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Poemas Ivan Junqueira O Novo Eis o novo (e seus livores): algo efêmero que escoa e não pede de teu olho senão que o deguste em folha, pois seu tempo dura pouco, talvez menos que o do vôo da mariposa no fogo. Assim é o novo: esse moço que faz do velho um estorvo, mas que o conserva na alcova, embora lhe negue o coito e os privilégios de esposo, como aquele, entre alguns outros, de ter voz própria na boca. Poeta, crítico literário e tradutor, presidente da Academia Brasileira de Letras (2004-05). Sua poesia, desde Os Mortos (1964) até A Sagração dos Ossos (1994), está em Poemas Reunidos (Rio: Editora Record, 1999) e em Poesia Reunida (São Paulo: A Girafa, 2005).

Poemas - Academia Brasileira de Letras - POESIA.pdf · de que agora, afinal, te apartas ... escanhoada a navalha? Será talvez a mais rara ... deixa que eu frua o sabor do meu anseio

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Poemas

Ivan Junqueira

O Novo

Eis o novo (e seus livores):algo efêmero que escoae não pede de teu olhosenão que o deguste em folha,pois seu tempo dura pouco,talvez menos que o do vôoda mariposa no fogo.

Assim é o novo: esse moçoque faz do velho um estorvo,mas que o conserva na alcova,embora lhe negue o coitoe os privilégios de esposo,como aquele, entre alguns outros,de ter voz própria na boca.

Poeta, críticoliterário etradutor,presidente daAcademiaBrasileira deLetras(2004-05).Sua poesia,desde Os Mortos(1964) atéA Sagração dosOssos (1994),está em PoemasReunidos (Rio:Editora Record,1999) e emPoesia Reunida(São Paulo:A Girafa, 2005).

O novo escarra no mofodo velho a quem deve o mosto:papiros, pátinas, troposde hinos que não mais se ouvem;o que lhe importa é o reboco,a tinta fresca, o tijolooco, o verniz do alvoroço.

O novo grita na proa,mas se esquece de que há popa,astrolábios, velas rotas,trirremes ébrias ao soprodos ventos do mar vinhoso,onde Ulisses, no retorno,viu porcos, ciclopes e ogros.

O novo é uma bolha do hoje,veste empáfia e lantejoulas,mas logo em seguida estoura,e à tona sobe outra bolha,enquanto outras mais dão fôlegoà tessitura do engodoque a crítica, ingênua, louva.

Tem o novo o aplauso afoitotambém de incautos leitores,que o referendam em coro,sem perceber que é bem outroo papel que o fez famoso:o de embrulhar, nos açougues,o que vem dos matadouros.

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Mas, enfim, existe o novo.Só que ninguém o apregoanem lhe canta inúteis loasou nênias de mau agouro.É que ele nunca está morto:esplende no Horto de Giottoou nas Fábulas de Esopo.

Este é o novo cujo rostoFurta-se à cor dos arroubose apenas se dá aos poucosnaquele instante que coa,não a luz de um sol furioso,mas a que arde desde a noiteem que alguém disse: “Lenora!”

O outro lado

Diz-me: o que haverá do outro lado,quando do corpo a tua almase desgarrar e, arrebatada,romper o mármore das lápides

e a pompa vã dos epitáfios,que não são mais do que palavrasou frases fátuas sob as pálpebrasda úmida noite em que jazes?

O que haverá: um outro bailede máscaras, como as que usaste

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e de tal modo à tua facese enraizaram que nem lápodes tirá-las? Um nefastofestim a que teus convidadossó vieram para incriminar-tee erguer-te a taça da trapaça?

Haverá perdão para a farsaque ao longo da vida encenastediante dos teus e de teus paresà trêfega luz das gambiarras?

Perdão para os crimes e as fraudes,o falso testemunho, o plágiodas obras sob cujas lombadasperdeste a tua identidade?

Haverá talvez uma ágorapovoada de infaustos fantasmas,como o teu próprio ou o de Falstaff,irmão da lascívia e do escárnio?

Ou, bem ao contrário, é Sarastroque, grave e esfíngico, te aguardapara os exames iniciáticosnos quais se cala a flauta mágica?

O que haverá, se já se esvaemos sons, as cores, os fugazesperfumes da vida, as imagensque, idólatra, tanto exaltaste?

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O que haverá depois da carnede que agora, afinal, te apartase se reduz a estrito vácuo?Será concreto o que é abstrato?

Diz-me: o que haverá do outro lado?A eternidade? Deus? O Hades?Uma luz cega e intolerável?A salvação? Ou não há nada?

A imortalidade

O que é a imortalidade?Um sopro que nos carregapara os confins da orfandade,

onde o espírito se negae de si já não recordaapós a última entrega?

Que luz é a que nos acordaquando a morte, em dada hora,bate à porta e chega à borda

do ser que se vai embora,mas crê que não vai de todo,pois do invólucro que fora

algo fica em meio ao lodoque lhe veste o corpo mortocom a púrpura do engodo?

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E o que cabe ao que foi tortoe nunca exigiu conserto?Irá chegar a algum porto?

Será que na alma um apertonão lhe purgou a maldadequando do fim se viu perto?

O que é a imortalidade?Uma insígnia, uma medalhacom que se louva a vaidade?

Ou não será a mortalhaque te poupa só a caraescanhoada a navalha?

Será talvez a mais raradas obras que publicasteou da crítica a mais cara?

Será isto, já pensaste,a herança em que se resumeo que aos amigos deixaste?

Esquece. Sente o perfumede algo que se fez distante:alguém que já foste, o gume

de teu olhar relutantequando viste, no ermo cais,que o tempo que segue adiante

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é o mesmo que volta atráse embaralha a realidade,e a desmantela, e a refaz.

É isto a imortalidade:esse eterno e estranho rioque corre em ti e te invade.

E o mais é só o paviode um lívido círio que ardeno insuportável vazio

que enche toda a tua tarde.

Conto de fadas

Era uma vez um ogro que comiasuas próprias entranhas, seus humores,seu asco à vida eterna e aos vãos louvorescom que a turba, sem trégua, o enaltecia.Comia tudo o que, entre estertores,nele acordasse o sonho e a fantasia.E até da alma dizem que comiao que ela tinha de imortais fulgores.Poupava apenas umas tíbias coresda infância que, distante, se esvaía,como o brinquedo que lhe deu um diaquem depois o furtou nos bastidores.Era uma vez um ogro que podiaser a um só tempo o êxtase e a agonia.

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Carta régia

Saibam quantos lerem estaque jaz na fímbria da mortequem fez da vida uma festa,e era belo e audaz e forte.

Saibam todos quão funestaAcabou sendo-lhe a sorte,pois tudo o que dele resta,já sem bússola e sem norte,

é só ele. Ele e a gestade seus delitos na corte,o que até hoje lhe emprestacerta empáfia ao frágil porte.

Saibam mais: que em sua testa,embora uma ruga a entorte,pulsa uma luz cuja arestasangra-a mais do que um corte.

Cepa má do que não presta,eis da rainha o consortea quem tocou a moléstiade ser só seu próprio vórtice.

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Dom Quixote

Vai a passo Dom Quixoteem seu magro Rocinante.Sancho Pança o segue a trotepela Mancha calcinante.

Tudo é pedra, arbusto seco,erva má, ermas mesetas.Não se escuta nem o ecodo vento a ranger nas gretas.

O que buscam o fidalgoe o seu álacre escudeiro?Peripécias, duelos, algoque lhes recorde o cordeiro

quando abriu os sete selose fez soar as trombetas?Buscam o quê? O que fê-losir tão longe em suas bestas?

Pois esse Alonso Quijano,ao deixar a sua aldeia,só buscava – áspero engano –exumar o que, na teia

de suas tontas leituras,eram duendes, hierofantes,castelos, leões, armaduras,dulcinéias, nigromantes

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Poemas

e uma Espanha onde a justiça,há tanto um tíbio sol posto,fosse um bem que só na liçapudesse ser recomposto.

Mas do triste cavaleiroera tanto o desatinoque na cuia de um barbeirovira o elmo de Mambrino,

nas ovelhas ao relento,uma tropa de meliantes,e nos moinhos de vento,uns desgrenhados gigantes.

Dom Quixote nunca viao que aos seus pares narrava,pois que só lia e mais lia,e ao ler é que se encantava.

E assim do texto as imagenssaltavam – bruscas centelhas –no amarelo das paisagens,no ocre encardido das telhas.

Foi quando então, claro e fundo,percebeu que o que ia vendonada tinha com o mundosobre o qual andara lendo.

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Ivan Junqueira

Ilusão e realidade,heroísmo e covardia,sensualismo e castidade,prosa pedestre e poesia

– eis os pólos do conflitoque somente se harmonizano humor de um cáustico ditoque nos fustiga e eletriza.

E o que redime o manchegonão é tanto aquilo que ama,e sim o dom de si mesmono amor que doa a uma dama,

sem nenhuma recompensaque não seja a do fracassoou da estrita indiferençade quem sequer viu-lhe um traço.

De fala mansa e discreta,que ao calar é que se escuta,seu percurso é a linha retaentre o que tomba e o que luta.

Vai a passo Dom Quixote,ya el pie en el estribo.A morte agora é seu mote.Vai a sós. Vai só consigo.

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Poemas

Testamento

Eis o escasso testamentode quem herdou muito menosdo que a fugaz cantilenade uma inútil folha ao vento.

Nada deixei: baú, dentede ouro, camafeu, comenda,apólice ou dividendo,letra de câmbio perempta.

Vivi com pouco: somenteo que toca a um avarento,zeloso do que não teme, se o tem, guarda em silêncio.

Verdade: sobrou-me tempo,que esbanjei em todo gênerode coisas vãs ou efêmeras,das quais, porém, não desdenho.

E fi-lo sem ter em mentenenhum lucro ou estipêndio,mas só o prazer esplêndidode fazê-lo com engenho.

Até que do próprio tempome tornei inadimplente,como quem vê, de repente,a neblina em suas têmporas.

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Ivan Junqueira

Se algum dia alguém, solene,excomungar-me a demência,é porque – quanta blasfêmia! –não consagrou minha crença,

que era a de ir aos extremosdo ser e de suas brenhas,pois só movia-me o empenhode conhecê-lo na essência.

Enfim, é o meu testamento.Como se vê, pouca lenhae quase nenhum incêndio,exceto o da alma plena.

Não lembra aquele, opulento,de Villon, com suas mêmoresneves de antanho ou seu pêndulode enforcados ao relento.

Mas dele não me arrependo,embora o assine sem ênfase.E eis tudo o que, como tença,leguei aos meus: um poema.

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Poemas

Poemas

Vera Hüsemann

Minh’ almaPara Nilton Bonder

Minh’ almari e choracomo teimosa criança

Minh’ almaé rainha

ergue a cabeçapara mostrar o brilhoda sua coroa

é também vassala

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Vera Hüsemann,natural deCampinas (SP),radicada há anosno Rio deJaneiro. Épsicóloga deprofissão epoeta, autora dolivro Dia a DiaInevitável Poesia(2005).

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Vera Hüsemann

Minh’almapersegue seus laços

liamespressente em cada passo

o perigo dos enlacespersiste confiante

no afã de sersingular

Minh’ almanão aceita renunciarSua sina

é alcançar

Minh’almame permite viverem compasso de dança

deixa que eu fruao sabor do meu anseioe se estira nuap’ra agarrar a vida

apetecida

Em qualquer ensejominh’ almainsisteimplorae Lutapor seu desejo

sem medonem pejo

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Poemas

Minh’ almame deixa querer

o que soume deixa ser

o que possome deixa ter

o que vemNão preciso fazer contas

nem comigonem com ninguém

Minh’almamisturao açúcar e o salna mesma brancurado bem e do mal

Minh’ almaconsegue desafiar

o horizontesem que o afronte

Minh’ almaé mansa

tão mansaquanto água nascente

é também fortetão fortequanto a sarça ardente

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Vera Hüsemann

Poemas

Floriano Martins

Confissão tardia

Os meus olhos descrevem o que vês através de mim.Tua morada perdida quando te ausentas ou partesde um sítio para outro. Não me reconheces nunca,pois jamais estou ao alcance de teu desejo. Imagensderivam em tua memória. Se há como confundi-lasé que já não estás onde deverias. O nome é o mesmo,o rosto – certos vícios perduram –, porém algo de tinão se encontra mais em casa. Como ausentar-medo que fui um dia? A história embriaga o passado edesmente o futuro. O relato de meus olhos descritospor ti. Como convencer a tanta gente que não houvecrime? A cena toda manchada de culpa, um corpoausente em nossas noites de vinho, fotos arquejantesreiterando que me amavas. Para onde fomos?

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Floriano Martins(Fortaleza, 1957). Poeta,editor, ensaísta e tradutor.Tem se dedicado,em particular, ao estudoda literaturahispano-americana,sobretudo no que dizrespeito à poesia.Igualmente extensa temsido sua trajetória decolaboração à imprensa,através de artigos sobremúsica, artes plásticas eliteratura. Organizoualgumas mostras especiaisdedicadas à literaturabrasileira para revistas empaíses hispano-americanos.Como artista plásticoparticipou de váriasexposições.É autor de livros de poesias:Cinzas do Sol, Sábias Areias, deenasaios: Alberto Nepomuceno,El corazón del infinito. Tres poetasbrasileños, e também livros detradução, assim como foiorganizador de inúmerasobras e ativo participanteem volumes coletivos.

Fulgor de nada

Animal na sagrada sede de sua hora,espírito que rasga o enigmae ainda mais intenso outro lhe surge.Me tocas, mármore que baila,carne convertida em riso,na fúria que se desnuda oh deusa.Em ti a louca loca do absoluto,fenda que me traga mares e estrelas,lâmpada no abismo de meu canto.Ali gozamos dançando enquanto dureo fogo, o mundo, ritmos de risos que se tocam.Ainda te ouço morrendo no turbulento abraço do ser,e rio desamparado.

Enigma do sol

As tuas lágrimas me acariciam: um dilúvio atávico.Em nada resulta consultar a folha de infortúnios.Temos uma ilusão objetiva da existênciae não aprendemos nunca com nossos acertos.Tu és a semelhança do que cobiças.Eu te ofertei o meu abandono.Me deste uma lâmpada viciada em espelhos.Não vês diferença alguma entre perda e sacrifício.Deixo a minha roupa à entrada de tua casa.Tu me recebes nu e nada ali se parece contigo.Não sei quando volto, mas estou certa do engano:não andas em mim por onde me reconheço.

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Floriano Martins

Dilema de Eva

Teu corpo distingue-se sobre o meupela diáfana desordem, gemidos flutuantes,que guardam em si a virtude dos temporais.Teu corpo imerso em lágrimas vulcânicasviolando os nomes que dedico a seus rostos.Mitos surpreendidos por escavações.Já não habitas o sítio impreciso da misériahumana. Novas palavras escalam teus seios,fogos disfarçados, mistério relutante. Quandoestás sobre mim, derramas uma verdadeincontida que nutre os provérbios de teu gozo.E te refazes com urgência, repondo tecidose maquiagem, a caminho do esquecimento.A vida inteira amparada em sua devassidão.

Fúria do amor

O teu amor me confunde de muitas maneiras:quando nossas sombras fogem pela noite,rimos com as figuras que surgem sob os lençóisou escalamos as rugas da memória.O teu amor bafeja em minha nuca uma adivinha:jamais a sua forma visível será a mais célebre.Paixões que mendigam por dentro e gozam por fora.O teu amor me leva para um canto escuro de sie atreve-se saboroso em meus mamilos:será sempre noite sempre que me quiseres.Depois me inunda com as flores de outra charada.As tuas roupas íntimas mal disfarçam meu nome.

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Paixões atropeladas pela perda de identidade.O teu amor me acaricia com seu fulgor de paradoxos.Sempre que o dou por perdido, aqui o tenho refeito.O que sou a tua lâmpada amorosa jamais saberá.

A tortura da reflexão

Precipitas teu olhar sobre meu corpo,entrelaçando vertigens, salpicando hábitos,adiando aquele último verso que expandeo que jamais em mim conquistarias.Não é em mim que teu mundo se esgota.Nem sou o lastro de tua agonia irremediável.Tuas mãos soluçam ilusões quando me tocam,lapidam amores perfeitos pela tarde inteira.Não há linguagem que não se adie ante a florque descanso à margem de minha saia.Não importa que me confundas com outra:os teus enganos serão sempre os mesmos.

Tuas negras gemas

Não faço idéia se é noite, vertigem ou silêncio.Sopra um vazio contínuo, sem que o identifique.Persiste a catástrofe da memória, a recordarcoisas que nunca viveu. A desossar-me.Urro selvático do extravio. Perdemos tudo.Tão sós que sequer percebemos o abandono.A flor-obsessão se foi desmembrando, gerandoconflitos: pequenos e grandes pomares.Eu te amei até onde pude estar apenas contigo.

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Floriano Martins