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MÃO E MEMÓRIA WALDEMAR CARLOS DE SOUZA POEMAS

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

POEMAS

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

Waldemar Carlos de Souza foi um poeta, escritor e personagem política cacondense. Nascido em 21 de outubro de 1912 e falecido em 26 de maio de 1992, possuidor de grande cultura, tão vasta quanto sua biblioteca, Waldemar Carlos foi um autodidata. Estudou algum tempo em São Paulo, na Escola Álvares Penteado. Não chegou, contudo, a formar-se, porque o pai o chamou de volta a Caconde, para trabalhar consigo no cartório – o qual acabou sendo seu como herança de filho mais velho. Não lhe fez falta “ter” o diploma, porque conseguiu “ser” o diploma: "Para que o mundo seja mais humano e mais justo, é preciso optar pelo homem. Isto significa que, para se alcançar uma vida digna do homem, não é possível apenas limitar-se a ‘ter mais’, mas é preciso, sobretudo, aspirar a ‘ser mais’” – está escrito em seus inéditos.

Comprometido com Caconde, dedicou-se à vida pública. Foi vereador por seis mandatos em vinte e cinco anos; seis vezes Presidente da Câmara Municipal; manteve ligação estreita com a Biblioteca "Joãozinho Gomes"; foi membro fundador da Bolsa de Estudos, que ajudou muitos jovens a estudarem fora e a formarem-se; fez parte da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Caconde, sendo provedor nos anos 1991/1992. Idealizou o Projeto de Lei que criou o Brasão de Armas da Cidade de Caconde, tendo, para concretizá-lo, trocado correspondência e visitas com o poeta, intelectual e heraldista Guilherme de Almeida. Em carta, esclareceu-lhe o poeta campineiro: "Caro amigo Waldemar: [...] Fiquei agradavelmente surpreendido ante as sugestões, que V. me manda, para o lema: coincidem elas, em linha geral, com o dístico por mim composto: ‘AEQUE AURUM AURA’. Pessoas a quem submeti esse mote heráldico – latinistas todos, e padres... fizeram-me os mais exagerados elogios." Na década de 60 ingressou no Rotary Club de Caconde. Excelente orador, por várias vezes foi diretor do protocolo. Por duas vezes, foi presidente do Clube, tendo sido eleito Governador do Distrito Rotário 4590 entre 1978/ 1979, além de representante do distrito no Rotary Internacional nos Estados Unidos. Em 1996, em sua homenagem, foi dado seu nome ao prédio que abriga a Câmara Municipal de Caconde.

Obras literárias:

Poema da Vitória - Poemas, 1945.

Mão e Memória - Poemas, 1954.

Lua de Mel e outras Luas - Contos, Editora Martins, 1971.

Rosa Caramujo e a Viagem - Contos, edição póstuma, 1997.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

À CRIZEIDE, Minha companheira

de sonho.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

I

ROTEIRO

DE

PALAVRAS

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

MÃO E MEMÓRIA

Na tentativa sangue em busca da verdade,

como pássaro inquieto sobre mármore frio,

pura e dissoluta, terrena e marítima,

a mão se debruça sobre a folha de papel.

A memória saltou a janela do agora,

correu para o tempo do ontem,

ouviu antigos lábios espelhos,

sentiu noites coração de lua

e reviveu dias de chuva e sol.

Depois, pousou o regresso sobre a mão,

tamborilando na tecla de todos os dedos,

e sussurrou à consciência, como mosca zumbindo,

que havia encontrado a sombra de um homem bom.

Sobre a folha de papel a mão se estendeu inerme,

triste como a flor dormida em túmulo pobre,

nada escreveu, pois o que é bom guarda um pouco de Deus

mas não contém sangue de verdade,

que esta vive no balanço do bem e do mal.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

PARTICIPAÇÃO

Não apenas entreabrir a janela

para se ouvir o clamor da rua cotidiana,

ou ver o trânsito da miséria ululante e ubíqua,

mas franquear a porta da casa consciente,

deixando que entrem gemidos de músculos,

lágrimas de anseios e lentos passos tristes.

E, antes de tudo, sair da sala aconchego,

olhar os gestos altos das mãos sôfregas,

escutar as vozes roucas de inúteis súplicas

e falar a corpos vacilantes de angústias de pedra.

Sair e voltar sempre com o espírito pronto

para o imprevisto da luta palavra sangue.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

MINHA PRAIA

Com a areia de minhas palavras

construo não castelos, mas encantada praia.

E, caramujo marinheiro, levo-a nas costas

em todas as minhas viagens solidão.

Nela, por magia, velas ao longe diviso,

e por ela terra e mar separo.

Ilha humana, árida e triste, que sou,

Sinto em derredor o constante marulhar

de ondas e barcos, de peixes e medusas,

que levam um pouco do meu corpo de sal,

mas deixam meus olhos sondarem os céus,

à procura de horizontes sem miragens.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

OUTONO

Canta um raio de luz na árvore esquiva,

Árvore dourada de solitários frutos,

deitada à beira do caminho sonolento,

porém de braços erguidos, à espera de asas do céu.

Do alto do morro, meus olhos alongo

e minha sombra se despenha no abismo mistério,

trazendo, da trêmula queda sem ruído,

múltiplos reflexos, de vertigens envoltos.

Por mão invisível a luz é apagada

e a tristeza mergulha no trêfego regato,

que, ao longe, sem rumo, rápido, rola.

Há um choro monótono banhando a paisagem,

mas, aos poucos, um sorriso milagre aparece

e canta e brilha: é o sol que ressurge!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

PRIMAVERA

Disposição cigana e canora nos homens,

que os aproxima de pássaros e de flores.

A natureza se recolhe à terena alcova

num colorido andar de música perfume.

Um halo de continuidade infinita sobe da terra,

grita nas madrugadas e descansa nas tardes,

brinca num raio de sol na esteira da chuva,

brilha no verde ressurgir das árvores

e atormenta o sudário dos pântanos com a mão do vento.

Irrompem dos contrastes ritmos harmônicos,

e almas terrestres se elevam para fugas marítimas.

Silêncio do mal, exalando purificação

- essência do bem, potência do belo.

Instante de som, de luz e sombra,

em que o home, filho e artífice do mistério,

pensa e sonha em ser Deus,

mas foge do espelho humano na hora dúvida.

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WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

MANHÃ DE INVERNO

O sol surge com o olho vermelho de sono

e deixa na alcova do infinito um silêncio de luz.

A terra inda treme ao lembrar a fria noite

e a natureza se enrola nas árvores, chorando orvalho.

E o homem, que é riso e que é lágrima,

não vê, nessa manhã, a bendita promessa

de um dia fecundo em horizontes vida,

porque a chuva cobre o sol com seu chalé de viúva.

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WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CHUVA

Na tarde, na rua, em mim, a chuva.

A tristeza vem abrigar-se no meu silêncio,

esperando manhãs de abril.

Minha inveja em clausura olha as árvores além,

que brincam como um bando de crianças livres.

Depois, quando o luminoso ausente regressa,

vou ao seu encontro na rua e na tarde,

e, tocando os arbustos com mão infantil,

vejo as gotas caírem como lágrimas.

Sinto que a luz do sol é trêmula e ouço os soluços da terra.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CONTEMPLAÇÃO

Palavras mudas,

gestos inúteis,

vaga imprecisão do espaço noturno

em rumo incerto de hora dúvida.

Nada senão olhar presente

Tangendo inexata lembrança longe,

onde antes depois é caminho único

e o tempo se dissolve no mistério.

Quanto sangue para alcançar o vértice do triângulo,

quanta angústia para manter o equilíbrio,

quanta vontade para voltar à base

e despertar no milagre diurno da infância,

como um egresso do cárcere consciência.

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WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

DE MANSO

Meu irmão, na hora em que o silêncio cantar

e embalar a tua vontade;

no momento em que todos os abutres do desejo

se debandarem de tua alma,

nesse instante, a felicidade – pomba branca,

virá, de manso,

aninhar-se no teu coração.

E aí ficará, enquanto não ouvir no teu céu

o negro tatalar de novas asas.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

ROSA DO TEMPO

Voltou-me hoje à solidão dos lábios

o imprevisto adolescente beijo único,

que com outros não se confunde nem na memória.

Beijei-me e olhos fechados beijaram-me

com o mesmo fogo do sangue de ontem,

quando palavras da boca fugiram.

Tempo passe e nunca levará de agora

o sempre intenso instante rápido,

que deixou em minha vida uma flor de mistério

e um aroma de estrelas nos meus dedos.

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WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

LÂMPADA

Apagou-se para sempre a lâmpada,

que tantas vezes atravessou a noite,

ouvindo meus anseios e minhas dúvidas.

Seu corpo de luz coragem enfrentou as trevas mistério

e prolongou o dia para o meu amor e minha revolta.

Carinhosa companheira, de rutilante silêncio,

Tantas vezes humilhada pelo sol agressivo,

que entrava pela janela aberta, quebrando vigílias,

com o riso multicolorido das madrugadas.

Apagou-se para sempre a lâmpada,

que era no meu céu uma estrela submissa.

Apagou-se para sempre a lâmpada.

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WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

POEMAS DOS MEIOS

Dom Carlos conta que tinha uma pedra no meio do caminho

e Santa Cecília canta que no meio do mundo faz frio,

faz frio no meio das águas e no meio da vida.

Como viverei nesse tempo de prazos e de retinas,

se meus pés e minha pele nasceram no meio de pétalas?

Esqueço-me das palavras daqueles irmãos,

não procuro navios, que eu me vou é pelos ares,

buscar um meio de ver o paraíso, longe da terra e do mar.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

SUSTO

A chuva põe cortinas em todos os horizontes

para que a canção íntima envolva o momento,

e as árvores, bailarinas verdes, seguem a líquida música.

O homem, estático, deixa que sua alma,

como um pássaro incorpóreo,

leve seu pensamento para longe,

permanecendo só, com seu corpo sem vontade.

No tranquilo instante, fora do tempo,

abruptamente, o trovão bombardeia o relâmpago

e luz e som se fundem no espaço sem termo,

fazendo o homem estremecer como um caniço coitado.

O pássaro viageiro rápido regressa à gaiola,

e agitando suas asas no peito humano

quebra a solidão, marcando o compasso da vida.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

SANTO ANTÔNIO

Treze de junho tiritando de frio.

Os foguetes afugentam a memória do hoje,

que se vai para o tempo de Pádua:

Vejo o pedreiro suspenso no ar,

enquanto o Santo corre ao convento,

e pede licença ao superior para fazer o milagre.

Ao pé de mastro, agora, as moças cortejam o padroeiro

e esperam outros milagres, suspensas nos ares do sonho,

pedindo braços fortes que as levem para longe,

não as deixando na terra sem flores e sem fruto.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

QUATORZE PALAVRAS

Ah, velha mania de encontrar segredos nas sarjetas!

Faço uma circunferência com o olhar e levanto os papéis.

Olho primeiro o recibo, testemunho oficial:

“Departamento dos Correios e Telégrafos

Serviço Interior – Via Nacional

Recebi pelo telegrama n. 86

com 14 palavras para São Paulo

(Carimbo da Agência de Caconde, em 11 de abril de 1950)”.

Em seguida, soletro a custa a amarfanhada cópia:

“Rosa Carmelita – Hotel Liberdade – São Paulo

Volte. Esqueço tudo. Passarinhos morrendo.

Casa triste. Volte. Aníbal”.

Meu pensamento transumanou as palavras frias

e presenciou romances com lágrimas e súplicas,

mas o coração, teimoso ingênuo,

fixou apenas o drama martírio dos pássaros

- flores inermes, chamarizes de memórias de amor!

MEU CORAÇÃO EM BEMOL

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

Nesta velha cidade de encosta sinuosa,

onde ruas se esparramam à vontade,

me conheço há seis gerações,

vinda lá dos cafundós de Minas

pelas trilhas heroicas das botas bandeirantes;

muito baiano franciscano aqui chegou e ficou

formando família e deixando nome de respeito;

agora todos nós somos irmãos e brasileiros da gema,

sem embargo dos italianos,

que de há muito se tornaram nossos bons contraparentes.

Beirais centenários, Nossa Senhora é padroeira,

dia de festa procissão,

banda de música acordando janelas,

bandeira cantando feriado,

eleição cerveja promessas,

com foguetes espocando prefeitos.

Nossa política, nosso ódio e nosso amor

são coisas estranhas, mesmo fora do comum,

que nenhum aventureiro compreende e nem se deve intrometer,

pois na hora dos enterros todos nós nos entendemos.

Ir-se embora para outras terras não é fuga,

mas desejo de regresso, que nem soldado na guerra.

Ah, o doce prazer de mostrar fatiota nova,

depois de um tempo de ausente e dizer com mão no bolso

que houve promoção, seu capitão.

No fim, o intenso orgulho ingênuo de lá de longe dizer

que nasceu na cidade de Caconde...

- Essa terra fica onde? – No meu coração, santo Deus!

Eu olho a minha cidade todas as manhãs como quem se despede

e todas as tardes eu sinto dela uma saudade imensa.

Oh! saudade brasileira, poesia brasileira!

Venham todos tomar o café hospitaleiro da minha cidade

(o melhor café do mundo, guardem bem!)

e discutir com a minha gente os graves problemas nacionais.

Olhem o mapa de São Paulo e venham depressa

porque amanhã poderemos deixar de ser essencialmente

[agrícolas.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

TRAGÉDIA MAIS OU MENOS

Na pálida ribalta, esquálido aparece o artista.

No homem de agora nem sombra do que fora:

uma palavra sem cor e um gesto sem vida.

A assistência – arco-íris de sentimentos humanos,

Detona uma vaia, que o fulmina na voz.

A custo, ele ressuscita a palavra e tenta continuar,

mas lá do alto vem, como um pássaro tonto,

um ramalhete de cenouras, voando para o palco.

Depois, uns ovos explodem quase a seus pés,

e, por fim, batatas redondas, batendo e rolando...

Nessa hora humana, o pobre não vê nada e não enxerga,

[ninguém,

mas fica olhando, com olhos compridos, aquelas coisas no chão.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

ELEGIA DE CINZAS E BRUMAS

Meu corpo semente, de velhas raízes,

em silencia tortura repousa.

Não sinto o presente, fiel da balança,

inscrito na lousa batida de sol.

Meus pés são de ferro no longo caminho,

meus pés são de barro no solar da consciência.

No vento da tarde a estranha palavra,

convite da noite aos longes do tempo.

Não vejo o cipreste de voz noturna,

nem mármore branco e frio.

A terra fraterna e materna me veste

seu manto de estio, manchado de pedras.

Meu ouro de orgulho de falso quilate

nas cinzas memórias rolou.

Minha prata vaidade luzente

seu brilho perdeu e nas brumas sumiu.

No sono sem lei eu perco meus passos

e ouço Daniel na porta de luz.

Enquanto procuro a estátua do rei

alguém me conduz ao mistério das trevas.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

DEPRESSA E SEMPRE

Os frutos maduros da grande árvore

não os deixes cair, amigo,

colhe-os sempre e depressa.

Jamais cuides que o dia é apenas trabalho

e a noite simplesmente repouso.

Procura em derredor e dentro de ti mesmo

a força e o rumo para teu caminho,

e no alto encontrarás motivos para teus cinco sentidos,

gastos nos pecados do cotidiano incolor.

Multiplica teus dias com horas intensas,

dividindo teu pão entre a estrela e a mulher,

e aos minutos eternos da rosa distante

dedica o astrolábio de tua memória pura.

Em teu leito de terra tempo terás para descanso,

pois mesmo quando passos marciais humanos

Acordarem janelas de nações,

teu sono continuará calmo,

tua boca ficará em silêncio,

como teus olhos sem luz,

como tuas mãos sem gestos,

como teus ouvidos inundados de paz.

Colhe, amigo, depressa e sempre,

os frutos maduros da grande árvore,

que o outono é efêmero e a primavera tão longe...

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CANÇÃO DA NOITE INESPARADA

__ Amado meu, donde vens

com o corpo crestado de inverno

e o olhar cansado de distâncias?

__ Venho de longas viagens,

contemplei humanas paisagens,

senti horizontes indefiníveis,

ouvi extasiado estranhas cantigas,

cheias de palavras amigas

e de ritmos sensíveis.

Tanta coisa viu meu coração,

que tenho medo de estender a mão,

tenho medo de buscar com ela os mundos que já toquei,

certo de que nada encontrarei.

__ Amado meu, quero a luz de tua palavra,

fala mesmo assim, com mãos trêmulas,

que vivo está teu amor por mim.

__ Minha voz já tem mais beleza,

guardo apenas um mistério no meu peito,

como um sino calado.

Meu pensamento se recolhe em tristeza

pelo fúnebre cortejo que ao longe passou

levando minha última ilusão.

Mas o ingênuo coração noturno,

com certeza, está sentindo,

com surdos tiquetaques de saudade,

que quem passou foi a felicidade.

__ Amado meu, fala, que minha alma te escuta

e tua resposta me embala:

Quem foi que passou?

__ Talvez tenha sido o amor,

com sua infalível sombra de dor,

ou a esperança, de olhos fecundos,

que a gente não perde e de cortejá-la não cansa,

ou a amizade, de gestos alegres,

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

sempre junta da bondade, a de mãos brancas,

ou a inveja rasteira,

ao lado da mentira traiçoeira,

ou o egoísmo solitário,

puxando a ambição, presa de um rumo imaginário,

ou então o remédio de nossa sorte,

envolto no manto incolor da morte.

__ Amado meu, embelece tua voz,

purifica tuas mãos e ilumina teus olhos,

que o dia te espera, ataviado de luz.

__ Não quero amanhã,

só procuro silêncio,

silêncio é memória,

que ajuda a voltar.

A noite é meu sol,

a noite é meu lar.

Eu venho da noite

no dorso dos sonhos,

ouvindo o longínquo

dos tempos risonhos,

nos lábios trazendo

os ressaibos de amar.

A noite é meu sol

e a noite é meu lar.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

O MURO E A ESTRELA

Alto é o muro e nem sequer uma janela.

As águas sem lama da vida sem medo

brotam no outro lado, da mina de sol,

onde vicejam palavras, cores e sons.

Sob a copa viril da árvore horizonte

a coragem repousa e mil asas fechadas

trazem o livre voo inquieto da tarde,

como mensagem dos dias sem ontens, e amanhãs.

Alto é o muro e nem sequer uma escada.

Os caminhos continuam além, em silêncio,

mas os meus pés se emudeceram de viagens.

Na noite suplício ouço uma estrela caindo,

Tão longe caindo como perto de mim sua música luz.

Alto é o muro, mas a estrela mais alto canta.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

RENASCIDO VERBO

Na vertigem de luz do verbo humano

os inúteis anseios da alma inquieta.

O homem de sua voz tanto se ufana

que, às vezes, deixa o vivo rumo certo.

Entanto, tal palavra empalidece

Se acaso arrulha o pombo viageiro,

ou se chora o cordeiro já disperso,

se uiva o lobo, nem sempre solitário.

Mas a mesma palavra inconsonante

vibrará na hora cinza, no momento

em que um gesto de amor cante carinho.

E o verbo há de florir qual sol e lírio:

tão rubro como o sangue de um mistério,

tão branco como espuma dalgum sonho!

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WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

II

SANGUE

DE

MISTÉRIOS

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

MARINHEIRO, BARCO E SEREIA

Marinheiro solitário

busca a tarde pra sonhar.

Olha um barco abandonado

na branca areia do mar.

Poucas nuvens pelo céu,

nenhuma vela no mar.

Uma tristeza no corpo

e uma alegria no olhar.

Barco de pele de bronze,

não mais pode navegar.

Solitário marinheiro,

já não pode mais remar.

Junto do barco se encosta

e deixa o tempo passar.

Uma alegria no corpo

e um tristeza no olhar.

Assim fica o marinheiro

até a noite chegar.

Nessa hora de mistério

vem a sereia cantar.

Canta a sereia na noite

canta e canta sem parar.

Marinheiro solitário,

aos poucos, põe-se a chorar.

Então remando silêncio

sai valente a viajar.

Vai para longe longe longe

da branca areia do mar.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

REGRESSO

As grandes viagens valem pela volta

e as belezas dos caminhos na memória brilham mais.

O homem, viajante incontentável,

sempre vai para ter o prazer de voltar:

Voltar da multidão egoísta ao carinho zeloso da família;

voltar das cidades de Babel ao vilarejo natal;

voltar das volúpias rubras ao aconchego branco do lar amigo;

voltar para Deus dos descaminhos dolorosos

e sentir o regresso como graça, como sonho, como paz.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

ONDA E AREIA

Pensamento claro de dia marítimo.

Silêncio branco de memórias puras,

isento dos contágios paralelos remotos.

Olhos sem presente no barco da ausência.

Na verde praia imota de sol movimento,

colorida espuma se desmancha constante,

trazendo o aviso da futura e dúbia maré tediosa.

Memento homo! Onda e areia!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CONSEQUÊNCIA

Rosa de pétalas reclusas,

ânfora de perfume inefável,

mistério de sol e de argila.

Palavra mergulho silêncio,

Arrepio carícia vislumbrada,

êxtase, beijo apenas de olhos.

Flor, não desabrolhes nunca!

Amor, não saltes o rubro lábio móvel!

Depois, palavra inútil, rosa triste!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CARROSSEL

Andar na roda do tempo

como no carrossel de nossa infância,

entre sobressaltos musicais.

Cada um no seu cavalo,

sem querer passar adiante,

nem temer o seu vizinho.

Na frente a loura menina

com o marinheiro ao lado

e a multidão de olhos espreitando.

Andar na roda do tempo

sem inveja e sem receio,

entre sobressaltos musicais.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

PESCANDO

À sombra da árvore, da grande árvore,

com meu caniço doirado,

de linha de seda e anzol de prata,

começo minha pescaria, ungido de esperança.

Ponho a mosca azul como isca

e jogo-a na água clara do riacho menino,

que vai desaguar lá longe, no rio maior.

Peixes incolores chegam receosos,

mas não tocam em nada, em nada.

Fisgo fantásticos peixes verdes, rosas e brancos

que, tocados de sol, parecem relâmpagos,

pondo faíscas de escamas nos meus olhos.

Porém, quando a noite chegar, a noite sem estrelas,

Há de vir no meu anzol o peixe negro,

que me levará para o fundo das águas negras,

onde o tempo não sabe do rio maior,

nem de peixes incolores e nem de águas claras.

Então, nunca mais caniço doirado,

nunca mais linha de seda,

nunca mais anzol de prata.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

BELA ADORMECIDA

Nos torvos descaminhos o lumaréu dos meus sonhos:

Farrapos de esperanças ardendo ao luar.

Na ambição de ser e de ter

meus olhos se cegaram.

Fui vários dentro de mim e me perdi sozinho

nos meandros imensuráveis do destino.

Ah, se eu achasse o rumo antigo da verdade

e me encontrasse no labirinto de mim mesmo,

para esquecer as minhas dores e os meus pecados.

Onde estás, Bela Adormecida, cheia de culpas?

Por que não continuaste o teu sono de pedra,

deixando que eu dormisse à sombra dos meus desejos?

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

FRUSTRAÇÃO

Braços abertos

os fraternos gestos.

Ouvido atento

à palavra impulso.

Só mãos e vozes

negando no silêncio.

E os desejos dormidos

se dissolvendo,

e nos nervos brotando

como

espinhos,

ferindo os dedos da alma

--- instante rubro.

Líquida angústia

vai contando os passos,

trêmula dúvida

mostrando o rumo,

brancos naufrágios,

dolorido adeus.

Ah, prender o tempo

no solar dos olhos.

Mas tempo é água

--- não tem cor nem forma.

De mãos vazias,

coração vazio!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

PAIXÃO

Meus passos caminham, meu corpo regressa,

regressa meu corpo incorpóreo.

Meus olhos se estendem somente para trás,

buscando momentos de sangue vibrando.

Raios de fogo invisível fulminam meu peito,

meus nervos se crispam, gritando sedes,

chorando noites,

cantando beijos.

Quero voltar, quero voltar, quero voltar.

Sou solitário em volta de todos,

meu mundo é a minha memória morrendo,

morrendo no silêncio das minhas palavras.

Confusas imagens de lábios fremindo,

de mãos macias,

de macios cabelos,

de peles macias,

aproximam-se dos meus sentidos, absorvendo-os,

chamando, chamando.

Quem me salva deste turbilhão?

Quem me apaga esse fogo invisível?

Quem me leva mais para o alto?

Quero voltar, quero voltar, quero voltar!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

FEBRE

Horizontal e ausente,

com a confusão de carinhos em volta.

Uma alcateia de nuvens

tenta invadir meu quarto senzala.

Meu leito viagem se alonga além da janela,

como ponta de lança em defesa doméstica.

Um exame de cordas arco-íris

procura prender meus braços inquietos.

Um martírio de fogo ensaia suplícios em meus olhos.

Quando perdido me vejo, me debato, choro e grito.

Então minha palavra salta heroica.

e me desvencilha da tortura do mistério.

Santa palavra redentora!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

POEMA DO CORAÇÃO SANGRANDO

Eu sou um eterno coração sagrando.

Choram em mim lágrimas de olhos de granito,

de olhos inermes, tocados pela angústia humana.

Minha lágrima --- linfa que corre da matriz de pedra.

Tudo se foi para o mesmo sempre nunca mais

e eu não sei onde posso me encontrar,

faltando-me a força que me levava ao fim.

Quem disse que eu poderia viver sozinho?

Se todos os martírios se apagassem,

se todas as tristezas fugissem,

se todas as palavras se calassem,

mesmo assim eu ficaria sangrando,

sangrando como o caule de uma roseira,

de onde brotam uma rosa,

rosa branca, rosa viva, cheia de graça,

que não morre nunca, porque volta sempre.

No instante mesmo em que a ternura,

essa fada de gesto de nuvem, de falar tão meigo,

passar junto de mim na hora do encanto,

e me tocar de leve com sua mão de longe,

inda assim eu continuarei sangrando.

Ah meus olhos no amanhã não se esquecem do ontem.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

SILÊNCIO

Morrer como chama se apagando,

Batida por aragem imperceptível.

Morrer em sonho, vislumbrando outros mundos

e não sentir na transfiguração o golpe maldito,

mas a esperança da graça.

Morrer e não ouvir outras auroras,

nem saber que outras noites hão de vir.

Morrer sem ódios a morderem na alma

nem invejas a bafejarem os olhos.

Morrer em paz, escutando nos corações vizinhos

o lado de sol da nossa vida,

sabendo que nossas palavras continuarão em outras bocas

e que a nossa presença não ficará na sombra.

Morrer em Deus, humildemente,

como se ouvisse um simples gesto de silêncio.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CONVITE

Homens de todas as cores,

homens de todos os credos,

homens de todos os climas,

homens de todas as classes:

Esquecei vossas palavras,

esquecei vossos prazeres,

esquecei vossos orgulhos,

esquecei vossas riquezas!

Abaixai vossas cabeças,

vinde ver o olhar distante.

vinde ouvir a voz ausente

da rainha do silêncio!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

POEMA DO DIA

Vinte e um de outubro de quarenta e oito

e a folhinha marcando quinta-feira.

Jamais ficarei cego e surdo não serei!

Parece até um alexandrino!

Procuro a palavra que fala a todos os sentidos.

Batem à minha porta e interrompo a minha busca:

é um irmão em Deus, de fome se queixando.

Meu níquel pequeno de nada valerá,

nem tampouco a minha intenção bondosa,

que a fome só se mata com o pão de trigo.

O pobre passou e foi bater a outras portas

mas o meu pensamento o reteve em minha frente...

Poeta e mendigo --- dois irmãos em viagens,

sofrendo juntos, de mãos estendidas,

buscando estrelas e migalhas...

Jamais ficarei cego e surdo não serei.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

UMA CIGARRA NO TRIBUNAL

A cigarra intrusa arranhou o silêncio

e riscou os olhos das faces gordas,

com seu canto de areia e de espinhos.

Cristo antes e acima do juiz humano.

Relógios e rostos medindo o tempo.

Culpados solenes, com ares contritos.

Sete pecadores vestindo túnicas brancas,

para julgarem o culpado oficial.

O povo, oscilante sentimental,

como em todos os tempos, assiste ao espetáculo,

enquanto a invisível e insistente cigarra

continua fretenindo.

Nesse momento, de trôpegos minutos,

de dúvidas a escorrem de frontes luzidias,

o milagre surge da palavra, como a água da terra,

como o fogo da pedra, sob um toque mágico.

Canta ainda no augusto tribunal a cigarra ausente.

Vibrante e suave se desenrola a palavra,

consumindo horas e paciência.

O homem, encolhido no banco, parece um gato

na jaula sem grades de muitos leões.

Aguarda a Justiça, que sobrepaira tudo,

que deve estar em todos naquele instante,

como o olhar de Deus nas consciências humanas.

Zine a cigarra mais forte para que o sol não fuja.

Na hora cinza da tarde desce o pano do último ato.

Corpos se erguem e novas palavras ecoam.

Sempre palavras e palavras.

E a cigarra, indiferente e burocrática,

vai encerrando seu expediente lírico,

como velha funcionária do verão...

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

III

POEMAS DE TODAS

AS CORES

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

HISTÓRIA DA NUVEM

Certa vez uma sereia

montou na espuma do mar

e na frente do dragão

ficou bailando no céu.

Dançou como Salomé

para a luxúria de Herodes,

e os sete véus do seu corpo

caíram na sal do céu.

Ficando nua a sereia

veio o dragão e a engoliu.

Os véus sumiram no azul

e a lua surgiu no céu.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CADEIRA DE BALANÇO

Olhar de ontem ferindo débil memória,

corpo à procura do nível silêncio.

Perco-me no porvir caminho como um fauno num templo,

onde rosas pisadas ressuscitam em perfume

para os pés nazarenos que caminham amor.

Espinhos de angústias ferem-me o corpo sono,

(Que força mistério pensamento!)

e o sangue brota como luz

nos dedos de minha mão melancólica.

Ah, que o corpo nível por fim tornei.

Pausa. Não fugir da hora agora para o tempo,

e ficar nos hojes das faces e das ruas.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

LONGE AMOR

Sala semeada de silêncio.

Avós austeros dependurados.

Velha mesa senhoril,

rodeada de cadeiras negras

--- escravas ao redor de uma sinhá de antanho.

Branca figura de olhar de estrela,

de voz de prata e andar de música,

ilumina de perfume o ambiente e os meus sentidos.

Como um coração assustado,

o antigo relógio pulsa rápido...

Ó maldito ladrão de tempo,

devolva-me aqueles minutos!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

BUSCA PERDIDA

Chave do cofre da vida,

levo-a comigo a correr.

Quero ter joias do mundo,

e ver segredos da terra.

Corri em busca do cofre,

com tanta pressa corri

que, ao encontrá-lo, afinal,

meu corpo estava batido.

Quando a chave o cofre abriu,

(oh, que tristeza que sinto!)

minha mão não se moveu

e meus olhos se fecharam.

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

ELEGIA DE AMOR PROIBIDO

Entre o Código e a Bíblia, Lenamor,

teu corpo de volúpia resplende,

como rosa rubra da manhã,

como pomba branca da tarde.

Na hora sangue da dúvida mistério,

em cautela, meu íntimo perscruto,

a ver se colho perfume matutino,

a ver se ganho viagens, Lenamor.

Lei e consciência, entanto, tolhem-me o gesto.

Flor não colhida, no outono morrerás, Lenamor,

e pássaro perdido no desumano azul,

nunca sentirás o sabor de cinza da terra

nem viverás tampouco o eterno minuto do céu!

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MÃO E MEMÓRIA

WALDEMAR CARLOS DE SOUZA

CANTIGA

Eu sou um moinho de vento,

Meu trigo são meus amores,

Quando moo o pensamento

Logo surgem minhas dores.

Moinho que mói alegria

Mói a tristeza também.

Não descansa nem um dia

E pra ajudá-lo, ninguém.

Roda na vida esse moinho,

Té que o céu mande parar.

Vem a noite no caminho

E o vento frio a chorar.