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Política urbana e patrimônio histórico-cultural: o centro e o pericentro no Rio de Janeiro Evelyn Furquim Werneck Lima 1 , PPGAC/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, [email protected]. Leonardo Marques de Mesentier 2 , UFF/IPHAN, [email protected] . 1 Pesquisador 1-C do CNPq Professor titular do PPGAC/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Coordenadora do Projeto CNPq: Estudos de áreas históricas_Espaço e Memória. 2 P- Arquiteto do Centro Lucio Costa–IPHAN/UNESCO, Professor do PEP/IPHAN; Professor adjunto da EAU e PPGAU/UFF:

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Políticaurbanaepatrimôniohistórico-cultural:ocentroeopericentronoRiodeJaneiro

EvelynFurquimWerneckLima1,PPGAC/UniversidadeFederaldoEstadodoRiodeJaneiro,[email protected].

LeonardoMarquesdeMesentier2,UFF/IPHAN,[email protected]

.

1Pesquisador1-CdoCNPqProfessortitulardoPPGAC/UniversidadeFederaldoEstadodoRiodeJaneiro,CoordenadoradoProjetoCNPq:Estudosdeáreashistóricas_EspaçoeMemória.2P-ArquitetodoCentroLucioCosta–IPHAN/UNESCO,ProfessordoPEP/IPHAN;ProfessoradjuntodaEAUePPGAU/UFF:

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RESUMO

Este artigo busca contribuir para a discussão da integração necessária entre as políticas deplanejamento urbano e as políticas de preservação do patrimônio cultural, no âmbito da dasintervençõesembairrosperiféricosàárea centraldoRiode Janeiro.Partedessaárea integraa zonainscritanalistadoPatrimônioMundialpelaUNESCO,comoPaisagemCulturalUrbana.Apartirdeumaperspectivateórica,identificam-seasconsequênciasdadinâmicaintraurbanadocentroedopericentrodo Rio de Janeiro para o tecido social que se formou associado ao ambiente construído de valorpatrimonialequemereceterpreservadaasuaidentidadecultural.

PalavrasChave:dinâmicasurbanas;patrimôniocultural;áreaspericentrais;identidadecultural,RiodeJaneiro.

ABSTRACT

Inthisarticle,weaimtodiscussthenecessaryintegrationbetweenurbanplanningpoliciesandpoliciesofheritagepreservationconcerninginterventionsintheperipheraldistrictstothecentralareaofRiodeJaneiro. Part of this area is already listed in the United Nations Educational, Scientific and CulturalOrganization(UNESCO)WorldHeritageListasUrbanCulturalLandscape.Departingfromatheoreticalapproach,we identifiedtheconsequencesof theurbandynamics in thecentreandperipheralcentreregardingthesocialtissueoftheseareas,whichshouldmaintainitsculturalidentity.

Keywords:urbandynamics;culturalheritage;peripheralareas;culturalidentity;RiodeJaneiro

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POLÍTICAURBANAEPATRIMÔNIOHISTÓRICO-CULTURAL:OCENTROEOPERICENTRONORIODEJANEIRO

Na contemporaneidade, as grandes cidades vêm passando por complexos processos dereestruturação urbana; e a relação da política urbana, com a política de preservação dopatrimôniohistórico-cultural temganhado relevo.NocasodacidadedoRiode Janeiro,desdeaassinaturadoPlanoDiretorde1992edoEstatutodaCidadede2001,nãosedeveproporaçõesdeintervenções urbanísticas sem considerar previamente os bens de valor cultural que devem serpreservados.

Faceaessaconjuntura,esteartigobuscacontribuirparaacompreensãosobreaintegraçãodessaspolíticas, no âmbito da abordagem de intervenções em áreas mais antigas, analisando a áreacentraldoRiodeJaneiro.PartedessaáreaintegraazonainscritanalistadoPatrimônioMundialpela UNESCO em 2012 como Paisagem Cultural Urbana, e ainda um trecho do que foiconsideradocomoaZonadeAmortecimento,associadaaessainscrição.

Nesteestudodelimitou-seaáreaaserinvestigadaabrangendoaregiãodefinidapelaPrefeituradaCidade do Rio de Janeiro como o Centro do Rio de Janeiro e que coincide com os limites da IIRegiãoAdministrativa(RA)1domunicípio.Oterritóriode5,72km²(572hectares) integraaÁreadePlanejamento1, juntamentecomosbairrosquecompõemaIRA:Portuária(Saúde,Gamboa,SantoCristoeCaju), IIIRARioComprido(Catumbi,RioComprido,CidadeNovaeEstácio),VIIRASãoCristóvão(SãoCristóvão,Mangueira,BenficaeVascodaGama),XXIIlhadePaquetá(Paquetá)eXXIIISantaTeresa(SantaTeresa).

Tendo selecionado a essa área como referência histórico-concreta e como estudo de caso dapesquisa,primeiramenteabordou-seoprocessohistóricodeformaçãodotecidourbanodaáreacentral e do pericentro na cidade em análise, para, posteriormente, buscar-se reconhecer, nocontexto da contemporaneidade e a partir de uma perspectiva teórica, as consequências dadinâmica intraurbana do centro e do pericentro para o tecido social associado ao ambienteconstruídodevalorpatrimonial.

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Dentrodoconjuntodeobjetosdeestudoassociadosàtemáticadarelaçãodapolíticaurbanacomapolíticadepreservaçãodopatrimôniohistórico-cultural,aanálisefeitanesteartigoaponta,porum lado, para as relações e as transformações nas áreas centrais, face à restruturação daeconomia, bem como das relações entre economia e território; e, por outro lado, para osproblemas da relação do tecido social com a memória urbana, frente a esse processo detransformação.

Noâmbitodainvestigação,oenfoquenarelaçãoentreapolíticaurbanaepolíticadepatrimônio,bemcomoopapeldosvínculosorgânicosentreotecidosocialeotecidourbano,apontamparaanecessidadedeumareavaliaçãodasintervençõesquetêmsidoaplicadasnopericentrodoRiodeJaneiro.Oobjetivodesteensaioé,portanto,refletirsobreesseprocessonocasodoRiodeJaneiro,indagando:

(i)ComooatualdesenvolvimentourbanodoRiodeJaneiroestáimpactandootecidosocialdaárea central e, consequentemente, a relaçãodopatrimônio cultural comamemóriasocial?

(ii) Quais os impactos sobre a cultura urbana da desagregação do tecido social,decorrentedodeslocamentodosmoradoresquetradicionalmenteocupavamasáreasdevalorpatrimonial?

(iii) Como a perda dos vínculos orgânicos entre ambiente construído - enquantosuporte damemória e identidade - e o tecido social, enquanto portador efetivo damemóriaedaidentidade,podeafetarasrelaçõesintersubjetivasnacidade?

Responderaessasquestõesrequerumaanálisesobrearelaçãoentretecidourbano,tecidosocial,memóriaeidentidade.

AFORMAÇÃODOPERICENTRONORIODEJANEIRONOSÉCULOXIX

A partir da segunda metade do século XlX, com intenso crescimento demográfico no Rio deJaneiro,decorrentedetransformaçõespolíticas,econômicasesociais,associadasaoprocessodeexpansãodaeconomiacafeeira,atransiçãodoescravismoparaoassalariamentoeàformaçãodasprimeirasindústrias,acidadedoRiodeJaneiroalcançouumsignificativocrescimento.

Numcurtoperíodode32anos,entre1838e1870,apopulaçãodacidadecresceu72%,tendoas“freguesiasurbanas”, istoé,asáreasmaispróximasdoCentro,nestemesmoperíodoalcançadoumcrescimentode97%(Abreu,2013:39)Entre1872e1890ocrescimentoaceleradodacidadeprosseguiu,tendoas“freguesiasurbanas”passadode228.743habitantespara429.745habitantes– um crescimento de 88% (Abreu, 2013: 54). Pode-se assim indicar que a população das“freguesiasurbanas”quadruplicouentre1838e1890,equeamaiorpartedessaexpansãosedeunaáreaquehojecorrespondeaocentroeaopericentro.

Instaurou-senacidadeumaverdadeiracrisedemoradias,queatingiuprincipalmenteascamadasmaispobresdapopulação.Anecessidadedemoradiasbaratasparao crescente contingentedetrabalhadoresqueprecisavamseestabelecerjuntoaocentroparagarantirsuasobrevivência,eapossibilidade de obtenção de bons rendimentos por parte dos privilegiados proprietários earrendatáriosdeprédioseterrenosfizeramcomqueseconstruíssem,nacidade,novostiposdehabitações coletivizadas. Essas habitações variavam desde estalagens a casas de cômodo e

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cortiços,moradias estas que, pela aglomeração de pessoas, reduzia drasticamente a higiene dahabitação,provocandoconstantesepidemiasnacidade.(Vaz,2002)

NarápidaexpansãourbanadasegundametadedoséculoXIX,apopulaçãomaispobresedirigiuparaáreasquenaépocacorrespondiamàperiferiadacidade.NofinaldoséculoXIX,osbairrosemtorno do centro da cidade do Rio de Janeiro – Saúde, Gamboa e Santo Cristo, São Cristóvão,Estácio, Cruz Vermelha, Lapa, Santa Tereza, Glória, Catete e parte do Flamengo – já estavamdensamenteocupados.

Emprocessodedesenvolvimentoacelerado, jáduranteasdécadasde1870e1880começaaseconstituiravisãourbanísticadequeacidadeprecisaestabelecerumbairrocentraldenegócios,naárea que deu origem à cidade. Nesse sentido, tornaram-se mais incisivas as restrições paraconstruçãodecortiçosemváriasáreasdocentroe,aofinaldoséculoXIX,proibiu-searealizaçãodeempreendimentosparausohabitacionalnaáreacentral.

Por outro lado, com a reforma urbana realizada por Pereira Passos, já no início do século XX,ocorreramgrandesintervençõesurbanísticas,queforamcoroadascomaaberturadaAvenidaRioBranco.Naqueleperíodo,foiordenadoofechamentodealgumasdessashabitaçõesconsideradasintoleráveiseaimposiçãodarealizaçãodemelhoramentosnasmesmas,culminandoporproibirarealizaçãodenovosempreendimentoshabitacionaisnaáreacentral,semmencionarademoliçãodecortiçosecasadecômodos(Rocha,1986).Porém,nosbairrospericentrais–Saúde,GamboaeSanto Cristo, São Cristóvão, Estácio, Cruz Vermelha, Lapa Glória e Santa Tereza – a habitaçãocontinuouaserpermitida.

Mesmo que não se articulem como tecidos homogêneos, estes bairrosmais antigos do Rio deJaneiroapresentamnumerosasqualidadesurbanasemorfológicasquepermitemobservarcertaharmonia na ambiência. Os alinhamentos e os ritmos do parcelamento da terra, com terrenosestreitos e compridos, volumetrias de gabaritos médios e baixos, materiais de revestimentossimilaresesistemasconstrutivosanálogos,comalgumasrarasexceções,conformamafisionomiadapaisagemedificada(Lima,2004).

Assim,apartirdaconstituiçãodoBairroCentraldeNegócios(CBD–CentralBusinessDistrict),comeixo na Avenida Rio Branco, estas áreas, o centro e os bairros na sua periferia, passaram a servistas como parte da cidade “velha” e local associado ao trabalho. Apesar da proibição, o usohabitacional jamaisdesapareceu complementedoCentroe continuoua seexpandirnosbairrosvizinhosaoCentro.Noentanto,aolongodoséculoXX,esseusosereduziusignificativamentenaárea central, causando a substituição do uso do solo habitacional pelo uso do solo para finsempresariais,comerciaisedeserviços.(Limaetal,1992).

Osagentesimobiliários,atuandoemparceriacomosempresáriosdetransportepúblico,tambémcontribuíram para a ocupação de áreas mais distantes e então pouco densas, posto que estasáreas possibilitavam mudanças mais lucrativas do uso do solo. Na outra ponta, aos novosmoradores, aquelas áreas se apresentavamcomomais aprazíveis emenos congestionadas. Estacombinação gerou uma tendência, de duração secular, de afastamento das camadas de maiorrendaparaáreasmaisdistantesdocentroedoesvaziamentodaatividadedemoradianocentroepericentro.

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Esses imóveis, no entanto, estão habitados por uma população cuja renda é quase sempreinsuficienteparagarantirumaboaconservaçãodosimóveisecujaarquiteturaimplicaemsistemasconstrutivosartesanais,queporissomesmo,sãodecaramanutençãoerestauro.

Paralelamente,esseprocessodadinâmicaurbanacriouvínculosorgânicosentreotecidosocialeotecidourbano, construindouma relaçãoentreos suportesurbanosdamemóriaqueconstituemreferênciasdeidentidade,contribuindoassimparaadeformaçãodeumadinâmicadememóriaseidentidadescoletivasnacidade.Valeacrescentaraindaque,poroutrolado,residirnopericentroéfundamental para essa população; visto que significa morar perto do local de trabalho e dosserviçospúblicoseprivadosquearegiãoperiféricaaocentrooferece.

ADINÂMICAECONÔMICO-SOCIALDOCENTROEPERICENTRO,NAATUALIDADE-1980A2010.

OmunicípiodoRiodeJaneiroéacapitaldoEstadodoRiodeJaneiro;EstadobrasileirocomumPIBsuperioraodoChile.Étambémomunicípiomaisimportanteda2ªmaiorregiãometropolitanado país, com aproximadamente 11 milhões de habitantes, portanto, praticamente 2/3 dapopulaçãodoEstadovivemnaregiãometropolitana.

Comojáfoidito,umaparcelarelevantedoambienteconstruídodocentroedopericentrodoRiodeJaneiro(IªeIIªRA)possuireconhecidovalorpatrimonialeocentrodoRiodeJaneirotambémdesempenhaopapelsimbólicodecentroda“cidademetropolitana”.Observou-se,apartirdofinaldosanos1970,oprocessodeesvaziamentodoCentrocomamigraçãodealgumasempresasdobairro, em especial para Botafogo, sem contar que as obras do metrô implicaram muitasdesapropriaçõesqueexpulsarampequenasempresasdaáreacentral.

Porém,maisrecentemente,aatividadeeconômicadaregiãocentralreativou-sesendoatualmenteamaisrelevanteparaacidadeeparaaregiãometropolitana,acentuou-seemfunçãodaspolíticaspúblicas. No núcleo dessa área, o bairro central concentra uma importante soma de recursosurbanos,vistoquenoCentro,localizam-se:

I) o principal centro financeiro do Estado, e o segundo centro financeiro do País,alémdapresençasignificativadeempresasestatais,comooBNDEseaCEF,eabrigaasededasduasmaioresempresasnacionais (brasileiras)comdestaquenocenáriointernacional:aValedoRioDoce(privatizada)eaPetrobrás(estatal);

II) umagrande concentraçãode centros culturais da cidade,museus, bibliotecas esalasdeespetáculodecinemaeteatro,sendopossivelmenteaáreadacidademaisbemdotadadeequipamentosculturais;

III)amploediversificadocomércio:dabutique“deluxo”aocamelô“dapechincha”-combinadocomadiversificadaprestaçãodeserviçospúblicoseprivados;

IV)diversas instituiçõesdeensino, incluindoaproximadamente20 locaisdeensinouniversitário.Hojeestima-seem50.000mil onúmerodeuniversitáriosestudandonocentrodoRiodeJaneiro;

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V) importantes órgãos do setor público, federal, estadual e municipal e deorganismos da sociedade civil, dos quais são exemplo, a Associação Comercial eváriossindicatos;

VI) importantes recursos damobilidade urbana da cidade, incluindo: o aeroporto,terminaisferroviárioserodoviários;linhasdeônibus,metrô,VLTetrens;

VII) hotéis e restaurantes; botequins e bares - este setor encontra-se tambémemfase de expansão no Centro apresentando um crescimento significativo com aabertura de novas unidades e investimentos para a melhoria de unidades jáexistentes;

VIII) imponentes praças e parques públicos da cidade e a presença de diversosimóveiseáreasurbanasdevalorculturalconstituindoumambienteconstruídocomumaexcepcionalqualidadehistórico-cultural.

SegundodadosdaPrefeituradaCidadedoRiodeJaneiro,entre1970e2000aasáreascentraisepericentrais, correspondentes a Zona de Planejamento AP1, perderam quase 27% de suapopulaçãoresidente:

Noperíodoentre1991e2000apopulaçãodecresceuàtaxade12,6%,amaiorentre todas as regiões do município. O Centro (–20,3%) e São Cristóvão (–15,1%) sofreram os maiores decréscimos populacionais, seguidos de RioComprido(–10,5%),ZonaPortuária(–9,3%)eSantaTeresa(–7,6%).ApenasnaRAdePaquetá foi registradonesteperíodoumcrescimentodemográficode(+5,0%).”3

Assim, enquanto a população do Centro e dos bairros a ele vizinhos (pericentro) decrescia, asatividadesempresariaisdecomércioeserviçosseconsolidavamnoCentro,avançandoemdireçãoaos bairros pericentrais, como se vê no quadro em seguida. Os dados oficiais obtidos peloMinistériodoTrabalhoem2008apontaramparaoseguintecenário:

Bairros Participaçãopercentualnospostosde

trabalhoformaisemserviçosem2008ArrecadaçãodoISSem2007

2Centro 25,70 651373528,721Portuária 1,35 46281758,137SãoCristóvão 3,98 54949989,893RioComprido 7,87 61360753,5223SantaTereza 0,11 1915526,204Botafogo 6,95 291926067,29Total 45,96% 1107807624,00Fonte:MinistériodoTrabalhoeEmprego-MTE,RelaçãoAnualdeInformaçõesSociais–RAIS/Adaptadode:http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/

3DiárioOficialdoMunicípiodoRiode Janeiro (DOM-RJ)de15de Junhode2015,p.84,Anexo ivdoedital -Gestãodasunidades de saúde pela organização social: informações sobre o território – ap 1 – CER Centro e hospitalmaternidadeMariaAméliaBuarquedeHollanda.http://www.jusbrasil.com.br/diarios/93839961/dom-rj-normal-15-06-2015-pg-84

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Porém, segundo o quadro anterior o Centro do Rio era responsável, em 2008, poraproximadamente 25% dos empregos do setor de serviços do município do Rio de Janeiro esomada a participação dos empregos do setor se serviços nos bairros pericentrais esse totalalcança45,96%dosempregosnosetordeserviçosnacidade.Em2007oRiodeJaneiroarrecadouem R$ 1.903.125.726,904em ISS (Imposto Sobre Serviços), naquele ano Centro também foiresponsávelpor34,23%dessetotale,somadoaáreadopericentro,arredou58,21%dessetotal.Essesdadosindicamquecentroepericentroconstituem-senocoraçãodaproduçãodeserviçosnacidadedoRiodeJaneiro.

Apartirde1985se iniciauma importantemudançanaparticipaçãodossetoresdaproduçãonoPIB brasileiro. Enquanto o Setor Industrial reduzia sua participação relativa no PIB nacional de42,19%em1985para32,29%em1998,oSetordeServiçosampliavasuaparticipação,passandode46,63%em1985para59,70%em1998.5Em2015aagriculturarespondiapor3,75%,aindústriapor 22,47 %, e os serviços por 73,78 % do PIB brasileiro, indicando que, no Brasil, o centrodinâmicodaeconomiabrasileirahaviasedeslocadoparaosetordeserviços.6

Assim,pode-seconcluirquedopontodevistadaproduçãoeconômicaaáreaformadapelocentroepericentrodacidadedoRiodeJaneiropassouaconstituiraprincipaláreadacidade,porabrigarumadasmaioresparcelasdosetormaisdinâmicodaeconomiaurbana.

AREESTRUTURAÇÃOURBANAEPRESERVAÇÃOPATRIMONIALDAÁREACENTRALEDOPERICENTRODORIODEJANEIRO

Nas décadas de 1980 e 1990, inicia-se um debate focado na necessidade de revitalização docentro. Nesse processo, ocorreu um conjunto diverso de ações que buscam uma efetivarevalorizaçãodocentro,comoreconhecimentobemmaisamplodovalordopatrimônioculturaledificado,comaimplantaçãodeCentrosCulturais,comaampliaçãoecriaçãodemuseusnaáreacentral e constitui-se a perspectiva que considera inclusive a necessidade retomada do usohabitacional do centro. Trata-se, portanto, de uma reversão das tendências e expectativas delongaduração,emrelaçãoaofinaldoséculoXIX.

Nosdesdobramentosdesseprocesso,áreasurbanasdevalorpatrimonial,antesesvaziadase/ouabandonadas,começamaserocupadasporatividadesligadasaolazercultural,comoocorreunasáreasdaLapa;daPraçaXV,notrechoentreoPaçoImperialeCentroCulturalBancodoBrasil,noeixodaruaSacaduraCabral,notrechoquevaidoLargodeSãoFranciscodaPrainhaatéaalturadoCaisdoValongo.Alémdisso,realizam-se,comsucesso,empreendimentosimobiliárioscomfinshabitacionaisecomerciais.7

Pode-se,resumiraaçãodoPoderPúblico,nesseprimeiromomento,queseiniciaemmeadosdosanos1980,apontandoque,aspolíticaspúblicassecaracterizam,principalmente,pelacriaçãodeAPACs (Áreas de Proteção ao Ambiente Cultural) e, ao mesmo tempo, com a atribuição de

4 Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, Relação Anual de Informações Sociais – RAIS/Adaptado de:http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/5AdaptadodeMedinaeSilva,1999.6http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/pib/defaulttabelas.shtm7Como,porexemplo,o“CoresdaLapa”,eosdiversosempreendimentosemconstruçãonazonaportuária.

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incentivosfinanceirosparaarecuperaçãofísicadosimóveis,comoaisençãodeIPTUedaTaxadeObradaquelasedificaçõescujosproprietáriosrecuperemseusimóveis.

As medidas do governo municipal muito bem intencionadas surtiram, efeitos nem sempredesejáveis.Na área designadapor Corredor Cultural, o verdadeiro CBDda cidade, a valorizaçãoocasionada pela substituição do uso misto por uso exclusivamente comercial na maioria dosimóveispreservadosnaáreacentralporgeraremmaiorrentabilidadeejustificaremaconservaçãoe manutenção pelo alto valor do imposto territorial urbano que os proprietários deixavam depagar,jáacelerouoêxododemoradores.

O mesmo não ocorreu nos tecidos urbanos pericentrais do Rio de Janeiro, também ocupadosantesdofinaldoséculoXIX,momentodeexpansãodamoradiaedasatividades,resultandonumsignificativo acervo de imóveis de valor histórico. Cabe lembrar que nessas areas periféricas aocentro, o imposto territorial urbano émuitomenor, e sua isenção não cobre o alto custo pararealizarasobrasdeconservação,nosimóveisdevalorhistóricocultural.

PormenordomapeamentodasAPACsdoCentroepericentro(fonte:IRPH2016)

Um segundo momento inicia-se em meados dos anos 1990 e entra pelo novo milênio,caracterizando-se por investimento de recursos em intervenções urbanas direcionadas àrecuperação física do patrimônio cultural edificado, reurbanização das áreas públicas, arearticulação do sistema viário para garantir uma melhor acessibilidade. A partir de 2009,especificamente, a região portuária é objeto do projeto “PortoMaravilha” com implantação demuseuseespaçoscultural,edediversosempreendimentosimobiliários.8

Registra-se a retomada do crescimento econômico no período 2003-2010 no centro do Rio deJaneiropormeiodaocorrênciadenovosempreendimentosedavalorizaçãoimobiliária.Porém,avalorizaçãodoambientedevalorpatrimonialcontinuaaconduziradeslocamentosdapopulaçãodemenor renda, levandoaumprocessodegentrificaçãoqueestáproduzindoumaseparaçãoeuma desagregação da relação entre tecido social e o tecido urbano, e, consequentemente,produzindo um esgarçamento nas relações entre ambos, com impacto sobre a dinâmica daconstituiçãodememóriaseidentidadessociaisnacidade.

8Em2014ojornalOGloboanunciavaque15empreendimentospararegiãoportútia(OperaçãoUrbanaPortoMaravilha)jáhaviamsidonegociadoscomo fundode Investimento ImobiliárioPortoMaravilha,geridopelaCaixaEconômicaFederal.http://oglobo.globo.com/rio/quinze-empreendimentos-prometem-levar-futuro-para-zona-portuaria-uma-das-mais-antigas-do-rio-14218691

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É evidente que requalificando os espaços públicos, como ruas, avenidas, largos e praças,melhorando a infra-estrutura e iluminando locais de encontro dos residentes, já se inicia umprocessodevalorizaçãodaárea.Masoperigomaiorocorrequandoestamesmavalorizaçãocausaoaumentoimediatodosaluguéisedosimpostos,expulsandoapopulaçãoresidente,muitasvezesconstituída de famílias tradicionais de antigos trabalhadores que acabam buscando abrigo naperiferia ou nosmorros da cidade, para não arcar com os novos ônus (3). Os planos de açõesurbanísticasesociaisdevemseracionadosnosórgãoscompetentes,nosentidodenãoexpulsarapopulação,mas,mantê-laaopromoverareabilitaçãodosimóveis.(Lima,2002)

Infelizmente,osprojetospontuaisderevitalizaçãoemgeraldesassociamaconcepçãodoespaçourbanodaspolíticassociais.Aquantidadedeáreasdegradadasgeradasnoperíodopós-industrialeosprocessosempregadosparasuareestruturaçãooriginamaideiadecidadecomoumconjuntode bolsões fragmentados. Novas atividades substituem as atividades antes existentes no tecidourbanoaindaremanescente,provocandoadesestruturaçãosocial.Estesprojetosvãoredesenharextensas áreas com diferentes programas e instalações, concentrando grandes estruturasarquitetônicas espetaculares que valorizam o solo de toda a área adjacente. É até possívelentender que a arquitetura cenográfica possa aumentar a auto-estima de cidadãos viajados declasse média. Percebe-se também que é uma das estratégias para atrair investimentosinternacionais para o município que sofreu a transformação cênica. Porém os espaçosanteriormente destinados às trocas de sociabilidade, o verdadeiro “espaço vivenciado” comodefineHenriLefebvre,passaàcondiçãode“representaçãodeumespaçoartificial”,desvinculadodosresidenteseusuários,vistoqueconstituídodeumasóvez,semconsiderarastradiçõeseasidentidadeslocais(Lefebvre,1974)

ÁreaspreservadasnocentrodoRiodeJaneiro-1987:adaptadodeMesentier1995.

Assim, observa-se que expansão da produção do setor de serviços - que se tornou o setordinâmico da economia - e especificamente, o crescimento dos serviços de cultura e lazer, queestãoocorrendonasmetrópolese grandes cidades, trazem transformações,que têm implicado,

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consequentemente,numadinâmicadereestruturaçãodadinâmicaintraurbana,queseapresentade formamais expressiva nas áreas centrais e nos bairros circunvizinhos as áreas centrais, aquidenominadasdeáreaspericentrais.

Nesse contexto, recentemente, a reestruturação das áreas centrais e pericentrais tornou-se oprincipal objeto dos grandes projetos de intervenção urbana, e tem sido habitual, no âmbitodessesprojetosdereestruturação,sereminseridasaçõesdestinadasàrecuperaçãodopatrimônioculturaledificado,quasesempreseencontraemestadodedegradação,nasáreasperiféricasaocentro.

O empenho de investimentos no patrimônio decorre, como já foi dito, do potencial para aqualificaçãoculturaldoambienteurbanoinerenteaopatrimônio.Aspossibilidadesdequalificaçãodo ambiente das cidades atuam no sentido de favorecer o desenvolvimento de atividadesprodutivas, pelasquais certas atividadesdo setorde serviços agregamao seu valor aqualidadeambientalda localização,comoocorre,porexemplo,comasatividadesrelacionadasaoturismo,aocomércio,aolazereàcultura.

Na passagem dos anos 1980 e 1990 do século XX, surge um novo olhar sobre o patrimôniocultural, associado ao desenvolvimento da economia de serviços, com destaque para odesenvolvimento da produção artístico-cultural. Um olhar que vê um potencial econômicorelevante no patrimônio. Esse olhar incide de maneira em especial sobre as áreas urbanaspatrimoniaisdasgrandesaglomeraçõesurbanas,quedeixamdeservistascomootecidourbano“velho”dacidade,paraseremvistascomo“repositóriodahistóriaedaculturaurbana”,porissomesmo,comgrandepotencialeconômicoesocial.

Decorremdesta conjunturaaperspectivadegentrificaçãodasáreaspericentrais, especialmentenaquelas manchas urbanas que formam os conjuntos arquitetônicos e urbanísticos de valorpatrimonial.Comoconsequência,emergemprocessosnosquaisosconjuntosedificadosdevalorpatrimonial,queseconstituememsuportedamemóriaerepresentaçãodasidentidadescoletivas,acabamporseremocupadosporumanovapopulação,comaexpulsãodosantigosmoradoreseainserçãodenovossegmentosatraídospeladenominadaindústriacriativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A REESTRUTURAÇÃO DO PATRIMÔNIO E DAS CIDADES:DINÂMICA IMOBILIÁRIA E SEGREGAÇÃO SÓCIO TERRITORIAL E SEUS IMPACTOSCULTURAIS.

Nodecorrerdapesquisaconstatou-seque:

I) Ao longo do século XIX e início do século XX a área central do Rio de Janeiro eespecialmenteosbairrosquefazemfronteiracomaáreacentralforamocupadospelousohabitacional,umaocupaçãoquesetornamenosintensanaáreacentral,apartirdoiníciodoséculoXX,masqueprosseguedeformabastanteintensanosbairrosvizinhosao centro, pelo menos até os anos 80 do século XX. Essa ocupação criou vínculosorgânicos entre o tecido social e o tecido urbano, construindo uma relação entre ossuportesurbanosdamemóriaqueconstituemreferênciasde identidade,contribuindoassim para a de formação de uma dinâmica dememorias e identidades coletivas nacidade.

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II) Nasdécadasde1980e1990,dopontodevistadaproduçãoeconômicaaáreaformadapelocentroepericentrodacidadedoRiodeJaneiropassouaconstituiraprincipaláreada cidade na produção de serviços, o setor mais dinâmico da economia urbanametropolitana, na contemporaneidade. Essa nova dinâmica passa a produzir umimportanteprocessodemudançadeusodosolonaáreacentral:enquantoapopulaçãodoCentro,edosbairrosaelevizinhos(pericentro),decrescia,asatividadesempresariaisdecomércioeserviçosseconsolidavamnoCentro,avançandoemdireçãoaosbairrospericentrais, pressionando o uso habitacional nas área pericentrais pormeio de umadisputaentreousodosoloparafinsempresariais,deserviçosedecomercioeserviços,commaiorvalordemercado,eproduzindo,demodogeral,agentrificaçãodousodosolo.

III) Após um processo marcado pela edição de APACs que visavam a preservação doambiente construído de valor patrimonial nas décadas finais do século XX, e com aimplantação de Centros Culturais na área Central, como o Paço Imperial, o CCBB, oCentro Cultural dos Correios, a Casa França Brasil, CineOdeon – Centro Cultural LuizSeverianoRibeiro,oCentroCulturaldaJustiça,CentroMunicipaldeArteHélioOiticica,umsegundomomento inicia-seemmeadosdosanos1990eentrapelonovomilênio,caracterizando-seporinvestimentoderecursosemintervençõesurbanasdirecionadasàrecuperaçãofísicadopatrimônioculturaledificado,reurbanizaçãodasáreaspúblicas,arearticulaçãodosistemaviárioparagarantirumamelhoracessibilidadeeosurgimentodenovoscentrosculturais,comooMAReoMuseudoAmanhã,naZonaPortuária;eoCentro SebraedeReferênciadoArtesanatoBrasileiro (CRAB); que se combinaramamuitosoutroscentrosjáexistentes,comoaBibliotecaNacional,oTeatroMunicipal,oMuseuNacionaldeBelasArtes,oMuseuHistóricoNacionaleoutros.

IV) Apartir da virada para o século XXI, ocorre uma retomada do dinamismodo Centro,comexpansãosobreopericentro,pormeiodaocorrênciadenovosempreendimentoseda valorização imobiliária. Nesse contexto, apesar da valorização do ambienteconstruído de valor patrimonial, continua a ocorrer deslocamentos da população demenor renda, pois não se elaboram e implementam ações urbanísticas e sociais nosentido demanter a população. Assim, observa-se um processo de gentrificação queestáproduzindoumaseparaçãoeumadesagregaçãodarelaçãoentretecidosocialeotecidourbano,e,consequentemente,produzindoumesgarçamentonasrelaçõesentreambos, com impacto sobre a dinâmica da constituição de memórias e identidadessociais na cidade. Os espaços anteriormente destinados às trocas de sociabilidade, overdadeiro “espaço vivenciado”, passa à condição de “representação de um espaçoartificial”, desvinculado daquele tecido urbano portador da memória viva vez e devínculosdeidentidadehistoricamenteconstituídos.

V) Decorre desta conjuntura a perspectiva de gentrificação do centro e das áreaspericentrais, especialmente naquelas manchas urbanas que formam os conjuntosarquitetônicos e urbanísticos de valor patrimonial. Como consequência, emergemprocessosnosquaisosconjuntosedificadosdevalorpatrimonial,queseconstituememsuporte da memória e representação das identidades coletivas, acabam por seremocupadosporumanovapopulação,comaexpulsãodosantigosmoradoreseainserçãodenovossegmentos.

Agora é possível voltar às questões propostas incialmente neste artigo: (i) Como o atualdesenvolvimento urbano do Rio de Janeiro está impactando o tecido social da área central e,consequentemente,arelaçãodopatrimônioculturalcomamemóriasocial?(ii)Quaisosimpactossobre a cultura urbana da desagregação do tecido social, decorrente do deslocamento dosmoradoresquetradicionalmenteocupavamasáreasdevalorpatrimonial?(iii)Comoaperdados

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vínculosorgânicosentreambienteconstruído-enquantosuportedamemóriae identidade-eotecido social, enquanto portador efetivo da memória e da identidade, pode afetar as relaçõesintersubjetivasnacidade?

Aprimeiraconclusãodaobservaçãodesseprocessoédequeháumaimportanteinteraçãoentreoprocessodemudançadeusodo solo,quedeslocapopulaçõesedesagregao tecidourbanoeadinâmicadeformaçãodamemóriaedasidentidadescoletivasnacidade.Oqueseobservouéquea cidade do Rio de Janeiro vive um processo em que as populações tradicionais estão sendodeslocadas e isso irá afetar a relação desses grupos sociais com suas referências dememória eidentidade.

MaurícioAbreuafirma,comrazão,queamemóriadolugaréolócusdocoletivo,poisamemóriado lugaroudeumacidadeéaprópriamemóriacoletiva(Abreu,1998:77-78).OteóricofrancêsMaurice Halbwachs foi quemmais profundamente estudou amemória coletiva conceituando-acomoumconjuntode lembranças construídas e referenciadas aumconjuntoque transcendeoindivíduo. Afirma ainda que a memória coletiva é uma corrente de pensamento contínuo queretémdopassadosomenteaquiloqueestávivoouécapazdeviverdaconsciênciadeumgrupo(Halbwachs, 1950). Para Halbawcs, se a memória pode ser uma propriedade individual, nossaslembranças são referenciadaspor lugares e datas que só fazem sentidoem relação aomeio aoqualpertencemos(Halbwachs,1950:5).

OfinaldosconceitosdivulgadospeloIluminismo,quepregavaaideiadeprogressoedeumtempohomogêneoelinear,deflagrouumdesejoprofundodabuscapelopassado.UmdosteóricosquediscutiuesteaspectofoiJacquesLeGoff(2003:14),paraquem“otempohistóricoencontra,numnívelmuitosofisticado,ovelhotempodamemória,queatravessaahistóriaeaalimenta”(LeGoff,2003: 13). SegundoMilton Santos (1994), antigos tempos homogênicos passam a coexistir e ainteragircomtemposrecentes.

Amemóriasocialestabelece,portanto,relaçõescomamaterialidadeherdadadopassado,masofaz de acordo com as condições sociais do presente. Ou seja, uma foto, um edifício ou umdocumentosãoelementosderesgatedamemória,porémomodocomoesseresgatevaisedardependedascondiçõessociaisdopresente.Opapeldeumedifícionamemóriacoletiva,portanto,depende,por ladodaexistênciadopróprioedifício,masporoutrodaformacomoasestruturassociaisinteragementresiecomoedifício.Assim,porexemplo,atrocademoradoresdoedifícioemdecorrênciadeumprocessodereestruturaçãourbana,quemodificaousodosoloemcertaáreaurbana,trarácomoconsequênciaumareestruturaçãodamemóriacoletiva.FrançoiseChoaycritica as cenografias urbanas formadas por edificações cujas fachadas sãomantidas, mas cujointeriorédemolidoedestinadoaousoeconômicoouturístico-cultural.

Sabe-sequeabuscadopassadorefleteaemergênciadeumanovarelaçãoentreoshabitantesecertas regiõesou lugares,que implicamamemóriacoletiva,aindaquemuitodoqueexistianaspaisagensurbanasnãomaisexistacomolembrouAbreu(1998:77).Nessesentido,valerelembraroconceitodePierreNorasobreamemória:

Amemória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, elaestá em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e doesquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável atodososusosemanipulações, suscetívelde longas latênciasederepentinasrevitalizações [...]Amemóriaseenraízanoconcreto,noespaço,nogesto,naimagem,noobjeto.(Nora,1993:9)

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As imposições do mercado imobiliário sobre a dinâmica urbana induzem a processos desegregação sócios territoriais e, coerente com essa tendência, no mais das vezes, a políticahabitacional desenvolvida no Rio de Janeiro priorizou a transferência das populações de baixarendaparaconjuntoshabitacionaisconstruídosemlocaisdistantesdocentrodacidade.Lugaresseminfraestruturaurbana,transporte,escolas,postomédicoedemaisserviços,queabundavamnaáreacentral,muitovalorizadadesdequea legislaçãourbanísticaproibiuousoresidencialnocentroparaconsiderá-loapenascomoáreadenegócios,comércioeserviçosadministrativos.

No atual contexto, porém, o foco da dinâmica imobiliária se desloca para suas áreas centrais epericentrais, comoapontaNeil Smith (2007)Assim,oprocessodevalorizaçãoalcançapartedosedifícios,que integramopatrimônio cultural eque seencontramocupadospormoradores cujarendanãopermiteumamanutençãodosimóveisquegarantaasuapreservação.

A recuperação física dos imóveis acaba implicando deslocamentos populacionais e perda dosvínculosorgânicosentretecidosocialetecidourbano.Nestesentido,amanutençãodaidentidadevisual dos lugares de valor cultural acaba entrando em contradição com amanutenção de suaidentidade.

Odeslocamentodemoradorespelagentrificaçãodasáreas, implicaemsíntesenadissoluçãodevínculos culturais, cujos impactos não se restringem nem às áreas, nem aos setores sociaisdiretamenteatingidos,mastemrebatimentosindiscutíveissobretodaaculturaurbana,afetandoasrelaçõesintersubjetivasnacidade,namedidaemquefavorecemaoaparecimentodeestadodeanomianas cidade, caracterizadopela falta consensosem tornodeobjetivose regras coletivos,decorrentedaperdadasidentidadescoletivas,favorecendoaoaparecimentodefenômenoscomoalienação, racismo, preconceito social e outros que redundamem violência difusa, crônica e asvezesaguda.

Por isso,aformulaçãodaspolíticasurbanasedepreservaçãopatrimonialprecisaconsiderarquenão se pode restringir à preservação do conjunto arquitetônico e urbanístico que constitui osuportedamemória,mas,quandosebuscaumaperspectivadedesenvolvimentosustentável,éimprescindível incorporar tambémpolíticasquecontemplemotecidosocialquesempreocupouaquelepatrimônioconstruído.

Re-estruturar áreas degradadas, promover a conservação dos imóveis e a re-qualificação dosespaços públicos implica a integração destas áreas às necessidades da vida contemporânea. Éindispensávelqueasnovasdestinaçõesdeusosejamcompatíveiscomamorfologia,comaescaladobairroecomodesejodosusuáriosquealihabitam.Ahistóriasocialurbanaseescreveapartirda análise das cidades e de suas edificações, e, na cultura urbana é fundamental que edifíciosoutrora simbólicos, antigos palacetes ou simples residências operárias possam sofrertransformaçõesvalorizadorasde suasestéticaseque justifiquemseusnovosusos,masquenãoexpulsem os residentes. Portanto, consideramos fundamental que esses usos sejammultifuncionais, ou seja, é insuficiente transformar a área em centro de serviços e de indústriacriativa, como tem proposto o Poder Público, sem que haja também residências, pequenoscomércioseincentivoaoartesanatomaiscaracterísticodaregião.

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