicialiffimo á civilidade dos mefmos Indios efte abominável abûfo, feria indecorofo ás Reáes Leys de Sua Mageftade chamar Negros a huns homens, que o mefmo Senhor foi fervido nobilitar, e declarar por ifentos de toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo o emprego honorifico: Naõ confentiráõ os Directores daqui por diante, que peffoa alguma chame Negros aos Indios, nem que elles mefmos ufem entre fi defte nome como até agora praticavaõ; para que comprehendendo elles, que lhes naõ compete a vileza do mefmo nome, poffaõ conceber aquellas nobres idéias, que naturalmente infundem nos homens a eftimaçaõ, e a honra.

11 A’Claffe dos mefmos abufos fe naõ póde duvidar, que pertence tambem o

inalteravel coftume, que fe praticava em todas as Aldeas, de naõ haver hum fó Indio, que fe praticava em todoas as Aldeas, de naõ haver hum fó Indio, que tiveffe fobremone. E para fé evitar a grande confufaõ, que precifamente havia de refultar de haver na mefma povoação muitas Peffoas com o mefmo nome, e acabarem de conhecer os Indios com toda a evidencia, que bufcamos todos os meios de os honrar, e tratar, como fe foffem Brancos; teráõ daqui por diante todos os Indios fobrenomes, havendo grande cuidado nos Directores em lhes intriduzir os mefmos Appellidos, que os Familias de Portugal; por fer moralmente certo, que tendo elles os mefmos Appellidos, e Sobrenomes, de que ufaõ os Brancos, e as mais Peffôas que fe achaõ civilizadas, cuidarão em procurar os meios lícitos, e virtuofos de viverem, e fe tratarem á fua imitaçaõ. 12 Sendo tambem indubitavel, que para a incivilidade, e abatimento dos Indios, tem concorrido muito a indecencia, com que fe trataõ em fuas cafas, affiftindo diverfas Familias em huma fó, na qual vivem como brutos; faltando áquellas Leys da honeftidade, que fe deve á diverfidade dos fexos; do que neceffariamente há de refuftar maior relaxaçaõ nos vicios; fendo talvez o exercicio delles, epecialmente o da torpeza, os primeiros elementos com que os Pays de Familias educaõ a feus filhos: Cuidaráõ muitos os Directores em defterrar das Povoaçoens efte prejudicialiffimo abufo, perfuadindo aos Indios que fabriquem as fuas cafas á imitaçaõ dos Brancos; fazendo nellas diverfos repartimentos, onde vivendo as familias com feparaçaõ, poffaõ guardar, como racionaes, as Leys da Honeftidade, e policia. 13 Mas concorrendo tanto para a incivilidade dos Indios os vicios, e abufos mencionados, naõ fe póde duvidar, que o da ebriedade os tem reduzido ao ultimo abatimento; vicios, entre elles tão dominante, e univerfal, que apenas fe conhecerá hum fó Indio, que naõ efteja fujeito á torpeza defte vicio. Para deftruir pois ete poderofo inimigo do bem commum do Eftado, empregarão os Directores todas as fuas forças em fazer evidente

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aos mefmos Indios a deformidade defte vicios; perfuadindo-lhes com a maior efficacia o quanto fera efcandalofo, que, applicando Sua Mageftade todos os meios para que elles vivaõ com honra, e eftimaçaõ, mandando-lhes entregar a adminiftraçaõ, e o governo Temporal das fuas refpectivas povoaçoens; ao mefmo tempo, em que fó deviaõ cuidar em fe fazer beneritos daquellas diftinctas honras, fe inhabilitem para ellas, continuando no abominavel vicio das fuas ebriedades.

14 Porém como a refórma dos coftumes, ainda entre homens civilizados, he a empreza mais ardua de confeguir-fe, efpecialmente pelos meios da violencia, e do rigor; e a mefma natureza nos enfina, que fó fe póde chegar gradualmente ao ponto da perfeição, vencendo pouco a pouco os obftaculos, que a removem, e a difficultaõ: Advirto aos Directores, que para defterrar nos Indios as ebriedade, e os mais abufos ponderados, ufem dos meios da fuavidade, e da brandura; para que naõ fucceda, que degenerando a reforma em defefperaçaõ, fe retirem do Gremio da Igreja, a que naturalmente os convidará de huma parte o horror do caftigo, e da outra a congenita inclinação aos barbaros coftumes, que feus Pays lhes enfinâraõ com a inftrucçaõ, e com o exemplo.

15 Finalmente, fendo a profanidade do luxo, que confifte na exceffiva, e furperflua preciofidade das galas, hum vicio dos capitáes, que tem enpobrecido, e arruinado os Póvos; he leftimofo o defprezo, e taõ efcandalofa a miferia, com que os Indios coftumaõ veftir, que fe faz precifo introduzir nelles aquellas imaginaçoens, que os poffaõ conduzir a hum virtuofo, e moderado defejo de ufarem de vesftidos decórofos, e decentes; defterrando delles a defnudez, que fendo effeito naõ da virtude, mas da rufticidade, tem reduzido a toda efta Corporaçaõ de gente á mais lamentavel miferia.Pelo que ordeno aos Directores, que perfuadaõ aos Indios os meios licitos de adiquirirem pelo feu trabalho com que fe poffaõ veftir a propoçaõ da qualidade de fuas Peffoas, e das graduaçoens de feus póftos; naõ confentindo de modo algum, que andem nûs, efpeciamente as mulheres em quafi todas as Povoaçoens, com efcandalo da razaõ, e horror da mefma honeftidade.

16 Dirigindo-fe todas as Reáes Leys, que até agora emanáraõ do Throno, ao bom regimendos Indios, ao bem efpiritual, e temporal delles: E querendo os noffos Auguftos Monarcas, que os mefmos Indios pelo meio de feu honefto trabalho, fendo úteis a fi, concorraõ para o fólido eftabelecimento do Eftado, fazendo-fe entreelles, e os Moradores reciprocas as utilidades, e communicaveis os intereffes, como já fe declarou §.I.X. do Regimento das Miffoens; para o que foy fervido o mefmo Senhor mandar entregar aos Padres Miffionáros a adminiftraçaõ Econômica, e Politica dos mefmo Indios; cujos importantes fins fó fe podiaõ confeguir pelos meios da Cultura, e do Commercio: De tal forte fe executaraõ eftas piiffmas, e Reáes Determinaçoes, que aplicados os Indios unicamente ás conveniencias particulares, naõ fe omittio meio algum de os feparar do Commercio, e da Agricvultura. Para conferguir pois eftes dous virtuofos, e intereffantes fins, obfervaraõ os Directores as ordens feguinte.

17 Em primeiro lugar cuidaráõ muito os Directores em lhes perfuadir o quanto lhes ferá util o honrado exercicio de cultivarem as fuas terras; porque por afte intereffante trabalho naõ fó teraõ os meios competentes para fuftentarem com abundancia as fuas cafas, e familias; mas vendendo os genéros, que adquirirem pelo meio da cultura, fe augmemtaráõ nelles os cabedáes á proporçaõ das lavouras, e plantaçoes, que fizerem. E para que eftas

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perfuafoens cheguem a produzir o effeito, que fe defeja, lhes faráõ comprehender os Directores, que a sua negligencia, e o feu defcuido, tem fido a caufa do abatimento, e pobreza, a que fe achaõ, reduzidos ; naõ omittindo finalmente diligencia alguma de introduzir nelles aquella honefta, e louvavel ambição, que defterrando das Republicas o perniciofo vivio da ociofidade, as conftitûe populofas, refpeitadas, e opulentas.

18 Confequentemente lhes perfuadiráõ os Directores, que dignando-fe Sua Mageftade de os habilitar para todos os empregos honorificos, tanto os naõ inhabitará para eftas occupaçoens o trabalharem nas fuas proprias terras; que antes pelo contrario, o que rendem mais ferviços ao publico nefte fructuofo trabalho, tera prefeferencia a todas as honras , nos privilegios e nos empregos, na fórma que Sua Mageftade ordena.

19 Depois que os Dirctores tiverem perfuadido aos Indios eftas folidas , e

intereftantes maximas , de forte , que elles percebaõ evidentemente o qunto ferá util o trabalho , e prejudicial a ociofidade; cuidaráõ logo em examinar com a poffivel exactidaõ , as terras , que poffuem os ditos Indios ( que na forma das Reaes ordens de Sua Mageftade devem fé as adjacentes ás fuas refpectivas Povoaçoens) faõ competentes para o fuftento das fuas cafas , e familias ; e para nellas fazerem as plantaçoens, e as lavouras; de forte, que com a abundancia dos generos poflaõ adquirir as conveniencias, de que até agora viviaõ privados , por meio do commercio em beneficio commum do eftado. E achando que os Indios naõ poffuem terras fuffucientes para a plantaçaõ dos preciofos fructos , que produz efte fertilissimo Paiz ; ou porque na distruiçaõ dellas fe naõ obfervaraõ as Leys da equidade , e da juftiça ; ou porque as terras adjacentes ás fuas Povoaçoens foraõ dadas em fefmarias ás outras Peffoas particulares ; feraõ obrigados os Directores a remetter logo ao Governador do Eftado huma lifta de todas as terras fituadas no continente das mefmas Povoaçoens , declarando os Indios , que fe achaõ prejudicados na diftribuiçaõ , para fe mandarem logo repartir na fórma que Sua Mageftade manda.

20 Confiftindo a maior felicidade do Paîz na abundancia de paõ , e de todos os mais víveres necefftarios para a confervaçaõ da vida humana ; e fendo as terras, de que fe compoem efte Eftado, as mais ferteis , e abundantes, que fe reconhecem no Mundo; dous principios tem ocorrido igualmente para a confternaçaõ, e miferia, que nelle fe experimenta. O primeiro he a ociofidade, vicio quafi infeparavel , e congenito a todas as Naçoens incultas, que fendo educadas nas denfas trevas da fua rufticidade, até lhe faltaõ as luzes do natural conhecimento da propria conveniencia. O fegundo he o errado ufo, que até agora fe fez do trabalho dos mefmos Indios, que applicados á utilidade particular de quem os adminiftrava , e dirigia; haviaõ de padecer os habitantes do Eftado o prejudicialiffimo damno de naõ ter quem os ferviffe, e ajudaffe na colheita dos frutos , e extraçaõ das drogas; e os miferaveis Indios, faltando por efte principio á intereffantiffima obrigaçaõ das fuas terras, haviaõ de experimentar o irrepavel prejuizo dos muitos, e preciofos effeitos, que ellas produzem.

21 Eftes fucceffivos damnos, que tem refultado fem duvida dos mencionados principios, arruinaraõ o intereffe publico; diminuiraõ nos Povos o commercio; e chegaraõ a tranfformar nefte Paîz a mefma abundancia em efterilidade de forte, que pelos annos de , 1754. , e 1755. chegou a tal exceffo a careftia da farinha, que, vendendo-fe a pouca, que

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havia, por preços exorbitantesa; as peffoas pobres, e miferaveis, fe viaõ precifadas a bufcar nas frutas filveftres do mato o qotidiano fuftento com evidente perigo das proprias vidas.

22 Enfinando pois a experiência, e a razaõ, que affim como nos Exercitos faltos de paõ naõ póde haver obediencia, e disciplina; affim nos Paîzes, que experimentaõ efta fenfivel falta, tudo he confufaõ, e defordem; vendo-fe obrigados os habitantes elles a bufcar nas Regioens eftranhas, e remotas, o mantimento precifo com irreparavel detrimento das manufacturas, das lavouras, dos traficos, e dos louvavel, e virtuofo trabalho da Agricultura. Para fe evitarem taõ pernicifos damnos , teraõ os Directores hum efpecial cuidado em que todos os Indios, fem excepçaõ alguma, façaõ Roffas de maniba, naõ fó as que forem fufficientes para a fuftentaçaõ das fuas cafas, e familias, mas com que fe poffa prover abundantemente o Arrayal do Rio Negro; focorrer os moradores defta Cidade; e municionar as Tropas, de que fe guarnece o Eftado: Bem entendido, que a bundancia da farinha, que nefte Paiz ferve de paõ, como bafe fundamental do commercio, deve fer o primeiro, e pricipal objecto dos Directores.

23 A‘lem das Roffas de maniba, feraõ obrigados os Indios a plantar feijaõ, milho, arrôs, e todos os mais generos comeftiveis, que com pouco trabalho dos Agricultores coftumaõ produzir as fertiliffimas terras defte Paiz; com os quaes fe utilizaraõ os mefmos Indios; fe augmentaráõ as Povoaçoens; e fe fará abundante o Eftado; animando-fe os habitantes defle a continuar no intereffantiffmo Commercio dos Sertoens, que até aqui tinhaõ abandonado, ou porque totalmente lhes faltavaõ os mantimentos precifos para o fornecimento das Canôas; ou porque os exceffivos preços, porque fe vendiaõ, lhes diminuiaõ os intereffes.

24 Sendo pois a Culturas das terras o fólido fundamento daquele Commercio, que fe reduz á venda, e commutaçaõ dos fructos; e naõ podendo duvidar-fe, que entre os preciofos effeitos, que produz o Paiz, nenhum he mais intereffante que o algodaõ: Recõmendo aos Directores, que animem aos Indios a que façaõ plantaçoens defte ultimo genero, novamente recõmendado pelas Reaes ordens de Sua Mageftade: Porque fendo a abundancia delle o meio mais proporcionado para fe introduzirem nefte Eftado as Fabricas defte panno, em breve tempo virá a fer efte ramo de Commercio o mais importante para os moradores delle, com reciproca utilidade naõ fó do Reyno, mas das Naçoens Eftrangeiras.

25 Igual utilidade á das plantaçoens de algodaõ, confider-a nas lavouras do Tabaco, genero fem duvida taõ util para os Lavradores delle, como fe experimenta nas mais partes da noffa America; naõ fó pelo grande confumo, que há defte precioso genero nos mefmos Paizes, que o produzem; mas porque, fuppofta a indefectivel extracçaõ, que há delle para o Reyno; evidentemente fe comprehende o quanto efte ramo de Commercio ferá importante para os moradores do Eftado. Mas como as lavouras do Tabaco faõ mais laboriofas, que as plantaçoens dos mais generos; ferá prefiso, para fe introduzir nos Indios efte intereffantiffimo trabalho, que os Directores os animem , propondo-lhes naõ fó as conveniencias, mas as honras, que delle lhes haõ de refultar; perfuadindo-lhes, que á proporçaõ das arrobas de Tabaco, com que cada hum delles entrar na Cafa da Infpecçaõ, fe lhes diftribuiráõ os empregos, e os privilegios.

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26 E como para fe eftabelecer a Cultura dos mencionados generos nas referidas Povoaçoens, naõ baftará toda a actividade, e zelo dos Directores, fendo mais poderofo, que as practicas, o inimigo commum da froxidaõ, e negligencia dos Indios, que com a fua apparente fuavidade os tem radicado nos feus peffimos coftumes conm abatimento total do intereffe publico: Para que o Governador do Eftado, fendo informado daqueles Indios, que entregues ao abominavel vicio da ociofidade faltarem á importantiftima obrigaçaõ da Cultura das fuas terras, poffa dar as providencias neceffarias para remediar taõ fenfiveis damnos; feraõ obrigados os Directores a remetter todos os annos huma lifta das Roffas, que fe fizerem, declarando nella os generos, que fe pantáraõ, pelas fuas qualidade; e os que fe recebéraõ; e tambem os nomes affim dos Lavradores, que cultivaraõ os ditos generos, como dos que trabalharaõ, explicando as caufas, e os motivos, que tiveraõ para faltarem a taõ precifa, e intereffante obrigaçaõ; para que á vifta das referidas caufas poffa o mefmo Governador louvar em huns o trabalho, e a applicaçaõ; e caftigar em outros a ociofidade, e a negligencia.

27 Sendo inuteis todas as providencias humanas, quando naõ faõ protegidas pelo poderofo braço da Omnipotencia Divina; para que Deos Noffo Senhor Felicite, e abençôe o trabalho dos Indios na Cultura das fuas terras, ferá precifo defterrar de todas eftas Povoaçoens o diabolico abufo de fe naõ pagarem Dizimos. Em fignal do fupremo dominio refervou Deos para fi, e para os feus Miniftros, a decima parte de todos os fructos, que produz a terra, como Autor univerfal de todos elles. Sendo efta obrigaçaõ commua a todos os Catholicos, he taõ efcandalofa a rufticidade, com que tem fido educados os Indios, que naõ fó reconheciaõ a Deos com efte limitadiffimo tributo, mas até ignoravaõ a obrigaçaõ que tinhaõ de o fatisfazer. Para defterrar pois dos Indios efte perniciofiffimo, coftume, que na realidade fe deve reputar por abufo, por fer materia, que, conforme o Direito, naõ admite prefcripçaõ; e para que Deos Noffo Senhor felicite os feus trabalhos, e as fuas lavouras: Seraõ obrigados daqui por diante a pagar os Dizimos, que confiltem na decima parte de todos os fructos,, que cultivarem, e de todos os generos, que adquirirem, fem excepçaõ alguma; cuidando muitos os Directores, em que os referidos Indios obfervem exactamente a Paftoral, que o digniffimo Prelado defta Diecéfe mandou publicar em todo o Bifpado, refpectiva a efta importantiffima materia.

28 Mas como a obfervancia defte Capitulo ferá fummamente difficultofa, em quanto fe naõ deftinar methodo claro, racionavel, e fixo, para fe cobrarem os Dizimos fem detrimento dos Lavradores, nem prejuizo da Fazenda Real; attendendo por huma parte a que os Indios conftumaõ desfazer intempeftivamente as Roffas para fomento das fuas ebriedades; e por outra ao pouco efcrupulo, com que deixaraõ de fatisfazer efte preceito, por ignorarem affim as Cenfuras Ecclefiafticas, em que incorrem os transgreffores defte; como os horrorofos caftigos, que o mefmo Senhor lhes tem fulminado; feraõ obrigados os Dirctores no tempo, que julgarem mais opportuno, a examinar peffoalmente todas as Roffas na companhia dos mefmos Indios, que as fabricaraõ; e inteireza; hum por parte da Fazenda Real, que nomearáõ os Directores; e outro, que os Lavradores nomearáraõ pela fua parte.

29 Aos ditos Louvados recõmendaráõ os Directores, depois de lhes deferir o juramento, que fendo chamados para avaliarem todos os fructos, que pouco mais, ou menos poderáõ render naquelle anno as ditas Roffas; de tal forte fe devem dirigir pelos dictames da equidade, que fe attenda fempre á notoria pobreza dos Indios; fazendo-fe a dita

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avaliaçaõ a favor dos Agricultores. Concordando os ditos Louvados nos votos, fe fará logo affento em hum caderno, de que avaliando os Louvados F. , e F. a Roffa de tal Indio, julgáraõ uniformemente, que renderia naquelle anno tantos alqueires, dos quaes pertencem tantos ao Dizimo: Cujo affento deve fer affignado pelos Directores, Louvados, e pelos mefmos Lavradores. No cafo porém de naõ concordarem nos votos, nomearáõ as Cameras nas Povoaçoens, que paffarem a fer Villas, e nas que ficarem fendo Lugares os feus refpectivos Principaes, terceiro Louvado, a quem os Directores daraõ tambem o juramento para que decidaõ a dita avaliaçaõ pela parte, que lhe parecer jufto, de que fe fará affento no referido caderno.

30 Concluîda defte modo a avaliaçaõ do rendimento das Roffas, mandaráõ os Directores extrahir do caderno mencionado huma Folha pelo Efcrivaõ da Camera, e na fua aufencia, ou impedimento, pelo do Publico, pela qual fe deve fazer a cobrança dos Dizimos; cuja importancia liquida fe lançará em hum livro, que haverá em todas as Povoaçoens, deftinado unicamente para efte miniftério, e rubricado pelo Provedor da Fazenda Real: Declarando-fe nelle em o Titulo de Receita affim as diftinctas parcéls que fe receberaõ, como os nomes dos Lavradores, que as entregaraõ: concluindo-fe finalmente a dita Receita com hum Termo feito pelo mefmo Efcrivaõ, affignado pelo Director, como Recebedor dos referidos Dizimos. Advertindo porém que nem hum, nem outro, poderáõ levar emolumentos alguns pelas referidas diligencias, por ferem dirigidas á boa arrecadaçaõ da Fazenda Real, á qual pertencem em todas as Conquiftas os Dizimos na conformidade das Bullas Pontificias.

31 E para que os ditos Directores naõ experimentem prejuizo algum na arregadaçaõ dos referidos generos, que lhes ficaõ carregados em Receita; haverá em todas as Povoaçoens hum Armazem, em que todos eftes effeitos fe poffaõ confervar livres de corrupçaõ, ou de outro qualquer detrimento; ficando por conta dos mefmos Directores o beneficiarem os ditos generos, de forte, que por ferem remettidos para efta Provedorîa. O que os Directores executaráõ na forma feguinte.

32 Em primeiro lugar, mandaráõ fazer duas guias authenticas, que devem fer extrahidas fielmente affim do livro dos Dizimos, como das Folhas das avaliaçoens, que remetteráõ juntamente com os effeitos ao Provedor da Fazenda Real; ficando tambem com a obrigaçaõ de inviar ao Governador do Eftado as copias de huma, e da outra lifta. Mas como póde fuccedor, que a Canôa do transporte experimente neftes caudalofos rios algum naufragio, e feria encargo naõ fó penofo, mas infupportavel aos Directores, o ficarem obrigados á fatisfaçaõ daquela perda, que inculpavelmente acontecer, por fer contra toda a fórma de Direito padecer a pena quem naõ cõmette a culpa; tanto que os Directores embarcarem os Dizimos na Canôa do transporte, mandaráõ logo fazer no mencionado livro Termo de defpeza, obfervando a mefma fórma, que fe declara no da Receitas; com advertencia porém, que ferão obrrigados a fazer o dito tranfporte com a poffivel cautéla, e fegurança; efcolhendo a melhor Canôa; deftinandolhe a efquipação competente; e entregando o governo della áquella Peffoa, que lhe parecer mais capaz de dar conta com honra, e fidelidade, dos Dizimos, que fe lhe entregáraõ: Bem entendido, que omittindo os Directores alguma deffas circunftancias; e procedendo defta culpavel omiffaõ ou naufragar a Canôa, ou padecer a importância dos Dizimos outro qualquer detrimento; ficaraõ com a indifpenfavel obrigaçaõ de fatisfazer á Fazenda Real todo o damno, que houver.

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33 Finalmente, fendo precifa toda a cautéla, e vigilancia, na boa arrecadaçaõ

dos Dizimos; e devendo evitar-fe nefta importante materia qualquer defordem, e confufaõ; apenas fe fizer real entrega delles nefte Almoxarifado, os mandará o Provedor da Fazenda Real carregar em Receita viva ao Almoxarife; declarando nella o nome da Villa, de que vieraõ os taes Dizimos, e o Director, que os remetto; de cuja Receita mandará entregar o dito Miniftro huma Certidaõ ao Cabo da Canôa, para que fava de defcarga ao dito Director; e para que a todo o tempo, que for removido do feu emprego, poffa dar contas nefta Provedoria pelas mefmas Certidoens do liquido, que remetteo para ella. E dadas que feja a dita conta na forma fobredita, o Provedor da Fazenda Real lhe mandará paffar para fua defcarga huma Quitaçaõ geral, que aprefentará ao Governador do Eftado, para lhe fer conftante a fidelidade, e inteireza, com que executou as fuas ordens.

34 E fuppofto que devo efperar da Chriftandade, e zelo dos Directores, a inviolavel obfervancia de todos os Paragrafos refpectivos á Cultura das terras, plantaçoens dos generos, e cobrança dos Dizimos; por confiar delles, que reputaráõ pelo mais eftimavel premio a incomparavel honra de fe empregarem no Real ferviço de Sua Mageftade: Como dictaõ as leys da Juftiça, que fendo reciprocos os trabalhos, e incõmodos, devem fer commuas as utilidades, e os intereffes; pertencerá aos Directores a fexta parte de todos os frutos, que os Indios cultivarem, e de todos os generos, que adquirem, naão fendo comeftiveis: E fendo comeftiveis, fó daquelles, que os mefmos Indios venderem, ou com que fizerem outro qualquer negocio: Para que animados com efte jufto, e racionavel premio, defempenhem com o maior cuidado as importantes obrigaçoens do feu minifterio; e a mefma conveniencia particular lhes fervirá de eftimulo para dirigirem os Indios com a poffivel efficacia no intereffantiffimo trabalho da Agricultura.

35 Sendo pois a Cultura das terras o folido principio do commercio, era infallivel confequencia, que efte fe abateffe á proporçaõ da decadencia daquella; e que pelo tracto dos tempos vieffem a produzir eftas duas caufas os laftimofos effeitos da total ruina do Eftado. Para reparar pois taõ prejudicial, e fenfivel damno, obfervaraõ os Directores a efte refpeito as ordens feguintes.

36 Entre os meios, que pódem conduzir qualquer Republica a huma completa felicidade, nenhum he mais efficaz, que a introducçaõ do Commercio, porque elle enriquece os Póvos, civiliza as Naçoens, e confequentemente conftitûe poderozas as Monarquias. Confifte effencialmente o Commercio na venda, ou cõmutaçaõ dos generos, e na communicaçaõ com as gentes; e fe defta refulta a civilidade, daquella o intereffe, e a riqueza. Para que os Indios deftas novas Povoçoens logrem a folida felicidade de todos eftes bens, naõ omittiráõ os Directores deligencia alguma proporcionada a introduzir nellas o Commercio, fazendolhes demonftrativa a grande utilidade, que lhes há de refultar de venderem pelo feu jufto preço as drogas, que extrahirem dos Sertoens, os frutos, que cultivarem, e todos os mais generos, que adquirem pelo virtuofo, e louvavel meio de fua induftria, e do feu trabalho.

37 He certo indifputavelmente, que na liberdade confifte a alma do commercio. Mas fem embargo de fer efta a primeira, e mais fubftancial maxima da Politica; como os Indios pela fua rufticidade, e ignorancia, naõ pódem comprehender a verdadeira, e legitima

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reputaçaõ dos feus generos; nem alçancar o jufto preço das fazendas, que devem comprar para o feu ufo: Para fe evitarem os irreparaveis dolos, que as peffimas imaginaçoens dos Commerciantes defte Paiz tem feito infeparaveis dos feus negocios; observaráõ os Directores as determinaçoens abaixo declaradas, as quaes de nenhum modo ofendem a liberdade do commercio, por ferem dirigidas ao bem commum do Eftado, e á utilidade particular dos mefmos commerciantes.

38 Primeiramente haverá em todas as Povoaçoens, Pezos, e Medidas, fem as quaes fenaõ póde confervar o equilibrio na Balança do commercio. Em todo efte Eftado tem feito evidente a experiencia os perjudicialiffimos damnos, que produzio efte intoleravel abufo; oppofto igualmente aos intereffse publicos, e particulares; por que coftumando-fe vender em todas eftas Povoaçoens a Farinha, Arros, e Feijaõ por Paneiros, fem que foffem alqueirados, precifamente haviaõ de fer reciprocos os prejuifos pela falta de fé publica, que he abafe fundamental de todo o negocio. Para remediar efta perniciofiffima defordem, ordeno aos Directores cuidem logo, em que nas fuas Povoaçones haja Pezos, e Medidas, as quaes devem fer afferidas pelas refpectivas Cameras; porque defte modo, nem os Indios poderáõ falfificar os Paneiros na deminuiçaõ dos generos, nem as peffoas, que commerceiaõ com elles experimentaráõ a violencia de os fatisfezer como alqueires naõ o fendo na realidade: Eftabelecendo-fe defte modo entre huns, e outros aquela mutûa fidelidade, fem a qual nem o commercio fe póde augmentar, nem ainda fubfiftir.

39 Em fegundo lugar, recomendo aos ditos Directores, que por nenhum modo confintaõ, que os Indios, commerceiem ao feu pleno arbitrio; porque naõ podendo negar-fe-lhes a liberdade de venderem, ou commutarem os fructos, que tiverem cultivado, âquellas peffoas, e naquellas partes donde lhes poffa refultar maior utilidade; nem devendo prohibirfe aos moradores do Eftado o commerciar com os ditos Indios nas fuas mefmas Povoaçoens; porque defte modo fe ficaria confervando a odiofa feparaçaõ, que até agora fe praticou entre huns , e outros contra as Reaes intençoens de Sua Mageftade, como já fe declarou no §. IX. do Regimento das Miffoes; como fubpofto da parte dos Indios o defentereffe, e a ignorancia; e da parte dos moradores, o conhecimento, e ambiçaõ; ficando avenda dos generos ao arbitrio, e convençaõ das partes, faltaria no mefmo commercio a igualdade; naõ poderáõ os Indios até fegunda ordem de Sua Mageftade fazer negocio algum fem a affiftencia dos feus Directores, para que regulando eftes racionavelmente o preço dos fructos, e o valor das fazendas, fejaõ reciprocas as utilidades entre huns, e outros commerciantes.

40 Ficando pois na liberdade dos Indios ouvender feus fructos por dinheiro, ou comutalos por fazendas, na fórma que coftumaõ as mais Naçoens do Mundo; fendo innegavelmente certo, que entre as mefmas fazendas, humas faò nocivas aos Indios, como he a aguardente, e outra qualquer bebida forte; e outras fe devem reputar fuperfluas, attendendo ao miferavel eftado a que fe achaõ reduzidos; naõ confentiráõ os Directores, que elles commutem os feus generos por fazendas, que lhe naõ fejaõ uteis, e precifamente neceffarias para o feu decente veftido, e das fuas familias, e muito menos por aguardente que nefte Eftado he o fiminario das maiores iniquidades, preturbaçoens, e defordens.

41 E como para extinguir totalmente, o injufto, e prejudicial commercio da aguardente, naõ baftaria fó prohibir aos Indios ocumutarem por ella os feus effeitos, naõ fe

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cõminando pena grave a todos aquelles que coftumaõ introduzir nas Povoaçoens efte perniciofiffimo genero: Ordeno aos Directores, que apenas chegar ao Porto das fuas refpectivas Povoaçoens alguma Canôa, ou outra qualquer embarcaçaõ, a vaõ logo examinar peffoalmente, levando na fua companhia o Principal, e o Efcrivaõ da Camera; e na falta deftes a Peffoa, que julgarem de maior capacidade ; e achando na dita embarcaçaõ aguardente ; ( que naõ feja para o ufo dos mefmos Indios que arremaõ na fórma abaixo declarada) , prenderáõ logo o Cabo da dita Canôa , e o remetteráõ a efta Praça a ordem do Governador do Eftado; tomando por perdida a dita aguardente que fe applicará para os gaftos da mefma Povoaçoens, de que fe fará termo de tomada nos livros da Camera affignada pleos Directores, e mais peffoas que aprefenciarem.

42 Mas, porque póde fucceder, que fazendo viagem alguma deftas Canôas para o Sertaõ, ou para outra qualquer parte que feja indefpenfavelmente neceffario conduzir algumas frafqueiras de aguardente; ou para remedio, ou para gafto dos Indios da fua efquipaçaõ; o que devem depôr os mefmos cabos, debaixo de juramento, que lhe differiráõ os Directores; para fe acautelarem os irreparaveis damnos, que os ditos cabos pódem caufar nas Povoaçoens, por meio defte prejudicialiffmo commercio; em quanto elles fe demorarem naqueles Portos mandaráõ os directores pôr em depofito as fobreditas frafqueiras em parte, onde poffaõ fer gardadas com fidelidade, as quaes lhe feráõ entregues apenas quiferem continuar a fua viagem, afignando termo de naõ contratarem cõ o referido genero, affim naquella, como em outra Povoaçaõ.

43 Ao mefmo tempo, que para favorecer a liberdade do commercio, permito, que os Indios poffaõ vender nas fuas , e em outras quaefquer Povoaçoens os generos, que adquirirem , e os fructos, que cultivarem, exceptuando unicamente os que forem neceffarios para a fustentaçaõ de fuas cafas, e familias: o que fó poderáõ fazer achando-fe prefente os feus Directores debaixo das penas cominadas no §. 89. , que nem por fi, nem por interpofta peffoa poffa peffoalmente comprar aos Indios os referidos generos, nem eftipular com elles directa, ou indirectamente negocio, ou contrato algum por mais racioanvel, e jufto, que pareça.

44 E para , que os Directores poffaõ dar huma evidente demonftraçaõ da fua fidelidade, e do feu zelo, e os Indios poffaõ vender os feus generos livres de todos os enganos, com que até agora foraõ tratados; logrando pacificamente á fombra da Real proteçaõ de Sua Magestade, aquellas convenniencias, que naturalmente lhes podem refultar de hum negocio licito, jufto, e virtuofo: haverá em todas as Povoaçoens hum livro, chamado do Commercio , rubricado pelo Provedor da Fazenda Real , no qual os Directores mandaráõ lançar pelos Meftres das Efcólas, affim os fructos, e generos, que fe venderaõ, como fazendas porque fe cõmutaráõ; explicando-fe a reputaçaõ deftas e o preço daquellas, e também o nome das peffoas, que commerciaráõ com os Indios, de cujos affentos , que feráõ afignados pelos mefmos Directores, e commerciantes, extrahindo-fe huma lifta em forma autentica a remeteraõ todos os annos ao Governador do Eftado, para que fe poffa examinar com a devida exacçaõ a purefa, com que elles fe conduziraõ em materia taõ importante como efta de que depende fem duvida a fubfiftencia , e augmento do Eftado.

45 Mas como todas eftas providencias fe dirigem primeiramente, a maior utilidade dos Indios; e vendendo-fe os generos na Cidade ficará fendo para elles mais

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vantajofo, e util o commercio; attentendo por huma parte a maior reputaçaõ, que haõ de ter nella; e por outra ao limitado difpendio, que fe fará nos tranfportes por fer efte Paîz cercado por toda a parte de Rios, pelos quaes fe pódem tranfportar os generos com muita facilidade, e pouca defpeza; recomendo aos Directores, que perfuadaõ os Indios pelos meios da fuavidade, quaes faõ nefte cafo, o proporlhes a fua maior conveniencia, que condufaõ para a Cidade todos os generos, e frutos , que aliás puderiaõ vender nas fuas Povoaçoens, obfervando os Directores nefta materia aquella mefma forma, que fe determina nos paragrafos fubfequentes a refpeito do commercio do Sertão.

46 Naõ podendo duvidar-fe , que entre os ramos do negocio de que fe conftitue

o commercio defte Eftado; nenhum he mais importante, nem mais util, que o do Sertaõ; o qual naõ fó confifte na extracçaõ das proprias Drogas, que nelle produs a antureza; mas nas feitorias de manteigas de tartaruga, falgas de peixe, oleo de cupaiva, azeite de andiroba, e de outros muitos generos de que lhe abundante o Paîs; empregaráõ os Directores a mais exacta vigilancia, e inceffante cuidado de introduzir, e augmentar o referido cõmercio nas fuas refpectivas Povoaçoens. E para que nefta intereffantiffima materia poffaõ os Directores conduzir-fe por huma regra fixa, e invariavel, obfervaráõ a forma, que lhe vou a prefcrever.

47 Em primeiro lugar fe informaráõ da qualidade das terras, que faõ adjacentes, e proximas ás fuas Povoaçoens, e dos effeitos, de que faõ abundantes: e achando, que dellas fe podará extrahir com maior facilidade, efte, ou aquelle genero, effe ferá o ramo de negocio a que apliquem todo o feu cuidado; bem entendido, que todo o commercio para fe augmentar, e florecer, deve fundar-fe neftas duas folidas, e verdadeiras maximas: Primeira, que em todo o negocio creffe a utilidade ao mefmo paffo, a que deminue a defpeza, fendo evidentemente certo, que aquelle genero, que puder fabricar-fe em menos tempo, e com menor numero de trabalhadores, tera melhor confumo, e confequentemente ferá mais bem reptado: Segunda, que feria fummamente, prejudicial, que todas as Povoaçoens de que fe compoem huma Monarchia, ou hum Eftado, aplicando-fe á fabrica, ou á extracçaõ de hum fó effeito, confervaffem o mefmo ramo de commercio; naõ fó porque a abundancia daquelle genero o reduziria ao ultimo abatimento com total prejuifo dos commerciantes; mas tambem porque as referidas Povoaçoens naõ poderiaõ mutuamente focorrerfe, comprando humas o que lhes falta, e vendendo outras o que lhe fobeja.

48 Na inteligencia deftas duas fundamentaes, e intereffantes maximas, recomendo muito aos Directores, que eftabeleçaõ o commercio das fuas refpectivas Povoaçoens, perfuadindo aos Indios, aquelle negocio, que lhes for mais util na forma, que tenho penderado, e ainda mais claramente explicarei. Se as ditas Povoaçoens eftiverem proximas ao mar, ou ferá a feitoria das falgas o ramo do commercio, de que refultará maior utilidade, aos intereffados. Se porém os Rios, e as terras adjacentes ás fuas Povoaçoens produfirem com abundancia cacáo, falfa, cravo, ou outro qualquer effeito, empregaráõ os Directores todo o feu cuidado em aplicar os Indios a efte ramo de negocio.

49 Para animar os ditos Indios a freguentar goftofamente o interreffante commercio do Sertão, lhes explicaráõ os Directores, que daqui por diante toda a utilidade, que refultar do feu trabalho, fe deftribuirá entre elles mefmos; correfpondendo a cada hum o intereffe á proporçaõ do mefmo trabalho. E como utilidade do referido negocio deve fer

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igual para todos, obfervaráõ os Directores na nomeaçaõ, que fizerem delles para o mencionado commercio, a forma feguinte. Apenas fe concluir o trabalho da cultura das terras, que em todas as circunftancias deve fer o primeiro objecto dos feus cuidados, chamaráõ á fua prefença todos os Principaes, e mais Indios de que conftar a Povoaçaõ: E achando que todos elles defejaõ ir ao negocio do Sertaõ, os nomearaõ juntamente, com os Principaes, guardando inviolavelmente as Leys da alternativa: Porque defte modo experimentaraõ todos igualmente o pezo do trabalho; e a fuavidade do lucro; bem entendido, que a dita nomeaçaõ fe fará unicamente daquella parte dos Indios que pertencerem á diftribuiçaõ das Povoaçoens como abaixo fe declarará.

50 Mas como naõ feria jufto, que os Principaes, Capitaens móres, Sargentos móres, e mais Officiaes, de que fe compôem o governo das Povoaçoens, ao mefmo tempo que Sua Mageftade tem ordenado nas fuas Reaes, e piiffimas Leys que fe lhes guardem todas aquellas honras competentes á graduaçaõ de feus póftos, fe reduziffem ao abatimento de fe precizarem a ir peffoalmente á extraçaõ das drogas do Sertaõ; poderaõ os ditos Principaes mandar nas Canóas, que forem ao dito negocio feis Indios por fua conta, naõ havendo mais que dous Principaes na Povoçaõ: E excedendo efte numero, poderaõ mandar até quatro Indios cada hum; os capitaens móres, Sargentos móres quatro; e os mais Officiaes dous; os quaes devem fer extrahidos do numero da repartiçaõ do Povo.; ficando os fobreditos Officiaes com a obrigaçaõde lhe fatisfazerem os feus fellarios na fórma das Reaes ordens de Sua Mageftade. E querendo os ditos Principaes, Capitaens móres, e Sagentos móres, voluntariamente ir com os Indios, que fe lhes diftribuirem, á extraçaõ daquellas drogas, o poderáõ fazer alternativamente, ficando fempre metade dos Officiaes na Povoaçaõ.

51 Confiftindo pois no augmento defte commercio o fólido eftabelecimento do Eftado; para que aquelle naõ fó fubfifta mas floreça, correrá por conta das Cameras, nas Povoaçoens, que forem Villas, e nas quaes forem lugares por conta dos Principaes, a expediçaõ das referidas Canôas; tendo a feu cargo, o mandallas preparar em tempo habil; provellas dos mantimentos neceffarios; e de tudo o mais , que for precifo; para que poffaõ fazer viagem ao sertaõ; cujas defpezas felançaráõ nos livros das mefmas Cameras; com a condiçaõ porém de que naõ poderaõ tomar refoluçaõ alguma nefta importante materia; fem primeiro aparticiparem aos feus refpectivos Directores. Mas fuppofto encarregado ao zelo, e cuidado das Cameras, e Principaes a execuçaõ de todas eftas providencias, lhe recomendo que antes de expedirem as Canôas recorraõ por petiçaõ ao Governador do Eftado, explicando o numero dos Indios, de que fe compôem a efquipaçaõ dellas; affim para fe lhes declarar o modo com que devem proceder na factura do Cacáo; como para fe fatisfazerem os novos direitos na mefma fórma que fe pratica com outro qualquer morador.

52 E como as Canôas diftinadas para o negocio, naõ fó devem levar o numero de Indios competentes á fua efquipaçaõ, mas alguns de fobrecellente, para que naõ fucceda, que falecendo, enfermando, ou fugindo alguns, fiquem as Canôas nos Sertoens, expoftas ao ultimo defermparo, como repetidas vezes tem fuccedido; poderaõ as mefmas Cameras, e Principaes dar lincença para que as fobreditas Canôas levem dez até doze Indios além da fua efquipaçaõ, que façaõ o negocio para fi; ifto fe entende fe acafo os houver; e que de forte nenhuma fejaõ dos que pertencem á diftribuiçaõ do Povo; porque a efte deve ficar fempre falvo o feu prejuizo.

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53 Tendo enfinado a experiencia, que os mefmos Cabos, a quem fe entregaraõ o

governo, e a direçaõ das Canôas, devendo fuftentar a fé publica defte Commercio, a tem naõ fó deminuido, mas totalmente arruinado; porque attrahidos da utilidade propria, fazem com os mefinos Indios negocios particulares; baftando fó efta circumftancia para os conftituir dolofos, e iniquos; teraõ grande cuidado o Directores em que as Cameras, e os Principaes fó nomeiem para Cabos das referidas Canôas, aquellas peffoas que forem de conhecida fidelidade; intereireza, honra, e verdade; cuja nomeaçaõ fe fará pelas mefmas Cameras, e Principaes, mas fempre a contento daquelles Indios que forem intereffados.

54 Feita defte modo a fobredita nomeaçaõ, feraõ logo chamados ás Cameras os Cabos nomeados, para affignarem termo de aceitaçaõ; obrigado-fe por fua peffoa, e bens, naõ fó a dar conta de toda a importancia que receberem pertencente áquella expediçaõ; mas á fatisfaçaõde qualquer prejuzo, que por sua culpa, negligencia, ou defcuido houver no dito negocio. E como fem embargo de todas eftas cautellas poderaõ faltar os ditos Cabos ás condiçoens, a que fe fujeitarem; ou porque efquecidos da fidelidade, com que fe deve tratar o Commercio compraraõ aos Indios particularmente os effeitos; ou porque os venderaõ aos moradores, antes de chegar ás fuas Povoaçoens; Ordeno aos Directores, que logo na chegada das Canoas, tirem huma exacta informaçaõ nefta materia; e acando que os Cabos commetteraõ culpa grave, além de ferem obrigados a fatisfazerem o prejuizo em dôbro, que fe destribuirá entre os mefmos intereffados, os remetteraõ prezos ao Governador do Eftado, para mandar proceder contra elles á proporçaõ de feus delictos.

55 Felicitando Deos Noffo Senhor o Commercio das referidas Canoas, viraõ eftas em direitura ás Povoaçoens a pertencer : nellas fe fará logo o manifefto autentico de toda a importancia da carga: mandando os Directores, lançar no livro do Commercio com toda a diftinçaõ, e clareza os generosos de que conftar a dita carregaçaõ: o que tudo fe Executará, na prefença dos Officiaes da camera, e de todos os Indios intereffados. Concluida efta diligencia, com a brevidade que permitir o tempo, cuidaraõ logo os Directores depois de mandarem extrahir duas guias em fórma de todas as parcellas, que fe lançará no livro do Commercio, remetter para efta Cidade os referido effeitos; ordenando aos Cabos das mefmas Canoas, que apenas chegarem a efte Porto, entregarem logo huma dasguias ao Governador do Eftado; e outra ao Thezoureiro geral do Commercio dos Indios: para cujo emprêgo, por me parecer indifpenfavelmente neceffario, nas circunftancias prefentes, tendo nomeado interinamente o Sargento mór Antonio Rodrigues Martins, attendendo á grande fidelidade , e notorio zello de que he dotado.

56 Tanto que os Cabos das Canôas entregarem ao Thefoureiro geral as guias da carregaçaõ, terá efte hum efpecial cuidado, conferindo primeiro as cargas com as mefmas guias, devender os generos, que receber, dando-lhes a melhor reputaçaõ, que permitir a qualidade delles, o que naõ poderá executar com effeito fem dar parte ao Governador do Eftado. De todo o dinheiro , que liquidamnete importar a venda dos fobreditos generos pagará o dito Thefoureiro em primeiro lugar os Dizimos á Fazenda Real; em fegundo as defpezas, que fe fizeraõ naquella expediçaõ; em terceiro a porçaõ, que fe arbitrar ao Cabo da mefma Canôa; em quarto, a fexta parte pertencente em partes iguaes por todos os Indios intereffados.

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57 E para que de nenhum modo poffa haver confufaõ na fórma com que fe devem pagar os Dizimos dos generos, que fe extráem dos Sertoens, declaro, que em quanto ao Cacao, Café, Cravo, e Salfa, pertence efta obrigaçaõ aos mefmos, que comprarem os referidos generos, dos quaes fe coftumaõ pagar os Dizimos na mefma occafiaõ do embarque. A refpeito porém dos mais generos, como faõ Manteigas de Tartarugas, e toda a qualidade de Peixes, oleos de Cupauba, azeite de Andiroba, e todos os mais effeitos, exceptuando unicamente os fructos, que prodûs a terra por meio da cultura, fendo elles remettidos para efta Cidade, nella fe pagaráõ os Dizimos dirigindo-fe nefta materia o Thefoureiro geral pelas Guias, que lhe forem remetidas. E fe algum dos ditos generos fe vender nas Povoaçoens, feraõ obrigados os Directores a cobrar os Dizimos obfervando a fórma, que fe lhes prefcreve no paragrafo 30 .

58 Finalmente como, fuppofta a rufticidade, e ignorancia dos mefmos Indios, entregar a cada hum o dinheiro, que lhe compete, feria offender naõ fó as Leys da Caridade, mas da Juftiça, pela notoria incapacidade, que tem ainda agora de o adminiftrarem ao feu arbitrio, ferá obrigado o Tefoureiro geral a comprar com o dinheiro, que lhes pertencer na prefença dos mefmos Indios aquellas fazendas de que elles neceffitarem: Executando-fe nefta parte inviolavelmente aquellas ordens com que tenho regulado nefta Cidade o pagamento dos ditos Indios, em beneficio commum delles. Defte modo acabando de comprehender com evidencia eftes miferaveis Indios a fidelidade com que cuidamos nos feus intereffes, e as utilidades, que correfpondem ao feu trafico, fe reporão naquella boa fé de que depende a fubfistencia, e augmento do Commercio.

59 Sendo a deftribuiçaõ dos Indios, hum dos principaes objectos a que fe dirigiráõ fempre as Paternáes providencias, e piiffimas Leys de Sua Mageftade: como em prejuizo commum dos feus Vaffallos, fe faltou á obfervancia, que ellas deveraõ ter, com efcandalofa offenfa naõ fó das Leys, da Justiça, e Piedade, mas até daquelle mefmo decoro, que fe deve aos refpeitofos Decretos dos Noffos Auguftos Soberanos: Para que as ditas Reaes Ordens, tenhaõ a fua devida execuçaõ; obfervaráõ os Directores as determinaçoens feguintes.

60 Dictaõ as Leys da natureza, e da razaõ, que affim como as partes no corpo fyfico devem concorrer para a confervaçaõ de todo, he igualmente percifa efta obrigaçaõ nas partes, que conftituem o todo moral, e politico. Contra os irrefragaveis dictames do mefmo direito natural, fe faltou até agora a efta indifpenfavel obrigaçaõ; affectando-fe efpeciofos pertextos para fe illudir a repartiçaõ do Povo, de que por infallivel confequencia fe havia de feguir a ruina total do Eftado; porque faltando aos moradores dlle os operarios de que neceffitaõ para a fabrica das Lavouras, e para a extracçaõ das Drogas, precifamente fe havia de diminuir a cultura, abater o Commercio.

61 Eftabelecendo-fe nefte follido, e fundamental principio as Leys da diftribuiçaõ, clara, e evidentemente comprehenderáõ os Directores, que deixando de obfervar efta Ley, fe conftituem Réos do mais abominavel, e efcandalozo delicto; qual he embaraçar o eftabelecimento, a confervaçaõ, o augmento, e toda a felicidade do Eftado, e fruftrar as piiffimas intençoens de Sua Mageftade, as quaes na fórma do Alvará de 6. De Junho de 1755. fe derigem a que os Moradores delle fe naõ vejaõ precizados a mandar vir

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obreiros, e trabalhadores de fóra para o trafico das fuas Lavouras, e cultura das fuas terras; e os Indios naturaes dos Pays, naõ fiquem privados do jufto eftipendio correfpondente ao feu trabalho, que daqui por diante fe lhe regulará na fórma das Reaes Ordens do dito Senhor: Fazendo-fe por efte modo entre huns, e outros reciprocos os intereffes, de que fem duvida refultaraõ ao Eftado as ponderadas felicidades.

62 Pelo que recommendo aos Directores, appliquem hum efpecialiffimo cuidado, a que os Principáes, a quem compete privativamente a execuçaõ das Ordens refpectivas á deftribuiçaõ dos Indios, naõ faltem com elles aos moradores, que lhes prefentarem Portarias do Governador do Eftado; naõ lhes fendo licito em cafo algum, nem exceder o numero da repartição; nem deixar de Executar as referidas Ordens, ainda que feja detrimento da mayor utilidade dos mefmos Indios ; por ser indifputavelmente certo, que a necceffidade commua, conftitue huma Ley fuperior a todos os incômodos, e prejuízos particulares.

63 E como Sua Majeftade foi fervido dar novo methodo ao governo deftas

Povoaçoens; abolindo a adminiftraçaõ temporal, que os Regulares exercitavaõ nellas; e em confequencia defta Real Ordem, fica ceffando a fórma de repartoiçaõ dos Indios; os quaes se devidiráõ em três partes, huma pertencente aos Padres Miffionarios; outra ao ferviço dos Moradores; e outra ás mefmas Povoaçoens : Ordeno aos Directores , que abfervem daqui por diante inviolavelmente, o parágrafo 15. do Regimento, no qual o dito Senhor manda , que, dividindo-fe os ditos Indios em duas partes iguaes, huma dellas fe conferve fempre nas fuas refpectivas Povoaçoens, afim para a defefa do Estado, como para todas as diligencias do feu Reál ferviço, e outra para fé partir pelos os Moradores, naõ fó para a equiparação das Canoas, que vão extrahir Drogas ao Sertaõ, mas para os ajudar na plantação dos Tabacos, canas de Affucar, Algodaõ, e todos os generos, que podem inriquecer o Eftado, e augmentar o Commercio.

64 Para que a referida deftribuiçaõ, fe obfevar com aquella rectidaõ, e inteireza,

que pedem as Leys da Juftiça diftributiva, ceffando de huma vez os clamores dos Póvos, que cada dia fe faziaõ mais juftificados pelos affectados pertextos, com que fe confundiaõ em tão intereffante materia, as repetidas Ordens de Sua Mageftade; naõ fe podendo comprehender, fe era mais abominavel dous livros rubricados pelo Dezembargador Juiz de Fora, em que fe matriculem todos os Indios capazes de trabalho, que na fórma do § XIII do Regimento faõ todos aquelles, que tendo treze annos de idade, naõ paffarem de feffenta.

65 Hum deftes livros fe confervará em poder do Governador do Eftado, e outro no do Dezembargador Juiz de Fora, como Prefidente da Camera: nos quaes fe iraõ matriculando os Indios, que chegarem á referida idade; riscando fe defte numero todos aquelles, que conftar por Certidoens dos feus Párocos, que tiverem falecido, e os que pela razão os feus achaques fe reputarem por incapazes de trabalho: O que fe deve executar na conformidade das liftas, que os Directores remetteráõ todos os annos ao Governador do Eftado, as quaes devem eftar na fua maõ até o fim do mez de Agosfto infallivemente.

66 Sendo pois as referidas liftas o documento, autentico, pelo qual fe devem regular todas as ordens refpectivas á mefma deftribuiçaõ, ordeno aos Directores, que as façaõ todos os annos, declarando nellas fideliffimamente todos os Indios, que forem

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capazes de trabalho, na fórma dos paragrafos antencedentes, as quaes feráõ affignados pelos mefmos Directores, e Principaes, com cominaçaõ de que faltando ás Leys da verdade em materia taõ importante ao intereffe Publico, huns, e outros feráõ caftigados como inimigos communs do Eftado.

67 Mas ao mefmo tempo, que recõmendo aos Directores, e Principaes a inviolavel, e exacta obfervancia de todas as ordens refpectivas á repartiçaõ do Povo; lhes ordeno, que naõ appliquem Indio algum ao ferviço particular dos Moradores para fóra das Povoçoens, fem que eftes lhe aprefentem licença do Governador do eftado, por efcrito; nem confitaõ, que os ditos Moradores retenhaõ em cafa os referidos Indios além do tempo porque lhe forem concedidos: O qual fe declarará nas mefmas Licenças, e também nos recibos, que os Moradores devem paffar aos Principaes, quando lhes entregarem os Indios. E como a efcandalofa negligencia, que tem havido na obfervancia defta Ley, que fe declara no parágrafo 5. tem fido a origem de fe acharem quafi defertas as Povoaçoens, feraõ obrigados os Directores, e Principaes a remetter todos os annos ao Governador do Eftado huma Lifta dos tranfgreffores para fe proceder contra elles, impondofelhes aquellas penas, que determina a fobredita Ley no referido paragrafo.

68 He verdade, que naõ admitte controverfia, que em todas as Naçoens civilizadas, e polidas do Mundo á proporçaõ das lavouras, das manufacturas, e do Commercio, fe augmenta o numero dos Commerciantes, operários, e Agricultores; porque correfpondendo a cada hum o jufto, e racioanvel intereffe proporcionado ao feu trafico, fe fazem reciprocas as coaveniencias, e communs as utilidades. E para que as Leys da diftribuiçaõ fe obfervem com recíproca conveniencia dos moradores, e dos Indios, e eftes fe poffaõ empregar fem violência nas utilidades daquelles, defterrando-fe por efte modo o poderofo inimigo da ociofidade, feraõ obrigados os moradores, apenas receberem os Indios, a entregar aos Directores toda a importancia dos feus fellarios, que na forma das Reáes ordens de Sua Mageftade, devem fer arbitrados de forte, que a conviniencia do lucro lhes fuaviffe o trabalho.

69 Mas porque da obfervancia defte paragrafo, fe podem originar aquellas racionaveis, e juftas queixas, que até agora faziaõ os moradores, de que deixando ficar nas Povoaçoens os pagamentos dos Indios, ainda quando evidentemente moftravaõ, que os mefmos Indios defertavaõ de feu ferviço fe lhes naõ reftituiaõ os ditos pagamentos; vindo por efte modo os defertores a tirar comodo do feu mefmo delicto, naõ fó com irrepavel damno dos povos, mas com total habatimento do Commercio; fendo talvez efte o iniquio fim a que fe derigia taõ perniciofo abufo; para fe evitarem as referidas os fobreditos fellarios entreguem aos Indios huma parte da importancia delles, deixando ficar as duas partes em depofito; para o que havera em todas as Povoaçoens hum Cofre. Deftinado unicamente para depofito dos ditos pagamentos, os quaes fe acabaraõ aos mefmos Indios, conftando, que elles os vencêraõ com o feu trabalho.

70 Succedendo porém defertarem os Indios do ferviço dos moradores antes do tempo, que fe acha regulado, pelas Reáes Leys de Sua Majeftde, que na fórma do paragrafo 14. do Regimento, a refpeito defta Capitanîa he de seis mezes; e vereficando-fe a dita deferçaõ, a qual os moradores devem fazer certa por algum documento; ficaráõ os Índios pedendo as duas partes de seu pagamento, que logo fé entregaráõ aos mefmos moradores. O

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que fé praticará pelo contrario averiguando-fe, que os moradores deraõ caufa á dita defersaõ, porque nefte cafo naõ fó perderáõ toda a importância do pagamento, mas o dobro delle. E para que os moradores naõ poffaõ allegar ignorância alguma defta materia, lhes advirto finalmente, que falefcendo algum Indio no mefmo trabalho, ou impoffibilitando-fe para elle, por caufa de moleftia, feráõ obrigados a entregar ao mefmo Indio , ou a feus herdeiros o jufto eftipendio , que tiver merecido.

71 E como pelo parágrafo 50. defte Directorio, fe concede licença aos Principaes, Capitaens móres, Sargentos mòres, e mais Officiais das Povoaçoens, para mudarem alguns Indios por fua conta ao Commercio do Sertão, por fer jufto, que fé lhes permittaõ os meios competentes para fuftentarem as fuás Peffoas , e Famílias com a decência devida aos feus empregos, obfervaráõ os Directores com os referidos Officiaes na fórma dos pagamentos, o que fé determina a refpeito dos Moradores, exceptuando unicamente o cafo em que elles como Peffoas miferaveis naõ tenhaõ dinheiro, ou fazendas com que poffam prefazer a importância dos Salários, porque neffe cafo feráõ obrigados a fazer hum efcripto de divida, affignado por elles, e pelos mefmos Directores, que ficará no Cofre do depofito, no qual fé obriguem á fatiffaçaõ dos referidos Salários apenas receberem o producto, que lhes competir.

72 Devendo acautelar-fe todos os dólos , que podem acontecer nos pagamentos dos Indios, recomendo muito aos Directores , que no cafo , que os moradores queiraõ fazer o dito pagamento , em fazendas; achando os Indios conveniência nefte modo de satisfação; naõ confintaõ de nenhum modo, que eftas fejaõ reputadas por maior preço, do que fe vende nefta Cidade; permittindo unicamente de avanço ajufta defpeza dos tranfportes, que fe arbitrará a proporção das diftancias das Povoaçoens a refpeito da mefma Cidade. E quando os ditos Moradores pertendaõ reputar as fuas fazendas, por exorbitantes preços, naõ poderão os Directores aceitallas em pagamento, com cominação de satisfazerem aos mefmos Indios qualquer prejuízo, que fe lhe feguir do contrario. O que os mefmos Directores obfervaráõ em todos os cafos, em que os Moradores concorrerem por efte modo com os Indios, ou feja fatisfazendo-lhes com fazendas o feu trabalho, ou comprando-lhes os feus generos.

73 Confiftindo finalmente na inviolavel execuçaõ deftes Paragrafos o deftribuirem-fe os Indios com aquella fidelidade; e inteireza, que recõmendaõ as piiffmas Leys de Sua Magftade, dirigidas unicamenteao bem commum dos feus Vaffallos, e ao fólido augmento do Eftado: Para que de nenhum modo fe poffaõ illudir eftas intereffantiffimas detreminaçoens feraõ obrigados os Directores a remetter todos os annos no principio de Janeiro ao Governador do Eftado huma lifta de todos os Indios,que fe deftribuiraõ no anno antecedente; declarando-fe os nomes dos Moradores, que os receberaõ; e em que tempo; a importancia dos fellarios, que ficaraõ em deposito; e os preços porque foraõ reputados as fazendas, com as quaes fe fizeraõ os ditos pagamentos; para que ponderadas eftas importantes materias com a devida reflexaõ, fe poffaõ dar todas aquellas providencias, que fe julgarem precifas, para fe evitarem os prejudicialiffimos dóllos, que fe tinhaõ introduzido no importantiffimo Commercio do Sertaõ, faltando-fe com efcandalo da piedade, e da razaõ ás Leys da Juftiça deftributiva, na repartiçaõ dos Indios, em prejuizo commum dos Moradores, e ás da comutativa ficando por efte modo privados os ditos Indios do racionavel lucro do feu trabalho.

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74 A laftimofa ruina, a que fe achaõ reduzidas as Povoaçoens dos Indios, de que

fe compôem efte Eftado; he digna de taõ efpecial attençaõ, que naõ devem os Directores omittir deligencia alguma conducente ao feu prefeito reftabelecimento. Pelo que recõmendo aos ditos Directores, que apenas chegarem ás fuas refpectivas Povoaçoens, appliquem logo todas as providencias para que nellas fe eftabeleçaõ cafas de Camera, e Cadêas publicas, cuidando muito em que eftas fejaõ erigidas com toda a fegurança, e aquellas com a poffivel grandeza. Confequentemente empregaraõ os Directores hum particular cuidado em perfuadir aos Indios, que façaõ cafas decentes para os feus domicillios, defterrando o abufo, e a vileza de viver erm choupanas á imitaçaõ dos que habitaõ como barbaros o inculto fentro dos Sertoens, fendo evidentemente certo, que para o augmento das Povoaçoens, concorre muito a nobreza dos Edificios.

75 Mas como a principal origem do lamentável eftado a que as ditas

Povoaçoens eftaõ reduzidas procede de fe acharem evacuadas; ou porque os feus habitantes obrigados das violencias, que experimentaraõ nellas, bufcavaõ o refugio nos mefmos Mattos em que nafceraõ; ou porque os Moradores do Eftado ufando do illicito meio de os practicar, e de outros muitos que adminiftra em hunus a ambiçaõ, em outros a miferia, os retém, e confervaõ no feu ferviço; cujos ponderados damnos pedem huma prompta, e efficaz providencia: Seraõ obrigados os Directores a remetter ao Governado do Eftado hum mappa de todos os Indios aufentes, affim dos que fe achaõ nos Mattos, como nas cafas dos Moradores, para que examinando-fe as caufas da fua deferçaõ, e os motivos porque os ditos Moradores os confervaõ em fuas cafas, fe appliquem todos os meios proporcionanados para que fejaõ reftituîdos ás fuas refpectivas Povoaçoens.

76 E como para confervaçaõ, e augmento dellas naõ feria providencia baftante o

reftituirem-fe aquelles Moradores, com que foraõ eftabelecidas, naõ fe introduzindo nellas maior numero de habitantes; o que fó fe póde confeguir, ou reduzindo-fe as Aldeas pequena a Povoaçoens populofas; ou fornecendo-as de Indios por meio dos defcimentos; obfervaráõ os Directores nefta importante materia as determinaçoens feguintes, as quaes lhes participo na conformidade das Reaes Ordens de Sua Mageftade.

77 No §. II. Do Regimento ordena o dito Senhor, que as Povoaçoens dos Indios conftem ao menos de 150 Moradores, por naõ fer conveniente ao bem Efpiritual, e Temporal dos mefmos Indios, que vivaõ em Povoaçoens pequenas, fendo indifputavel , que á proporção do numero dos habitantes fe introduz nellas a civilidade, e Commercio. E como para fe executar efta Real Ordem fé devem reduzir as Aldeas a Povoaçoens populofas, incorporando-fe, e unindo-fe humas as outras; o que na fórma da Carta do primeiro de Fevereiro de 1701. firmada pela Real mão de Sua Majeftade, fe naõ póde executar entre Indios de diverfas Naçoens, fem primeiro confultar a vontade de huns, e outros; ordeno aos Directores , que na mefma lifta que devem remetter dos Indios na fórma affima declarada, expliquem com toda a clareza a diftinçaõ das Naçoens; a diverfidade dos coftumes, que há entre ellas; e a oppofiçaõ, ou concordia em que vivem; para que , reflectidas todas eftas circumftancias , fe poffa determinar em Junta o modo , com que fem violencia dos mefmos Indios fe devem executar eftas utiliffimas reducçoens.

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78 Em quanto porém aos decimentos , fendo Sua Majeftade fervido recommendallos aos Padres Miffionarios nos §§.8., e 9. do Regimento, declarado o mefmo Senhor que confiava delles efte cuidado, por lhes ter encarregado a adminiftraçaõ Temporal das Aldeas;como na conformidade do Alvará de 7 de Junho de 1755. foi o fito Senhor fervido remover dos Regulares o dito governo Temporal mandando-o entregar aos Juizes Ordinários, Vereadores, e mais Officiaes de Juftiça, e aos Principaes refpectivos; terão os Directores huma incanfavel vigilância em advertir a huns, e outros, que a primeira, e mais importante obrigação dos feus poftos confifte em fornecer as Povoaçoens de Indios por meio de decimentos, ainda que feja á cufta das maiores defpezas da Real Fazenda de Sua Majeftade, como a inimitavel , e catholica piedade dos noffos Auguftos Soberanos, tem declarado em repetidas Ordens, por fter efte o meio mais proporcionado, e conhecido nefte novo Mundo o adoravel nome do noffo Redemptor.

79 E para que os ditos Juizes Ordinários, e Principaes poffam defempenhar

cabalmente tão alta, e importante obrigação, ficará por conta dos Directores perfuafir-lhes as grandes utilidades Efpirituaes, e Temporaes, que fe hão de feguir dos ditos decimentos, e o prompto, e efficaz concurfo, que acharáõ fempre nos Governadores do Eftado, como fiéis executores, que devem ser das exemplares, catholicas, e religiofiffimas intençoens de Sua Majeftade.

80 Mas como a Real intençaõ dos noffos fideliffimos Monarchas, em mandar fornecer as Povoaçoens de novos Indios fe dirige, naõ fó ao eftabelecimento das mefmas Povoaçoens , e augmentodo Eftado, mas á civilidade dos mefmos Indios por meio da communicaçaõ , e do Commercio; e para efte virtuofo fim póde concorrer muito a introducçaõ dos Brancos nas ditas Povoaçoens, por ter moftrado a experiencia , que a odiofa feparaçaõ entre huns, e outros, em que até agora fe confervávaõ , tem fido a origem da incivilidade, a que fe achaõ reduzidos; para que os mefmos Indios fe poffaõ civilizar pelos fuaviffimos meios do Commercio, e da communicaçaõ ; e eftas Povoaçoens paffem a fer naõ fó populofas, mas civîs; poderáõ os Moradores defte Eftado , de qualquer qualidade, ou condiçaõ que fejaõ, , concorrendo nelles as circumstancias de hum exemplar procedimento, affistir, nas referidas Povoaçoens , logrando todas as honras, e privilégios, que Sua Majeftade foi fervido conceder aos Moradores dellas: Para o que aprefentando licença do Governador do Eftado, naõ fó os admitiráõ os Directores, mas lhes darão todo o auxilio , e favor poffivel para erecçaõ de cafas competentes ás fuás Peffoas, e Famílias; e lhes diftribuiráõ aquella porção de terra que lhes poffaõ cultivar, fem prejuízo do direito dos Indios, que na conformidade das Reaes Ordens do dito Senhor faõ os primários , e naturaes fenhores das mefmas terras; e das que affim fe lhes diftribuirem mandaráõ no termo que lher permitte a Ley, os ditos novos Moradores tirar fuas Cartas de Datas na fórma do coftume inalteravelmente eftabelecido.

81 O porque os Indios , a quem os Moradores defte Eftado tem repofto em má Fé pelas repetidas violências,com que os trataraõ até agora, fe naõ persuadaõ e que a introducçaõ delles fera fummamente prejudicial ; deixando-fe convecer de que affistindo naquellas Povoaçoens as referidas pefoas, fe faraõ fenhores das fuas terras , e fe utilizaráõ do feu trabalho , e do feu Commercio; vindo por effe modo a sobredita introducçaõ a produzir contrarios effeitoso ao fólido eftabelecimento das mefmas Povoaçoens; feraõ

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obrigados os Directores, antes de admitir as taes Peffoas , a manifeftar-lhes as condiçoens , a que ficarão fujeitas , de que fe fará termo nos livros da Camera affignado pelos Directores, e pelas mefmas Pefoas admittidas.

82 Primeira: Que de nenhum modo poderáõ poffuir as terras , que na fórma das Reaes Ordens de Sua Majeftade fe acharem diftribuidas pelos Indios, pertubando-os da poffe pacifica dellas , ou feja em fatisfaçaõ de alguma divida, ou a titulo de contracto, doação, difpofiçaõ, Teftamentária, ou de outro qualquer pretexto, ainda fendo apparentemente licito, e honefto.

83 Segunda: Que feráõ obrigados a confervar com os Indios aquella recíproca paz, e concordia, que pedem as Leys de humana Civilidade, confiderando a igualdade, que tem com elles na razaõ generica de Vaffalolos de Sua Majeftade, e tratando-fe mutuamente huns aos outros com todas aquellas honras, que cada hum merecer pela qualidade das fuas Peffoas, e graduação de feus póftos.

84 Terceira: Que nos empregos honoríficos naõ teraõ preferencia a refpeito dosIÍndios, antes pelo contrario, havendo neftes capacidade, preferiráõ sempre aos mefmos Brancos dentro das fuas refpectivas Povoacoens, na conformidade das Reaes Ordens de fua Majeftade.

85 Quarta: Que fendo admittidos naquellas Povoaçoens para civilizar os Indios,

e os animar com o feu exemplo á cultura das terras , e a bufcarem todos os meios livitos, e virtuofos de adquirir as conveniencias Temporaes, fenaõ defprezem de trabalhar pelas fuas mãos nas terras , que lhes forem diftribuidas; tendo entendido , que á proporçaõ do trabalho manual, que fizerem , lhes permittirá Sua Majeftade aquellas honras, de que fe conftituem benemeritos os que rendem ferviço taõ importante ao bem publico.

86 Quinta: Que deixando de obfervar qualquer das referidas condiçoens, feraõ logo expulfos das mefmas terras, perdendo todo o direito, que tinhaõ adquirido, afim á propriedade dellas, como a todas as Lavouras, e plantaçoens, que tiverem feito.

87 Para se confequirempois os intereffantiffimos fins, a que fe dirigem as mencionadas condiçoens , que faõ a paz, a união, e a concordia publica, sem as quaes naõ podem as Republicas fubfidtir, cuidaráõ muito os Directores em applicar todos os meios conducentes para que nas fuas Povoaçoens fe extingua totalmente a odiofa , e abominável diftincçaõ, que a ignorância, ou a iniqüidade de quem preferia as conveniências parrticulares aos intereffes publicos, introduzia entre os Indios, e Brancos, fazendo entre ellles qaufi moralmente impoffivel aquella uniaõ , e fociedade Civîl tantas vezes recommendada pelas Reaes Leys de Sua Majeftade.

88 Entre os meios , mais proporcionados para fe confeguir taõ virtuoso , útil, e fanto fim, nenhum he mais efficaz, que procurar por via de casamentos efta importantiffima uniaõ . Pelo que recomendo aos Directores, que apliquem hum inceffante cuidado em facilitar, e promover pela fua parte os matrimônios entre os Brancos, e os Indios, para que por meio defte fagrado vinculo fe acabe de extinguir totalmente aquella odiofiffima

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diftinçaõ, que as Naçoens mais polidas do Mundo abominarão sempre, como inimigo commum de feu verdadeiro , e fundamental eftabelecimento.

89 Para facilitar os ditos matrimônios , empregaráõ os Directores toda a afficacia do feu zelo em perfuadir a todas as Peffoas Brancas , que affiftirem nas fuas Povoaçoens, que os Indios tanto naõ faõ de inferior qualidade a refpeito dellas, que dignando-se Sua Majeftade de os habilitar para todas aquellas honras competentes ás graduaçoens dos feus postos, confequentemente ficaraõ logrando os mefmos privilegios as Peffoas que cafarem com os dittos Indios ; defterrando-fe por efte modo as prejudicialiffimas imaginaçoens dos Moradores defte Eftado, que fempre reputárão por imfamias fimilhantes matrimonios.

90 Mesmo as providencias, ainda fendo reuladas pelos dictames da reflexão, e da prudencia, produzem muitas vezes fins contrarios, e póde fucceder , que, contrahidos eftes matrimonios , degenere o vinculo de defprezo, e em difcordia a mefma uniaõ; vindo por efte modo a transformarfe em inftrumentos de ruina os mefmos meios que deveraõ conduzir para a concordia; recommendo muito aos Directores, que apenas forem informados de que algumas Peffoas , fndo cafadas, defprezaõ os feus maridos, ou as fuas mulheres, por concorrer nelles a qualidade de Indios, o participem logo ao Governador do Eftado, para que fejaõ fecretamente caftigados, como fomentadores das antigas difcordias, e perturbadores da paz, e uniaõ publica.

91 Defte modo acabaraõ de comprehender os Indios com toda a evidencia, que eftimamos as fuas peffoas; que naõ defprezamos as fuas allianças, e o feu parentefco; que reputamos, como proprias as fuas utilidades; e que defejamos, cordial , e finceramente confervar com elles aquella reciproca uniaõ , em que fe firma, e eftabelece a fólida felicidade das Republicas.

92 Confiftindo finalmente o firme eftabelecimento de todas eftas Povoaçoens na inviolavel, e exacta obfervancia das ordens, fe contém nefte Directorio, devo lembrar aos Directores o inceffante cuidado, e incanfavel vigilancia , que devem ter em taõ util , e intereffante materia ; bem entendido , que entregando-lhes méramente a direcçaõ , e econonomîa deftes Indios , como fe foffem feus Tutores , em quanto fe confervaõ na barbara , e incivîl rufticidade , em que até agora foraõ educados ; naõ os dirigindo com aquelle zelo e fidelidade que pedem as Leys do Direito natural , e Civîl , feraõ punidos rigorosamente como inimigos communs dos fólidos intereffes do Eftado com aquellas penas eftabelecidas pelas Reaes Leys de Sua Mageftade , e com as mais que o mefmo Senhor for fervido impor-lhes como Reos de delictos taõ prejudiciaes ao commum , e ao importentiffimo eftabelecimento do mefmo Eftado.

93 Mas ao mefmo tempo , que recommendo aos Directores a inviolavel obfervancia deftas ordens , lhes tórno a advertir a prudencia , a fuavidade , a abrandura , com que devem executar as fobreditas ordens , efpecialmente as que differem refpeito á refórma dos abufos , dos vicios , e dos coftumes deftes Póvos , para que naõ fucceda que , eftimulados da violencia , tornem a bufcar nos centros dos Mattos os torpes , e abominaveis erros do Paganisfmo.

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94 Devendo pois executarfe as referidas ordens com todos os Indios , de que fe compoem eftas Povoaçoens , com aquella moderaçaõ , e a brandura , que dictaõ as Leys da prudencia ; ainda fe faz mais precifa efta obrigaçaõ com aquelles, que novamente defcerem dos Sertoens , tendo enfinado a experiencia , que fó pelos meios da fuavidade he que eftes miferaveis rufticos recebem as fagradas luzes do Evangelho , e o utiliffimo conhecimento da civilidade , e do Commercio. Por cuja razaõ naõ poderáõ os Directores obrigar aos fobreditos Indios a ferviço algum antes de dous annos de affiftencia nas fuas Povoaçoens ; na fórma , que determina Sua Mageftade no §. XIII. Do Regimento.

95 Ultimamente recommendo aos Directores , que efquecidos totalmente dos naturaes fentimentos da propria conveniencia , fó empreguem os feus cuidados nos intereffes dos Indios ; de forte que as fuas felicidade poffaõ fervir de eftimulo aos que vivem nos Sertoens, para que abandonando os laftimofos erros , que herdáraõ de feus progenitores , bufquem voluntariamente neftas Povoaçoens Civîs , por meio das utilidades Temporaes , a verdadeira felicidade , que he a eterna. Defte modo fe confeguiráõ fem duvida aquelles altos , virtuofos , e fantiffimos fins , que fizeraõ fempre o objecto da Catholica piedade, e da Real beneficencia dos noffos Auguftos Sobreranos ; quaes faõ ; a dilataçaõ da Fé ; a extincçaõ do Gentilismo ; a propagaçaõ do Evangelho ; a civilidade dos Indios ; o bem commum dos Vaffallos ; o augmento da Agricultura ; a introducçaõ do Commercio ; e finalmente o eftabelecimento , a opulencia , e a total felicidade do Eftado. Pará 3 de Mayo de 1757.= Francifco Xavier de Mendoça Furtado.=

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EU EL REY. Faço faber aos que efte Alvará de confirmação virem : Que fendo-me prefente o Regimento , que baixa inclufo , e tem por titulo : Directorio , que fe deve obfervar nas Povoaçoens dos Indios do Pará, e Maranhaõ, em quanto Sua Mageftade naõ mandar o contrario : deduzido nos noventa e cinco Paragrafos , que nelle fe contém , e publicado em tres de Mayo do anno poóximo precedente de mil fetecentos e cincoenta e fete por Francifco Xavier de Mendonça Furtado, do meu Confelho, Governador, e Capitaõ General do mefmo Eftado, e meu principal Comiffario, e Miniftro Plenipotenciario nas Conferencias fobre a Demarcação dos Limites Septemtrionaes do Eftado do Brasil :E porque fendo vifto , e examinado com maduro confelho, e prudente deliberação por Peffoas doutas, e timoratas, que mandei confultar fobre efta materia fe acabou por todas uniformemente , ferem muito convenientes para o ferviço de Deos, e meu, e para o Bem-Commum, e felicidade daquelles Indios, as as Difpofiçoens conteûdas no dito Regimento: Hey por bem, e me praz de confirmar o mefmo Regimento em geral, e cada hum dos feus noventa e cinco Paragrafos em particular, como fe aqui por exemplo foffem infertos, e tranfcriptoos : E por efte Alvará o confirmo de meu proprio Motu, certa Sciencia, poder Real, e abfoluto ; para que por elle fe governem as Povoaçoens dos Indios , que já fé achaõ affociados , e pelo tempo futuro fé affociarem, e reduzirem a viver civilmente. Pelo que : Mando ao Prefidente do Confelho Ultramarino , Regedor da Cafa da Supplicaçaõ , Presidente da Mefa da Confciencia , e Ordens; Vice-Rey, e Capitaõ General do Eftado do Brasil, e a todos os Governadores, e Capitaens Generaes delle; como tambem aos Governadores das Relaçoens da Bahia, e do Rio de Janeiro; Junta do Commercio deftes Reynos, e feus Dominios; Junta da Administraçaõ da Companhia Geral do Graõ Pará, e Maranhaõ ; Governadores das Capitanias do Graõ Pará , e Maranhaõ, de S. Jofeph do Rio Negro, do Piauhî, e de quaefquer outras Capitanîas ; Defembargadores, Ouvidores, Provedores, Intendentes, e Directores das Colonias ; e a todos os Miniftros, Juizes, Juftiças, e mais Peffoas , a quem o conhecimento defte pertencer , o cumpraõ , e guardem , e o façaõ cumprir , e guardar taõ inteiramente , como nelle fé contém ; fem embargo , nem duvida alguma ; e naõ obftante quaefquer Leys , Regimentos , Alvarás , Provifoens , Extravagantes , Opinioens , e Gloffas de Doutores , coftumes , e eftylos contrarios : Porque tudo hey por derogado para efte effeito fomente , ficando aliás fempre em feu vigor. E Hey outroffim por bem , que efte Alvará fe regifte com o mefmno Regimento nos livros das Cameras , onde pertencer , depois de haver fido publicado por Editaes : E que valha como Carta feita em meu Nome, paffada pela Chancellaria , e fellada com os Felos pendentes das minhas Armas ; ainda que pela dita Chancellaria naõ faça tranfito , e o feu effeito haja de durar mais de hum anno , fem embargo das Ordenaçoens em conrario. Dado em Belem , aos dezafete dias do mez de Agofto de mil fetecentos e cincoenta e oito.

R E Y.

Sebastiaõ Jofeph de carvalho e Mello.

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Alvará , porque V. Mageftade há por bem confirmar o Regimento, intitulado : Directorio , que fé deve obfervar na Povoaçoens dos Indios do Pará , e Maranhaõ ,em quanto Sua Mageftade naõ mandar o contrario : Na fórma affima declarada. Para V. Mageftade ver. Filippe Jofeph da Gama o fez.

Regiftrado na Secretaria do Eftado dos Negócios do Reyno, no livro da Companhia Geral do Graõ Pará, e Maranhaõ , a fol. 120. Belem a 18 de Agofto de 1758. Filippe Jofeph da Gama.

Poderá o Impreffor Miguel Rodrigues eftampar o Regimento, intitulado : Directorio , que fe deve obfervar nas Povoaçoens dos Indios do Pará , e Maranhaõ ,em quanto Sua Mageftade naõmandar o contrario : Porque para effe effeito por efte Decreto fomente , lhe concedo a licença neceffaria. Belem , a dezafete de Agofto de mil fetecentos e cincoenta e oito. Com a Rubrica de Sua Mageftade. Regiftado.