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Poesia e prosa, as duas esferas expressionais da literatura: uma abordagem deintenção pré-didáctica

Autor(es): Baptista, Fernando Paulo do Carmo

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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MÁTHESIS 4 1995 321-336

POESIA E PROSA, AS DUAS ESFERAS EXPRESSIONAIS DA LITERATURA (UMA ABORDAGEM DE INTENÇÃO PRÉ-DIDÁCTICA)

Ao PROF. DOUTOR VÍTOR MANUEL DE AGUIAR E SILVA

FERNANDO PAULO DO CARMO BAPTISTA

1. LITERATURA E POESIA

A palavra "literatura" provém do nome latino litteratura, derivado de littera ('letra', designação geral de cada um dos caracteres do alfabeto) e inspirada no grego ypalllla't1KiJ (s.e. 1) ...• éXVTJ). Começou por designar, entre os Romanos, "o ensino das letras, sua escrita e leitura", equivalendo, assim, ao nosso actual conceito de "alfabetização elementar" ou ao que os ingleses exprimem pela palavra litteracy, onde facilmente é visível também aquela mesma base etimológica.

A partir das primeiras décadas do séc. XVIII, no quadro de um intenso dinamismo de toda a Cultura Europeia, com o incremento da escolarização e da alfabetização, da expansão do livro e da leitura, da criação de bibliotecas públicas, em suma, com o significativo alargamento do público leitor, a literatura em prosa, sobretudo a literatura narrativa, começou a conquistar importância crescente, designadamente em relação à poesia, cuja estratégia de divulgação continuava a privilegiar o modo oral de comunicação, em assembleias, em serões, em reuniões de botequins e de salões, em torneios literários, em sessões solenes sob o patrocínio do mecenato régio ou senhorial, já em decadência, etc.

A comunicação e divulgação fónico-acústica (vocal-auditiva), mais utilizada pela poesia, começa a ser superada, claramente, pela comunicação e divulgação gráfico-visual (escrita), mais frequente na prosa. Esta é uma das razões, entre outras, para a crescente importância desta esfera da criação e expressão artística verbal.

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Com o desenvolvimento do romance, da novela, das memórias, etc., o vasto campo literário, até então sujeito ao tradicional predomínio da poe­sia, é atingido por um forte desequilíbrio a favor da prosa, ao ponto de, na segunda metade do séc. XVIII, deixar de ter sentido recobrir com um designador que já se afigurava inadequado todo um universo de produção literária em que, tanto quantitativa como qualitativamente, os textos em prosa estão em clara vantagem. De então para cá, duas importantes mudanças tiveram lugar:

1°. a nível da designação da Arte Literária, por já não ter sentido continuar a aplicar o designador "Poesia" a todo o conjunto das produções artístico-literárias (conjunto esse em que a prosa passou a ter posição de maior relevo), expressões como "belas-letras", "letras humanas", "poesia" (até então, designadores mais geralmente usados para referenciar aquela arte) passaram a ser definitivamente substituídas por um designador único que dá pelo nome de "Literatura", hoje universalmente consagrado por todas as "comunidades literárias" (constituídas por escritores, professores, investigadores, críticos e estudiosos ... ) do mundo inteiro;

2°. a nível das interacções entre poesia e prosa literária (prosa poética, poema em prosa, prosa narrativa de ficção ... ), assistiu-se a uma crescente dinâmica com inevitáveis e recíprocas influências transformadoras e à própria reconsideração do seu "estatuto" de valor e de importância, desde logo no interior do próprio campo da Arte Literária ou Literatura, e com natural projecção em todo o meio social. Cabe relembrar, a propósito, que o designador "Literatura" foi, como vimos, recuperar a primigénia valência gráfica da sua matriz etimológica: litterallitteratura.

Tal designação não se afigura desprovida de pertinência, sendo certo que hoje a criação/produção literária se concretiza, por via de regra, através de actos de escrita e, portanto, com "letras" (litterae). Do mesmo modo, não é por acaso que o autor/criador literário, seja ele poeta, seja ele prosador, se (auto)referencia pelo designador genérico de "escritor", coexistindo com frequência, na mesma pessoa, ambas as dimensões criativas, embora com pesos nem sempre iguais ...

2. POESIA E PROSA LITERÁRIA

2.1. Há, todavia, quem continue a entender, apesar da evolução verificada no séc. XVIII acabada de referir, que a poesia é, muito justifica-

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damente, a mais importante e original das actividades criadoras e artísticas que trabalham a palavra como "material de construção". Eduardo Lourenço, por exemplo, vê nela «"o fazer" máximo do homem» (cf. Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Lisboa, Relógio d' Água Editores, 1974,70). Por isso, na Literatura dos países com umajá longa tradição literária, ela é considerada como sendo o seu coração ou núcleo vital, ou seja, uma espécie de Sol, em tomo do qual gravitam as outras manifestações literárias. Imagine-se, a propósito, o que seria a Literatura Portuguesa, se dela estivessem ausentes, desde os primórdios da nacionalidade até hoje, todos os poetas com os seus poemas! ...

Esse toque de diferença que distingue a poesia ressalta melhor através de um rápido contraponto com a prosa literária, a outra grande esfera da criação artística que usa igualmente a palavra como "matéria prima".

2.2. A poesia e a prosa literária, sejam quais forem as configurações concretas por que se revelem, ao investirem-se nos diferentes modos lite­rários (lírico, narrativo e dramático), com seus géneros e subgéneros, tanto em sua relativa pureza e constância, como em suas lu'bridas mas fecundas combinatórias, sempre segundo a dinâmica de variação, aberta (ecológica) e inovadora, de natureza estilístico-epocal, que caracteriza o funcionamen­to do sistema semiótico-literário, constituem as duas grandes esferas da realização e da manifestação das criações da Literatura: os textos literários.

2.3. Realizando-se, na chamada "Grande Literatura" das sociedades alfabetizadas, predominantemente, sob a forma escrita, um poema, um texto poético stricto sensu, para além da peculiar configuração gráfica que de imediato ressalta aos olhos de quem o lê, ao apresentar-se claramente marginado pela brancura da página em que está inscrito, assume uma singular "disposição" (dispositio) espacial, uma inconfundível "sintaxe" e "estilo" que lhe conferem a marca da «evidência poética» de que fala Paul Éluard, em que, na conhecida tese da "desgramaticalização" da linguagem (defendida por teorizadores do "desvio" e da "infracção" como Jean Cohen [cf. A estrutura da linguagem poética, Lisboa, Edições D. Quixote, 1976]), a própria aridez gramatical se transforma numa espécie de <1eitiçaria evocatória», para usar a sugestiva imagem de Baudelaire retirada do seu famoso Le Poeme du haxixe (cf. Gérard Genette, Figures II, Paris, Éditions du Seuil, 1969, 123-153).

O cerco que a margem branca estabelece em tomo do corpo gráfico do poema sugere, desde logo, o imprescindível e absoluto silêncio de fundo de onde se ergue para se fazer ouvir em pleno aquele que no mundo é o canto que diz mais do próprio mundo ...

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2.4. Sob o ponto de vista estrutural e funcional, qualquer poema se constitui, organiza e configura, segundo três grandes princípios:

1°. O princípio da repetição (ligado à dimensão sintáctica do texto), que se concretiza na adopção de um peculiar modo de estruturação textual, em que conflui com uma componente métrica a servir de base estável - o verso (determinado tipo de verso ... ) -, uma componente rítmica variável, implicando em si, factores como os acentos, as pausas, a rima, a melodia, a harmonia, etc.

2°. O princípio (ligado à dimensão semântica do texto) de que, no texto poético, se opera a plenitude da capacidade de significar. Aí, tudo tem sentido, nada escapando ao processo da total semiotização dos seus elementos constitutivos, sejam eles de natureza fónica, icónico-gráfica ou outra, mesmo os que parecem mais insignificantes.

O texto poético (sobretudo o da "alta poesia"), seja qual for a sua extensão e complexidade, funciona, assim, como um autêntico hipersigno único em que se dá a mais original e jamais vista concentração de signifi­cações: é aquilo a que os especialistas designam de "polissemia" e de "ple­nitude funcional", sempre que se referem à linguagem dos poetas e à poesia (cf. Eugenio Coseriu, El hombre y su lenguaje, Madrid, Gredos, 1977, 203 e também Jean Cohen, A plenitude da linguagem, Coimbra, Almedi­na, 1987, muito embora este, com pressupostos bem diferentes dos daqu­ele).

3°. O princípio (ligado à dimensão pragmática do texto) de que o texto poético não é um ente fechado em si mesmo, mas uma "obra aberta", um mecanismo potenciado r de significação, de comunicação e de interacção cultural e artística, uma vez que, depois de inaugurado como "ser", através do acto da sua criação pelo autor-poeta, só se realiza plenamente como obra de arte na série intérmina de actos de leitura, levados a cabo por cada leitor, por todos os leitores.

Tal princípio implica o conhecimento da teia de relações que se ins­tauram entre autor, texto e contexto de criação, por um lado, e entre texto, leitor e contexto(s) de leitura, pelo outro, tendo em conta, designadamente, as convenções próprias do "fingimento poético", a dimensão perlocutiva que tantas vezes se dissimula sob os efeitos de sugestão e estranhamento (de" ostranenie", como diriam os formalistas russos), de encantamento ou mesmo desencanto, numa urdidura tecida de memória, de inteligência, de imaginação, de paixão, de sonho, de fantasia, de prazer, mas também de sofrimento, de drama, de loucura, de desgraça, se não mesmo de tragédia ... Implica, em suma, criar e desenvolver a consciência de que escrever um

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poema, ler um texto poético, pela complexidade de actos, operações e procedimentos que lhes vão pressupostos, pelo perturbante fascínio que representam, ao potenciarem a descoberta de "outras" vozes na "voz" dos outros e o manancial de jogo que existe no próprio ''jogo'' dos sentidos (literais, metafóricos, indirectos, oblíquos, ocultos, simbólicos, alegóri­cos ... ), ao propiciarem inigualáveis momentos de entretenimento, de evasão, de catarse, de acção terapêutica, de saber e sabedoria, escrever ou ler um poema constituem, por tudo isso, actividades de excelência, para as quais se toma indispensável criar as imprescindíveis bases de uma competência de comunicação verbal, linguística e literária, que envolva o crescente domínio do sistema linguístico, com seus códigos, variedades e registos, igual domínio do sistema literário, com seu policódigo específico, e de uma enciclopédia proporcionadora de saberes e competências fundamentais, no plano histórico, sociológico e cultural.

Os três princípios em síntese enunciados aplicam-se, por inteiro, ao domínio da "prosa poética" e do "poema em prosa", exceptuando o prin­cípio da repetição, no que diz respeito aos aspectos mais rígidos e inva­riantes da estrutura métrica e rítmica do verso, que é a "matriz" historica­mente canonizada da poesia.

2.5. Parecem, pois, não estar tão separados entre si os dois grandes territórios da Arte Literária, salvo a prosa narrativa de ficção, enquanto realização discursiva mais expandida e sujeita a dinâmicas de desenvolvi­mento e a processos técnico-compositivos que lhe são próprios.

E se é pertinente a posição de um célebre estudioso destes assuntos, Boris Tomachevski (cf. Iuri Lotman, A estrutura do texto artístico, Lisboa, Estampa, 1978, 183), quando considera «ser mais natural e fecundo estudar o verso e a prosa, não como dois domínios de fronteiras sólidas e bem demarcadas, mas como dois pólos, dois centros de gravidade, em tomo dos quais se dispõem historicamente factos reais ( ... ), sendo legítimo falar de fenómenos mais ou menos prosásticos e de fenómenos mais ou menos versificados», tendo, por isso mesmo, de se recorrer às formas mais típicas e mais expressivas de ambos, para resolver a questão fundamental da distinção, também é verdade que a própria etimologia das duas designações - verso e prosa - aponta para uma base comum, a partir da qual se dá a diferenciação distintiva.

De facto, as palavras verso e prosa radicam no mesmo verbo latino ver­tere, cujo particípio passado, versus-a-um (ou também vorsus-a-um, na sua configuração mais arcaica) significa "voltado", "virado", "que deu a volta". Do movimento regular de vaivém do arado (em grego: ~Ol)cr'tpo<P1JMv) ao fim de cada sulco, se dizia versus, tal como o movimento da pena ou caneta ao fim de cada linha escrita, ao retomar o início de nova linha. Num caso,

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o sulco do arado, a manta de terra lavrada; no outro, o sulco da pena, o sulco de tinta, de letras, ou seja, o verso, os versos, a página do poema.

Meus versos lavro-os ao rubro nesta página de terra ...

recorda-no-Io Ruy Belo em sua Canção do lavrador. "Prosa" provém de pro+vorsam (em que vorsus-a-um é, como se

disse, uma variante arcaica de versus-a-um) > pro+(v)orsam > prorsa(m) > prossa > prosa (cf. A. Meillet e J. Vendryes, Traité de grammaire comparée des langues classiques, Paris, Librairie Ancienne Honoré Cham­pion, 31963, 88, §131; 112, §168 e 119, §183; A Emout e A. Meillet, Dictionnaire Étymolologique de la Langue Latine, Paris, Librairie Klinc­sieck, 1967, 540, entrada prorsus-a-um), sendo correntes, entre os Ro­manos, as expressões prosa(m) oratione(m) e oratione(m) soluta(m), significando, respectivamente, «discurso em linha recta, lançado para a frente, sem preocupação de voltar atrás» e «discurso solto, disjunto, li­vre».

A etimologia diz-nos, em síntese, que o verso é essencialmente um "voltar atrás", um "repetir"; que a prosa é fundamentalmente um "voltar­-se para a frente, sem regressar, sem repetir, sem parar" ... Radica porven­tura aí o expressivo símile de um consagrado poeta, pensador, ensaísta e estudioso da Literatura, Paul Valéry (cf. Gérard Genette, Figures II, 145), em que, inspirado em Mallarmé, nos apresenta a poesia «intransitiva como a dança» e a prosa, «transitiva como a marcha». (No mesmo sentido, cf. também Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literátia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 21967, 267-268, §459 e Ettore Finazzi­-Agro, artigo «verso» in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (org. e coord.), Dicionário da Litertatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Edito­rial Caminho, 1993,659-660).

Na "lição" da etimologia, o verso já se configura, portanto, como estrutura fixa, estabilizada, centrada e delimitada, ao passo que a prosa já se revela como modalidade aberta, solta e livre ...

Não é difícil, a partir daqui, entender os fenómenos "intermédios" do versilibrismo, da prosa poética, do poema em prosa, sobretudo quando a poesia, em suas modulações mais tradicionais e canónicas, entrou em cri­se ... Então, o "espírito" mais livre, mais aberto e mais junto à vida da prosa exerceu sobre a poesia a sua influência revitalizadora e inovadora, mas tudo isso, numa interacção dialéctica, evolutora e gradativa, em que à prosifi­cação da poesia pela prosa viria a responder a poetificação desta por aquela.

Pode, em todo o caso, no quadro da "Grande Literatura", pensar-se numa distribuição relativizadora, operada segundo três graus de "poetici-

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dade" (s. s.) decrescente: 1° poesia; 2° poema em prosa/prosa poética; 3° demais prosa literária.

Diz-se que a vida é «uma correlação permanente entre prosa e poesia» e que o homem foi sempre «um ser de duas dimensões»: um ser que vive a prosa da sua existência para dar largas ao poder inovador, criador e libertador da poesia (cf. Bogdan Suchodolschi, «A educação entre o ser e o ter», in revista Perspectivas, Unesco, 1976, VI, 175-176).

3. POESIA, POETAS, POEMAS

3.1. Dá-se, pois, o nome de poesia a uma das mais remotas actividades criadoras incluídas no universo da Arte, própria dos poetas, que são, por excelência, os inspirados artistas da palavra.

Homens ou mulheres de carne e osso como os demais humanos, têm os poetas essa rara e singular capacidade, por via de regra precocemente desenvolvida, de sentir, de viver e de captar intensa e profundamente o mundo e a vida, em todas as suas dimensões, e de, na base de uma poderosa "enciclopédia" de conhecimentos e saberes múltiplos e de um quase sempre exímio domínio dos códigos (da "gramática") da língua e da literatura, plasmarem, com o seu poder inventivo e criador, com a sua intuição, o seu sonho, a sua imaginação e fantasia, novos seres, novos mundos, novas realidades, orientados pelo seu pessoal e original modo de perspectivar e realizar o "Belo", através das modalidades, modos, géneros, subgéneros e estilos da Literatura (e dentro dela, da poesia), ora respeitando-os, ora transgredindo-os, para os inovarem, criativamente, sem, todavia, caírem no desregramento que impede a legibilidade ...

As suas produções - os poemas - têm originárias e profundas relações com a voz, com o canto e com a música, nelas convergindo características fundamentais daqueles três singularíssimos modos de comunicação e expressão humana.

Um dos maiores pensadores deste século, Martin Heidegger, viu na "voz" dos grandes poetas «o dizer que diz mais» (cf. o ensaio «Pourquoi des poetes?» in Chemins qui ne menent nulle part, Paris, Gallimard, 1968, 258--259) e Eduardo Lourenço (op. cit., 38), na mesma linha de pensamento, depois de (se) interrogar que linguagem poderá nomear melhor a realidade humana que a linguagem dos poetas, conclui: «É poeticamente que habi­tamos o mundo ou não o habitamos».

3.2. As composições poéticas pOd/m ser muito simples, como acontece, por exemplo, com as quadras popul~f~, ou muito complexas e elaboradas, como é o caso de poemas como Os Lusíadas e As redondilhas de Babel e

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Sião, de Camões, a Mensagem, de Fernando Pessoa, a generalidade dos poemas dos seus heterónimos (Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis ... ), O não e o sim ou O livro da ignorância, de Ramos Rosa, Poemacto, A Máquina Lírica, Última Ciência ou Do Mundo, de Herberto Helder.

3.3. Poesia, poetas e poemas são palavras placentariamente ligadas à ideia-mater de «criação por excelência» (do grego: 1tOtEi v) e apontam para "realidades" onde o inconfundível e nuclear valor do "Belo" se continua a realizar e a manifestar de maneira ímpar ...

4. O POEMA: UNIDADE ENTRE CONTEÚDO E FORMA

Qualquer poema se cria e se constrói na base de uma fundamental relação unificante que o poeta estabelece entre "conteúdo" e "forma", entre fingir e dizer (cf. Gérard Genette, Fiction et diction, Paris, Éditions du Seuil, 1991, 7-40), relação essa que, uma vez instaurada, se mantém indissociável, enquanto o poema existir como aquele poema, apenas se distinguindo como se fossem duas "faces", para facilitar o seu estudo e compreensão.

4.1. O CONTEÚDO: SUA SUBSTÂNCIA

o conteúdo de qualquer poema pode contemplar os mais diversos temas e motivos: o espaço cósmico (cosmosfera) com as estrelas e demais astros, a Terra (geosfera) com o que nela existe, vivo (biosfera) ou sem vida, desde as montanhas ao mar, desde a luz, o ar, a água e o fogo, às plantas (fitosfera), aos animais (Z001fera) e ao homem (antroposfera), com tudo quanto ele sente, pensa, sonh e realiza, com todos os estados-de-coisas que o envolvem ou em que se im lica individualmente ou em grupo e à escala local, regional, nacional ou planetária.

Nada, em suma, do que diga respeito ao mundo, à vida e ao homem é alheio à poesia e tudo quanto se projecte nas regiões mais íntimas e mais fundas do eu do poeta, naquela descida ao «coração da alma» ou às «galerias da alma» de que fala Eugénio de Andrade (Poesia e Prosa, Porto, Limiar, 1980, 390), pode constituir "a base de dados" que ele transforma e transfigura, no "diálogo" de alta selectividade, de qualitativa depuração e de total empenhamento do ser, que ele, por princípio, estabelece com as for­mas da expressão, ao desencadear o acto criador de que nascem os poemas.

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4.2. A FORMA

o "material de construção" utilizado pelos poetas na feitura dos seus poemas é, como já ficou dito, a linguagem verbal concretizada numa dada língua (por exemplo, a língua portuguesa), são as palavras dessa língua. Ora em poesia, como já vimos, as palavras atingem o máximo da sua capaci­dade de significar, ao potenciarem todos os sentidos, valores e sugestões de que são indutoras.

A forma surge-nos, assim, como se fosse a outra face do poema, mas permanece, como já foi referido, inseparável do conteúdo, formando, com ele, um todo indissociável, a partir do momento em que o poeta optou, em concreto, por esse modo de se exprimir.

Se o conteúdo não é complexo, normalmente os poetas recorrem a formas de expressão mais simples. Mas, se o conteúdo consta de temas muito complexos e profundos, o poeta recorre, também, a formas de expressão mais trabalhadas, com outro dimensionamento e outro nível de organização técnico-compositiva e de codificação geral. As referências­-limite para ambas as situações podem buscar-se, simbolicamente e de pólo a pólo, na simples quadra, de um lado, e na epopeia, do outro.

4.2.1. O VERSO: SUA ORGANIZAÇÃO ESTRUTURAL

o "verso" é a unidade rítmico-m~a fundamental sobre que assenta a composição de qualquer poema. De fa~ em sentido rigoroso, não há poesia sem verso, embora nem tudo quanto esteja composto em verso seja poesia.

Qualquer verso resulta da combinação de uma série maior ou menor de sílabas métricas (série essa que tem por base a palavra, inteira ou fraccionada, ou a sequência de palavras) com determinado esquema, regulado ou livre, de organização do ritmo.

A organização rítmica do verso assenta num processo de distribuição e seriação das sonoridades, dos acentos (fortes, menos fortes e fracos), dos compassos, das durações, das frequências, dos intervalos, das cadências, das pausas (cesuras), das componentes melódicas, tímbricas, harmónicas, etc., ao longo da sequência de sílabas métricas que, em número constante ou variável, constituem o verso.

A sua estrutura tanto pode ser uma estrutura regulada, fixa e fechada, constituída por um número bem determinado de sílabas métricas, de acentos e de pausas, como ser uma estrutura livre, fluida, anárquica e aberta, com um esquema métrico muito variável e flexível.

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É esta diferença verificada na estrutura rítmico-métrica do verso que está na origem da distinção entre os dois "modelos" de versificação mais usados pelos poetas, quer separadamente, quer mesmo em originais com­binatórias: um é um modelo mais tradicional ("clássico"), que funciona na base da recorrência e até da imitação reprodutiva, nele predominando as estruturas métricas invariantes e, consequentemente, as molduras poéticas fixas; o outro é um modelo mais moderno, fruto da espontaneidade, da originalidade, da inspiração e da criatividade de cada poeta. Este segundo modelo caracteriza-se pela preponderância das estruturas métricas móveis e fluidas e teve o seu maior desenvolvimento a partir sobretudo do versilibrismo (movimento a favor do uso do "verso livre", isto é, do verso sem delimitações prévias e rígidas) dos poetas simbolistas (fins do séc. XIX, começos do séc. XX), sob a influência e o desenvolvimento da chamada "prosa poética" (poemas em prosa).

Cingindo-nos aos nossos dois maiores poetas de sempre, como exem­plo da realização do primeiro modelo (o "tradicional-clássico" [medida velha" / medida nova]), temos a poesia de Camões; como exemplo da realização de ambos os modelos (o "tradicional-clássico" e o "mo­derno-inovador", inspirado no movimento do "versilibrismo"), mas com claro destaque para o segundo, temos a poesia de Pessoa (ortónimo e heterónimos) .

4.2.2. O VERSO: SUA COMBINATÓRIA E "PARADIGMA" ESTRÓFICO

Na poética portuguesa, os versos Íiiooamentais são o heptassílabo (redondilha [ou arte] maior) e o decassílabo (heróico e sáfico), sendo de uso e frequência variável os versos de cinco (redondilha [ou arte] menor), de três, de quatro, de seis, de onze e de doze ou até mais sílabas métricas (cf. A. Coimbra Martins, artigo «verso», in Jacinto do Prado Coelho (dir.), Dicionário de Literatura, Porto, Figueirinhas, 41992, voI. 4, 1149). Não considerando o caso, muito circunscrito, de manifestação de monossilabis­mo (Vagas, / Plagas, / Fragas / Soltam / Cantos), é o dissz1abo o verso português com menor número de sílabas a integrar a constituição de unidades estróficas isométricas (Tu, ontem, / Na dança, / Que cansa / Voavas). Os outros versos são o trissz1abo, o tetrassl1abo, o pentassl1abo, o hexassl1abo, o octossz1abo, o eneassl1abo, o decassl1abo, o hendecassz1a­bo, o dodecassz1abo (alexandrino), designações todas elas provenientes do grego: mono-, di-, tri-, tetra-, penta-, hexa-, hepta-, octo-, enea-, deca-, endeca-, dodeca-, etc. (cf. Jean Bouffartigue e Anne-Marie Delrieu, Tré­sors des racines grecques, Paris, Éditions Belin, 1982,42-47). O suporte

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verbal de cada verso pode ser, como já foi referido, uma única palavra ou uma sua fracção (com uma ou mais sílabas: Flor ... ; Luar ... ; Serena­mente ... ), ou então uma sequência mais ou menos longa de palavras (canta até te mudares em azul; E o vento dessa palavra é uma expansão da terra). São raros os poemas constituídos por um único verso; a ocorrência mais generalizada, digamos mesmo dominante, é a de os versos se agruparem em conjuntos métricos denominados estrofes, estâncias ou copIas, classifica­das de isométricas ou de heterométricas consoante são constituídas, ou não, por versos com a mesma medida. Os códigos fónico-rítmico e óptico­-métrico do nosso sistema literário comportam um "inventário" estrófico muito rico e diversificado que inclui o monóstico (estrofe de um só verso, como acontece geralmente com certos registos de natureza epigramática ou semelhante), o dístico (ou parelha), o terceto, a quadra, a quintilha, a sextilha, a sétima (septilha), a oitava, a novena, a décima, etc., e que se actualiza em molduras poéticas rígidas marcadas por um forte grau de invariância (sextina, soneto clássico, décima clássica, rondó ... ), em moldu­ras poéticas menos rígidas, caracterizadas por um certo grau de variabili­dade (glosa, vilancete, trioleto, terza rima, balada, canção clássica ... ) e, ainda, em molduras poéticas fluidas (proteiformes) que permitem as mais diversas e originais combinatórias rítmicas, métricas e estróficas. (Ter em conta, a propósito, as oposições isorritmia Vs heterorritmia, isometria Vs heterometria, isostrofismo Vs alostrofismo, etc., em suas manifestações mais "puras" ou mais "híbridas"; cf. Massaud Moisés, Dicionário de Termos Literários, São Paulo, Editora Cultrix, 1992, artigo «Estrofe», 207-211 e Amorim de Carvalho, Tratado de VersijiGaf!!!)_Portuguesa, Coimbra, Almedina, 61991,95-167).

4.2.3. A RIMA

Muito embora possa aparecer também em textos prosásticos (v.g., Aquilino Ribeiro, O Romance da Raposa: «Lá estavam os javalis de ar nada cordial, policial; os papalvos com seu sobretudo de veludo; lobos, lobatos e lobinhos, nédios e anafadinhos»), a rima, além de funcionar como elemento estruturante no desenho fónico-rítmico, melódico-musical, métrico e semântico do verso e como marcador da sua fronteira terminal, é considerada, na tradição literária, como um dos fundamentais traços caracterizadores da poesia Sinal da relevância que lhe é atribuída no âmbito da expressão poética é o próprio facto de ela haver funcionado (à semelhança, aliás, do que se passou com a obra congénere de Petrarca) como sinédoque designadora da Lírica de Camões: Rimas [Rhytmas] (cf.

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Luís de Camões, Rimas, texto estabelecido e prefaciado por Á. J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994). De facto, a rima constitui, no plano fono-grafemático, uma das manifestações do princípio da repetição (cf. supra, 2.4.), assentando na identidade e/ou na semelhança (esta, mais ou menos vincada) dos sons terminais da última palavra de dois ou mais versos, a partir da respectiva vogal tónica final, configurando, assim, uma interacção recorrente e sistemática, de base consonante ou assonante, geradora de múltiplos reenvios intratextuais e outros, a partir dos diferentes pólos isotónicos ou paratónicos, iniciais, mediais e sobretudo terminais, da cadeia métrica e rítmica de cada unidade estrófica (cf. Iuri Lotman, ibidem, 209, ss). O uso do verso branco ou solto, por um lado, e o movimento do versilibrismo com os desenvolvimentos a que deu origem, pelo outro, vieram demonstrar que a rima não é condição necessária para que haja verso, nem condição suficiente para que haja poesia. Na nossa Literatura, com natural destaque para a poesia lírica contemporânea, encontramos poemas da mais alta qualidade artística, dos quais está ausente, ou quase, o fenómeno da rima, pelo menos em sua expressão "canónica".

Em todo o caso, não se pode ficar indiferente perante o peso "arqueo­lógico" que a referida tradição lhe confere. Basta para o efeito pensar na funcionalidade transmissiva e mnemónico-didáctica dos enunciados de natureza aforística e similar (provérbios, adivinhas, lengalengas ... , v.g.: «Em Abril, águas mil»; «Bem canta Marta depois de farta»; «Com latim, rocim e florim andarás mandarim»; «Se queres aprender a orar, entra no mar»; «Guar-te de homem de vila como cão de fila»; «Arrie iro no tarde chora por arrieiro, nanja por cavaleiro»; «Que é que é que vai deitado e vem de pé?»; «Porque palras, pardal pardo?», etc.) e Jla linear simplicidade estrutural e rítmica das mais primitivas e mais gen~s composições do nosso lirismo trovasdoresco ...

Uma abordagem aos aspectos mais técnicos e taxinómicos da rima [consonante/assonante, pobre/rica, masculina/feminina, leonina, empare­lhada/alternadalinterpolada/encadeada, etc.], pelo investimento analítico­-prático e exemplificativo que comporta, não dispensa o recurso a alguns estudos específicos (cf., a propósito e entre outros, os esclarecedores e desenvolvidos artigos de: A. Coimbra Martins in Jacinto do Prado Coelho, op. cit., vol. 3, 937-943; E. Finazzi-Agrõ, in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, op. cit., 576-577; Massaud Moisés, op. cit., 433-446; Bernard Dupriez, op. cit., 401-404; Angelo Marchese e Joaquín Forradellas, op. cit., 350-354; M. H. Abrams, op. cit., 184-187; Henri Morier, op. cit., 914-922; Amorim de Carvalho, op. cit., 77-92).

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5. O «SER» DA POESIA (CONCLUSÃO)

Para concluir esta breve síntese voltada para a preparação da activi­dade didáctica concreta, não deixará de ter cabimento, ainda, uma palavra final sobre o «ser» daquela das duas esferas que continua a constituir decerto (e como ficou já sublinhado) o centro pulsante e iluminante, o coração e o sol, numa palavra, a alma da Literatura, pesem embora a inquestionável relevância e a qualidade atingidas pela prosa literária, designadamente a narrativa de ficção, com o conto, a novela e o romance.

Mas não é fácil dizer desta quase indizível criação humana que a História, desde os seus primórdios, nos vem legando sob a designação de "poesia". Será, pois, na palavra autorizada de um dos maiores poetas e ensaístas deste século, Octavio Paz, que se pode encontrar uma das mais conseguidas tentativas de explicação daquele que é sem dúvida um dos "mistérios" maiores e mais profundos do poder criador do Homem. Escreve, assim, aquele célebre Nobel das Belas Letras (cf. Octavio Paz, O Arco e a Lira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, 15-16):

«A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a actividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio resolvem-se todos os conflitos objectivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiênçia, sentimen­to, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Ideia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, actividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, colectiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!»

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Se a poesia «é» tudo isto ... , como poderá aceitar-se a hipótese de haver quem não goste dela? E, sendo assim, onde é que residirá a causalidade dessa rejeição? Ignorância? Mau gosto? Ou ambas e outras coisas mais, em simultâneo? Será a poesia «matéria» ensinável? E, se o for, qual a peculiar natureza desse «ensinável»? Que métodos (ou contra-métodos ... ), que "técnicas" reclama para se "ensinar" (in-signare)? É possível, ou não, criar condições pedagógicas para que um jovem estudante realize aprendizagens motivadoras e produtivas, sinta prazer e prazer profundo na leitura dum texto poético, na criação dos seus próprios poemas? E se isso for possível, poderá sê-lo fora de uma estratégia de sedução e de uma "atmosfera" de en­cantamento que o enleiem e apaixonem, numa espécie de iniciação "eróti­ca", primigénia e sem pecado, à prática de escutar, de dizer, de ler e de escrever poemas? Poderá alguém apagar da memória da Cultura o valor e o alcance do famoso registo de Platão (República, 606 e) que nos dá o len­dário Homero metonimicamente canonizado pelos seus admiradores como «o educador da Grécia» (cf. Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade, Coim­bra, IEC, 41982, 408 e Werner Jaeger, Paideia, México - Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 21962,30-47 e 48-66) e que legitima uma outra leitura (agora em clave de sinédoque) segundo a qual a poesia, a des­peito das conhecidas restrições daquele filósofo, foi seguramente na Euro­pa como em toda a parte a criação que de entre quantas integram o universo das Belas Artes mais fez avançar o Homem e transformar o mundo e avida?

Que essa «lâmpada miraculosamente intacta» (Eduardo Lourenço, op. cit., 23), preservadora e inspiradora de todas as esperanças, jamais se apague do coração dos homens!

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