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Justiça Espacial: sentidos, (contra)usos, fronteiras Spatial Justice: meanings, (conter)uses, boundaries Coordenador: Thiago A. P. Hoshino, UFPR/Observatório das Metrópoles, Doutorando/Pesquisador, [email protected] Debatedora: Rosa Moura, IPEA, Pesquisadora, [email protected]

Justiça Espacial: sentidos, (contra)usos, fronteirasanpur.org.br/xviienanpur/principal/publicacoes/XVII.ENANPUR_Anais... · desenvolvimento, crise e resistÊncia: quais os caminhos

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JustiçaEspacial:sentidos,(contra)usos,fronteiras

SpatialJustice:meanings,(conter)uses,boundaries

Coordenador:ThiagoA.P.Hoshino,UFPR/ObservatóriodasMetrópoles,Doutorando/Pesquisador,[email protected]

Debatedora:RosaMoura,IPEA,Pesquisadora,[email protected]

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Embora haja sido frutífero o desenvolvimento de diversas categorias de inspiração lefebvriana,como o “direito à cidade” – atualmente incorporado tanto às agendas dosmovimentos sociaisquanto às de pesquisadores e das instituições – ainda são eventuais as aproximações teóricasdaquiloquesealcunhoude“justiçaespacial”.Nessesentido,épossívelidentificaroinvestimentode todauma tradiçãoanglo-saxônica (Soja,Marcuse,Fainstein,Harvey,etc.)naconsolidaçãodoconceito, com importantes desdobramentos posteriores, cuja permeabilidade, todavia, ainda ébaixanodebatebrasileiroelatino-americano.

Impulsionada por esse hiato, a sessão propõe explorar as potencialidades do conceito, napluralidade de (contra)usos e sentidos que assume tanto na literatura acadêmica, quanto naprática política de diversos atores sociais. E se propõe a fazê-lo na arriscada fronteirainterdisciplinar (multi? trans?) a que necessariamente conduz a conjugação de “justiça” e“espaço”. A partir de abordagens críticas, instiga-se a questão: qual a rentabilidade da “justiçaespacial” para a reflexão sobre o urbano na contemporaneidade? Nas seminais palavras dePhilippopoulos-Mihalopoulos (2016): “Spatial justice couldbe themost radicaloffspringof law’sspatialturn.Instead,intheliteratureitremainsageographicallyinformedversionofsocialjustice,aslightlytrendierconceptualisationthatcastssidewaysglancestoitssurroundings.”

Comenfoquesnãoconvencionais,acidadeeosdireitos–nelainscritose/ourestritos–recebem,nesta sessão, a atenção de planejadores(as), urbanistas, juristas e antropólogos(as), sobretudonummomento em que a gramática dos direitos (“rigths talk”) se expande para sermobilizadatambém por discursos contestatórios e reivindicatórios. Para além da instituição formal de taisdireitos, todavia, as vozes coletivas que emergem denunciam amanutenção e a reinvenção depráticasoficiosaseimagináriosurbanosdeexclusão,marginalizaçãoesubordinação.

Portanto, a normatividade – tanto em sentido clássico, legal, positivo, quanto em sentidofoucaultiano, difuso, constitutivo – comparece aqui como objeto privilegiado de análise, namedidaemquedesenhafronteirasfísicasesimbólicasparaoacesso,aproduçãoeaapropriaçãodoespaço.Distintascorporalidades,performatividades,modosdevidaedeorganizaçãosocialsãovetadospormeiodeinterditosterritoriais,aopassoqueaforma-mercadoriacolonizaascidadeseoconsumosetransformanaviahegemônicadeexperiênciaurbana.

Adiscriminaçãoseenraízaespacialmenteeconfiguramecanismosdedisciplinarizaçãoecontrolecom viés de classe, de raça, de sexo, de gênero. Também na própria administração decontrovérsias (as fundiários, por exemplo), nos protocolos de policiamento (que produzem seupróprios alvos preferenciais), na prestação de serviços públicos (como o transporte) ou nosprograma estatais (como de moradia), estratégias biopolíticas sutis informam as posturas ecritérios de seleção da população, tornada objeto e não sujeito de direitos fundamentais. Essearsenal opera em associação com dispositivos extrajurídicos, como a política das escalas, aambientalizaçãodosconflitoseasecuritizaçãodavida.Nãoàtoa,àjustiçaespacialconectam-seconceitosoutroscomoosde“justiçaambiental”,“justiçaescalar”,“justiçahistórica”,articuladosapartirdediferenteslugaresdefalaquesãotantometafóricosquantomateriais:sãoperformáticoseportamumapotênciapolíticainegável.

Ostrabalhosapresentadosnapresentesessãoaportamelementosempíricoseteóricosparaessaoutra “cartografia dos direitos”. Parcialmente declarado – em tratados, constituições e leis – eparcialmentesubterrâneo–fundadasnoestigma,namicrofísicaenassilenciosarepressividade–,os mapas das ausências, da realização diferencial dos direitos e da construção diferencial dasprópriassubjetividadespermitemarticularosconceitosde“différance”ede“viequotidienne”deH.Lefebvrenocontextobrasileiroecomoutrasgenealogiasdepensamento.Éoquedemonstram

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os quatro estudos de caso e pesquisas aqui reunidas, fruto de diálogo entre três instituiçõesdistintasevariadosmarcosanalíticos,apontandoparaespaçosdeheterotopiae(r)existência.

Asencruzilhadasdademocracia,apotênciamultitudinária(àlaNegri)dasemergênciasociaiseofuturo do pensamento crítico estão pautados na tríade crise, resistência, desenvolvimento queemprestaomotedoXVIIENANPUR.Asquatrocomunicaçõesqueconformamapresentesessãoenfrentamessatringulação,emcamposvariados:

- Giovanna Milano e Laura Bertol organizam uma reflexão sobre a crise da política dehabitação de interesse social a partir do desenvolvimento de critérios de seletividade,estigmatização e exclusão territoriais, os quais, tanto na esfera administrativa quantojudicial, tratam seus beneficiários como “invasores” em espaço alheio. Os agentes daburocraciaedoPoderJudiciário,nestesentido,formulamnarrativasqueapresentamostitularesdodireitoàmoradiacomooutsiders.

- Thiago Hoshino e Leandro Gorsdorf abordam as (r)existências urbanas a partir doconceito de lawscap, que explicita a normatividade ínsita ao espaço e os dilemas dacoexistencialidade entre corpos (cores, raças, sexos) diferentes e divergentes, em suaperformatividade. Ao focalizar tanto as regras expressas, formais, como códigos deposturas, quantoas fronteiras simbólicasda cidade, encampama justiçaespacial comoumaoscilaçãoentreposiçõestensasesuasreivindicações.

- RosângelaLuftdesconstróiosmitosenvolvendooplanejamentoeagestãodotransportepúblico, em sua interface com a realização do direito à cidade, sob a ótica daartificialidade dosmodelos econômicos e as respostas jurídicas criadas para atendê-los(como a noção de “equilíbrio econômico-financeiro” nas concessões do serviço), emdiferentes escalas urbano-regionais, enfatizando o déficit democrático das decisões eprocedimentoscentraisdestapolítica.

- Felipe Soares e Arthur Nascimento, por fim, desfiam e desafiam a teia de controles esubversões presentes na pixação, um conflito entre distintos imaginários urbanos eformasdeapropriar-sedacidade,emqueapropriedadeprivadasecontrapõeaoconviteque oferecem as superfícies, à arte e aos artistas, em que o espaço concebido (eregulado)secontrapõeaoespaçovivido,nacotidianidade.

Como realizar, em cada um dos cenários pintados, as funções sociais da cidade (art. 182 daConstituiçãode1988)eajustadistribuiçãodebenefícioseônusdoprocessodeurbanização(art.2o, IX do Estatuto da Cidade)? Em tempos de globalização liberal, qual a natureza da cidadepossível?Emtemposderefluxoautoritário,qualoespaçodadivergência/diferençapossível?Emtemposdecrisedemocrática,qualohorizontepolíticopossível?Emtemposde judicializaçãodapolíticaedepolitizaçãodajustiça,qualajustiçaurbanapossível?Qualquerquesejaareposta,elanecessariamentepassapelajustiçaespacial.

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HIS E (IN)JUSTIÇA ESPACIAL: INTERDITOS E SELETIVIDADE NA GESTÃO URBANACONTEMPORÂNEA

LauraEsmanhotoBertol,GiovannaBonilhaMilano

Agarantiadeáreasbemlocalizadasedotadasdeinfraestruturaparaaproduçãodehabitaçãodeinteresse social é um dos componentes essenciais para se efetivar o direito à cidade. Desde aaprovação do Estatuto da Cidade as potencialidades e a necessidade de delimitação de ZonasEspeciais de Interesse Social, tanto na demarcação de áreas vazias como em locais para aregularização fundiária, têmsidodestacadascomo importante instrumentoparaessa finalidade.Entretanto, simultâneamente, vêm sendo criados ou reforçados uma série demecanismos, queclaramente obstaculizam a implantação de empreendimentos habitacionais em áreas centrais eurbanizadas.Entreosfenômenosmaisnotáveisestáacriaçãodeumasupostanovacategoriadeuso: o conjunto habitacional. Este não deveria ser nada além de uma categoria histórica, umatipologiaarquitetônicautilizadamassivamentecomorespostaaoproblemahabitacionalbrasileiroenãoumacategoriadeusodosolo, jáquecorrespondeaoquenormalmenteseclassificacomohabitação multifamiliar. Entretanto multiplicam-se as legislações municipais que estabelecemdiversasobrigaçõesadicionaisaoprocessodelicenciamentourbanísticodessesempreendimentos,destacando-seaexigênciadeEstudosdeImpactodeVizinhança,comoseessafosseumatipologiahabitacional que causasse incomôdos a priori, independente das densidades populacional econstrutiva previstas. A aparente ambiguidade dos dispositivos urbanísticos mobilizados para aimplantaçãodahabitaçãodeinteressesocial-entreasZEISeosconjuntoshabitacionais-apontaparaapermanêncianahierarquizaçãodosespaçosurbanosaatuaçãoseletivadagestãourbanaemrelaçãoaosinterditosepermissõessobreomorarnascidadescontemporâneas.

NASFRONTEIRASDALAWSCAPE:RAÇAESEXONACIDADE

LeandroF.Gorsdorf,ThiagoA.P.Hoshino

A cidade como teia de relações sociais congrega elementos não raro ignorados tanto pela açãoestatalquantopelodiscursopreponderanteda"sociedadecivilorganizada",emrazãodaprópriamatriz teórica que, tradicionalmente, mobilizam. Explorando essa lacuna, argumenta-se quepensar-fazerodireitoàcidadeextrapolaaredistribuiçãolocacionaldoacessoaosbensurbanosetampoucoseesgotanadimensãodaproduçãodoespaço.Maisdoqueisso,estáemjogoolugardaproduçãodassubjetividadespolíticasedareconfiguraçãodasidentidadescoletivas,sobretudofrente ao caráter fundamentalmente corporal dos processos de subjetivação. Fronteiras sexuaissão definidas por leis explícitas (por exemplo: contravenções penais e códigos de posturas) ou,implicitamente, por uma normatividade inerente à espacialidade. Do mesmo modo, (re)cortesétnico-raciaismarcamacarnedacidadee informamaexperiênciaterritorialdadiferença,numasobreposição ausências, estigmas e interditos. Do apartheid aos “rolezinhos”, os sentidos daurbanidade são esgarçados e a (i)legitimidade das presenças questionada. Pretende-se refletircriticamente sobre tal dinâmica dos lugares político-identitários, colocando em diálogo osconceitos de Lawscape, desenvolvido por A. Philippopoulos-Mihalopoulos, e de heterotopia,formulado por H. Lefèbvre. O direito – e seu avesso: resistência, contra-direito, direitosinsurgentes–estãoontologicamente inscritosna linguagemenamaterialidade, láondeespaço,corpose lei resvalam-se. Esseesforçodevisibilizaçãona cartografia jurídica implicaem trazeràtona corpos que habitam, constroem, movimentam e subvertem a cidade, portadores de uma

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pulsãodedemocráticapotente.Nessatensãoentreperformatividadeeperformance,àlaJ.Butler,oscilaajustiçaespacial.

OTRANSPORTEPÚBLICOENTREMODELOSECONÔMICOSETECNOLÓGICOSARTIFICIAISEAPROMOÇÃODODIREITOÀCIDADE

RosângelaMarinaLuft

Otransportepúblicoéumadasdimensõesessenciaisdajustiçaespacial.Eleécondiçãonecessáriapara a população se apropriar da cidade, tendo amplo potencial de mitigar as tendências desegregação espacial existentes. Contudo, o direito social ao transporte não se liga apenas aoacesso aos seusmeios, mas igualmente ao poder de interferir nas decisões relacionadas a suaprovisão,democratizandoaproduçãodacidade.Quandoopoderpúblicounilateralmentedecidesobreaslinhasdetransporteporquestãodeviabilidadedocontratodeconcessão,efetuaaditivosque aumentam exponencialmente o valor da implantação da infraestrutura para atenderdemandaspontuaisdeeventosesportivosepadronizar tarifas, oumesmooptapormodaisquereproduzemmodelos técnicosdemodernização, identifica-seumadeturpaçãodos fundamentosque legitimamaaçãodoEstadonaprestaçãodeste serviçopúblico.Ademais, a justiçaespacial,afora implicar a distribuição de bens materiais, pressupõe a qualidade das interações e dosprocedimentos democráticos. A garantia do direito à cidade por meio do transporte públicoimplicapolitizarasdecisõesarespeitodamobilidade,atendendoasdemandasnasescalaridasdes-locais, metropolitanas e regionais- dentro das quais as interações se realizam. No Brasil atualprevaleceummonopólioteóricoetécnicoemtornodadefiniçãodasmodelagensdetransporte.Elas são ditadas por algumas poucas instituições que se prendem em estratégias negociais deequilíbrioeconômico-financeiroeem ideais artificiaisdemodernização, ignorandoamobilidadeenquanto elemento fundamental de inclusão socioterritorial e as implicações da inserção dotransportenoroldosdireitosfundamentaissociais.

SUPERFÍCIESURBANAS

FelipeB.F.SoareseArthurN.Prudente

Atualmente,deacordocomaTeoriaCríticaUrbana,quepartedasproposiçõesdeLefebvre(2007,p. 55), vive-se processo de urbanização planetária, em que noções de fronteira e escala, bemcomoa formadeocupaçãodo território (considerandoquemuitas vezes as análises sedãoemproposiçõesduais,partindodeconstruçõesantagônicas,comocampoecidade,interioreexterior,centro e periferia, ambiente construído e ambiente natural) não se limitam às fronteirasestabelecidas. Como avaliar, portanto, a justiça social e o direito à cidade considerando osmovimentoscontráriosaessaterritorializaçãodametrópole,comoopixo?Apixaçãocontrapõe-seàlógicadepropriedadedenossascidades,desrespeitandoasnormasimpostaspelasautoridadesque controlam a produção de espaços e produzindo cidade desde baixo. Com Halsey e Young(2006)épossíveldizerqueoespaçourbanoconcebidopelasautoridadesestásujeitoàordenaçãoeaocontrole;poroutrolado,oespaçovividopelospixadoresdemonstraqueéimpossívelcontera constante resignificação da cidade. Na primeira concepção, as superfícies urbanas são limitesquedevemserrespeitados;paraospixadores,acidadeépossibilidade,umconviteàintervençãoe à criação. A criminalização do pixo atenderia à lógica de propriedade e de colonização dos

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territórios urbanos. A cidade é possibilidade, um convite à intervenção e à criação. Acriminalizaçãodopixoatenderiaàlógicadepropriedadeedecolonizaçãodosterritóriosurbanos.