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SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 283-296, 2º sem. 2004 283 Resumo O texto pretende refletir sobre as condições de produção de textos literários africanos de autoria feminina, presentes em diversas antologias. Propõe ainda analisar os projetos dessas coletâneas, pro- curando compreender as escolhas efetuadas pelo organizador e os efeitos de sentido que os poemas das escritoras produzem no proje- to literário que ajudam a construir. A discussão salienta que é possí- vel perceber em vários poemas traços específicos do modo como as escritoras, projetando-se no mundo que recriam através das pala- vras, recuperam gestos, falas e sensibilidades de um corpo quase sem- pre condenado ao silêncio e à exclusão. Palavras-chave:Projetos literários africanos; Escrita feminina; Pala- vra poética; Corpo insubmisso. Literatura africana de autoria feminina: estudo de antologias poéticas Maria Nazareth Soares Fonseca * A * Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 1 Trecho extraído do texto de Paulina Chiziane, “Eu, mulher, por uma nova visão do mundo” (1994). literatura produzida por mulheres africanas guarda muitas semelhanças com a publicada em culturas em que a mulher, ainda que já tenha trans- gredido algumas das barreiras que a aprisionavam às funções domésticas, continua à margem, em diferença, definida por muitos dos padrões que a socie- dade legitima. Os detalhes de um lugar mais íntimo, mais velado, submisso por vezes, deliberado em outras, persistem como emblemas de vidas mais reclusas, Comparo a mulher à terra porque ela é o centro da vida. Da mulher emana a força mágica da cria- ção. Ela é o abrigo no período da gestação. É ali- mento no princípio de todas as vidas. Ela é pra- zer, calor, conforto de todos os seres humanos na superfície da terra. (CHIZIANE, 1994, p. 15) 1

Poéticas Femininas Em Antologias Poéticas Africanas

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Literatura africana de autoria feminina: estudo de antologias poéticas

Resumo

Otexto pretende refletir sobre as condições de produção de textosliterários africanos de autoria feminina, presentes em diversas

antologias. Propõe ainda analisar os projetos dessas coletâneas, pro-curando compreender as escolhas efetuadas pelo organizador e osefeitos de sentido que os poemas das escritoras produzem no proje-to literário que ajudam a construir. A discussão salienta que é possí-vel perceber em vários poemas traços específicos do modo como asescritoras, projetando-se no mundo que recriam através das pala-vras, recuperam gestos, falas e sensibilidades de um corpo quase sem-pre condenado ao silêncio e à exclusão.

Palavras-chave: Projetos literários africanos; Escrita feminina; Pala-vra poética; Corpo insubmisso.

Literatura africana de autoria feminina:estudo de antologias poéticas

Maria Nazareth Soares Fonseca*

A

* Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.1 Trecho extraído do texto de Paulina Chiziane, “Eu, mulher, por uma nova visão do mundo” (1994).

literatura produzida por mulheres africanas guarda muitas semelhançascom a publicada em culturas em que a mulher, ainda que já tenha trans-gredido algumas das barreiras que a aprisionavam às funções domésticas,

continua à margem, em diferença, definida por muitos dos padrões que a socie-dade legitima. Os detalhes de um lugar mais íntimo, mais velado, submisso porvezes, deliberado em outras, persistem como emblemas de vidas mais reclusas,

Comparo a mulher à terra porque ela é o centroda vida. Da mulher emana a força mágica da cria-ção. Ela é o abrigo no período da gestação. É ali-mento no princípio de todas as vidas. Ela é pra-zer, calor, conforto de todos os seres humanosna superfície da terra. (CHIZIANE, 1994, p. 15)1

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mesmo quando as atividades do dia-a-dia impõem uma participação intensa da-quela a quem, conforme tradições ainda vivas em África e em tantos outros luga-res do planeta, cabe a tarefa de gerar os filhos, criá-los, educá-los e prepará-lospara a vida.

Não é por acaso que a presença de mulheres na literatura canônica, oficializa-da, é sempre muito reduzida. Razões culturais e políticas explicam, por exemplo,o modesto número de textos literários de autoria feminina nos catálogos da maio-ria das editoras não especializadas em temas ligados ao feminino. Há poucos diasconsultei o catálogo de publicações da Editora Caminho, de Portugal, e pudeconstatar a impressionante predominância de livros de autoria masculina tantocom relação à literatura portuguesa, quanto à africana. Mas essa disparidade en-tre o número de autores e autoras não é muito diferente nos catálogos das gran-des editoras brasileiras. Basta que consideremos, por exemplo, os lançamentosindicados pelo suplemento “Mais!” do jornal Folha de S. Paulo ou que observe-mos os estandes da seção de literatura nacional e estrangeira de uma grande livra-ria, para notar a grande disparidade.

Em África muitos fatores podem explicar a chegada tardia das mulheres à li-teratura: a dificuldade de acesso à instrução, as tradições seculares que delegam àmulher as funções relacionadas com a maternidade e com a criação da prole e,certamente, os critérios de seleção utilizados pelos editores. Os depoimentos deescritoras africanas e latino-americanas presentes no Seminário sobre a situaçãoda mulher escritora em África e na América Latina, realizado em Lisboa, em1998, ressaltam as complexas formas de eleição das escritoras e de sua aceitaçãopelo sistema de circulação dos textos escritos por elas. As escritoras deixaramclaro, no evento, que a publicação do livro pode não significar a aceitação da es-critora pelos critérios de valoração adotados pela crítica ou indicar que o livro es-teja ajudando a construir uma forma particular de experiência que se distanciedos valores legitimados por sociedades que ainda se regem por formas explícitasou camufladas de separação entre o espaço das mulheres e o dos homens. As es-critoras africanas presentes ao encontro apontaram a dificuldade de uma mulher,em África, conseguir transgredir, sem grandes sacrifícios, os lugares determina-dos pela cultura, mesmo considerando as alterações significativas presentes noscentros urbanos nos quais as barreiras ainda fortes nas zonas rurais mostrem-semais porosas. A separação de lugares é uma norma vigente na maioria das cultu-ras, mesmo naquelas em que as mulheres representem o maior número em deter-minados espaços físico-sociais e em algumas profissões. A amostragem ofereci-da pelos catálogos de editoras e também por coletâneas literárias indica que a se-leção de textos e de autores pode ser um indicativo considerável do lugar ocupa-do pelas escritoras na sociedade ou pelo menos aludir ao modo como a produção

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literária de autoria feminina consegue se ajustar aos critérios que regem a organi-zação do volume.

No texto “Bordejando a margem: escrita feminina, cânone africano e encena-ção da diferença”, Laura Padilha investiga “o papel das mulheres na formação docânone poético africano” (2004, p. 11) e observa algumas antologias poéticas co-mo a No reino de Caliban, antologia, organizada por Manuel Ferreira e publica-da, em três volumes, nos anos de 1975, 1976 e 1994, respectivamente; a famosaAntologia temática de poesia africana, organizada por Francisco José Tenreiroe Mário Pinto de Andrade, cujos volumes I e II vieram a público nos anos de1975 e 1976 e os dois volumes das Antologias de poesia da Casa dos Estudantesdo Império – 1951/1963 editados pela Associação Casa dos Estudantes do Im-pério (ACEI) e publicados em 1994.

Não é de se estranhar que a presença de escritoras nessas publicações seja tãoreduzida. A época em que foram organizadas as antologias diz muito do lugarocupado pelas escritoras e, certamente, de critérios de seleção que justificam aspoucas mulheres nelas presentes. Se tomarmos como exemplo os volumes de Noreino de Caliban, vamos notar que, no primeiro volume dedicado à poesia pro-duzida em Cabo Verde e Guiné-Bissau, publicado em 1975, aparecem somentepoemas escritos pela cabo-verdiana Yolanda Morazzo que, no momento da orga-nização da antologia, não tinha ainda livros publicados,2 embora participasse doGrupo do Suplemento Cultural e colaborasse com vários periódicos da impren-sa cabo-verdiana. No volume II, que recolhe poemas de escritores pertencentesa diferentes fases da literatura produzida em Angola e São Tomé, destacam-se osnomes das escritoras são-tomenses Alda do Espírito Santo – que também apare-ce na antologia Poesia negra de expressão portuguesa (1953), organizada porMário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro – e Maria Manuela Margaridoque, à altura do lançamento do volume da antologia, em 1976, já tinha publicadoo livro Alto como o silêncio (1957). Entre as escritoras angolanas escolhidaspara representar as diferentes fases da poesia produzida no país, destacam-se Er-melinda Pereira Xavier, Lília da Fonseca, nome literário de Maria Lígia Valente daFonseca Severino, que já havia publicado romances e literatura infantil, Alda Lara,a mais conhecida – que já contava com o livro Poemas publicado em 1966 pelaEditora Imbondeiro, de Angola, e Tempo de chuva, de 1973. Além dessas três,Maria Eugênia Lima e Manuela de Abreu. No volume de recolha de escritores deMoçambique, destacam-se apenas dois nomes de mulheres escritoras: o da em-blemática Noémia de Souza e o de Maria Manuela de Souza Lobo.

2 Seu livro Cântico de ferro: poesia de intervenção foi publicado em Portugal, em 1976.

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Nas Antologias de poesia da Casa dos Estudantes do Império – 1951/1963,destacam-se, no volume dedicado a Angola e a São Tomé e Príncipe, os nomesdas angolanas Alda Lara, Ermelinda Xavier, Lília da Fonseca e os das são-tomen-ses Alda do Espírito Santo e Maria Manuela Margarido. No volume dedicado àprodução poética de escritores de Moçambique, Noémia de Souza aparece tam-bém sob o pseudônimo literário de Vera Micaia. Além da destacada poeta, cujonome estará para sempre ligado às letras moçambicanas, pois, embora tenha es-crito efetivamente apenas durante três anos, incendiou, como afirma Nelson Saúte(2001, p. 12), “o rastilho da poesia que reivindicava a personalidade dos oprimi-dos”, destacam-se os nomes de Ana Pereira do Nascimento, Anunciação Pru-dente, Glória de Sant’Ana, Irene Gil e Marília Santos. Como se pode observar, onúmero de mulheres acolhidas pelas antologias reflete, com certeza, o lugar queelas ocupam em sociedades que, não muito diferentes da brasileira, delegam àsmulheres a função de procriar, cuidar dos filhos e da família.

A “essência” feminina que, em diferentes culturas, é simbolicamente cons-truída a partir de expressões do corpo da mulher – a menstruação, a gestação, oaleitamento – não deixa de ser celebrada em muitos poemas produzidos pelas es-critoras presentes nas antologias e as ilustrações em várias delas celebram a mu-lher grávida, a mulher-mãe, mulher com o filho no colo. Como bem observaLaura Padilha (2004), as antologias sacralizam a mulher africana, vendo-a como“um laboratório sagrado onde se processa a permanência dos ancestrais” (p. 14).Por isso, não é de se estranhar que a mulher-mãe seja assumida como alegoria noprojeto de afirmação da identidade africana, pois ela personifica a força da terra,a tenacidade para enfrentar os obstáculos e, principalmente, a capacidade de ge-rar o novo homem, livre das amarras da servidão.

Se observarmos da antologia Poesia negra de expressão portuguesa (1953),organizada por Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade, os poemas es-critos por mulheres, podemos dizer que neles aparece a celebração de motivosregionais, como em “Lá no Água Grande” (p. 58), de Alda do Espírito Santo; aobservação de transformações que se mostram nos que “voltam das minas doRand”,3 e a conclamação para uma luta que enfrenta as “revoltas, dores, humilha-ções” estão nos poemas de Noémia de Souza. A figura mulher, embora se expo-nha tímida no número de poemas selecionados, fortalece-se na proposta da anto-logia de “busca da identidade étnica” e na ilustração da capa, criada por AntónioDomingues, repetida em várias páginas do volume. Na vinheta, a celebração dafertilidade, da grande força que faz da mulher terra propícia à germinação das se-

3 Trecho extraído do texto de apresentação escrito por Mário de Andrade para a Antologia temáticade poesia africana (p. 51).

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mentes do amanhã, pode ser identificada no destaque dado à mulher-mãe e aoolhar firme dirigido para o futuro. O corpo-terra desenhado pelo projeto da an-tologia está visível na ilustração, mas a voz da mulher-poeta, no volume, só podeser ouvida integrada ao compromisso com “um novo humanismo à escala univer-sal”, a se considerarem as palavras de Mário de Andrade no texto introdutório(1975, p. 52). Por essa razão ressoam nos poemas da antologia a força da poesianegro-africana e a “expressão subjetiva e objetiva da negritude” (p. 50) que con-cretizam as formas como a literatura procura preencher o vazio provocado pelo“desenraizamento de comunidades e parentescos” (BHABHA, 1998, p. 199).Os poemas, ao se apropriarem de alegorias e metáforas que ressaltam a força daterra, delineiam um espaço em que se gesta o ideal de congraçamento que concla-ma o povo à luta, como no verso de Noémia de Souza: “— Oh deixa passar omeu povo”. O corpo celebrado, ao expor os significantes da fertilidade, deixa emsombra outros traços do feminino, particularmente os que se referem à sua ex-pressão mais íntima.

Nos poemas escritos por essas poetas africanas, nas várias antologias estuda-das por Laura Padilha e também na publicada em 1953, quase sempre a intimida-de do corpo e dos afetos cede lugar à expressão do comprometimento com a cau-sa social que defendem. O corpo se cala em seus desejos mais íntimos para queuma voz coletiva possa ressoar com a ajuda dos símbolos que esse corpo ajuda afortalecer.

Em um texto publicado em 2000,4 procurei ressaltar que uma feição literáriado processo de (re)construção da identidade africana apropriou-se de imagensligadas ao corpo feminino para fortalecer a simbologia da Terra-mãe-África e res-significar os seus contornos como impulso ao delineamento de um novo espaçoa ser conquistado. A estudiosa Inocência Mata (1994) referenda essa observaçãoquando salienta que as construções ideológicas veiculadas pela literatura de fei-ção revolucionária anunciam um projeto de ocupação dos espaços legitimados.Esculpida por significantes que elaboram uma dimensão épica da figura feminina –vista como um corpo fecundante ou como promessa de um futuro de liberdade – arepresentação da mulher recompõe imagens que acabam por relacionar o femini-no com funções delegadas pela tradição, ainda que os poemas sejam escritos pormulheres que também transitavam por espaços em que circulam outras tradições:a escrita e a literatura. É pertinente observar que a figura de mulher que transitapelos versos das escritoras conclamadas para comporem as diferentes coletâneasé posta, por isso, num espaço em que várias tensões se produzem. A escrita lite-

4 Refiro-me ao texto “O corpo feminino da nação”, publicado na revista Scripta, v. 3, n. 6, 2000, deque resgato, com alterações, algumas idéias.

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rária que focaliza a mulher africana – a mãe que vê os filhos consumidos pelo tra-balho forçado, pelas minas do Rand, pela crueldade da opressão, a “irmã” que secompadece dos sofrimentos das “moças do cais”, da “mulher do mato”, daqueleque perde os seus filhos na engrenagem de exploração das forças do corpo – é umexercício praticado por mulheres que, de alguma forma, transgrediram a tradi-ção. Não por acaso, por isso, serem tão poucas a figurarem nas antologias referi-das. Não por acaso também essas mulheres, para serem aceitas por um cânonepredominantemente masculino e masculinizado, assumirem as figurações cultu-rais que fertilizam a terra com o húmus vivificante do corpo da mulher-mãe, daesposa, da irmã ou abnegada companheira. É essa mulher, personificada na forçaque sustenta a esperança no amanhã, que é cantada pela maioria dos poemas defeição revolucionária escritos por mulheres. Mas esse canto é entoado por mu-lheres transgressoras, por escritoras que se empenharam na construção de versose da liberdade desejada.

Porque escritos em tensão, é possível reconhecer em seus poemas alguns tra-ços específicos do modo como as escritoras presentes nas diferentes antologiasprojetam-se no mundo que recriam através das palavras. Em alguns poemas, aação de tecer o texto não desconhece os gestos da mão que molda o barro, prepa-ra os alimentos ou trabalha com cores, gostos e cheiros tão próprios de ativida-des exercidas pelas mulheres.

No volume I das Antologias de poesia da Casa dos Estudantes do Império,dedicado à produção poética de Angola e de São Tomé e Príncipe, no poema “Re-gresso”, da angolana Alda Lara, a terra africana é pintada com palavras e expres-sões que ressaltam as cores vivas e os odores fortes de uma paisagem singular.Nesse poema, a voz feminina não está registrada com marcas lingüísticas, embo-ra o olhar que apreende as paisagens africanas, ao destacar o excesso de cores dascasuarinas, das acácias rubras e dos cheiros exalados pelo “húmus vivificante”,caracterize um lugar em que o feminino se expande. Os sentidos privilegiadospropiciam recortar na terra africana os atributos que fazem dela um lugar paradi-síaco, onde é possível viver o “prazer sem lei” expandido em excesso. A simbolo-gia da mãe-África se expõe, assim, em exuberância de cor e de calor e com umamagia de sons. O corpo se recompõe com as lembranças da terra aquecida porum sol “esplendoroso e quente”. No poema “Presença”, os laços que ligam o cor-po da mulher à terra fortalecem os aspectos que fazem de Angola metonímia docontinente africano, identificado por “coqueiros de cabeleiras verdes/ e corposarrojados sobre o azul”. O corpo de mulher, literariamente construído (“E ape-sar de tudo/ ainda sou a mesma!/ Livre e esguia”), ao se realçar com os atributosda terra africana, intensifica a feminização do ideal a ser conquistado. A terra do“dendém”, “das palmeiras”, das “acácias rubras” reforça os atributos próprios da

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mãe (“mãe forte da floresta e do deserto”), da irmã (“ainda sou/a irmã-mulher”),mas, como se afirmou em outro momento (FONSECA, 2000, p. 234), silenciaas expressões mais íntimas de um corpo que tem os seus próprios desejos. As-sim, os versos de Alda Lara, ao cantar o amor pelos irmãos miseráveis ou a belezada terra explorada, cedem espaço a emoções que entrelaçam o intimismo do olharsobre o próprio corpo, tão característico da literatura de autoria feminina, e sevalem de referências importantes para o projeto de ressignificação da África paraos africanos.

Na mesma antologia, em poemas criados por Alda do Espírito Santo, de SãoTomé e Príncipe, a figuração da terra também está presente em cenas que resga-tam a alegria de viver as ações triviais do dia-a-dia. O olhar feminino capta a ale-gria das mulheres que “cantam e riem em riso de mofa” enquanto lavam a roupae velam pelo sono das crianças. No poema “Angolares”, pinta-se um quadro emque a pobreza triste dos representantes dessa etnia é sugerida pela referência àscubatas em meio às palmeiras e pelo sofrimento dos homens que se aventuramno mar em canoas frágeis, em “barquinhos de fome”.

Com freqüência identificam-se nos poemas resquícios do que Luiza Lobo(2002) nomeia de “emparedamento”, aspecto típico de uma poesia construídapor um discurso lírico pessoal fechado (p. 109). Mas, ao mesmo tempo, esse“emparedamento” pode ser compreendido, em muitos dos poemas das antolo-gias enfocadas, como marcas de um lugar em que o feminino consegue se mos-trar por outras imagens e assim se afastar da expressão guerreira que caracterizaa maioria dos poemas. O deslocamento propicia imagens de lugares em que amulher se dedica às atividades que lhe são delegadas pela cultura, e delineia umlocus de preservação de traços de identidades étnicas, ainda que a decisão maisevidente seja a de (re)construir uma identidade africana que não exclua as pecua-liaridades locais. Sendo a literatura, na época de publicação das antologias em re-ferência, um espaço predominantemente masculino, povoar os textos com senti-mentos e gestos mais próximos da mulher é também uma forma de ocupação delugares no terreno difícil da escrita literária.

Por outro lado, vários poemas da moçambicana Noémia de Souza trazem for-tes marcas de um mundo mais urbano, distante das tradições rurais, ainda queneles seja possível encontrar sinais das transgressões que incitaram as mulheresescritoras africanas, da época, a se envolverem em um projeto político e atravésdele, se aproximarem das mulheres do povo, daquelas que carregam o mundo nacabeça e os filhos às costas ou no ventre. O projeto político a que as mulheres es-critoras se ligam, tendo como meta minimizar o sofrimento do povo e fortalecero sentimento de pertença a uma terra de encantos inusitados, permite os arrou-bos que a visão da mulher destaca sobremaneira. Por isso, ao mesmo tempo em

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que o envolvimento num projeto político desvia os escritores de um lirismo sub-jetivo, o tom intimista fortalece por vezes expressões que funcionam como con-traponto à palavra de ordem.

Nesse sentido, podemos identificar, nos poemas de Noémia de Sousa selecio-nados pelos organizadores das Antologias de poesia da Casa dos Estudantes doImpério – 1951-1963, diferentes expressões da literatura de compromisso per-meada por um olhar intimista. Tal contraponto pode estar, por exemplo, no “Poe-ma da infância distante”, em que a infância é recordada como um tempo de felici-dade. A memória recorta detalhes de uma bela casa ensolarada à beira-mar e oscontrapõe ao estigma da colonização.O sujeito lírico revela-se feminino (“dia adia mais insatisfeita”) e expressa a esperança de que as “felicidades e aventurainesquecíveis”, vividas com “heterogéneos companheiros de infância”, possamser vividas em outro tempo. Em “Moças das docas”, a exclusão social é denuncia-da e as mazelas do regime de opressão são recortadas com maior intensidade. Osujeito coletivo, as moças das docas, ressalta a penúria dos bairros pobres e sali-enta a vampirização efetuada pelos “homens loiros e tatuados de portos distan-tes”, agentes de um sistema perverso que marca com “feridas incuráveis” os cor-pos das “fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço”. Ao assumir uma estra-tégia discursiva que legitima uma voz coletiva, um sujeito plural, o poema trans-gride o modelo de expressão de uma subjetividade individual, mas também rasu-ra o discurso da dor e do sofrimento característica de expressões de um ideáriotipicamente romântico. A construção de uma voz coletiva é uma estratégia efi-caz que aproxima a poeta das mulheres exploradas por um sistema desumano.Esse mesmo recurso, em vários poemas de Noémia de Souza, mostra prostitutase magaíças como vítimas de um mesmo processo de exploração, como metoní-mias do sistema de opressão que a poeta condena. Ao trazê-los para os seus poe-mas, esta reforça o projeto político a que se filia quer como ativa militante, quercomo criadora de poemas que, circulando em folhas esparsas, semeiam a rebel-dia. Todavia, a adesão às causas coletivas não consegue dar voz aos anseios pró-prios de um segmento também marginalizado e submisso, o das mulheres. Porisso, repetimos, é natural que sejam tão poucas as escritoras a figurarem nas anto-logias selecionadas, embora a voz feminina, no espaço da literatura, concretizeuma transgressão aos modos como o feminino circula em suas culturas. Afastan-do-se das ocupações tradicionais e assumindo a função de poetas, deslocam-sede espaços demarcados e de alegorias aprisionadoras.

Ainda que possam ser identificadas, nos poemas de Alda Lara, Alda do Espíri-to Santo e Noémia de Souza, as funções próprias da mulher – a gestação, a mater-nidade – e se focalizem as ações das mulheres para descobrir alimentos para os fi-lhos e reinventar a vida, também se escuta a voz da mulher sonhadora, daquela

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que se emociona com o sofrimento do povo, com o espetáculo da paisagem exu-berante ou com o burburinho das ruas e os ritmos frenéticos das festas. Atravésdessas transgressões, a voz feminina que se anuncia nos poemas das três escrito-ras eleitas por este texto, quando lê as antologias até agora mencionadas – AldaLara, de Angola, Alda do Espírito Santo, de São Tomé e Príncipe, e Noémia deSouza, de Moçambique –, ainda que identificada com os gritos por justiça, deixaentrever um corpo que tem suas próprias emoções. De algum modo, em seuspoemas, o corpo feminino desloca-se das intenções veiculadas por um discursopoético que silencia as manifestações próprias à feminilidade, embora continue abordejar as margens da escrita feminina, pactuando, como acentua Padilha, comsilêncios e vazios. As intensas contradições percebidas nos textos das escritorascomprometidas com uma poética guerreira dizem bem do lugar desconfortávelde que falam. Entretanto, é somente nesse lugar que podem acolher as vozes dosexcluídos com os quais, ainda que em situação de privilégio, guardam fortes seme-lhanças. Esse lugar incômodo funciona de certa forma como um ritual de passa-gem para outras travessias, como veremos a seguir.

Passemos para momentos em que a voz feminina se deixa ouvir se afastando,de algum modo, do compromisso com um projeto de luta. Como vimos, as de-mandas da construção literária desse projeto deixaram mais silenciadas as pulsa-ções do corpo feminino, escondido sob o manto do ideal a ser conquistado ecomprometido com uma causa coletiva. A linguagem do corpo feminino podeser percebida, de forma mais explícita, na produção literária escrita por mulheresafricanas de diferentes países nos dias atuais. Assim como nos limitamos a inves-tigar a produção de três escritoras africanas que participaram de recolhas feitasna fase pré-independência, vamos nos ater a escritoras que aparecem em três an-tologias publicadas no pós-independência. Na mais antiga, a Antologia de jovenspoetas angolanos, No caminho doloroso das coisas, lançada em 1988, são regis-tradas produções de: Ana Paula Tavares, Doriana, pseudônimo de Ana FranciscaSilva Major, e Ana de Santana.

Das três, Ana Paula Tavares é, talvez, a mais conhecida dos estudiosos de lite-raturas africanas de língua portuguesa, e tem já lançados os livros, Ritos de pas-sagem (UEA, 1985), O Lago da Lua, Dizes-me coisas amargas como os frutose Ex-votos, publicados pela Editora Caminho, em Lisboa, nos anos 1999, 2001 e2003, respectivamente. Nos poemas publicados na Antologia No caminho do-loroso das coisas observa-se uma transgressão significativa dos modos enuncia-tivos cultivados na fase da poesia de combate. A palavra poética permite que seouça a voz da mulher, muitas vezes anunciando-se em lugares em que tradiçãoancestral ainda é a lei que deve ser seguida. Mas a manifestação poética, ao mes-mo tempo em que alude a essas tradições, constrói efeitos de sentidos em que

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afloram as tensões criadas pelas inter-relações entre costumes próprios do espa-ço da voz e dos gestos e as ordens da escrita que se produz numa disjunção queidentifica “ao traçado material da mão o traçado de sua própria significação (RAN-CIÈRE, 1995, p. 97). No poema “A rapariga” (p. 22), os costumes ancestraisconvivem com a expressão de um sujeito lírico que diz de seus próprios anseios:

Dos meus ancestrais ficou-me a paciênciaO sono profundo do deserto.

A falta de limite...Da mistura do boi e da árvore

a efervescênciao desejoa intranqüilidadea proximidade

do mar.

Em outro poema, “A abóbora menina” (p. 23), a poeta permite que o femini-no se exponha no poema, valorizando os elos culturais que entrelaçam a terra eos seus frutos aos atributos da mulher:

Tão gentil de distante, tão macia aos olhosvacunda, gordinha

de segredos bem escondidosestende-se à distância

procurando ser terraquem sabe possa

acontecer o milagre:folhinhas verdesflor amarelaventre redondo

depois é só esperarnela desaguam todos os rapazes.

Fica evidente, neste poema, o fortalecimento de uma voz que observa as seme-lhanças entre o fruto e um corpo de mulher que se modela aos apelos da sexuali-dade. A abóbora, metonímia da mulher, desabrocha seus atributos – “folhinhasverdes/ flor amarela/ ventre redondo”, reforçando os elos com o corpo da meni-na que se revela mulher. Nesse sentido, as referências às “folhinhas verdes”, à“flor amarela” e ao “ventre redondo” podem ser entendidos como uma aproxi-mação entre a beleza/força da abóbora e o corpo púbere. Tocados pelo “milagre”da vida um e outro passam a atrair os olhares. É interessante observar no poemao deslocamento que fica claro nos últimos versos. Ao se constituírem como umaprovável conseqüência do desenvolvimento da abóbora (menina?), os versos valo-rizam a fertilidade que está na planta e também na menina cujo corpo desabrocha.

As tradições ancestrais, nos poemas de Paula Tavares coletados pela antolo-

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Literatura africana de autoria feminina: estudo de antologias poéticas

gia, são uma forte fonte de inspiração, embora o trabalho intenso com a forma ecom a linguagem revele a preocupação da geração de poetas do pós-independên-cia de fertilizar a criação poética com outras motivações mais atentas à constru-ção do texto literário.

Mesmo quando o olhar da poeta procura reler as tradições ancestrais ou ques-tões que explicitam a penúria de um contexto social ainda marcada por intensasguerras, as emoções vividas na atenção aos deveres e ao universo feminino mar-cam os versos de um poema em que a terra se manifesta. A palavra poética tececomo um bordado, costura, cerzido: “A vida bordou surpresas em ponto agrilhão/Tecias auroras cerzidas”, como se mostra nos primeiros versos do poema “Cos-turas” de Ana Francisca Silva Major. Nos poemas de Ana de Santana o significan-te mulher é acentuado para acentuar a preocupação da mulher com o seu própriocorpo e com seus sentimentos. É pela voz da mulher que a escrita poética se fazpele de um outro corpo, um corpo que pulsa, que emite seus próprios ruídos. Opoema “Canção para uma mulher” revela o universo da mulher definido nos com-promissos com os filhos e com as tarefas do dia-a-dia: o semear, o colher. A fecun-dação do ventre e a germinação da semente são expressões de um mesmo destinode espera, de resignação, de desencontros entre a ternura que brota desses gestose a determinação de leis e de costumes.

Na Antologia da nova poesia moçambicana há somente a exposição de duaspoetas. Noémia de Souza, com um poema escrito, em 1987, em homenagem aSamora Machel no qual ainda persistem as palavras de ordem características degrande parte de seus poemas escritos até 1951, quando saindo de Moçambique,deixou de escrever poesia. A homenagem ao líder político faz-se pela voz de mu-lheres que lamentam a morte do “filho maior”. É com um coro de vozes femini-nas que a poeta reitera a imagem de uma nação cujos valores a serem preservadosse mostram, com freqüência, identificados com a figura feminina. As imagens danação se detalham com os contornos da mamana e identificam-se com as feiçõesda mãe, da geradora. No poema de Noémia de Souza, presente nessa antologia,as mulheres que choram o “filho” morto são essas guardiãs solenes que geram osfilhos, pranteiam a sua morte, mas continuam a tecer a vida com as dificuldadesdo cotidiano.

Nas criações poéticas de Clodilde Silva vislumbram-se manifestações do cor-po feminino desobrigadas de uma relação mais próxima com o social. No poema“Desafio aos dogmas”, evidencia-se o desejo da mulher de viver a sua sexualidade:

Ainda te ergo – AmorNo meu estro sem idadeE dissolvo dogmasNesta doçura de meus lábiosSobre o teu cabelo.

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Essa linguagem mais próxima das palpitações do corpo e de seus impulsos po-de ser percebida também em alguns poemas escritos por mulheres na Antologiados novíssimos poetas cabo-verdianos, Mirabilis de veias ao sol, na qual, comonas outras coletâneas de poemas referidas, as mulheres são ainda vozes solitárias.

Em poemas de Alzira Cabral, de Arcília Barreto, de Dina Salústio, de VeraDuarte, o amor aparece delineado às vezes como sofrimento e a solidão da mu-lher é sintoma reiterado:

(...)é porque não sei (incrível !...)se saberiadescrever-te com palavrasos contornos do meu amor.(Silêncio, Alzira Cabral)

E chega o momentoEm que faltam forçasAo ventre maduroDe quem só quisSentir a vidaSem se mentir(“Sentir a vida” de Arcília Barreto)

Éramos eu e tuDentro de mim.Centenas de fantasmas compunham o espetáculoE o medoTodo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.(“Apanhar é ruim demais” de Dina Salústio)

Em todos os fragmentos é possível notar que o eu enunciador se forja numuniverso feminino ainda talhado em medos e solidões, mas no qual aflora umasubjetividade que se expressa mais próxima das emoções sentidas.

Por outro lado, em alguns dos “Exercícios poéticos”, de Vera Duarte (1991),pode-se perceber uma reflexão sobre a situação da mulher e a revelação de umaconsciência profunda de lugares ainda rigidamente instalados:

E dentro de mim, censuradas, sucedem-me, minuto a minuto, as imagens interditas eas sensações proibidas.Sublimar é a palavra d’ordem. O amor e a paixão a libido e o prazer. No altar dos va-lores supremos. Sublimar aqui e agora e manter estóica e estupidamente secretos osdiálogos que comigo mantenho contigo. (p. 518)

Faz-se pertinente, portanto, ao se refletir sobre as construções literárias deautoria feminina, presentes em diferentes coletâneas publicadas em épocas signi-ficativas da história dos vários países, observar os diferentes recursos de que sevalem as escritoras para, ainda que no espaço específico da literatura, operarem

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Literatura africana de autoria feminina: estudo de antologias poéticas

Résumé

Ce texte prétend réfléchir sur les conditions de production de tex-tes littéraires africains écrits par des femmes et qui figurent dans

plusieurs anthologies. On propose encore d’analyser les projets deces recueils afin de comprendre les choix de leurs éditeurs et les senscréés par ces femmes écrivains dans le projet littéraire qu’elles aidentà construire. Dans leurs poèmes on peut percevoir une manière par-ticulière de récupérer les gestes, les paroles et la sensibilité propred’un corps souvent condamné au silence et à l’exclusion.

Mots-clé: Projets littéraires africains; Écriture féminine; Mot poéti-que; Corps insoumis.

diálogos com outros lugares em que as mulheres se ocupam de atividades quetêm relação íntima com o ato de escrever. O traçado da mão, na folha de papel,em muitos textos escritos por mulheres africanas, quer-se próprio dos gestosque modelam o barro, tecem artes com fios e flores ou embalam os filhos, prepa-rando-os para a vida. Rancière observa que a escrita sempre escreve uma relaçãoda ordem dos corpos e das palavras. Nos poemas de autoria feminina, publicadosnas diferentes antologias de que trata este texto é possível perscrutar – mesmoquando os poemas cantam as penúrias que justificam a luta pela liberdade – os lu-gares em que a mulher se manifesta em cantos e danças que “dão alegria e cor aosrituais e às funções do dia-a-dia” (CHIZIANE, 1994, p. 15).

Pode-se dizer, finalmente, que passada a urgência das lutas revolucionárias, amulher escritora, nos países africanos de língua portuguesa, vai-se deslocandodos projetos que a esvaziam de si mesma para assumir uma escrita que deixa es-paço para a expressão da intimidade do eu, para a escuta de sugestões mais com-prometidas com o universo de mulheres que, ainda silenciadas por fortes tradi-ções, motivam a escrita de textos que transitam no espaço da literatura, procu-rando não se fechar às inter-relações com outros campos em que o corpo dese-nha diferentes coreografias, ainda quando só pode ser observado no desempe-nho de obrigações cotidianas. A literatura pode, certamente, distender esses espa-ços e traduzir os significados que o corpo deixa impresso nessas obrigações.

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