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POLITICAS PÚBLICAS, POBREZA RURAL E DESIGUALDADES REGIONAIS: EXPERIENCIAS LOCAIS NO BRASIL.
Elicardo Heber Almeida Batista
Universidade Estadual Paulista - UNESP - Presidente Prudente [email protected]
Resumo O principal objetivo desse texto é apresentar as condições, os modos e os meios de vida de povos rurais residentes em uma região marcada por expressivos índices de pobreza (carências sociais e materiais), o norte do estado de Minas Gerais. Os processos sociais, econômicos e culturais serão entendidos a partir de entrevistas realizadas com povos rurais inseridos em um ambiente social e econômico marcado pela incidência de mix de políticas públicas, sobretudo as políticas sociais de “combate” a pobreza (do tipo transferências de renda). Estas políticas têm interferido consideravelmente nas condições de vida das famílias rurais. E, inclusive, contribuem para a conformação de um fenômeno, ainda pouco pesquisado, referente à permanência de determinadas famílias no campo e até mesmo na atividade agrícola em uma região historicamente considerada como de emigração como é o caso emblemático da referida região.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Pobreza Rural. Povos Rurais.
Introdução
Uma das afirmações recorrentes no campo acadêmico brasileiro sobre o “mundo rural”
no Brasil é sobre a diversidade que esse universo social apresenta. O meio rural é
apresentado pelos estudos rurais como uma categoria heterogênea e multifacetada.
Como uma “etiqueta” encobre diversas estruturas produtivas, tipologias de famílias
rurais e grupos domésticos, de relações com a terra, de atividades agrícolas e não-
agrícolas (não necessariamente ligadas a produção animal e vegetal) diversas formas de
ocupações e usos do solo, relações (ou não) de identidade e pertencimento,
modernização (ou não) da base técnica de produção, dos complexos agroindustriaisi
dentre outros. A dinâmica da agricultura em grande medida reflete as diferenciações
regionaisii de um país com dimensões continentais. Em uma apresentação bastante
sintéticaiii, as regiões Sul e Sudeste apresentam estruturas produtivas caracterizadas por
uma modernização através de mudanças consideráveis na base técnica de produção
(DELGADO, 1985; HESPANHOL, 2008) . Na Região Sul do Brasiliv, em determinados
contextos produtivos há produtores rurais que apropriam de diversas tecnologias (para
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otimização do cultivo agrícola), utilização de insumos e maquinários agrícolas e por
diversos outros elementos que possibilitam afirmar que houve nessa região uma
“modernização da agricultura” (SACCO DOS ANJOS, 1994; SCHNEIDER, 2003). No
Estado de São Paulo houve uma considerável modernização da agricultura pautada na
modificação dos padrões técnicos de produção. A conformação de um complexo
agroindustrial com a “unificação das relações interdepartamentais com ciclos
econômicos e as esferas de produção, distribuição e consumo, relações essas associadas
às atividades agrárias” (MÜLLER, P.23) apresenta um processo de integração indústria-
agricultura-comércio com um novo padrão agrário moderno mais presente na realidade
do centro-sul do país com a agricultura paulista representando o caso emblemático desse
referido processo. Como um exemplo inverso, a região norte do Estado de Minas
Gerias, é marcada por uma agricultura caracterizada pela pouca incorporação de
elementos dos chamados “pacotes tecnológicos”. A pecuária extensiva e a produção de
auto-consumo são baseadas em formas predominantemente “atrasada” de produzir
(OLIVEIRA, 2000). A modernização da atividade agrícola ocorreu de forma
considerável nos grandes projetos agropecuários incentivados pela Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em poucos municípios, como exemplo
expressivo dos projetos de irrigação nos vales do Gorutuba (município de Pirapora) e
nos vales do São Francisco (município de Pirapora). Os chamados “pacotes
tecnológicos” estiveram e permanecem tendo maior expressão em determinadas
monoculturas de capim, arroz, soja e café, principalmente nos municípios de Chapada
Gaúcha, Urucuia e Buritizeiro. No âmbito geral, a região norte do estado de Minas
Gerais é marcada pelos expressivos índices de pobreza (carências sociais e materiais) e
por uma agricultura em que há tímida aplicação das conquistas da ciência moderna na
agricultura. Nessa região, sobretudo ao longo do século XXI (principalmente no
governo Lula) ocorreu um processo crescente referente a incidência de programas
sociais no contexto dasvpolíticas sociais, sobretudo relativo a programas de
transferência de renda como do tipo Bolsa Família (PBF) e benefícios sociais não-
contributivos como aposentadorias ( no contexto de “universalização” da previdência
social) , pensões e a incidência de um mix de políticas públicas de caráter estrutural
com destaque para o programa Minas sem Fome e da esfera federal, como o Programa
“Luz para todos” , dentre outros, que tem inferido consideravelmente nas condições de
vida das famílias rurais e inclusive contribuindo a conformação de um fenômeno (ainda
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pouco pesquisado) que se refere a permanência de determinadas famílias no campo e
até mesmo na atividade agrícola (RIBEIRO et al., 2007) em uma região historicamente
considerada como de emigração como é o caso emblemático do Norte e do Nordeste do
estado de Minas Gerais. O norte e o nordeste do estado de Minas são presentes no
cenário nacional como uma espécie de “bolsão de miséria” e por ter estabelecido como
um “viveiro de migrantes” com a migração dos “povos” rurais para as mais diversas
regiões do país configurando índices que indicam um processo regional de
desruralização. A leituravi sobre as dinâmicas regionais no país apontam que
principalmente nas regiões brasileiras onde há altos índices de pobreza e um mercado de
trabalho local pouco dinâmico, a satisfação das necessidades básicas de determinadas
famílias, da posse de determinados bens (a garantia de certo nível de conforto), de
acesso a uma infraestrutura social (como educação e saúde) e de um determinado
rendimento (sobretudo das transferências de renda) estão intrinsecamente relacionadas a
“presença” do estado nessas regiões.
Nesse sentido, o principal objetivo desse texto é apresentar as condições, os modos e
meios de vida de “povosvii” rurais residentes no Norte do Estado de Minas Gerais. Os
processos sociais, econômicos e culturais serão entendidos a partir de entrevistas
realizadas com povos rurais residentes no município de São Francisco e Januária
localizados no Norte do estado de Minas Gerais nos anos de 2008 e 2009 no âmbito da
pesquisa de mestrado no CPDA – UFRRJ e dados coletados em sites (IBGE, MDS,
MDA) no ano de 2011 quando estava sendo esboçada a proposta de doutoramento na
FCT-UNESP. Esses recortes espaciais tem em comum o fato de a maior parte da
população ativa desses municípios trabalharem em atividades consideradas
essencialmente agrícolas, configurarem entre os mais pobres economicamente no
universo de todos os municípios mineirosviii e pelo peso das transferências de renda para
as economias locais. Pela complexidade dos fenômenos que serão retratados esse texto
não tem a pretensão de esgotar a discussão aqui proposta. Serão apresentados de forma
bastante geral os fenômenos percebidos na “descida ao campo” nessas regiões,
sobretudo quando for discutida a dinâmica populacional, o fenômeno da permanência
(ainda que transitória) desses povos em seus locais de origem e a incidência nos recortes
espaciais de um conjunto de políticas públicas e seus impactos nas escalas locais.
Considerando o “estado da arte” sobre a dinâmica populacional brasileira, o meio rural é
recorrentemente apresentado com um “espaço de repulsão”. Entende-se aqui que a
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mobilidade espacial e o seu contraponto (a permanência) é multideterminada e um fato
social total (SAYAD,1998) ainda que o campo acadêmico a partir de uma perspectiva
“macroestrutural” em grande medida considere que na história do país essa mobilidade
em tempos e espaços destinos foi influenciadaix principalmente desigualdades regionais
e a dinâmica do mercado de trabalho no âmbito de uma sociedade capitalista. Na década
de 1970, por exemplo, o campo constituía um espaço de repulsão populacional,
principalmente em decorrência da concentração de terras entre grandes proprietários e
da predominância em certas áreas do país de culturas de subsistência com produção
limitada, resultado da insuficiência de terras para cultivo, de limites de crédito, de
dificuldade de comercialização, entre outras. Nas palavras de um autor, essas regiões
eram “produtoras” de mão-de-obra para as regiões mais dinâmicas do Brasil que atraíam
os mais importantes fluxos migratórios (SINGER, 1976). O processo de transferência da
população de regiões “estagnadas” para regiões “modernas” seria uma dinâmica
representativa do avanço do capitalismo no país. As migrações internas no país
resultariam do processo de conformação de uma desigualdadex entre as regiões
brasileiras a partir da centralização das atividades industriais em determinadas cidades
brasileiras, sobretudo São Paulo e o Rio de Janeiro (LOPES, 1971). Em uma
perspectiva “micro estrutural” a movimentação espacial foi e permanece como um
elemento de estratégia de reprodução social de grupos rurais, ainda que com
significados distintos e multideterminada conforme a realidade de cada grupo familiar (
GARCIA JR., 1989; WOORTMANN, 1990; FELIX, 2008).
Mesmo considerando a grande perda da “massa populacional” residente em áreas rurais
no processo histórico brasileiro, há em decurso um processo “recente” concernente aos
espaços rurais. Nos anos de 1980 houve uma diminuição desse êxodo rural. Nesse
contexto, passa a ser um fenômeno recorrente o retorno dos povos rurais a suas regiões
de origem e até mesmo uma retomada do crescimento populacional em determinadas
regiões do país (HESPANHOL, 2008). Um fenômeno presente na dinâmica
populacional brasileira na década de 1990 tem sido uma diminuição da migração do
campo em direção as cidades e, ainda que pequeno, o aumento da população rural em
diversas localidades do País (DEL GROSSI et al., 2001).
Na produção dos dados durante a realização de surveys no Norte do Estado de Minas
Gerais em 2008/2009 dois pontos chamaram a atenção: é bastante presente no cenário
local uma mobilidade espacial de sua população. Essa mobilidade de fato está presente
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na dinâmica de todas as famílias, embora seja muito comum a permanência de
indivíduosxi no meio rural; e a disseminação na região de benefícios sociais não-
contributivos, sobretudo o Programa Bolsa Família, as aposentadorias e as pensões,
beneficiando indivíduos que não contribuíram para a previdência durante sua vida ativa.
Outro fator que chama atenção é a incidência na região de um conjunto de políticas
públicas, com a atuação do governo no município e estado, como exemplos o “Minas
sem Fome”, “Luz para Todos” e programas de habitação rural, que incidem
consideravelmente sobre as famílias rurais nessa região. Nesse sentido, esse texto
tentará apresentar ao leitor um fenômeno ainda em decurso. No universo social
apresentado há a incidência de uma diversidade de políticas públicas que interagem no
espaço e repercutem consideravelmente nas dinâmicas das famílias rurais pobres. Estas
interferem inclusive nas dinâmicas de mobilidade espacial das mesmas, condicionando
a permanência de pessoas em seus locais de origem e inclusive na atividade agrícola
ainda que em condição de pobreza. Essa afirmação será mais bem qualificada ao longo
do texto. Quanto ao conceito de pobreza esse inclui aspectos mais normativos que
teóricos sujeitos à extensa gama de definições e classificações. Pobreza não é uma
categoria analítica e não define sociológica ou geograficamente um grupo, mas pode ser
definida como: ter menos que um mínimo objetivamente definido (pobreza absoluta);
ter menos do que os outros na sociedade (pobreza relativa); e sentir que não se tem o
suficiente para seguir adiante (pobreza subjetiva) (HAGENAARS & DE VOS apud
HOFFMANN & KAGEYAMA, 2007). A pobreza é um fenômeno multidimensional
que assume um caráter de privação das capacidadesxii (SEN, 2000). Entre formuladores
de políticas públicas no país, como do Programa Bolsa Família, como exemplo
emblemático, é bastante comum à fixação de renda para definir uma “dimensão da
pobreza” e calcular as medidas agregadas a essa categoria. Deve-se considerar que o
rendimento de um grupo familiar é o indicador sintético de uma situação social e
econômica. Um rendimento familiar considerado suficiente para a sobrevivência pode
estar relacionado a condições de moradia inadequadas, assim como a baixa escolaridade
dos membros dessas famílias, crianças em idade escolar inseridas em um trabalho
precário ou também ao trabalho precário de outros membros do grupo familiar.
Concorda-se com Hoffmann & Kageyama (2007) que a mensuração da pobreza deve ser
multidimensional e multissetorial, ou seja, deve ser analisada mediante combinação de
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carência e de não-carência (de rendimentos, moradia, inserção do mercado de trabalho,
acesso a serviços de educação).
Em uma região caracterizada pela pobreza (econômica e material) e por uma
multiplicidade de fontes de rendimento, em grande parte relacionada a benefícios
sociais, é importante considerar que esses rendimentos estão atrelados o ciclos de vida
das famílias: famílias com muitas crianças com maior propensão a serem beneficiárias
do Programa Bolsa Família (PBF); com idosos (beneficiárias da previdência rural); com
pessoas ativas com maior propensão aos rendimentos decorrentes do trabalho (na
agricultura ou combinado a trabalhos fora da atividade agrícola).
A natureza do ciclo de vida interfere consideravelmente nas trajetórias e condições de
vida das famílias. Entre famílias com muitas crianças, a vulnerabilidade é maior que
entre famílias com idosos. Por ter condições melhores condições materiais, as famílias
com idosos conseguem proporcionar melhores condições de vida aos seus membros que
aquelas com muitos membros dependentes e apenas beneficiária do PBF, como
exemplo. Esses elementos serão apresentados de uma forma mais descritiva ao longo
dos próximos tópicos.
A atividade agrícola: Mecanismos de vida das famílias rurais
No universo social norte mineiro a atividade agrícola (trabalho na roça) desempenha
importante papel na reprodução social das famílias e/ou grupos domésticos. Entre os
grupos sociais mais pobres que trabalham na atividade agrícola não é possível afirmar
rendimentos exatos, mas geralmente são rendimentos declarados entre 1 a 2 salários
mínimos ou a até mesmo a inexistência desses rendimentos pela impossibilidade de
retirada de uma renda da terra. No geral, as famílias não conseguem definir uma renda
exata. Na realidade dos grupos familiares, a tríade terra, família e trabalho estão
intimamente ligados. As atividades relacionadas ao trabalho na roça envolvem todo o
conjunto de membros do grupo familiar, incluso as esposas e os filhos jovens. Estão
sendo apresentadas trajetórias familiares que são demarcadas pelo trabalho na
agricultura. São herdeiros da terra (incluso herança das mulheres) que cultivam milho,
feijão, batata e mandioca basicamente para o consumo familiar e para a comercialização
nos mercados locais. Com a chegada da água encanada pelo Programa “Minas sem
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Fome” houve uma modificação das estruturas produtivas em determinadas unidades de
produção que possibilitou ampliar a área cultivada com feijão como exemplo.
Em uma região de seca, a atividade “congela” durante grande parte do ano em
propriedades onde não é possível irrigar os cultivos agrícolas. A agricultura
desenvolvida pelos grupos familiares mais pobres é baseada no sistema de coivaras e é
praticamente inexistente nessas propriedades a utilização de técnicas modernas de
cultivar a terra dificultando a geração de excedentes agrícolas que possam ser
comercializados. Para as famílias mais pobres o cultivo de feijão nos três meses de
chuva é estocado para o consumo do grupo familiar e o cultivo do milho são estocados
para manter a criação de animais que são mantidos principalmente para o sustento do
grupo familiar. A partir da avaliação do grupo familiar o que é considerado excedente
de produção é comercializado junto aos comerciantes locais. Entende-se aqui por
produção excedente como a parcela da produção para além do necessário para o
autoconsumo do grupo familiar. Ou seja, produção excedente é diferente do cultivo “pro
gasto”.
Nos períodos de seca não ocorre o abandono dos cultivos agrícolas mas a produção é
consideravelmente prejudica pela escassez de um elemento natural: a água. Pela
dificuldade das famílias comprarem equipamentos de irrigação, a produção agrícola é
consideravelmente menor nesses períodos, tanto em espaço de cultivo quanto em
quantidade colhida. Com uma produção limitada, é mais comum o estoque dessa
produção que a venda para auferir uma renda da terra.
Para essa família que trabalham em uma “agricultura atrasada”, a roça significa lugar
para a produção que será destinada principalmente ao autoconsumo do grupo
configurando uma contração entre unidade de produção e consumo. O principal
sentido e significado do trabalho das famílias rurais pobres é a garantia de sua própria
alimentação. Essa produção de auto-consumo ou “pro gasto” em uma realidade em que
a segurança alimentar é comprometida significa sobretudo uma “fonte de renda não-
monetária” (GRISA & SCHNIDER, 2008) que possibilita uma melhor condição de
alimentação e até mesmo de vida para esses povos do campo.
As estratégias de reprodução social dessas famílias rurais em grande medida é
resultado de fatores internos ao grupo familiar (pobreza, tamanho das famílias , tamanho
dos grupos domésticos, dimensões dos patrimônios territoriais da família,
descapitalização dos grupos, etc). Essas dinâmicas locais lembram (resguardando as
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particularidades) os camponeses russos de fronteira quando a estrutura da exploração
natural é baseada na “ a intensidade do cultivo e suas formas organizativas que
dependem (...) da extensão da terra utilizável , do tamanho da família ,e da extensão de
suas necessidades, ou seja fatores internos como tamanho e composição das famílias
proporcionalmente ao tamanho das terras cultiváveis ” como demonstrou Chayanov
(1974, 145). O comportamento das famílias rurais é definido pelos interesses dos
membros do grupo doméstico. A partir da “unidade do organismo econômico familiar,
na indivisibilidade da renda e na determinação estritamente subjetiva de seu processo
de tomada de decisão”, a auto exploração decorre de um processo de tomadas de
decisão interno a família e as decisões de produzir determinada por condições internas
a unidades de produção.
No geral, as condições de vida e as próprias condições materiais e simbólicas de
existência desses grupos rurais norte mineiros visitados são diretamente relacionadas ao
ciclo de vida doméstico. Famílias com muitos dependentes, como crianças e jovens sem
um trabalho remunerado são mais vulneráveis a pobreza e a situações de miséria.
Família com velhos tem uma maior possibilidade de mudança de sua condição social e
de seu próprio grupo familiar. As famílias que produzem apenas “pro gasto” ou com
pequena inserção da produção no mercado local geralmente tem suas condições
materiais de existência consideravelmente comprometidas. Esses fenômenos serão
melhores tratados no tópico posterior. Inicialmente, é importante ressaltar que entende-
se que a natureza do ciclo de vida familiar e a incidência no espaço intra-doméstico de
rendimentos não-contributivos são um dos principais elementos que interferem nos
modos, meios e condições de vida dos povos rurais pobres aqui retratados.
Bolsa Familia, Aposentadoria e pensões: politicas socias e as condições de vida dos
povos pobres.
A presença do poder público no espaço doméstico dos povos pobres é um dos principais
elementos que interferem na dinâmica e nos espaços de vida dessas famílias rurais. A
previdência rural é um benefício bastante emblemático para o entendimento desse
processo. Com a contração desse benefício por algum membro (ou membros)
componentes desses grupos ocorre considerável interferência na economia familiar
(estabilização de uma fonte de rendimento) e nas condições materiais de existência
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desses povos com a compra de bens de consumo (geladeira, fogões, entre outros ),
melhorias nas residências , nas vestimentas e diversos outros elementos que os membros
da família desejam adquirir. No âmbito local, pelo pouco dinamismo da economia no
sentido de geração de emprego e renda dos aposentados tem um “maior poder” de “dar
um fôlego ” aos comércios locais. No universo norte mineiro dentre as famílias rurais
que combinam uma diversidade de rendimentos (Bolsa família + agricultura, agricultura
+ rendimentos não-agrícolas, apenas agricultura, dentre outros), a população idosa é a
que tem maior potencial de redução expressiva da pobreza no campo (BATISTA, 2010).
Os idosos (não raro) acumulam a aposentadoria com outras diversas fontes de renda
como as pensões, do trabalho na atividade agrícola e de atividades não-agrícolas (caso
dos comerciantes rurais aposentados). A aquisição de uma aposentadoria não é em
determinados casos um elementos de fomento da saída, e sim de fortalecimento da
permanência dessas pessoas na atividade agrícola (no trabalho na roça). Excluindo o
caso de pessoas com problemas físicos ou mentais a permanência dessas pessoas (os
aposentados) na atividade agrícola representa também um elemento simbólico: é no
trabalho na roça que muitas pessoas constroem e dão sentido a sua própria existência
social.
A aposentadoria “estabiliza” o rendimento familiar no contexto de uma atividade
agrícola sujeita a diversas oscilações tanto de caráter estruturais quanto conjunturais. Na
pesquisa do mestrado, foi constatado que no contexto de escasso apoio à produção
agrícola familiar no âmbito dessas localidades, uma das funções que recursos
previdenciários estão assumindo entre os pequenos agricultores é uma espécie de
“seguro-agrícola”, uma vez que o beneficio além de possibilitar a “subsistência
familiar” e modificar as condições de vida desses povos rurais tem permitido o
investimento desse beneficio na pequena produção, ainda que “esse benefício não seja
sucedâneo do seguro agrícola clássico” (Delgado & Cardoso Jr., 2001). De conjunto de
impactos da previdência rural nas esferas locais norte mineiras , a aposentadoria rural
por sua regularidade, segurança e liquidez monetária, preenche de certa forma um
papel de maximização de um campo de possibilidades (as vezes restrito) de
permanência das famílias no campo e na atividade agrícola, expandindo e sustentando
consideravelmente as estratégias das famílias de se manterem na agricultura, com a
compra de insumos, maquinários, redes de irrigação (que minimizam os efeitos da seca
) e outros elementos que possibilitam a manutenção do grupo familiar durante todo o
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ano na atividade agrícola, tanto no intuito de produção para o autoconsumo quanto
para geração de excedentes comercializáveis. Para os aposentados rurais proprietários
de terra, com esse benefício, muitas vezes é possível à ampliação da atividade agrícola
mediante contratação de funcionários fixos ou temporários que o auxiliam
principalmente na limpeza da roça ou nos cuidados dos com os animais (as matrizes
leiteiras, os animais de carga, assim por diante), no plantio de sementes nos períodos de
chuvas, na colheita e na construção de cercas. Em cenários de negativos rendimentos
com a produção mercantil e inclusive em conjecturas em que é pouco possível gerar
excedente na produção agrícola que possibilite a comercialização do produto, os
aposentados rurais e o seu rendimento é incorporado ao orçamento familiar (muita das
vezes como um “indivisível”) assegurando as necessidades básicas de seu grupo ,
sobretudo em questões relativas a alimentação.
No caso do Programa Bolsa Família que tem uma presença mais expressiva no interior
dos espaços domésticos (maior em número de famílias atendidas, mas com valor do
beneficio bem menor que a dos aposentados rurais ) esse rendimento altera de forma
pouco significativa a economia doméstica e as possibilidades das famílias terem certo
aumento da quantidade e qualidade dos alimentos e recursos financeiros que possibilite
a compra de eletrodomésticos e móveis (mesmo que financiados a longos prazos de
pagamento), roupas, calçados e a melhoria das residências. Para determinados grupos
familiares, o Bolsa Família é uma fonte de renda complementar à de outros trabalhos,
como na roça ou de outros benefícios sociais (aposentadoria e pensões). No entanto, não
raro, o PBF é a única fonte de renda, inclusive para famílias proprietárias de terra que
não conseguem obter renda da terra. Certamente no contexto de famílias cuja única
fonte de renda é o beneficio do PBF indicada uma nítida condição de pobreza (definida
a partir da renda) e a vulnerabilidade a insegurança alimentar. Pela fase e a natureza do
ciclo familiar, famílias com um grande número de dependente (crianças que não estão
na vida ativa), o grupo familiar se torna vulnerável a permanecerem na condição de
pobres. Entre as famílias norte mineiras, quanto menor o número de membros
dependentes do grupo familiar e quanto maior o número de pessoas trabalhando ou
idosos aposentados, menor a incidência de pobreza. O ciclo de vida familiar é
importante para compreensão das condições de vida das famílias. Diversas famílias que
afirmaram terem passado por privações de acesso a alimentação, como exemplo,
atualmente encontram-se em situações mais confortáveis. No caso dessas famílias, “o
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tempo da fome” e da “necessidade” corresponde ao período em que havia muitos
dependentes, geralmente muitas crianças. Com a migração de alguns indivíduos ou a
mudança de residência após o casamento de outros filhos, os que permanecem na
residência, conseguem melhora em suas condições de vida, seja pelo trabalho seja pelo
acesso a determinados benefícios sociais (como exemplo a aposentadoria).
Quanto à dinâmica populacional local, pelo ambiente social e econômico retratado e
marcado por uma intensa circularidade de pessoas, há indivíduos que sempre residiram
nos locais de origem. Há permanência de pessoas no meio rural, por não terem em sua
trajetória uma oportunidade de sair, mas há uma contramobilidade, decorrente da
permanência no lugar motivada em grande parte pela melhoria nas condições de vida
das famílias em decorrência a incidência nessas regiões de um mix de políticas
públicas, sobretudo o Minas sem Fome e o programa do Governo Federal “Luz para
Todos” como citados anteriormente, que favoreceram e continuam favorecendo o
acesso de famílias rurais a água encanada e energia elétrica, respectivamente. Luz
elétrica e água encanada são apenas alguns dos diversos elementos que a “chegada do
poder público” possibilita as famílias terem acesso. Entende-se que os processos sociais,
econômicos e até mesmo culturais são re-configurados a partir do momento que há a
“presença” do poder públicos nos “mundos rurais” com altos índices de pobreza.
A energia foi um trem que ajudou demais, ajudou o povo ter mais conforto. O “Luz para Todos” é um projeto do governo que vem com tudo: a lâmpada, a tomada, os fios. [...] De primeiro as coisas eram difíceis demais [...] Esses meninos que nasceram hoje tá em berço de ouro. [...] Sem a luz elétrica não tinha como ter um aparelho em casa, uma televisão, um ventilador, só o rádio a pilha. Hoje tem mais acesso a informação. Ficava tudo isolado, sem informação, longe do mundo. Tem um primo que mudou para SP com 16 anos e voltou agora [férias de julho] para passear e ficou impressionado como as coisas mudaram por aqui. [...] A água era longe, da mesma água que o gado bebia nós bebíamos também. Hoje tem água encanada. Antes eu pegava água longe na carreta de boi. Hoje tem água encanada e energia na casa [...] com a luz e água ficou mais fácil viver na “roça” , fica tudo mais fácil.(Dona Doralda, residente na sede de seu sítio, Januária (MG)).
A criação de programas como a aposentadoria rural nos anos 70, posteriormente
ampliados nas décadas de 1980; o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (PRONAF) na década de 1990, aperfeiçoamento no início do Século XXI, e a
criação de programas de bolsas e programas de erradicação da pobreza, unificados e
ampliados no Bolsa Família nos anos 2000, abrangem um número considerável de
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grupos sociais, dando “um fôlego” para essas famílias que têm poucas, ou nenhuma
fonte de renda em dinheiro.
O relato de outra mulher de agricultor, que já esteve na condição de “migrante”,
demonstra a visão da entrevistada em relação à migração e a opção pela morada na roça:
Eu prefiro morar na “roça”, já morei em outro lugar, eu digo que quero ficar aqui mesmo, não saio daqui de jeito nenhum.Já morei 9 anos em São Paulo, quando eu era mais nova. Mas eu nunca pensei em morar direto lá. Eu sempre pensei em morar aqui. O modo de vida é muito melhor, mais sossegado, sem preocupação. Agente vê em jornal tanta coisa ruim que tá acontecendo, não compensa ir pra lá não. Isso de ir pra cidade grande, de vencer lá é ilusão, tem gente que tá aqui com pouco, mais dá pra viver assim mesmo, pelo menos tem sossego, e tem gente que vai e nem dá certo e volta(Alzira, mulher de agricultor residente no meio rural de São Francisco (MG)).
Pelas observações e entrevistas coletadas ao longo de pesquisa de campo em realidade
marcada por uma intensa circularidade de pessoas, é possível reconhecer três tipos,
ainda que não necessariamente distintos de dinâmicas populacionais: os que saíram e
saem por um tempo mais longo, portanto não retornaram para a local de origem, os que
saem e retornam para o campo em períodos mais curtos (caso emblemático dos
cortadores de cana que migram temporariamente para o estado de São Paulo) e os
indivíduos que ainda irão sair. Entretanto, esses tipos não são rígidos. Como exemplo,
há pessoas que saíram da “roça”, moraram na cidade durante grande parte de sua vida e
retornaram ao local de origem após a conquista da condição de aposentados, inclusive
retornando com a mulher que conheceu em sua trajetória de mobilidade. Nesse
contexto, o morar perto dos parentes, morar no sossego da “roça”, ter um ritmo de vida
mais calmo contribui para a opção dessa “migração de retorno”. Apesar do grande
numero de pessoas com trajetórias marcadas pela mobilidade espacial, há pessoas que
sempre residiram no local de origem como visto anteriormente. Nesse sentido, soma-se
ao texto o relato do Sr. Salvador e de sua mulher.
Nunca moramos na cidade não. Nós que moramos na roça há muito tempo, que trabalha aqui na roça desde que entende por gente, se for morar na cidade sabe é que vai passar fome. Esse negócio de morar na cidade é ilusão. Eu sei que eu tenho de trabalhar é na roça, na foice, no machado, no forno de carvão. Isso é que eu faço, não adianta inventar de querer ir embora fazer outra coisa que não dá não. O povo fica batendo a cabeça caçando “miora”, mais essa é minha forma de viver, tirando o leitinho, fazendo as coisas na roça. Na cidade tem um salário
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mais ou menos, mais o aluguel mata né?. Quem tá pra lá (na cidade) acha que tá bom, mais quando chega aqui, os que tão aqui tão melhor ainda. O que não tô entendendo é isso. Os que tão aqui estão melhor que os que estão em são Paulo(Salvador, 54 anos, Agricultor).
O relato do informante acima que afirma nunca ter morado na cidade, deve ser
analisado a partir da pobreza de seu grupo de origem. Sendo difícil a permanência, por
outro lado, também não é fácil a saída. Travessias dos que “correm trecho” e os que vão
para os mais diversificados destinos do país: vão, ficam e voltam, como circularidades
socioespaciais. No entanto, se há os que buscam o espaço da rua, há aqueles que
permanecem no espaço da casa, como o exemplo a esposa de agricultor que sempre
residiu no local de origem:
Sempre morei aqui. Nunca sai não. Morei aqui e casei aqui. Nunca sai não. Já fui para são Paulo, mais pra passear. Para passear lá é bom, agora para morar não é bom não. Gosto de ir para a cidade, só pra passear. Não tenho vontade de sair da roça para morar na cidade. Sair da roça para morar na cidade é muito ruim. Quem ta na cidade ta achando ruim, quem ta aqui ta achando ruim também, mais ainda ta melhor.
Segundo a informante os pontos positivos relativos à roça referem-se à tranquilidade
que contrapõe à correria de São Paulo e à violência urbana. “Eu não pretendo sair da
roça não. Aqui a gente dorme tranquilo, pode deixar a casa aberta que ninguém pega
nada”. Outro ponto positivo em relação a morar na roça refere-se ao custo de vida,
sobretudo com alimentação.
Aqui se plantar um pé de laranja ele dá, não precisa comprar. Se plantar uma horta dá, não precisa comprar. Na cidade é tudo caro, e tudo tem que plantar. Na horta pego a mistura, pego o quiabo, o maxixe, o tomate. Não compro nada, tudo eu que planto. aqui na roça eu planto de tudo um pouquinho, mais para consumir. Esse ano nem comprei verdura, foi tudo da minha horta. Depois que tem água ficou muito mais fácil plantar na horta.
A literatura regional tem demonstrado em diversas ocasiões a mobilidade espacial de
pessoas que não possuem terra e dos donos da terra que migram em épocas,tempos e
espaços plurais como forma de resistência no seu lugar de origem: sair para ficar; ir,
trabalhar, juntar recursos, enviar os recursos para a família; e, depois e de certo tempo,
voltar na realidade do Vale do Jequitinhonha (MAIA, 2004, PAULA, 2009). Em
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realidade locais no norte do estado de Minas Gerais, entre as famílias proprietárias de
terra, em determinadas circunstâncias, o trabalho na roça é elemento considerável para a
permanência de alguns indivíduosxiii no campo durante todo o ano. Mesmo entre as
famílias que têm terra, há a circularidade de parte de seus membros. Nesse sentido, a
propriedade da terra por si só não explicar a permanência de determinados indivíduos ao
longo de todo o ano na comunidade. Essa permanência é muito mais influenciada por
uma identidade territorial, o gostar da roça, das pessoas (“as pessoas na roça são mais
companheiras”), do interior, do sossego, do mato, que propriamente do fato de ser dono
da terra. Inclusive, para certos indivíduos, a saída é uma tentativa de não permanecer
trabalhando na atividade agrícola com a família. No entanto, há pessoas que optam por
permanecer na roça e no trabalho rural como um ser da roça, não um ser que está na
roça. O que mais me segura aqui é o trabalho na roça, porque minha função é essa. A cada dia você vai melhorando, trabalhando, ampliando a produção e tem mercado pra isso. Se eu for pra fora eu não vou ter a renda que eu tenho aqui e minha intenção é de trabalhar mais e melhorar a cada dia (Pedro, 42 anos, proprietário da terra, São Francisco(MG)).
O relato acima é de um agricultor que inicialmente se especializou-se na pecuária
leiteira. No entanto, o tamanho da propriedade, 5 hectares, somado às condições
ambientais do Norte de Minas, diferente das condições ambientais de origem das
matrizes leiteiras, Sul de Minas, inviabilizou o trabalho da família exclusivamente na
pecuária. Segundo o agricultor, quando a família trabalhava exclusivamente na
pecuária, a vida era mais precária, com uma renda nunca superior a R$ 600,00 mensais.
Com a crise na pecuária leiteira, com a perda das matrizes no período de seca, houve
uma diversificação nas atividades agrícolas, sobretudo com o retorno para o cultivo de
grãos (de milho, milho sorgo e feijão). O trabalho na horta é predominantemente
familiar. O chefe da unidade familiar de produção se concentra na parte administrativa e
na entrega de encomenda nos supermercados, nas escolas, nas casas de consumidores
(residentes nas roças e na cidade) e nas feiras esporádicas que ocorrem na cidade de São
Francisco (MG), e na cidade de Icaraí de Minas, MG. Os filhos homens com 14 e 19
anos de idade, quando não estão na escola, trabalham na horta junto com a mãe. Um
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filho de 23 anos trabalha como caixa de supermercado e duas filhas jovens foram para
São Paulo (SP).
Entre as famílias proprietárias de terra, muitas vezes o “ficar” é diretamente
influenciado pelo trabalho na atividade agrícola, sobretudo para o chefe da família. O
ter que cuidar da “criação” e da “roça” é elemento que contribui para sua permanência
durante todo o ano na “roça”. Numa pesquisa nessa região, com grande diversidade de
grupos sociais e condições de vidas tão diferentes, não é uma tarefa fácil trabalhar com
a ideia de permanência, pois ficar e sair são lados da mesma moeda.
Os deslocamentos espaciais no e entre tempos e espaços diversificados são em grande
medida temporários, mas podem se estender por longo tempo, não anulando a
possibilidade do retorno. Para a dinâmica populacional retratada, nesse movimento de
sair-ir-ver-viver e voltar ou sair-ir-ver-viver e ficar, não foi possível perceber um padrão
estabelecido ou algo definido aprioristicamente. Como um aspecto cultural, essa
mobilidade é constitutiva da dinâmica dessas famílias. Contudo, os fatores que
impulsionam a mobilidade ou a permanência são diversificados e perceptíveis apenas se
observado o íntimo de cada família ou a forma como cada pessoa percebe-se “no seu
mundo”.
Deve-se perceber que dinâmica populacional de “circularidade” pode, por exemplo, ser
motivada pela necessidade do indivíduo de ampliar seus “horizontes”, conhecer novos
espaços, lugares, paisagens, cenas e cenários, enfim, conhecer “o mundo”, os usos dos
corpos podem ser diversificados e a mobilidade espacial, uma forma de uso do corpo
(com significados e sentido diversificados), como exemplo, a saída na perspectiva de
dar um novo sentido à vida desses indivíduos.
Assim como a mobilidade espacial não pode ser definida apenas por um fator, deve-se
também compreender que essa saída pode ser tanto fruto de um projeto individual como
pensada em benefício da família. Entretanto, a própria saída do indivíduo muitas vezes é
também um projeto da família que se soma a um projeto individual.
Ao trabalhar com os que saem, resgatando o tempo e o espaço, para onde vão e quanto
tempo permanecem fora, é importante compreender que a saída de alguns é uma
condição fundamental para a reprodução social das famílias. Por outro lado, a
permanência de alguns membros das famílias no campo é importante para a saída de
outros membros dos grupos em condições favoráveis, como os estudantes, oriundo de
grupos domésticos com mais recursos, seja em terraxivseja em dinheiro. Há uma
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heterogeneidade nas condições socioeconômicas dos que saem que evidencia as
desigualdades nas condições sociais e econômicas de suas famílias. Se há os jovens que
vão para cidade na condição de universitários, por exemplo, há também aqueles que vão
para São Paulo trabalhar como frentistas ou para Goiás para trabalhar na colheita de
batata. A saída dos jovens para a progressão no ensino é bastante emblemática, pois o
grupo familiar prefere arcar com esses custos relativos à educação, diminuindo até
mesmo os investimentos na atividade agrícola, que investir na permanência desses
jovens na atividade agrícola. O investimento na educação é uma forma de os filhos não
permanecerem na atividade agrícola. Em geral, a saída é um processo que alimenta uma
expectativa de futuro melhor, no entanto, não anula a possibilidade de retorno. É nessa
dinâmica populacional marcada pela circularidade, de idas e retornos que cada família é
afetada pelas travessias. As travessias fazem parte das diversas estratégias de
reprodução dos grupos familiares e, em muitas vezes, é na travessia que a família almeja
a possibilidade de ascensão social.
Considerações finais
Entende-se que os modos, os meios e as condições de vida de vida dos povos rurais
residentes em região com elevados índices de pobreza são consideravelmente
modificados com a chegada de um mix de políticas públicas federais, estaduais e
municipais. Ou seja, a dinâmica dos grupos familiares pobres são impactadas com
maior grau pela presença do estado nos espaços intra-domésticos que propriamente a
dinâmica do mercado de trabalho nessas regiões. Como exemplos emblemáticos, o
programa luz para todos (do governo federal), Minas Sem Fome (do governo do estado
de Minas Gerais) e programas de melhorias das residências rurais (políticas municipais)
tem inferido na vida desses povos rurais inclusive resignificando o sentido de morar na
roça visto por esses grupos como positivo frente às melhorias (ainda que pontuais) nas
escalas locais que essas políticas viabilizam. As políticas de transferência de renda é
outro elemento considerável na conformação de um sentido de ”segurar” ainda que
temporariamente essas pessoas em seus locais de origem. Em uma região historicamente
considerada como “viveiro de emigrantes” permanece o desafio para os pesquisadores
de entender o sentido e significado dos discursos dos povos rurais que optam por
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permanecer em seus locais de origem e quais são os diversos elementos que estão
conformando esse fenômeno (o da permanência ).
Notas i Entende-se aqui o complexo agroindustrial, CAI, a partir de Müller (1987, p.45), que “ em termos formais, como um conjunto formado pela sucessão de atividades vinculadas à produção e transformação de produtos agropecuários e florestais. Atividades tais como: a geração destes produtos, seu beneficiamento/transformação e a produção de bens de capital e de insumos industriais para as atividades agrícolas; ainda: a coleta, a armazenagem, o transporte, a distribuição dos produtos industriais e agrícolas; e ainda mais: o financiamento, a pesquisa e a tecnologia e a assistência técnica(...) a agricultura , em que pese ser uma atividade principal, pode estar subordinada a setores industriais ou, até mesmo, a setores comerciais, como por exemplo, os supermercados”. ii É importante ressaltar que a noção de região possui uma diversidade de significados dependendo de quem a aciona, seja pelo Estado, pelo senso comum ou no âmbito da própria ciência, sobretudo pela Geografia (GOMES, 2007). Como empregado no texto, região aparece com o sentido de unidade administrativa, ou seja, divisão regional como o “meio pelo qual se exerce frequentemente a hierarquia e o controle na administração dos estados” (GOMES, 1007, p.53). Entretanto, se reconhece os diversos domínios da noção de região, a sua complexidade e sua multiplicidade de significações. iii Essa breve exposição sobre alguns exemplos emblemáticos da diversidade da agricultura brasileira não dá conta (e não é o objetivo do texto) de explanar sobre toda essa heterogeneidade do “mundo rural nacional” e as diferenciações regionais existentes no país. iv A Região Sul é caracterizada pelo peso social, econômico, político e cultural da agricultura familiar na sua formação econômica. A diversificação da agricultura, somada à combinação das atividades agrícolas e não-agrícolas, entre outros fatores, fizeram do Sul a região com índices de desenvolvimento humano mais elevado do país (GUANZIROLI et al., 2001). v Entende-se por políticas sociais um subconjunto de políticas públicas relacionadas à ações que determinam padrões de proteção social e que decorre da distribuição de benefícios sociais no intuito de diminuir desigualdades estruturais decorrentes da trajetória de desenvolvimento econômico (CASTRO ET AL., 2009). vi As pesquisas desenvolvidas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstram claramente esse fenômeno. Nas regiões Norte e Nordeste do país e na região norte e nordeste de Minas Gerias a ampliação de políticas sociais direcionadas a populações carentes, como é o caso do Programa Bolsa Família e rendimentos não-contributivos, como as aposentadorias e pensões tem em determinadas escalas locais um peso maior que os rendimentos advindos do mercado de trabalho (SABOIA , 2004; SIQUEIRA , 2007; VALE, 2008, dentre outros) vii Povos rurais é uma noção ainda bastante vaga que está sendo melhor qualificada . De forma bastante geral, entende-se por povos rurais como uma noção que “engloba” uma dimensão social, cultural /identitária, territorial e ambiental que é inerente a uma sociedade especifica. Como uma referência cultural, essas sociedades estariam vinculadas a um território e conectadas a uma identidade cultural própria determinada pela relação com um ambiente social e natural bastante especifico que determinaria, por exemplo, diversas estratégias de reprodução social. Considera-se que a expressão povos rurais ou povos do lugar reforça uma dimensão espaço/território e a cultura enfatizando a relação entre essas diversas categorias e o reforço de uma ideia de pertencimento e enraizamento(cultural) a um determinado lugar socialmente construído e delimitado : uma localidade ou um território viii Os dados sobre os municípios norte mineiros disponíveis no IBGE Cidades não raro aponta índices de pobreza superiores a 50 %. Como exemplo, 69,09 % de incidencia de pobreza para o município de São João das Missões e 59,19 % para o município de Itinga (IBGE, 2010). ix Entendo que a dinâmica populacional por ser um “fato social total” é multideterminado. As desigualdades regionais e as carências sociais e materiais seriam apenas alguns dos elementos que podem interferir nessa dinâmica. Para entender os elementos que interferem na opção de famílias ou de indivíduos de “ficar” ou “sair” é fundamental destacar esses indivíduos como agentes e por quais razões esses grupos optam por ficar no lugar de origem ou “partir” . Entende-se aqui que o ambiente social e econômico a qual estão inseridos esses grupos é importante para compreender essa mobilidade entre tempos e espaços . Entretanto, é necessário também acionar outros elementos como os simbólicos que podem estar por detrás da escolha pela saída como o não pertencimento ao local de origem, desejo de viver o diferente, novas culturas, novas identidades, dentre outros elementos que não serão possível desenvolver melhor aqui.
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x Os fluxos populacionais surgiriam como um elemento balizador das assimetrias regionais pelas diferenças de rendimentos, salários, dinâmica do mercado de trabalho, dentre outros. Nessa abordagem social da mobilidade no espaço, a constituição desses fluxos é, na perspectiva macroestrutural, resultado de decisões individuais. Como elementos modeladores da mobilidade espacial, essa migração seria resultante das características regionais: regiões de atração e regiões de repulsão (push-pull factor), determinados por elementos relativos à economia e infra-estrutura. xi Nesse sentido, é importância deixar claro que tanto no município quanto na comunidade pesquisada, é mais comum a saída de pessoas de seus grupos domésticos que de famílias inteiras. xii Entende-se por capacidades as muitas liberdades de ter estilos de vida diversificados: dos fundamentais, como a alimentação, aos mais complexos, como a participação na política. As liberdades dividem-se em liberdades substantivas, relacionadas às capacidades básicas e as participações políticas e de expressão; as liberdades instrumentais, como liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora. Uma característica inerente à pobreza, sua “essência absoluta”, é expressa na fome e na inanição, pois onde ocorrem esse dois fenômenos, coexiste a pobreza (SEN, 2000, SACHS, 2006). xiii Entre os chefes de família proprietários da terra é comum a permanência na comunidade e no trabalho na roça durante todo o ano. Entretanto, entre os filhos de proprietários da terra, o ter que lidar com as atividades ligadas a roça é mais propriamente um fator que favorece a saída que propriamente a permanência. xiv Muito comum entre as famílias que possuem terras a venda desse patrimônio para custear os estudos dos filhos.
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