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 POEMAS DE ADÉLIA PRADO Reunidos, neste compêndio, estão alguns poemas de Adélia Prado, publicados em Poesia Reunida. São Paulo: Editora Siciliano, 2001. POEMA ESQUISITO Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos. Não é hábito. É rarissimamente que ela dói. Ninguém tem culpa. Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos, Não existe mais o modo De eles terem seus olhos sobre mim. Mãe, ò mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos? É dentro de mim que eles estão. Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão. Nasceu lá, porque quis , um pé de saudade roxa, Que abunda nos cemitérios. Quem plantou foi o vento, a água da chuva. Quem vai matar é o sol. Passou finados não fui lá, aniversário também não. Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe? È de tanto lembrá-los que eu não vou. Ôôôô pai Ôôôô mãe Dentro de mim eles respondem Tenazes e duros, Porque o zelo do espírito é sem meiguices:

Poemas de Adelia Prado

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POEMAS DE ADLIA PRADO Reunidos, neste compndio, esto alguns poemas de Adlia Prado, publicados em Poesia Reunida. So Paulo: Editora Siciliano, 2001.

POEMA ESQUISITO

Di-me a cabea aos trinta e nove anos. No hbito. rarissimamente que ela di. Ningum tem culpa. Meu pai, minha me descansaram seus fardos, No existe mais o modo De eles terem seus olhos sobre mim. Me, me, pai, meu pai. Onde esto escondidos? dentro de mim que eles esto. No fiz mausolu pra eles, pus os dois no cho. Nasceu l, porque quis , um p de saudade roxa, Que abunda nos cemitrios. Quem plantou foi o vento, a gua da chuva. Quem vai matar o sol. Passou finados no fui l, aniversrio tambm no. Pra qu, se pra chorar qualquer lugar me cabe? de tanto lembr-los que eu no vou. pai me Dentro de mim eles respondem Tenazes e duros, Porque o zelo do esprito sem meiguices:

fia.

CASAMENTO H mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, Mas que limpe os peixes. Eu no. A qualquer hora da noite me levanto, Ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. to bom, s a gente sozinhos na cozinha, De vs em quando os cotovelos se esbarram, Ele fala coisas como este foi difcil prateou no ar dando rabanadas E faz o gesto com a mo. O silncio de quando nos vimos a primeira vez Atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, Vamos dormir. Coisas prateadas espocam: Somos noivo e noiva. GNERO Desde um tempo antigo at hoje, Quando um homem segura minha mo, Saltam duas lembranas guarnecendo A secreta alegria do meu sangue: A bacia da mulher mais larga que a do homem, Em funo da maternidade. O Osvaldo Bonito est pulando o muro de dona Gleides. A primeira, eu tirei de um livro de anatomia, A segunda, de um cochicho de Maria Vilma. Oh! Por to pouco incendiava-me? Eu sou feita de palha, Mulher que os gregos desprezariam ? Eu sou de barro e oca. Eu sou barroca.

GRANDE DESEJO No sou matrona, me dos Gracos, Cornlia, Sou mulher do povo, me de filhos, Adlia.

Fao comida e como. Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro E atiro os restos. Quando di, grito ai, Quando bom, fico bruta, as sensibilidades sem governo. Mas tenho meus prantos, Claridades atrs do meu estmago humilde E fortssima voz pra cnticos de festa. Quando escrever o livro com o meu nome e o nome que eu vou pr nele, vou com ele a uma igreja, A uma lpide, a um descampado, Para chorar, chorar, e chorar, Requintada e esquisita como uma dama.

COM LICENA POTICA Quando nasci um anjo esbelto, Desses que tocam trombeta, anunciou: Vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, Esta espcie ainda envergonhada. Aceito os subterfgios que me cabem, Sem precisar mentir. No sou to feia que no possa casar, Acho o rio de Janeiro uma beleza e Ora sim, ora no, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos - dor no amargura. Minha tristeza no tem pedigree, J a minha vontade de alegria, Sua raiz vai ao meu mil av. Vai ser coxo na vida maldio pra homem. Mulher desdobrvel. Eu sou. LINHAGEM Minha rvore ginecolgica Me transmitiu fidalguias, Gestos marmorizveis: Meu pai, no dia do seu prprio casamento, Largou minha me sozinha e foi pro baile.

Minha me tinha um vestido s, mas Que porte, que pernas, que meias de seda mereceu! Meu av paterno negociava com tomates verdes, No deu certo. Derrubou mato pra fazer carvo, At o fim de sua vida, os poros pretos de cinza: No me enterrem na Jaguar. Na Jaguara, no. Meu av materno teve um pequeno armazm, Uma pedra no rim, Sentiu clica e frio em demasia, No cofre de pau guardava queijo e moedas. Jamais pensaram em escrever um livro. Todos extremamente pecadores, arrependidos At a pblica confisso de seus pecados Que um deles pronunciou como se fosse todos: Todo homem erra. No adianta dizer eu Porque eu. Todo homem erra. Quem no errou vai errar. Essa sentena no lapidar, porque eivada Dos soluos prprios da hora em que foi chorada, permaneceu indita, at que eu, Cuja me e avs morreram cedo, De parto, sem discursar, A transmitisse meus futuros, Enormemente admirada De uma dor to alta, De uma dor to funda, De uma dor to bela, Entre tomates verdes e carvo, Bolor de queijo e clica.