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ADRIANO PORTELLA DE AMORIM POLÍTICA DE DEFESA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA: DESAFIO AO DIREITO E AO POLÍTICO Dissertação apresentada como requisito parcial para a conclusão do Programa de Mestrado em Direito e Políticas Públicas do Centro de Ensino Universitário de Brasília (UniCEUB) Orientador: Prof. Dr. Roberto A. R. de Aguiar BRASÍLIA 2008

POLÍTICA DE DEFESA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

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ADRIANO PORTELLA DE AMORIM

POLÍTICA DE DEFESA NA DEMOCRACIA BRASILEIRA:

DESAFIO AO DIREITO E AO POLÍTICO

Dissertação apresentada como requisito parcial

para a conclusão do Programa de Mestrado em

Direito e Políticas Públicas do Centro de

Ensino Universitário de Brasília (UniCEUB)

Orientador: Prof. Dr. Roberto A. R. de Aguiar

BRASÍLIA

2008

2

Para Mateus, Gabriela e Fleuris.

3

Agradeço aos professores Roberto A. R. de Aguiar, Frederico A. B. da Silva, Luiz Eduardo L. de Abreu e José Levi M. do Amaral Júnior, pelo convívio fraterno e pela oportunidade de conhecer diferentes percepções.

4

RESUMO

Recentemente foi aprovada a política de defesa nacional, que traz os conceitos de segurança e defesa, indicando a forma de atuação do Brasil. O presente trabalho tem o objetivo de analisar os fundamentos dessa política, os mecanismos de elaboração e transformação de situação em problema, além da viabilidade de implementar medidas, articular com outras políticas públicas e compor interesses em torno de questões que transcendem as ações transitórias de governo, dando ênfase à relevância de estabelecer uma estratégia de longo prazo da qual participem todos os atores políticos e sociais, inclusive no processo de integração da América do Sul, destacando o fato de que a política de defesa nacional não se circunscreve apenas ao campo militar. A metodologia abordará estudos doutrinários e a legislação que trata da matéria, estabelecendo-se construção interpretativa para demonstrar a singularidade do tema e a possibilidade de deturpação de seus aspectos práticos, na linha de que o debate democrático contribuirá para a formulação, o aperfeiçoamento e a aplicação das regras de direito correspondentes. Palavras-chaves: Direito. Democracia. Segurança e defesa nacionais. Políticas públicas.

5

ABSTRACT

Recently approved was the policy of national defense, which brings the concepts of security and defence, indicating the manner of performance of Brazil. This study aims to examine the reasons for the policy, the mechanisms for producing, processing of a problem situation, in addition to the feasibility of implementing measures, in conjunction with other public policies and the ability to compose interests around issues that transcend the actions of transitional government, emphasizing the importance of establishing a long-term strategy which involved all political and social actors, including in the process of integration of South America, highlighting the fact that the policy of national defense is not limited only the military field. The methodology will address doctrinal studies and legislation dealing with the matter, setting up construction interpretative to demonstrate the uniqueness of the subject and the possibility of misrepresentation of its practical aspects, in line with the democratic debate that will contribute to the development, improvement and enforcement of law involved. Keywords: Law. Democracy. Security and national defense. Public policies.

6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7 – 12

1 COMPOSIÇÃO DE ASSIMETRIAS ............................................................ 13 – 92

1.1 Escudo metafórico: a soberania ................................................................. 18 – 31

1.1.1 Soberania, lei, ordem e Forças Armadas ................................................. 31 – 43

1.2 Segurança e suspensão da beligerância explícita ................................... 43 – 51

1.3 Democracia: noções e distorções ................................................................ 51 – 91

1.3.1 O que é democracia? ................................................................................. 51 – 67

1.3.2 Desafios democráticos ............................................................................... 67 – 91

1.4 Incompatibilidades e convergências .......................................................... 91 – 92

2 POLÍTICA DE DEFESA BRASILEIRA ..................................................... 93 – 192

2.1 Defesa na consolidação da democracia ....................................................... 95 – 97

2.1.1 A mudança de um modelo ......................................................................... 97 – 119

2.1.2 Ruptura com o senso comum .................................................................... 119 – 123

2.1.3 Consenso e cooperação: desafio além do programático .......................... 123 – 131

2.2 Defesa e segurança na política brasileira .................................................. 131 – 139

2.2.1 Problema político-estratégico .................................................................... 139 – 172

2.2.2 Defesa e mobilização nacional .................................................................. 172 – 192

3 DEFESA E INTEGRAÇÃO .......................................................................... 193 – 238

3.1 Direito comunitário, direito internacional, globalização e soberania ..... 194 – 214

3.2 Mercosul, agenda externa brasileira e integração .................................... 214 – 226

3.3 Política de defesa brasileira e integração sul-americana ......................... 226 – 240

CONCLUSÃO ..................................................................................................... 241 – 249 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 250 – 258

7

INTRODUÇÃO

Democracia, soberania, segurança e defesa trespassam o direito e a política.

Esses temas estão inter-relacionados e, ao mesmo tempo, são conflitantes e assimétricos,

tendo em vista os questionamentos que decorrem da teoria e da experimentação prática, cuja

relevância se revela e se amplia na atualidade marcada pela multiplicidade de fatores como a

velocidade dos acontecimentos, a busca frenética da realização pessoal, a internacionalização

do comércio e da economia, a fragilização do trabalho, os dilemas e demandas sociais que

determinam a mudança na forma de governar, a falta de reconhecimento do outro, a redução

da legitimidade dos Estados em estabelecer e controlar o curso de suas ações, a dificuldade de

compor consensos voltados ao bem-comum, a crescente desconfiança no político e no

invólucro democrático que oculta ou dissimula tendências totalitárias e a sofisticação com que

estratégias persuasivas e dissuasórias são postas em prática.

Nesse contexto, soberania, segurança, democracia e defesa ganham variados

contornos na medida em que, vistos em conjunto e elevados na pauta dos debates políticos,

sociais, técnicos e acadêmicos, podem desvelar assimetrias capazes de tornar esses

tradicionais conceitos dissonantes entre si, levando ao direito e ao político desafios de nova

ordem fundamentada na construção de entendimentos a partir da multiplicidade e da

pluralidade de atores e de interesses em conflito. É, pois, da observação desses elementos que

se revela pertinente estudar a política de defesa nacional brasileira.

No Brasil, recentemente foi editado o Decreto no 5.484, de 30 de junho de

20051, por meio do qual foi aprovada a Política de Defesa Nacional. Trata-se do primeiro ato

formal do poder público a respeito do assunto. Quais os fundamentos de uma política dessa

natureza? Como articular a política de defesa com outras políticas públicas? Será possível, no

1 Publicado no Diário Oficial da União de 1o de julho de 2005.

8

jogo do poder, conciliar ou harmonizar interesses em torno de questões que transcendem as

meras políticas de governo, para projetar uma estratégia de longo prazo, da qual participem

todos os atores políticos e sociais? Essas são algumas das inquietações que permeiam o

presente trabalho, que tem o objetivo de colocar em discussão determinados aspectos

conceituais para melhor compreender os mecanismos de elaboração, de transformação de

situação em problema, de legitimidade para a formulação e o aperfeiçoamento de políticas no

cenário da democracia brasileira.

A ponderação dessas questões leva a uma ruptura com o senso comum, na

medida em que situa a política de defesa nacional além do campo militar, do beligerante, do

uso da força ou da violência legalizada. O tema tem previsão constitucional posto que o

constituinte de 1988, na organização político-administrativa do Estado, atribuiu competência

exclusiva à União para “assegurar a defesa nacional”2. Não obstante, é preciso perquirir em

que consiste a defesa nacional. Trata-se de defender o que de quem? É uma atividade

exclusiva das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública? E os demais atores

públicos e sociais? Como funciona a defesa nacional no Estado Democrático de Direito? O

que pode ser entendido por segurança e qual a sua ligação com a defesa?

Em 1990, na cidade de Tashkent, capital do Uzbequistão, especialistas

reunidos a pedido da Organização das Nações Unidas (ONU) definiram segurança como

“uma condição pela qual os Estados consideram que não existe perigo de uma agressão

militar, pressões políticas ou coerção econômica, de maneira que podem dedicar-se

livremente a seu próprio desenvolvimento e progresso”3. Basta um olhar sobre os

acontecimentos da contemporaneidade para perceber que esse estado de segurança ainda não

é vivenciado – senão por toda – pelo menos por boa parte da humanidade. Ao contrário,

verifica-se que nos âmbitos interno e externo o uso da força, a ingerência política e a

2 Nos termos do inc. III do art. 21 da Constituição Federal de 1988. 3 Extraído das disposições do tópico “1. O Estado, a Segurança e a Defesa”, da Política de Defesa Nacional.

9

influência econômica funcionam em favor de poucos como instrumentos de opressão e, por

conseguinte, de obstáculo ao livre desenvolvimento e progresso dos povos que, dentre outros

dilemas, estão sujeitos a novas formas de colonialismo que se instala e se desenvolve no

território fragmentado de cada país ou nação. Nesse sentido, a colocação de Virilio (1984, p.

92) é precisa: “Não é mais a exocolonização (a era da conquista extensiva do mundo), mas a

era da intensidade e da endocolonização. Agora só se coloniza a própria população. Apenas se

subdesenvolve a própria economia civil”. A insegurança gera a crescente busca pela defesa

que traz consigo a desconfiança, o estranhamento entre os Estados e as pessoas. Esse modelo

precisa ser superado. Um dos caminhos passa pela reformulação das percepções do conceito

de defesa, especialmente no que tange aos aspectos de estratégia.

Tomada a definição trazida pela ONU, a política de defesa brasileira

estabeleceu o que, para o país, deve ser entendido por segurança e por defesa. Segurança

consistiria num conjunto de fatores que possibilitariam a preservação da soberania e da

integridade territorial, bem como a consecução dos interesses da nação sem qualquer tipo de

pressões e ameaças, garantindo-se aos cidadãos o exercício dos direitos e deveres

constitucionais. Por outro lado, a defesa seria composta por medidas e ações do Estado,

notadamente representado pela atuação do campo militar para a proteção do território, da

soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais

ou manifestas. Note-se que os temas de segurança e defesa são tratados como atribuições

distintas, mas não diametralmente opostas ou dissociadas, lembrando que a primeira supera a

visão exclusivamente voltada aos assuntos de segurança pública, de natureza policial

preventiva e persecutória. Daí decorre, por mais paradoxal que possa parecer, a dificuldade de

estabelecer correlações conceituais e de natureza prática. Logo, o conceito de defesa não

encerra a simples idéia de atuação de forças armadas regulares para o fim de preservar a

10

soberania do país, garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem4. Não é tarefa fácil

identificar as razões que fundamentaram os atuais conceitos de segurança e defesa, ainda mais

quando o poder público os coloca separadamente. Depreende-se que, por força das

circunstâncias e da velocidade dos fatos, aqueles conceitos foram modificados e ampliados ao

longo do tempo, passando da simples idéia de confrontação entre países, de natureza de

defesa externa, bélica, a abranger, indissociavelmente, os campos político, jurídico, militar,

econômico, social e ambiental, entre outros5.

Ao diferenciar segurança de defesa, o Poder Executivo Federal assinalou

que a primeiro tem por princípio preservar o Estado, a sociedade e os indivíduos de riscos ou

ameaças, ao tempo em que a segunda tem por pressuposto manter o grau desejado de

segurança6. Qual será essa medida? Quem emite essa decisão? Como se opera, senão por

meio de políticas públicas e do uso não-instrumental do direito? Considerado que a desejada

segurança é um processo, um caminhar ao longo do tempo em face do qual o poder público

não detém amplo domínio, há de se conceber que a segurança é o fundamento da defesa, ao

tempo em que ambas devem ser consideradas mecanismos de políticas públicas

indissociáveis, podendo-se admitir que seus atores exerçam atividades diferentes, porém

complementares e interdependentes.

Um questionamento preparatório: pela segurança será possível conquistar a

defesa? A segurança corresponderia a uma situação de estabilidade política e institucional.

Em tese proporcionaria desenvolvimento e progresso com distribuição de riqueza e de

oportunidades. A defesa nacional, construída com base em medidas e ações do Estado, de

forte – mas não exclusiva – conotação militar, estaria dirigida, em boa parte, a atuar contra

ameaças externas de natureza bélica ou não. Todavia, a defesa precisa se aproximar de

4 Nos termos da previsão contida no caput do art. 142 da Constituição Federal de 1988. 5 Conforme as disposições do tópico “1. O Estado, a Segurança e a Defesa”, da Política de Defesa Nacional. 6 O grau de segurança não pode ser deslocado dos fundamentos que dão corpo ao Estado Democrático de

Direito, nos termos do art. 1o da Constituição Federal de 1988.

11

políticas públicas destinadas à consecução do estado democrático de direito. Somente

mediante o efetivo e continuado exercício dos fundamentos de cidadania, de dignidade da

pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político, o

Estado e a sociedade terão os legítimos instrumentos de sustentação de adequadas políticas

que assegurem a defesa nacional.

O presente trabalho terá por escopo abordar a política de defesa brasileira,

estabelecendo, sempre que possível, a correlação com as demais políticas públicas voltadas à

garantia dos direitos e garantias fundamentais, com o propósito de demonstrar que os

mecanismos e ações afetos à defesa estão condicionados à efetividade da segurança – também

no sentido de bem-estar social –, realizáveis, por conseguinte, por meio dos postulados do

estado democrático de direito. Portanto, será discutida a natureza transdisciplinar dos

conceitos de defesa e segurança, enfatizando-se a necessidade da combinação do direito com

as políticas públicas, de modo a que defesa e segurança não se reservem a fatias privilegiadas

da sociedade ou a projetos de poder pelo poder, mas que representem algo mais amplo.

Nessa ordem de idéias, o fio condutor da pesquisa conduz a uma

interdependência dos temas segurança e defesa na simbiose que se amplia e se dispersa na

complexa teia de relações e interesses internos e externos, cujos múltiplos efeitos trespassam

as diversidades culturais, econômicas e valorativas de todos os atores sociais que – queiram

ou não – estão envolvidos, influenciam ou se deixam conduzir pelas questões afetas à

problematização ora proposta.

Cumpre registrar que o presente trabalho, para o propósito a que se destina,

sofrerá considerável limitação de abordagem, tendo em vista que são de acesso restrito as

informações detalhadas que dizem respeito ao tema. Pretende-se que futura abordagem possa

discutir variáveis estratégicas, reaparelhamento das Forças Armadas, orçamento para a área de

defesa, incentivos à indústria nacional e estrutura organizacional do Ministério da Defesa.

12

Observados os objetivos propostos, o método expositivo-descritivo de

abordagem consistirá na discussão das questões que permeiam o tema, estruturado que foi em

três capítulos. No primeiro, serão abordadas a soberania e a segurança, como também as

noções, distorções e desafios da democracia. O segundo capítulo será dedicado à política de

defesa brasileira, passando pela inserção do tema na consolidação da democracia, a mudança

do modelo e a ruptura com o senso comum, assinalando a necessidade de consenso e

cooperação para o fim de superar o problema político-estratégico que se coloca diante do

direito e do poder político, discutindo os aspectos conceituais. Essas colocações preliminares

darão ensejo às ponderações de como a defesa pode ser pensada e os reflexos na elaboração

de políticas públicas, tecendo-se comentários à recente lei de mobilização nacional. O terceiro

e último capítulo abordará a defesa vista a partir do processo de integração regional da

América do Sul, sob o pressuposto do fortalecimento da democracia, da formação de

consensos e de colaborações para a manutenção do ambiente de paz indutor de

desenvolvimento e progresso.

Por fim, convém esclarecer que as percepções de Estado e de constituição

presentes neste trabalho são intimamente dependentes do poder político outorgado pela

soberania popular, de tal modo que um e outro não excluem ou mitigam a essência da força

anterior da vontade do povo.

13

1 COMPOSIÇÃO DE ASSIMETRIAS

A Carta Política de 1988 atribuiu ao Brasil a natureza de república

constituída sob as regras do estado democrático de direito7, sob o fundamento da soberania,

da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa e do pluralismo político8. No regime democrático representativo o poder emana no

povo9, que outorga a seus representantes a soberania originária na forma dos poderes da

entidade estatal, denominada União, a compreender o Legislativo, o Executivo e o Judiciário10

que são poderes teoricamente independentes e harmônicos, na aproximação do modelo

delineado por Montesquieu (1995, p. 190), embora esse autor defendesse a existência de um

poder regulador para moderar os dois primeiros. Esse modelo não é meramente formal, pois a

representatividade da organização política precisa ser compreendida como fenômeno que

decorre da vontade popular que lhe precede.

Certamente, a consecução dos princípios fundamentais em que se alicerça o

atual Estado brasileiro depende da capacidade de construir uma sociedade livre, justa e

solidária, de garantir o desenvolvimento nacional, de erradicar a pobreza e a marginalização e

de reduzir as desigualdades sociais e regionais, tudo com o fim idealizado de promover o bem

de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de

discriminação11. Interligadas a esses postulados de natureza predominantemente interna que

dependem da concretude da função social do direito estão as relações internacionais do país,

as quais são pautadas nos princípios de independência nacional, de prevalência dos direitos

humanos, de autodeterminação dos povos, de não-intervenção, de igualdade entre os Estados,

de defesa da paz, de solução pacífica dos conflitos, de repúdio ao terrorismo e ao racismo, de

7 Cf. art. 1o da Constituição Federal de 1988. 8 Cf. art. 1o, I a V da Constituição Federal de 1988. 9 Cf. art. 1o, parágrafo único da Constituição Federal de 1988. 10 Cf. art. 2o da Constituição Federal de 1988. 11 Cf. art. 3o, I a IV da Constituição Federal de 1988.

14

cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e de concessão de asilo político12,

sem esquecer a busca pela integração econômica, política, social e cultural dos povos da

América Latina, no intuito de formar uma comunidade latino-americana de nações13. Esse

arcabouço político-jurídico precisa ser resgatado e repensado no contexto da política de

defesa baseada em princípios democráticos. A previsão constitucional desses postulados

constitui obra intelectual originada, com exclusividade, dos constituintes brasileiros? Não, é

claro. Esses princípios fundamentais refletem o consenso das nações que adotaram a

democracia a partir do reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão, em que pese sua

efetiva aplicação não gozar dos amplos efeitos práticos almejados. Contudo, essa inspiração

humanitária – cujos traços se alinham ao pensamento predominante da Revolução Americana

de 1776, ao pensamento filosófico do movimento iluminista surgido na segunda metade do

século XVIII e aos ideais da Revolução Francesa de 1789 a 1799 – não afasta as ameaças

efetivas ou potenciais de natureza bélica, política, econômica, tecnológica e ambiental, todas

interligadas a interesses que escapam do conhecimento dos cidadãos e, até mesmo, do alcance

e do controle dos Estados.

Por conseguinte, a plena satisfação dos postulados adotados pelo Brasil

requer vigilância permanente, de responsabilidade de todas as pessoas, associada a um

sistema político-normativo capaz de enfrentar e formular alternativas com legitimidade para

resolver ou, no mínimo, compor consensual e eqüitativamente os inumeráveis conflitos

decorrentes da sobreposição de interesses e das tensões que se estabelecem entre os diversos

atores políticos e sociais, tanto no âmbito interno dos países quanto em suas variáveis

internacionais, reconhecendo-se a influência da velocidade nas relações cada vez mais

globalizadas, onde as noções de espaço e território ganham, na contemporaneidade,

conotações que desafiam o alcance convencional do direito e a atuação do poder político.

12 Cf. art. 4o da Constituição Federal de 1988. 13 Cf. art. 4o, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.

15

Dessa maneira, no estado democrático de direito a defesa nacional

transcende a convencional idéia de atuação de forças armadas regulares contra uma ameaça

ou um perigo externo efetivo ou potencial, preponderantemente bélico ou, internamente, em

face de um inimigo ideológico, subversivo, que ameaça o regime, o sistema de governo ou o

poder político que dirige o país. Na organização político-administrativa do Estado, o

constituinte de 1988 atribuiu à União a competência para “assegurar a defesa nacional”. Essa

expressão14 requer interpretação jurídica mais ampla para o fim de compreender o conjunto de

responsabilidades que a sociedade e o poder público têm para com os continuados

procedimentos destinados a resolver os conflitos e as tensões que determinam ou influenciam

a vulnerabilidade do país, a abranger as relações com outras nações, como também – e quiçá

principalmente – as demandas e os problemas de ordem interna que decorrem dos

antagonismos da sociedade, os quais determinam as mazelas sociais que em boa parte

decorrem da falta do reconhecimento do outro.

Transcorridas duas décadas de regime de exceção e dezessete anos de

democracia15, o governo brasileiro formalmente editou, na forma de decreto presidencial16, a

política de defesa nacional. É interessante notar que esse ato normativo autônomo foi incluído

no ordenamento jurídico brasileiro não obstante a previsão constitucional dos princípios que

submetem o país à autodeterminação dos povos, à igualdade entre os Estados, à defesa da paz

e à solução pacífica dos conflitos. A análise da política de defesa precisa ser feita a partir do

contexto político-jurídico no qual está inserida, observando-se a recente transição do regime

de exceção para o democrático, bem como os temas conexos à matéria, dentre os quais a

14 Cf. art. 21, III da Constituição Federal de 1988. 15 Período considerado a partir da atual Carta Política, promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte em 5

de outubro de 1988. 16 A política de defesa nacional foi provada pelo Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, e entrou em vigor no

dia 1o de julho de 2005. Anteriormente, em 1996, a Revista Parcerias Estratégicas publicou o “Documento sobre Política de Defesa Nacional”, o que se pode chamar de as primeiras linhas da atual política de defesa (Revista Parcerias Estratégicas, v. 1 – no 2 – Dez./1996, p. 7-15 e 16-18, editada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos e pelo Centro de Estudos Estratégicos da Presidência da República).

16

perplexidade com que se depara a soberania, a dependência entre segurança e defesa, além da

instrumentalidade dos meios militares, ou seja, do emprego de forças armadas regulares como

uma vertente do poder político, que pode ser dirigido à proteção, à restauração ou à

construção de um dado direito.

A formulação de uma política de defesa parte do pressuposto de que

determinado estado de coisas precisa ser conquistado, mantido ou retomado. Essa constatação

acompanha a humanidade desde os tempos mais primitivos, em que os povos lutavam para

sobreviver, para comer, para habitar certa localidade, para explorar a natureza e os meios

econômicos. Eisler (1989) desvela que em algum momento da história da humanidade os

fatos foram falseados para dar lugar ao discurso de dominação que somente pôde se sustentar

mediante o uso da força e da violência, estabelecendo-se de forma dissimulada a separação

entre masculino e feminino, o que repercutiu em toda a engrenagem social. A humanidade

deixou a parceria para adotar a rivalidade; ao invés de partilhar, inclinou-se a defender

privilégios de uma comunidade em detrimento de outra; optou-se por explorar quando seria

melhor instruir e partilhar.

Com alguma sofisticação e novos matizes, o estado de alerta permanente

ainda constitui um dos principais problemas das sociedades contemporâneas que vivem o

rescaldo da Primeira (1914-1918) e da Segunda (1939-1945) guerras mundiais, da Guerra Fria

(1945-1991), da reorganização dos blocos mundiais que se sucedeu principalmente a partir da

fragmentação e extinção da União Soviética (1991) e, por conseguinte, da aparente

desfiguração da bipolaridade de poder entre russos e americanos, o que deu ensejo à

proeminência dos Estados Unidos da América (EUA) como potência hegemônica com alta

capacidade econômica, ideológica, política e militar, cujos fatores decisivamente influenciam

e interferem na composição de cenários e estratégicas internacionais, com reflexos nas

políticas internas dos países, especialmente daqueles que, como o Brasil, tentam ocupar a

17

frágil faixa que separa o subdesenvolvimento do esforço para reduzir a subserviência e a

irrestrita dependência de fatores externos.

Soberania e segurança são elementos assimétricos e antagônicos que

interessam de perto ao estudo da política de defesa brasileira, tendo em vista o regime

democrático e os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do país. A

questão é complexa, primeiramente porque ser soberano significa gozar de independência

para agir ou omitir da forma que melhor aprouver, ao passo que, no outro plano, a soberania

precisa ser assegurada mediante procedimentos que garantam a conquista, a preservação e a

retomada de um dado estado de coisas. Assim, a soberania brasileira está associada às

concepções de segurança em suas vertentes interna e externa. Ocorre que essa segurança não é

necessariamente aquela convencional, chamada de segurança pública17. A segurança da qual

depende a soberania é de espectro mais amplo, multidisciplinar, pois não se restringe à

obediência civil, à imposição da lei, à preservação de um dado poder transitório ou à adoção

de medidas acautelatórias exclusivamente voltadas ao exterior, mas sim à proteção dos

fundamentos da República, a compreender, como anteriormente enfatizado, a própria

soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa e o pluralismo político.

Ocorre que o Brasil não dispõe de uma política de segurança ou mesmo de

uma estratégia nacional que represente um consenso formado a partir dos diversos interesses

presentes na sociedade. A segurança corresponde, então, a um fragmentado concurso de

atores, propostas, projetos e idéias ora de iniciativa do poder público ora impulsionado por

setores que detêm habilidades para levar a efeito demandas que correspondam aos seus

17 Nos termos do art. 144 da Carta Política de 1988, o poder constituinte de 1988 concebeu a segurança pública

como um “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, a cargo da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis e das polícias militares e corpos de bombeiros militares. Originalmente, essas atribuições não correspondem às Forças Armadas.

18

propósitos particulares ou corporativos. A política de defesa está inserida no contexto e no

limiar entre segurança e soberania, como recurso excepcional destinado a proteger um

determinado estado de coisas. Resta saber se seus fundamentos estão em consonância com os

princípios democráticos. As características e os efeitos do tripé soberania-segurança-defesa

repercutem e desafiam diretamente o poder político, a democracia e o direito.

A partir desses pontos de inquietação serão abordados os principais

argumentos que trespassam as percepções de soberania, segurança e democracia para que, no

capítulo seguinte, possa ser enfrentada a repercussão desses temas na formulação da política

de defesa brasileira.

1.1 Escudo metafórico: a soberania

A soberania é argumento que adquire forma jurídica quando, decorrente de

um ato de independência, é reconhecida pela comunidade internacional. Não cabe, nessa

oportunidade, especular a respeito da legitimidade da soberania, isto é, das idéias, das lutas e

dos movimentos a partir dos quais a liberdade ou a opressão determina e delineia a formação,

a fragmentação ou a dissolução de uma dada nação. Em tese, o Estado soberano tem a

prerrogativa de escolher ou de impor, em seu território, o regime político e o sistema de

governo que entender mais adequado, mesmo que para isso ignore a liberdade de escolha e a

composição de consensos. A soberania é, então, projetada internamente e refletida no campo

externo, embora não signifique, em termos práticos, a plena independência.

Como argumento do poder, a soberania serve a uma infinidade de causas. É

instrumento de justificação e proteção, especialmente em face de ingerências externas.

Também se apropria da coercitividade jurídica em que se fundamenta para tentar repelir a

ocorrência de rupturas internas destinadas a modificar a estrutura de poder dominante.

Entretanto, esse poder pode ser substituído por outro, pela revolução ou pelo voto pacífico,

19

sem que para isso ocorra, necessariamente, a perda da soberania estatal, mas apenas a

modificação do ordenamento político-ideológico. A esse respeito, não podem passar

despercebidas as teorias que procuram explicar as relações entre Estado e Direito, posto que, a

partir delas, poderá ser aferida a linha da fundamentação jurídica e, por conseguinte, os efeitos

que serão sentidos na soberania, nas concepções de segurança e, por conseguinte, de defesa.

As articulações entre a estrutura de poder e as normas de efeito vinculatório

perpassam as teorias monista, dualista, de paralelismo, tridimensional e de autolimitação

(CARVALHO, 2002, p. 91-93). Interessa conhecer, resumidamente, os fundamentos de cada

uma. Segundo a teoria monista18, Estado e Direito são unos, porém as normas emanam

exclusivamente do primeiro, que detêm o poder de coagir, de impor o cumprimento das regras

de direito. Nessa concepção, o Estado é a própria ordem jurídica. Por sua vez, a teoria

dualista19 considera que Estado e Direito são distintos, independentes e, portanto, não se

confundem. Assim, o Estado não detém o monopólio da fonte do direito, ou seja, admite-se

que as normas jurídicas possam advir de outras fontes, como o direito natural e o direito

costumeiro. Dessa maneira, o direito positivado pelo Estado se destina a dar forma jurídica

aos princípios, às normas ou às regras presentes nos comportamentos das sociedades, ou seja,

a formulação do direito está em constante transformação, sem a exclusividade do poder

estatal, não obstante ser sua atribuição dar forma aos comandos normativos. A teoria do

paralelismo20 sustenta o Estado e o Direito como realidades distintas e interdependentes, ou

seja, embora admita a pluralidade de fontes de direito defende que, quanto à produção

jurídica, deve preponderar a norma elaborada pelo ente estatal que representa a maioria ou a

sociedade como um todo. Quando estudado pela teoria tridimensional21, o Estado não se

fundamenta exclusivamente na norma ou no fenômeno sociológico. Sua abordagem consiste

18 Dentre os principais autores figuram Hobbes, Hegel, Austin, Jellinek e Kelsen. 19 Gierke, Gurvitch, Duguit e Santi Romano figuram como defensores dessa teoria. 20 Del Vecchio é o seu principal formulador. 21 Concebida por Miguel Reale.

20

na conjugação de três elementos: fato (existência de uma relação permanente de poder,

separando-se governantes e governados), valor (exercício do poder) e normas (equilíbrio do

poder que incide sobre os valores das relações sociais). Essa teoria reconhece a formulação

jurídico-normativa que decorre do predomínio de uma força de poder sobre outra, cujos

efeitos vinculatórios se dirigem à sociedade para regular as relações conflituosas e as regras

de conduta. Por fim, a tese da autolimitação22 considera o Estado investido na prerrogativa de

elaborar a norma jurídica que o limita, distante do direito natural e mesmo da aplicação da

justiça. Assim, as regras de conduta dirigidas ao Estado estão condicionadas à sua própria

vontade. Não há, portanto, parâmetro anterior que oriente a atuação ou a limitação do Estado,

pois nessa formulação teórica prevalece a prerrogativa da entidade estatal que não se reporta a

qualquer outra instância, revelando-se o máximo de seu poder soberano e a inconsistência do

termo “autolimitação”, uma vez que os limites correspondem à vontade do próprio Estado.

Todas essas teorias informam como a soberania pode ser exercida, com seus

traços totalitários ou democráticos. Todavia, percebe-se que nos argumentos teorizados

predomina a autorização ou o consentimento do Estado, mesmo quando as teorias dualista e

de paralelismo admitem a influência do direito costumeiro e de outras fontes de formulação

jurídica. Constata-se o forte emprego do direito como instrumento destinado a dar forma,

conteúdo, legitimidade e coercitividade ao exercício do poder político dominante, ainda

distante de seu atributo essencial, de natureza universal, que é a função social traduzida na

dignidade da pessoa humana e na alteridade, um caminho a partir do qual é possível dar

efetividade ao princípio de igualdade ante a complexa teia de relações que movem as

sociedades e delineiam os conflitos que lhe são inerentes. É nesse contexto que os reflexos da

soberania alcançam as concepções de segurança e defesa.

22 Jellinek também figura como defensor dessa teoria.

21

A soberania, oponível a todos, é ilimitada? Não. Seus limites são definidos a

partir das práticas reconhecidas, aceitas ou toleradas tanto pela comunidade internacional

quanto pela estrutura social da qual emana. O exercício da soberania encontra duas restrições:

externa e interna. Na atualidade, embora distorcidos, enfraquecidos ou abrandados, os

princípios democráticos e de dignidade da pessoa humana indicam novos parâmetros da

soberania, ora rígidos ora flexíveis, colocando esse instituto em crise ou declínio.

Ferrajoli (2002, p. 2-3) utiliza três aporias para estudar a soberania: (i) a

filosófico-jurídica, (ii) a histórica e a que diz respeito à (iii) consistência e legitimidade sob o

enfoque do direito. Cada uma pode justificar esse instituto. Essa abordagem é interessante,

pois o autor não as trata de maneira antinômica, isto é, mesmo que as razões possam indicar

diferentes caminhos para o entendimento da soberania, ainda não são suficientes para

comprovar sua verdadeira origem. De valia apresentar essa abordagem. A aporia filosófico-

jurídica é de natureza jusnaturalista, fundamenta a concepção juspositivista do Estado e serve

aos critérios do direito internacional. A histórica considera a soberania um poder absoluto,

dividindo-a em interna e externa: a primeira limitada e dissolvida em decorrência da criação

de Estados que optaram pelos modelos constitucionais e democráticos de direito; a segunda,

que serviu de fundamento para as primeira e segunda guerras mundiais sofre, no dizer do

autor, uma “progressiva absolutização” e “está longe de concluir-se e continua a mostrar-se

como uma ameaça permanente de guerras e destruições para o futuro da humanidade”.

Segundo a aporia que se dirige à consistência e à legitimidade a partir do direito, Ferrajoli

sustenta que entre a soberania e o direito existe uma antinomia insuperável, que atinge o

instituto em seus efeitos internos e externos. No primeiro caso, pela incompatibilidade entre

as prerrogativas do poder soberano e os postulados do estado de direito e da sujeição de todo

o poder à lei; no segundo, pela assimetria resultante de um poder absoluto em contraposição

22

aos preceitos internacionais. Esses argumentos são de fundamental importância para a defesa

nacional.

Historicamente, a soberania externa precede a interna. Ferrajoli (2002, p. 5-

6) assinala que suas origens se destinavam a “oferecer um fundamento jurídico à conquista do

Novo Mundo, logo após o seu descobrimento”. Havia a presunção de que o direito de

desenvolvimento ou exploração, de natureza privada, conferia legalidade e legitimidade às

invasões e às conquistas, as quais ganhavam o falso argumento cristão segundo o qual os

povos ditos civilizados teriam o dever ou a outorga divina de civilizar os selvagens, surgindo

daí as controvérsias a respeito da justiça e da injustiça dos títulos de propriedade e das

expropriações decorrentes da colonização, da conquista e da dominação. Franco (2000)

abordou essas circunstâncias no argumento que sustentou a figura do índio brasileiro como

bom selvagem, defendida no conjunto simbólico da Revolução Francesa.

Desses debates Ferrajoli (2002, p. 7) retoma as idéias de Francisco de

Vitoria a respeito dos princípios reguladores do direito internacional moderno e da própria

soberania do Estado, nas seguintes formulações: (i) a ordem mundial vista como uma

“sociedade natural de Estados soberanos”; (ii) as teorias dos direitos naturais não apenas dos

povos, mas também dos Estados; e (iii) a substituição da guerra concebida como justa sob o

fundamento da doutrina cristã, para dar lugar ao conceito de sanção jurídica contra ofensas.

Na primeira formulação a soberania estatal pressupõe, no plano externo, uma sociedade de

repúblicas organizadas na forma de Estados “igualmente livres” (mas não necessariamente

simétricos), com independência e capacidade para, em seu âmbito interno, organizar a

sociedade da forma que mais adequada, elaborando suas próprias leis. Esse modelo substituiu

a ordem anterior (a medieval), que estava condicionada aos ditames do imperador e do clero.

Contudo, nessa concepção de soberania Ferrajoli (2002, p. 10 e 12) assinala

que os ideais de igualdade e liberdade foram mitigados pelo próprio Vitoria, ao defender,

23

como direito natural dos povos e dos Estados, “uma nova legitimação à conquista” e “o

alicerce ideológico do caráter eurocêntrico do direito internacional, dos seus valores

colonialistas e até mesmo suas vocações belicistas”, o que revela “as origens não luminosas

dos direitos naturais e o seu papel na legitimação ideológica não só dos valores, mas também

dos interesses políticos e econômicos do mundo ocidental”, dando ensejo a uma série de

direitos, dentre os que conferiram aos espanhóis o emprego da guerra contra os índios

(considerados bárbaros e selvagens) como medida aplicável para a defesa de seus alegados

direitos (leia-se soberania) e de sua segurança.

Das idéias de Estados soberanos e de seus direitos naturais, Vitoria formula

a terceira concepção de soberania que, na assertiva de Ferrajoli (2002, p. 12-14), é “uma nova

doutrina de legitimação da guerra justa”. Essa concepção parte do argumento da soberania

estatal para construir a hipótese de reparação justificada pela ocorrência de uma dada ofensa,

atribuindo-se conotação jurídica à guerra, ou melhor, à violência como forma de sanção.

Nesse sentido, a conquista ou a submissão pela força que antes se fazia simplesmente sob o

pressuposto de uma prerrogativa soberana voltada à proteção de interesses ou do conveniente

dever de civilizar, de levar a revelação divina ou de propiciar desenvolvimento e progresso,

passou a erigir sob a forma de direito, para o fim de tornar lícita a imposição de condutas a

um dado Estado. O autor esclarece que dessa construção decorrem três conseqüências

presentes na atualidade: (i) a guerra ou o direito de guerra como prerrogativa de Estados

soberanos, o que faz da guerra, de um lado, um atributo essencial da entidade estatal, ou seja,

a preparação e o emprego da força legalizada como condição de reconhecimento do poder

soberano, orientando a permanente preparação para o combate (eventual ou efetivo). Por

outro lado, a guerra como direito faculta que outros atos, movimentos ou pensamentos

(políticos, religiosos ou meramente ideológicos) possam ser considerados crimes, a exemplo

do próprio terrorismo em sua roupagem contemporânea; (ii) que os princípios de direito não

24

são, essencialmente, os parâmetros da guerra, mas sim instrumentos para torná-la justa e

adequada ao fim sancionatório que pretende atingir, mesmo que, pela via oblíqua, o propósito

do uso da força consista na satisfação de interesses e valores distorcidos; e (iii) a atenuação

dos efeitos da guerra justa, submetendo-a a regras elementares, tais como a relevância da

ofensa que permitiria o uso da força, o mínimo de proteção à pessoa humana e a restrição ao

emprego da violência.

As três doutrinas elaboradas por Vitória foram superadas, pelo menos em

parte, a partir do período de predominância absolutista. Primeiramente porque a igualdade

entre Estados soberanos não correspondia à irrestrita sujeição ao direito, tendo em vista a

ambivalência do poder absoluto ante a desigualdade entre os países e a atuação das grandes

potências no contexto internacional, refletindo na esfera de domínio interno de cada Estado,

na luta pela supremacia de interesses econômicos e comerciais. De igual modo, a abstração

contida no argumento da soberania não foi suficiente para superar ou atenuar as desigualdades

existentes, de tal modo que os chamados direitos naturais de cada Estado soberano

determinaram o fortalecimento das concepções garantidoras da conquista e da colonização, o

que contribuiu para demonstrar que soberania não corresponde à idéia de igualdade. Por fim,

a guerra como sanção, de conotação jurídica e, por conseguinte, legalizada, perdeu

legitimidade na medida em que o direito foi desvelado como instrumento da violência,

contrastando com a sua essência, que parte do pressuposto idealizado de solução pacífica das

controvérsias (FERRAJOLI, 2002, p. 15).

De matriz internacionalista, o argumento da soberania afrouxou os vínculos

com o cristianismo para revelar sua natureza ilimitada, interna e externamente, servindo aos

interesses dos países europeus para, no dizer de Ferrajoli (2002, p. 16), legitimar a

colonização e a exploração, sustentando essas ações em quatro pontos centrais: (i) os valores

ditos universais, (ii) a missão de evangelizar, (iii) a prerrogativa de civilizar e (iv) a imposição

25

de valores ocidentais. Na ponderação do autor (2002, p. 17-19), esse quadro deu forma à

“formação da idéia moderna do Estado como pessoa artificial, fonte exclusiva do direito e, ao

mesmo tempo, livre do direito”, levando ao “princípio da efetividade” a partir do qual o

direito é condicionado ao fato. Na prática, significa que o direito dos mais fortes prevalece

sobre os demais na conjugação entre força e civilidade, ampliando-se o conceito de ofensa ou

injúria, que antes se limitava à ponderação de relevância para, então, abranger sanções contra

o direito natural e à divindade, permitindo, inclusive, o excesso de violência contra civis, isto

é, um retrocesso em comparação com a teoria vitoriana. Surge, por conseguinte, a formulação

de Estado como pessoa e sua personalidade jurídica, tendo como decorrência as bases

concentuais do positivismo jurídico e da supremacia (ou monopólio) do poder estatal23.

Ocorre que a soberania interna sustentada no pressuposto da pacificação

social a partir da centralização das ações na pessoa artificial do Estado, contrasta com a

soberania externa, fato que, na colocação de Ferrajoli (2002, p. 20), representa a negação do

regramento em que aquela se fundamenta, na medida em que, no campo externo, não há

limites para a atuação do poder soberano, contrariando o próprio regramento com o qual se

propôs a dirimir os conflitos, porque a soberania estatal ampliou a prontidão e a vigilância

permanentes ao ponto de a probabilidade da guerra e, por conseguinte, da segurança e da

defesa, ser um estado efetivo e não hipotético ou eventual.

A construção da tese de supremacia do poder soberano embasa a

confrontação entre civilizados e não-civilizados, o que outrora legitimou as conquistas

colônias. De um lado, o estado originário de natureza do novo mundo; e, de outro, o estado

civil europeu. Essas idéias estabeleceram a ponte entre a transição do período absolutista ao

início da era liberal, opondo estado de natureza e estado civil sob o argumento da

inferioridade do primeiro em face da superioridade do segundo, na imposição do racionalismo

23 Ferrajoli se refere às teorias de Alberico Gentili e Hugo Grotius.

26

do Estado moderno de conotação expansionista, mediante a combinação da conquista e da

colonização, que se fizeram acompanhar da exploração e da homologação para, ao final,

acomodar a “exportação ao mundo inteiro dos modelos culturais e políticos do Ocidente, a

partir do próprio modelo institucional do Estado soberano e do modelo da guerra entre

Estados que constitui o corolário deste” (FERRAJOLI, 2002, p. 24-25).

A limitação da soberania interna e a ampliação da soberania externa

ganharam novos contornos a partir da Revolução Francesa. Ferrajoli (2002, p. 25 e 27-28)

assinala que, embora os Estados ditos civilizados estivessem “virtualmente em estado de

guerra”, por outro lado estabeleciam coligações para o fim único de “civilizar o resto do

mundo”. Os princípios do estado de direito e da democracia ganharam espaço na metade do

século XIX, fazendo com que a soberania interna fosse reduzida ao que o autor denominou de

“dupla face do Estado, fator de paz internamente e de guerra externamente”. No plano interno,

o poder estatal perdeu a força que tinha sobre as pessoas, modificando-se com o advento da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), do que resultou, segundo o autor, o

surgimento de dois sujeitos de direito: o Estado e o cidadão. Essa característica da

contemporaneidade determina a limitação da soberania interna, a envolver esses dois sujeitos

circunscritos às regras de direito, ao princípio de legalidade e à observância dos direitos

fundamentais. Dessa maneira, o estado de direito, em que se funda a doutrina liberal, nega a

noção de ampla soberania interna.

Porém, o estado de direito não foi suficiente para sufocar a antiga idéia de

pleno poder em que se sustentava a soberania interna. Ao contrário. Ferrajoli (2002, p. 29)

assinala que essa prerrogativa foi reforçada em duas vertentes: a soberania nacional e a

soberania popular:

[...] que ambiguamente ladeiam a da soberania estatal e lhe fornecem uma legitimação política ainda mais forte do que as antigas fontes teológicas e contratualistas. Embora muito diferentes entre si, são expressões dessa

27

concepção, no pensamento filosófico-político, a doutrina rousseauniana da “vontade geral” e a hegeliana do “Estado ético”, que permitem conferir um valor totalitário ao antigo princípio da soberania absoluta. O Estado, nas figurações organicistas oferecidas por essas duas diferentes imagens da relação entre Estado e sociedade, acaba sendo não apenas legitimado como ordem civil e racional, mas, no primeiro caso, é também identificado com o “corpo moral e coletivo” de todos os cidadãos e, no segundo, é sublimado como “substância ética” e “espírito do mundo”. Em ambos os casos, o povo e os indivíduos de carne e osso, que mesmo nas doutrinas contratualistas liberais, e até mesmo em Hobbes, sempre mantinham uma subjetividade autônoma como partes contratantes do pactum subiectionis (contrato de sujeição), anulam-se no Estado [...].

Verifica-se que, para dar legitimidade ao Estado, a divisão da soberania

interna em nacional e popular trouxe ambigüidades que influenciam a existência e a

organização da entidade estatal. Mesmo sob os princípios do estado de direito, essa

construção não perdeu seu viés absolutista. A centralidade do poder em um ente artificial

possibilitou o resgate do valor totalitário da soberania ilimitada, a tal ponto de atingir e

distorcer o direito, posto que a capacidade de interferir do povo e do cidadão,

individualmente, foi mitigada. Ferrajoli (2002, p. 30-31) constata, ainda, que a nova

concepção de soberania interna foi crucial para redefinir a natureza do Estado e o exercício de

suas prerrogativas interna e externamente, colocando a entidade estatal como fonte do direito:

É, porém, sobretudo o pensamento jurídico que, no século XIX, chega a atribuir um caráter científico à imagem antropomórfica do Estado soberano e a assumi-la como fundamento da nova ciência do direito público. É do final do século XIX a construção, [...] da figura jurídica e não mais simplesmente política do Estado-pessoa como sujeito originário, que funda mas não é fundado, titular de soberania em lugar do princeps ou do povo. [...] Tratou-se de uma complexa operação de remoção e ocultação do momento constituinte do Estado, de claro cunho antiiluminista e anticontratualista, visando a conseguir dois resultados: por um lado, o de neutralizar e naturalizar o Estado e, assim, conferir caráter “científico-objetivo” às disciplinas juspublicistas e, através destas, como por uma espécie de legitimação de retorno, caráter “jurídico-objetivo” ao mesmo Estado e às suas instituições contingentes; por outro, e por conseqüência, o de confiar à imagem do Estado assim redefinida e, portanto, à nascente doutrina do direito público, uma função de unificação nacional e de reforço das frágeis identidades nacionais.

A existência jurídica do povo passou a depender da figura estatal. Ao tempo

em que essa circunstância reduz a liberdade e a capacidade de interferir do indivíduo,

28

teoricamente o amadurecimento do estado de direito limita à lei todos os poderes do Estado,

reduzindo, por conseguinte, a força da soberania, notadamente a partir da submissão do

governante e do legislador aos limites da lei, ou seja, o próprio Estado, no exercício de sua

soberania interna, está autolimitado ao direito. O problema reside em identificar o preceito em

que se funda a norma jurídica, de modo que a relevância está na validade e não na vigência

dos postulados legais. Desse modo, Ferrajoli (2002, p. 33) registra que a soberania interna,

especialmente na sua variável popular, foi dissolvida. Prevaleceu a soberania nacional como

sustentáculo do Estado. Todavia, a limitação do ente estatal às regras de direito tem

repercussões distintas no âmbito internacional, pois, nesse caso, prevalecem os poderes e as

prerrogativas inerentes à soberania externa, ainda de natureza absoluta. A confrontação entre

soberania nacional e soberania externa gera um quadro de perplexidade e desequilíbrio, na

medida em que, se por um lado determina a concretização dos direitos fundamentais do

homem, por outro autoriza a realização de medidas extremas para a consecução de

mecanismos voltados aos interesses das pessoas nacionais, na lógica da proteção exigida no

âmbito interno. Essa incongruência reside na ausência de reconhecimento do outro, do

diferente, do não-nacional, do não-cidadão, do dito “não-civilizado”, a ponto de justificar e

legitimar a realização de guerras e conquistas, sob o argumento da proteção da soberania ou

de interesses nacionais (FERRAJOLI, 2002, p. 35-38).

A tentativa de equilibrar as prerrogativas das soberanias externa e interna

impregnou o argumento democrático que, a propósito, é insuficiente, posto que a democracia

não é uma ideologia universal, tampouco recebe igual tratamento nos países que a adotam.

Então, não se pode descartar a possibilidade de a democracia servir ao direito e ao poder

político na construção de políticas e na elaboração de normas legais contrárias aos princípios

que enuncia, ou seja, mesmo sob o escudo da defesa democrática, não há como impedir a

prática de medidas que atentem contra a autodeterminação dos povos, os direitos

29

fundamentais e a dignidade da pessoa humana, por exemplo. Nessa ordem de idéias, sob a

bandeira das duas vertentes da soberania, a democracia pode ser apropriada como

instrumental de ações totalitárias.

Não obstante, o argumento democrático se amplia e ganha consistência na

medida em que a sociedade passa a exercer seu papel político de maneira mais intensa, a

partir do exercício da cidadania e da participação efetiva nas decisões de amplo efeito

vinculatório, influenciando e pressionando, principalmente, as representações parlamentares e

os dirigentes dos poderes executivos para conter excessos que ultrapassem os limites que

orientam o estado de direito. Ocorre que, nessa hipótese, mesmo no campo interno, são

grandes as chances do sistema de limitações não funcionar, notadamente quando a soberania

nacional é posta sob ameaça. Assim, cria-se o cenário político e instrumental do direito para

fazer face aos imperativos de segurança e defesa, cujos efeitos se estendem interna e

externamente, estabelecendo-se uma seqüência de pensamentos e ações que retiram o aparato

de contenção da amplitude da soberania, legitimando-a a atingir as liberdades públicas, os

direitos fundamentais e, por conseguinte, a dignidade da pessoa humana. O transbordamento

da soberania interna se projeta para o exterior, de forma plena, inclusive para alcançar as

últimas conseqüências na consecução da proteção dos interesses ditos nacionais, por mais

subjetivos, ocultos ou dissimulados que possam parecer. Não há, por conseguinte, limites

incondicionais ao exercício da soberania.

Se esses cenários são complexos nas regiões do planeta onde predomina,

ainda que titubeante, o consenso pela democracia, o problema da soberania – e suas

conseqüências na segurança e na defesa – se reveste de maior complexidade quando estudado

sob a ótica de regimes totalitários ou de exceção, marcados por intensos conflitos ideológicos,

pela submissão ou opressão imposta pelo poder dominante e, em certos casos, também pela

condicionante religiosa. Nesses casos, a soberania – interna e externa – não encontra sequer

30

parâmetros no estado de direito. Isso inviabiliza ou torna ainda mais violentos os movimentos

pela preservação das liberdades públicas, no âmbito interno, ao tempo em que amplia o

potencial de instabilidade – e também de violência – nas relações internacionais, cujos

reflexos são sentidos no âmbito interno de cada país. Contudo, a democracia, por si só, não

garante o equilíbrio entre as soberanias, posto que, como dito, pode servir para a prática de

atos contrários ao próprio regime democrático, sob o argumento da preservação dos interesses

nacionais, do resgate ou da instalação dos princípios que lhe são inerentes. Além do mais, a

exacerbação da soberania em regimes democráticos se revela ainda mais nociva, ante a

ruptura imprevisível de condutas que acarreta instabilidades de toda ordem.

A soberania que no passado legitimou conquistas e políticas exploratórias e

expansionistas a partir de invasões, guerras, anexações de territórios e imposições de valores e

de culturas sob o argumento civilizatório e religioso, na atualidade se revela sob novas formas

para manter o predomínio de interesses pela validação de um suposto equilíbrio de forças e de

princípios sem, contudo, abandonar por completo aqueles métodos tradicionais de exercício

do poder, adaptando-os ora ao discurso da democracia e dos direitos humanos ora às

prerrogativas da soberania nacional. São exemplos dessa constatação (i) as políticas

econômicas adotadas sob a ótica protecionista e destinadas, entre outras variantes, a

salvaguardar investidores e produtores nacionais em detrimento das possibilidades de maior

lucro dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento; (ii) a restrição aos avanços

tecnológicos de ponta, particularmente quanto à transferência de conhecimento, inclusive os

aplicáveis aos produtos de defesa, o que leva a um ciclo de continuada dependência dos países

mais pobres em relação aos ricos e desenvolvidos; (iii) a realização de empréstimos e a

submissão a programas econômicos distantes das reais ou das prementes necessidades dos

países que são condicionados a aderir; (iv) a exclusão da participação ampla em colegiados de

reflexão e de deliberação internacionais; (v) o alinhamento político ou ideológico para evitar

31

ou afastar embargos ou represálias; (vi) a restrição ao desenvolvimento de tecnologias

sensíveis como o enriquecimento de urânio, a aquisição e a construção de artefatos bélicos de

alta capacidade destrutiva; e (vii) o incentivo ou a recomendação velada para adotar a

democracia nos moldes ocidentais.

No Brasil, a Carta Política de 1988 reserva tratamento especial à soberania.

Prescreve-a, inicialmente, como um dos fundamentos da República24, a significar que a

existência formal do Estado brasileiro depende da soberania. Assinala que caberá mandado de

injunção quando verificada falta de norma que torne inviável a plenitude do exercício das

prerrogativas inerentes à soberania25. Assegura, como direito político, que a soberania popular

será exercida pelo sufrágio universal26, ao tempo em que condiciona a criação de partidos

políticos aos limites da soberania nacional27. Eleva os assuntos que dizem respeito à soberania

ao rol de competência do Conselho de Defesa Nacional28 e situa o instituto como princípio da

ordem econômica29. Por fim, em casos excepcionais, razões de soberania ainda autorizam a

remoção de grupos indígenas de seus territórios, desde que o Congresso Nacional delibere

nesse sentido, garantido o direito de retorno imediato quando cessados os correspondentes

efeitos30.

1.1.1 Soberania, lei, ordem e Forças Armadas

Note-se, por ser relevante, que a destinação constitucional das Forças

Armadas não prevê, textualmente, a proteção da soberania. Na atuação dessas instituições, o

constituinte de 1988 utilizou o termo “Pátria”, juntamente com os “defesa da garantia dos

24 Cf. art. 1o, I da Constituição Federal de 1988. 25 Cf. art. 5o, LXXI da Constituição Federal de 1988. 26 Cf. art. 14 da Constituição Federal de 1988. 27 Cf. art. 17 da Constituição Federal de 1988. No contexto da soberania, os partidos políticos também devem

observar os preceitos afetos ao caráter nacional, à proibição de receber recursos financeiros oriundos de entidades, governos estrangeiros ou entidades a eles subordinadas.

28 Cf. art. 91 da Constituição Federal de 1988. 29 Cf. art. 170, I da Constituição Federal de 1988. 30 Cf. art. 231, § 5o da Constituição Federal de 1988.

32

poderes constitucionais, da lei e da ordem”31. Mas, pátria e soberania têm sentidos diversos?

Sim, embora convirjam conceitualmente para a mesma figura de Estado ou de país. Contudo,

é pertinente inferir que o vocábulo pátria remete a momento anterior à formação do ente

estatal soberano, ou seja, o Estado é essencialmente pátria antes de receber o reconhecimento

internacional de sua existência jurídica, em tese como independente e autônomo. A soberania

tem lugar num segundo momento, enquanto a pátria teria maior valoração do que a soberania,

de tal modo que, mitigada essa, ainda assim permaneceria aquela, depreendendo-se, nessa

linha de raciocínio, que o papel das Forças Armadas transcende a defesa da soberania estatal

e, por conseguinte, do próprio sistema republicano ou regime democrático.

Na gradação estabelecida no caput do art. 142 da Constituição vigente há

quatro valores distintos e interligados: (i) pátria, (ii) poderes constitucionais, (iii) lei e (iv)

ordem. Ocorre que somente a defesa dos dois últimos está vinculada à iniciativa do segundo

(no caso, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário), donde a defesa da pátria não encontraria

limites nos poderes constitucionais, na lei ou mesmo na ordem, os quais poderiam ser

mitigados quando confrontados com a valoração atribuída à idéia de soberania. Então,

notadamente no âmbito interno, a soberania nacional – representada pelo poder político estatal

– encontra outra hipótese de limitação, posto que as Forças Armadas, no extremo, sequer

estariam mitigadas aos amplos efeitos das regras de direito. Entretanto, é no plano externo de

exercício da soberania que as atribuições das forças militares perdem sua amplitude em face

do estado de direito, desvelando, uma vez mais, no caso brasileiro, as assimetrias entre as

vertentes de aplicação do poder soberano: a interna e a externa. Na primeira, se de um lado a

soberania é contida pelas regras de direito, de outro poderá ser suplantada ou mitigada pela

valoração atribuível à defesa da pátria; na segunda, a absolutização da soberania está

condicionada aos princípios constitucionais que regem as relações internacionais e à

31 Cf. art. 142, caput da Constituição Federal de 1988.

33

necessidade de manter alinhamento com as correntes políticas, econômicas e ideológicas que

exercem predomínio no cenário mundial.

A reflexão sobre essas questões revela uma intrigante perplexidade do caso

brasileiro: uma faceta da norma constitucional permite que os princípios que regem o

exercício da soberania interna sofram uma significativa redução de seus limites pelas regras

do estado de direito (e, por conseguinte, democráticos) para proporcionar flexibilidade ao seu

enunciado, enquanto que, no campo externo, ampliam-se as restrições à soberania, na medida

em que o país, segundo as regras estabelecidas pelo Constituinte de 1988, tem o dever de

respeitar. Assim, no extremo da atuação das Forças Armadas – ou melhor, da forma como o

poder político dirige e considera essas instituições –, há a possibilidade de ocorrer inversão do

modo de operar o conceito de soberania a partir da idéia de estado de direito: limitação

externa e ampliação interna. A explicação para essa peculiaridade pode ser encontrada nos

ajustes não revelados da transição do regime de exceção para o democrático, cujas raízes

remontam ao início do período colonial no qual as principais atividades (incluídas as

militares) exercidas direta ou indiretamente pelo poder público não se incumbiam de defender

a criação de um novo Estado-Nação, mas sim assegurar os interesses do império português e

as demandas corporativistas e econômicas que delineavam a exploração mercantilista da

época, além da estratégica geopolítica de manter a integridade territorial da colônia32.

Tome-se a lei na acepção do direito positivado incumbido de regrar a ordem

social. Entenda-se a ordem como a observância e a aplicação das regras de conduta previstas

na lei, a compreender a atuação preventiva e repressiva dos órgãos de segurança pública do

Estado, no exercício do poder de polícia. Enquanto o significado de lei tem aplicação mais

rígida, o sentido de ordem está sujeito a elevado grau de subjetividade, capaz de distorcer o

próprio sentido de lei e, por conseguinte, dos postulados democráticos nos quais estão

32 José Murilo de Carvalho aborda com profundidade esse tema (A construção da ordem/Teatro de sombras.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006).

34

inseridos os poderes constitucionais. Convém conhecer as definições contidas no regulamento

das polícias militares e corpos de bombeiros militares33:

14) Grave Perturbação ou Subversão da Ordem – Corresponde a todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública, que por sua, natureza, origem, amplitude, potencial e vulto: a) superem a capacidade de condução das medidas preventivas e repressivas tomadas pelos Governos Estaduais; b) sejam de natureza tal que, a critério do Governo Federal, possam vir a comprometer a integridade nacional, o livre funcionamento de poderes constituídos, a lei, a ordem e a prática das instituições; c) impliquem na realização de operações militares. 19) Manutenção da Ordem Pública – É o exercício dinâmico do poder de polícia, no campo da segurança pública, manifestado por atuações predominantemente ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir ou reprimir eventos que violem a ordem pública. 21) Ordem Pública – Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum. 25) Perturbação da Ordem – Abrange todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública que, por sua natureza, origem, amplitude e potencial possam vir a comprometer, na esfera estadual, o exercício dos poderes constituídos, o cumprimento das leis e a manutenção da ordem pública, ameaçando a população e propriedades públicas e privadas. As medidas preventivas e repressivas neste caso, estão incluídas nas medidas de Defesa Interna e são conduzidas pelos Governos Estaduais, contando ou não com o apoio do Governo Federal.

Lei e ordem parecem expressões que encerram segregação de

competências. Mas é só aparência. Trata-se da tentativa de estabelecer um postulado de

verdade ou de legitimidade para hipóteses que podem ultrapassar a previsão constitucional. A

atuação das Forças Armadas na defesa da ordem alcança as atividades de preservação e

restabelecimento da lei, como hipótese de natureza extraordinária no caso de esgotamento das

33 De acordo com art. 2o do Decreto no 88.777, de 30 de setembro de 1983, que estabelece princípios e normas

para a aplicação do Decreto-Lei no 667, de 2 de julho de 1969, modificado pelo Decreto-Lei no 1.406, de 24 de junho de 1975, e pelo Decreto-Lei no 2.010, de 12 de janeiro de 1983.

35

instituições e dos instrumentos constitucionais de segurança pública34, de responsabilidade

dos entes da federação35. Então, não há que se falar em distinção entre lei e ordem, posto que

a segunda, sob pena de cometimento de excessos, não pode ser considerada senão como

espécie da primeira que, por sua vez, é gênero e está condicionada aos fundamentos

democráticos, de tal modo que o imperativo da lei possa limitar e alcançar, também, a atuação

das Forças Armadas, afastando uma possível configuração jurídica que as coloque acima da

ordem, das normas de direito e dos princípios democráticos. Essa aproximação com as

instituições e os instrumentos de ordem pública encontra explicação nos resquícios do regime

de exceção, presentes na lei de segurança nacional36 e na natureza de força auxiliar do

Exército que foi atribuída às polícias militares37.

Os princípios democráticos impõem a devida separação entre as instituições

responsáveis por prover a segurança pública e a defesa nacional. Por essa razão, a atuação das

Forças Armadas na chamada garantia da lei e da ordem é de natureza excepcional e limitada,

de tal maneira que a sua execução está condicionada ao cumprimento de, no mínimo, três

requisitos38 essenciais, sem os quais todos os procedimentos adotados restarão eivados de

inconstitucionalidade: (i) a declaração formal, feita pelo Chefe do Poder Executivo Federal ou

Estadual, que ateste a indisponibilidade, a inexistência ou a insuficiência dos meios (o

esgotamento) locais que, convencionalmente, teriam o objetivo de preservar a ordem pública

e a incolumidade das pessoas e do patrimônio; (ii) a iniciativa do dirigente máximo dos

poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; e (iii) o controle estrito dos fundamentos do

34 A esse respeito, o Parecer no AGU/TH/02/2001, de 29 de julho de 2001, adotado pelo Parecer no GM-025, de

10 de agosto de 2001, aprovado na mesma data pelo Presidente da República, para efeito do art. 40 Lei Complementar no 73, de 10 de fevereiro de 1993, a vincular os órgãos interessados que forem cientificados.

35 Cf. art. 144 da Constituição Federal de 1988. 36 Tratada na Lei no 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (sem revogação expressa), que, por sua vez, substituiu,

por revogação, as disposições da Lei no 6.620, de 17 de dezembro de 1978, e dos Decretos-Leis nos 975 e 898, de 20 de outubro e de 29 de setembro de 1969, respectivamente.

37 Cf. o § 6o do art. 144 da Constituição Federal de 1988, a fundamentação do Decreto no 3.897, de 24 de agosto de 2001, e o art. 1o do Decreto-Lei no 667, de 2 de julho de 1969.

38 Requisitos extraídos dos §§ 2o ao 4o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999, com a redação dada pela Lei Complementar no 117, de 2 de setembro de 2004.

36

estado de direito, mediante a obediência às normas rígidas de execução, dentre as quais a ação

não-continuada restrita a determinadas áreas por tempo certo.

Esses requisitos suscitam preocupação. O esgotamento dos meios policiais

convencionais, a iniciativa dos poderes constitucionais e a submissão ao controle estrito da

execução das medidas não superam uma crucial singularidade da medida, qual seja, a decisão

de empregar ou não as Forças Armadas é exercida com exclusividade pelo Presidente da

República, que poderá, inclusive, rejeitar a proposta do Legislativo ou do Judiciário. A

prerrogativa da autoridade presidencial é tamanha a ponto de dispensar solicitação

apresentada pelos governadores de Estado e do Distrito Federal, embora a legislação indique a

possibilidade de postularem nesse sentido39. Esse poder encontra explicação nos regimes que

concentram no Presidente da República a competência privativa para “exercer o comando

supremo das Forças Armadas” que, no caso brasileiro,40 cabe ao Chefe de Governo e não de

Estado, ampliando a natureza excepcional da medida quanto à legitimidade e extensão dos

efeitos. Comparativamente ao ato de declarar guerra, o procedimento de garantia da lei e da

ordem não se confunde com o instituto constitucional da intervenção, cuja aprovação também

depende do Congresso Nacional41.

Entretanto, cumpre lembrar que as hipóteses excepcionais que autorizam a

intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal se aproximam dos casos de garantia

da lei e da ordem, notadamente quanto a “pôr termo a grave comprometimento da ordem

pública”, a “garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação” e a

“prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial”42. Esse ponto merece especial

cautela, posto que a interpretação ou o manejo equivocado da aplicabilidade das medidas de

39 Cf. os §§ 1o e 2o do art. 2o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 40 Cf. art. 84, XIII da Constituição Federal de 1988, e o disposto nos artigos 1o e 2o da Lei Complementar no 97,

de 9 de junho de 1999. 41 Cf. art. 34 e 49, II da Constituição Federal de 1988. 42 Cf. art. 34, III, IV e VI da Constituição Federal de 1988.

37

garantia da lei e da ordem pode resultar indevido uso político das Forças Armadas, contrário

ao interesse público e, portanto, ofensivo ao pacto federativo, aos princípios democráticos e,

por conseguinte, ao estado de direito, mesmo que, em termos práticos, o emprego em

atividades de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio

possa apresentar resultados favoráveis e experiência aos militares em eventuais casos de

conflitos armados ou de missões de paz sob a orientação da ONU, a atuação recorrente das

Forças Armadas nessas hipóteses indica, no mínimo, distorção dos postulados de segurança

pública e demonstração da fragilidade da formulação das políticas que deveriam convergir

para o pleno gozo dos direitos fundamentais e para o combate às causas da criminalidade e da

violência, isso porque a persecução estatal há de ser dirigida contra o desvio de conduta e não

contra um inimigo ideológico ou político, distinguindo-se, ainda, as estratégias, o armamento

empregado, a duração das medidas e a extensão da violência legalizada, sendo pertinente

frisar que garantia da lei e da ordem difere dos ritos de decretação de estado de defesa e de

intervenção, sujeitos à aprovação do Poder Legislativo43.

Foi provavelmente sob essa perspectiva que o Poder Executivo Federal

procurou afastar do texto da política de defesa o emprego das Forças Armadas na garantia da

lei e da ordem44. Ocorre que essa possibilidade está presente quando o ato normativo, sob o

argumento da “preservação do exercício da soberania do Estado” e da “indissolubilidade da

unidade federativa”45, permite que as instituições militares atuem contra “ameaças internas”

sem, contudo, delimitá-los ou indicar os parâmetros para defini-los. Apesar de remeter essa

hipótese à Constituição Federal e ao pressuposto de resguardar a defesa nacional, estabelece

um precedente cuja subjetividade, a exemplo da garantia da lei e da ordem, também pode

derivar para práticas contrárias aos princípios democráticos e do estado de direito, cabendo 43 Cf. art. 49, II da Constituição Federal de 1988. 44 Nos termos do item 6.22 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005: “O emprego das Forças Armadas na

garantia da lei e da ordem não se insere no contexto deste documento e ocorre de acordo com a legislação específica”.

45 Cf. o item 6.16 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

38

assinalar que a manutenção da integridade territorial constitui, ainda, uma das hipóteses de

intervenção federal46, instituto que, como visto, está sujeito a normas, procedimentos e

instituições que conferem maior rigor quanto ao emprego de meios militares. Essa é a

principal dificuldade de conjugar defesa, soberania e democracia no campo de atuação interna

do Estado: a apropriação do direito para conformar a abstração contida no termo “ameaças

internas”. Essa antinomia está presente nas restrições à desobediência civil, entendida por

Rawls (2002, p. 402-434) como um direito de resistir a regras injustas, como também (i) no

uso da força em áreas do país nas quais o Estado não tem plena legitimidade para atuar, como

nas comunidades dominadas por poderes paralelos encarregados de arbitrar, impor e manter a

ordem (notadamente em comunidades carentes de políticas públicas adequadas, em que são

evidentes as desigualdades sociais e o domínio do tráfico de drogas) e (ii) em regiões cuja

natureza da localização e de seus habitantes reduz as prerrogativas do poder público, como no

caso de reservas indígenas localizadas em extensas áreas contíguas situadas nos limítrofes

fronteiriços47, não obstante o Poder Executivo Federal ter assegurado a ação das Forças

Armadas e da Polícia Federal48.

Além das menções feitas à garantia da lei e da ordem e à possibilidade de

emprego das Forças Armadas contra ameaças internas, na atual política de defesa brasileira o

argumento da soberania também está expressamente contido (i) nos conceitos de segurança e

defesa nacional, (ii) na preocupação com a unipolaridade internacional do poder militar (a

soberania norte-americana), (iii) no reconhecimento de que a organização geopolítica do

planeta é permeada por zonas de instabilidades e de ilícitos transnacionais, (iv) na indicação

46 Cf. art. 34, I da Constituição Federal de 1988. 47 Exemplo típico dessa dificuldade é a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, destinada à posse permanente dos

grupos indígenas Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana, homologada pelo Governo Federal pelo Decreto de 15 de abril de 2005, com o perímetro de 978.132 metros, localizada em Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana. A complexidade será ampliada quando invocados os princípios da Declaração Universal dos Povos Indígenas, elaborada no âmbito da ONU e subscrita pelo Brasil.

48 Nos termos dos artigos 4o e 5o do Decreto de 15 de abril de 2005, e do disposto no Decreto no 4.412, de 7 de outubro de 2002, com as alterações introduzidas pelo Decreto no 6.513, de 22 de julho de 2008.

39

de que é necessário elevar o grau de importância dos temas de interesse político-estratégico e

(v) na formação de idéias destinadas a convencer a sociedade civil da importância da defesa49.

Terão lugar no capítulo seguinte, que tratará da formulação da política de defesa, os

argumentos de soberania que orientam os conceitos de segurança e defesa nacional. Assim,

feita a abordagem dos aspectos que dizem respeito à garantia da lei e da ordem e ao emprego

das Forças Armadas contra ameaças internas, os demais tópicos mencionados no parágrafo

anterior serão merecedores dos apontamentos que se seguem.

No contexto do ambiente internacional, a preocupação com a unipolaridade

do poder militar dos Estados Unidos da América (EUA) reafirma a soberania como princípio

de direito, juntamente com outros de semelhante grandeza, como o de não-intervenção e o de

igualdade entre os Estados. Esses princípios aparentemente compatíveis e coerentes são

essenciais aos processos, aos discursos e às intenções que pretendem proporcionar

estabilidade mundial a partir do desenvolvimento e do bem-estar da humanidade, com

prevalência do multilateralismo, de tal modo que a fragmentação ou o compartilhamento de

interesses possa repercutir na composição equitativa de poder. Entretanto, a aparência de

compatibilidade entre soberania, não-intervenção e igualdade não resiste às assimetrias de

poder que, segundo o próprio texto da política de defesa, produzem tensões e instabilidades

que diuturnamente colocam em risco a paz, ou melhor, a sensação de segurança e de

suspensão da beligerância explícita. Isso porque, aqueles três princípios são insuficientes para

afastar a incidência de interesses antagônicos que trespassam as relações e as adversidades

entre os países, agravados pela prevalência da soberania – especialmente dos efeitos que se

projetam para o exterior – e da atração exercida pela capacidade de influenciação política,

econômica e militar.

49 Argumentos extraídos dos itens 1.4, 2.3, 3.5, 5 (I), 6.16 e 6.20 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

40

Com destaque para a América do Sul e o entorno estratégico dessa região, a

política de defesa brasileira reconhece que a organização geopolítica do planeta é permeada

por zonas de instabilidades e de ilícitos transnacionais que repercutem na soberania dos

demais países. As instabilidades são das mais variadas ordens, como as disputas político-

ideológicas de poder, a miséria, a corrupção, a suposta falência da estrutura política de países,

os conflitos armados e as políticas econômicas. Os ilícitos transnacionais também alcançam

uma extensa gama de atividades e diferentes níveis de sofisticação e envolvimento de atores

públicos e privados, a compreender temas como tráfico de drogas, contrabando de armas e

bens, tráfico de órgãos e de pessoas, exploração sexual e biopirataria, além do terror, que

transita da definição de crime, de natureza mais restrita, para o conceito de ameaça contra a

soberania estatal, de efeitos mais amplos. As instabilidades e os ilícitos internacionais

repercutem na soberania na medida em que o espaço territorial e demais bens nacionais são

considerados como objeto direto ou indireto da ação ou omissão de autoridades públicas (que

têm o dever de combater esses fatos), bem como de atores que patrocinam e executam as

supostas ilegalidades. Exemplos recorrentes dessas hipóteses são as incursões nos territórios

de países vizinhos praticados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), a

produção e o tráfico de drogas. Nas colocações de Castells (1999, p. 289-358), esses eventos

indicam a destituição do poder do Estado.

Observe-se que, enquanto os ilícitos transnacionais correspondem a um

consenso mínimo sobre quais práticas são contrárias ao estado de direito e à dignidade da

pessoa humana, as zonas de instabilidades não guardam a mesma percepção. Esse, a

propósito, é um tema de extrema singularidade, posto que sujeito aos argumentos extremos da

soberania, na visão do Brasil e dos demais países, interna e externamente. Assim, questões

econômicas, problemas ambientais, divergências ideológicas, movimentos reivindicatórios,

perda de legitimidade do poder político e ruptura com o sistema político vigente podem

41

caracterizar atos ilícitos e, por conseguinte, disseminar instabilidades, servindo, por

conseguinte, de motivo para que a soberania ultrapasse as barreiras de contenção e alcance a

plenitude de sua natureza absolutista, justificando intervenções, uso da violência legalizada,

atos de exceção, suspensão de direitos e de liberdades civis, estado de mobilização e de

guerra, além do decorrente aumento da produção e do aparato bélico. Em hipóteses como

essas, as Forças Armadas ora podem assumir diretamente a condição de defensores da pátria,

ora podem servir de instrumento do poder político dominante para defender um determinado

estado de coisas. Isso é bom? Se bom ou não, é juridicamente possível. E nesse aspecto reside

o desafio que a política de defesa dirige à democracia e ao político: encontrar alternativas para

evitar a deturpação de princípios orientadores da humanidade em nome de causas que se

fundamentam em alusões à democracia e na subjetividade do conceito de soberania, mas que

podem apenas ser verdades construídas com o propósito de dissimular atitudes totalitárias,

expansionistas e econômicas, voltadas a dissimular os embates políticos pelo exercício do

poder ou preservar vantagens, prerrogativas e privilégios que demarcam as assimetrias entre

os países.

A indicação da necessidade de elevar o tema de defesa ao grau de

importância político-estratégico é posta sob a premissa de que as relações internacionais, em

decorrência da diversidade de atores e de interesses, podem gerar associações ou conflitos,

dando força à idéia segundo a qual quanto maior ênfase aos aspectos de defesa mais

adequados serão os instrumentos destinados a preservar ou garantir a soberania, o patrimônio

nacional e a integridade territorial, compatibilizando-os, principalmente, com os interesses da

América do Sul. Da leitura dos objetivos da política de defesa, percebe-se que o poder público

busca um ponto de equilíbrio entre as demandas dos atores internacionais e os projetos

nacionais de cada país, ao reconhecer que o acirramento ou o abrandamento das adversidades

estão no pêndulo das influências e das interdependências. Qual o significado dessa

42

ponderação? Primeiro, disseminar a idéia de que, mesmo diante de tamanhas assimetrias de

poder entre os Estados, é possível um mínimo de estabilidade nas relações internacionais, sem

a ingenuidade de acreditar que essa condição possa efetivamente proporcionar igualdade.

Segundo, que a estabilidade possível pode encontrar na interdependência um remédio para

minimizar a capacidade que os países mais fortes têm de influenciar e, por conseguinte, de

interferir (direta ou indiretamente) na condução da política de outros países. É por isso que a

política de defesa brasileira elegeu, dentre os seus objetivos, “a promoção da estabilidade

regional”, a “contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais” e “a

projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios

internacionais”50.

A formação de idéias para elevar o grau de relevância da defesa na

sociedade civil é o último tema da política de defesa que expressamente está presente no

argumento de soberania, vinculando-o aos interesses nacionais e à integridade territorial do

país. Trata-se do corolário das demais premissas, para o fim de convencer o público e obter a

legitimidade para a implantação de medidas. É uma tentativa de aproximar o assunto da

população em geral e dos principais atores formadores de opinião. Esse ponto é essencial, na

medida em que ora atrairá interesses ora representará repulsa. A discussão transita em torno

da escassez de recursos orçamentários para atender, concomitantemente, as demandas sociais

e os pleitos de natureza militar, seja de natureza bélica e tecnológica, seja de capacitação,

formação e remuneração de efetivos. Esse debate parece superficial, mas não é. Significa o

elo entre políticas públicas distintas e interdependentes, separadas pelos antagonismos

decorrentes da ausência de metodologia capaz de estabelecer equilíbrios e consensos a

respeito do problema estratégico que aparentemente coloca em contradição os princípios

constitucionais que tratam dos fundamentos, dos objetivos e das relações internacionais do

50 Cf. incisos IV, V e VI do item 5 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

43

Brasil, indissociáveis do modelo de estado de direito democrático que foi adotado. É possível

encontrar solução para esse dilema? Sim. Um caminho: o modo de formular e de executar a

política de defesa, que será abordado no capítulo seguinte.

A abordagem de Foucault (2006, p. 181) se aproxima das preocupações

quanto ao uso instrumental que o poder político dominante faz das normas jurídicas de

natureza coercitiva e, por conseguinte, de imposição da disciplina que reveste a soberania,

vista pelo autor como “o problema central do direito nas sociedades ocidentais”:

[...] que o discurso e a técnica do direito tiveram basicamente a função de dissolver o fato da dominação dentro do poder para, em seu lugar, fazer aparecer duas coisas: por um lado, os direitos legítimos da soberania e, por outro, a obrigação legal de obediência. O sistema do direito é inteiramente centrado no rei e é, portanto, a eliminação da dominação e de suas conseqüências.

A relevância da soberania para a política de defesa reside, pois, na

percepção do alcance de seus princípios na democracia e na composição do jogo político –

cujos efeitos repercutem simultaneamente tanto no plano externo como no interno – ou, de

forma mais clara, de como a política de defesa pode ser utilizada para formar consensos

positivos de interesse coletivo, fundados em concepções de justiça, como também para servir

a pretensões totalitárias ou excludentes das demandas da sociedade em geral. Dessa feita,

forçoso admitir que a soberania, na forma de escudo metafórico, tem como um de seus pilares

outra construção de verdade jurídica: a idéia de segurança, que será abordada a seguir.

1.2 Segurança e suspensão da beligerância explícita

As noções de segurança influenciam o atuar do poder soberano e as linhas

das políticas de cada país ou nação, que se projetam para o exterior ou para o campo interno.

Segurança é tema tão amplo, subjetivo e manipulável que admite inúmeras concepções,

independentemente da prática de regimes democráticos. Portanto, segurança implica

44

controvérsia, complexidade e perplexidade. Sua relevância para a política de defesa brasileira

reside no fato de que constitui a causa da defesa, o que implica dizer que os instrumentos da

defesa são delineados e contidos nos fundamentos da segurança. O presente trabalho é

trespassado por debates que gravitam em torno dos efeitos que a segurança repercute na

defesa, suas vulnerabilidades e prováveis hipóteses de dissuasão e de persuasão. Esse tópico

tem a intenção de apresentar algumas inquietações julgadas relevantes e que poderão servir

para entender a formulação, as estratégias e as táticas que gravitam em torno do tema.

Não há organismo internacional com amplos e ilimitados poderes

supranacionais, com representatividade, legitimidade e força suficientes para determinar o

agir dos países. A ONU não se reveste dessas prerrogativas. E isso é bom, pois não há

garantias que indiquem a imparcialidade ou a justiça das decisões tomadas por uma entidade

dessa natureza, tendo em vista sua atual configuração. A tentativa se resume na frágil

composição de equilíbrios e de medidas pontuais destinadas a conter excessos, salvar povos

ou nações51 e punir transgressores de uma suposta ordem mundial marcada por injustiças e

assimetrias. Ocorre que mesmo esse pequeno gesto tem sofrido desgastes, ora pela proteção

de interesses nacionais não totalmente revelados, ora pela contestação às amarras a que são

submetidos os subversivos da alegada ordem mundial, ora pelos impulsos ideológicos e

hegemônicos que têm o propósito de sustentar a ascensão, a retomada ou a manutenção de

poder.

Embora sem unanimidade e com oscilações determinadas pela deturpação

de fundamentos, a segurança se baseia, no campo externo, na doutrina de renúncia à guerra

como instrumento de política nacional. Esse princípio consta expressamente do Tratado de

51 Na distinção apresentada por Marcos Augusto Maliska (Estado e século XXI: a integração supranacional

sob a ótica do direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 105-106), a partir dos ensinamentos de Hans Kelsen e Friedrich Müller.

45

Renúncia à Guerra52, de 1928, elaborado depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)

com a pretensão de perpetuar as “relações pacíficas e amistosas existentes entre os povos”,

como também assegurar “que todas as mudanças nas suas mútuas relações só devem ser

baseadas nos meios pacíficos e realizadas dentro da ordem e da paz”. Esse singelo tratado de

apenas três artigos tentou por fim à guerra como instrumento da política, mas não alcançou

pleno êxito pelo fato inconteste da continuidade da preparação para o enfrentamento e do uso

da força, como também porque foi condicionado à adesão das nações ditas “civilizadas”

(termo que incita discórdia), conforme menção expressa em seu texto introdutório. É nessa

dissimulada fórmula de indicar a idéia de superioridade de uns sobre outros que persiste a

animosidade, as divergências e os enfrentamentos, no exercício da soberania (na abordagem

do capítulo anterior) e na concepção de segurança.

O estado de paz permanente nada mais é do que a suspensão da beligerância

explícita, no dizer de Kant (2004, p. 126-127):

O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça constante. Deve, portanto, instaurar-se o estado de paz; pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia de paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro (o que só pode acontecer num estado legal), cada um pode considerar como inimigo aquele a quem lhe exigiu tal segurança.

Observado que as repercussões da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

indicaram a possibilidade de extermínio da humanidade, os conflitos armados diminuíram

notadamente quanto aos objetivos manifestos de anexar territórios e tomar o poder. Contudo,

o uso da força armada pelo poder político adquiriu a sofisticação dos instrumentos de

dissuasão e persuasão. A dissuasão é estratégia de dissimulação, da preparação para

desestimular a ofensiva potencial ou manifesta, na delicada temporalidade determinada pela

52 Também chamado de Pacto de Paris ou Briand-Kellog, do qual o Brasil é signatário. Disponível em:

<www.mre.gov.br>. Acesso em: 7 de novembro de 2005.

46

velocidade tecnológica. A persuasão é estratégia de coerção, da demonstração de força e da

capacidade de influenciar a tomada de decisões. Procurou-se superar as limitações do Pacto

de Paris com a Carta da ONU (1945), principalmente com o manejo do conceito de legítima

defesa, trazendo-se para os debates do uso político da violência legalizada, pela força das

armas, a ampliação dos conceitos de guerra injusta e de guerra justa, derivando-se para a

instrumentalização do direito em favor da parte supostamente ofendida.

Utilizando-se da expressão “consciência atômica” como um caminho para o

pacifismo ativo, Bobbio (2003, p. 76) distingue três grupos teóricos que procuram justificar a

escolha da guerra: (i) todas as guerras são justificáveis, (ii) não há guerras justificáveis e (iii)

há guerras justificáveis e outras não. Ocorre que, no dizer do autor, a legitimidade, o

procedimento e a justiça dessas fórmulas são questionáveis, na aproximação com o princípio

de imparcialidade dos procedimentos judiciais:

[...] a guerra como execução forçada ou como pena, numa palavra, a guerra como sanção, a força a serviço do direito. Mas e quanto ao processo de cognição? Sob esse aspecto, a teoria mostra uma grave fraqueza, por duas razões pelo menos: um processo de cognição é tanto mais apto a assegurar a discriminação do justo e do injusto, e portanto a estabelecer uma linha de fronteira entre a razão e o erro, quanto mais se inspira nos princípios fundamentais da certeza dos critérios de julgamento e da imparcialidade de quem deve julgar. Na declaração e na realização de uma guerra, nem um nem outro princípio é respeitado: o primeiro não o é porque a longa tradição de teorias sobre a guerra justa falhou exatamente na tentativa de estabelecer um conjunto de critérios de justiça correntemente aceitos (daí não havia guerra que não encontrasse nessa ou naquela doutrina o seu próprio critério de justificação); o segundo também não o é porque quem decide sobre a justiça ou injustiça da guerra é a mesma parte em causa, não um juiz acima das partes. (BOBBIO, 2003, p. 77-78)

A noção de segurança reside na tênue e imaginária linha que tenta separar

paz (ou não-guerra) e guerra. Ao tempo em que promove a suspensão da beligerância

explícita, determina vigilância permanente e a preparação para um provável e eventual

enfrentamento. Nesse ponto está o fracasso do simbolismo que reveste o estado de paz

continuada ou permanente, porque não é paz: trata-se de mobilização passiva e ativa para o

47

conflito e, na atualidade, para as novas ameaças, que conta com o concurso do direito e do

presumido consentimento da coletividade sob o argumento sedutor da máxima proteção, a

envolver a economia e o poder político, resultando o fenômeno de que a defesa autorizada,

legalizada ou legitimada não se situa apenas no campo do militar, ou seja, a preparação

transcende o militar para se estender aos meios de produção, à tecnologia e à sociedade, na

teoria da “guerra pura” impregnada no cotidiano em que todos procuram se defender, nas

inquietações suscitadas por Virilio e Lotringer (1984).

Os estudos sobre a conceituação de segurança elaborados por especialistas a

pedido da ONU53, ao tempo em que trazem o diagnóstico desse quadro de fragilidade

desvelam que, na era atômica e nuclear, a estabilidade da segurança depende do

reconhecimento e da aceitação das diferenças tanto quanto da cooperação e da formação de

consensos. Dessa maneira, a segurança tem por princípio a liberdade para o desenvolvimento

e o progresso, na medida em que é elevada à condição de inexistência de perigo militar, de

pressões políticas ou econômicas que funcionem como formas de coerção. Note-se que o uso

bruto da violência armada e legalizada foi em parte substituído ou disfarçado por estratégias

de persuasão e, até mesmo, de dissuasão (abrandamento) que tentam dissimular a ocorrência

explícita ou atenuada daqueles fatores. Logo, o estado de plena segurança, em seu sentido

plural e fraterno, ainda está longe. Os estudos assinalam que a segurança global é

responsabilidade de cada indivíduo e de toda a comunidade internacional. Entretanto, deixa

claro que a percepção de segurança é apenas aparente.

A segurança decorre da graduação e da assimetria com que é aplicada, pois

está sujeita aos valores que são defendidos, desprezados ou combatidos. A ONU assinala que

são exemplos desses conceitos expressões como “equilíbrio de poder”, “dissuasão” e

53 Sob o título Um Desarmamento Geral e Completo. Estudo sobre os Conceitos de Segurança. Relatório

do Secretário Geral – A/40/553 (Capítulo V – Conclusões e Recomendações, p. 53-61), de 26 de agosto de 1985 (original em inglês).

48

“segurança coletiva”, além de medidas pontuais como o desarmamento, a limitação ao uso de

armamento e a forma como as forças militares dos diferentes povos podem ser mantidas,

preparadas e empregadas, com a ressalva de que quanto maior relevância for atribuída à

segurança (ou, por conseguinte, à defesa) nacional em detrimento da segurança coletiva,

maior será a probabilidade de o cenário internacional se tornar cada vez mais instável, o que

pode resultar nova e desenfreada corrida armamentista, potencialmente aniquiladora ante o

uso da tecnologia nuclear.

Em síntese, os estudos da ONU assinalam que a segurança internacional

seria alcançável mediante a combinação dos seguintes pressupostos: (i) todas as nações têm

direito à segurança, (ii) a utilização da força militar para fins que não sejam a autodefesa não

constitui instrumento legítimo de política nacional, (iii) a segurança deve ser entendida em

termos globais, (iv) a segurança deve ser preocupação de todos os povos,

(iv) a compreensão da diversidade deve servir de fundamento da paz e da segurança e (vi) os

debates a respeito do desarmamento e da limitação à compra, à produção e ao uso de

armamento são extremamente relevantes para a construção e a manutenção da paz e da

segurança. Desses pressupostos, merece destaque aquele que situa a segurança em sentido

amplo ou global, a seguir transcrito (tradução livre):

Políticas de segurança não mais podem ter como causa a paz definida exclusivamente como a ausência de guerra, mas devemos lidar eficazmente com as mais amplas e complexas questões da inter-relação entre elementos de segurança militares e não militares. Isso é essencial para resolver problemas políticos subjacentes, como os sociais e econômicos. Uma forte ênfase sobre os aspectos militares nas políticas de segurança aumentou o ritmo da corrida armamentista, agravada pela exacerbação das tensões internacionais e ao perigo de guerra. As políticas centradas sobre a força militar tendem a desviar a atenção de outras ameaças graves para a segurança global, como a desordem política, os problemas do desenvolvimento, do apartheid, a negação do direito à autodeterminação e a distribuição desigual dos recursos. A ameaça de guerra pode ser tratada de forma inadequada, sem uma análise prévia dos recursos e medidas eficazes dirigidos para as raízes das tensões internacionais e antagonismos que, muitas vezes, dão origem à concorrência no domínio do nuclear e de armas convencionais. Por conseguinte, tornou-se essencial a abordagem global para a segurança, reconhecendo a crescente interdependência dos fatores

49

políticos, militares, econômicos, sociais, geográficos e tecnológicos. A segurança é igualmente importante nos âmbitos nacional e internacional, devendo neles ser assegurada em todos os níveis desses campos.

Por fim, ao suscitar a revisão das políticas de segurança, os estudos indicam

que o caminho da não-guerra ou da paz duradoura está na segurança global, para a qual quatro

requisitos são essenciais, os quais estão associados aos seis pressupostos anteriormente

mencionados: (i) desarmar para evitar ou diminuir o perigo de guerra, (ii) aderir ao Estado de

Direito e às noções de segurança coletiva, (iii) descolonizar e pôr fim ao apartheid e (iv) atuar

política e economicamente para desenvolver a segurança. O desarmamento é um ponto

sensível e de aplicação extremamente desigual, já que é notória a concentração de poder e os

desdobramentos econômicos e políticos que dele decorrem, como a venda, a aplicação de

sanções, a proibição ou a limitação do uso, o contrabando e as restrições quanto à

transferência de tecnologia, que envolvem o poder oficial e as redes de criminalidade. A

adesão ao Estado de Direito parece mais factível, embora também dependa da democracia

que, por sua essência, precisa ser aceita e não imposta. O fim da colonização e da

discriminação significa apelo simbólico, tendo em vista que essas práticas são dissimuladas

em instrumentos e medidas sofisticadas que atingem os mesmos fins por outros meios. A

atuação política e econômica se revela como o pilar de sustentação da segurança sob o

fundamento do equilíbrio entre as demandas sociais e militares, observada a necessidade de

diminuir as vulnerabilidades do campo interno que repercutem no externo.

É preciso reconhecer que a organização da sociedade pressupõe o que se

convencionou denominar pacto social, que transita da forma consentida, tácita à escrita,

formal. Se nas sociedades devem prevalecer os princípios de retributividade, dependência,

controle social e sanção organizada, convém trazer algumas noções que, a esse respeito,

Rousseau (2005, p. 31-32) consignou: (i) a mudança do estado natural dos homens; (ii) a

constatação de que a melhor forma de conservação da existência humana está na agregação

50

das diversas forças para vencer as resistências, na tentativa de estabelecer o mínimo de

harmonia; (iii) como conciliar a força e a liberdade de cada homem para obter benefícios

mútuos; (iv) a superação do aparente antagonismo entre liberdade e esforço comum reside no

estabelecimento de um contrato, cujas cláusulas são “admitidas tacitamente e reconhecidas,

até que, violado o pacto social, cada um torne a entrar em seus direitos e retome a liberdade

natural, perdendo a liberdade de convenção, à qual sacrificou a primeira”; (v) a produção de

um corpo moral e coletivo; e (vi) a figura do Estado como pessoa pública formada pela união

de todas as pessoas.

Comparato (2006, p. 246-247) assinala que a proposta de Rousseau

corresponde “à condição lógica de justificação da relação política”, de tal maneira que se

justifique a sujeição da minoria às decisões da maioria (uma inquietação: quem é a maioria?).

Explica o autor que, diferentemente de Hobbes, Rousseau (2005) parte do pressuposto de que

no contrato social não haveria a possibilidade de se colocar “um soberano situado acima e

fora da sociedade civil”, razão pela qual “é indispensável que a própria comunidade seja a

receptora da totalidade dos direitos individuais”. Essas percepções estão presentes nas noções

de segurança, ou seja, naqueles postulados destinados, de um lado, a preservar a soberania

estatal e, de outro, a proporcionar condições favoráveis de pleno desenvolvimento e

progresso, sem violências ou opressões.

Nesse sentido, Comparato (2006, p. 574-575) assinala que a razão primeira

da existência da sociedade política “é a necessidade de garantir a todos um habitat coletivo,

que lhes assegure uma proteção contra os riscos de fome, falta de abrigo contra as

intempéries, ou assédio de outros grupos humanos”. Na atualidade, a garantia de segurança

pessoal de todos cabe ao Estado. Para tanto, no campo interno dos países são necessários os

sistemas de bem-estar social associados ao desenvolvimento e ao progresso, cujas variáveis se

estendem à economia e ao ambiente. Externamente, o caminho está na superação da atuação

51

isolada na base da disputa. O autor ainda assinala a relevância da solidariedade como atitude

complementar aos postulados de liberdade, igualdade e segurança (2006, p. 577-581):

“Enquanto a liberdade e igualdade colocam as pessoas umas diante das outras, a solidariedade

as reúne, todas, no seio de uma mesma comunidade”, destacando que o individualismo

prepondera na igualdade e na liberdade, enquanto é diminuído na solidariedade.

Conforme será abordado no capítulo seguinte, em linhas gerais a política de

defesa brasileira procura se inserir nesse quadro de conceitos e de princípios sobre

segurança54, dando ênfase às estratégias militares e às novas ameaças que são colocadas como

foco de atenção na atualidade, como os atentados terroristas, as invasões cibernéticas e as

disputas por fontes de energia, esboçando a interdisciplinaridade da matéria mediante a

indicação de pontes com as demais áreas de atuação do poder político e da sociedade civil. No

Brasil houve um significativo avanço, embora tardio e com forte tendência aos aspectos

militares, considerando que os estudos da ONU sobre os conceitos de segurança foram

concluídos no período em que se esboçava a transição do regime de exceção para o

democrático, entrecortado pela reorganização do poder político e pela elaboração de uma

nova constituição para o país.

1.3 Democracia: noções e distorções

A democracia é um argumento que procura fundamentar a legitimidade da

soberania e a difusão ou aceitação da idéia de segurança como mecanismo de preservação do

equilíbrio de forças. Ocorre que soberania e segurança são assimétricas e na maioria das vezes

excludentes, orientando-se pelos privilégios e interesses que estão em jogo, na aproximação

54 Sobre o tema, sugere-se a leitura de Robert S. McNamara (A essência da segurança: reflexões de um

secretário da defesa dos Estados Unidos. São Paulo: IBRASA, 1968), Panorama brasileiro de paz e segurança (Organizadores Clóvis Brigagão e Domício Proença Júnior. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer, 2004) e Segurança internacional (Organizador Wilhelm Hofmeister. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer, 2007).

52

ou no distanciamento dos princípios democráticos, razão pela qual a composição do tripé

soberania-segurança-defesa encerra contradições que desafiam o direito e o político, quando

esse busca alternativas para que o equilíbrio de forças possa ser aperfeiçoado e transformado

em divisão de esforços para a melhoria das condições de vida da humanidade, na superação

do dogmatismo a partir da construção de regras jurídicas que levem em consideração

conhecimentos antropológicos e sociológicos. Por esses motivos, interessa à formulação da

política de defesa brasileira conhecer os fundamentos da democracia, e é nessa ótica que o

presente tópico será desenvolvido.

1.3.1 O que é democracia?

Tentar compreender a democracia é um exercício de fundamental

importância para o estudo da política de defesa nacional, tendo em vista os efeitos que são

sentidos no exercício da cidadania e, por conseguinte, das liberdades públicas. Logo, a

participação dos atores políticos e sociais na construção da aludida política constitui requisito

de legitimidade da atuação do Estado, que não pode dispensar o diálogo a partir do qual a

política de defesa é construída e aperfeiçoada. Democracia e soberania são temas ligados aos

conceitos de segurança e defesa, pois ajudam a compreender a forma como o Estado, a

sociedade e os indivíduos se comportam diante do direito e do político, observados os

cenários internos e externos, a conscientização da violência legalizada, o ônus da proteção e a

composição de consensos e de cooperações. Nessa ordem de idéias, serão alinhavadas

algumas noções de democracia, os desafios, as distorções e os dilemas que esse regime

enfrenta.

As controvérsias a respeito da democracia são recorrentes. Dahl (2001, p.

17) destaca que essa discussão remonta ora às práticas sociais experimentadas há 2.500 anos,

53

ora ao início da formação dos EUA55, ora às raízes clássicas vivenciadas na Grécia ou na

Roma antiga. Então, seria a democracia um instituto de progressão contínua ao longo do

tempo? O autor esclarece que não, assinalando que esse regime, essa forma de governar tem

por característica principal a transformação, na medida em que sofre interrupções e declínios

no curso da história. Assim, a democracia pode ser bem ou mal utilizada por aqueles que

exercem o poder, ou mesmo rejeitada pela tomada do poder. A democracia não é uma

ferramenta pronta e previamente preparada; precisa ser aceita, experimentada e, até mesmo,

adaptada às diferentes realidades históricas. No entanto, seus principais fundamentos devem

ser respeitados, dentre os quais o reconhecimento da pessoa humana, a alternância no poder, o

Estado de Direito, o efetivo exercício da cidadania e o respeito às liberdades públicas.

Não é descabido considerar uma espécie peculiar de democracia vivenciada

por populações tribais, ditas não civilizadas. Mas, por certo, essa democracia não se reveste

das peculiaridades, sutilezas e sofisticações dos ritos e das formas praticadas nos Estados

ocidentais modernos56. A propósito, com base no que Franco (2000, p. 234-237) assinalou a

respeito do equívoco que atribuiu aos ditos “selvagens” uma significativa influência na teoria

da bondade natural do homem, no século XVIII, e sua importância para a “doutrina

revolucionária democrática”, é oportuno fazer o seguinte registro: se a democracia, num

determinado momento da história, assimilou as idéias da Revolução Francesa (liberdade,

igualdade e fraternidade), as quais se fortaleceram na construção simbólica do selvagem como

portador da bondade natural, com efeitos nas doutrinas políticas, não seria desarrazoado

55 No dia 4 de julho de 1776 foi declarada a independência dos EUA, data que marca a Declaração de

Independência firmada pelas treze colônias britânicas na América do Norte. 56 Pierre Clastres (2004, p. 231-270), no estudo da etimologia selvagem dos índios da América do Sul, descreve

as restrições ao poder do chefe indígena, que se limita à representação da sociedade a que pertence. Ao líder, que exerce a chefia da comunidade, foram atribuídos poderes limitados, submetidos a um constante processo de controle pelos costumes e princípios que devem ser seguidos. A chefia e a guerra são poderes separados. Para os índios, o poder atribuído ao chefe é condicionado aos anseios da sociedade a que pertence. Desse modo, o chefe não tem o poder de declarar guerra se esse não é o desejo dos guerreiros, os quais, nessa condição, representam a sociedade. Trata-se de um verdadeiro contrapeso, de um mecanismo de proteção da liberdade. É a aversão ao controle único, à concentração de poderes, sendo uma forma legítima de preservação da existência e da continuidade da própria comunidade.

54

ponderar que, considerada errônea essa conclusão, destinada a dar concretude a um modelo,

os ideais democráticos restariam também comprometidos, posto que assentados na frágil

visão mitológica de um argumento.

Para Kelsen (1993, p. 88), a liberdade democrática está impregnada de

dominação. Esse entendimento revela a contradição existente na democracia. O autor

argumenta que a relevância desse regime reside não na ausência de chefes, mas na forma

como o poder político é formado e exercido. Daí a importância da maneira como a

representatividade é legitimada, de tal modo que, na sua visão, é preciso superar a construção

de que a vontade dominadora dispensa a efetiva participação popular (o exercício da

cidadania), dando lugar ao que chamou de escolha pelo amplo extrato daqueles que são

submetidos à ordem social, a revelar uma significativa falha da democracia real e o seu

distanciamento da democracia ideal. Nos esforços para superar ou minimizar a precariedade

da representação nos governos democráticos, Bovero (2002, p. 17-18) utiliza o termo

“equiparação”, aproximando-o do sentido de igualdade para formular a distinção que a

democracia apresenta em comparação com outras formas de convivência política, em tempos

antigos ou modernos, no permanente exercício do que chamou de “superação ou absorção de

desníveis”.

Entretanto, o sentido que os homens atribuem à igualdade freqüentemente

sofre mutações ao longo do tempo, porque inclinações particularizadas preponderam na

defesa de interesses não coletivos. Aqui, o sentido de coletivo não se confunde com o

corporativo, de uma determinada classe ou categoria, mas sim o voltado ao reconhecimento

da pessoa humana, sem distinção de origem, cor, credo ou posição social. Bovero (2002, p.

22), na menção de Tocqueville a Aristóteles, para quem “a democracia nasceu do fato de que

aqueles que são iguais em um ponto crêem ser absolutamente iguais: uma vez que todos são

igualmente livres, consideram ser iguais em tudo”, assinala que a igualdade precisa ser

55

compreendida além da simples igualdade de condições no corpo social: deve pressupor o

reconhecimento da pessoa humana independentemente de sua origem e condição social, como

portadora de direitos universais. Ocorre que, na democracia, essas características exigem que

o poder e a atuação política sejam compartilhados, distribuídos, de modo a que os governos,

os políticos e as instituições não se coloquem acima uns dos outros e das respectivas

populações.

A respeito da conscientização e da conseqüente distribuição de

responsabilidades intrínsecas ao regime democrático, Barzotto (2003, p. 207) defende que é

de natureza personalista a finalidade dos governos que se pautam no Estado Democrático de

Direito, na medida em que há “um dever de todos na plena realização dos seres humanos

entendidos não em termos individualistas (Kelsen) ou de um cidadão total (Rousseau), mas

concebidos como pessoas”, a expressar “a estrutura jurídico-política de uma comunidade que,

sob um Estado de Justiça, delibera sobre o conteúdo da vida boa e do bem-comum”. Por

conseguinte, depreende-se que, para o autor (2002, p. 23), a igualdade democrática reside no

pressuposto de que todos, indistintamente, têm o direito de participar do poder político, isto é,

das decisões de ordem pública. Na democracia moderna, a igualdade de participar se

concretiza no poder de votar, inerente à soberania popular e à representatividade, sendo essas

as características que distinguem a democracia moderna da antiga. Por outro lado, igualdade

requer liberdade, conceitos que, colocados no contexto do Estado político organizado, não

traduzem a acepção etimológica das expressões57, sendo pertinente, nesse sentido, a assertiva

de Montesquieu (1995, p. 186):

57 Kelsen assinalou: “A idéia de igualdade, por ser diferente da idéia formal de igualdade formal na democracia,

isto é, da igualdade dos direitos políticos, nada tem a ver com a idéia de democracia. Isto fica claramente demonstrado pelo fato de a igualdade material – não igualdade política formal – poder ser realizada tão bem ou talvez melhor em regimes ditatoriais, autocráticos, do que em regime democrático” (op. cit., p. 99).

56

É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas liberdade política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar.

Deve-se sempre ter em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque outros também teriam tal poder.

As idéias de Montesquieu estão presentes em Bovero (2002, p. 78-79), na

abordagem das liberdades positiva e negativa. A primeira (positiva) traduz a liberdade que o

indivíduo tem de decidir por sua própria vontade; é o querer autônomo de agir por si mesmo,

ao tempo em que a segunda (negativa) reside na liberdade de agir segundo princípios e

convenções adotados por uma determinada sociedade. Esses sistemas de idéias são objeto,

também, dos estudos de Berlin (2002) e Dumont (1985), compreendidos como questões

centrais da política: a obediência e a coerção. Na ideologia do individualismo, o homem deixa

de ser livre para ser igual, estando, pois, sujeito à obediência e à coerção. Para Berlin (2002,

p. 229), o sentido negativo diz respeito à liberdade ou não de ser ou de fazer algo, com ou sem

a permissão ou a interferência de outras pessoas ou instituições. O sentido positivo de

liberdade abrange o campo de controle ou interferência que determina que alguém faça ou

deixe de fazer alguma coisa. Na noção de liberdade negativa o homem é livre quando não está

sujeito à ação de outros. Daí decorre a liberdade política, que consiste no agir sem sofrer

restrições dos demais. O autor explica que “não temos liberdade política quando outros

indivíduos nos impedem de alcançar uma meta” (2002, p. 230-231). Além da restrição e da

coerção, a escravidão ou a opressão podem determinar esse estado de coisas.

Nesse sentido, a liberdade se amplia na medida em que a interferência é

diminuída. Berlin (2002, p. 231-234) destaca, a partir de Locke e Mill na Inglaterra e Constant

e Tocqueville na França, a necessidade de existir uma “mínima liberdade pessoal”, a ser

protegida de interferências, sendo essa questão de vital importância para os limites de atuação

57

do público sobre o privado. Contudo, o autor admite que a natureza interdependente dos

homens impossibilita a completa não-interferência, demonstrando, na seguinte passagem, que

igualdade e liberdade não podem prescindir do reconhecimento da condição de pessoa

humana a partir da necessidade – e, também, do dever coletivo – de oferecer a todas as

pessoas instrumentos que permitam refletir e agir critica e politicamente no contexto social:

[...] De fato, oferecer direitos políticos ou salvaguardas contra a intervenção do Estado a homens semi-nus, analfabetos, subnutridos e doentes é zombar de sua condição: eles precisam de ajuda médica ou educação antes de poderem compreender ou aproveitar um aumento em sua liberdade. O que é a liberdade para aqueles que não a podem empregar? Sem as condições adequadas para o uso da liberdade, qual é o valor dela? [...] a liberdade individual não é a necessidade primária de todos.

Não basta, pois, a liberdade. Para que possam fazer as melhores escolhas, é

preciso que as pessoas desenvolvam capacidade cognitiva para compreender os

acontecimentos, os conflitos, os jogos de conquista do poder e as pressões a que estão

sujeitas, não apenas no sentido de satisfazer a interesses pessoais, mas essencialmente para

refletir a respeito do conjunto de valores praticados numa dada sociedade. Ocorre que, para a

maioria da população, o desenvolvimento da capacidade cognitiva, da compreensão, fruto da

saúde, da educação e da cultura, dificilmente será alcançável senão com a prática continuada

de efetivas políticas públicas, construídas a partir da aplicação do direito não como um mero

instrumento de poder, mas como princípio de justiça eqüitativa. Com esses pressupostos, a

liberdade precisa ser associada à capacidade de escolher livremente, desapegada da tendência

de superar o outro ou de obter vantagem imediata. Então, a liberdade é a essência dos regimes

democráticos, evidentemente porque permite – se não deturpada – a participação (direta ou

por representação) dos indivíduos, na esfera dos mais variados temas, quando dos debates

para a tomada de decisões vinculatórias e para a elaboração de normas de conduta a que

estarão sujeitos, como é o caso da defesa. Logo, esse concurso de aspirações de todos os

atores sociais restará viciado se admitir discriminação ou qualquer forma de opressão, posto

58

que a ampla vinculação da obediência e da coercibilidade pressupõe a garantia de poder

participar e, por conseguinte, o dever de assumir responsabilidades.

Se a democracia depende da participação popular, é de valia lembrar que o

ingresso das massas no cenário de atuação política também foi uma das formas de manter

determinado predomínio de poder das elites e evitar a ruptura total do sistema no qual se

organizava o poder. A Revolução Francesa afastou o predomínio da aristocracia e influenciou

a nova forma de organização política e social. Sieyès (2001) demonstrou que o Estado não

representava a sociedade como um todo. A estrutura organicista francesa separava a elite

dirigente (nobreza e Igreja) do povo, dando origem ao movimento a partir do qual um novo

pacto de convivência social e de exercício do poder político foi construído. Esse novo quadro

influenciava – mesmo que a contragosto da elite dirigente e dominante – a maior participação

popular, inclusive como estratégia na busca pela legitimidade das decisões a serem tomadas,

de natureza vinculatória, sobremaneira para justificar a arrecadação de tributos e para fazer

face às necessidades da nova estrutura política. O Estado nacional subordinado a um poder

centralizado precisava refletir a imagem de uma nação unificada, de tal modo que a vontade

dos cidadãos exigia a representatividade e normatividade que emoldurassem o artifício da

aceitação coletiva.

Assim, se na democracia a soberania emana do povo e partir dele se

exterioriza, a conformação jurídica estabelecida para a organização social como representação

desse poder encontra significado na seguinte passagem de Kelsen (1993, p. 36):

Na verdade, o povo só parece uno, em sentido mais ou menos preciso, do ponto de vista jurídico; a sua unidade, que é normativa, na realidade é resultado de um dado jurídico: a submissão de todos os seus membros à mesma ordem jurídica estatal constituída – como conteúdo das normas jurídicas com base nas quais essa ordem é formada – pela unidade dos múltiplos atos humanos, que representa o povo como elemento do Estado, de uma ordem social específica.

59

No Brasil, a análise feita por Visconde do Uruguai (2002, p. 492) demonstra

que os mecanismos da organização do Estado nacional levaram em conta os instrumentos de

centralização e descentralização do poder político, com destaque às estratégicas de formação

das instituições e das autoridades públicas, na comparação entre os postulados ingleses,

americanos e franceses, sendo esses os que mais de se aproximam da realidade brasileira. Para

o autor, a descentralização do poder nos municípios reflete a plena liberdade e, por

conseguinte, a democracia:

É contudo na municipalidade que reside a força dos homens livres. As instituições municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para as ciências; põem a liberdade ao alcance do povo, fazem com que apreciem o seu gozo tranqüilo e habituam-no a servir-se dela. Sem instituições municipais pode uma nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito de liberdade.

Dessas questões não escapa o conflito entre liberdade e dominação, fazendo

com que sejam trazidas para a atualidade as colocações de La Boétie (2003, p. 28-30), para

quem a cobiça está sempre presente. A democracia não está imune a esse tipo de deturpação.

Provavelmente, essa ambição desmedida seja de fato o fiel da balança entre a resistência e a

servidão, estabelecendo-se relacionamentos que ampliam a dominação. Dessa forma, explica-

se a necessidade de distribuir pequenas parcelas de poder. A vontade de servir, no dizer do

autor, surge quando o amor à liberdade deixa de ser natural. A dominação, da qual decorre a

servidão, de tão enraizada leva à concepção de que os homens não nascem na posse da

liberdade e nem com a obrigação de defendê-la. Nos dias de hoje, a servidão é percebida, de

um lado, na composição de interesses descompromissados com as demandas públicas e, de

outro, na miséria, na pobreza e na falta de acesso à educação e à saúde (citando-se algumas

formas de exclusão e, por conseguinte, de opressão). Esses são exemplos do jugo, na medida

em que passam a ser instrumentos de imposição e de manutenção do poder, observando-se

que as pessoas estão apenas preocupadas com a sobrevivência ou com a subsistência,

colocando em segundo plano a liberdade e a efetiva participação democrática.

60

Outras reflexões de La Boétie (2003, p. 33-39) também encontram

ressonância nas distorções que a democracia enfrenta, dentre as quais a constatação de que os

tiranos se dividem em três espécies, conforme o modo de conquista do poder: (i) pela eleição

do povo, (ii) pela força das armas ou (iii) pela sucessão da raça, cujas hipóteses não merecem

maiores digressões. A opressão, para se instalar, segue a estratégia que começa com o servir

daquele que é constrangido pela derrota em conseqüência do uso da força (por certo que não

necessariamente da força física ou do uso de armas). Depois, a servidão funciona sem que seja

percebida, como se fosse uma circunstância voluntária. Esse estado de coisas se consolida ao

longo do tempo, sustentado pela “alimentação” e “educação” como um processo natural,

necessário, incondicional e definitivo. Revela-se, então, a primeira “razão” da servidão: o

costume ou hábito; a segunda, que decorre do costume de nascer e receber educação, consiste

em tornar os homens inertes e dóceis. Assim, constitui tarefa dos tiranos sempre “embrutecer

os súditos”, de maneira a torná-los incapazes de perceber a dominação e a servidão.

A constatação de La Boétie se aplica à atualidade: “o povo desconfia de

quem o ama e é sincero com quem o engana” (2003, p. 41). É possível estabelecer

comparações com as práticas de dominação de nossos dias, especialmente no campo de

políticas paternalistas e de engodo, em que um determinado programa ou ação político-

governamental tem início nas promessas eleitoreiras e na lei que entra em vigor mas, na

prática, não atinge ou não pretende atingir o seu fim, ou quando se destina a cooptar votos por

meio de burla às regras eleitorais.

Na tentativa de obter legitimidade para medidas vinculatórias, Dahl (2001,

p. 32-34) registra que a idéia de obter um mínimo de consenso dos governados a respeito das

reivindicações quanto ao aumento dos impostos se transformou gradativamente na

necessidade de estabelecer debates a respeito das leis em geral, exigindo-se, principalmente

em razão do tamanho dos territórios, a representação por meio de eleições nos colegiados que

61

tratavam de tributos e formulavam leis, de tal modo que, para os acordos, era necessário

reunir os populares. O autor menciona que essas práticas e tradições formaram a base para o

surgimento da democracia. Contudo, o caminho inicial foi apenas uma promessa, pois muitos

requisitos essenciais a esse sistema representativo de governo popular não estavam – e ainda

não estão – totalmente presentes, dentre os quais: (i) a diminuição das desigualdades sociais e

econômicas como forma de influência no poder, (ii) a realização de assembléias com efetiva

participação democrática (existência de privilégios e falta de representatividade popular), (iii)

a atuação dos representantes deslocada das demandas populares e (iv) a fragilidade da cultura

democrática.

Lembre-se que a tendência a governos democráticos não se guiou apenas

pela legitimidade de arrecadar tributos. A maior participação popular58 em decisões políticas

de caráter vinculatório também se revestiu da estratégia de conter a força de grupos que não

se contentavam com a concentração do poder num Estado aristocrático59 influenciado por

uma igreja parcial. Dessa forma, a iniciação democrática passou longe da simultânea tomada

de consciência coletiva em favor da necessidade de proporcionar liberdade, pleno exercício da

cidadania e alternância no poder, para encontrar explicação na estratégia de evitar uma

ruptura de conseqüências incalculáveis para a organização na qual operavam as redes de

poder dominantes.

Considerado que a democracia traz uma nova forma de governo vinculada à

soberania popular, na medida em que, seja pelo voto, seja pela fiscalização dos atos públicos,

o povo atua e contribui para o avanço ou para o retrocesso desse sistema político, há que se

perquirir a respeito do exercício dessa faculdade, desse poder soberano. Teria o povo

58 Especialmente da burguesia, que precisava de consumidores e de mão-de-obra para a expansão de seus

negócios. 59 Para Kelsen, na “ideologia autocrática, o chefe não é um órgão criado pela coletividade ou que possa ser

criado por ela. Deve ser imaginado como uma potência à qual a coletividade deve sua própria existência, como um ser cuja origem, se possível, não seja compreensível à inteligência humana” (op. cit., p. 93).

62

condições para tal? Não há consenso para essa questão. Porém, embora a administração dos

assuntos de ordem pública possa ser confiada a representantes eleitos, as prerrogativas

populares dependem da capacidade dos cidadãos em compreender e se posicionar a respeito

de temas que ultrapassam seus interesses particulares com o mínimo de desprendimento. O

pensar coletivamente é uma virtude de difícil mensuração, mesmo na democracia. Todavia,

essa atitude é construída a partir do enfrentamento continuado desse dilema, experimentando-

se os princípios democráticos na vigilância recíproca entre as redes nas quais estão

relacionados os atores públicos. Daí a importância das opiniões divergentes para a formação

de equilíbrios.

Quando se cogita em aptidão do povo, a formulação de Montesquieu (1995,

p. 189) está presente nos debates: “A grande vantagem dos representantes é que são capazes

de discutir os negócios públicos. O povo não é, de modo algum, capaz disso, fato que

constitui um dos graves inconvenientes da democracia”. Essa assertiva tem cabimento na

atualidade? Não. Ocorre que, na maioria das vezes, para ter acesso às informações que

funcionam como meio para corrigir as distorções do sistema, o povo depende dos mecanismos

que são oferecidos pelos próprios governantes ou pelas instituições (públicas ou privadas). Os

avanços nesse sentido precisam de tempo e da superação de obstáculos, tais como sobreviver,

alimentar-se, ter saúde, instruir-se, suplantar a apatia, sensibilizar-se com as dificuldades do

outro. A tarefa é difícil, pois a conquista desse estágio depende de políticas públicas de

responsabilidade daqueles que atuam em nome do Estado, como políticos e técnicos. Então, a

alegada falta de aptidão do povo decorre de ações ou omissões dos que exercem o poder,

como também de consensos e da conjugação de esforços da sociedade civil. Na democracia

contemporânea, é preciso que, mesmo representado, o povo atue de forma consciente e

efetiva, fiscalizando seus representantes e cobrando resultados, no pleno exercício da

cidadania, não obstante essas prerrogativas sofrerem fortes restrições e obstruções do poder

63

político oficial, notadamente na ausência de políticas públicas indispensáveis à participação

popular nos assuntos ditos de Estado. Soma-se a esses fatores a atividade parlamentar

desprendida de interesses de grupos corporativos descompromissados das demandas coletivas.

A análise acadêmica de Ferreira Filho (2001, p. 32) pode ajudar no esclarecimento desse

processo:

É registro de experiência que de povo para povo há grandes diferenças de cultura política. Essa variação também ocorre num mesmo povo de época para época. De fato, como a ciência política já apontou, há diferentes tipos e diferentes níveis de cultura política. Ora, essas diferenças afetam a aptidão do povo para governar-se [...]. Somente a demagogia o negará. Essa cultura tem de ser levada em conta na estruturação das instituições e na distribuição das competências. Tal cultura política é função de numerosos fatores que incluem a civilização a que pertence o povo, a sua experiência histórica, portanto a sua cosmovisão.

No entender de Ferreira Filho (2001, p. 31-33), a democracia

contemporânea “consiste numa forma de governo em que o povo participa decisivamente da

escolha dos seus governantes (eleição), todos os seus integrantes estando em pé de igualdade

quanto ao peso de sua participação (voto) e à elegibilidade”. Dessa feita, o governo se

estabelece por meio dos representantes eleitos pelo povo para servir aos interesses da

coletividade. Esse mecanismo, no dizer do autor, “permite uma seleção de baixo para cima,

impedindo a cristalização como casta da minoria governante”, sendo, para tanto, fundamental

“uma ampla informação, uma ampla liberdade de propaganda e defesa de idéias, o que

reclama partidos, e, por outro lado, o gozo por todos das liberdades, dos direitos

fundamentais”. Nessa ordem de idéias, o autor argumenta que a atuação dos governantes e

dos parlamentares não pode prescindir de um sistema político com determinadas “garantias

indispensáveis para impedir a sua degeneração”, a compreender uma “constituição rígida,

com o devido controle de constitucionalidade, a divisão do Poder, a proteção dos direitos

fundamentais”. A limitação do poder constitui, por conseguinte, o elemento fundamental da

64

democracia contemporânea, na medida em que exige que todos pratiquem os princípios

democráticos, com o propósito de evitar a “tirania da maioria”.

A democracia não se instala por conta própria. A aceitação, a prática e a

experimentação dos princípios democráticos dependem das pessoas, num movimento

voluntário ou de ruptura, a influenciar a organização do Estado e o agir das instituições. Como

não pode ser imposta, precisa ser compreendida e experimentada. Se boa ou ruim, dependerá

não da crença ou do mito, mas de atitudes conscientes voltadas a aperfeiçoá-la. Apesar da

possibilidade de ser rejeitada, deturpada ou combatida, a democracia se revela como o meio

mais adequado para o exercício das escolhas, das liberdades públicas e da legitimidade na

alternância do exercício do poder, fatores de influenciam a forma pela qual os Estados agem

interna e externamente, a refletir nas posturas política e jurídica que formam, inclusive, as

bases da segurança e da defesa.

A idéia de democracia está ligada aos mecanismos de representação popular

e da organização político-institucional do país. Todas as constituições brasileiras mantiveram

a forma republicana de organização do Estado, tradição advinda da proclamação da República

de 15 de novembro de 1889. Note-se que a Constituição do Império, de 1824, embora não

contemplasse, por óbvio, a natureza de república, previu a entidade estatal sob a forma de

associação política de todos os cidadãos brasileiros, os quais constituiriam uma nação livre e

independente (art. 1o), estipulando, numa visão que se aproximava do modelo federativo, que

o território estaria dividido em províncias, sendo permitida a subdivisão de acordo com o

interesse público (art. 2o). Curiosamente, o governo era monárquico hereditário,

constitucional e, também, representativo (art. 3o).

65

A representatividade política esteve presente nas constituições de 196760, de

1946, de 1934 e de 1891. A Constituição de 1937, decretada por Getúlio Vargas, não previu a

representação política ao argumento dos conflitos enfrentados pelo país naquela época. O

poder constituinte originário da Carta Política de 1988 prescreveu que não será objeto de

deliberação proposta de emenda destinada a abolir a forma federativa da República61.

Entretanto, diferentemente da forma republicana, o estado democrático de direito somente foi

expressamente previsto no atual texto constitucional, de tal modo que, na atualidade, o Brasil

está organizado sob a forma de república federativa, tendo adotado a estrutura jurídico-

política de Estado Democrático de Direito, sob o regime de governo de natureza

representativa, no qual todo “o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes

eleitos ou diretamente”62.

Essas premissas são relevantes, pois servem para delimitar os parâmetros a

partir dos quais a política de defesa deve ser formulada. Do modelo absolutista ao

republicano, o Brasil, depois de um período de experimentação democrática e de

instabilidades políticas, deixou o regime de exceção para novamente enfrentar os desafios da

democracia, prevendo, agora de modo expresso, na Carta de 1988, o Estado de Direito. Essa

mudança precisa superar o valor simbólico que o termo encerra. Avanços são percebidos

nesse sentido e é inegável que o país está no caminho da consolidação democrática. E nessa

linha a política de defesa também precisa ser pensada, ou seja, a discussão de seus

fundamentos não pode se restringir ao governo ou a um grupo seleto de especialistas,

militares ou civis. A defesa é matéria de ampla – porém silenciosa – repercussão, de modo

60 Não obstante as restrições impostas pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969, editada pelo

governo militar, por força da qual, com base no Ato Institucional no 16, de 14 de outubro de 1969, e no Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, uma vez decretado o recesso do Congresso Nacional, o Poder Executivo Federal se investiu da prerrogativa de legislar sobre todas as matérias e de emendar a Constituição então vigente editando, na prática, uma nova Carta Política. A respeito, sugere-se a leitura de Roberto A. R. de Aguiar (Os Militares e a Constituinte – poder civil e poder militar na Constituição. São Paulo: Alfa-Omega, 1986).

61 Cf. § 4o do art. 60 da Constituição Federal de 1988. 62 Cf. parágrafo único do art. 1o da Constituição Federal de 1988.

66

que interessa ao poder estatal e à sociedade civil, ante os efeitos vinculatórios que decorrem

(ou não) de consensos. Contudo, a participação democrática na elaboração da política de

defesa exige debate público e representação política adequada.

Da intensidade do debate público a difusão de conhecimentos e de idéias

sobre defesa desvelará a extensão e a profundidade do tema, suas teias de relacionamento e

repercussão na vida das pessoas comuns, dos governos e das instituições nacionais e

internacionais, demonstrando a necessidade de consensos e cooperações para fins de interesse

coletivo. Dessa maneira, a legitimidade das ações tenderá a aumentar, posto que, uma vez

percebida a natureza multidisciplinar da defesa, o concurso positivo de esforços resultará o

aperfeiçoamento de estratégicas e a condução de políticas públicas nos contextos nacional e

internacional, com os custos, ônus e prerrogativas inerentes. Não se trata de devassar o sigilo

de informações e das estratégias do país, mas de debater o que deva ser considerado relevante,

do que efetivamente importa para alcançar a sensação de que “não existe perigo de uma

agressão militar, pressões políticas ou coerção econômica, de maneira” a que o país possa

“dedicar-se livremente a seu próprio desenvolvimento e progresso”63. Ademais, seria

ingenuidade supor que os demais países não conhecem pelo menos parte do diagnóstico das

vulnerabilidades, das estratégias e dos recursos brasileiros64, de ordem civil, política e militar.

Assim, o debate além de consultas e audiências formais fundamentará as bases democráticas

da política de defesa, fixando-se, ao final, as correspondentes regras jurídicas. Nesse ponto, a

representatividade política é colocada à prova.

A par dos atuais problemas de ingerência política e das denúncias de

corrupção vivenciados no país, que indicam sinais de desequilíbrio nas relações institucionais

63 Nos termos da definição dada em 1990 por especialistas da Organização das Nações Unidas (Cf. item 1.3 do

anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005). 64 Nos recursos está o conjunto do potencial humano, econômico, natural e bélico, entre outros.

67

de independência e harmonia entre os poderes65, cabe indagar: o povo efetivamente é

representado? Vivencia-se uma crise de representatividade, cujos efeitos repercutem no

equilíbrio de forças indispensável à democracia? Embora essas reflexões ultrapassem a

delimitação temática do presente trabalho, algumas impressões merecem ser suscitadas no

tópico seguinte, pois essas noções ajudam a entender a dificuldade de formular a política de

defesa a partir de um consenso que conte com a ampla participação de atores políticos e

sociais.

1.3.2 Desafios democráticos

Bobbio (2006, p. 30) assinala que, para compreender a democracia, é

preciso colocá-la como idéia contraposta à autocracia, que é a forma de poder político

exercido por uma pessoa ou grupo de pessoas que, discricionariamente, desempenha as

funções de governo66. No dizer do autor, a democracia é “caracterizada por um conjunto de

regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões

coletivas e com quais procedimentos”. Dessa maneira, os regimes democráticos estão

fundados no Estado de Direito, isto é, nas regras de conduta que orientam a representação

política e o funcionamento das instituições, as quais são (ou deveriam ser) elaboradas,

cumpridas, fiscalizadas e aperfeiçoadas pelo conjunto de atores políticos e sociais para que,

no enfrentamento dos mais diversos interesses, possa prevalecer o bem-comum.

Então, onde se situam a política e o político e que relevância têm para a

democracia? Para Lefort (1991, p. 25), a política está além do fato político exteriorizado

isolado dos de natureza social, como os econômicos, jurídicos, estéticos e científicos.

65 Esses problemas e denúncias são, entre outros, os que envolvem integrantes do Legislativo, suas ligações com

o Executivo e, até mesmo, com o Judiciário e setores da sociedade. São exemplos o caso denominado “mensalão” (objeto da denúncia do Ministério Público Federal, tratada no Inquérito no 2.245, em curso no Supremo Tribunal Federal) e a investigação chamada “Operação Furacão” (levada a efeito pela Polícia Federal e tratada no procedimento de no 2007.51.01.80285-5, em trâmite na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro).

66 Os governos autocráticos tomam as conhecidas formas de tirania, despotismo, ditadura ou oligarquia.

68

Segundo o autor, esse pensamento cria a ficção que define uma das características das

sociedades democráticas modernas: a indevida separação entre política e outras atividades

também essenciais do corpo social, equívoco que prejudica o pleno exercício dos princípios

democráticos como decorrência do isolamento e da não-participação nas decisões de atores

que nelas têm interesse. É nesse ponto que Lefort estabelece a estreita ligação entre política e

poder político. A política não pode ser desprendida do “significado político” que lhe é anterior

e do qual se origina. Isso porque, a forma de sociedade é definida pelo poder político que a

estabelece e, por conseguinte, proporciona legitimidade às concepções políticas que

orientarão o atuar de todo o conjunto social, cujas transformações estarão sujeitas à

estabilidade (ou não) do poder político no curso do tempo:

O político revela-se assim não no que se nomeia atividade política, mas nesse duplo movimento de aparição e de ocultação de modo de instituição da sociedade. Aparição, no sentido em que emerge à visibilidade o processo crítico por meio do qual a sociedade é ordenada e unificada, através de suas divisões; ocultação, no sentido em que um lugar da política (lugar onde se ergue a competição entre os partidos e onde se forma e se renova a instância geral de poder) designa-se como particular, ao passo em que se encontra dissimulado o princípio gerador da configuração de conjunto. (LEFORT, 1991, p. 26)

Poder político e política não são exclusividades da democracia. Porém, é

nesse regime que desempenham relevância crucial, pois norteiam as liberdades públicas, as

escolhas, a alternância no poder, a maior participação da sociedade na formulação de

demandas e a fiscalização do modo de agir dos atores e das instituições. Nesse sentido, a

forma como a sociedade é constituída e projetada diante de si e do Estado formal (em sua

construção orgânica) proporcionará o aperfeiçoamento ou o desvirtuamento da arquitetura

democrática. Não é desarrazoado dizer que as sociedades – assim como a democracia – estão

sujeitas a transformações, num permanente processo de construção e de adaptação. Por certo

que esse caminhar sofre a influência das mais variadas redes de interesses, capazes de inserir

distorções nos processos governamentais, na elaboração de políticas públicas e, também, na

69

formação do direito, de modo que essas percepções não podem se deslocar da formulação da

política de defesa nacional.

Com essas preocupações, Lefort (1991, p. 27) propõe repensar o político a

partir do que chamou “emergência do totalitarismo” e de seus reflexos na democracia, ao

observar que o totalitarismo moderno adquiriu uma “mutação de ordem simbólica” que

influencia, por sua vez, a forma pela qual o poder é exercido. Nessa configuração, os

procedimentos democráticos são mitigados pela supremacia de um partido “como portador de

todas as aspirações do povo e detentor de uma legitimidade que o coloca acima das leis; ele

toma o poder destruindo todas as oposições; o novo poder não tem que prestar contas a

ninguém, subtraindo-se a todo controle legal”. Essa distorção se opera na atuação de um

partido ou na liderança que exerce sobre outros, numa coligação de demandas que, na

hipótese de Lefort, não levam em conta o interesse público, os ideais democráticos e a

diversidade de opiniões. Com efeito, a democracia é reduzida a rótulo que ilude e oculta a

atuação hegemônica contrária à pluralidade. Essa forma de exercício do poder político é

composta por pessoas que dão substância à imagem e exteriorizam o discurso político dirigido

à coletividade. Na ampliação desse quadro, estão os partidos, os países, as instituições e as

organizações internacionais públicas e privadas.

O viés totalitário atinge frontalmente o regime democrático que tem por

pressuposto a outorga da soberania popular à representação política do Estado que,

organizado a partir de instituições, passa a exercer o poder político e a adotar medidas cujos

efeitos se estendem a todos os integrantes do corpo social. Contudo, essa transferência de

poder não é ilimitada ou definitiva. Ao contrário: é temporal e restrita. Dessa dupla

condicionante resulta a constatação de que os representantes do povo (no Executivo e no

70

Legislativo67) não exercem (ou não deveriam exercer) o poder outorgado para satisfazer a

interesses corporativos, pessoais ou destinados a atender projetos de simples conquista ou

permanência no poder, de concessão, ampliação ou manutenção de privilégios. Não obstante,

a disputa e a alternância no poder são legítimas e benéficas à democracia. O bom uso da

soberania popular é uma das principais preocupações que devem orientar os defensores da

democracia. Além de imanentes aos preceitos e aos valores universais da humanidade, a

temporalidade e as restrições ao uso representativo da soberania popular residem no conjunto

de regras que a sociedade instituiu como pacto de convivência68 previsto na constituição, que

pode ser escrita ou não69.

A propósito, as constituições escritas e as não-escritas são suscetíveis a

distorções do poder político, observadas as circunstâncias de cada época, as instabilidades

políticas e os desequilíbrios institucionais, mediante a inclusão de regras e procedimentos não

previstos ou autorizados, em flagrante lesão à soberania popular. Logo, as constituições

sofrem o risco de servir de instrumento de governantes e de parlamentares para fazer face às

aspirações desprovidas de interesse público. Desde que compatíveis com a vontade popular,

as cartas políticas devem ser respeitadas, a exemplo do ato jurídico perfeito, do direito (e não

privilégio) adquirido e da coisa julgada70. As mudanças são bem-vindas, desde que observem

as regras democráticas.

No cenário brasileiro, causa estranheza a Proposta de Emenda à

Constituição no 157/200371, que tem por objetivo convocar uma questionável e não prevista

assembléia de revisão constitucional, cuja justificativa consiste no seguinte: “[...] À toda

67 No Brasil, os cargos do Poder Judiciário e do Ministério Público não são preenchidos pelo voto popular direto.

Via de regra, o acesso a essas carreiras se dá por concurso público. Contudo, há hipóteses em que o Presidente da República realiza nomeações precedidas ora pela organização de listas oriundas de instituições jurídicas, ora pela escolha exclusivamente política, o que, de forma indireta, simboliza o exercício da outorga da soberania popular.

68 Trata-se do pacto ou contrato social construído a partir de princípios e regras procedimentais. 69 Na atualidade, somente Israel e Inglaterra têm constituições não escritas. 70 Cf. art. 6o do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil). 71 De iniciativa do Poder Legislativo e elaborada pela da Câmara dos Deputados. Fonte: www.camara.gov.br.

71

evidência, a Constituição brasileira exacerba da tarefa de impor limites aos poderes públicos,

constituindo-se em poderoso instrumento de ingovernabilidade”. Essa colocação revela a

insatisfação, pelo menos em parte, com as restrições que a lei maior impõe àqueles que

exercem o poder. Esse fato é preocupante, pois coloca o direito como instrumento do poder

político, e não como limite ou parâmetro para o bom exercício do poder. A Carta Política

brasileira é escrita e os procedimentos para sua eventual alteração demonstram a rigidez de

sua natureza, posto que, de acordo com as prescrições estatuídas pelo poder constituinte

originário, somente poderá ser emendada por proposta “de um terço, no mínimo, dos

membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal”, “do Presidente da República” ou

“de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-

se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros”72.

Ademais, não poderá ser levada à deliberação proposta de emenda que

pretenda abolir “a forma federativa de Estado”, “o voto direto, secreto, universal e periódico”,

“a separação dos Poderes” e “os direitos e garantias individuais”73. Há de se reconhecer que a

Constituição brasileira poderia ter um rol mais adequado, restrito ou simplificado de matérias

protegidas. Porém, essa decisão não encontra legitimidade apenas no caráter transitório dos

governos. O debate sob o fundamento do qual será estabelecido o consenso para um novo

pacto transcende os apelos circunstanciais para alcançar o cerne das razões formadoras do

pensamento político, dos valores da sociedade. A mudança deve obedece à vontade popular

sob pena de distorcer a essência da cidadania na escolha dos desígnios da nação, além de

afetar a segurança jurídica e, por conseguinte, a estabilidade das relações sociais. Por outro

lado, o respeito às regras constitucionais não impede a feitura de outra constituição, caso a

profundidade das reformas assim o exigir, estabelecendo-se um novo pacto por ruptura ou

consenso.

72 Cf. art. 60, I a III da Constituição Federal de 1988. 73 Cf. art. 60, § 4o, I a IV da Constituição Federal de 1988.

72

O totalitarismo ou a ameaça totalitária, como forma de distorção da

democracia, passa a ser inserido, na percepção de Lefort (1991, p. 28), na “esfera do poder, na

esfera da lei, na esfera do saber”, fazendo com que Estado e sociedade civil se confundam

como única entidade, na representação do poder político dominante que pretende dar

aparência hegemônica e negar a divisão social, “ao mesmo tempo que são recusados todos os

sinais que diferenciam as crenças, opiniões, costumes”. O caráter hegemônico é contrário aos

princípios democráticos. Esse é o principal contraste entre democracia e totalitarismo, posto

que, enquanto a primeira se fundamenta na indeterminação do processo histórico do qual se

origina e se aperfeiçoa, o segundo depende do artifício unitário (Estado, partido político

dominante e sociedade), na busca do controle de todas as manifestações do corpo social, a

partir da lei74 (moldada pela instrumentalização do direito) e da organização das instituições.

Por essas razões, Lefort (1991, p. 28 e 31) sustenta que o totalitarismo

moderno combina “um ideal artificialista com um ideal radicalmente organicista”, para o fim

de dar conformação à suposta sociedade solidária “em estado de mobilização permanente”.

Na realidade, essa mobilização não compreende a dócil e voluntária convergência de

interesses, de ideais. O político deve perceber essas inquietações e buscar a composição de

equilíbrios, de consensos com legitimidade suficiente para a tomada de decisões não apenas

vinculatórias, mas que recebam o reconhecimento de que, dentre as várias alternativas, as

escolhas foram as mais adequadas para todo o conjunto da sociedade.

A principal diferença entre totalitarismo e democracia está no exercício do

poder. Como visto, enquanto o totalitarismo está vinculado à figuração política que ocupa o

poder, a democracia, no dizer de Lefort (1991, p. 32-33), assemelha-se a “um lugar vazio”, de

tal modo que toda tentativa voltada à apropriação ou à incorporação de poder configura ato

74 A respeito da confusão entre sociedade civil e Estado, Pierre Clastres ataca o pensamento político ocidental

elaborado com base em estratégias de dominação e subordinação, defendendo a ruptura da tese segundo a qual a sociedade sem o Estado não existiria (A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2007).

73

contrário aos princípios democráticos, o que requer permanente vigilância dirigida às

instituições e aos procedimentos utilizados pela política para conquistar ou permanecer no

poder. Sob o argumento de que a democracia é definida a partir de um “poder vazio” e que a

assunção a esse poder não prescinde da disputa política sob regras e condições transparentes,

o autor assinala que o poder democrático institucionaliza o conflito e inaugura, em

decorrência, um novo proceder do político, do direito e do conhecimento que são

reconstruídos sob a premissa dos debates que envolvem todos os atores sociais, de tal modo

que o sufrágio universal se revela como essência desses mecanismos, na medida em que essa

nova ordem depende de (des)equilíbrios capazes de proporcionar a legitimidade indispensável

à preservação do Estado de Direito, à eleição dos representantes da soberania popular, à

condução das políticas públicas e, também, à formação do direito. Desse quadro resulta a

troca da liberdade pela igualdade e, por via de conseqüência, a possibilidade de o poder

público coagir e restringir.

Assim é que a tomada de decisões vinculatórias dirigidas à sociedade

democrática não pode deixar de observar duas regras elementares: (i) a determinação dos

indivíduos que estão autorizados a fazê-lo e (ii) os procedimentos com base nos quais as

medidas são adotadas. No dizer de Bobbio (2006, p. 31), o poder de decidir se reveste da

forma de direito, de tal modo que essas regras devem constar na lei máxima do país, que é a

constituição, escrita ou não. No caso brasileiro, afora as peculiaridades das sentenças

judiciais, as decisões políticas a cargo dos representantes eleitos pelo povo para cargos no

Executivo e no Legislativo são as que se encaixam nessa espécie decisória, cujas

competências foram detalhadas pela Carta Política de 1988 em observância ao princípio

federativo75, considerados a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Portanto,

75 A Constituição Federal de 1988 atribuiu à União as competências privativas previstas nos artigos 21 e 22; aos

Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, as competências comuns e concorrentes com a União constam dos artigos 23 e 24, respectivamente.

74

somente a lei76 tem o condão de exercer sobre as pessoas o poder vinculatório, obrigacional,

coercitivo. Ocorre que, na democracia, o texto da lei também está condicionado, de um lado,

aos preceitos universais do direito das gentes77 e, de outro, aos limites impostos pela própria

constituição, a prevalecer o princípio da maioria78, lembrando que, em razão da matéria, a

iniciativa será do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário.

Embora haja registro de que foi ampliada a base de participação popular no

processo democrático e estabelecidos procedimentos específicos ao exercício do poder

político, a definição de democracia exige um terceiro requisito: a possibilidade de escolha, ou

melhor, a presença de alternativas oferecidas ao eleitor para decidir qual será o seu

representante, o seu partido e o que será feito do mandato. Nesse requisito Bobbio (2006, p.

32-33) incluiu os direitos de liberdade, de opinião, de expressão, de reunião e de associação,

os quais, no entender do autor, remetem ao pressuposto jurídico segundo o qual o Estado

liberal é o pressuposto do Estado democrático, sustentando:

[...] é pouco provável que um Estado não-liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica desta interdependência está no fato de que Estado liberal e Estado democrático, quando caem, caem juntos.

Não cabe, aqui, discutir a natureza clássica liberal ou não do Estado

brasileiro, em que vigoram os fundamentos dos valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa79, a garantia do direito à propriedade privada e de sua função social80, como também

76 Cf. art. 5o, II da Constituição Federal de 1988: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa

senão em virtude de lei”. 77 Os quais estão consubstanciados, pelo menos em parte, na Carta das Nações Unidas. 78 Maioria e minoria são expressões relativas que nem sempre traduzem o poder de influenciar a tomada de

decisão. De todo o modo, a maioria não pode eliminar a resistência da minoria. Kelsen assim se posicionou a respeito do tema: “Abstraindo-se a ficção segundo a qual a maioria também representaria a minoria e a vontade da maioria seria vontade geral, o princípio de maioria apareceria como o princípio do domínio da maioria sobre a minoria. Mas na realidade não é assim” (op. cit., p. 69).

79 Cf. art. 1o, I da Constituição Federal de 1988. 80 Cf. arts. 5o, XXII e 170, II e III da Constituição Federal de 1988.

75

o princípio de que as desigualdades regionais e sociais devem ser reduzidas81 e que é livre o

exercício da atividade econômica82, além de que o Estado somente poderá exercer diretamente

essa faculdade em casos excepcionais83, cabendo ao poder público, por outro lado, atuar como

agente normativo e regulador do mercado84. Não é desarrazoado dizer que a prática brasileira

é híbrida, circunstância que influencia a construção do direito e a elaboração de políticas

públicas, acarretando dificuldades de ordem prática ante os inevitáveis conflitos ideológicos.

Isso é ruim? Não obstante os entraves, é possível sustentar que visões diferentes possibilitam

equilíbrios de forças e funcionam como salutar mecanismo de fiscalização recíproca das

inclinações políticas presentes no Estado democrático consolidado ou em processo de

consolidação, no caso do Brasil. Notadamente, para a democracia o papel do Legislativo é

fundamental, não apenas no campo da atividade de legislar, mas principalmente no

desempenho das atribuições de fiscal político das ações empreendidas pelo Executivo, na

qualidade de representante da soberania popular. Para tanto, a integridade e a independência

da instituição parlamentar é condição essencial para evitar distorções no sistema democrático,

sendo de valia trazer as colocações de Amaral Júnior (2005, p. 15-16):

A função de controle político dos Parlamentos vem desde os primórdios das instituições parlamentares. Foi ofuscada, é verdade, pela função legislativa. No entanto, posteriormente, com a progressiva participação dos governos na potestade de legislar, essa também ficou esmaecida no âmbito parlamentar.

Por outro lado, a paulatina dependência dos governos em relação aos Parlamentos, mormente nos sistemas de governo parlamentaristas, propiciou um nítido revigoramento da função parlamentar de controle político.

Com efeito, tal como havia nos sistemas parlamentaristas, a responsabilidade política do governo perante o Parlamento é o mais vigoroso mecanismo de controle político desse contra aquele. O governo assume postura pró-ativa, inclusive legislativa, e o Parlamento lhe confere legitimidade e o fiscaliza, controla. Em situações limites de conflito entre os dois, “(...) a negação de confiança é a forma mais drástica de ação do Parlamento sobre o Governo”. (COTA, 2000, p. 886).

81 Cf. art. 170, VII da Constituição Federal de 1988. 82 Cf. art. 170, parágrafo único da Constituição Federal de 1988. 83 Cf. art. 173, caput (segurança nacional ou interesse coletivo) da Constituição Federal de 1988. 84 Cf. art. 174, caput da Constituição Federal de 1988.

76

No caso brasileiro, não obstante o sistema de governo presidencialista, a função de controle político tem sido o grande alento do Congresso Nacional. Muitos resultados positivos já foram colhidos do seu exercício em favor da democracia. No entanto, somente com uma profunda reengenharia do sistema de governo pátrio será possível ampliar em efetividade o controle político do Congresso. Em outras palavras: somente com a submissão do governo ao Congresso, fazendo aquele politicamente responsável perante esse, haverá verdadeiro aprimoramento e fortalecimento da função de controle político das Casas legislativas brasileiras.

Os conceitos de liberal e social, especialmente no caso brasileiro, nem

sempre colocam em lados opostos as tendências políticas de direita e de esquerda, isso sem

contar as posturas de centro que se inclinam ora a uma ora a outra corrente. Essas

circunstâncias ajudam a estabelecer equilíbrio? Superficialmente, sim. Contudo, implicam

distorção no cumprimento dos princípios democráticos, posto que confundem os cidadãos

quando interesses partidários e corporativos prevalecem sobre as plataformas eleitorais, nas

trocas e negociações políticas, podendo causar prejuízos às demandas representativas da

população em geral que, deslocada do jogo do poder, possui atuação limitada nas decisões

que são tomadas pelos governos ou nas votações no parlamento. A esse respeito Bobbio

(2006, p. 33) avalia que o pensamento à direita transformou a democracia “num regime semi-

anárquico, predestinado a ter como conseqüência o ‘estilhaçamento’ do Estado”, enquanto

que, à esquerda, “a democracia parlamentar está se transformando cada vez mais num regime

autocrático”. Essas distorções ganham novos matizes nos chamados governos de coalizão,

onde atuam conjuntamente forças opostas em disfarçados e permanentes conflitos, na busca

da supremacia de seus projetos individuais, utilizando o direito e as políticas públicas como

instrumentos para ajustar as trocas pela governabilidade.

É no contexto dessas reflexões que Bobbio (2006, p. 33-45) discute os

contrastes entre os “ideais democráticos” (vistos como a essência da democracia) e a

“democracia real”. Do exame entre o prometido e o realizado, o autor destaca seis promessas

não cumpridas, as quais não podem deixar de ser mencionadas no presente trabalho. A

77

democracia como sociedade pluralista representa a primeira promessa não cumprida. Do

acordo de vontades de indivíduos igualmente soberanos a partir do qual foi criada a sociedade

política, os Estados democráticos abandonaram a idéia da relevância dos sujeitos políticos

para dar maior espaço à atuação de grupos (que raramente se toleram) na defesa de interesses

antagônicos, para satisfazer objetivos pontuais dos atores que os sustentam. No dizer do autor,

o povo ou a nação do qual emanava a soberania perdeu a importância e, por conseguinte, a

unidade, substituído na representação política por “grupos contrapostos e concorrentes, com

sua relativa autonomia diante do governo central”.

A distribuição do poder é seguida da representação política, sendo essa a

segunda promessa não cumprida. Se a soberania popular foi mitigada pela atuação de grupos,

a democracia moderna deixou de representar os interesses da nação em seu conjunto. Nesse

sentido, Bobbio (2006, p. 36-37) apresenta o problema do mandato vinculado, caracterizado

pela eleição de um representante para o fim de defender aos interesses de um determinado

grupo. A representação política é contaminada pela defesa parcial de interesses. Essa

distorção gera, na colocação do autor, a figura do “mandato vinculado”:

Jamais uma norma constitucional foi mais violada que a da proibição de mandato imperativo. Jamais um princípio foi mais desconsiderado que o da representação política. Mas uma sociedade composta por grupos relativamente autônomos que lutam pela sua supremacia, para fazer valer os próprios interesses contra outros grupos, uma tal norma, um tal princípio podem de fato encontrar realização? Além do fato de que cada grupo tende a identificar o interesse nacional como o interesse do próprio grupo, será que existe algum critério geral capaz de permitir a distinção entre o interesse geral e o interesse particular deste ou daquele grupo, ou entre o interesse geral e a combinação de interesses particulares que acordam entre si em detrimento de outros? [...] E onde podemos encontrar um representante que não represente interesses particulares? [...] A proibição do mandato imperativo, além do mais, é uma regra sem sanção.

Para Kelsen (1993, p. 63), é impraticável a idéia corporativa na concepção

parlamentar de democracia, assinalando que essa hipótese daria ensejo à criação de outro

sistema de representação, distinto do democrático. No Brasil não há, pelo menos em termos

78

formais, a prática de mandatos vinculados, sendo pertinente mencionar que na composição

política os cargos públicos eram preferencialmente ocupados por bacharéis em direito,

oriundos, na maioria, de Portugal, ou formados em instituições portuguesas sediadas no país,

na defesa dos interesses do reino. Essa prática também foi adotada no parlamento, onde os

grupos se dividiam entre os representantes da Coroa, dos profissionais liberais e dos

proprietários de terra, que influenciavam o curso da política e a tomada de decisões

vinculatórias (CARVALHO, 2006, p. 171-194 e 249-260). Na atualidade, os princípios

constitucionais85 que regem os partidos políticos afastam, em tese, a proibição dessa nociva

prática ao estabelecer que os partidos devem atender aos imperativos de soberania nacional,

de preservação do regime democrático, de natureza pluripartidária e de respeito aos direitos

humanos.

Não obstante, é impossível assegurar que os políticos, uma vez eleitos,

passem a desempenhar suas funções sob a influência das promessas eleitorais dirigidas a

grupos específicos, como também a balizar a atuação, no governo ou no parlamento, com o

propósito de atender às reivindicações daqueles que contribuíram para o financiamento de

suas campanhas86. Isso sem contar com as questionáveis trocas de filiação partidária87.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, a partir do

entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que os mandatos pertencem aos partidos e

não aos políticos eleitos. Ao tempo em que esses julgados significam uma ruptura com a

jurisprudência que até então predominava, seus efeitos influenciarão perdas de mandato,

revisão de estratégias de composição política, reflexões sobre a individualidade das

plataformas eleitorais e o amadurecimento do sistema representativo, o que fortalece as 85 De acordo com o disposto no art. 17 da Constituição Federal de 1988. Dos preceitos constitucionais aplicáveis

aos partidos políticos, merecem destaque os que se referem ao caráter nacional e à proibição de receber recursos financeiros de entidades ou governos de outros países, vedada a destinação paramilitar.

86 O financiamento público, privado ou misto das campanhas eleitorais está na pauta da agenda política do país, embora com fraco enfrentamento das questões controvertidas. Seja qual for, a partir do resultado dos debates e de sua experimentação será possível conhecer melhor como pensam e como agem os políticos e a sociedade.

87 Cf. julgamento dos mandados de segurança nos 2662, 2663 e 2664. Disponível em: <www.stf.gov.br>.

79

legendas e indica ao eleitor a importância das propostas e não exclusivamente dos políticos,

tomados individualmente. Não é preciso maiores ilações para perceber que aquelas

costumeiras práticas estão deslocadas dos reais interesses da coletividade, da sociedade.

Forma-se um quadro de influência e dominação88 que podem revelar a tendência que se

aproxima dos traços de mandatos vinculados, a confundir a população e a distorcer a própria

democracia.

Mas, a democracia não estaria reduzida a um jogo travado no poder, com

negociações e barganhas de diversos interesses em conflito, do qual resultará, depois de

concessões, trocas e consentimentos, a decisão final sobre determinado tema? Não. A

democracia não pode ser reduzida a composições privadas, particularizadas e deslocadas dos

valores e das demandas da coletividade. Será possível compor equilíbrios consensualizados a

partir de critérios de justiça? Rawls (2002, p. 146-153) propõe a formulação do regramento

social com base no justo, utilizando do simbolismo que resolveu chamar de “véu da

ignorância”, construção destinada a desnudar o homem de suas idéias individualistas a

respeito do bem-da-vida, de modo a que, desprendido da conquista de interesses pessoais e

sabedor da possibilidade de ser afortunado ou não, ter a prerrogativa ou a faculdade de

escolher as regras eqüitativas para uma justiça igualitária, respeitada, ainda, a liberdade

inerente a todo ser.

Pergunta-se: seria o véu da ignorância uma visão utópica? Não. Seu valor

simbólico conduz os indivíduos e a sociedade a um alto grau de abstração. No fundo, todos

sabem o que é injusto; contudo, não reconhecem essa condição ou situações de injustiça e de

desigualdade não despertam a sensibilidade, pois esse estado de coisas é julgado lícito e

88 Como exercício de cidadania, a análise das doações de campanha constituiu uma boa forma de acompanhar as

tendências das decisões políticas. Essas informações são disponibilizadas ao público geral pelo TSE, na demonstração de que a justiça tem avançado na tentativa de tornar transparente o processo eleitoral e, por conseguinte, promover a cidadania mediante a veiculação de dados que ajudam a compreender as possíveis condutas daqueles que representam a soberania popular.

80

juridicamente aceitável. Talvez o véu da ignorância esconda o receio potencial que as pessoas

têm de ver seus interesses violados. Rawls propõe uma estratégia hábil de composição, na

medida em que os prazeres e as vicissitudes podem ser sofridos por qualquer um,

pressupondo-se que, na escolha dos princípios, ocorra a busca pelo menos gravoso para todos,

o que pode servir a determinadas facetas da realidade brasileira, guardadas as devidas

proporções.

Em que pese a importância da divergência de idéias para o sistema

democrático, a disputa de poder entre grupos semelhantes pode levar a uma distorção do

princípio da representatividade quando prevalecerem hegemonias dominantes. Essa

circunstância, por sua vez, insere na democracia a terceira promessa não cumprida: o fim das

oligarquias. Mesmo com o aumento da base de participação popular, o problema (crise ou

desvirtuamento) da representatividade persiste na presença de grupos hegemônicos que

disputam influência e exercício do poder político. Por certo que as oligarquias afastam o

efetivo envolvimento popular, ainda que pretendam demonstrar preocupação com as

necessidades sociais das massas. Oligarquias, portanto, estão associadas às elites que se fazem

presentes nas estruturas burocráticas das instituições públicas e privadas. A presença de elites

no poder seria de todo prejudicial? Bobbio (2006, p. 39) explica que “a presença de elites no

poder não elimina a diferença entre regimes democráticos e regimes autocráticos”, ao

assinalar que a caracterização da democracia está não na ausência de elites, mas na “presença

de muitas elites em concorrência entre si para a conquista do voto popular”.

Então, a democracia não seria afetada simplesmente pela presença de elites,

mesmo porque é difícil considerar a total inexistência de elites, de oligarquias. A diferença

está na forma como as elites influenciam a política e a conduta do político. Logo, para o bem

da democracia as elites não podem ser hegemônicas. A existência de conflitos entre elas é

81

essencial para o sistema democrático89. Assim, o país poderá avançar ou recuar em função da

inércia, da apatia ou da vontade de implementar mudanças. Porém, as elites não podem

figurar sozinhas no jogo do poder, posto que a população em geral corre o risco de se

transformar em mero instrumento de composição de trocas e não de alternância no poder,

impelida pela necessidade de satisfazer necessidades imediatas, pela ausência de

oportunidades para refletir sobre as conjunturas de seu tempo e pela descrença no Estado e no

político.

Por essas razões, a democracia requer, cada vez mais, a participação da

sociedade nos debates sobre os mais variados temas, dentre os quais o da defesa. Não se trata,

aqui, da idéia de retorno às assembléias deliberativas da antiguidade, mas da submissão dos

assuntos à população mediante o esclarecimento das questões que estão em pauta, seus

aspectos controvertidos, prováveis efeitos, principais beneficiários, o custo (além do

financeiro) e o risco que orbitam em torno das decisões. Por certo que será preciso estabelecer

mecanismos com base nos quais possa ser evitada ou, no mínimo, reduzida a possibilidade

desse expediente servir de encenação para legitimar as medidas que serão tomadas90. A

democracia participativa, cujos procedimentos foram verificados em algumas oportunidades

no Brasil como, por exemplo, nas propostas de orçamentos elaborados a partir de demandas

indicadas pela comunidade é, sem dúvida, o mecanismo que melhor se coaduna com a

essência desse regime, mas que depende da educação e do acesso aos fóruns deliberativos.

Passa-se, então, à quarta promessa não cumprida, marcada pela dificuldade que a democracia

89 C. Wright Mills apresenta um aguçado estudo a respeito da elite norte-americana, que abrange a forma como é

inserida no poder, a composição das famílias e a divisão social, sua influência na política e nos aspectos militares. As colocações de Mills servem para entender parte do funcionamento das estruturas decisórias dos Estados Unidos, as quais muitas vezes se revelam contraditórias com os princípios democráticos defendidos por aquele país, a repercutir na comunidade internacional (A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1975).

90 No âmbito federal, as consultas e as audiências públicas podem, se amadurecidas, proporcionar maior transparência ao conhecimento e aos debates em torno de questões relevantes. Contudo, essa prática ainda não é obrigatória e está sujeita à discricionariedade dos órgãos e das autoridades responsáveis pelos assuntos (cf. artigos 31 a 33 da Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999). A respeito da democracia participativa, a obra Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Boaventura de Sousa Santos (org.). Série Reinventar a Emancipação Social: para novos manifestos, 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).

82

tem de estar presente nas instâncias superiores do poder, nas quais as decisões vinculatórias

são efetivamente tomadas. Para Bobbio (2006, p. 40-41), essa questão é crucial, posto que

supera a ampliação da base de participação popular, reafirma o problema da

representatividade, do mandato para defender interesses particulares e dos grupos que formam

as oligarquias, deixando em segundo plano os debates sobre maiorias e minorias para dar

ênfase ao que chamou de “poder ascendente” e “poder descendente:

[...] quando se deseja saber se houve um desenvolvimento da democracia num dado país, o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que têm o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas nos espaços nos quais podem exercer este direito. Até que os dois grandes blocos de poder situados nas instâncias superiores das sociedades avançadas não sejam dissolvidos pelo processo de democratização – deixando-se de lado a questão de saber se isto é não só possível mas sobretudo desejável –, o processo de democratização não pode ser dado por concluído. [...] a concessão dos direitos políticos foi uma conseqüência natural da concessão dos direitos de liberdade, pois a única garantia de respeito aos direitos de liberdade está no direito de controlar o poder ao qual compete esta garantia.

É crescente o interesse da sociedade para com o agir daqueles que estão no

poder. Esse fator contribui para a consolidação da democracia. Mas a participação social

depende de conhecimento e capacidade para interagir, para formular as demandas e as

divergências. Nessa linha, deve-se reconhecer que ainda é muito superficial o conteúdo

divulgado dos assuntos que serão objeto de decisão política. Prevalece a fiscalização e o

acompanhamento realizados posteriormente à tomada das decisões, o que ocasiona pouca

margem para modificar situações que se formaram, cujos efeitos alcançam outras áreas, tais

como a jurídica, a econômica, a ambiental e, por conseguinte, as políticas públicas91. O jogo

do poder insiste em obstruir os canais de conhecimento, de disseminação das informações,

dos compromissos de trocas, barganhas e negociações que, ao final, darão sustentação às

medidas adotadas. A sociedade e as instituições que tentam conhecer e acompanhar esse

91 Os programas e a propaganda dos partidos políticos não estão obrigados a detalhar a execução das medidas

que pretendem adotar, a viabilidade em face dos trâmites burocráticos e legais, os limites de ordem fiscal e tributária e a necessidade de formar trocas, coalizões e concessões, de tal modo que o conteúdo programático das campanhas eleitorais assume contornos de promessas distantes da realidade e, por conseguinte, difíceis (para não dizer impossíveis) de realizar, o que prejudica o controle dos eleitores e da sociedade em geral.

83

movimento acabam se valendo de intuições e interpretações conjunturais que poderão ou não

se confirmar, de acordo com o nível de insatisfação dos interessados ou em decorrência de

fatos desprendidos de uma investigação realizada paralelamente.

Com essa argumentação Bobbio (2006, p. 41) sustenta que a quinta

promessa não cumprida da democracia real está na permanência do que chamou de “poder

invisível”, expressão que corresponde à existência de um “Estado duplo”92, no qual a

publicidade dos atos de governo é obscurecida para evitar a fiscalização das ações e das

decisões a cargo daqueles que exercem o poder, destacando que, na atualidade, os governos

exercem mais controle sobre os cidadãos do que estes sobre as ações dos governantes, a tal

ponto de o poder invisível comprometer profundamente o desiderato da democracia, na

inversão da equação que fundamenta o princípio de transparência: o público passa a vigiar o

privado. São inquietantes as incursões que Foucault (2006) e Castells (1999) fazem nessa

temática, ao desvelarem as facetas que tornaram os indivíduos objeto de um jogo travado na

cada vez mais ampla e intrincada teia de formação de condutas e de vigilância da sociedade,

levada a efeito pelo poder público e por instituições privadas transnacionais, cujos traços

estão presentes nas estratégias de defesa sob o argumento da soberania e da segurança.

A educação para a cidadania é a sexta e última promessa não cumprida.

Corresponde ao que se pode chamar de desprendimento do Estado e das elites para o fim de

criar condições adequadas de acesso a todas as pessoas, tendo como prioridade as classes

desfavorecidas, os pobres, os miseráveis que uma vez instruídos, alimentados, abrigados e

libertos do trabalho escravo ou da escravização do trabalho possam melhor compreender os

mais variados assuntos e se posicionar criticamente, contribuindo para o aperfeiçoamento e a

consolidação da democracia. O voto funcionaria para a melhor escolha coletiva e não para

atender a uma necessidade pessoal. É o processo de transformação do súdito em cidadão. No

92 Ao utilizar a expressão “Estado-duplo”, Bobbio se reporta a Alan Wolfe, autor do livro The Limits of

Legitimacy. Political Contradictions of Contemporary Capitalism. The Free Press: New York, 1977.

84

pensamento de Bobbio (2006, p. 45) a educação é indissociável do processo democrático, mas

não apenas como um procedimento virtuoso que teria lugar somente depois de um movimento

de ruptura. A abordagem do autor é interessante, uma vez que coloca a educação além das

necessidades das massas, considerando-a como fator de diminuição da passividade também

das classes acomodadas, nas quais as próprias elites se encontram. Combinadas, educação e

cidadania aperfeiçoam a democracia na medida em que interferem no “poder invisível”,

ocupam os espaços restritos de tomada de decisão, alternam a composição das oligarquias,

diversificam os mecanismos da representatividade e possibilitam que a base de distribuição de

poder se torne heterogênea, além de superar a restrição colocada por Montesquieu (1995, p.

189), segundo a qual faltaria ao povo capacidade para lidar com assuntos públicos.

No que tange à consolidação da democracia brasileira, convém trazer alguns

dados da base eleitoral e da educação para o fim de conhecer pelo menos parte da realidade

em que se dá a outorga da soberania popular. De outubro de 2000 a setembro de 200793 o

eleitorado cresceu 15,33%, passando de 109.826.263 para 126.662.20894, evolução distribuída

entre as regiões nordeste, centro-oeste, sudeste, sul e norte, computados, ainda, os eleitores

sediados no exterior. Comparado com a contagem da população que, em outubro de 2007,

chegou a 189.970.84195, o número de eleitores revela um significativo avanço na

consolidação da democracia na medida em que demonstra a possibilidade de participação

cada vez maior de pessoas, das mais variadas origens, para que, pelo voto, possam

93 Consideradas as informações disponibilizadas na página eletrônica do TSE em 8 de outubro de 2007. 94 Síntese do crescimento, conforme as informações disponibilizadas pelo TSE: nordeste, de 29.561.610 para

34.278.784 (15,957%); centro-oeste, de 7.418.597 para 8.905.077 (20,037); sudeste, de 48.486.490 para 55.323.775 (14,101%); sul, de 17.243.157 para 19.132.971 (10,96%); norte, de 7.073.019 para 8.925.524 (26,191%); e exterior, de 43.390 para 96.077 (121.427%). Disponível em: <www.tse.gov.br>. Acesso em: 8 de outubro de 2007.

95 Dados obtidos mediante consulta à Contagem da População, divulgada em outubro de 2007, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que adotou o dia 1o de abril de 2007 como data de referência. O estudo realizado considerou 5.435 municípios brasileiros, restando consolidar os números referentes ao Distrito Federal e de outros 128 municípios.

85

efetivamente exercer a cidadania e diminuir a distância entre a democracia real e a

democracia ideal.

Todavia, a ampliação do número de eleitores também precisa ser analisada

no contexto da qualidade e da liberdade de escolha dos representantes que exercerão os

governos e as funções legislativas, fatores que não podem se desprender dos números

referentes às abstenções96 registradas pelo TSE nas eleições de 200697, que totalizaram

18,996% no 1o turno, na comparação com o total de eleitores aptos. Dessa maneira, em que

pese ter crescido o número de eleitores, os dados indicam uma preocupante descrença no

processo eleitoral ou, mais precisamente, na maneira como a representação política é

percebida pela população, notadamente porque, na democracia brasileira, a soberania

popular98 paradoxalmente ainda é um poder de natureza obrigacional99.

Quanto à educação, a melhoria dos níveis de escolaridade e, por

conseguinte, de pessoas alfabetizadas100 não afasta a preocupação com os critérios que

definem se a pessoa é alfabetizada, alfabetizada funcional ou analfabeta funcional. Esses três

aspectos precisam ser enfrentados pela sociedade e pelo poder público para fazer com que a

ampliação da base de eleitores possa refletir a consciente participação no processo

democrático. Esses critérios foram utilizados na Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios (PNAD), concluída em 2006 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE)101. O primeiro deles considerou alfabetizada a pessoa que “responde que consegue ler

96 Não foram mencionados os votos brancos e nulos, em razão da pouca segurança quanto à intenção do eleitor. 97 Dados referentes às votações para os cargos de presidente, governador, deputado estadual, deputado federal e

senador, veiculados pelo TSE. Disponível em: <www.tse.gov.br>. Acesso em: 23 de outubro de 2007. 98 Nos termos do art. 14, I a III da Constituição Federal de 1988, a soberania popular é exercida pelo sufrágio

universal e pelo voto direto e secreto, sem distinção entre as pessoas, nas formas de plebiscito, referendo e iniciativa popular.

99 O alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de 18 anos e facultativo para os analfabetos, para os maiores de 70 anos e para os menores de 16 e menores de 18 anos, de acordo com as prescrições constantes dos incisos I e II do § 1o do art. 14 da Constituição Federal de 1988.

100 Conforme informações divulgadas pelo IBGE, com destaque para a persistência das disparidades regionais. 101 Informações extraídas dos Comentários da Síntese dos Indicadores da PNAD/2006. Disponível em:

<www.ibge.gov.br>. Acesso em: 8 de outubro de 2007.

86

e escrever pelo menos um bilhete simples no idioma que conhece”102, critério que se limita ao

registro da declaração do entrevistado sem aferir sua habilidade. O segundo critério classifica

como alfabetizada funcional a pessoa que consegue “utilizar a leitura para continuar

aprendendo e se aperfeiçoando”. Similarmente ao primeiro, demonstra a subjetividade com

que o tema é tratado. Por sua vez, o terceiro critério considera analfabeta funcional a pessoa

que tem dez anos ou mais de idade e que tem menos de quatro anos de estudos completos.

Depreende-se que essa definição alcança as pessoas que ingressaram na escola e não

conseguiram ou não puderam nela permanecer (evasão escolar). Do que consta do Censo

Demográfico de 2000, a taxa de analfabetismo desse grupo foi reduzida em 10,2% no período

de 1991 a 2000103. Por sua vez, a Síntese dos Indicadores Sociais elaborada pelo IBGE indica

que, em 2002, havia no Brasil 14,6 milhões de analfabetos, 32,1 milhões de analfabetos

funcionais e 65,7% de estudantes com quatorze anos de idade com defasagem escolar.

As questões educacionais ganham maior relevância quando os dados

levantados pelo IBGE são comparados com as estatísticas do eleitorado104. Até outubro de

2000 do total de 109.826.263 eleitores, 8.326.313 declararam ser analfabetos105,

representando 7,58% da população alistada. No mesmo ano consta o registro de que

23.152.365 eleitores conseguem apenas ler e escrever106 (21,08%). Somados, chegam a

31.478.678 (28,66%). De outubro de 2000 a setembro de 2007 foi verificada uma pequena

redução desse quadro. A quantidade de pessoas analfabetas chegou a 8.272.985 (6,53%) e a

de pessoas que sabem ler e escrever a 20.771.729 (16,4%), totalizando 29.044.714 (22,93%).

102 Segundo o critério adotado pelo IBGE, a taxa de analfabetismo corresponde ao percentual de pessoas

alfabetizadas no universo de pessoas de uma mesma faixa etária. 103 Outros dados levantados pelo IBGE também contemplam amostras por cor ou raça e pessoas com quinze anos

ou mais de idade. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 23 de outubro de 2007. 104 Dados obtidos junto ao TSE, com a ressalva de que o grau de instrução é informado pelo eleitor, consideradas

as pessoas do sexo feminino e do sexo masculino. Dentre as opções de grau de instrução constam também: não informado, primeiro grau incompleto, segundo grau incompleto, segundo grau completo, superior incompleto e superior completo. Disponível em: <www.tse.gov.br>. Acesso em: 23 de outubro de 2007.

105 Desse total, 3.946.281 são do sexo masculino e 4.359.563 são do sexo feminino. 106 Desse total, 12.042.270 são do sexo masculino e 10.977.870 são do sexo feminino.

87

A diminuição de analfabetos declarados foi de 1,05% enquanto que entre os que sabem ler e

escrever foi de 5,04%. A redução desses dois grupos foi da ordem de 5,73%.

Não se trata de insinuar que as pessoas com pouca escolaridade ou

analfabetas consigam apenas discernir o mínimo indispensável para a execução das tarefas do

dia-a-dia. Empiricamente, essas pessoas desenvolvem aptidões e sensibilidades que não raras

vezes superam aquelas de formação mais sofisticada. A questão é outra: a oportunidade de

acesso à educação formal, observadas as peculiaridades da população, variáveis, dentre

outras, em função da região, da cultura e das condições sócio-econômicas. Mesmo que

procurem respeitar a integridade do indivíduo, os critérios utilizados pelo poder público

revelam a existência de falhas ou omissões do Estado e da sociedade quanto ao pleno

exercício da cidadania, da dignidade da pessoa humana107 e, por conseguinte, da democracia e

de suas políticas públicas, posto que o amplo e indispensável acesso à educação108 ainda não

está efetivamente garantido.

A comparação e a análise desses dados não constituem o objetivo central do

presente trabalho, de tal modo que a apresentação desse panorama é suficiente para

demonstrar a relevância da educação para o processo de consolidação da democracia, a ser

construído e aperfeiçoado por meio de políticas públicas efetivas, continuadas e adequadas às

individualidades, às realidades e às complexidades regionais do país. Assim, a educação deve

ser considerada como fator propedêutico destinado a preparar as pessoas ao exercício da

cidadania, do poder político de que se reveste a soberania popular, levando em conta que o

107 A cidadania e a dignidade da pessoa humana constituem fundamentos da República brasileira, nos termos dos

incisos II e III do art. 1o da Constituição Federal de 1988. 108 A educação é um direito social, cuja promoção é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, constituindo direito de todos para o fim de proporcionar o completo desenvolvimento da pessoa humana, preparando-a para a cidadania e para a sua qualificação profissional, nos termos dos artigos 6o, caput, 23, V e 205, caput, todos da Constituição Federal de 1988.

88

fortalecimento da sociedade exige a superação das disparidades educacionais, alimentada pela

dicotomia que faculta o voto do analfabeto ao tempo em que o considera inelegível109.

No campo da experimentação democrática, a par dos argumentos até então

expendidos a respeito das promessas não-cumpridas, Bobbio (2006, p. 46-52) ainda considera

que, no curso da história, três obstáculos separam os estágios que denominou de “democracia

real” e “democracia ideal”. O primeiro deles diz respeito às mudanças ocorridas nas

economias, cujos reflexos atingiram a composição da política e o aparato da tecnocracia,

dando ensejo à prevalência da participação de técnicos na tomada de decisões vinculatórias:

[...] se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos.

Se por um lado a técnica pode proporcionar um grau maior de sofisticação

na elaboração de estratégias e no manejo de cálculos e projeções na formulação de temas de

ordem pública, por outro exclui a sociedade civil, o homem médio e até o político de

participar dos debates e, por conseguinte, retira a sensibilidade capaz de fundamentar a

realização de ajustes antes da tomada de decisão. Dessa maneira, a tecnocracia restringe o rol

de atores com habilidade para influenciar e formar juízos de valor, de modo que a limitação

dessas prerrogativas acaba por mitigar o princípio da ampliação da base de eleitores, que

adquire mero aspecto formal para dar contornos de legitimidade às escolhas feitas por um

grupo reduzido de profissionais. Nessa ordem de idéias, para Bobbio não há ética na

combinação entre tecnocracia e democracia. Assim, a educação para a cidadania se coloca

como o principal mecanismo para enfrentar essa assimetria, permitindo diálogos entre o poder

público e a sociedade na busca de soluções consensualizadas, mesmo que amparadas em

aspectos técnicos.

109 Cf. art. 14, § 4o do art. 14 da Constituição Federal de 1988.

89

O segundo obstáculo está na ampliação das estruturas burocráticas que, na

dicção de Bobbio (2006, p. 47), ordenou o poder “do vértice à base” em oposição ao princípio

norteador do sistema democrático ideal. Não obstante, o autor pondera que quanto mais

democráticos se tornam os Estados, maior será a burocracia destinada a atender às demandas

que se originam do corpo social, assinalando que a atuação dos governos deixou a antiga

necessidade de proteger a propriedade privada para tentar atender aos pleitos que dizem

respeito à educação, à saúde e à segurança públicas, os quais são intrínsecos aos direitos e

garantias individuais que decorrem da crescente participação no processo democrático da

população mais pobre. Ocorre que o aumento do aparato estatal não pode servir de

instrumento de dependência da população para com o Estado e, por conseguinte, na colocação

do poder público como única ou a melhor alternativa para solucionar problemas sociais,

principalmente os que atingem as pessoas carentes.

Além de temas sociais, outras questões também são submetidas aos

governos. Assim, não se afasta o dever de dirigir políticas públicas específicas e desiguais, na

medida em que as necessidades efetivas das pessoas são diferentes, sendo fundamental a

participação da sociedade. É nesse aspecto que se destaca a relevância da formulação das

normas que garantirão não apenas a assistência, mas também os mecanismos por meio dos

quais serão oferecidas oportunidades de melhoria das condições de vida. Se a dependência

assistencialista – ou, pior, paternalista – das ações do Estado e do governo estiver desatrelada

de políticas que permitam aos cidadãos evoluir e, numa combinação de incentivos públicos e

esforço próprio, modificar para melhor sua condição social, a democracia poderá sofrer (se

esse quadro já não se verifica) forte comprometimento na medida em que as esperanças

daqueles eleitores estarão depositadas no continuísmo de determinado grupo que ocupa o

poder, mas não na capacidade de o corpo social se mobilizar e, por consenso, impulsionar o

poder político no caminho das mudanças.

90

O considerável deslocamento que ocorreu entre a sociedade civil e o sistema

político constitui o terceiro obstáculo delineado por Bobbio (2006, p. 48), que justifica esse

fenômeno a partir da constatação de que o Estado liberal110 e sua adaptação à democracia

fizeram com que as demandas da sociedade se ampliassem ao ponto de submeter o “sistema

político a drásticas opções”, desvelando a morosidade dos procedimentos decisórios em

contraste com os sistemas autocráticos, os quais, diversamente das democracias, formulam e

impõem as próprias demandas. Essa circunstância atinge a legitimidade dos governos e

fortalece o argumento de que o Estado democrático não é capaz, por si só, de resolver ou de

atender a todas as reivindicações sociais. Nesse sentido, a democracia não pode ser

confundida como meio pelo qual a sociedade se despe de suas responsabilidades coletivas e

transfere ao poder público o dever de prover e tutelar a nação.

O poder político que fundamenta o regime democrático e, por conseguinte, a

sociedade (LEFORT, 1991, p. 31-32), não pode ser substituído pelo ente estatal, ou melhor,

pelos políticos, pelos governos e pelos tecnocratas. Impossível encontrar uma equação que

atenda a todos os interesses. Por isso a importância de consensos, com base em critérios de

justiça. Notadamente nos governos em processo de consolidação democrática de maior apelo

social, como é o caso do Brasil, a ausência dessa percepção tende a fazer com que a

população apresente seus pleitos e se coloque na posição de aguardar a atuação dos políticos e

das instituições públicas. Os exitosos serão aqueles que conseguirem exercer suas habilidades

de influência, a depender do momento e da agenda política. O direito, nesses casos, acaba por

servir de instrumento para a exteriorização da decisão tomada.

Dessa visão de democracia uma constatação não pode escapar: o regime

democrático não admite imposição. Deve, ao contrário, emergir da percepção e da vontade da

110 Michel Foucault aborda como a iniciativa privada identificou a necessidade de estabelecer medidas destinadas

a atender pelo menos parte das demandas sociais e dos trabalhadores, configurando, no seu entender, um movimento estratégico para evitar uma drástica ruptura nos sistemas econômico e de dominação, acarretando a maior fragmentação da sociedade (Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2005).

91

sociedade em modificar um determinado estado de coisas. Desse movimento serão

aperfeiçoadas as bases jurídicas que fundamentam as relações sociais, as tensões e os

inevitáveis conflitos de interesses. O principal entendimento sobre a democracia e sua atual

concepção de governo consiste na forma de representação política, que precisa se aproximar

do reconhecimento do outro na condição de pessoa humana e, portanto, na qualidade de titular

de direitos fundamentais, de tal sorte a prevalecer o bem-comum sobre o interesse particular

ou corporativo, num ininterrupto incorporar da ética e da alteridade aos sistemas jurídico-

normativos, cada vez mais articulados nas redes de relacionamento transdisciplinar que

alimentam a construção da democracia e do direito.

1.4 Incompatibilidades e convergências

No presente capítulo foram tratados três dos mais relevantes temas que

orbitam em torno da defesa. Soberania, segurança e democracia são argumentos manipuláveis

pelo poder político e instrumentalizáveis pelo direito para o fim de tentar compor as

assimetrias existentes nas relações internas e externas de cada Estado ou nação. A composição

dessas incompatibilidades e convergências evita a beligerância explícita ou declarada, mas

não excluiu, na linha do pensamento de Virilio (1984), a militarização – que não é

exclusividade do militar – do cotidiano dominado pela velocidade e pelo estado de prontidão,

colocando a sociedade no curso da preparação permanente para um provável e (in)desejável

enfrentamento que denominou “guerra pura”.

A soberania, lastreada ora pela amarras absolutistas ora pelas idéias

libertárias é colocada diante da crise que transcende o reconhecimento internacional da figura

estatal, suas limitações e adaptações em face de outros atores políticos e da sociedade civil,

para se ver diante da perplexidade motivada pelo questionamento de sua essência, que nada

mais é do que a independência para agir livremente. A crise não se reduz ao poder soberano,

92

mas à esdrúxula configuração que impõe a limitação e a dependência da colaboração ou da

autorização coletiva. Esse quadro é o resultado da concepção de segurança para

principalmente evitar novas guerras de efeitos devastadores a ponto de destruir o ambiente e

dizimar a espécie humana. Mas também é decorrência do (des)equilíbrio de forças, da divisão

de poder e, por conseguinte, da manutenção de prerrogativas. Ocorre que o simbolismo da

suposta segurança encontra seu principal ponto de fragilidade no ideal democrático. Isso

porque, como visto, a democracia ideal ainda está muito distante da democracia real. Nem

todos os Estados são democráticos. A adoção desse regime não é universal e não obedece ao

mesmo grau de experimentação e aceitação. Mesmo nos países democráticos fundados no

estado de direito a democracia ainda apresenta parcialidade. A dosimetria democrática

depende das circunstâncias, dos valores e dos interesses envolvidos. Apesar disso, parece ser

a opção mais adequada, pois possibilita desvelar as assimetrias.

Por essas razões, soberania, segurança e democracia repercutem diretamente

na formulação da política de defesa brasileira, na medida em que o país precisa consolidar o

processo de redemocratização a partir dos princípios que regem suas relações internacionais e

a consecução de objetivos nacionais, os quais não elegeram inimigos externos ou internos,

ideologias preferenciais ou solução armada para pôr fim a interesses antagônicos. A

composição desse quadro desafia o direito e o político, de modo que a política de defesa se

encontra na tênue linha que separa o cumprimento irrestrito dos princípios constitucionais das

possíveis demandas de segurança, de proteção. O problema reside em encontrar a melhor

forma de dissuadir. Talvez a democracia ajude a encontrar o caminho adequado a partir da

ponderação e do diálogo com a sociedade civil, pois será esta que, ao final, arcará com o ônus

de vidas humanas e recursos financeiros com base nos quais a defesa é praticada.

93

2 POLÍTICA DE DEFESA BRASILEIRA

Como preliminar, é necessário esclarecer que a idéia de defesa compreende

a hipótese extrema do uso da violência legalizada e do poder de destruição, os quais têm o uso

autorizado e podem ser dirigidos contra as pessoas, o ambiente, os territórios, o espaço e os

bens materiais, culturais e intelectuais. Porém, essa hipótese não é o último ou o único recurso

escolhido para o fim de lograr determinado êxito. A violência e a destruição, a propósito, se

revestem de variadas formas. Associa-se a essa assertiva a seguinte pergunta: uma política de

defesa teria lugar em país democrático que, em suas relações internacionais, adota como

princípios fundamentais a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a

não-intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos

conflitos e a cooperação dos povos para o progresso da humanidade? Sim, simplesmente

porque esses princípios ou são violados ou não foram aceitos por todos os países ou nações, o

que implica um estado permanente de inquietação, de desconfiança, de preparação para um

provável enfrentamento. Tem-se, daí, a noção de segurança.

A complexidade se amplia na medida em que os possíveis ofensores adotam

técnicas de ocultação sofisticadas ou – pior – quando estão deslocados da representação

oficial do poder estatal, organizando-se, por exemplo, em grupos terroristas ou sob o

argumento da defesa incondicional de uma dada ideologia. É inevitável, pois, reconhecer que

a defesa transcende a simples idéia de atuação de um aparato bélico na proteção da pátria e na

garantia de poderes constitucionais, da lei e da ordem, na redação do caput do art. 142 da

Carta Política brasileira de 1988. Essas premissas permitem afirmar que no estado

democrático de direito a defesa se situa além da agenda exclusivamente militar de

organização, preparo e emprego de forças armadas regulares.

94

Mas, em que consiste a defesa nacional? De plano, é importante assinalar

que segurança111 e defesa são conceitos que contemplam atribuições distintas mas não

opostas. São complementares uma da outra e dependentes do conjunto de ações direcionadas

à consecução dos direitos fundamentais. Nesse sentido, a defesa deve consistir numa série de

políticas públicas destinadas à consecução dos fundamentos da República112 a partir de bases

democráticas. Somente mediante o efetivo e continuado exercício da soberania popular, da

cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa

e do pluralismo político, terá a sociedade – e não apenas o Estado – os legítimos instrumentos

de sustentação de uma adequada política que assegure a devida segurança, a desejada

proteção. Logo, as políticas públicas destinadas a assegurar a defesa não podem se revestir de

natureza exclusiva ou meramente militar, de cujo escopo a sociedade brasileira tende a se

afastar por receio, estigma ou ignorância. Por conseguinte, serão adequadas à defesa as

políticas voltadas a fortalecer o país, desde que proporcionem vida digna e conscientizem a

todos da responsabilidade coletiva para com o tecido social, contribuindo, dessa maneira, para

a proteção não somente da humanidade, das sociedades e do Estado.

A política de defesa brasileira está “voltada, preponderantemente”113, para

ameaças externas, atribuindo-se maior destaque aos princípios constitucionais que dizem

respeito à solução pacífica das controvérsias e ao fortalecimento da paz e da segurança

internacionais. Porém, o uso da expressão “preponderantemente” indica que as políticas e as

ações de governo não devem se preocupar única e exclusivamente com os fatores advindos

dos cenários externos ou de natureza bélica, isso porque a instabilidade interna também

configura significativa hipótese de ameaça à proteção do país. A possibilidade de sofrer

ataques militares de origem externa representa hipótese remota, porém factível. Contudo,

111 Convém anotar que a segurança pública é uma variável do conceito de segurança. 112 Na enumeração prevista no art. 1o da Constituição Federal de 1988. 113 Conforme o disposto na parte introdutória do anexo Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

95

cumpre dizer que, na atualidade, as ameaças externas não se resumem aos casos de

confrontação bélica. Suas variáveis contemplam as cada vez menos veladas formas de

intervenção econômica, ambiental, científica, tecnológica e política, especialmente sob o

argumento falacioso da cooperação ou do resgate de nações fragmentadas ou falidas. Por

essas razões, o poder público deve dirigir sua atenção às mazelas que diminuem as

resistências do país. Mas isso não exclui a preocupação com o cenário internacional. Ao

contrário: é preciso combinar as políticas destinadas a assegurar a defesa nacional com

aquelas que garantam a consecução plena do Estado Democrático de Direito, fundamentando-

as e colocando-as em sintonia temporal.

2.1 Defesa na consolidação da democracia

Todo país tem a prerrogativa de defender seus interesses e a integridade de

seu território e, por conseguinte, sua soberania, seu povo. Para cumprir essa tarefa, muitas

variáveis são aplicáveis, dentre as quais os instrumentos diplomáticos, o poder econômico, as

estratégias e as negociações políticas, além da organização, do preparo e do emprego de

forças armadas regulares. A democracia vigente no Brasil exige uma reflexão a respeito do

escopo da política de defesa, no sentido de romper com o senso comum de que essa matéria

está limitada à atuação militar. É preciso desvelar outro sentido para a idéia de defesa: o de

que os problemas sociais também são fatores determinantes das vulnerabilidades do país,

devendo ser enfrentados por políticas públicas comprometidas com a melhoria da condição de

vida das pessoas sem, contudo, relegar os aspectos estratégicos de natureza militar, cuja

relevância se situa além do arsenal belicoso.

No Brasil não há o hábito de debater, com todos os atores políticos e sociais,

as questões que dizem respeito à defesa nacional. Acena-se para aspectos polêmicos a

reboque de fatos ocorridos. A sensação é de que o tema não desperta interesse ou não guarda

96

afinidade com a maioria da população e com boa parte daqueles que representam o poder

político, de um lado por remeter a sociedade ao recente período do regime de exceção e, de

outro, por dar a impressão de que o assunto requer um alto grau de conhecimento em assuntos

militares. Soma-se a esses motivos a percepção de que o afastamento do assunto também

decorre da estratificação social, do exercício concentrado do poder e da ininterrupta

necessidade de sobrevivência na sociedade cada vez mais competitiva, aflita pela velocidade e

voltada ao consumo e à subsistência, fatores que retiram a capacidade de perceber as mazelas

que silenciosamente se instalam e, num movimento continuado, tornam os atores sociais seres

de diminuta capacidade sensorial que não reconhecem o outro; ou pior: admitem-no como um

distante diferente que nessa posição deve permanecer.

A defesa nacional é um tema relevante que transcende a significativa

atuação de forças armadas regulares, pois compreende a infinidade de tensões e conflitos de

interesses que se movimentam, se chocam e se entrelaçam nas relações sociais, políticas e

institucionais, tanto no campo interno como no externo. As questões que dizem respeito à

política de defesa não podem prescindir, por conseguinte, do conhecimento e do debate no

seio da sociedade, essencialmente na busca da construção de consensos a respeito das

estratégias de proteção do país e de seu povo, considerado um só, além da faixa de terra e da

organização do Estado, mas fundamentalmente formado por pessoas.

Tendo em vista que o Brasil é um país democrático sob o estado de direito,

parece razoável que a defesa configure uma boa alternativa para a construção de consensos

sobre princípios de justiça que mais apropriadamente traduzam os interesses da população, de

modo a que os bens jurídicos de uns não estejam mais protegidos do que os de outros, para

que todos se sintam comprometidos a cooperar indistintamente, ante o caráter universal das

medidas sem desmerecer a importância da organização, do preparo e do emprego das Forças

97

Armadas, nos limites das regras constitucionais e da irrestrita submissão ao poder político

civil, sob as premissas que norteiam as instituições democráticas.

2.1.1 A mudança de um modelo

O presente trabalho não tem o objetivo de abordar as causas e a implantação

da ditadura militar que o Brasil vivenciou no período de 1964 a 1985. O escopo é outro:

suscitar uma nova forma de compreender a defesa nacional sob o fundamento de princípios

democráticos, com a participação da sociedade, na linha de que o poder político, uma vez

fortalecido e distribuído entre os mais variados atores, possa reunir a legitimidade

indispensável ao estabelecimento de regras vinculatórias aceitas por consensos formados a

partir de composições de conflitos, o que implica o seguinte questionamento: a dissuasão,

fator fundamental de defesa, encontra alternativa além das vias diplomáticas ou bélicas?

Para tratar de defesa no contexto da democracia a consistência dos

argumentos requer a menção de determinadas peculiaridades que envolveram a transição para

o atual regime, destacando, sempre que possível, as implicações no cenário jurídico. Nessa

linha, com o propósito de organizar as idéias no transcurso do tempo, será utilizada a parte

introdutória do estudo de Castro e D’Araújo (2001) a respeito dos militares e da política,

como também alguns pontos contidos na análise de Linz e Stepan (1999)114.

Dessa maneira, convém trazer alguns episódios da transição da democracia

no Brasil, a partir da cronologia feita por Castro e D’Araújo (2001, p. 337-346). Em 25 de

abril de 1984 foi derrotada a proposta de emenda constitucional que previa eleições diretas

para presidente da República; em 15 de janeiro de 1985 Tancredo Neves e José Sarney foram

eleitos pelo Colégio Eleitoral, respectivamente, Presidente e Vice-Presidente da República;

114 Eliézer Rizzo de Oliveira (Democracia e defesa nacional: a criação do Ministério da Defesa na

presidência de FHC. São Paulo: Monole, 2005) e José Murilo de Carvalho (Forças Armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006) são autores que também abordam com profundidade a atuação dos militares no cenário político e a transição da democracia no Brasil.

98

em 15 de março de 1985 José Sarney assumiu a Presidência da República; em 15 de

novembro de 1986 ocorreu a eleição de senadores e deputados federais para compor a

Assembléia Nacional Constituinte, além de governadores e deputados estaduais, com ampla

vitória do Partido da Mobilização Democrática Nacional (PMDB); em 1o de fevereiro de 1987

foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte; em 2 de junho de 1988 a Constituinte

aprovou o mandato presidencial de cinco anos para o Presidente José Sarney; em 3 de

setembro de 1988 foram encerrados os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte; em 5

de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição; em 15 de novembro de 1989 foram

realizadas eleições diretas em primeiro turno para presidente da República, sendo levados ao

segundo turno os candidatos Fernando Collor de Mello e Luís Inácio Lula da Silva; e em 17

de dezembro de 1989 Fernando Collor de Mello foi eleito em segundo turno Presidente da

República, tendo renunciado no dia 29 de dezembro de 1992, por força do impedimento

autorizado pela Câmara dos Deputados115, que resultou na deliberação do Senado116 pela

inabilitação política por oito anos, por crime de responsabilidade117. A seguir, o Vice-

Presidente Itamar Franco assumiu a Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso

foi eleito por dois mandatos consecutivos (1995-1998 e 1999-2002, este com mudança nas

regras de reeleição), assim como Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010).

Em que pese os movimentos contrários ao regime militar, a violência, as

mortes, as perseguições políticas e ideológicas, o Brasil não teve uma revolução que, oriunda

e amplamente legitimada pela sociedade civil, tenha, por si só, retirado os militares do poder.

Não houve uma retomada, mas sim o que se pode chamar devolução condicionada do poder

político, uma saída estratégica tanto para os civis que almejavam exercer o poder, como para

os militares que o deixariam. Embora no país e no exterior tenha ocorrido um arranjo de

115 Cf. art. 51, I da Constituição Federal de 1988. 116 Cf. art. 52, I da Constituição Federal de 1988. 117 Nas eleições de 2006, Fernando Collor foi eleito Senador da República pelo Estado de Alagoas.

99

política geoestratégica de correntes que, em dado momento, se colocaram contrárias ao

regime militar, o processo de mudança foi lento e permeado por uma série de concessões e

rupturas que permitiram a continuidade – mesmo que em intensidade menor e limitada à

autuação institucional garantidora da influência em temas decisórios relevantes – da

participação das Forças Armadas na vida política brasileira. Em síntese, a transição do

autoritário para o democrático teve início com a posse na Presidência da República do general

Ernesto Geisel, em 15 de março de 1974, completando-se quando Collor assumiu o poder, em

15 de março de 1990. Foram, pois, dezesseis anos de transição (LINZ e STEPAN, 1999, p.

204-205). Desde então, a democracia brasileira tem experimentado grandes desafios, mas em

momento algum foi formalmente ameaçada de ruptura armada ou ideológica que pudesse

comprometer o caminhar do processo de consolidação.

Note-se que os defensores da democracia distinguem liberalização de

democratização. Cabe, a esse respeito, esclarecer que, no primeiro caso, são admitidas

determinadas aberturas, enquanto no segundo as liberdades públicas são efetivamente

praticadas. No dizer de Linz e Stepan (1999, p. 21):

[...] uma combinação de mudanças sociais e de diretrizes políticas, tais como menos censura na mídia; um espaço um pouco maior para a organização das atividades autônomas da classe trabalhadora; a introdução de algumas salvaguardas jurídicas para o indivíduo, como o habeas corpus; a libertação da maior parte dos presos políticos; o retorno dos exilados; talvez algumas medidas visando a melhoria das condições de renda e, o que é mais importante, a tolerância à oposição.

No panorama teórico da democracia, Linz e Stepan (1999, p. 21) destacam a

importância de conhecer a natureza dos regimes não-democráticos, de modo a que os

mecanismos de transição e de posterior consolidação possam ser avaliados e planejados, em

cujo contexto se encontra o arcabouço jurídico-normativo vigente e a ser construído, tendo em

vista que a mudança do regime de exceção para o democrático, ainda que pacificamente,

100

acarreta profunda revisão no atuar da sociedade e das instituições, o que repercute no direito

e, por conseguinte, na percepção do que é justo. Entenda-se por pacífica a transição ocorrida

sem agressão armada, sem o uso de violência a partir da pressão (interna e externa) pela

mudança de regime. Por certo, não se pode deixar de mencionar a ocorrência de atos de

violência e repressão contra os movimentos que antecederam o retorno do processo

democrático ao Brasil. Para melhor compreender o fenômeno sob análise, revela-se de todo

apropriado transcrever a definição alinhava por aqueles autores:

Uma transição democrática está completa quando um grau suficiente de acordo foi alcançado quanto aos procedimentos políticos visando obter um governo eleito; quando um governo chega ao poder como resultado direto do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de gerar novas políticas; e quando os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, criados pela nova democracia, não têm que, de jure, dividir o poder com outros organismos.

Segundo esse entender, inicialmente a transição para a democracia encontra

legitimidade na formação de consenso a respeito dos mecanismos para a eleição do novo

governo. Logo, o primeiro requisito compreende o reconhecimento da perda do poder político

da gestão autoritária em face das exigências advindas da sociedade e da pressão externa, mas

não necessariamente de todo o conjunto da população, no impulso de determinados grupos de

influência, observada a opressão, a sensação de segurança e o distanciamento que as massas

tiveram – e, de certa maneira, ainda têm – dos assuntos de natureza política.

A esse respeito, Linz e Stepan (1999, p. 267) contemplam os resultados de

pesquisas de opinião sobre democracia, abrangendo a capacidade que o regime tem para

resolver problemas. As respostas, que levaram em consideração a concordância ou não dos

entrevistados com o comando da assertiva, compreendem três grupos de perguntas e

respectivos percentuais de respostas, todos dirigidos à legitimidade do regime, a saber: (i) “A

democracia é preferível a qualquer outra forma de governo”. Quanto à capacidade, 55,2%

responderam que sim e, quanto à incapacidade, 29,0% responderam que não; (ii) “Em

101

algumas circunstâncias, um governo autoritário poderia ser preferível a um governo

democrático”. 16,8% responderam pela capacidade, enquanto 27,7% pela incapacidade; e (iii)

“Para gente como eu, não faz diferença se o regime é democrático ou não democrático”. Do

total, 17,2% manifestaram concordância com a legitimidade da democracia, contra 30,7% que

não acreditaram. No que concerne à percepção das pessoas, esses dados indicam a fragilidade

do regime democrático e sua permanente sujeição a intenções assistencialistas ou

paternalistas, para as quais podem derivar práticas totalitárias.

Certamente a ruptura gerou significativa tensão entre as forças políticas, não

só daquelas interessadas na abertura do regime, mas também no seio das que compartilhavam

o poder, fossem elas de origem militar ou civil. Castro e D’Araújo (2001, p. 15-16) destacam

que havia entre os militares que entrevistaram o sentimento predominante de que a transição

se fazia necessária para pôr fim à sucessão de governos de exceção que até então se praticava.

Ademais, a ausência de unanimidade no pensamento dos dirigentes do país provavelmente

funcionou como um termômetro para medir os limites da atuação institucional contra ou a

favor da mudança. Porém, uma ou outra tendência inevitavelmente influenciaria a ocorrência

de conflitos nos quartéis, o que não seria desejável sob os aspectos da justiça e disciplina118,

que são, em tese, princípios basilares da atividade militar. Os autores também destacam o

papel desempenhado pelos líderes da Aliança Liberal e pelo candidato da oposição, Tancredo

Neves, na transição para o governo civil que, embora por meio de eleições indiretas, tentou

estabelecer a conciliação, ao contrário do sentimento de vingança contra as Forças Armadas

que tanto preocupava os militares.

Percebe-se um alinhamento à direita ou, no mínimo, ao centro, na

demonstração de que a base de sustentação do novo governo não teria aspectos

revolucionários ou revanchistas na transferência do poder. Castro e D’Araújo registram que

118 Princípios previstos no caput do art. 142 da Constituição Federal de 1988.

102

essa postura foi mantida quando Sarney assumiu a Presidência, dando ensejo ao aumento da

remuneração dos militares, além de manifestações públicas destinadas a prestigiar aquelas

instituições e respectivas autoridades. O governo Sarney foi rotulado de viver sob a tutela dos

militares, argumentando-se que esses continuavam a gozar de posição política de destaque.

Interessante mencionar que, para Faria (2003, p. 20), o sistema brasileiro se caracterizava e

ainda tem presente a concessão de benefícios considerados “desiguais e fragmentários”,

voltados a determinados grupos e às elites como, por exemplo, militares, empresas estatais,

funcionários do legislativo, do judiciário e funcionários de carreira do Estado, como também

(porém em menor grau) de trabalhadores da indústria e de setores estratégicos119.

Sarney, Vice-Presidente eleito indiretamente, assumiu a Presidência em

decorrência da morte de Tancredo antes mesmo da posse. O artigo 78 da Constituição de

1967120 não previa textualmente essa possibilidade. Mas o parágrafo único do art. 76, que

estabelecia os procedimentos de vacância, mencionava que o cargo de Presidente ou de Vice-

Presidente seria declarado vago no prazo de dez dias contados da data fixada para a posse,

admitindo-se a interpretação de que a sucessão prevista na segunda parte do caput do art. 77

não dependeria da prévia posse do Presidente eleito. Se assim não fosse, nos termos do art. 78

da Carta de 1967121, poderiam assumir a Presidência da República, sucessivamente, o

Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal ou o Presidente do

Supremo Tribunal Federal. A assunção de Sarney foi oportuna, posto que, como assinalaram

Linz e Stepan (1999, p. 205-206), ele presidia o partido pró-regime e fazia parte dos acordos

ajustados.

119 Nessa linha, Faria (2003) mencionou que a crise dos anos 80 e 90 ampliou a desorganização do sistema de

proteção gerenciado pelo Estado. 120 Esse dispositivo, com a redação dada pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969,

promulgada pelos então Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, prescrevia: “Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de vaga, o Vice-Presidente. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 1o de novembro de 2007.

121 Dispositivos da Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda Constitucional no 1, de 17 de outubro de 1969.

103

Na definição de Linz e Stepan (1999, p. 21) o segundo requisito da transição

corresponde à eleição do governo pelo voto popular livre, o que não ocorreu no caso

brasileiro, pelo menos no primeiro momento. Tancredo Neves e Sarney foram

respectivamente eleitos, pela via indireta, Presidente e Vice-Presidente. Ou seja, a escolha do

chefe de Estado (que também era o chefe do Executivo, como na atualidade) coube ao colégio

eleitoral ainda sujeito às tensões do governo militar, sendo de relevância lembrar que em 25

de abril de 1984 foi rejeitada a proposta de emenda constitucional que pretendia consagrar o

voto direto para aqueles cargos. Portanto, somente em 15 de novembro de 1989 (mais de

quatro anos depois da posse de Sarney) foi realizado o primeiro turno das eleições diretas para

a Presidência da República pós-regime de exceção, isto é, no curso da transição (e não antes,

frise-se). A posse ocorreu três meses depois, em 15 de março de 1990, data a partir da qual foi

aperfeiçoada a transição para a democracia. Não obstante, é relevante destacar que em 15 de

novembro de 1986 foram realizadas as eleições de senadores e deputados federais para

compor a Assembléia Nacional Constituinte, e de governadores e deputados estaduais, todas

com votação direta, fatos que assinalaram a mudança de regime, tendo em vista o início da

construção de um novo pacto social, a abranger a nova constituição e a reformulação da

divisão do poder no território nacional, embora com diminuta participação das massas.

Com as eleições realizadas no país, passa-se ao terceiro requisito da

definição de Linz e Stepan (1999), que consiste na legitimidade que o governo tem para

articular novas políticas. Ultrapassa os limites desse trabalho a análise das políticas

formuladas naquela fase inicial de transição para democracia (Sarney) e dos primeiros passos

da consolidação democrática (Collor-Itamar). Mas é possível afirmar que as medidas

adotadas, de maior ou menor relevância, revelaram certo grau de autonomia e de autoridade

dos governantes. A esse respeito, destaca-se o papel fundamental desempenhado pelo Poder

Legislativo, na qualidade de representante do povo, pois a democracia e as regras

104

constitucionais modificaram substancialmente a concentração de poder que até então se

verificava nas ações do chefe do Executivo, que dispunha de prerrogativas excepcionais para

legislar ou para influenciar a pauta do Congresso, ao amparo de atos institucionais que

exorbitavam e ampliavam sobremaneira os poderes da autoridade presidencial122.

Na atualidade brasileira, mesmo com determinadas condições, o uso da

medida provisória123 e a nomeação para cargos públicos relevantes124, além da autonomia para

gerir o orçamento público, ainda conferem ao Presidente da República, na confusão entre

chefe de Estado e de Governo, competências que não raras vezes são vistas como contrárias

ao regular processo legislativo e prejudiciais aos princípios democráticos, tendo em vista que,

por força das assimetrias que geram, podem funcionar como instrumentos de cooptação de

apoios e, por conseguinte, acarretar distorções no sistema de representação política.

Colocados o consenso para a mudança de regime, a realização de eleições e

a legitimidade do novo governo, o quarto e último requisito apontado por Linz e Stepan

(1999) diz respeito à atuação livre e independente das instituições, dentre as quais estão os

poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sob a égide da nova Constituição. A esse respeito,

o art. 2o da Carta Política de 1988 atribui independência e harmonia a essa estrutura basilar da

União, que assume a forma de representação do poder do Estado. No que concerne à paridade

entre os poderes da União, Carvalho (2002, p. 242) pondera que o princípio de separação

passa por processo de transformação justificado pelo argumento de que o poder estatal

contemporâneo não comporta mais a extrema rigidez da fórmula, argumentando, porém, que

não deve ser negado, mas aperfeiçoado para o fim de torná-lo compatível com a eficiência

que é exigida do poder público, desde que respeitados os direitos fundamentais. Como sabido,

122 Especialmente aqueles previstos no Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968. 123 Cf. arts. 62 e 84, XXVI da Constituição Federal de 1988 e o art. 246 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias. 124 Dentre os quais, os de Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; com a prévia aprovação dos

nomes pelo Senado Federal, os de Ministros do STF e dos tribunais superiores, os de governadores dos Territórios, o de Procurador-Geral da República, o de presidente e os de diretores do Banco Central.

105

a separação dos poderes tem por premissa a noção de freios e contrapesos sem a qual

dificilmente a democracia funcionaria a contento. O aperfeiçoamento desse princípio se

justifica pela tendência de deturpação do funcionamento daquelas instituições, especialmente

o Legislativo e o Executivo em decorrência dos vícios de uma fração de seus membros que,

despreparados para o trato de interesses coletivos que exigem elevado grau de abnegação e

desprendimento de interesses individuais e corporativos, frustram as expectativas do povo na

busca não raras vezes desenfreada do poder pelo poder, substituindo a vocação política pela

banalização da coisa pública e dos preceitos que deveriam nortear a equilibrada composição

de causas sujeitas a conflitos e tensões.

Os problemas enfrentados na aplicação do princípio de separação dos

poderes guardam estreita ligação com a linha parlamentarista da Carta de 1988, delineada

para um governo parlamentarista e que acabou por servir ao presidencialismo, situando o

Presidente da República ora como chefe de Estado ora como chefe de governo. Foi mantida a

aproximação dos militares com a cúpula do poder político. Essa composição exige cautelas

permanentes, pois é preciso questionar as relações que se estabelecem nos rituais de

administrar, de legislar e de zelar pelo fiel cumprimento das regras de direito, tendo em vista

que a confusão entre essas atividades pode resultar prejuízos à consolidação da democracia,

notadamente porque o mandato popular, de natureza transitória, não está imune ao risco de ser

substituído pela submissão ao fascínio de permanecer no poder que se opera, dentre outras

estratégias, pela conquista de maiorias para aprovar projetos de grupos corporativos e para

viabilizar o que se convencionou chamar de governabilidade, mediante a realização de

negociações parciais, de nomeações destinadas a atender demandas desprendidas do bem-

comum e da aprovação de emendas ao orçamento125 para manter a lealdade de aliados.

125 O orçamento da União ainda não é vinculatório, posto que se sujeita aos limites de execução determinados

pelos agentes da tecnocracia centralizados nas instituições que integram o Poder Executivo Federal.

106

O Brasil passou pela transição, mas ainda se encontra no curso da

consolidação democrática. Entretanto, esse processo vai além dos fatores ou dos requisitos até

então mencionados (consenso para a mudança, eleição do governo pelo voto, autoridade

governamental para propor e implantar políticas públicas efetivas e atuação independente dos

poderes constituídos). Exige um conceito ou um conjunto de ações mais amplo do que uma

simples lista de intenções meramente programáticas, o que determina a competição aberta

pelo direito de exercer o poder político com base em debates que enfrentem detalhadamente

os temas de interesse do país e as políticas públicas viáveis para solucioná-los, decorrendo as

escolhas por partidos e candidatos com plataformas eleitorais coerentes, para que o exercício

das atividades governamental e parlamentar correspondam aos anseios da população. Dessa

maneira, a democracia deve ser compreendida como valor da vida social, presente também

nas instituições, para que possa alcançar seus objetivos por meio da participação de todos na

escolha dos desígnios do país, seja pelo voto direto, pelas pressões legítimas e pela

fiscalização dos atos praticados e das decisões tomadas (LINZ e STEPAN, 1999, p. 22-24).

Decorrente do processo de consolidação, a teoria desenha a fase de

democracia consolidada de acordo com as condições e o momento histórico de cada país. Para

Linz e Stepan (1999, p. 22-24) essa experimentação pode ser analisada no contexto dos

comportamentos, das atitudes e dos aspectos constitucionais:

Em termos comportamentais, um regime democrático, em um território, está consolidado quando nenhum ator nacional de importância significativa, quer social, econômica, política ou institucional, despenda recursos consideráveis na tentativa de atingir seus objetivos por intermédio da criação de um regime não-democrático, lançando mão de violência ou de intervenção estrangeira, visando a secessão do Estado.

Em termos de atitudes, um regime democrático está consolidado quando uma grande maioria da opinião pública mantém a crença de que os procedimentos e as instituições democráticas são a forma mais adequada para o governo da vida coletiva em uma sociedade como a deles, e quando o apoio a alternativas contrárias ao sistema é bastante pequeno ou menos isolado das forças pró-democráticas.

Em termos constitucionais, um regime democrático está consolidado quando tanto as forças governamentais quanto as não-governamentais, em todo o

107

território do Estado, sujeitam-se e habituam-se à resolução de conflitos dentro de leis, procedimentos e instituições específicas, sancionadas pelo novo processo democrático.

Nessa ordem de idéias, as variáveis territorialidade e institucionalização são

essenciais para a democracia porque permitem verificar a fragilidade ou a consistência da

atuação do poder político, sua presença na sociedade, no Estado e no governo. Porém, a

legitimidade de sua atuação depende da forma como as pessoas reconhecem e praticam os

princípios democráticos, além dos parâmetros valorativos sob o fundamento dos quais serão

compostos os consensos necessários à composição dos conflitos, proporcionando a

estabilidade e a continuidade das instituições responsáveis para levar a efeito as decisões

políticas. A esse respeito, Torres (2004, p. 20) assinala:

La institucionalización del orden puede ser entendida como un proceso de dos dimensiones. Por una parte, como el proceso mediante el cual principios y valores que dan fundamento a las instituciones son conocidos, aceptados y practicados regularmente, al menos por aquellos a quines esas mismas pautas definen como participantes o no del proceso. Aquí el grado de institucionalización está dado por la capacidad que tienen los principios y valores institucionales para mantener la unidad del poder político e la cohesión del aparato estatal por en cima de las tensiones y conflictos de la sociedad (O’Donnell y Schmitter, 1991). Y por otra parte, la institucionalización del orden puede ser entendida como el proceso mediante el cual las organizaciones adquieren valor y estabilidad en sus estructuras, funciones y procedimientos (Huntington, 1991). La institucionalización del orden concreta las formas de interacción de los individuos, como relaciones de consenso o represión. Es el campo de encuentro entre dominación y hegemonía. La institucionalización del orden también define los principios de cohesión externa, como problemas de institucionalización del orden, ponen en evidencia la irrupción incontrolada e incontrolable de una multiplicidad formas, instancias e instrumentos paralelos a las formas, instancias e instrumentos institucionales del Estado en la regulación y control de la vida en sociedad.

Contudo, assim como Dahl (2001) e Ferreira Filho (2001), Linz e Stepan

(1999, p. 24-25) advertem que a democracia não obedece a modelo único para todos os países

e que a consolidação no curso da história pode sofrer mudanças e interrupções, indo além da

realização de eleições e da existência de mercados livres. Como metodologia para analisar o

processo de consolidação, esses autores formularam cinco fatores sob o pressuposto de que a

108

democracia é uma forma de governar e que, por conseguinte, uma comunidade política

somente poderá se constituir sob tais princípios quando previamente for considerada como

Estado. Nessa linha, argumentam que restará democraticamente fortalecido o ente estatal que

contemplar (i) condições para o desenvolvimento de uma sociedade civil livre e ativa, (ii) que

disponha de um mínimo de autonomia e valorização (iii) sob o fundamento do estado de

direito que preserve as garantias legais das liberdades dos cidadãos e da vida associativa

independente, sem dispensar a burocracia estatal no novo governo democrático e, por fim, (v)

que a sociedade econômica represente uma realidade institucionalizada. Esses fatores estão

presentes no modelo brasileiro.

Para entender o funcionamento do Estado com base nos cinco fatores

anteriormente descritos é necessário conhecer a noção de sociedade civil e de sociedade

política, a partir dos estudos de Linz e Stepan (1999, p. 26). Assim, sociedade civil consiste

“no campo da comunidade política no qual grupos, movimentos e indivíduos, auto-

organizados e relativamente independentes do Estado tentam articular valores, criar

associações e entidades de interesses mútuos, e defender seus interesses”. Os autores

acrescentam que a sociedade civil organizada e com objetivos normativos teve grande

capacidade de mobilizar a oposição nos regimes burocrático-autoritários dos militares na

América do Sul, de maneira mais “patente” no Brasil e “crucial” no Leste europeu,

notadamente na Polônia. Essas colocações devem ser observadas com cautela, tomando a

advertência deixada por Kelsen (1993, p. 61), ao tratar da organização do povo em profissões

visando a proteção de interesses comuns, considerando que esse movimento “não compreende

todos os interesses em jogo na formação da vontade do Estado”. Não obstante, os autores

também consideram a existência e a força dos cidadãos comuns que não pertencem a

determinados grupos organizados:

109

Esses cidadãos são, muitas vezes, de importância crítica na alteração do equilíbrio regime/oposição, porque eles vão às ruas em passeatas de protestos, ridicularizam a polícia e as autoridades, manifestam sua discordância, primeiramente a medidas específicas, para em seguida dar apoio a reivindicações mais amplas e, por fim, acabam por desafiar o regime. Nesse sentido, podem conduzir a uma liberalização e conseqüente mudança do arcabouço jurídico-normativo na mudança de regime.

Por outro lado, Linz e Stepan (1999, p. 27) entendem a sociedade política no

contexto da busca pela democratização como uma comunidade “que se organiza de forma

específica, visando reivindicar o direito legítimo de exercer controle sobre o poder público e o

aparato estatal”. Em que pese não ser descartada a hipótese de a sociedade política atuar

contra ou a favor do regime democrático na tentativa de defender seus interesses e manter seu

predomínio no poder, a influenciar, por conseguinte, as ações da sociedade civil, a assertiva

dos autores demonstra o quanto é relevante a atuação da sociedade política na transição e na

consolidação da democracia, principalmente na construção de consensos que servirão de base

à nova realidade do país, a envolver os temas centrais que o norteiam, dentre os quais estão os

partidos políticos, as eleições, as regras eleitorais, a liderança política, as alianças

interpartidárias e as legislaturas que servirão “para escolher e monitorar o governo

democrático”.

Ocorre que sociedade civil e sociedade política não atuam de forma

harmônica. A esse respeito, Linz e Stepan (1999, p. 27-29) ponderam que, embora aparentem

compartilhar interesses convergentes, adotam posições contrárias ou antagônicas que

prejudicam profundamente a consolidação democrática. Assim, ao invés da ação de uma

complementar a outra, estabelece-se oposição que silenciosamente instala o conflito entre

forças. Para solucionar, ou melhor, para compor essas controvérsias no campo do diálogo, a

formação de partidos se faz conveniente, pois, em tese, agregam e representam diferenças

entre as correntes representativas. Por conseguinte, exige-se a continuada regulação dos

conflitos, inserindo os mecanismos democráticos na rotina institucional para que seja possível

110

intermediar as posições que separam o Estado (no qual foi incorporada a sociedade política)

da sociedade civil, mediante a estruturação de acordos que gozem de legitimidade e que não

sirvam para dar continuidade às práticas de opressão então praticadas antes da transição para a

democracia. Nessa discussão, o estado de direito é determinante na medida em que funciona

como ideário de justiça eqüitativa que se busca na democracia, a constituir a fonte de

sustentação, autonomia e independência das sociedades civil e política para o alcance da

consolidação da democracia. Dessa feita, as regras de direito devem ser respeitadas e

preservadas pelo próprio poder público, no cumprimento dos princípios da Carta Política, a

respeito de cuja especialização os autores ainda sustentam:

Um espírito constitucionalista requer mais do que o preceito do governo da maioria, implicando um consenso relativamente forte no que diz respeito à constituição e, em especial, ao compromisso com procedimentos “de auto-limitação de governo”, que exigem maiorias excepcionais para que mudanças sejam feitas. Ele requer também uma clara hierarquia das leis, interpretadas por um sistema judiciário independente e apoiada por uma forte cultura legal na sociedade civil.

No campo teórico desenvolvido por Linz e Stepan (1999, p. 29), a sociedade

civil ativa e independente, a sociedade política com autonomia suficiente e o consenso

operacional quanto aos procedimentos de governo constituem, juntamente com o

constitucionalismo e o estado de direito, os pré-requisitos para uma democracia consolidada.

Lembram, ainda, que a democracia é a forma de governo da vida na polis, onde cidadãos

exercem direitos que lhe são assegurados e protegidos, sendo admitido o uso legítimo da força

no território para que o governo democrático possa proteger os direitos básicos da população.

Para tanto, segundo os autores, faz-se necessário um Estado operacional e uma burocracia

estatal capaz de ser utilizada para o exercício do poder de comando, regulação e fiscalização.

A questão a ser enfrentada reside na democratização da burocracia e das elites, desfazendo-se

as amarras que conduzem à opressão, dentre as quais o corporativismo e o não-

reconhecimento do outro como portador de direitos fundamentais.

111

No entender de Linz e Stepan (1999, p. 30) a economia é o último fator

(metodológico e não de importância) de sustentação de uma democracia consolidada.

Preferem denominá-la de sociedade econômica orientada por dois postulados, a saber: (i) em

tempos de paz, não há possibilidade de contemplar uma economia planificada; e (ii)

igualmente, não há lugar para a democracia em uma economia de mercado pura. Os autores

argumentam que a democracia consolidada moderna requer “um conjunto de normas,

instituições e regulamentações, construídas e acordadas de forma sócio-político, às quais

denominamos sociedade econômica, que atua como mediadora entre o Estado e o mercado”.

Nesse aspecto, o modelo jurídico-normativo adotado pelo Brasil126 corresponde a essa

definição, pois a Carta Política de 1988 preceitua que a exploração direta de atividade

econômica pelo Estado somente poderá ocorrer em casos excepcionais quando presentes os

imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo127, determinando que o

poder público atue apenas na qualidade de agente normativo e regulador da atividade

econômica, por meio da fiscalização e da promoção de incentivos, utilizando-se de políticas e

da indicação dos melhores caminhos à iniciativa privada128.

Linz e Stepan (1999, p. 32) também sustentam que, no campo econômico, a

democracia consolidada moderna não seria sustentável caso deixasse de produzir debates a

respeito das prioridades e das políticas governamentais, especialmente quanto à geração de

bens públicos administrados pelo governo e destinados à população, com ênfase às áreas de

educação, saúde, transporte e na formação de “redes de segurança” providas de estruturas

capazes de assistir aos que sofrerem prejuízos decorrentes das oscilações de mercado, além,

126 Os arts. 170 a 181 da Constituição Federal de 1988 tratam da atividade econômica, que se baseia nos

seguintes princípios: soberania nacional; propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; redução das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; e tratamento favorecido a empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham a sua sede e administração no País.

127 Cf. art. 173 da Constituição Federal de 1988. 128 Cf. art. 174 da Constituição Federal de 1988.

112

por certo, de suprir as carências das camadas mais pobres da sociedade. Os autores concluem

a análise do panorama teórico com a assertiva de que a democracia transcende o convencional

conceito de regime político para compreender o convívio social fundamentado num “sistema

de interações”, no qual “há mediações constantes entre os campos, cada um dos quais está, de

maneira correta, no ‘campo’ de forças que emana dos demais”. A democracia consolidada

requer, pois, a atuação em rede numa construção transdisciplinar ininterrupta para a qual

concorrem todos os atores políticos e sociais.

Os problemas de ordem econômica dificultam a consolidação democrática.

Entre 1985 e 1993 sete diferentes planos de reforma foram lançados e fracassaram. Segundo

Linz e Stepan (1999, p. 203-204) a falta de êxito decorreu da incapacidade política de união

para formar uma coalizão que pudesse sustentar a consecução de novas políticas:

O constitucionalismo e o Estado de direito – que nunca foram fortes na altamente desigual sociedade brasileira – enfraqueceram-se mais ainda. A longa crise econômica diminuiu a capacidade fiscal e moral do Estado para desempenhar um papel integrador na sociedade e para serviços básicos aos cidadãos. A autonomia e o valor conferidos às instituições da sociedade política tornaram-se cada vez mais tênues. Como o Estado retirava-se de cena, e a sociedade política não era capaz de forjar um apoio político contínuo em torno de qualquer alternativa política, a sociedade tornou-se cada vez mais anômica, e o valor da cidadania entrou em declínio.

No curso da consolidação da democracia brasileira, Castro e D’Araújo

(2001, p. 17-18) esclarecem que, depois da queda da popularidade de Sarney, ocorrida no

final de 1986, decorrente do fracasso de seu plano de estabilização econômica (Plano

Cruzado), houve uma aproximação mais intensa de seu governo com os militares, que se

apresentavam sempre atentos às promessas conciliatórias firmadas por Tancredo Neves na

tentativa de evitar atitudes revanchistas que não interessavam às autoridades militares129. A

transição ganhava contornos mais delicados na medida em que os debates a respeito da nova

Constituição se intensificaram, oportunidade na qual os militares, apesar de revelarem “pouco 129 É relevante lembrar que os países vizinhos do Cone Sul também passavam por momentos de abertura política,

com a deflagração de demandas judiciais e morais contra os regimes de exceção.

113

ou nenhum” conhecimento mútuo de suas instituições, conciliaram esforços no sentido de

unificar os temas tidos como favoráveis às Forças Armadas, caracterizando um “lobby” que

se aproximou das principais lideranças da Assembléia Constituinte, tendo sua atuação

facilitada com a criação do bloco suprapartidário de centro-direita chamado “centrão”.

A aproximação dos militares com os políticos também foi analisada por

Linz e Stepan (1999, p. 206), destacando a influência que os primeiros exerceram em face dos

segundos, chegando, inclusive, a interferir no que seria a pioneira experiência latino-

americana de parlamentarismo, alinhavada na proposta de redação do art. 78 da carta política

que era construída. O receio dos militares residia na possibilidade de se submeter a um

parlamento e, ao mesmo tempo, perder a relação direta com a autoridade do Presidente da

República. Essa teoria explica, em parte, o perfil parlamentarista da Constituição de 1988 e

seus contrastes com o sistema presidencialista, ao final adotado e que tanto desgaste leva ao

governo cujo dirigente máximo também atua como chefe de Estado, tornando próximo do

insustentável o enfrentamento das mais diversas crises a que está sujeito o governo

(Executivo) que necessita firmar alianças para compor maiorias e conseguir o que se

convencionou designar de “governabilidade”, dificultando a realização de mudanças

significativas na cúpula do poder, na proposição de alterações legislativas necessárias e na

concepção de políticas públicas.

No complexo conjunto de temas de interesse do governo de exceção que

deixava o poder estavam a (i) manutenção do serviço militar obrigatório, (ii) a continuidade

do controle da aviação civil na Aeronáutica, (iii) a preservação da natureza, da organização e

da colocação institucional das Forças Armadas no contexto do poder político nacional em

detrimento das idéias de criação do Ministério da Defesa, (iv) a relevância de manter a Justiça

Militar e (v) a polêmica em admitir o habeas data no sistema jurídico brasileiro,

especialmente para proporcionar o acesso à documentação do serviço de informações do

114

regime de militar. Dentre as principais preocupações figurou a possibilidade de revisão dos

atos de governo praticados durante o período da ditadura, na forma de concessão de anistia

política, com o retorno à ativa dos cassados e ao pleno gozo de seus direitos, o que, segundo

os argumentos em sentido contrário, prejudicaria os princípios de hierarquia e disciplina, pois

a medida alcançaria militares e civis. Outra preocupação relevante se concentrou nos debates

em torno das atribuições constitucionais das Forças Armadas “como mantenedoras da lei e da

ordem, em caso de convulsões internas” (CASTRO e D’ARAÚJO, 2001, p. 19), abordada no

capítulo anterior.

O instituto da anistia política, previsto no inc. XVII do art. 21 da

Constituição Federal de 1988, foi aperfeiçoado na forma da Lei no 10.559, de 13 de novembro

de 2002. Antes, porém, a anistia foi prevista em atos específicos e incluída nos artigos 8o e 9o

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias daquela Carta Política. O serviço militar

obrigatório foi mantido no caput do art. 143 da Constituição, com as exceções dos §§ 1o e 2o,

que tratam do imperativo de consciência130, das mulheres e dos eclesiásticos131. Inicialmente,

a aviação civil foi preservada no âmbito de atribuições do então Ministério da Aeronáutica,

dada a competência da União prevista na alínea “c” do inc. XII do art. 21 da Constituição.

Porém, depois da inserção constitucional do Ministério da Defesa, feita pela Emenda

Constitucional no 23, de 2 de setembro de 1999, como também da transformação dos então

ministérios Militares em Comandos de Força Armada, o art. 21 da Lei Complementar no 97,

de 9 de junho de 1999, previu a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC),

estabelecendo que as competências para “orientar, coordenar e controlar as atividades de

Aviação Civil e estabelecer, equipar e operar, diretamente ou mediante concessão, a infra-

estrutura aeroespacial, aeronáutica e aeroportuária” seriam transferidas da Aeronáutica para

130 Entendido como crenças religiosas ou convicções filosóficas ou políticas incompatíveis com o serviço militar,

substituído, em tempo de paz, por prestação alternativa. 131 A isenção está restrita aos tempos de paz e condicionada outros encargos previstos em lei.

115

aquela Agência, o que se deu com o advento da Lei no 11.182, de 27 de setembro de 2005,

que efetivamente criou a ANAC, autarquia especial que integra a Administração Pública

Federal indireta, vinculada ao Ministério da Defesa132.

A natureza constitucional atribuída ao Ministério da Defesa pela Emenda

Constitucional no 23, de 2 de setembro de 1999, reforçou a subordinação civil unificada dos

Comandos das Forças Armadas a esse novo ente público133, respeitada a autoridade suprema

do Presidente da República134. Por sua vez, a Justiça Militar foi mantida no art. 124 da

Constituição Federal de 1988, porém com significativa mudança do seu campo de

abrangência ante a nova conjuntura democrática135. O habeas data – garantia civil de natureza

fundamental –, foi previsto no inc. LXXII do art. 5o da Carta Política de 1988, considerando-

se, também, o disposto no inc. XXXIII do mesmo artigo, assegurando que o poder público

não poderá negar aos cidadãos “informações de seu interesse particular, ou de interesse

coletivo ou geral”, com a ressalva daquelas “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da

sociedade e do Estado”. Como sabido, esse instituto tem a finalidade de “assegurar o

conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou

bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público” e para retificar “dados,

quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo”, nos termos

das alíneas “a” e “b” do inc. LXXII do art. 5o da Carta Política vigente.

Quanto ao processo de transição, Aguiar (1986, p. 17-18) assinala que,

diferentemente do movimento pelas eleições diretas, os debates dos temas da Constituinte não

envolveram profundamente a população, de tal modo que restou mitigado o “processo político

legítimo”, mantendo-se o mesmo procedimento que tanto marcou a história das constituições 132 Em 2006, o acidente aéreo que envolveu aeronave da empresa GOL e um jato comercial tornou público

problema vivido no setor que envolve aspectos de direção, infra-estrutura, treinamento de pessoal, fiscalização, gestão, aplicação de recursos públicos e denúncias de corrupção.

133 Cf. art. 3o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 134 Cf. art. 1o da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 135 Para aprofundar a análise sobre a Justiça Militar, sugere-se a leitura de Roberto A. R. de Aguiar (op. cit., p.

24).

116

brasileiras para ao final refletir os “interesses e projetos históricos dos grupos hegemônicos da

sociedade”. Esse traço, segundo o autor, se estende a todo o ordenamento jurídico na assertiva

de que “o direito estatal é sempre um direito de classe, é sempre uma delimitação de condutas

e comportamentos à luz de padrões ideológicos emergentes das relações de produção dos

grupos que ocupam e instituem o Estado”, ante a possibilidade de supremacia do poder

econômico da minoria em detrimento da vontade legítima das maiorias.

Na comparação entre Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Espanha, Portugal e

Grécia, Linz e Stepan (1999, p. 203) chegaram ao diagnóstico de que o Brasil enfrentou as

maiores dificuldades na consolidação da democracia. Com a observação de que os demais

países também tiveram regimes autoritários anteriores136, os autores sustentam que o principal

problema residiu na “variável da economia política da legitimidade”, assinalando que os

principais fatores que marcaram o país foram (i) a desigual distribuição de renda, (ii) os piores

níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul e centro-europeus e sul-

americanos, além de vigorar (iii) o sistema de partidos políticos menos estruturado dentre os

quatro sul-americanos analisados. Quanto ao aspecto partidário, a atualidade brasileira tem

vivenciado esforços no sentido de proporcionar maior credibilidade aos partidos políticos, ao

processo eleitoral e, por conseguinte, ao Poder Legislativo. Porém, as recentes iniciativas de

reforma política não foram capazes de, até então, diminuir o enfraquecimento da legitimidade

da representação política nas eleições de 2006. Dentre as reformas, figurou a Emenda

Constitucional no 52, de 8 de março de 2006, que, na tentativa de disciplinar as coligações

eleitorais, deu nova redação ao § 1o do art. 17 da Constituição Federal de 1988, a saber137:

136 A obra Democracia e Forças Armadas no Cone Sul (organizadores Maria Celina D’Araújo e Celso Castro.

Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000) apresenta estudo comparativo da transição dos regimes de exceção para a democracia e a inserção dos militares nessa nova ordem política, nas realidades de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.

137 A referida Emenda foi questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3685-8.

117

É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.

Interessante notar que, conforme apuraram Linz e Stepan (1999, p. 209-210;

211-213), a ineficácia do governo civil e seus efeitos na qualidade de vida das pessoas

repercutiu negativamente na consolidação da democracia no Brasil, observada a relativa

estabilidade econômica dos períodos de governos militares, com significativa influência no

grau de sensibilidade da massa do povo brasileiro notadamente quanto à preferência ou não

pelo regime democrático, ponderada a hipótese de que os mais pobres ou menos instruídos

não foram atingidos, num primeiro momento, pelos efeitos da mudança de regime. Os autores

defendem que a democracia consolidada exige um Estado capaz de regular e compor a

solução dos conflitos existentes entre os indivíduos e no âmbito da comunidade política, com

legitimidade para atuar em todo o território, como visto anteriormente. Portanto, a concepção

democrática exige a presença normativa e institucional do Estado, privilegiando-se o

exercício da plena cidadania para o fim de, na assertiva dos autores, modificar a percepção de

que a justiça não exerce seu papel de forma eqüitativa, mas sim privilegiando uns em

detrimento de outros.

Essa questão ganha maiores contornos quando observada sob o aspecto da

violência. Os recentes problemas vivenciados no Rio de Janeiro são um exemplo clássico da

precariedade da atuação do Estado e de sua perda ou diminuição de legitimidade para atuar

efetiva e continuadamente em todo o território, retratando as dificuldades de compor

consensos a respeito das formas mais adequadas de enfrentar os desafios do poder público e

de toda a sociedade. A presença do Estado não se faz apenas pela polícia, mas pela execução

permanente e interligada de corretas políticas públicas suprapartidárias nas áreas de moradia,

emprego, lazer, educação e saúde.

118

É preciso, pois, que o poder público, sob o fundamento dos princípios de

justiça, desenvolva a capacidade política indispensável para regular os conflitos e, ao mesmo

tempo, agir como regulador e integrador social. Contudo, a configuração estatal por si só não

possui a legitimidade e a força necessárias para tanto, principalmente porque depende do livre

exercício da cidadania e da aptidão dos diversos atores políticos e sociais para estabelecer

consensos a respeito de objetivos ou interesses comuns138. Aguiar (1986, p. 18), ao abordar a

interferência de grupos históricos hegemônicos na formulação do ordenamento jurídico

brasileiro, assinala que:

[...] não existe apenas o direito estatal, mas sim uma pluralidade de ordenamentos jurídicos concomitantes que se tornam direito estatal ou não, dependendo da correlação de forças de uma dada sociedade. Para clarear um pouco mais, podemos dizer que existe um ordenamento jurídico estatal hegemônico, um direito oficial que vive em contradição com anti-direitos (estes sim, direitos) daqueles que sofrem a opressão e a anatematização das leis oriundas ou permitidas pelo Estado.

Por fim, e no que objetivamente interessa ao presente trabalho, cumpre

registrar que embora a Constituição de 1988 coloque as Forças Armadas sob a autoridade

suprema do Presidente da República e submetidas aos poderes constitucionais, a criação do

Ministério da Defesa significou relevante passo na consolidação da democracia brasileira,

principalmente no que tange à transferência do poder militar ao poder civil mediante a

subordinação das Forças Armadas a um órgão civil dirigido por autoridade política também

civil. Muito ainda há para ser trilhado, notadamente na formulação da política de defesa, cujo

enfoque há de considerar a nova realidade plural e interdisciplinar de interesse da sociedade

brasileira. É o que será discutido a seguir, a par dos temas tratados até então.

138 Essa reflexão se amplia com a leitura de Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, de

Boaventura de Sousa Santos (in Introdução crítica do direito – Série o direito achado na rua, v. 1, 4ª ed., p. 42-47. Org. José Geraldo de Sousa Júnior. Brasília: Universidade de Brasília, 1993).

119

2.1.2 Ruptura com o senso comum

O que inquieta nas reflexões sobre a defesa nacional? Para melhor

compreender o significado dessa expressão, é preciso distanciá-la, com cautela, do senso

comum. O objeto de exame deve ser visto em sua completude, ponderando-o com suas

variáveis num contexto maior, além do campo no qual, inadvertidamente ou não, está

inserido. A noção predominante de defesa reside na idéia de proteção do território ou do

patrimônio nacional contra ameaças externas, efetivas ou potenciais, preponderantemente

militares. Vale lembrar que esse entendimento consta do primeiro documento normativo

formalmente editado pelo governo federal a respeito da matéria, o Decreto no 5.484, de 30 de

junho de 2005, que instituiu a Política de Defesa Nacional.

No caso de defesa contra ameaças militares externas (efetivas ou potenciais)

há de se empregar as Forças Armadas na qualidade de instituições nacionais permanentes e

regulares destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa

destes, da lei e da ordem (temas debatidos no capítulo anterior), nos termos do caput do art.

142 da Carta Política vigente, observadas, por sua vez, as prescrições contidas na Lei

Complementar no 97, de 9 de junho de 1999, com as alterações introduzidas pela Lei

Complementar no 117, de 2 de setembro de 2004139, e, ainda, os mecanismos constitucionais

que asseguram, conforme cada caso, a participação heterogênea do Conselho da República140

e do Conselho de Defesa Nacional141, cujo acompanhamento e fiscalização cabem à Mesa do

Congresso Nacional, com o concurso dos líderes dos partidos políticos142. Todavia, não

parece razoável que tema de crucial relevância e repercussão compreenda visão estreita. A

defesa não interessa somente a uma parcela da sociedade, à representação política ou ao poder

139 Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, estabelecendo

suas atribuições subsidiárias, as quais vão além da defesa contra ameaças externas militares, efetivas ou potenciais.

140 Cf. arts. 89 e 90 da Constituição Federal de 1988. 141 Cf. art. 91 da Constituição Federal de 1988. 142 Cf. arts. 140 e 141, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.

120

econômico. Também não pode servir como instrumento de manutenção de determinado

estado de coisas que reflita o interesse de grupos em detrimento do coletivo. Nesse sentido,

vai além do bélico para evitar que o confronto – armado ou não – se estabeleça: deve se

antecipar para diminuir as vulnerabilidades do país. É, na essência, medida dissuasória.

Na defesa se entrelaçam redes de conflitos inerentes às relações das pessoas

e das nações. São questões de ordem política, cultural, econômica, tecnológica, ambiental,

jurídica e ética, numa superficial tentativa de delimitar o caráter multidisciplinar do tema.

Como, então, conceber uma visão limitada de defesa? É preciso transpor o senso comum e

incentivar a participação da população na formação de um consenso que possa abstrair os

mesquinhos conflitos de interesses para, ao final, despertar na sociedade o sentimento de que

sem a cooperação social o país se torna cada vez mais vulnerável, interna e externamente. O

ponto nodal: o que se defende? O Estado, a soberania? O território é porção de faixa de terra

em dada parte do globo, onde as pessoas se fixaram, formaram sociedades e deram ensejo à

construção de nações. Tem-se a figura do Estado e sua natureza soberana. Trata-se de uma

configuração, de uma conformação jurídica. E não há oposição entre o individualismo e o

nacionalismo, pois prevalece a percepção de que a nação está historicamente vinculada ao

indivíduo como valor, na perspectiva antropológica da ideologia moderna feita por Dumont

(1985, p. 21):

Vejamos um exemplo para se apreciar a diferença entre o discurso ordinário e o discurso sociológico de que estamos tratando. Alguém opõe ao individualismo o nacionalismo, sem explicação: sem dúvida, é preciso entender que o nacionalismo corresponde a um sentimento de grupo que se opõe ao sentimento “individualista”. Na realidade, a nação, no sentido preciso e moderno do termo, e o nacionalismo – distinto do simples patriotismo – estão historicamente vinculados ao indivíduo como valor. A nação é precisamente o tipo de sociedade global que correspondente ao reino do individualismo como valor. Não só ela o acompanha historicamente, mas a interdependência entre ambos impõe-se, de sorte que se pode dizer que a nação é a sociedade global composta por pessoas que se consideram indivíduos (HH, ap. D, p. 379). É uma série de ligações desse gênero que nos autoriza a designar pela palavra “individualismo” a configuração ideológica moderna. [...]

121

A designação de ideologia é atribuída por Dumont (1985, p. 20) “a um

sistema de idéias e valores que tem curso num dado meio social. Chamo ideologia moderna

ao sistema de idéias e valores característico das sociedades modernas”. Basta, pois, um olhar

crítico para perceber que a sociedade, em suas teias de tensões e conflitos, requer soluções

que satisfaçam as expectativas de diferentes grupos. Como atender aos anseios sem a

concepção de que seja justo para todos, eqüitativamente? A chave está no consenso e na

construção de princípios de justiça, a partir de diálogos em que os diferentes possam ouvir, ser

ouvidos e ter – pelo menos em parte – suas demandas atendidas. É preciso ter uma visão geral

que, sem prejuízo do conhecimento amplo do objeto observado, afaste a arbitrariedade na

determinação do melhor ou do mais apropriado, evitando-se, assim, uma equivocada

interpretação a respeito do justo e dos valores envolvidos.

A pergunta principal: o que se defende? Se a pretensão não consiste apenas

em preservar um estado de coisas clivado pelos instrumentos de imposição e manutenção de

poder mas, ao contrário, construir um fim maior que possa contemplar o consenso de diversos

interesses, ganha sustentação a idéia de que a noção de defesa precisa transpor a proteção do

território ou do país propriamente dito. É preciso buscar um ponto de (des)equilíbrio que

compreenda os diversos interesses e condições sócio-culturais que identificam o país. Diante

desse quadro está a seguinte questão: as ameaças externas, efetivas ou potenciais, seriam

somente de natureza militar? De certo que não. Ataques militares são, em tese, o último e

mais remoto recurso a ser escolhido pelos países (CLAUSEWITZ, 2005, p. 294 e 299). A

partir dessa constatação, o método para compreender a defesa requer a abordagem do tema em

duas vertentes sem, contudo, separá-las ou estigmatizá-las em razão da complementaridade de

seus fundamentos. A primeira vertente é de natureza militar contra ameaças externas bélicas,

efetivas ou potenciais. A segunda diz respeito ao tecido social interno, com suas tensões e

122

conflitos em face dos quais o direito positivado, por si só, já não tem forças para solucionar

todas as controvérsias ou compor todos os consensos.

De certo que não se pode descuidar do aparato militar, em razão de seu

caráter estratégico, sob vários aspectos, principalmente o desenvolvimento de tecnologias que

possam, inclusive, ser aproveitadas pela sociedade. Contudo, não compreender o tecido social

e, por conseguinte, falhar nas políticas públicas sociais implica enfraquecer o país, cujos

efeitos são inexoravelmente sentidos na defesa. Cumpre esclarecer que não se trata de colocar

em oposição sociedade civil e instituições militares. Essa separação é nociva, como qualquer

outra forma de discriminação. Também não se cogita escolher um em detrimento do outro na

repartição do orçamento público. Essa fórmula está ultrapassada. É preciso que os

mecanismos de proteção militar e social encontrem pontos de convergência e de equilíbrio,

pois, infelizmente, no estágio atual da humanidade (que se reflete no seio da sociedade

brasileira), a força, a violência e a opressão ainda são instrumentos de imposição e

manutenção de poder.

Portanto, é preciso buscar a compreensão de como a defesa se desdobra e

como essa operação poderá ser aperfeiçoada. Contudo, em face da história recente do país,

marcada por anos de regime de exceção, o tema não desperta muita atenção, conforme já

mencionado. Paira um incômodo silêncio do qual decorre a sensação de que a defesa, a um só

tempo, é espúria ou restrita ao campo militar. Ocorre que não é. Na linha do pensamento de

Santos (1989, p. 32), a superação do senso comum pode ajudar nessa tarefa:

O senso comum é um 'conhecimento' evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é a de reconciliar a todo custo a consciência comum consigo mesma. É, pois, um pensamento necessariamente conservador e fixista. A ciência, para se constituir, tem de romper com essas evidências e com o “código de leitura” do real que elas constituem; tem, nas palavras de Sedas Nunes, “de inventar um novo ‘código’ –, o que significa que, recusando e contestando o mundo dos ‘objetos’ do senso comum (ou da ideologia), tem de constituir um novo ‘universo conceptual’, ou seja: todo um corpo de novos ‘objetos’ e de novas relações entre ‘objetos’, todo um sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos” (1972:30).

123

Outra pergunta: além das ameaças externas, há ameaças no campo interno?

Nos dias atuais, marcados pela velocidade e pela tecnologia, pela comunicação eletrônica e

pela extraterritorialidade das relações, é difícil distinguir a origem e a gradação das ameaças.

Indivíduos e Estados estão sujeitos e são movidos pelos mais variados conflitos de interesses,

dentre os quais os econômicos, os políticos e os sociais, inerentes ao jogo de conquista,

manutenção e retomada de poder. Intrínsecos a esses exemplos estão a criminalidade, a

violência, a miséria, a pobreza, a discriminação, o desemprego. Desse modo, já é ultrapassada

a concepção de uma política de defesa que considera e identifica simplesmente um inimigo

interno ou externo contrário aos interesses e às instituições nacionais. Andou bem o Poder

Executivo na redação que deu ao Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, ampliando os

campos de preocupação estratégica no contexto global.

O caminhar da consolidação da democracia brasileira deve centrar os

esforços no fortalecimento da sociedade vista como um todo, oferecendo-lhe condições

cognitivas de decidir os seus destinos sem a indevida atuação de grupos hegemônicos que se

julguem portadores das melhores soluções. Nesse sentido, sob o pressuposto de que a defesa

nacional não se limita à área militar, em face de seu caráter transdisciplinar, essa ruptura

conceitual exige a formação de um consenso amplo a respeito dos princípios de justiça que

nortearão o desenho e a consecução de políticas públicas afetas à defesa, sob o enfoque do

estado democrático de direito.

2.1.3 Consenso e cooperação: desafio além do programático

Não se trata de planificar o tecido social ou da pueril idéia de extinguir ou

harmonizar conflitos de interesses e de pôr fim às classes sociais, mas sim oferecer condições

mínimas para que cada pessoa possa reunir condições cognitivas para escolher o caminho que

deseja seguir. É nesse ponto que se encontra a ponte entre a política de defesa, as políticas

124

públicas e o estado democrático de direito, já que o Brasil adotou como princípios

fundamentais a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do

trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político143. Ligados a esses princípios estão os

objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de garantia do

desenvolvimento nacional, de erradicação da pobreza e da marginalização, de redução144 das

desigualdades sociais e regionais, da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem,

raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação145.

Por certo que o exercício dos princípios e objetivos fundamentais ora

mencionados deve guardar harmonia com aqueles com base nos quais o Brasil se projeta

internacionalmente, os quais não podem ser abandonados no vácuo da utopia. Ao contrário:

devem ser trazidos à realidade, experimentados e aperfeiçoados. Para tanto, é preciso vontade

política e, decisivamente, o despertar, o querer das pessoas. Embora na democracia brasileira

o poder político do povo é comumente exercido sob a forma da representação parlamentar, a

Carta de 1988 não proíbe que a população expresse livremente sua vontade e exija de seus

governantes e de seus representantes eleitos o cumprimento de promessas e de projetos de

interesse coletivo. Não obstante esses argumentos, a ruptura com o senso comum alinhavada

no tópico anterior não mitiga o valor empírico da defesa, posto que é dessa troca valorativa de

conceitos que se torna possível aperfeiçoar o entendimento a respeito de tão relevante tema.

Dessa feita, retoma-se o problema com conhecimento suficiente para compreendê-lo em sua

dimensão, conjugando-o com a gama de variáveis que lhe são correlacionadas.

Como visto, o tema precisa ser situado nos diversos campos da sociedade e

não apenas no militar. Convém enfatizar que não se trata de excluir ou diminuir a importância

143 Cf. art. 1o, I a V da Constituição Federal de 1988. 144 Deve-se interpretar essa redação valorativamente no sentido de um esforço cooperativo ao final do qual serão

eliminadas as desigualdades de acesso às oportunidades de usufruir, em condições de igualdade, as riquezas produzidas pelo país.

145 Cf. art. 3o da Constituição Federal de 1988.

125

das Forças Armadas nas questões e estratégias afetas à defesa, mas sim do concurso e da

cooperação de todos os atores do tecido social, além da atuação das instituições militares no

contexto constitucional da democracia brasileira, considerando o exercício das atribuições

subsidiárias indispensáveis ao desenvolvimento nacional146.

A partir dessas premissas, é possível tecer breves comentários a respeito de

determinados pontos do texto da política de defesa nacional que guardam sintonia com essas

percepções. Em sua parte introdutória, embora o texto da política indique as ameaças externas

como foco principal das preocupações do país, a redação esclarece que sua consecução não

poderá prescindir da participação ou do “envolvimento” dos setores militar e civil:

A Política de Defesa Nacional voltada, preponderantemente, para ameaças externas, é o documento condicionante de mais alto nível do planejamento de defesa e tem por finalidade estabelecer objetivos e diretrizes para o preparo e o emprego da capacitação nacional, com o envolvimento dos setores militar e civil, em todas as esferas do Poder Nacional. O Ministério da Defesa coordena as ações necessárias à Defesa Nacional.

Interessa refletir a respeito das expressões “capacitação nacional” e “poder

nacional”, as quais têm significado abstrato. Então, para melhor situar a argumentação,

considere-se por capacitação nacional o conjunto de riquezas e habilidades humanas

pertencentes aos bens jurídicos de todos os atores que compõem o tecido social; por poder

nacional, o conjunto de entes que exercem com legitimidade a representação dos atores

públicos e privados, observado que uma nação não se resume apenas aos órgãos

governamentais, aos políticos, à elite social, política ou dirigente e ao mercado econômico.

Estabelecidos esses parâmetros, constata-se que a política de defesa está diante de uma rede

de interesses e de tendências, cujos objetivos raramente convergem para os mesmos fins, de

maneira sincronizada ou integrada.

146 A cooperação com o desenvolvimento nacional consta do caput do art. 16 da Lei Complementar no 97, de 9

de junho de 1999. As atribuições subsidiárias foram previstas nos artigos 17 a 19, na redação dada pela Lei Complementar no 117, de 2 de setembro de 2004.

126

Dessa maneira, o condicionamento desses atores ao preparo e ao emprego

da “capacitação nacional” em prol da defesa tende a ser frágil, com efeitos na legitimidade

para a condução das ações na medida em que as regras do estado democrático de direito não

autorizam que o poder público interfira indevidamente nos bens jurídicos situados nas esferas

privada e coletiva, os quais se encontram constitucionalmente protegidos uma vez que são

garantidores do livre agir das pessoas e das instituições. Apenas situações excepcionais147

poderiam mitigar esse preceito sem, contudo, desprezar as regras de direito e os mecanismos

de controle e fiscalização que não podem ser esquecidos ou violados148.

Embora se admita que o caráter compulsório da mobilização para a

capacitação nacional está condicionado à efetiva ameaça externa de natureza

preponderantemente bélica, a coercitividade da medida, mesmo nessa hipótese, enfrentará

sérios questionamentos pois, ainda que factível, estará sujeita, no âmbito interno, a regras

específicas de contornos constitucionais, observando-se, também, os princípios que regem a

atuação do Brasil no plano internacional. Dessa forma, não seria desarrazoado dizer que o

envolvimento da sociedade ou da capacitação nacional em prol do poder nacional requer

muito mais do que instrumentos coercitivos do Estado. Essa mobilização não prescinde do

consenso baseado em princípios de justiça, a partir do qual será construída a cooperação

destinada a diminuir as vulnerabilidades do país, interna e externamente.

Não bastassem as dificuldades terminológicas e de legitimidade para

implementar medidas coercitivas ou compulsórias, o texto do Decreto no 5.484, de 30 de

147 Os procedimentos constitucionais que tratam do estado de defesa e do estado de sítio constam do art. 136 e,

especialmente, do art. 137, II da Constituição Federal de 1988. 148 Dentre os instrumentos constitucionais de fiscalização e controle das medidas afetas ao estado de defesa e ao

estado de sítio estão o funcionamento do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional, além das atribuições da Mesa do Congresso Nacional e das lideranças dos partidos políticos para o acompanhamento e a fiscalização, nos termos do disposto nos artigos 89, 91 e 140-141, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.

127

junho de 2005, atribuiu ao Ministério da Defesa149 a coordenação das ações necessárias à

consecução da política de defesa. Sabe-se que esse relevante e recém-criado ente da

Administração Pública Federal atua em linha com os demais órgãos públicos da União, ou

seja, não possui ascendência sobre outros que direta ou indiretamente formulam e executam

políticas públicas correlacionadas com o escopo da defesa como, por exemplo, segurança

pública, indústria e comércio exterior, ciência e tecnologia, ambiente e educação. Essa

circunstância poderá acarretar profundas dificuldades à plena consecução da política de

defesa, tendo em vista que seu escopo depende de políticas públicas estratégias que exigem

planejamento integrado e força política para a implementação e execução, não obstante o

Presidente da República ter consignado, no texto do ato normativo, que os órgãos e entidades

do Poder Executivo Federal devam “considerar, em seus planejamentos, ações que concorram

para fortalecer a Defesa Nacional”150.

Ocorre que os fundamentos da política de defesa se estendem a toda a

federação brasileira, fato que demonstra – uma vez mais – a interdisciplinaridade da matéria,

que transcende o campo militar e, por essa razão, exige o concurso de uma variada gama de

atores, sob a direção de uma instituição política que represente todo o complexo tecido social,

não podendo se sujeitar a instabilidades decorrentes da mudança de governos e a

contingenciamentos orçamentários e financeiros, tendo em vista sua singular natureza

continuada.

Visto que a defesa não se preocupa apenas com as ameaças bélicas e que os

princípios constitucionais adotados na Carta Política de 1988 sinalizam a opção pacífica do

Brasil no campo das relações internacionais, ganha robustez o argumento segundo o qual a

cooperação (mobilização) dos atores sociais para a defesa requer a construção de um

149 A inserção constitucional do Ministério da Defesa se deu a partir da Emenda Constitucional no 23, de 2 de

setembro de 1999. Antes, porém, foi tratado na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. 150 De acordo com o disposto no art. 2o do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

128

consenso. Já não é suficiente a conscientização dos segmentos da sociedade a respeito da

importância da defesa. É preciso compreender, compor e aceitar seus fundamentos.

Não há lugar para impor dever sem que se tenha o sentido de unidade

construído a partir do consenso pela cooperação. Pode-se dizer que a contrapartida está na

possibilidade de conhecer e participar na qualidade de formulador. Principalmente em tempos

de paz, o consenso do qual decorrerá a cooperação (voluntária) não surgirá sob a simples

forma de um dever, mas como uma atitude decorrente da aceitação de princípios que orientem

as condutas de todos, a compreender as pessoas, as instituições e o Estado. É sabido que os

conflitos de interesses estão em movimento na sociedade e que decorrem da formação de

grupos voltados a um ou mais objetivos raramente convergentes ou integrados ao mesmo fim.

Logo, a defesa na democracia não pode escapar da seguinte reflexão: como compatibilizar

vários interesses? Pensar a política de defesa sob o fundamento de princípios de justiça que

conduzam o Brasil a efetivamente praticar a cooperação é perfeitamente compatível com os

valores e a realidade brasileira. Entretanto, é preciso vontade política e desprendimento dos

projetos pessoais de poder. Uma política de defesa distante da construção de consenso voltado

à cooperação pode levar apenas a intenções dificilmente realizáveis e situadas no simbolismo

programático.

Importa ponderar o seguinte: será possível preservar bens jurídicos coletivos

sem a formação de consensos? Não em sua plenitude. A questão ganha maior complexidade

quando se verifica que a política de defesa tem, dentre seus objetivos, a contribuição para a

preservação da coesão e da unidade nacionais, conceitos de espectro igualmente amplos,

assim como “capacitação nacional” e “poder nacional”, a partir dos quais a construção de um

consenso para a cooperação se revela imprescindível, sob pena de o escopo da defesa não

ultrapassar a barreira programática, se inclinar para a subjetividade ou – pior – atender a

interesses de grupos que não representam, na integralidade, o povo brasileiro. Essas breves

129

ponderações a respeito de alguns aspectos da política de defesa são suficientes para sustentar

o argumento segundo o qual é necessário estabelecer um consenso de caráter cooperativo.

Abstraídos os aspectos de ordem cultural, com bom senso e sensibilidade é

possível utilizar as contribuições de Rawls (2002) quanto à formação de uma estrutura básica

da sociedade como alternativa para a discussão da idéia de justiça, construindo-se o consenso

almejado. Nesse sentido, é necessário tratar o justo ou mesmo o direito não apenas como uma

circunstância que se alimenta exclusivamente da controvérsia, da disputa, da contraposição de

interesses. O justo e o direito podem ser vistos a partir de argumentos compreensivos e

agregadores a partir dos quais os homens venham a reconhecer as razões e as diferenças de

seus semelhantes e, por conseguinte, encontrar um ponto de equilíbrio (ou desequilíbrio)

capaz de proporcionar o bem da vida (material ou imaterial) sem, contudo, promover um mal

necessário, como a violência legalizada151.

A atividade de defesa requer o atendimento das necessidades de ordem

militar, dentre as quais o desenvolvimento de estratégias compatíveis com os interesses da

sociedade brasileira e os princípios constitucionais que regem a atuação internacional do

Brasil, além da aquisição de tecnologias que correspondam às necessidades geopolíticas, dos

recursos que possibilitem o exercício das competências e atribuições das Forças Armadas

num sistema integrado que conduza à melhor utilização dos meios. A defesa não pode dividir

o país em campos militar e civil. É preciso convergir observando os contornos jurídicos da

atuação militar sem, contudo, desvirtuar sua limitação constitucional condicionada às

151 Luis Eduardo de L. Abreu tem um ponto de vista muito interessante: “Rawls só fará sentido para nós se

reconhecermos nossas diferenças. Mas vejo agora que isso não basta. Rawls nos coloca diante do seguinte dilema que, num certo sentido, resume o projeto do equilíbrio reflexivo enquanto um exercício de filosofia crítica: isso é bom? Acreditamos sinceramente que essa é a boa maneira de sermos enquanto coletividade? Por certo, em toda a nossa ideologia política, há coisas com as quais não concordamos, outras que acreditamos importantes, talvez mesmo constitutivas da nossa tradição – aquilo que nos define como identidade coletiva e que legitimamente queremos manter. Se, como Rawls propõe, ajustar as nossas convicções a princípios pode modificar a nossa maneira de agir no mundo, não sei dizer. Mas talvez não tenhamos alternativa senão defender essa possibilidade” (Qual o sentido de Rawls para nós? In Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal-Secretaria Especial de Editoração e Publicações-Subsecretaria de Edições Técnicas, n. 172, outubro-dezembro 2006, p. 149-168).

130

instituições democráticas e ao poder político civil. O desafio maior da política de defesa é

superar o programático das políticas públicas que lhe dão sustentação e convencer a sociedade

do caráter transdisciplinar de seus fundamentos. O Ministério da Defesa tem dado importantes

passos nessa complexa tarefa152.

De todo o modo, não se pode deixar de considerar que a defesa nacional é

de conteúdo jurídico e não se submete apenas ao direito positivado, mas também a valores

metajurídicos. Na forma como tratada no presente trabalho a defesa se aproxima da noção de

alteridade153, pois uma política dessa magnitude deve considerar o outro, o diferente, no

território nacional ou no estrangeiro, Estado ou nação. Provavelmente a defesa, tomada como

é pela maioria das nações, decorra dessa odiosa falha de não reconhecer o outro como

diferente, de não partilhar pelo simples ato de humanitariamente partilhar, de temer que a

prosperidade será diminuída ou arrancada à força, de interferir para manter, de manter para

impedir a prosperidade do outro.

Dessa feita, é preciso refletir a respeito do exercício do poder político, da

melhor face do significado da representatividade política, da mais adequada e imparcial

escolha, da ponderação dos argumentos do jogo do poder, da lealdade na confrontação das

forças políticas e do sentimento de que o Estado é uma construção formada por pessoas que

podem – e devem – agir conjunta ou separadamente para o bem. É possível, sim, mudar o

atual estado de coisas. Como fazer? Um caminho: ponderar o conteúdo valorativo dos

postulados legais que orientam o caminhar do país e da percepção do que é justo.

Compreender a política de defesa pode ser uma boa alternativa para

aperfeiçoar a consolidação da democracia brasileira sem os vícios do passado e na busca por

um consenso razoável que proporcione condições favoráveis para que a sociedade brasileira – 152 Convém destacar, entre outras ações, os debates que deram ensejo à coletânea Pensamento brasileiro sobre

defesa e segurança. Disponível em <www.defesa.gov.br>. 153 Sugere-se a leitura do artigo Alteridade e rede no direito, de Roberto A. R. de Aguiar (in Revista Jurídica da

Casa Civil da Presidência da República, Brasília, v. 8, n. 82, p. 9-32, dez./jan., 2007).

131

e não somente o Estado como representação do poder – estabeleça os critérios de justiça com

base nos quais sejam dadas iguais oportunidades de escolha, demonstrando, destarte, a

importância de fortalecer o tecido social, cujos efeitos serão sentidos no campo externo,

tornando o país menos vulnerável e funcionando, inclusive, como fator de dissuasão. A defesa

começa pelo reconhecimento das desigualdades excludentes internas e pela construção da

cooperação desinteressada decorrente de um consenso sobre o justo para que políticas

públicas possam efetivamente surtir o efeito político esperado: oportunidades de prosperidade

para todos, tomando por base os conceitos de segurança e defesa elaborados por especialistas

da ONU e incorporados ao texto do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

2.2 Defesa e segurança na política brasileira

No percurso da consolidação democrática transitam e estão entrelaçadas as

percepções de defesa e segurança. A complexidade desses temas se amplia quando

comparados os conceitos154 contidos na política de defesa nacional alinhados com os

princípios estabelecidos pela ONU, assinalando que o conceito de segurança foi ampliado ao

longo do tempo, passando da simples idéia de confrontação entre países, de natureza de

proteção contra ataques externos, a abranger, entre outros, os campos político, militar,

econômico, social e ambiental. Nessa linha, a compreensão de segurança possibilitou a

inclusão de questões e problemas que dizem respeito à defesa civil, à ordem pública e às

políticas econômicas, educacionais, ambientais e de saúde. Ao distinguir segurança de defesa

o Poder Executivo Federal assinalou que a primeira “é a condição em que o Estado, a

sociedade ou os indivíduos não se sentem expostos a riscos ou ameaças, enquanto que defesa

é ação efetiva para se obter ou manter o grau de segurança desejado”155. O Decreto no 5.484,

de 30 de junho de 2005, ainda menciona a conclusão a que chegaram os especialistas

154 Incorporados no item 1.4 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 155 Cf. item 1.3 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

132

convocados pela ONU que, reunidos em Tashkent, em 1990, definiram segurança como “uma

condição pela qual os Estados consideram que não existe perigo de uma agressão militar,

pressões políticas ou coerção econômica, de maneira que podem dedicar-se livremente a seu

próprio desenvolvimento e progresso”156.

Da leitura desses conceitos, depreende-se que segurança e defesa devem ser

considerados como instrumentos indissociáveis na formulação de políticas e na aplicação do

direito. Pode-se até admitir que seus atores figurem em cenários diferentes, desde que

reconhecida sua interdependência. Em tese, a segurança consiste numa dada condição sob o

fundamento da qual o país estaria protegido política e institucionalmente e, portanto,

legitimado a promover, livremente, seu desenvolvimento e progresso. Por outro lado, a defesa

tem a característica de concretizar medidas e ações do Estado destinadas a combater ou a

prevenir a ocorrência de ameaças predominantemente externas, de natureza militar ou não.

Quais as razões que fundamentam essa conceituação? O quadro abaixo, elaborado com base

no texto do ato normativo, auxilia a compreender a terminologia adotada:

Segurança Defesa

preservação da soberania

defesa da soberania

preservação da integridade territorial

defesa do território

realização de interesses nacionais

defesa dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas,

potenciais ou manifestas

garantia aos cidadãos do exercício dos

direitos e deveres constitucionais

156 Cf. item 1.3 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

133

Oportuno observar as semelhanças existentes entre os bens jurídicos

protegidos nos conceitos de segurança e defesa. A idéia de soberania surgiu no século XVI

como fundamento do Estado absolutista, contrapondo-se aos demais poderes existentes, ditos

intermediários, então exercidos por senhores feudais. Na concepção moderna, a soberania

constitui a essência do próprio Estado que se origina soberano e, em tese, independente.

Conforme abordado no capítulo inaugural, o valor da soberania é destacado e está presente

nos conceitos de segurança e defesa, a significar o “poder de mando de última instância numa

sociedade politicamente organizada”, traduzindo-se, internamente, na supremacia do Estado

sobre os demais entes e organizações; externamente, representa a independência frente aos

demais (CARVALHO, 2002, p. 243).

Na linha do que estabelece o Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005,

enquanto a segurança visa a preservar a soberania, a defesa nacional se preocupa com a defesa

desse mesmo instituto. A legitimidade da segurança e da defesa depende da soberania. Sob o

pressuposto de que o Brasil é um país soberano, as políticas públicas e o direito buscam a

preservação dessa situação jurídica. Portanto, a defesa da soberania restará inevitavelmente

prejudicada se forem poucos ou insuficientes os instrumentos que assegurem a segurança

interna. A propósito, a idéia de Estado soberano se situa no plano da personalidade jurídica

internacional que, no direito das gentes, é de natureza originária. “O Estado, com efeito, não

tem apenas precedência histórica: ele é antes de tudo uma realidade física, um espaço

territorial sobre o qual vive uma comunidade de seres humanos” (REZEK, 1991, p. 157).

Outros dois bens jurídicos presentes nos conceitos de segurança e defesa

dizem respeito ao território e aos interesses nacionais. A noção de território está intimamente

ligada à concepção de Estado soberano. Preservar a integridade territorial (segurança) e

defender o território nacional (defesa nacional) são atribuições que diferem em apenas um

ponto: a ameaça externa, potencial ou manifesta, situada no campo da defesa. Esclareça-se

134

que a ameaça externa não precisa ser de natureza bélica ou militar. Tampouco a contra-

ofensiva a essa ameaça ou efetiva agressão deve adquirir a forma exclusiva de medidas ou

ações militares. No que tange aos interesses nacionais, enquanto a segurança busca a

realização desses interesses, a defesa se preocupa com a sua preservação em face de ameaças,

“preponderantemente externas, manifestas ou potenciais”157. Aqui, outra semelhança em

relação ao bem jurídico protegido e defendido: os interesses nacionais. Mas, o que vem a ser

interesses nacionais? Por certo, dizem respeito a toda sociedade. Implicariam, por outro lado,

uma insustentável distorção caso retratassem os interesses do chefe de Estado, do partido

político dominante, dos ricos ou dos pobres. Os interesses nacionais devem corresponder aos

anseios de democracia, justiça, desenvolvimento e progresso da sociedade brasileira. Todavia,

é difícil precisar se essas impressões coletivas, desinteressadas e de natureza cooperativa estão

arraigadas no seio dos valores daqueles que influenciam e que tomam decisões vinculatórias,

ou se constam expressamente de um diploma legal, o que torna esse bem jurídico alvo de

idiossincrasias inerentes à transitoriedade do poder, admitindo-se a possibilidade de apenas

refletir o comportamento da sociedade.

Ao tratar do ambiente internacional, a política de defesa assinala,

sucintamente, que os atuais desafios externos são complexos e imprevisíveis, diferentemente

daqueles existentes na confrontação ideológica bipolar vivenciada no período da Guerra Fria,

depois da Segunda Guerra Mundial. Estando praticamente descartado o conflito generalizado

entre Estados, a denominada ordem mundial sofre a ameaça de controvérsias que, de longa

data, estão presentes na história da humanidade, embora relegadas a segundo plano: os

conflitos étnicos e religiosos, os nacionalismos doentios e a fragmentação de Estados158.

Convém tecer alguns apontamentos a respeito da guerra.

157 Cf. item 1.4, II do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 158 Cf. item 2.1 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

135

Grotius (2004, p. 72), valendo-se de Cícero, define guerra como “um debate

que se resolve pela força”, assinalando:

O uso, porém, acabou por designar por esta palavra não uma ação, mas um estado. Assim, a guerra é um estado de indivíduos, considerados como tais, que resolvem suas controvérsias pela força. Esta definição geral compreende todos os tipos de guerra [...]. Não excluo sequer a guerra privada que, sendo mais antiga que a guerra pública e tendo incontestavelmente a mesma natureza, deve ser designada, por esta razão, por este único e mesmo nome que lhe é próprio. [...] Também o uso deste termo não destoa com esta significação mais ampla. Se por vezes a denominação de guerra é unicamente reservada à guerra pública, isto não constitui um obstáculo. De fato, é coisa certa que o nome do gênero é muitas vezes afetado de maneira particular quanto à espécie, especialmente quando esta é de categoria superior. Não incluo a justiça em minha definição porque o objetivo específico desta discussão é pesquisar se há guerra que seja justa e que guerra seria justa. [...]

Por sua vez, Mello (1996, p. 118-119), ao tratar da evolução do tema na

doutrina e prática internacionais, elucida que o “direito à guerra” era tido como um atributo

dos poderosos, dentro do Estado, de maneira que essas pessoas se consideravam legitimadas a

declarar a guerra, que tinha conotação privada. No final do século XVI, porém, o conceito de

guerra foi modificado, passando o Estado à condição de titular dessa prerrogativa, como

pressuposto da soberania a ser imposta:

Atualmente, com a renúncia ao uso da força nas relações internacionais (Pacto Briand-Kellog, 1928 e a Carta da ONU) para citarmos apenas o primeiro grande texto internacional e o mais importante tratado vigente sobre esta matéria, os estados perderam o “jus ad bellum” para iniciarem uma guerra, mas o conservam quando se trata de uma guerra no exercício da legítima defesa. O monopólio do uso da força armada é atualmente da ONU e neste caso não se utiliza a palavra guerra. Tem-se usado diferentes expressões como “ação de polícia”, ou a de “operação de Paz”, sendo esta última a mais consagrada.

Dessa maneira, neste século as potenciais ameaças, segundo a política de

defesa brasileira, dizem respeito a disputas por áreas marítimas, pelo domínio aeroespacial e

por fontes de água doce e de energia, cuja escassez tende a se acentuar cada vez mais. Além

desses bens, inerentes à noção de soberania, as fronteiras também podem constituir motivo de

136

conflitos em decorrência da ocupação dos últimos espaços terrestres159. Suscita-se, por

conseguinte, que questões e interesses antagônicos decorrentes das medidas afetas à proteção

desses bens possam abrir caminho a ingerências em assuntos internos do país, circunstância

capaz de estabelecer quadros de instabilidade. Esse ponto é de extrema delicadeza porque o

Brasil não pode perder legitimidade para o trato e a tomada de decisões sobre assuntos de

natureza política, econômica, social e de uso e exploração dos recursos naturais localizados

em seu território, sob pena de diminuir suas prerrogativas de Estado soberano, em face da

atuação de outros países e organizações internacionais que venham a pleitear ou até mesmo

impor condutas ao país. Como evitar essas ingerências, cujos efeitos se estendem à segurança

e, por conseguinte, à defesa? A alternativa mais próxima da realidade reside na prática de

políticas públicas efetivamente voltadas aos interesses nacionais sem, contudo, deixar de

considerar as composições multilaterais, notadamente as de cunho regional, sob o fundamento

dos princípios que regem a concepção de comunidade latino-americana de nações160.

Do cotejo entre os principais bens jurídicos considerados nos conceitos de

segurança e defesa, o que diz respeito à garantia dos cidadãos ao exercício dos direitos e

deveres constitucionais é o único não textualmente abrangido no conceito de defesa nacional.

Entretanto, é o mais importante. Somente quando o poder público, mediante políticas públicas

eficientes e duradouras, dotar de efetividade a plena garantia ao exercício de seus direitos e

deveres constitucionais, poderá a nação se desenvolver e progredir livremente, possibilitando

a segurança desejada. Todavia, impende observar que o efetivo exercício dos deveres e

direitos constitucionais começa pelo cumprimento, por parte de todos os atores políticos e

sociais, dos objetivos fundamentais da República. Não obstante, os objetivos fundamentais

constituem condição sem a qual esses postulados não passarão de um protocolo de intenções.

Assim, a segurança – razão de ser da defesa – depende do esforço e da cooperação de todos.

159 Cf. item 2.1 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 160 Cf. parágrafo único do art. 4o da Constituição Federal de 1988.

137

As políticas voltadas ao desenvolvimento e ao progresso do país são as mais

importantes ferramentas de que deve dispor o poder público para prover a segurança e, por

conseguinte, assegurar a defesa. A precariedade e a ausência de políticas direcionadas à

educação, à saúde, à moradia, ao acesso à justiça, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção

e ao uso racional dos recursos naturais são tão prejudiciais quanto as ameaças externas,

potenciais ou manifestas, bélicas ou políticas. Em termos simbólicos, é o país abrindo suas

próprias feridas, tornando-se cada vez mais frágil, vulnerável e com diminuído poder

dissuasório. Se desprovido de resolver seus problemas internos e de bem usufruir os

potenciais de seu território, abre-se margem a ingerências externas muitas vezes dissimuladas

em políticas de cooperação. Portanto, torna-se indispensável estabelecer a interdependência

entre a política de defesa e as demais políticas públicas destinadas à garantia dos direitos e

garantias fundamentais (compreendidas no conceito de segurança) com o propósito de

demonstrar que as ações e os mecanismos afetos à defesa estão condicionados à efetividade

da segurança – no sentido de bem-estar social –, e realizáveis, por conseguinte, por meio dos

postulados da democracia.

Em que pese o constituinte de 1988 tenha atribuído à União a tarefa de

assegurar a defesa nacional, a Carta Política em vigor silencia a respeito dos princípios e dos

procedimentos correspondentes, notadamente em tempos de paz e de normalidade públicas161.

Como, então, no campo político, devem ser construídas e praticadas políticas que digam

respeito, direta ou indiretamente, a esse relevante tema? Qual o papel e a legitimidade dos

atores envolvidos e como se opera a participação da sociedade? Poderá a União, ou melhor, o

Estado, prover, por si, a defesa nacional? Não. Mas, para melhor compreender essa ausência

de legitimidade, é preciso estabelecer o distanciamento do pragmatismo e do positivismo que

tendem a conduzir ao mecanicismo das respostas prontas e das propostas que optam pela via

161 Os comentários a respeito das situações extraordinárias que envolvem o estado e o estado de sítio serão

apresentados na abordagem da mobilização nacional contida no neste Capítulo.

138

oblíqua, do discurso evasivo ora visionariamente deslocado da realidade ora contaminado por

argumentos parciais de interesses corporativos. Surge desse cenário um delicado problema

político-estratégico, intrínseco às estruturas de poder e, por conseguinte, da arquitetura de

políticas públicas e de instrumentalização do direito. Esse problema é permeado por conflitos

que devem ser enfrentados e compreendidos para o fim de, no mínimo, desvelar que o pensar

a defesa requer a sensibilização a respeito das mazelas sociais brasileiras, o que constitui um

relevante instrumento de poder político para a condução de políticas públicas e, por

conseguinte, de vulnerabilidade cuja repercussão atinge diretamente os fatores dissuasórios de

relevância para a defesa e para a segurança.

Como dito, a política de defesa nacional concebida e formalizada na forma

do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, é o primeiro ato normativo formal, de natureza

jurídica, que trata do assunto. Porém, o decreto autônomo162 é instrumento de que dispõe o

Presidente da República para orientar a condução dos órgãos que lhe são subordinados,

quanto à organização e ao funcionamento da Administração Pública, desde que não implique

aumento de despesa. Assim, via de regra, o decreto editado ao amparo do art. 84, VI, “a” da

Constituição Federal de 1988 não decorre do resultado de debates políticos, abertos a toda

sociedade, como é o caso do instrumento que serviu para aprovar a política de defesa. Por

essas razões, é pertinente ponderar que seu conteúdo está sujeito a críticas quanto à

efetividade total ou parcial de seus fundamentos, de seus efeitos práticos. Esse aspecto ganha

maior relevância na medida em que, em sua formulação, vêm à tona as seguintes

inquietações: (i) a presumida falta ou a diminuta participação do Legislativo (na qualidade de

representante da soberania popular) e de setores da sociedade (atores públicos e privados)

interessados e com responsabilidades pelo seu desenho e implementação, cujas repercussões

refletem na articulação e na coordenação das políticas públicas intrínsecas à defesa; e (ii) a

162 Não regulamenta texto de lei, ou seja, seus efeitos são limitadíssimos.

139

aprovação de uma política pública essencial sem o correspondente aporte de recursos

orçamentários e financeiros indispensáveis à confiabilidade, aceitação e continuidade das

correspondentes ações.

É, pois, nesse cenário que se enuncia o problema político-estratégico de

eficácia da política de defesa nacional, cujo tema, de extrema relevância, precisa ser elevado

nos debates da agenda política brasileira e, também, na percepção da sociedade, para o fim de

construir uma atitude de cooperação com a participação de todos, desmistificando suas

variáveis que interferem nos temas de interesse coletivo.

2.2.1 Problema político-estratégico

Primeiramente, é preciso enfatizar que a idéia de defesa parte do

pressuposto da ameaça efetiva ou potencial. Essa concepção se aplica a uma variada gama de

relações jurídicas. A ameaça, por sua vez, tem muitas facetas. Pode ser externa ou se originar

no território nacional, sem desprezar sua ocorrência simultânea. Porém, em ambas as

hipóteses têm por causa fatores políticos, econômicos e sociais, os quais resultam, por fim, na

consecução de interpretações sobre o que é ou não justo. Apesar de formados por homens, os

países não têm a prioridade de proporcionar, indistintamente, bem-estar a toda humanidade.

Das demandas por riqueza é gerado o sentimento de perda ou de conquista,

do qual decorre a necessidade de proteção que, por sua vez, move os países, os governantes e

as pessoas a defender seus próprios interesses, que se dividem e se confrontam nas disputas

por parcelas de poder e influência. Dessa feita, a defesa se manifesta nas medidas para manter

o estado de coisas que, de um lado, atende às pretensões daqueles que dominam o cenário

político e, de outro, conforma aqueles que estão sujeitos ou se deixam sugestionar por esse

jogo político, de poder. A defesa, portanto, tem origem na riqueza construída para acumular e

não para repartir, no esquecimento da parceria, no perdimento de sentimentos fraternos e no

140

uso legalizado da força para proteger, dominar, conquistar, influenciar e agir com violência

(EISLER, 1989, p. 74-92 e 173).

Nos contornos do presente trabalho a melhor compreensão do tema passa

pela leitura de algumas das manifestações que antecederam a edição do texto da política de

defesa nacional. Para tanto, as reflexões que a seguir serão postas levarão em conta parte do

conteúdo dos seminários “Política de Defesa Nacional para o Século XXI” e “Política Externa

do Brasil para o Século XXI”, realizados em agosto de 2002 pela Comissão de Relações

Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. A propósito, é cabível considerar

esses encontros como o esforço inicial de conscientização e de convencimento, embora com

efeitos limitados. Mas, é bom deixar claro que a participação do Legislativo naqueles eventos

não se deu sob a efetiva forma de representação da soberania popular, ou seja, a plenitude da

legitimidade política formal de que se reveste o processo legislativo163 na elaboração de leis e,

com efeito, na formalização de medidas vinculatórias.

Segundo Quintão (2002, p. 21), o cenário de segurança e defesa mundiais

sofreu significativa mudança em decorrência dos atentados terroristas contra os Estados

Unidos, em especial os episódios de 11 de setembro de 2001. Nesse sentido, o combate ao

terrorismo foi elevado na prioridade da política norte-americana com reflexos nos demais

países, sustentando, assim, que a visão de defesa e segurança recebeu conotação muito mais

hobbesiana, sobrepondo-se aos ideais kantianos de um estado de paz permanente. De fato,

depois dos atentados de 2001 aumentou o sentimento de desconfiança dos EUA contra boa

parte da comunidade internacional, no exterior e em seu próprio território. Mas, como sabido,

esse clima de suspeição está associado a outro aspecto: a repugnância contra a política norte-

americana. Instados por essas circunstâncias, países foram obrigados a adaptar suas políticas

às medidas de prevenção e coerção instauradas e, por conseguinte, reforçar suas posições

163 No rito dos artigos 59 a 69 da Constituição Federal de 1988.

141

estratégicas com o propósito de, ao mesmo tempo, garantir proteção em face das medidas

norte-americanas, de seus aliados e dos terroristas, na tentativa de demonstrar que não estão

alinhados com atitudes contrárias aos valores daquele país ou com as práticas do terror e que,

por razões de soberania, também são capazes de evitar ataques daquela natureza. Ademais,

corre pela via oblíqua o receio de que a dominação americana se amplie pelo uso da força.

A propósito, Mead (2006, p. 33-34) demonstra que o poder dos EUA vai

além do uso ou da demonstração da força militar, argumentando que a configuração do poder

norte-americano se estrutura a partir da coerção (militar e econômica) e da não-coerção

(cultural), desvelando que o primeiro interessa à “ordem mundial americana”, pois “preserva

o sistema, porque influencia os outros países a gostarem da administração norte-americana e

apoiá-la por livre-arbítrio”. O poder militar é “vigoroso”, enquanto o econômico é “pegajoso”

porque “seduz tanto quanto coage”. O autor ainda distingue o poder não-coercitivo em

“encantador” e “hegemônico”, este mais coercivo do que as idéias na medida em que “se

origina, principalmente, da interação entre o poder vigoroso, o pegajoso e o encantador,

formando, ao final, “a ordem mais artificial e arbitrária desde a Segunda Guerra Mundial –

algo como uma estrutura natural, desejável, inevitável e permanente”.

A respeito da mudança de postura no cenário de segurança e defesa, é

valioso o apontamento feito por Fernandes (2002, p. 77-79):

Para captar a profundidade da mudança atualmente em curso na política mundial, é necessário recuar um pouco no tempo e acompanhar a evolução da agenda externa do governo norte-americano após o colapso do antigo campo socialista. O triunfalismo de Washington se traduziu, na época, na proposição de uma “Nova Ordem Mundial” para substituir a velha ordem bipolar da Guerra Fria. Este conceito foi incorporado como eixo estruturador da política externa norte-americana pelo Presidente George Bush (pai) às vésperas da Guerra do Golfo, em 1990. A proposição básica era de que os variados fóruns multilaterais do sistema da ONU deveriam se tornar o núcleo ordenador de uma nova ordem mais estável no mundo, superando as tensões e antagonismos que haviam marcado a Guerra Fria.

142

[...] Os atentados de 11 de setembro forneceram o pretexto para o atual Presidente George W. Bush elevar a um novo patamar esta “opção preferencial” pelo unilateralismo e pelo recurso a uma política de força e coação abertas. Instrumentalizando um clima de histeria e pânico que se formou na sociedade americana após os atentados – fruto de sua repentina e traumática constatação de que a ampla superioridade tecnológica e militar não era garantia de invulnerabilidade o novo governo Bush consagrou a busca da “segurança” (com todas as suas implicações) como o valor/objetivo supremo da política doméstica e externa do Estado norte-americano. Isto implicou conferir nova centralidade para os mecanismos e instrumentos do exercício direto da sua dominação pela força no sistema internacional, em detrimento da opção predominante anterior pelo exercício da sua hegemonia via recursos “indiretos” de poder estrutural.

A análise desses apontamentos revela que a superioridade tecnológica e

militar dos EUA não é suficiente para proporcionar defesa e segurança a um dado país ou

nação e, tampouco, à humanidade. É preciso fortalecer e cultivar a paz, mediante o

reconhecimento das diferenças e da diversidade dos aspectos ideológicos e culturais que

identificam e distinguem os povos. Lamentavelmente o etnocídio ainda é muito comum,

embora revestido de outra roupagem. Políticas públicas sérias constituem uma alternativa

eficaz para esclarecer a sociedade dos limites de atuação global na busca do consenso e da

cooperação, na tentativa de conciliar e minimamente equilibrar os interesses nacionais e

internacionais com os mecanismos de proteção de que é merecedora toda a humanidade – e

não apenas um país ou grupo de países, de corporações ou de indivíduos, estejam do lado

ocidental ou oriental do planeta. Mas, quem faz essas escolhas e a partir de quais

pressupostos, de quais princípios? A democracia levada a sério ainda representa o melhor

caminho.

Esclareça-se, por oportuno, que não é objetivo do presente trabalho

fomentar sentimentos contrários ao governo ou à população dos EUA. Ocorre que os aspectos

de política de defesa são captados pelo que circunda e motiva a maior potência mundial,

econômica e militarmente. Os fundamentos das relações internacionais de cada país

determinam o maior ou menor grau de instrumentalização da força legalizada na consecução

143

de objetivos políticos no campo externo (e também no interno), funcionando como fator de

dissuasão e persuasão complementar, em paralelo ou sob a forma de escudo para as ações ou

omissões diplomáticas. No caso do Brasil, os princípios constitucionais não autorizam a

satisfação de interesses políticos ou econômicos pelo uso travestido das Forças Armadas. Não

obstante, deve-se reconhecer que o campo militar guarda estreitos laços com o campo

político, sendo possível, até, a utilização do primeiro pelo segundo, na ponderação sempre

atual de Clausewitz (2005, p. 294 e 299), para quem a guerra é instrumento da política164:

O pressuposto a respeito da política é que ela junta e harmoniza em si quaisquer assuntos racionais, desde todos os interesses da administração interna até os da humanidade, porque nada é além de mero mandatário e expoente de todos esses interesses diante dos outros Estados. Sob nenhuma circunstância poderá a arte da guerra ser considerada guia da política, que só pode aqui ser vista como a representante dos interesses em geral de toda a comunidade. Por essa razão, não nos diz respeito, aqui, o fato de a política poder tomar uma direção equivocada, e, com deslealdade, defender os fins ambiciosos, os interesses privados ou a vaidade dos governantes. [...] a guerra é uma ferramenta da política; precisa inevitavelmente mostrar o seu caráter, precisa avaliar-se pela sua escala. A condução da guerra, nos aspectos que lhe são inerentes, é a própria política que, apesar de impor a espada em lugar da pena, não vai, por essa razão, deixar de pensar de acordo com as suas próprias leis.

Nessa ordem de idéias, a atuação dos países não se circunscreve ao seu

limitado espaço territorial. A tentativa de não perder a soberania se projeta além das

fronteiras, influenciando e sendo influenciada. Não obstante, as sociedades precisam perceber

o que as rodeia, o que lhes pode potencial ou efetivamente afetar, ameaçar. Desse exercício

resultará a demonstração do que internamente precisa ser corrigido e melhorado. Pertinente,

pois, a análise de Guimarães (2000, p. 503) a respeito da geopolítica e da guerra para os EUA:

A geopolítica, como exercício de definição de objetivos nacionais na esfera internacional, análise da importância relativa de influir, controlar e defender certas regiões para alcançar aqueles objetivos e de elaboração de estratégias diplomáticas e militares em tempo de paz e de guerra a serem desenvolvidas no confronto ou em cooperação com os demais Estados, é preocupação central e permanente da sociedade e do governo norte-americanos. Em

164 João Paulo Soares Alsina Jr. tece abordagem interessante a esse respeito (Política externa e política de

defesa no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2006).

144

conseqüência, deve e tem de ser de central interesse para os países que se encontram no centro do sistema e, ainda mais, para os que se encontram na periferia e que são soberanos sobre as regiões que são alvo daquelas estratégias americanas de ação. Os territórios onde se encontram os centros de produção e de consumo existem sempre em espaços geográficos específicos mas variam de importância como fontes de matérias-primas estratégicas, como mercados consumidores, como rotas de acesso e de comunicação, como origem de ameaças, e por essas razões a geopolítica tem de estar presente para a definição de prioridades geográficas de defesa do sistema, inclusive com instrumentos militares. A defesa da gigantesca e complexíssima malha mundial de interesses e conexões de que depende o funcionamento da economia norte-americana no próprio território dos Estados Unidos, e portanto o bem-estar e a segurança da sociedade americana, tem de ser feita de forma permanente e atenta através de estratégicas ideológicas, políticas e econômicas e, em último caso, militares, com o uso da força.

Essas conjecturas guardam consonância com as advertências de Quintão

(2002, p. 23-24), para quem o Brasil tem a necessidade de encontrar, para a defesa de seus

interesses, mecanismos que garantam seu próprio fortalecimento, de modo a se tornar

respeitado e com legitimidade para atuar “com mais desenvoltura nos cenários regional,

hemisférico e mundial”. Significa dizer que o Brasil, caso seja considerado institucionalmente

instável, além de perder sua representatividade na América do Sul, também poderá sofrer

ingerências externas, nas seguintes palavras:

A elevação gradativa de seu desempenho econômico e, em conseqüência, uma maior presença brasileira no plano global deverão estar acompanhados de um correspondente aumento do nosso perfil estratégico. Disto depreendemos que, no plano regional, é necessário o incremento do relacionamento com os países vizinhos, no campo da defesa, como conseqüência natural da aproximação política e econômica. A cooperação para a construção de uma visão sul-americana de defesa elevaria a capacidade dissuasória do continente diante de outros países ou blocos. Assim, o Brasil deve assumir uma postura mais atuante, sendo explícito em suas intenções de conduzir a concertação sul-americana em termos de defesa. Nas ações preventivas de defesa, deverá ser considerada a criação de mecanismos bilaterais de cooperação com os países da América do Sul, com o propósito de intensificar as medidas de confiança mútua e ampliar a interação político-estratégica.

145

Note-se que as estratégicas não se resumem ao campo militar. Seu espectro

é mais amplo porque abrange os campos político e econômico na busca da conformação ou do

alinhamento de interesses em substituição ao enfrentamento. É uma tarefa difícil, sem dúvida.

Vale lembrar uma vez mais que essas percepções estão em harmonia com os princípios que

regem as relações internacionais do Brasil, dentre os quais a autodeterminação dos povos, a

defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos e o repúdio ao terrorismo, além dos esforços

para a integração econômica, política, social e cultural da América Latina – e não apenas da

região sul-americana –, para o fim de formar uma comunidade com interesses comuns.

Pergunta-se: na abordagem que comumente é feita da defesa nacional, o

objeto da análise recai na política externa ou na política interna brasileira, com ênfase às

políticas públicas? Por certo que o enfoque principal é dado à primeiro, sob o argumento –

para não dizer dilema – da solução de conflitos pela via diplomática e, se preciso for, do

emprego de forças armadas regulares nas limitações impostas pela Carta Política de 1988 e,

inevitavelmente, pelo direito das gentes. Um questionamento não pode, pois, deixar de ser

formulado: é possível separar a política externa (na qual a defesa também tem o seu lugar) de

políticas públicas internas? De certo que não, principalmente porque para alcançar sua

concretude a política de defesa depende de pressupostos presentes na diversidade das políticas

governamentais e do esforço da sociedade civil, salientando-se que o Brasil não possui um

inimigo externo declarado, além de basear suas relações internacionais em princípios que

rejeitam os conflitos armados incondicionais. Por conseguinte, a atuação do poder político

exige extrema habilidade posto que a melhoria das condições de vida do país, a ampliação e a

distribuição da riqueza e o demasiado fortalecimento do poderio militar também podem dar

espaço a controvérsias com outros Estados, de tal modo que o equilíbrio e a extensão dos

benefícios econômicos e sociais, bem como as projeções dos aparatos bélicos, devem pautar

as agendas prioritárias do Brasil, especialmente para com seus vizinhos do entrono regional,

146

que é extremamente estratégico, sob a perspectiva de que a integração poderá favorecer a

diminuição de vulnerabilidades e a redução de potenciais conflitos e, por conseguinte, de

inimigos. A existência de conflitos ou inimigos no entorno estratégico da América do Sul

amplia as hipóteses de dissuasão, persuasão e penetrabilidade de ameaças e ataques externos,

independentemente de sua origem, natureza e motivação.

O cenário internacional influi no doméstico e é nessa ponte marcada por

inúmeras assimetrias que o acerto da tomada de decisões políticas no âmbito interno

repercutirá, positiva ou negativamente, na atuação e na forma como o Brasil se projeta e é

visto externamente, a revelar uma maior ou menor vulnerabilidade, cujos indicativos

determinarão a condução da política de defesa fundamentada na transcendência do aparato

militar. Importa refletir se os instrumentos de defesa – entendidos como o conjunto de fatores

que afastam as tentativas de concretização de ameaças –, no que concerne à proteção e

segurança de um país democrático que adotou o estado de direito também podem ganhar a

forma de políticas públicas de combate às mazelas sociais, como estratégia preventiva e

acautelatória. Quintão (2002, p. 25) indica a natureza transdisciplinar de uma política de

defesa que pretende ser legítima e efetiva:

Como pode ser constatado, segurança não pode ser associada somente ao efeito resultante dos atos do uso da força derivados das capacidades militares, mas conformando-se também na adoção de medidas de proteção no campo social, econômico, da diplomacia, do segmento científico-tecnológico e do meio ambiente contrapondo-se a riscos e ameaças que incorporam dimensões não-militares. Logo, segurança é relativa e adjetiva por não ser absoluta, admitir gradação e constituir-se em uma qualidade; já a defesa é substantiva pressupondo ação. Portanto, “Defesa Nacional” é o conjunto das ações do Estado, com ênfase na aplicação da expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra as ameaças externas, contribuindo, portanto, para a “Segurança Nacional”. Enfatizo que o contexto da defesa nacional é o da Nação brasileira perante as demais nações, ou seja, campo externo. A defesa é abrangente e multisetorial, envolvendo todas as esferas e níveis de poder e de interesse de toda sociedade, não sendo portanto assunto restrito e exclusivo dos militares.

147

Constata-se, uma vez mais, que a concepção de defesa deixa de ser

essencialmente voltada ao combate de ameaças externas, de natureza militar, para dar lugar ao

pensamento multidisciplinar que compreende variáveis que podem proporcionar ao homem a

desejada segurança e, por conseguinte, a paz social ou, em termos menos otimistas, a

suspensão da beligerância explícita. Afasta-se o senso comum de que o campo militar é uma

entidade estanque encarregada do monopólio de defender o país de ameaças externas ou

mesmo de repelir eventuais inimigos internos, sejam terroristas, subversivos ou que

simplesmente exerçam o legítimo direito político de se opor ou resistir ao poder que exerce ou

influencia as funções de governo. Para sustentar essa mudança, as ponderações de Santos

(1989, p. 13) são bastante apropriadas na medida em que revelam a necessidade de aproximar

a sociedade civil do tema que, embora relevante, é posto distante de sua capacidade de

compreender e de participar da construção de seus fundamentos:

A reflexão hermenêutica torna-se, assim, necessária para transformar a ciência, de um objeto estranho, distante e incompreensível com a nossa vida, num objeto familiar e próximo, que, não falando a língua de todos os dias, é capaz de nos comunicar as suas valências e os seus limites, os seus objetivos e o que realiza aquém e além deles, um objeto que, por falar, será mais adequadamente concebido numa relação eu-tu (a relação hermenêutica) do que numa relação eu-coisa (a relação epistemológica) e que, nessa medida, se transforma num parceiro da contemplação e da transformação do mundo. Compreender assim a ciência não é fundá-la dogmaticamente em qualquer dos princípios absoluto ou a priori que a filosofia da ciência nos tem fornecido, desde o ens cogitans de Descartes à reflexão transcendental de Kant, ao espírito absoluto de Hegel, à consciência pura e sua intuição das essências de Husserl, à imediação da percepção sensorial do empirismo anglo-saxônico e do sensualismo francês. Ao contrário, trata-se de compreendê-la enquanto prática social de conhecimento, uma tarefa que se vai cumprindo em diálogo com o mundo e que é afinal fundada nas vicissitudes, nas opressões e nas lutas que o compõem e a nós, acomodados ou revoltados.

De acordo com o pensamento de Quintão (2002, p. 26), o futuro texto da

política de defesa nacional seria um “documento de mais alto nível em matéria de defesa,

coerente com a política externa, [...] visando a orientar o preparo e o emprego da capacitação

nacional em todos os níveis e esferas de poder”. É preciso ponderar essas colocações com os

148

mecanismos que regem a formulação de políticas públicas. Como, então, elaborar uma

política de defesa de tamanha magnitude? Essa é uma preocupação que precisa ser enfrentada

com todo o cuidado, posto que, no estado democrático de direito, a fixação de objetivos e o

estabelecimento de diretrizes de caráter vinculatório dirigidos à sociedade não podem

prescindir, sob pena de perda de legitimidade, de uma ampla discussão sob o fundamento da

qual a autoridade política passa a deliberar. Essas ponderações se justificam na medida em

que a política de defesa visa a “orientar o preparo e o emprego da capacitação nacional em

todos os níveis e esferas de poder”165, ou seja, seus comandos se dirigem ao conjunto

heterogêneo de atores públicos e privados cujos interesses são complexos e, por conseguinte,

concorrentes e raramente harmônicos.

Quintão (2002, p. 26) ainda assinala que, sob os fundamentos dos objetivos

e das diretrizes da política da defesa nacional, os demais setores do governo e da sociedade

passariam a elaborar suas respectivas políticas setoriais, acrescentando que, no âmbito do

Ministério da Defesa, teria curso a política setorial de enfoque militar. Nesse ponto reside um

problema e uma mudança de paradigma no modelo da política de defesa, em face da

articulação das redes sem as quais sua execução restará prejudicada. Dessa feita, a análise da

política de defesa não pode levar em consideração apenas o objeto que ao mundo empírico

parece ser essencial, qual seja, a proteção contra uma efetiva ou potencial ameaça externa

preponderantemente militar, mas também todo o contexto em que está inserida, abrangendo as

suas mais variadas vertentes. Para desvelar esse novo modelo teórico é necessário lançar mão

do poder de ruptura e do poder de generalização para, ao final da depuração entre as relações

do corpo político-social, conhecer o objeto a ser construído e experimentado. Essas

ponderações, inspiradas em Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1999, p. 71-72), podem ser

sintetizadas no seguinte excerto:

165 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

149

[...] a construção de um modelo permite tratar diferentes formas sociais como outras tantas realizações de um mesmo grupo de transformações e, por conseguinte, fazer surgir propriedades ocultas que só se revelam quando cada uma das realizações é colocada em relação com todas as outras, isto é, por referência ao sistema completo de relações pelo qual se exprime o princípio da afinidade estrutural das mesmas. É esse procedimento que confere fecundidade, isto é, poder de generalização, às comparações entre sociedades diferentes ou entre subsistemas da mesma sociedade, por oposição aos simples paralelismos suscitados pelas semelhanças dos conteúdos.

O problema que se apresenta ao político, por sua vez, reside na fragilidade

de implementação, de articulação, de coordenação e, por fim, de execução da política de

defesa, tendo em vista que não há instrumentos que possam assegurar que os demais atores

públicos e privados estão comprometidos ou aderiram ao seu conteúdo. No dizer de Rua

(1998, p. 235), esses são “atores políticos” representados por todos aqueles que têm interesses

em jogo e podem vir a ganhar ou perder em decorrência das decisões compreendidas em uma

dada medida, razão pela qual uma política que não esteja atenta a esse aspecto representativo

tenderá a fracassar. Não há, portanto, que se falar em atores políticos em campos distantes e

sem comunicação, como sociedade e governo ou militares e civis isolados ou em posições

contrárias, tendo em vista que um e outro compõem uma rede entrelaçada de poder e de

interesses que podem ou não convergir num dado momento. Não é diferente com a política de

defesa.

Por outro lado, a mudança de paradigma reside na constatação de que a

política de defesa não é uma matéria que pertença, exclusivamente, ao campo militar, na linha

argumentativa que caracteriza o presente trabalho. É preciso insistir nessa premissa, pois sua

relevância proporciona a revisão do marco conceitual segundo o qual a defesa se dirigiria,

prioritariamente, à proteção bélica contra ameaças oriundas do exterior. O escopo dissuasório

da política de defesa deve consistir em evitar o uso de força armada regular, para que a

segurança e a proteção possam ser dirigidas e convertidas para o coletivo da população

150

brasileira e não preferencialmente a grupos que, em termos econômicos ou de prerrogativas,

teriam mais a perder em decorrência de uma guerra ou de uma nova ameaça.

Fortalecer o tecido social também é uma forma de dissuadir, na medida em

que amplia a legitimidade do esforço vinculatório sob o pressuposto do consenso cooperativo

baseado na solidariedade. Há nesse ponto uma questão delicada que diz respeito à

sensibilização que motivará a sociedade a aderir e a cooperar com o projeto de fortalecimento

do tecido social, despertando-a de processos de alienação baseados na repetição de

comportamentos, do consumo e da simples sobrevivência num quadro hostil de falta de

oportunidades. Se não houver esse despertar, esse querer, pouco valerão os discursos, os

recursos financeiros, as normas de direito e as estratégias.

Aguiar (2000, p. 140-141) indicou um caminho ao abordar os pressupostos e

as crenças transformadores na contemporaneidade:

Nem sempre é a grande prática que gera as grandes interferências ou soluções. Basta atentar para o mundo físico para confirmar esse entendimento. Nos fenômenos complexos da meteorologia, são pequenas variações, diminutas interferências que causam os efeitos da chuva, do sol e das tempestades. A complexidade é tão grande e o nível de acerto das previsões tão pequeno, que levou a meteorologia a criar novos modelos de explicação e previsão lastreados na Teoria do Caos. Quando nos deparamos com fenômenos qualitativamente mais complexos, como o caso das sociedades humanas, verificamos que os modelos abrangentes e as teorias da transformação geral podem até dar conta da explicação de certos fenômenos, mas falham quando tentam prever ou intervir em determinada direção. Por outro lado, experiências sociais localizadas ou insights pontuais exercem sobre o todo social influências devastadoras ou transformadoras. O pequeno e o grande, o abrangente ou o localizado podem ter, em termos de qualidade, papéis de mesma significação. A partir do que foi dito, podemos afirmar que o que é local também pode ser universal, assim como o que se pretende universal pode ser meramente provinciano.

Portanto, a política de defesa compreende variáveis que não se restringem

ao campo militar, as quais poderão proporcionar os meios de que o país necessita para se

fortalecer internamente e, por conseguinte, diminuir suas vulnerabilidades. Mas, que variáveis

são essas? Não poderiam ser outras senão as que dizem respeito, preponderantemente, às

151

políticas sociais, ambientais, tecnológicas e econômicas. Quintão (2002, p. 26) assim se

posicionou:

Logo, uma boa política de defesa, em qualquer época e tempo, deve expressar muito bem os interesses maiores do Estado brasileiro codificados pela sociedade e que representem os reais interesses do nosso povo de modo a assegurar a sobrevivência e continuidade política do Estado brasileiro e permitir a sua livre busca do progresso e desenvolvimento.

Diante desse quadro, as dificuldades se ampliam e ganham novos contornos,

posto que, na assertiva de Quintão (2002, p. 26), a “concepção sistêmica” de defesa deve

“emergir” a partir da política de defesa nacional, cabendo ao Ministério da Defesa atuar como

“órgão central, em condições de realizar as coordenações necessárias com os demais

integrantes do sistema, assegurando-lhe eficácia”. As dificuldades começam pela constatação

de que os fundamentos ou a “concepção sistêmica” de defesa carecem de legitimidade e de

ampla representatividade política, isto é, ainda não está consolidado o aspecto jurídico-

institucional caracterizado pelo conjunto de regras de direito e pela autoridade pública com

prerrogativas para conduzir o processo de formação de consensos e de cooperações. Funciona

de outra maneira: a política decorre e se aperfeiçoa (ou se degenera) a partir do jogo do poder

e da conformação de interesses em conflito, dando origem à vontade política de, no caso,

implantar ou não a variável de defesa. Por essa razão, a formulação da política de defesa, em

face de seu caráter conjuntural, necessita do concurso positivo de outros atores cujas

contribuições e responsabilidades correspondam à sua plena execução e eficácia. Nessa linha,

a falta de participação tende a acarretar esvaziamento político que se reflete na perda ou no

enfraquecimento da legitimidade das medidas vinculatórias.

Além do mais, é preciso admitir que a forma (decreto autônomo) escolhida

para formalizar a política de defesa confere diminuta legitimidade ao Ministério da Defesa

152

para coordenar as respectivas ações166. Mesmo considerado um órgão civil com competência

para o trato da matéria167, esse novo ente público, que conta apenas com oito anos de criação,

não dispõe de ascendência sobre os demais atores políticos, órgãos da administração pública e

setores da sociedade, ou seja, sua capacidade representativa e sua legitimidade estão, no

mínimo, niveladas com aqueles que disputam poder, prestígio, recursos e mecanismos de

convencimento para a consecução de suas próprias políticas. O quadro se agrava na medida

em que o atual governo é composto por uma base pluripartidária de diversas ideologias, tanto

no Poder Executivo quanto no Legislativo. Dessa feita, no atual cenário, são grandes as

dificuldades para executar de forma ampla a política de defesa. A respeito das relações entre

grupos e dos efeitos que delas decorrem, deve-se considerar, também, o mecanismo de

internalização das políticas, como a de defesa, observando-se o fluxo de informações que as

norteiam, sob a forma de troca simbólica de dependência das relações de força, de

predomínios de monopólios de saber e de dominação, de modo que as seguintes colocações de

Bourdieu (1983, p. 52-53) se aplicam ao objeto ora estudado:

[...] Na verdade, sabe-se que as interações simbólicas no interior de um grupo qualquer dependem não somente, como bem o vê a psicologia social, da estrutura do grupo de interação no qual elas se realizam, mas também das estruturas sociais nas quais se encontram inseridos os agentes em interação (isto é, a estrutura das relações de classe): assim, é provável que uma das medidas das trocas simbólicas que permitisse distinguir, com Chapple e Coon, os que só emitem (originate), os que só respondem e os que respondem às emissões dos primeiros e emitem para os segundos, tornaria visível, tanto na escala de uma formação social em seu conjunto quanto no interior de um grupo circunstancial, a dependência das relações de força simbólica com respeito à estrutura das relações de força política. O modelo de concorrência pura é irreal tanto aqui quanto alhures e o mercado de bens simbólicos tem também seus monopólios e suas estruturas de dominação.

A política de defesa depende da interação de várias outras políticas e da

complementaridade de ações e posturas do governo e da sociedade, o que requer a

166 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 167 O disposto na alínea “a” do inc. VII do art. 27 da Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, que trata da

organização da Presidência da República e dos Ministérios, elenca a defesa nacional no rol de assuntos que competem ao Ministério da Defesa.

153

reconstrução do direito e a conscientização do poder político, na medida em que as regras de

efeitos vinculantes precisam convergir para uma nova realidade de cooperação. Se a defesa é

multidisciplinar, a composição dos interesses em conflito precisa encontrar, também, um

ponto de convergência, de tal modo que a representatividade política precisa superar sua crise

de legitimidade para fazer face às demandas coletivas sem, contudo, perder a natureza plural e

heterogênea imprescindível à democracia. Oportuno trazer as colocações de Rua (1998, p.

250) a respeito desse jogo político:

[...] o jogo político não se dá apenas entre unidades institucionais e coletivas: há todo o tipo de ator. Atores organizacionais defendendo interesses organizacionais ou, alternativamente, usando sua posição organizacional para favorecer interesses e ambições pessoais. Atores coletivos agindo em defesa dos interesses de suas coletividades ou não. Atores institucionais ou individuais, privados e públicos. E, sempre, tudo permeado por cálculos políticos, de curto, médio e longo alcance. Nesse jogo, para obter vantagens individuais, coletivas, organizacionais, os atores fazem todas as alianças possíveis, usam de todas as estratégias e de todos os recursos disponíveis. O que move o jogo do poder não é a lógica de um curso de ação, nem as rotinas organizacionais, nem a excelência técnica de cada alternativa, mas o poder efetivo e as habilidades políticas dos proponentes e dos adversários de uma alternativa para negociar, barganhar até obter uma solução que lhes seja satisfatória, em um determinado problema político.

A política de defesa não está imune a esse jogo de poder. Há todo o tipo de

interesses que movimenta o poder público, a iniciativa privada e determinados setores da

sociedade civil que têm demandas diretamente envolvidas na formulação e na execução dessa

política. Não se pode alimentar a ilusão de que o único fim das linhas da defesa consista em

prestar relevante serviço público coletivo, de defender o Brasil, de resguardar a soberania, de

elevar a nacionalidade. Assim, os militares também se interessam em manter, preservar e

ampliar o grau de importância de suas instituições, tendo em vista que, a partir da relevância

atribuída à defesa poderão dar prosseguimento ou inovar projetos que correspondam às

expectativas de sua formação profissional, garantir a continuidade de suas organizações e

154

obter recursos orçamentários destinados ao preparo e ao emprego dos meios bélicos, além de

justificar a correspondente retribuição financeira para o pagamento de seu pessoal.

Semelhantemente se colocam os dirigentes públicos e os políticos que

angariam simpatia dos atores militares, buscam reconhecimento interno e externo mediante a

demonstração da existência de poder de persuasão e de dissuasão aos aliados e aos prováveis

inimigos, conquistam a simpatia de organismos internacionais que se comprazem com

posturas uniformes alinhadas à ideologia dominante, formalizam atos e contratações para

adquirir ou compartilhar (com restrições) produtos de defesa elaborados por outros países e

promovem intercâmbios com nações amigas para trocar experiências. Paralelamente à atuação

de militares e de políticos se beneficiam as empresas que desenvolvem tecnologias, fabricam

e comercializam produtos de aplicação bélica. Desse conjunto se forma uma rede que tem

como um de seus efeitos a proteção da sociedade. Ocorre que até chegar ao coletivo há muitos

beneficiados diretos. Esse quadro fundamenta a discussão democrática da política de defesa,

observada a tendência para custos difusos suportados por toda a sociedade, enquanto

vantagens diretas têm enorme probabilidade de se concentrarem em setores específicos do

país ou do exterior.

Ao tratar das perspectivas, das ameaças e das vulnerabilidades a que o

Brasil está sujeito e que justificam a política de defesa, Quintão (2002, p. 27) reconheceu a

dificuldade de levar a efeito uma política de espectro amplo com aplicação de recursos

financeiros de grande vulto na área militar quando existem necessidades emergentes nas áreas

sociais e de infra-estrutura. Contudo, é preciso considerar que essas demandas também estão

compreendidas no escopo da política de defesa, pois visam fortalecer a sociedade e, dessa

maneira, proporcionar meios para o desenvolvimento de suas potencialidades. Desse modo, a

dissuasão se projeta para além do bélico. As variáveis de uma política de defesa transcendem

a simples concepção de aparato militar que deve caminhar com as políticas públicas sociais,

155

ambientais, tecnológicas e econômicas. Esse argumento ganha robustez na medida em que

surgem novos paradigmas de vulnerabilidade em substituição aos tradicionais ataques

externos. São eles: o terrorismo, o crime organizado, o narcotráfico e as instabilidades

internas168.

Essa conjuntura coloca o país diante de um quadro que merece bastante

cuidado e sensibilidade, para o fim de evitar precipitações que prejudiquem o tempo

necessário à reflexão política dos fatos. Como tratar de terrorismo, de crime organizado, de

narcotráfico e de instabilidades internas, tidas como novas ameaças à defesa nacional?

Poderia o Ministério da Defesa, a partir da atuação das Forças Armadas, conduzir

isoladamente uma política voltada a combater esses problemas? Por certo que não.

Novamente se revela que a política de defesa não constitui matéria exclusiva do campo

militar. Algumas inquietações não podem passar despercebidas como, por exemplo, o que é e

quem pratica o terror? Em que pese a odiosidade da violência desmedida, não se pode

desconsiderar a possibilidade de a prática do terror ser conseqüência da perda dos valores de

humanidade muitas vezes gerada pela indiferença e pela imposição de condutas e ideologias

sem a observância da diversidade cultural. Como enfrentar essa mazela se a sua origem tem

raízes na própria política (ou na ação dos políticos)? Atribuir ao terror a natureza de ameaça à

soberania tem no mínimo duas drásticas conseqüências práticas. A primeira é afastar a

natureza delitiva comum dos atentados, dando-lhe a perigosa conotação política. A segunda,

que é decorrência da primeira, consiste em admitir uma nova possibilidade legitimadora da

guerra justa ou em legítima defesa com a nociva peculiaridade de mascarar intempestivas

investidas de um Estado contra outro e o indesejado conflito armado entre países ou nações,

remetendo ao limite da extraterritorialidade. Em ambas perde a humanidade, pois tanto no

pólo ativo como no passivo dessa luta incauta os prejuízos incidem sobre vidas humanas,

168 Extraídos do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

156

riquezas, liberdades públicas, direitos fundamentais e ideais democráticos, esses com o

gravame de serem mitigados pela parte que declara a prática de seus princípios169.

Por outro lado, o crime organizado e o narcotráfico ganham espaço ante a

capacidade de gerar lucros e corromper, diversificando-se pelo aproveitamento das

instabilidades e das fragilidades do sistema jurídico-político, da pobreza, da desigualdade

social e da falta de oportunidades. Não apenas se opõe à ordem pública estabelecida, mas

tenta subvertê-la e substituí-la, revelando as falhas e a ausência de efetivas e convincentes

políticas públicas sociais. No que tange à crise social brasileira é pertinente a observação de

Ferreira (2003, p. 43):

Da análise da crise social – pois é disso que se trata – ressaltarão dois fatos: um, que o Estado está de fato ameaçado pelo crime institucionalizado e pela miséria que desafia a organização social; outro, que a política de consecução de objetivos deve ter continuidade ao longo de sucessivos governos de todos os níveis de administração. Conceber essa política como aplicável a âmbitos geográficos juridicamente configurados destruirá o caráter sistêmico da federação e a unidade do Estado. Quando se conjugam esses elementos – o crime e sua capacidade de aliciamento entre as populações jovens e não só carentes, e os milhões de pessoas que povoam o mapa da miséria – o planejador é necessariamente levado a considerar a solução desses problemas como das mais prementes; na realidade, isso é que põe em risco a estrutura do Estado.

A esse respeito, convém mencionar o relatório da ONU intitulado “O Estado

das Cidades do Mundo 2006-2007”, segundo o qual, apesar da taxa de crescimento das

favelas ser estável, a estimativa é que o Brasil tenha até 2020 (daqui a doze anos) cerca de 55

milhões de pessoas vivendo (ou sobrevivendo) nessas comunidades. O dado é alarmante

considerado que esse número tende a ser maior, pois muitas das moradias que atualmente são

destinadas a pessoas de baixa renda, como forma de política pública social, as chamadas casas

populares, mesmo que não situadas em favelas tradicionais e não diagnosticadas como de alto

risco representam, total ou parcialmente, forma de habitação que coloca as pessoas, com raras

169 Sobre terrorismo, sugere-se a leitura de José Manoel de Aguiar (Terrorismo: ação, reação e prevenção. São

Paulo: Arte & Ciência, 2003) e da obra coordenada por Leonardo Nemer Caldeira Brant (Terrorismo e direito: os impactos de terrorismo na comunidade internacional e no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003).

157

exceções, à margem de mínimos padrões arquitetônicos e urbanísticos que confiram

dignidade à pessoa humana, sujeitando-as à discriminação e à precariedade de investimentos

públicos.

Cabe também lembrar que as Forças Armadas não têm a atribuição precípua

de permanentemente atuar no campo da segurança pública, o que pode configurar o indevido

uso político daquelas instituições170. Conforme abordado no primeiro capítulo do presente

trabalho, aquelas instituições somente estarão autorizadas a atuar em casos excepcionais

quando for demonstrada a inoperância dos sistemas de segurança dos estados, por tempo

determinado e nos limites da interpretação restritiva da previsão contida no caput do art. 142

da Carta Política de 1988 e na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999. Dessa feita,

afora as controversas hipóteses de garantia da lei e da ordem, as atribuições subsidiárias que

foram acometidas pelo Poder Legislativo ao Exército – além daquelas dirigidas à Marinha171 e

à Aeronáutica172 – estão condicionadas a “contribuir para a formulação e condução de

políticas nacionais que digam respeito ao Poder Militar Terrestre”, a “cooperar com órgãos

170 É interessante a abordagem feita por João Rodrigues Arruda (O uso político das Forças Armadas: e outras

questões militares. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007). 171 A Marinha tem por atribuições subsidiárias: “I – orientar e controlar a Marinha Mercante e suas atividades

correlatas, no que interessa à defesa nacional; II – prover a segurança da navegação aquaviária; III – contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar; IV - implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas. Parágrafo único. Pela especificidade dessas atribuições, é da competência do Comandante da Marinha o trato dos assuntos dispostos neste artigo, ficando designado como ‘Autoridade Marítima’, para esse fim. V – cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, águas interiores e de áreas portuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução” (Cf. art. 17 da Lei no 97/99).

172 São as atribuições subsidiárias da Aeronáutica: “I – orientar, coordenar e controlar as atividades de Aviação Civil; II – prover a segurança da navegação aérea; III – contribuir para a formulação e condução da Política Aeroespacial Nacional; IV – estabelecer, equipar e operar, diretamente ou mediante concessão, a infra-estrutura aeroespacial, aeronáutica e aeroportuária; V – operar o Correio Aéreo Nacional. Parágrafo único. Pela especificidade dessas atribuições, é da competência do Comandante da Aeronáutica o trato dos assuntos dispostos neste artigo, ficando designado como ‘Autoridade Aeronáutica’, para esse fim. VI – cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, quanto ao uso do espaço aéreo e de áreas aeroportuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução; e VII – atuar, de maneira contínua e permanente, por meio das ações de controle do espaço aéreo brasileiro, contra todos os tipos de tráfego aéreo ilícito, com ênfase nos envolvidos no tráfico de drogas, armas, munições e passageiros ilegais, agindo em operação combinada com organismos de fiscalização competentes, aos quais caberá a tarefa de agir após a aterragem das aeronaves envolvidas em tráfego aéreo ilícito” (Cf. art. 17 da Lei no 97/99).

158

públicos federais, estaduais e municipais e, excepcionalmente, com empresas privadas, na

execução de obras e serviços de engenharia, sendo os recursos advindos do órgão solicitante”,

a “cooperar com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de

repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de

inteligência, de comunicações e de instrução”, a “atuar, por meio de ações preventivas e

repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais,

isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo”, mediante “ações de

patrulhamento, revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves,

podendo, nesses casos, efetuar prisões em flagrante delito”173.

Tais limitações não constituem mero positivismo jurídico. Representam,

sim, a vontade política que formou o pacto federativo contemplado na atual Carta Política.

Poder-se-á ampliar o rol de atribuições das Forças Armadas? Quais seriam os novos

parâmetros? Seria possível dimensionar seus efeitos no Estado Democrático de Direito?

Conjecturas como essas revelam a complexidade do tema em face da política de defesa

nacional. A reflexão deve levar em conta não a possibilidade de o Exército, a Marinha e a

Aeronáutica reunirem condições para fazê-lo, mas a capacidade que as outras instituições

públicas e a própria sociedade civil têm ou deveriam desenvolver. Isso porque o valor e o

funcionamento das instituições são parâmetros de consolidação da democracia, posto a

diversidade evita concentração de poderes e, por conseguinte, a inclinação indevida a modelos

ou sistemas totalitários. O desejo de proteção da sociedade não pode servir de justificativa

para práticas imediatistas que passem ao largo das causas centrais dos problemas. Esse é um

dos desafios ao direito e ao poder político.

As instabilidades internas, por seu turno, nada mais são do que a eclosão

fragmentada de tensões sociais ora silenciosas (como o trabalho escravo, o trabalho infantil,

173 Cf. art. 17A da Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999.

159

os problemas na rede de saúde pública, a falta de capacitação para o trabalho) ora ruidosas

(como o crime organizado, as disputas violentas e sem limites entre traficantes, as rebeliões

deflagradas em presídios, os conflitos fundiários).

Diante desse quadro de novas ameaças, que revela a amplitude e a

diversidade de atores que concorrem para o êxito de uma política de defesa, cujo escopo –

frise-se – não mais consiste no ingênuo objetivo de simplesmente proteger o país de

investidas externas ou de articulações para a tomada do poder por um improvável inimigo

interno, verifica-se que as mais significativas e evidentes vulnerabilidades do Brasil estão

situadas em seu próprio território, ou melhor, no exercício da cidadania que, por sua vez,

reflete na soberania do país. O problema estratégico reside na dificuldade que o governo tem

de estruturar uma política de Estado flexível, continuada e que a um só tempo possa atender,

de um lado, às expectativas de natureza militar e, de outro, ao fortalecimento do tecido social

mediante o estabelecimento de políticas públicas de resultado coletivo. A esse respeito, a

opinião de Ferreira (2003, p. 36) reflete esse desafio:

Fixemos desde o início que esses desafios são, a um tempo, econômicos, sociais e, sobretudo, políticos. E só podem encontrar solução se equacionados sob uma correta concepção estratégica. E a concepção estratégica será tanto mais adequada aos embates previsíveis, quanto mais for construída sem cólera nem parcialidade. Por outro lado, observe-se que uma concepção estratégica nada é sem uma política de consecução dos objetivos, e que essa política está destinada ao malogro se, na concepção estratégica, não tiverem sido estabelecidos os fatores de força e de fraqueza do País no seu relacionamento com o mundo e os fatores adversos internos, além de se terem fixado os instrumentos políticos que tornarão eficaz a consecução dos objetivos.

Do que foi alinhavado até então, é possível afirmar que a política de defesa

nacional é, sim, necessária, inclusive para o fim de demonstrar, a partir de seus fundamentos,

que o país, nessa delicada matéria, também está sujeito aos princípios democráticos não

apenas para se proteger de ameaças externas, de caráter preponderantemente militar, mas para

reconhecer e cuidar das mazelas sociais que ampliam a vulnerabilidade do país em

160

decorrência, principalmente, da falta ou da insuficiência de políticas públicas nas áreas

sociais, não obstante a tendência de melhoria das condições de desenvolvimento humano174 e

dos índices que acenam para a diminuição da pobreza e da indigência no Brasil175. Portanto, é

forçoso reconhecer que a dissuasão não se constrói apenas com o aparelhamento das Forças

Armadas e com a sofisticação dos instrumentos diplomáticos. Dissuadir também significa

afastar pretensões que pela força ou pela persuasão velada tentem colocar o país em condição

econômica ou política mais elevada do que os demais.

A defesa não é tema novo, mas foi recentemente que recebeu atenção mais

detida por parte do poder público ou, para dizer melhor, dos atores políticos, pelo menos no

que tange à edição do Decreto no 5.484, de 2005. O que determinou essa mudança de postura?

Qual a motivação que o governo federal teve para incluir ou elevar na agenda política assunto

que causa embaraços quando confrontado com parte dos princípios constitucionais que regem

as relações internacionais do país, com o pensamento democrático que resultou da transição

do regime de exceção para o democrático, além do enfoque às emergentes demandas sociais?

Inevitável reconhecer que as assimetrias e instabilidades do quadro mundial se tornaram mais

evidentes a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Também ajudaram a

despertar interesse pelo tema fatos que na atualidade foram destaque na mídia, como os

acidentes aéreos ocorridos no Brasil em 2006 e 2007, os problemas de infra-estrutura e de

controle da aviação civil, as questões políticas e legislativas que circundaram a criação da

Secretaria de Planejamento de Longo Prazo176, as controvérsias que envolvem a política da

Venezuela, as medidas de nacionalização levadas a efeito pelo governo da Bolívia, as

negociações para a liberação de reféns e os ataques do governo da Colômbia contra as FARC,

174 A respeito, o relatório de desenvolvimento humano 2007/2008 elaborado pela ONU. Disponível em:

<www.hdr.undp.org>. Acesso em: 30 de maio de 2008. 175 Dados detalhados constam do Capítulo Renda (p. 25-29) da publicação Radar Social 2006 – Condições de

Vida no Brasil, elaborada em julho de 2006 pelo IPEA. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 30 de maio de 2008.

176 Criada pela Medida Provisória no 377, de 18 de junho de 2007, que foi rejeitada pelo Congresso Nacional pelo Ato Declaratório no 1, de 3 de outubro de 2007.

161

a soberania brasileira na Amazônia177 e a demarcação de terras indígenas, apenas para

mencionar alguns acontecimentos domésticos e do entorno regional.

Na aproximação com o diagnóstico de Rua (1998, p. 238), situações como

essas são tidas como “estado de coisas” caracterizadas por uma duração continuada ao longo

do tempo, marcadas por inquietações sem, contudo, “mobilizar as autoridades

governamentais”, de tal modo que essa ausência de comprometimento faz com que o tema

não seja incluído na “agenda governamental”, pois não desperta o interesse daqueles que

decidem. Percebe-se que uma situação relevante – como a defesa nacional – pode estar

perfeitamente caracterizada, incomodar grupos em decorrência da inércia dos tomadores de

decisão, gerar prejuízos e insatisfações a uma série de atores políticos e sociais sem constituir

prioridade do poder público. Esse estado de coisas é elevado a problema político no momento

em que os argumentos que o sustentam passam a sensibilizar e a preocupar as autoridades.

O problema da conversão de tema em problema político reside na

dependência dessa mudança de percepção para a formulação de políticas públicas como fator

comum da política, das divisões do governo e da própria oposição, circunstância que permite

a análise da política sob o ponto de vista da busca para estabelecer, implementar ou evitar a

concretização de medidas. É uma das maneiras de influenciar o processo decisório, num

marcado jogo de forças. A melhoria desse quadro – cujos resultados interessam à sociedade

civil – exige mudança para melhor do sistema de representação política, do qual participam os

partidos políticos, os grupos sociais e a sociedade como um todo (LAHERA P., 2004, p. 5-7).

Nessa linha, revela-se apropriado discutir a pertinência teórica e conceitual

que fundamenta as políticas e as políticas públicas, mediante a releitura da estruturação e da

funcionalidade das instituições do Estado, especialmente quanto à natureza do regime político

na determinação dos formatos das estratégias do poder público. Deve ser feita uma

177 Sobre o tema, o livro Amazônia e defesa nacional. Organizador Celso Castro. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

162

aproximação dos princípios e da dinâmica que regem as relações entre a esfera política, a ação

pública e a sociedade civil. Para tanto, é preciso conhecer os fundamentos do regime político

e o domínio em que se desenvolvem as políticas públicas. Mas, então, o que determina a

formação das políticas públicas? O regime? Os tipos ou formas de regime implicam a

especificidade de estruturações das políticas públicas. Há, portanto, relação entre o regime

político e os procedimentos baseados na precariedade política e na ação pública pautada na

informalidade das instituições (TORRES, 2004, p. 5-7).

Conforme esclarece Rua (1998, p. 238-239), a mobilização política que

determina a transformação do estado de coisas em problema político pode corresponder à

ação de coletividades e de atores estratégicos, conjunta ou separadamente. Mas, em geral, o

atuar político é marcado pela “percepção de um ‘mal público’, além de situações como crises

e catástrofes”. No caso da política de defesa, além de setores da sociedade civil e de

circunstâncias externas, há de ser considerada a atuação, no âmbito do governo, de atores

estratégicos, dentre os quais não podem deixar de figurar o Ministério das Relações

Exteriores, o Ministério da Justiça, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da

República, o Ministério das Cidades, o Ministério da Reforma Agrária, o Ministério da

Fazenda e o Ministério da Defesa (consideradas as Forças Armadas), em razão das

competências e responsabilidades que lhes são inerentes. Ainda segundo Rua, os movimentos

de cenários como esse, nos quais se verifica a mudança da situação de estado de coisas a

problema político, devem compreender pelo menos uma das seguintes características:

1. mobilize ação política: expresse ou a ação coletiva de grandes grupos, ou a ação coletiva de pequenos grupos dotados de fortes recursos de poder, ou a atuação de atores individuais estrategicamente situados; 2. constitua uma situação de crise, calamidade ou catástrofe, de maneira que o ônus de não resolver o problema seja maior que o custo de resolvê-lo; 3. represente uma situação de oportunidade, ou seja, signifique vantagens, antevistas por algum ator relevante, a serem obtidas com o tratamento daquele problema.

163

Confrontadas essas características com o desenho da política de defesa,

identifica-se a ocorrência das três características descritas por Rua, verificáveis na ação

coletiva de pequenos grupos dotados de fortes instrumentos de poder e na demonstração da

situação de crise potencial ou efetiva ante os cenários interno e externo que determinaram a

oportunidade da tomada de decisão. O poder político foi mobilizado pela ação de grupos do

próprio governo e da sociedade civil. Os primeiros, representados por militares e por atores

que sustentam a necessidade de postura mais enérgica do Brasil, com efeitos nas variáveis

econômicas, ambientais e tecnológicas, admitindo-se que essas opiniões estão desprendidas

de interesses corporativos sob a bandeira da soberania, da nacionalidade e da integridade

territorial. Os segundos, impulsionados por setores da iniciativa privada que, direta ou

indiretamente, consideram que a relevância do tema – que traz consigo a ampliação dos

orçamentos – constitui significativa oportunidade de expansão e revitalização de suas

plataformas de produção e, por conseguinte, de lucro, como é o caso da indústria de defesa.

A situação de crise foi desvelada pela necessidade do Brasil em reafirmar os

princípios constitucionais que norteiam suas relações internacionais, a partir dos atentados

terroristas, de modo a assinalar, para efeito estratégico junto à política externa norte-

americana, o alinhamento do país com os meios e os fins da democracia ocidental, para que

não figurasse como possível inimigo, mesmo que, pela imparcialidade, se mantivesse distante

dos episódios. Dos atentados de 2001 e, posteriormente, à invasão do Iraque, às investidas no

território afegão, à crise aérea brasileira e às instabilidades políticas e econômicas que

envolvem a América do Sul, em especial Venezuela, Bolívia e Colômbia, além do

desenvolvimento de técnicas de enriquecimento de urânio, das demandas por energia e dos

problemas de segurança pública que atingem o Rio de Janeiro (e que associam o tema de

maneira mais visível à atuação das Forças Armadas), a defesa foi elevada na agenda política à

164

condição de problema, de tal modo que o seu enfrentamento causará menores ônus políticos e

financeiros do que se colocado num nível de prioridade menor.

A mobilização política e o reconhecimento da crise justificam a

oportunidade aguardada pelos atores a quem a defesa interessa mais de perto, seja para

influenciar ou levar adiante projetos que não recebiam apoio (institucional ou financeiro), seja

para legitimar a composição de novos entendimentos políticos. Resta saber quem,

efetivamente, será o beneficiário dessas vantagens, dessas deliberações. Essa é uma pergunta

que, talvez, o transcurso do tempo e os efeitos das medidas que venham a ser adotadas

possam ajudar a esclarecer. Mas, a aprovação da política de defesa, levada a efeito na forma

do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, garante a transformação da decisão em ação, em

toda a sua amplitude? É o que se pretende abordar a seguir.

O texto da política de defesa dispõe de uma parte introdutória na qual é

esclarecido que o escopo consiste, preponderantemente, na atuação do poder público em face

de ameaças externas. Recebido como a exteriorização da decisão política tomada, ao Decreto

no 5.484, de 2005, foi atribuída a natureza de “documento condicionante de mais alto nível do

planejamento de defesa”178. Sua finalidade, segundo consta, é a de “estabelecer objetivos e

diretrizes para o preparo e o emprego da capacitação nacional”, para cujo desiderato hão de

concorrer os setores militar e civil, “em todas as esferas do Poder Nacional”179, sob a

coordenação do Ministério da Defesa. Adicionalmente ao que foi mencionado, importa

considerar que as expressões “capacitação nacional” e “poder nacional” são elementos

simbólicos capazes de englobar, de um lado, as riquezas e as potencialidades humanas,

naturais e materiais do país, e, de outro, as forças políticas que as influenciam e exercem

predomínio sobre o tema. O texto da política de defesa nacional se divide em sete partes,

assim denominadas: “O Estado, a Segurança e a Defesa”, “O Ambiente Internacional”, “O

178 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 179 Cf. parte introdutória do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

165

Ambiente Internacional e o Entorno Estratégico”, “O Brasil”, “Os Objetivos da Defesa

Nacional”, “Orientações Estratégicas” e, por fim, “Diretrizes”. As cinco primeiras foram

consideradas como partes políticas, enquanto as duas últimas estratégicas. Considerada a

abordagem até então empreendida, convém, a partir de agora, tecer algumas ponderações a

respeito dos objetivos, das orientações estratégicas e das diretrizes.

Os objetivos da defesa nacional, de natureza política, foram alinhavados nos

seguintes termos180:

As relações internacionais são pautadas por complexo jogo de atores, interesses e normas que estimulam ou limitam o poder e o prestígio das Nações. Nesse contexto de múltiplas influências e de interdependência, os países buscam realizar seus interesses nacionais, podendo gerar associações ou conflitos de variadas intensidades. Dessa forma, torna-se essencial estruturar a Defesa Nacional de modo compatível com a estatura político-estratégica para preservar a soberania e os interesses nacionais em compatibilidade com os interesses da nossa região. Assim, da avaliação dos ambientes descritos, emergem objetivos da Defesa Nacional: I – a garantia da soberania, do patrimônio nacional e da integridade territorial; II – a defesa dos interesses nacionais e das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros no exterior; III – a contribuição para a preservação da coesão e unidade nacionais; IV – a promoção da estabilidade regional; V – a contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais; VI – a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais.

Esses objetivos são, em sua maioria, voltados ao cenário internacional. Mas,

sem desmerecer os demais, há de se convir que aquele que trata da “contribuição para a

preservação da coesão e unidade nacionais” é o único capaz de proporcionar efetividade aos

demais, sob a ótica da legitimidade que deve fundamentar o estado democrático de direito.

180 Cf. item 5 do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

166

Então, como preservar a coesão e a unidade nacionais sem a certeza de que esses dois

elementos estão presentes ou podem ser desenvolvidos na sociedade? Em que pese o Brasil se

constituir como unidade territorial181, a coesão não pode deixar de ser questionada, ou melhor,

ponderada quanto às diferenças de oportunidade, de crescimento e de expectativa de

distribuição de riqueza. Para constatar esse fenômeno, basta percorrer o olhar nas

desigualdades regionais e sociais que refletem as diferenças das condições de vida da

população brasileira182.

As vulnerabilidades do país e as correspondentes estratégicas dissuasórias

estão correlacionadas aos temas de segurança, defesa e políticas públicas destinadas à

melhoria da qualidade de vida das pessoas. Essa constatação ganha relevância quando

conhecidos determinados dados estatísticos do Brasil. Na abordagem do estado das cidades

brasileiras, F. de Carvalho (2006, p. 30) registra que no país há 53 milhões de pessoas

vivendo em favelas urbanas e 4,2 milhões de bóias-frias no campo. O autor também destaca

pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, segundo a qual o déficit habitacional cresceu 16,6%

nos últimos dez anos, alcançando o número de 7,3 milhões de moradias em 2005. Interessante

observar que esse quadro está concentrado na região sudeste que, considerada a mais rica do

país, tem nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais 38% da falta de moradias,

fato que explica os contrastes entre geração e distribuição de riqueza, o que leva ao cenário de

marginalização, estigma, profunda estratificação social, violência e tráfico de drogas:

Em termos absolutos, o Brasil abriga a maior concentração de pobres do Hemisfério Ocidental. A grande concentração de pobreza urbana está no eixo Rio-São Paulo, sendo que somente a região do Grande Rio abriga a quarta parte da pobreza metropolitana do país.

181 Em termos formais, de acordo com o que prescreve o art. 1o da Constituição Federal de 1988: “A República

Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...].”

182 Detalhes desse quadro constam da publicação Radar Social 2006 – Condições de Vida no Brasil, elaborada em julho de 2006 pelo IPEA. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 30 de maio de 2008.

167

Não se pode falar em liberdades individuais, muito menos em democracia, na faixa de pobreza e indigência, de modo que esse panorama configura um círculo vicioso de miséria e violência: povo miserável e ignorante, que desconhece os seus direitos às liberdades individuais e elege e reelege políticos ineptos e corruptos, que só contribuem para perpetuar a ignorância e agravar a miséria. (F. DE CARVALHO, 2006, p. 31)

As orientações estratégicas e as diretrizes da política de defesa nacional são

essencialmente de natureza política. Não há estratégia dissociada da política, ou melhor, é a

decisão política que estrutura, legitima e proporciona os mecanismos necessários a

implementar situação que passou de estado de coisas a problema político, indicando o que

precisa ser enfrentado e resolvido sob a forma de estratégias. Para reforçar esse argumento,

convém verificar a redação dada aos seguintes dispositivos da política de defesa:

Orientações Estratégicas: 6.7 As Forças Armadas devem estar ajustadas à estatura político-estratégica do País, considerando-se, dentre outros fatores, a dimensão geográfica, a capacidade econômica e a população existente. 6.20 O desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio da sociedade brasileira é fundamental para sensibilizá-la acerca da importância das questões que envolvam ameaças à soberania, aos interesses nacionais e à integridade territorial do País. Diretrizes: 7.1 As políticas e ações definidas pelos diversos setores do Estado brasileiro deverão contribuir para a consecução dos objetivos da Defesa Nacional. Para alcançá-los, devem-se observar as seguintes diretrizes estratégicas: XIV – promover a interação das demais políticas governamentais com a Política de Defesa Nacional; XVI – incentivar a conscientização da sociedade para os assuntos de Defesa Nacional;

Da leitura desses dispositivos, constata-se que fatores tais como a

capacidade econômica e a população, como também a sensibilização da sociedade para gerar

motivação para agir não são atingíveis apenas pela fixação de orientações estratégicas

formais, as quais, muitas vezes, se restringem ao campo das idéias. Para gerar efeitos práticos

devem ser impulsionados pela vontade política. De igual modo, diretrizes voltadas a diversos

168

setores do país com o objetivo de promover a integração de políticas governamentais e

incentivar a conscientização da sociedade tendem a não lograr êxito se desprovidas de poder e

de vontade política. Nesse ponto está delineado um significativo problema que precisa ser

novamente frisado: a representatividade política da sociedade. A soberania popular está, de

fato, devidamente representada? Aguiar elucida (2000, p. 263-264):

Política é luta pelo poder. Poder é relação entre comando e obediência, em redes conflitantes, que transitam do macropoder para o micropoder. Se a política é luta pelo poder, ela é, no mínimo, jogo e, no máximo, guerra. Esse é um resumo grosseiro da explicação vigente de política. Embora a ciência política desenvolva sua teorização analisando essa teia de relações descrita, as abordagens filosóficas ou econômicas, explícita ou implicitamente, esperam por um momento em que as sociedades estarão de tal forma transformadas, seja pela mão invisível do mercado, seja pela revolução, que não haverá mais lugar para esses jogos, estratégias e táticas. Todos têm uma nostalgia da não política, do não-jogo e da não guerra. A sociedade sem classes é um típico sonho nesse sentido. No fundo, com todos os conflitos, a política está prenhe de uma outra política, que é a sua contradição e superação. A política, nos moldes atuais, é a tradução mais explícita do padrão civilizatório da competição, do entrechoque de interesses e da crença na inviabilidade da solidariedade no gênero humano. Os seres humanos, naturalmente, são divididos e não conseguem transcender sua situação grupal e seu papel na hierarquia grupal. A política é um desenfreado processo de luta pela hegemonia, pela conquista de espaços, que culmina no exercício do poder. Além de traduzir o que foi descrito, essa política expressa uma compreensão da sociedade e o papel de seus componentes muito própria. Para ela, os seres humanos são diferentes, mas essa diferença, que poderia ser símbolo de riqueza e de surgimento de unidades mais densas, é considerada um empecilho para a realização de certo tipo de ordem, que confunde segurança com homogeneidade, diferença com risco e identidade com perigo.

Nessa linha, Rua (1998, p. 250) explica que o jogo político, formado por

“cálculos políticos, de curto, médio e longo alcance”, envolve todos os tipos de atores, desde

os organizacionais aos coletivos. Os primeiros defendem interesses organizacionais ou usam

sua influência para favorecer interesses e ambições pessoais, enquanto os segundos podem ou

não agir em defesa dos interesses das coletividades a que pertencem. A autora assinala que as

vantagens que decorrem do jogo político são de cunho individual, coletivo ou organizacional

169

e têm origem nas mais variadas formas de alianças, de todas as estratégicas e recursos

possíveis:

O que move o jogo do poder não é a lógica de curso de ação, nem as rotinas organizacionais, nem a excelência técnica de cada alternativa, mas o poder efetivo e as habilidades políticas dos proponentes e dos adversários de uma alternativa para negociar, barganhar até obter uma solução que lhes seja satisfatória, em determinado problema político.

Para Rua (1998, p. 250-251), a decisão tomada em política pública nada

mais é do que “um amontoado de intenções sobre a solução de um problema, expressas na

forma de determinações legais: decretos, resoluções etc”. Há, pois, uma grande distância entre

decidir e implementar e entre implementar e atender ao fim coletivo colimado. Cabe, então,

indagar: a política de defesa é decisão política destinada a permanecer por longo tempo (ou

indefinidamente) no campo das idéias? A legitimidade e a efetividade daquela política

constituem o núcleo do problema político-estratégico ora suscitado:

O que garante a transformação de uma decisão em ação, nos regimes democráticos? A efetiva resolução de todos os pontos de conflito envolvidos naquela política pública. Essa “efetiva resolução” não significa nada tecnicamente perfeito. Significa o que politicamente se considera uma “boa decisão”: uma decisão em relação à qual todos os atores relevantes acreditem que saíram ganhando algo e nenhum deles acredite que saiu completamente prejudicado. Como essa solução é realmente difícil de ser obtida, apesar de todas as possibilidades de negociação, então considera-se também uma “boa decisão” aquela que foi a melhor possível naquele momento específico. Isso, na prática, quer dizer que naquele momento todos os atores dotados de efetivos recursos de poder para inviabilizar uma política pública devem acreditar que saíram ganhando alguma coisa e nenhum ator dotado de efetivos recursos de poder para inviabilizar a política pública acredite que saiu prejudicado com a decisão. Ou seja, a ausência de ganhos e os prejuízos reais, em um momento específico, devem estar limitados àqueles atores que não são capazes de mobilizar recursos de poder para impedir que a decisão se transforme em ação. (RUA, 1998, p. 251)

Política e políticas públicas são instrumentos distintos que exercem

influência recíproca, entrelaçados que estão no sistema político e ligados ao poder originário

da sociedade civil. As políticas têm conceito amplo, enquanto as políticas públicas

170

correspondem a ações ou soluções específicas que conduzem assuntos públicos. P. Lahera

(2004, p. 7 e 8-10) formula os seguintes apontamentos a respeito do que é ou poderá vir a ser

uma boa política pública:

Una política pública de excelencia corresponde a aquellos cursos de acción y flujos de información relacionados con un objetivo definido en forma democrática; los que son desarrollados por el sector público y, frecuentemente, con la participación de la comunidad y el sector privado. Una política pública de calidad incluirá orientaciones o contenidos, instrumentos o mecanismos, definiciones o modificaciones institucionales, y la previsión de sus resultados. Lo principal es la idea, el punto de vista, o el objetivo desde el cual plantear o analizar normas o disposiciones. Así es posible considerar a una norma o decisión o a varias (como el “programa” de Estados Unidos). También se ha usado la expresión “espacio de las políticas” para denotar un conjunto de políticas tan interrelacionadas que no se pueden hacer descripciones o enunciados analíticos útiles de ellas sin tener en cuenta los demás elementos del conjunto. [...] El concepto de políticas públicas incluye tanto temas de gobierno como de Estado. Estas últimas son, en realidad, políticas de más de un gobierno, lo que plantea una especificidad política. También es posible considerar como políticas de estado aquellas que involucran al conjunto de los poderes del estado en su diseño o ejecución.

Torres (2004, p. 8-9) destaca que os estudos da relação entre regimes

políticos e políticas públicas devem enfrentar o problema do poder, as instituições, os atores

das políticas e os fatores que distorcem a ação pública. O Estado institucionalmente frágil tem

sua capacidade de agir limitada. Os regimes políticos marcam as restrições e as possibilidades

de estruturação das políticas públicas. Cada realidade tem uma política. Por sua vez, as

políticas públicas não podem ser analisadas em si mesmas, isoladamente. É indispensável –

frise-se – conhecer o regime e o governo. Os governos precisam definir prioridades voltadas a

levar o país a situações preestabelecidas de desenvolvimento. Semelhantemente, Faria (2003,

p. 25-26) explicita que o êxito de uma dada política pública dependerá da coordenação e

articulação político-administrativa marcadas por uma boa gestão de continuidade e

171

convergência de interesses e necessidades. Para tanto, recomenda estabelecer uma forte

orientação regional num verdadeiro esforço de focalização com o propósito de evitar

problemas de clientelismo e corrupção, entre outros.

Não é demais lembrar que o desencadeamento desses fatores depende das

circunstâncias do momento político e de oportunidade, de modo que toda política pública,

inclusive a de defesa, está sujeita às oscilações de poder e de influência, de priorização ou

não. A essa conjugação de vontade e oportunidade são somados os estudos trazidos por Rua

(1998, p. 252), que apontam dez pré-condições ao êxito de uma política:

1. as circunstâncias externas à agência implementadora não devem impor restrições que desvirtuem a natureza da política; 2. a política ou o programa deve dispor de tempo e de recursos suficientes; 3. não apenas deve ter restrições em termos de recursos globais, mas também, em cada estágio da implementação, a combinação necessária de recursos humanos, financeiros e materiais deve estar efetivamente disponível no momento adequado; 4. a política a ser implementada em uma teoria correta sobre a relação entre a causa – de um problema – e o efeito – da solução que está sendo proposta; 5. essa relação entre causa e efeito deve ser direta e, se houver fatores intervenientes, esses devem ser mínimos; 6. a responsabilidade pela implementação deve estar claramente atribuída a uma só agência, que não depende de outras agências para ter sucesso; se outras agências estiverem envolvidas, a relação de dependência deverá ser mínima em número e em importância; 7. deve haver completa compreensão e consenso quanto aos objetivos a serem atingidos e essa condição deve permanecer durante todo o processo de implementação; 8. ao avançar em direção aos objetivos estabelecidos, deve ser possível especificar, em detalhes completos e em seqüência perfeita, as tarefas a serem realizadas por cada participante; 9. é necessário que haja perfeita comunicação e coordenação entre os vários agentes e agências envolvidas no programa; 10. os que exercem posições de comando devem ser capazes de obter efetiva obediência de seus comandados.

172

A política de defesa, de natureza singular, permanente, continuada e, em

tese, desvinculada da transitoriedade dos governos, ainda não foi implementada, pelo menos

em todo o seu conjunto. Requer, para tanto, a formação de consensos e um delicado processo

de convencimento dos atores políticos e da sociedade civil, construído dia-a-dia. Pode-se

dizer que a política de defesa está no campo dos princípios, posto que suas ações dependem

de várias e intercaladas decisões, além da formulação de outras políticas públicas que, via de

regra, não obedecem à mesma cronologia e aos mesmos critérios de relevância e prioridade.

Prova desse estágio de amadurecimento está na determinação do atual governo de reformular

a política e estabelecer o que chamou de estratégia nacional de defesa. Será preciso

ponderação para que os estudos nesse sentido não resultem retrocesso nos avanços até então

obtidos183.

2.2.2 Defesa e mobilização nacional

Nos debates depreendidos ao longo do presente trabalho, a política de defesa

não faz sentido se desprendida do que se convencionou denominar de mobilização, expressão

que no tecnicismo da caserna significa o conjunto de medidas necessárias para fazer face ao

esforço da batalha ou da dissuasão para evitar ou minimizar o confronto. No contexto

democrático, essa expressão abrangente e com fortes traços de subjetividade se aproxima da

idéia de compor consensos, na medida em que seus efeitos adquirem natureza vinculatória

quando utilizada na concepção de defesa. Portanto, a aplicação desse instituto (na tentativa de

estabelecer uma categoria) requer acurada cautela para não servir de simples

instrumentalização do direito por parte do poder político, ante os postulados constitucionais,

as competências das instituições, das autoridades, dos órgãos e dos colegiados envolvidos,

183 Essa postura foi exteriorizada pelo Decreto de 6 de setembro de 2007, que instituiu o Comitê Interministerial

de Formulação da Estratégia Nacional de Defesa, encarregado de elaborar proposta de estratégia nacional de defesa e de atualização da política de defesa, de estratégia nacional de desenvolvimento de longo prazo. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 11 de setembro de 2007.

173

além, por certo, das prerrogativas, dos direitos e dos deveres inerentes ao estado de direito,

especialmente as liberdades públicas.

Por essas razões, revela-se pertinente tecer alguns comentários a respeito da

recente Lei no 11.631, de 27 de dezembro de 2007184, de iniciativa do Poder Executivo

Federal. É preciso indicar as assimetrias valorativas na aplicação e interpretação desse novo

diploma legal, cujos contrastes podem influir nos institutos jurídicos inter-relacionados ao

tema e, por conseguinte, prejudicar ou, até mesmo, inviabilizar a plena adoção das medidas

voltadas à legitimidade da execução das atividades de mobilização nacional e, por

conseguinte, de defesa. Para melhor compreender o objeto estudado, é preciso trazer uma

preliminar, resumida na seguinte pergunta: a mobilização nacional está compreendida no

contexto da defesa e, por conseguinte, da respectiva política, da qual seria um instituto

jurídico acessório, ou seja, não possuiria natureza auto-executória e, portanto, suas noções

estariam no conceito e no conteúdo da política de defesa, observadas as limitações de ordem

constitucional? A reflexão a respeito dessa pergunta não dispensa a leitura do inc. XIX do art.

84 da Carta Política de 1988, que atribui competência privativa ao Presidente da República

para a prática do seguinte ato:

XIX – declarar guerra185, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele186, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;

O conceito de mobilização contido no inc. I do art. 2o da Lei no 11.631, de

27 de dezembro de 2007:

184 Dispõe sobre a Mobilização Nacional e cria o Sistema Nacional de Mobilização – SINAMOB. Entrou em

vigor no dia 28 de dezembro de 2007. 185 Lembre-se que o Brasil rege suas relações internacionais, entre outros, pelos princípios de autodeterminação

dos povos, de não-intervenção, de igualdade entre os Estados, de defesa da paz e de solução pacífica dos conflitos, nos termos dos incs. III, IV, V, VI e VII do art. 4o da Constituição Federal de 1988.

186 No que tange aos procedimentos afetos à declaração de guerra, não é demais dizer que o ato do Presidente da República, na qualidade de Chefe de Estado, há de se encontrar, sempre, restrito aos princípios de ordem constitucional, sujeito e vinculado ao Congresso Nacional, prévia ou – excepcionalmente – posteriormente, observado o disposto nos incs. II, IV e V do art. 49; inc. XIX do art. 84; inc. I do art. 90; incs. I e II do § 1o do art. 91; e art. 136, todos da Constituição Federal de 1988.

174

[...] Mobilização Nacional, o conjunto de atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado, complementando a Logística Nacional, destinadas a capacitar o País a realizar ações estratégicas, no campo da Defesa Nacional, diante de agressão estrangeira;

A análise também não pode deixar de observar os seguintes excertos da

Exposição de Motivos Interministerial no 472/MD/MJ/MRE/MP/MCT/SECOM-

PR/MF/MI/GSI-PR/CCIVIL-PR, de 2 de outubro de 2003187, que deu início à proposta da Lei

de Mobilização Nacional:

2. A Mobilização Nacional consiste no conjunto de atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado, desde a situação de normalidade, complementando a Logística Nacional, com o propósito de capacitar o País a realizar ações estratégicas no campo da Defesa Nacional para fazer face a uma agressão estrangeira. 3. É, portanto, uma atividade essencial à Defesa Nacional, a qual envolve todas as expressões do Poder Nacional em um processo amplo e global, que visa à criação de mecanismos de defesa contra possíveis agressões estrangeiras que ponham em risco a soberania nacional e a integridade territorial.

No que tange à mobilização nacional, a política de defesa consignou a

“capacidade de mobilização nacional” como um dos pressupostos básicos188 de suas

Orientações Estratégicas, sendo relevante transcrever os dispositivos que mais se aproximam

das questões suscitadas na presente análise:

6.1 A atuação do Estado brasileiro em relação à defesa tem como fundamento a obrigação de contribuir para a elevação do nível de segurança do País, tanto em tempo de paz, quanto em situação de conflito. 6.2 A vertente preventiva da Defesa Nacional reside na valorização da ação diplomática como instrumento primeiro de solução de conflitos e em postura estratégica baseada na existência de capacidade militar com credibilidade, apta a gerar efeito dissuasório.

187 Objeto do Projeto de Lei no 2.272/2003, sob a competência privativa da União para legislar sobre defesa

nacional, defesa aeroespacial, defesa marítima, defesa civil e mobilização nacional, nos termos do inc. XXVIII do art. 22 da Constituição Federal de 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acessado em: 28 de abril de 2008.

188 Além da “capacidade de mobilização nacional”, as Orientações Estratégicas da Defesa Nacional compreendem os seguintes pressupostos: “fronteiras e limites perfeitamente definidos e reconhecidos internacionalmente; estreito relacionamento com os países vizinhos e com a comunidade internacional baseado na confiança e no respeito mútuos; rejeição à guerra de conquista; busca da solução pacífica de controvérsias; valorização dos foros multilaterais; e existência de forças armadas modernas, balanceadas e aprestadas” (incs. I a VI do subitem 6.2 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005).

175

6.3 A vertente reativa da defesa, no caso de ocorrer agressão ao País, empregará todo o poder nacional, com ênfase na expressão militar, exercendo o direito de legítima defesa previsto na Carta da ONU. 6.5 No gerenciamento de crises internacionais de natureza político-estratégica, o Governo determinará a articulação dos diversos setores envolvidos. O emprego das Forças Armadas poderá ocorrer de diferentes formas, de acordo com os interesses nacionais. 6.6 A expressão militar do País fundamenta-se na capacidade das Forças Armadas e no potencial dos recursos nacionais mobilizáveis. 6.9 O fortalecimento da capacitação do País no campo da defesa é essencial e deve ser obtido com o envolvimento permanente dos setores governamental, industrial e acadêmico, voltados à produção científica e tecnológica e para a inovação. O desenvolvimento da indústria de defesa, incluindo o domínio de tecnologias de uso dual, é fundamental para alcançar o abastecimento seguro e previsível de materiais e serviços de defesa. 6.20 O desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio da sociedade brasileira é fundamental para sensibilizá-la acerca da importância das questões que envolvam ameaças à soberania, aos interesses nacionais e à integridade territorial do País.

Da leitura das transcrições acima, torna-se possível depreender que o escopo

da defesa e da idéia de mobilização consiste, essencialmente, em estabelecer mecanismos

capazes de viabilizar a construção de uma consciência coletiva para o fim de congregar e

conferir legitimidade às ações que envolverão todos os atores sociais (públicos e privados),

quando do estabelecimento do “esforço” comum voltado ao preparo e ao emprego da

capacitação nacional, tendo por fim evitar ou diminuir as vulnerabilidades do país,

notadamente em face de eventuais agressões potenciais ou manifestas, de natureza militar ou

não. Soma-se a essas colocações o fato de que, na seara constitucional, o tema mobilização

está atrelado aos atos extraordinários de declaração de guerra e de resposta a agressão189, de

competência privativa do Presidente da República190. Note-se, porém, que a declaração de

guerra transcende a atuação da autoridade presidencial como Chefe de Governo (Poder

189 Considerado o direito de legítima defesa previsto no item 6.3 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho

de 2005, os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil e o disposto no art. 51 da Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945. Disponível em: <www.unesco.org.br>. Acessado em: 28 de abril de 2008.

190 Cf. art. 84, XIX da Constituição Federal de 1988.

176

Executivo), que pratica esse ato na qualidade de Chefe de Estado191, encontrando-se, nessa

singular hipótese, compelido a sujeitar os procedimentos à aprovação do Congresso Nacional,

tendo em vista a extensão de seus efeitos.

Cumpre esclarecer que a Carta Política de 1988 aborda a mobilização

nacional em dois momentos. Primeiramente quando determina, no inc. III do art. 22, que a

prerrogativa de legislar sobre a matéria compete privativamente à União. Importa salientar

que essa competência se refere à iniciativa das leis e não à edição unilateral de normas, por

parte do Poder Executivo ou do Chefe de Estado na representação da República que, como

sabido, tem como Poderes, “independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e

o Judiciário”192. Daí resulta que a legitimidade dos postulados legais, em razão da matéria,

decorrerem da aprovação pelo Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado

Federal)193. Na segunda oportunidade, a mobilização é referida no inc. XIX do art. 84,

esclarecendo que o instituto poderá ser decretado, total ou parcialmente, também por ato de

competência privativa do Presidente da República, desde que atendidas as seguintes

condições: (i) existência de agressão estrangeira em que se fundamenta a declaração de guerra

e (ii) prévia autorização do Congresso Nacional, que poderá posteriormente referendar o ato,

no caso de intervalo das sessões legislativas. Lembre-se que a hipótese de agressão militar

estrangeira há de ser distinta das “novas ameaças” exemplificadas na política de defesa194.

Trespassam essas condições os institutos constitucionais que preceituam

sobre a defesa e o sítio. A ordem constitucional vigente não estabeleceu o que se poderia

chamar, apenas para fins didáticos, de “estado de mobilização”. O poder constituinte que deu

191 Cf. Kildare Gonçalves Carvalho (op. cit., p. 509). 192 Cf. art. 2o da Constituição Federal de 1988. 193 Em observância aos ritos previstos para as hipóteses do art. 49, II e IV da Constituição Federal de 1988

(“autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar” e “aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas”).

194 Cf. itens 1.2, 1.4-II, 2.6, 4.8, 6.8, 6.13 e 6.16 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005.

177

origem à Carta Política de 1988 previu, apenas, no título que trata da defesa do Estado e das

instituições democráticas, os institutos do estado de defesa (art. 136) e do estado de sítio (art.

137), que têm significativos efeitos no regime das garantias constitucionais e, por

conseguinte, das liberdades públicas e do direito de propriedade. O estado de defesa visa a

“preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública

ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por

calamidades de grandes proporções na natureza”, enquanto o estado de sítio se aplica a casos

de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a

ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”, a admitir, por derradeiro, a

“declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Conhecidos os

casos em que o estado de defesa e o estado de sítio podem ser utilizados na defesa do Estado e

das instituições democráticas, torna-se relevante abordar, brevemente, os procedimentos

afetos à concretização desses institutos, a partir da leitura dos artigos 136 a 141 da Carta

Política de 1988.

Tanto o estado de defesa quanto o estado de sítio podem ser decretados pelo

Presidente da República mediante a prévia e necessária oitiva195 do Conselho da República196

e do Conselho de Defesa Nacional197. Na decretação do estado de defesa não é exigida a

prévia aprovação do Congresso Nacional, porém, uma vez praticado o ato, o Presidente da

República deverá submetê-lo àquela instituição, com as devidas justificativas, no prazo de

vinte e quatro horas, para fim de decisão a respeito, por maioria absoluta, no prazo de dez dias

contado do recebimento do pedido; se em recesso, dar-se-á convocação extraordinária no

prazo de cinco dias, período em que vigoram, sem suspensão, os efeitos das medidas. Em

contrapartida, a decretação do estado de sítio depende da prévia aprovação do Congresso 195 Procedimento previsto no caput dos artigos 136 e 137 da Constituição Federal de 1988. 196 A competência do Conselho da República consta do art. 90 da Constituição Federal de 1988, e sua

organização e funcionamento são disciplinadas pela Lei no 8.041, de 5 de junho de 1990. 197 A competência do Conselho da Defesa Nacional consta do art. 1o do art. 91 da Constituição Federal de 1988,

e sua organização e funcionamento constam da Lei no 8.183, de 11 de abril de 1991.

178

Nacional, cabendo ao Presidente da República, quando do pedido, relatar os motivos que

determinaram a escolha da medida, de modo a que a decisão seja tomada também por maioria

absoluta; no caso de recesso, o Presidente da Casa imediatamente convocará sessão

extraordinária para apreciação no prazo de cinco dias, devendo permanecer em

funcionamento enquanto durar a execução das medidas.

A decretação do estado de defesa, cujos efeitos alcançarão apenas locais

restritos e determinados, determinará o tempo de duração das medidas, as áreas abrangidas e a

indicação, de acordo com os termos e os limites da lei198, das medidas coercitivas que serão

aplicáveis, a abranger, exclusivamente, as hipóteses de restrições de direitos e de ocupação e

uso temporário de bens públicos (no caso de calamidade pública), não podendo ultrapassar o

período de trinta dias, prorrogável uma única vez desde que mantidos os motivos

determinantes. Por seu turno, o ato que decretar o estado de sítio também especificará a

duração da medida, as normas necessárias à sua execução e as garantias constitucionais que

serão suspensas, observado o prazo máximo de trinta dias de vigência para a hipótese de

“comoção grave de repercussão nacional” ou de “ocorrência de fatos que comprovem a

ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”. No caso de “decretação de estado

de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”, o estado de sítio poderá vigorar

enquanto durar a guerra ou a agressão armada estrangeira.

Verifica-se que o estado de defesa constitui etapa intermediária das medidas

extraordinárias previstas para o estado de sítio, cuja valoração jurídica, em face da amplitude

de efeitos, é mensurada pela necessidade de prévia aprovação do Congresso Nacional e da

possibilidade de suspensão (e não supressão) de garantias constitucionais, quando se tratar de

guerra ou de resposta a agressão armada estrangeira, cabendo ao Presidente da República

198 O emprego da expressão “nos termos e limites da lei” no § 1o do art. 136 da Constituição Federal de 1988

revela que o Poder Constituinte assegurou, mesmo quando da aplicação das medidas excepcionais de natureza coercitiva, a observância dos direitos e garantias fundamentais consignados no art. 5o da Carta Política.

179

designar, por força constitucional, o executor das medidas e as áreas de abrangência. A

aproximação da mobilização com os pressupostos do estado de defesa e do estado de sítio

pode ser verificada na comparação entre as medidas coercitivas previstas nesses institutos:

Estado de Defesa Estado de Sítio Mobilização Nacional

Art. 136, § 1o, da CF/88:

I - restrições aos direitos de:

a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;

b) sigilo de correspondência;

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; e

II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.

§ 3o Na vigência do estado de defesa:

[...]

I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;

II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;

III - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário; e

IV - é vedada a incomunicabilidade do preso.

Art. 139 da CF/88:

I - obrigação de permanência em localidade determinada;

II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;

III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

IV - suspensão da liberdade de reunião;

V - busca e apreensão em domicílio;

VI - intervenção nas empresas de serviços públicos; e

VII - requisição de bens.

Art. 4o, parágrafo único, da Lei no 11.631/07:

I - a convocação dos entes federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional;

II - a reorientação da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de serviços;

III - a intervenção nos fatores de produção públicos e privados;

IV - a requisição e a ocupação de bens e serviços;

V - a convocação de civis e militares.

180

Note-se, por relevante, que as medidas coercitivas constitucionalmente

previstas para o estado de defesa se referem apenas às hipóteses de “comoção grave de

repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada

durante o estado de defesa”199, não tendo o Poder Constituinte de 1988 detalhado, nesse

sentido, as medidas coercitivas aplicáveis à hipótese de “declaração de estado de guerra ou

resposta a agressão armada estrangeira”200, limitando-se a prescrever a possibilidade de

suspensão das garantias constitucionais, isto é, aquelas pertencentes ao sistema de liberdades

públicas e de dignidade da pessoa humana, provavelmente porque somente a iminência da

situação extrema de beligerância (estado de guerra ou resposta a agressão armada) será capaz

de efetivamente revelar as possíveis restrições aos direitos fundamentais, observados, por

certo, os procedimentos previstos pela ONU201, ante os princípios que regem as relações

internacionais do Brasil.

É preciso refletir sobre o conceito de defesa contido no estado de defesa e

no estado de sítio. No primeiro caso, as medidas se destinam a preservar ou prontamente

restabelecer a ordem pública202 e a paz social203. Observe-se que a natureza desse instituto

será preventiva ou restauradora. A aplicabilidade do estado de defesa se fundamenta em duas

hipóteses de ameaça à ordem pública e à paz social: (i) grave e iminente instabilidade

institucional e (ii) calamidades de grande proporção na natureza. A primeira hipótese abrange 199 Cf. art. 137, I da Constituição Federal de 1988. 200 Cf. art. 137, II da Constituição Federal de 1988. 201 Nos termos da previsão contida no subitem 6.3 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005: “A

vertente reativa da defesa, no caso de ocorrer agressão ao País, empregará todo o poder nacional, com ênfase na expressão militar, exercendo o direito de legítima defesa previsto na Carta da ONU”.

202 Ordem pública, na definição de Pedro Nunes (Dicionário de tecnologia jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 784-785): “Conjunto de princípios jurídicos, éticos, políticos e econômicos, pelos quais se rege a convivência social, no interesse público. Situação de segurança e tranqüilidade do corpo comunitário, conseqüente à sinergia normal de seus órgãos, fiscalizados pelo poder de polícia. Distingue-se em: a) interna ou nacional, quando esses princípios são observados dentro do território do país; b) externa ou internacional, a que é proveniente do efeito produzido pelo conjunto de regras, ou institutos jurídicos que os povos civilizados adotam e uma nação aplica, para estabelecer e manter confraternização com as demais nações, as boas relações políticas, econômicas e jurídicas entre si, a harmonia e a segurança sociais, o bem-estar do povo, a paz e a concórdia comuns”.

203 A definição de paz pública, que se aplica ao termo, elaborada por Pedro Nunes (op. cit., p. 806): “Estado de ordem, harmonia e segurança na convivência humana, do que resulta o funcionamento normal do organismo social”.

181

a eventual ruptura dos preceitos formadores do estado democrático de direito, cujos efeitos

são capazes de atingir a união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal,

como também – e quiçá principalmente – o exercício do poder soberano emanado do povo204

e, ainda, o princípio de separação dos Poderes da União caracterizado pela independência e

harmonia entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário205, sem desmerecer, por outro lado,

as hipóteses de ataques terroristas e, até mesmo, as perturbações causadas nas redes

cibernéticas, ante a interligação de interesses decorrente da mundialização das relações

negociais públicas e privadas.

O segundo caso de estado de defesa trata de calamidades de grandes

proporções na natureza. A esse respeito, cabe apenas registrar que, via de regra, o infortúnio

público representado por desastre de grande escala, embora possa decorrer de fatores oriundos

da natureza, também poderá ser o resultado, direto ou indireto, doloso ou culposo, da ação do

homem no ambiente, a causar desequilíbrios de conseqüências incalculáveis, não se podendo

descartar, inclusive, a atuação intencional de grupos cujos interesses residam em perturbar a

ordem pública e a paz social brasileiras, por meio de ações e procedimentos contrários às

regras democráticas.

Quanto ao estado de sítio, as medidas se dirigem a duas hipóteses distintas:

(i) “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a

ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa” e (ii) “declaração de estado de

guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. A primeira se divide em duas

possibilidades. De um lado, a comoção de grave repercussão nacional é de difícil

exemplificação porque transita pelo senso coletivo da moral e dos valores éticos, que poderá

decorrer de um movimento de ofensa ou repúdio a determinado estado de coisas ou de

calamidade cujos efeitos ultrapassem os limites de determinada localidade, repercutindo no

204 Valor contido no parágrafo único do art. 1o da Constituição Federal de 1988. 205 Cf. art. 2o da Constituição Federal de 1988.

182

país como um todo, caracterizando-se, inclusive, como medida posterior ao estado de defesa.

A segunda hipótese encontra fundamento na declaração de estado de guerra206 ou resposta a

agressão armada estrangeira207, sendo a que mais interessa ao objeto da presente análise,

tendo em vista que sua aplicabilidade é indissociável à mobilização nacional, ou melhor, a

mobilização está compreendida no escopo dessa hipótese, ao cotejo do disposto no inc. XIX

do art. 84 da Carta Política de 1988208, tendo em vista que o pressuposto de legitimidade à

execução da mobilização, segundo a redação dada ao inc. I do art. 2o da Lei no 11.631, de

2007, reside na hipótese extrema de agressão estrangeira.

Ora, se o pressuposto da mobilização tem por fundamento a agressão

estrangeira, isto é, a preparação para a resposta à agressão e, por conseguinte, a declaração de

estado de guerra, conforme determinar, em cada caso, a seqüência dos fatos, logo a

mobilização não pode ser considerada individualmente tampouco gerar efeitos práticos

anteriores à ocorrência de eventual agressão estrangeira (ou à declaração de guerra), estando,

por conseguinte, afastada a sua legitimidade para as hipóteses de estado de defesa e, também,

para a maioria das hipóteses de estado de sítio. Entendimento contrário colocará o Brasil em

situação de beligerância iminente, circunstância diferente de vigilância permanente, essa na

linha do conceito de segurança da ONU. Essa constatação aponta para vício de

constitucionalidade da Lei no 11.631, de 2007, na medida em que se constata que seus

comandos ultrapassam as previsões constitucionais209.

206 Declaração de guerra, segundo Pedro Nunes (op. cit., p. 365): “Ato pelo qual o Estado notifica outro de que

considera rompidas as relações diplomáticas existentes entre ambos e de que vai dar início às hostilidades contra ele. É ordinariamente precedido de ultimatum e retirada dos agentes diplomáticos inimigos, seguindo-se-lhe as comunicações às nações neutras. A declaração estabelece o estado de guerra e dá aos conflitantes a qualidade de beligerantes.

207 A agressão, temática também assente no direito internacional público, foi definida por Pedro Nunes (op. cit., p. 71) nos seguintes termos: “Ataque armado de Estado contra outro, sem fundar-se na legítima defesa”.

208 Como visto anteriormente, o art. 84, XIX atribui competência privativa ao Presidente da República para declarar guerra.

209 Josemar Dantas criticou o projeto de lei no artigo intitulado Iniciativa totalitária, publicado no suplemento Direito & Justiça do jornal Correio Braziliense de 27 de fevereiro de 2006, p. 2.

183

Dessa feita, questão incidental não pode escapar do fio condutor da presente

análise. Trata-se da abrangência da política de defesa, de natureza multidisciplinar, posto que,

como dito repetidas vezes, não está limitada à atuação militar ou mesmo às ameaças externas

de natureza bélica. Observado que, para efeito daquela política, estão presentes as definições

de segurança e defesa, fruto dos estudos realizados por especialistas convocados pela ONU210,

não é desarrazoado sustentar que os institutos jurídico-constitucionais destinados à defesa do

Estado e das instituições democráticas estão abrangidos no escopo da política de defesa que,

dessa maneira, depende da Carta Política de 1988 mediante cautelosa e continuada

ponderação de valores, observadas as competências exclusivas do Congresso Nacional211 e os

direitos e garantias fundamentais212.

Portanto, é razoável argumentar que a mobilização, em termos valorativos e

procedimentais, não pode mitigar ou se sobrepor à defesa, posto que a primeira é acessória da

segunda, o que torna legítima a preocupação quanto à assimetria entre uma e outra, tendo em

vista que a primeira foi tratada por lei ordinária, enquanto a segunda por decreto autônomo de

efeitos limitados.

O Poder Constituinte de 1988 não instituiu o “estado de mobilização” como

mecanismo isolado e destinado à defesa do Estado e das instituições democráticas. A

mobilização se situa no escopo da defesa, sendo parte integrante do estado de sítio,

notadamente nas hipóteses de declaração de estado de guerra e de resposta a agressão armada

estrangeira. Verifica-se, por conseguinte, equívoco do constituinte na escolha da terminologia

“estado de defesa”. Nesse sentido, as medidas coercitivas que dizem respeito “a reorientação

da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de

210 Conforme a parte introdutória e o subitem 1.4 do anexo do Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. 211 Cf. art. 49, II, IV e V da Constituição Federal de 1988. 212 Insertos no art. 5o da Constituição Federal de 1988, especialmente aqueles presentes nos incisos II e XXV:

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.

184

serviços”, “a intervenção nos fatores de produção públicos e privados” e “a requisição e a

ocupação de bens e serviços”213 já se encontram compreendidas nos incisos VI e VII do art.

139214, para a hipótese de estado de sítio fundamentado no inc. I do art. 137 da Carta

Política215, não aplicáveis, portanto, à hipótese de declaração de estado de guerra ou resposta a

agressão armada estrangeira216, cujo espectro de abrangência, em razão da excepcionalidade

de seus efeitos, o texto constitucional remeteu à futura suspensão (e não supressão, frise-se)

das garantias fundamentais, determinável em cada caso concreto mediante pedido do

Presidente da República fundamentado em motivos plenamente determinantes.

Cabe considerar que a redação dada aos incisos II a IV do parágrafo único

do art. 4o da Lei no 11.631, de 2007, inova o direito constitucional quanto à inserção de

medidas coercitivas contra as liberdades públicas e o direito de propriedade, prevendo

hipóteses não contempladas pelo Poder Constituinte de 1988, circunstância que poderá

suscitar futura inconstitucionalidade, não obstante as manifestações favoráveis dos órgãos

colegiados do Poder Legislativo que examinaram o Projeto de Lei de origem. Então, como

dispor sobre a mobilização nacional, especialmente quanto às medidas coercitivas (ou

compulsórias) previstas na Lei no 11.631, de 2007? Uma alternativa: quando o Presidente da

República efetivamente formular o pedido, acompanhando dos motivos determinantes,

dirigido ao Congresso Nacional, por meio do qual será pleiteada a autorização para decretar o

estado de sítio na hipótese de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada

estrangeira, incluindo-se a forma de atuação dos entes da República e a convocação ou

213 Medidas elencadas no art. 4o, parágrafo único, II a IV da Lei no 11.631, de 27 de dezembro de 2007. 214 São as seguintes: “intervenção nas empresas de serviços públicos” e “requisição de bens”. 215 Trata-se da hipótese de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a

ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa”. 216 Cf. art. 139, II da Constituição Federal de 1988.

185

requisição de civis e militares217, observados os ritos dos artigos 49, II, IV e V; 84, XIX, 90, I;

91, § 1o, I e II; e 137 a 141, todos da Carta Política de 1988.

Nessa linha de argumentação, restaria prejudicado o intento da Lei no

11.631, de 2007, que pretende estabelecer medidas coercitivas não constitucionalmente

previstas ou autorizadas pelo poder constituinte originário, de natureza antecipatória à

ocorrência de fatos ensejadores à decretação do estado de sítio sob o fundamento de eventual

declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Tendo em vista a prevalência das liberdades públicas218 e do direito de

propriedade, permeados, no caso, pelos princípios que regem as relações internacionais do

Brasil, caberia ao texto legal dispor apenas sobre a parte conceitual da mobilização (e da

conseqüente desmobilização) e, no que couber, do respectivo sistema (o SINAMOB), ao

amparo do art. 22, XXVIII da Carta Política de 1988, dispositivo que, embora mencione a

competência privativa da União para legislar sobre a matéria219, não expressamente previu a

possibilidade de lei ordinária que, a esse respeito, pudesse adentrar a esfera das garantias

constitucionais – diferentemente das hipóteses dos §§ 1o e 3o do art. 136 e do art. 139220 –,

ante a natureza excepcional das medidas e as competências exclusivas do Congresso

Nacional221.

217 A contemplar o art. 4o, I e V do parágrafo único da Lei no 11.631, de 2007: “a convocação dos entes

federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional” e “a convocação de civis e militares”. 218 Sugere-se a leitura de Jean-Jacques Israel (Direito das liberdades fundamentais. Manole, 2005) e de

Alberto Nogueira (Direito constitucional das liberdades públicas. Renovar, 2003). 219 Lembre-se que o processo legislativo, previsto nos artigos 59 a 69 da Constituição Federal de 1988,

compreende a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

220 Aplicáveis somente na hipótese de estado de sítio, no caso de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa” (art. 137, I, da Constituição Federal de 1988.

221 Cf. art. 49, II e IV da Constituição Federal de 1988.

186

Essa posição ganha robustez quando comparadas as medidas da Lei no

11.631, de 2007, com as de sítio e de defesa:

Estado de Defesa Estado de Sítio Mobilização Nacional

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1o O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I - restrições aos direitos de:

a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;

b) sigilo de correspondência;

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;

II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.

[...]

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.

Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.

Art. 4o A execução da Mobilização Nacional, caracterizada pela celeridade e compulsoriedade das ações a serem implementadas, com vistas a propiciar ao País condições para enfrentar o fato que a motivou, será decretada por ato do Poder Executivo, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando no intervalo das sessões legislativas.

Parágrafo único. Na decretação da Mobilização Nacional, o Poder Executivo especificará o espaço geográfico do território nacional em que será realizada e as medidas necessárias à sua execução, dentre elas:

I - a convocação dos entes federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional;

II - a reorientação da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de serviços;

III - a intervenção nos fatores de produção públicos e privados;

IV - a requisição e a ocupação de bens e serviços; e

V - a convocação de civis e militares.

187

O quadro comparativo acima apenas demonstra que a mobilização está, de

fato, compreendida no escopo do estado de sítio e, por conseguinte, na política de defesa.

Ademais, embora o texto da Lei no 11.631, de 2007, assinale que a decretação da mobilização

dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional e que as medidas coercitivas ou

compulsórias são restritas a espaços geográficos delimitados do território nacional, não há

vinculação a período de vigência, a eventual possibilidade de prorrogação, a prazo para a

apreciação da proposta pelo Congresso Nacional, aos critérios para cessação ou rejeição e os

efeitos correspondentes. A ausência desses comandos implica reconhecer, uma vez mais, que

resta prejudicada a pretensão de antecipar a prática de medidas coercitivas não

constitucionalmente previstas ou autorizadas pelo Poder Constituinte, deslocadas, portanto, da

hipótese prevista no art. 137, II, não se coadunando – repita-se – com os ritos previstos nos

artigos 49, II, IV e V; 84, XIX, 90, I; 91, § 1o, I e II; 137 a 141, todos da Carta Política de

1988.

A respeito dos dispositivos que se referem à criação, à competência e aos

procedimentos do sistema de mobilização, o SINAMOB, de que tratam os artigos 5o a 10 da

Lei no 11.631, de 2007, cumpre registrar algumas preocupações afetas à legitimidade das

medidas. Aquele sistema222 compreende a atuação conjunta, ordenada e integrada de órgãos

do Poder Executivo Federal de hierarquia horizontal223, isto é, entre eles não há ascendência,

circunstância, ante a complexidade de matérias envolvidas, poderá gerar profundas

dificuldades ao desempenho de suas atribuições, não obstante o Ministério da Defesa figurar

como órgão central. É sentida a falta de representantes dos poderes Legislativo e Judiciário,

do Ministério Público, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal e da sociedade civil.

222 Cf. art. 5o, caput e parágrafo único da Lei no 11.631, de 2007. 223 São os seguintes, de acordo com o art. 6o da Lei no 11.631, de 2007: Ministério da Defesa, Ministério da

Justiça, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Fazenda, Ministério da Integração Regional, Casa Civil da Presidência da República, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República.

188

A competência para “prestar assessoramento direto e imediato ao Presidente da República na

definição das medidas necessárias à Mobilização Nacional, bem como aquelas relativas à

Desmobilização Nacional”224, poderá configurar sobreposição ou conflito com as

competências do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional, observado o teor

dos inc. I do art. 90, I e II do § 1o do art. 91, todos da Carta Política de 1988.

No que tange à competência do SINAMOB para “formular a Política de

Mobilização Nacional”225, há de se reconhecer que essa atribuição é originária do Ministério

da Defesa, nos termos da alínea “j” do inc. VII do art. 27 da Lei no 10.683, de 28 de maio de

2003226, o que mitigaria, também, as competências para “elaborar o Plano Nacional de

Mobilização e os demais documentos relacionados a Mobilização Nacional”227, “elaborar

propostas de atos normativos e conduzir a atividade de Mobilização Nacional”228 e

“consolidar os planos setoriais de Mobilização Nacional”229. Ademais, quanto à competência

daquele Sistema para “articular o esforço de Mobilização Nacional com as demais atividades

essenciais à vida da Nação”230, convém dizer que as expressões “esforço”, “atividades

essenciais” e “vida da Nação” estão revestidas de um grau muito elevado de abstração e

subjetividade, o que poderá ensejar confusão conceitual, desvirtuamento de atribuições e, até

mesmo, sobreposição de competências em face de outros órgãos e instituições.

Outra competência controversa do SINAMOB reside na possibilidade de

“requerer dos órgãos e entidades dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de

pessoas ou de outras entidades as informações necessárias às suas atividades”231, posto que

configura preocupante precedente pois não indica parâmetros ou limites para essas

224 Cf. art. 7o, I da Lei no 11.631, de 2007. 225 Cf. art. 7o, II da Lei no 11.631, de 2007. 226 Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. 227 Cf. art. 7o, III da Lei no 11.631, de 2007. 228 Cf. art. 7o, IV da Lei no 11.631, de 2007. 229 Cf. art. 7o, V da Lei no 11.631, de 2007. 230 Cf. art. 7o, VI da Lei no 11.631, de 2007. 231 Cf. art. 8o, caput da Lei no 11.631, de 2007.

189

requisições, na subjetividade posta a cargo dos integrantes do colegiado ou à regulamentação

via decreto do Presidente da República.

Não é demais dizer que os dispositivos da Lei no 11.631, de 2007, colocam

o país na situação de latente preparação para a beligerância, ampliando a vigilância

permanente e – pior – antecipando os efeitos de conflitos que, embora potenciais, não

correspondem aos princípios que regem as relações internacionais brasileiras ou à percepção

da sociedade civil. Esses movimentos repercutem, ainda, na concepção de defesa dos demais

países, notadamente daqueles que compõem o entorno regional, fazendo com que cresça a

preocupação com o fortalecimento dos meios militares e do aparato bélico, o que poderá

refletir na estabilidade da segurança e dos esforços de cooperação para a formação da

comunidade latino-americana de nações, isso sem contar com o desconhecimento que o

próprio Estado e a sociedade têm do alcance desse novel diploma legal, a exceção de atores

com prerrogativas, interesses e habilidades negociais diretamente ligados às medidas de

mobilização, como os políticos, os militares e a indústria de defesa232.

Nesse panorama de desafios que se coloca à democracia, é possível elencar

alguns dos temas que o poder político terá de enfrentar quando da aplicação da Lei no 11.631,

de 2007, principalmente para justificar a sua constitucionalidade. Dessa maneira, (i) nas

atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado será necessário proporcionar

transparência ao texto legal, indicando as áreas de interesse estratégico; (ii) quanto à

legitimidade da atuação do poder estatal, caberá esclarecer qual a forma de participação da

sociedade em face da necessária legitimidade das medidas, não obstante o caráter

compulsório; (iii) nos aspectos referentes à logística nacional, revela-se necessário indicar os

232 Samuel P. Huntington (O soldado e o Estado: teoria e política das relações entre civis e militares. Rio de

Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996, p. 337-490) abordou as estruturas e as relações entre civis e militares dos EUA na preparação e no emprego das forças armadas, com reflexos nas ligações existentes entre as instituições públicas e a indústria privada de defesa, apresentando um quadro que ajuda a compreender as trocas e as disputas de poder.

190

fundamentos, as diretrizes e os responsáveis pelas medidas; (iv) as ações estratégicas deverão

ser indicadas, mesmo que exemplificativamente, para proporcionar transparência às ações

com efeito nas liberdades públicas e no campo privado; (v) no que tange à agressão

estrangeira, será adequado esclarecer os procedimentos, os motivos determinantes e as

prováveis conseqüências; (vi) o retorno à situação de normalidade deverá compreender

hipóteses e graduações de interrupção, suspensão ou diminuição dos motivos determinantes,

elencando métodos e critérios para apurar os níveis de anormalidade, indicando responsáveis

pelos procedimentos.

De igual forma, (vii) o preparo das ações estratégicas deverá indicar as

fontes de indenizações ou reparações econômicas (ex.: títulos da dívida pública resgatáveis

em determinado prazo), destacando a participação da sociedade, o caráter cooperativo e,

quando necessário, coercitivo das medidas que envolverão a população em geral e os atores

detentores de direito de propriedade sobre a produção, a comercialização, a distribuição e

consumo de bens e utilização de serviços; (viii) a compulsoriedade das ações e a convocação

para o “esforço” deverão se consubstanciar em critérios e atos com base nos quais as ações

compulsórias serão efetivamente executadas. Será preciso prever a forma de convocação e

exemplificar qual o “esforço” dos entes federados, ante a obrigatoriedade de atuar

conjuntamente, além da pertinência de estabelecer métodos mínimos de fiscalização e

acompanhamento, inclusive quanto a apuração de excessos cometidos, considerando

mecanismos de ressarcimento e responsabilização, observado o disposto na Lei no 1.079, de

10 de abril de 1950233.

Quanto ao SINAMOB, (ix) o planejamento das fases de mobilização deverá

indicar a metodologia e a possibilidade de colaboração da sociedade e de outros órgãos e

instituições públicas e privadas; (x) a requisição de informações não poderá infringir os

233 Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo e julgamento.

191

direitos fundamentais, de modo que deverão ser definidos critérios e atos com base nos quais

as informações serão requisitadas, com a correspondente metodologia para a guarda e

responsabilização pelo processamento; e, por fim, (xi) será necessário precisar o critério

obrigatório ou indicativo da alocação de recursos financeiros destinados ao preparo da

mobilização, observando a possibilidade de criar rubrica orçamentária específica em cada

órgão integrante do sistema e vincular os recursos às respectivas atividades originárias,

verificados os impactos e as limitações do orçamento da União, além dos debates em torno da

existência de fontes permanentes e vinculadas de custeio.

A Lei no 11.631, de 2007, coloca em posições assimétricas a mobilização e a

defesa, posto que a primeira reúne os efeitos de lei em sentido estrito, enquanto a segunda,

aprovada na forma de simples decreto autônomo, possui efeitos limitados. O problema se

amplia quando constatada a natureza acessória de mobilização no conceito de defesa. Esse

quadro significa equívoco ou estratégia. Equívoco valorativo na escolha dos instrumentos

legais. Estratégia na perspectiva de inverter fases, isto é, antecipar os efeitos do estado de sítio

e contornar o sentido dos princípios das relações internacionais contidos na Carta Política de

1988, podendo determinar, no extremo, a hipótese de cometimento de crime contra a

segurança interna do país234.

Por fim, vale lembrar o forte viés democrático do estado de sítio, posto que,

além da manifestação do Poder Legislativo, sua decretação depende também da apreciação do

Conselho da República, cuja composição é heterogênea e conta com a participação popular de

“seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois

nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo Senado Federal e dois eleitos pela

234 Tipificado no no 3 do art. 8o da Lei no 1.079/50: “decretar o estado de sítio, estando reunido o Congresso

Nacional, ou no recesso deste, não havendo comoção interna grave nem fatos que evidenciem estar a mesma a irromper ou não ocorrendo guerra externa”.

192

Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução”.235 Essa

legitimação deve servir de exemplo à mobilização no contexto da política de defesa.

235 Cf. art. 89 da Constituição Federal de 1988.

193

3 DEFESA E INTEGRAÇÃO

Os países estão sujeitos ao enfrentamento de questões que dizem respeito às

relações internacionais garantidoras do reconhecimento, da legitimidade e da capacidade de

influenciar de cada Estado e, também, à tentativa de solucionar delicados problemas internos

que abrangem desde a plena consecução de direitos fundamentais até medidas de ordem

econômica, os quais decorrem, não raras vezes, dos reflexos do jogo do poder travado no

campo externo e da falta de políticas públicas internas eficazes e continuadas, principalmente

nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil e da maioria dos que integram o

continente sul-americano. Por certo que esses dilemas trespassam a soberania e o direito

constitucional de cada país, na medida em que as políticas e as ações adotadas interferem nos

interesses das instituições e das pessoas que estão direta ou indiretamente envolvidas nos

problemas, nas decisões e nas omissões das autoridades públicas que atuam na representação

do Estado. Não é tarefa fácil identificar os limites ou os parâmetros de atuação do poder

público, posto que nem sempre as demandas nacionais e internacionais se revestem da

transparência indispensável à demonstração do que é público ou privado, dos pontos de

convergência entre esses campos e do que favorece ou prejudica determinados grupos de

interesse ou a população em geral.

Se as relações internacionais são permeadas por conflitos de interesses entre

público e privado, público e público, privado e privado, cujos reflexos alcançam a soberania e

o direito constitucional, é preciso reconhecer que o estudo desse fenômeno requer o cotejo

entre os fundamentos do direito comunitário e da integração, tendo em vista que seus aspectos

repercutem na defesa, na compreensão das assimetrias que determinam ou influenciam a

atuação do Estado e da sociedade. Note-se a relevância da natureza transdisciplinar do

conceito de “defesa nacional”, cuja essência implica ruptura com o senso comum que se

194

baseia na turva concepção de que o tema está restrito à reduzida idéia de possuir aparato

bélico e formar forças armadas com a simplória destinação de combater ameaças externas ou

internas. A defesa transcende as fronteiras territoriais para dar nova dimensão à noção de

soberania, tendo em vista que as ameaças à independência e à autodeterminação se

transfiguram nas mais diversas formas, ante a evolução tecnológica e as estratégicas

cibernéticas no contexto transnacional das empresas, da economia, do comércio e, por

conseguinte, do crime, dos fluxos de capital, dos postos de trabalho, do ambiente, da política e

do direito.

O presente capítulo trará alguns apontamentos a respeito do direito

comunitário e da integração, na tentativa de indicar os reflexos na política de defesa brasileira,

observados os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil, na

linha de que o tema pode contribuir ao processo de integração da América do Sul, desvelando

as confluências e as assimetrias presentes nos temas de integração e defesa, tendo como

pressuposto o estado democrático de direito e o conseqüente desafio a ser enfrentado no

campo político. O fio condutor da abordagem levará em conta que a integração regional e a

política de defesa podem coexistir e que é possível conciliar demandas nacionais com

interesses comunitários mediante composição de consensos voltados à cooperação e à

integração, formulando-se o direito e as políticas públicas nos cenários da globalização e da

regionalização.

3.1 Direito comunitário, direito internacional, globalização e soberania

Para Borges (2005, XXXII) o direito comunitário difere do direito

internacional e do direito constitucional porque não é constituído de normas jurídico-

positivas, pois não se origina de única fonte normativa, de natureza cogente, derivada dos

órgãos da comunidade a que se aplica: consiste num “sistema” que, por sua natureza e

195

características dessemelhantes, compreende normas de direito nacional (intra-estatal), de

direito internacional e de direito internacional privado comum não-estatais. Para o autor, o

direito comunitário tem a natureza de direito da integração, a perfazer um contexto mais

amplo de aproximação entre os países, tendo em vista as seguintes razões: (i) compreende, em

tese, um conjunto de normas plurilaterais, posto que não editadas coercitiva e unilateralmente

pelos Estados-partes, mas formuladas e aceitas por consenso, dentro do espírito de

colaboração; (ii) as normas decorrem da instituição convencional inter-estatal, notadamente

incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais na forma de tratados; e (iii) tende a formar

comunidade de contornos próprios, em estrutura e funcionamento, para o fim de proporcionar

o atendimento consensual das demandas numa intrincada teia de interesses. As diferenças

entre o direito comunitário e o direito internacional se ampliam na medida em que são

verificados os contornos do segundo, que pressupõe, na tese pluralista, a coordenação da

diversidade de ordenamentos soberanos ou, na linha da tese monista, a sobreposição do

internacional aos ordenamentos soberanos internos.

Convém observar os efeitos que o direito comunitário pode gerar na

construção e na aplicação do ordenamento jurídico interno, tendo em conta os potenciais e

efetivos conflitos na fase de elaboração das leis (o processo legislativo), na adaptação

interpretativa dos comandos legais em vigor (hermenêutica) e na constatação da plena

incompatibilidade entre os dispositivos normativos. Nesse sentido, ao ponderar valores na

solução de controvérsias, cuja escolha resvala na soberania, opera-se o significativo fenômeno

da retração do poder soberano nacional decorrente da integração. Então, poderia o direito

comunitário ser reconhecido como ordenamento jurídico, ou seja, que seus comandos, ao

ultrapassarem as fronteiras da soberania estatal dos países, pudessem reunir a legitimidade

capaz de constituir um concurso de normas de direito? Segundo Borges (2005, p. XXXII), a

ocorrência desse fenômeno depende da reunião dos seguintes requisitos: (i) a força

196

constitucional; (ii) o concurso do direito internacional público geral (pacta sunt servanda); e

(iii) o concurso do direito internacional privado comum (convenção sobre conflitos ou

concorrência de leis no espaço). Dessa maneira, no dizer do autor, a característica marcante

do direito comunitário consiste na “comunhão de objetivos institucionais perseguidos em

bloco pelos Estados-membros da comunidade”.

No entender de Borges (2005, p. XXXVI), o direito comunitário encontra

raízes no direito internacional público na forma dos tratados internacionais. Dessa maneira, as

normas comunitárias surgem e se multiplicam como conseqüência da intercessão das normas

comunitárias com as de ordem constitucional (intra-estatais) e convencionais (tratados). O

autor esclarece que o direito comunitário não constitui necessariamente um ramo do direito,

mas ordenamento autônomo que se distingue da ordem nacional e internacional, de tal modo

que essa natureza confere a condição de sistema jurídico regido por suas próprias normas.

Nessa linha, o direito comunitário é interdisciplinar e marca, por conseguinte, significativa

ruptura com o direito internacional público tradicional, na medida em que, se de um lado

representa uma continuidade das fontes normativas dos tratados, por outro configura a

convergência de várias disciplinas normativas.

Por conseguinte, posicionado no espaço que não pertence exclusivamente a

cada Estado-parte, o direito teoricamente construído a partir do consenso lastreado no

equilíbrio e no reconhecimento de valores dessemelhantes, passa a ser inserido no

ordenamento jurídico-comunitário estruturado e desenvolvido no campo relacional híbrido em

que se sustenta a integração – e não no território de determinado país –, circunstância que

transfere a aplicação das regras estabelecidas para o âmbito regionalizado de validade das

normas comunitárias. Mas, o que move a elaboração, a aceitação e a adoção de regras

jurídicas que ultrapassam os domínios da soberania dos países, cujos comandos estão sujeitos

a conflitos das mais variadas espécies e que não encontrariam parâmetros de aferição de

197

validade, eficácia e controle jurisdicional garantidores da executoriedade, a constituir

contexto de perplexidade e, até mesmo, de inexecução e descrença quanto à possibilidade de

resultados práticos que traduzam a vontade coletiva, comunitária, integradora que se sobrepõe

aos supostos interesses nacionais, que não admitem ou não reconhecem a possibilidade de

compartilhar, de ser solidário para alcançar objetivos de interesse público comum?

A compreensão desse problema pode ser encontrada na justificativa

formulada por Borges (2005, p. 55): a “integração comunitária é um fenômeno social,

juridicamente regulado, consistindo fundamentalmente num processo de harmonização do

funcionamento das estruturas jurídicas nos Estados-membros da comunidade”. O autor

sustenta que a aludida harmonização do funcionamento das estruturas jurídicas não implica,

necessariamente, a “unificação arquitetônica institucional da Comunidade”. Portanto, para

que o direito comunitário alcance legitimidade e gere efeitos práticos, não se exige a fusão

dos países em federação ou a associação em forma de confederação. Essa percepção, diga-se,

é imprescindível para evitar que se cometam erros de interpretação quanto aos fundamentos e

objetivos do direito comunitário, dando espaço a indevidas tentativas expansionistas,

totalitárias ou hegemônicas. Convém nesse sentido assinalar que os países têm resguardadas

sua soberania e forma jurídica de existir, mantendo suas tradições e individualidades. Mas,

essa autonomia será, de fato, absoluta e plenamente compatível com os preceitos que regem o

direito comunitário, no escopo de uma integração além do aspecto econômico-comercial?

O direito comunitário regula as relações intersubjetivas entre Estados e

organizações internacionais, pessoas naturais e pessoas jurídicas de direito público e privado,

envolvendo normas que decorrem de tratados celebrados, da legislação interna de cada país e

da atuação de órgãos comunitários, cujos conflitos estão presentes e constituem, por

conseguinte, o desafio político a ser enfrentado sob os pressupostos do regionalismo e da

globalização, de forte impacto e importância para a economia e para o direito, no esforço para

198

a superação das fronteiras geográficas, de modo a que possam ser estabelecidas estratégias

para a formação de blocos destinados à defesa de interesses comuns. O direito comunitário

representa, assim, uma evolução a partir da qual os países superam as limitações impostas

pelos aspectos econômicos – e também histórico-culturais – para compartilharem temas de

relevância para a mútua aceitação política, social, cultural e ambiental, apenas para mencionar

alguns exemplos. Dessa maneira, as matérias reguladas estão em permanente expansão,

adaptando-se ao âmbito de aplicação que, por sua vez, se amplia na medida em que novos

países formalizam suas adesões. Para tanto, é preciso legitimidade política para conduzir as

populações ao direito comunitário e à integração. Isso se faz com transparência nas

informações, participação popular e demonstração dos interesses (e interessados) que estão

em jogo.

O direito comunitário se vincula à regionalização, sendo esta um nível

intermediário da globalização e, na assertiva de Borges (2005, p. 65), requer a “superação

histórica dos nacionalismos”. A esse respeito, o autor pondera que o nacionalismo representa

fundamentação estritamente teórica que se socorre do princípio da soberania na forma de

“ideologia de circunstância” que, por sua vez, encontra legitimidade na viabilidade da

autonomia nacional e na independência estatal diante de influências estrangeiras

intervencionistas. Então, o direito comunitário interfere na autonomia dos países.

O mecanismo com base no qual a globalização opera traduz o que parte da

doutrina denomina de crise do conceito tradicional de soberania (Coni, 2006). Borges (2005,

p. 69-70) pondera que a positivação constitucional da soberania brasileira236 conduz a revisão

da característica convencional de “poder uno, absoluto, incontrastável, indivisível e

irrenunciável”. Nessa linha, é razoável concordar com o autor pelo menos quanto ao fato de

que a soberania se encontra diante de um paradoxo, observado que (i) a convivência com a

236 Cf. art. 1o, I da Constituição Federal de 1988.

199

integração inter-estatal comunitária flexibiliza parte dos poderes soberanos como requisito

para a institucionalização da comunidade de países, levando ao entendimento de que a

soberania não é mais absoluta e indivisível ou, em sentido oposto, a idéia de que (ii) a

soberania é “absoluta, incontrastável e irrenunciável”, o que impossibilitaria a criação de

normas comunitárias de força vinculante e, por conseguinte, constitutivas do arcabouço

jurídico fundamental do processo de integração. Tem-se, então, uma questão crucial: a

soberania pode ser compartilhada ou repartida e, ainda assim, corresponder ao conceito de

poder autônomo que autoriza dispor livremente sobre os desígnios de determinado país?

Quais seriam os contornos e os fundamentos das decisões soberanas diante das convergências

inerentes ao direito comunitário? Esses pontos interessam à política de defesa.

Observado que os desafios do direito comunitário e, por conseguinte, da

chamada crise do conceito de soberania transitam pela condicionada necessidade de

relacionamento internacional dos países, o processo de globalização tem na atuação política

fator determinante com as variáveis de segurança e defesa na nova formulação conceitual de

composição equitativa de interesses. Lewandowski (2004, p. 51) assinala que a globalização,

em sentido estrito, teve seu curso acelerado não apenas em decorrência do fim da Segunda

Guerra Mundial, mas principalmente depois do término da Guerra Fria, representando

fenômeno econômico a partir da criação transnacional do mercado mundial onde circulam

interesses, bens, capitais e tecnologias. Obviamente, esse fenômeno repercute no poder de

intervir e de influenciar dos Estados-nacionais, dando azo a uma série de eventos de difícil

mensuração que escapam do controle e do conhecimento dos governos, configurando, dentro

outros, delitos transnacionais e interferências promovidas pelo poder público e pela iniciativa

privada. Nesse cenário se intensificam o incentivo ao terrorismo e o avanço da corrupção,

considerada a possibilidade de participação e conivência dos Estados ou de seus

representantes.

200

Lewandowski (2004, p. 51) retrata a globalização como etapa do

capitalismo sustentada por possibilidades de negócios trazidas pelo avanço tecnológico, com a

conseqüente descentralização da produção pelos países ao arbítrio do mercado e sem que os

governos queiram ou tenham forças para interferir nas escolhas que determinam a nova forma

de distribuição do trabalho, da produção e da comercialização de insumos, o que gera

“progressiva interdependência entre os sistemas econômicos”. Note-se que a globalização

vista dessa maneira está reduzida à integração de mercados sem a necessária preocupação

com a distribuição de riqueza e a valorização do trabalho como fundamentos da dignidade

humana. Vergopoulos (2005, p. 44), por sua vez, sustenta que a atual noção de globalização

não se coaduna com a idéia de “uma etapa superior do capitalismo, a um novo crescimento

intensivo ou extensivo, nem a uma etapa qualitativa ou quantitativa do capital”. A crítica

desse autor se dirige à forma como a globalização é manejada, posto que, no seu entender, a

operacionalização do instituto retrata a “recente degradação das condições de funcionamento

da economia mundial, a exacerbação das disparidades de renda, a multiplicação das fraturas e

exclusões em escala nacional e mundial”. O desempenho econômico e o emprego não são

melhorados pela política da globalização levada a efeito pela inserção dos mercados

financeiros no plano internacional, na medida em que, segundo o argumento de Vergopoulos

(2005, p. 45), os mecanismos utilizados se preocupam com a desaceleração e a retração, a

transferir, de maneira intensa, os “sacrifícios unilaterais” apenas aos trabalhadores que se

sujeitam às condições de mercado para manter a sobrevivência. A descrença do autor está

resumida na seguinte passagem:

Nesse contexto, é forçoso concluir quão arcaico e obsoleto é o Estado-nação, bem como qualquer forma de regulação nacional, regional e até mundial. Os instrumentos fundamentais da regulação nacional, como as políticas monetárias e orçamentárias, parecem em nossa época inúteis. Por isso, toda a sociedade fica exposta sem proteção e defesa às múltiplas causas internacionais de instabilidade, de insegurança e de risco.

201

Na percepção de Vergopoulos (2005, p. 59) a globalização funciona como

“uma opção mítica e problemática”, limitada aos aspectos econômicos e, portanto, deslocada

das demandas sociais, de tal modo que essas circunstâncias colocam os trabalhadores como

defensores da sociedade, tendo em vista a “crise mundial do emprego, a segmentação do

mundo do trabalho, o retorno da pobreza e das exclusões sociais”. O autor não identifica um

movimento das economias e das sociedades no sentido de buscarem adaptações ao atual

modelo de globalização, mudanças essas que, como acentuou, não poderão prescindir da

observância das “realidades históricas, econômicas e sociais do planeta”.

Então, a chamada crise da soberania se encontra atrelada aos mecanismos

com base nos quais a globalização é operada. O conceito tradicional de soberania tem sido

objeto de ponderação por parte da doutrina que pretende compreender o fenômeno a partir de

sua experimentação na velocidade das variadas concepções que se entrelaçam e se confundem

na contemporaneidade. A contribuição de Carvalho (2005, p. 243) corresponde a esse

entendimento:

Soberania, palavra que tem sua origem em super omnia, superanus ou supremitas, indica o poder de mando da última instância numa sociedade politicamente organizada. No plano interno, consiste na supremacia ou superioridade do Estado sobre as demais organizações, e, no exterior, quer dizer independência do Estado em relação aos demais Estados.

A crise da noção de soberania tem-se agravado no mundo contemporâneo, havendo, inclusive, quem sustente que vivemos o ocaso da soberania, em razão, sobretudo, da superação do Estado nacional por outras formas de convivência social.

Verdú, citado por Carvalho (2005, p. 243), tem pensamento incisivo a esse

respeito:

[...] a crise do Estado nacional soberano exige a criação e consolidação de estruturas e instituições supranacionais de diversos tipos: econômico, militar, cultural [...], de modo que a questão da soberania se redimensione principalmente no plano das relações exteriores.

202

Rezek (1991, p. 227) assinala que a noção de soberania não mais comporta a

delimitação do conceito no tripé “território, população estável e governo”, desvelando, por

conseguinte, a necessidade de desenvolver a percepção de que a soberania transcende o

conceito tradicional para requerer mais, a representar um conjunto de valores a partir dos

quais o Estado soberano atue como governo que “só se põe de acordo com seus homólogos na

construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partir da

premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no interesse

coletivo”.

Imperioso refletir a respeito da noção de soberania e de seus efeitos no

campo do direito comunitário e da integração, especialmente quanto às colocações que

remetem à crise do conceito de soberania e da construção de consensos entre homólogos para

uma concepção horizontal a partir da qual os interesses coletivos possam receber tratamento

igualitário. Para que a integração, como pedra angular da comunidade, possa ultrapassar a

simples, mesquinha e diminuta idéia de compensação econômica para grupos privilegiados de

pressão e de influência no mercado e nas ações de poder, é possível sustentar a idéia de que os

países necessitam, no mínimo, reconhecer e praticar valores comuns fundamentados na

dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, nos direitos fundamentais. Mas, qual seria a

melhor fórmula para alcançar essa base comum de aceitação e reconhecimento do outro? O

outro que não é meramente um país, mas sim o conjunto de pessoas que vivem em

determinado espaço geográfico e que podem atuar sem fronteiras. O primeiro passo não

poderá ser em outro sentido senão no aperfeiçoamento do estado de direito como conquista

primeira dos povos, das gentes, de modo a banir e a afastar práticas ou ameaças de

autoritarismo, totalitarismo, demagogia e, por conseguinte, de opressão. O segundo passo,

dependente do primeiro, carece da democracia em permanente experimentação pois, mesmo

203

com todos os seus antagonismos ainda consegue permear as relações internas e externas com

liberdades capazes de proporcionar significativas e legítimas mudanças.

Borges (2005, p. 70) assinala que a doutrina debate a transferência parcial

de poderes soberanos de Estados para organizações internacionais. Exemplos dessa figura

jurídica estão presentes na União Européia e nas comunidades européias, não obstante sejam

registrados dissensos por parte das populações de alguns países, como é o caso da França, no

que toca à aprovação da proposta de aceitação de uma constituição comum. Nessa linha, a

transferência parcial de soberania implica o que se convencionou chamar de

compartilhamento dessa qualidade e mesmo a própria “negação da soberania como um poder

absoluto e ilimitado”, não divisível ou passível de compartilhamento no âmbito das relações

internacionais. A transferência de poderes soberanos resultaria, por conseguinte, na outorga

de uma espécie de “soberania parcial” às comunidades, hipótese que destoa da tese

doutrinária predominante, segundo a qual elas não “detêm a competência-das-competências

(kompetenz-kompetenz), característica da soberania estatal”, no dizer do autor.

Se com o direito comunitário as relações jurídicas internas e externas são

permeadas por um conflito sui generis que põe, de um lado, a soberania estatal absoluta e, de

outro, a transferência de poderes soberanos ao conjunto de entes não necessariamente estatais

que integram a comunidade, inevitavelmente o regionalismo assume a forma de etapa

intermediária, no contexto do processo maior de globalização que, em tese, seria irreversível.

Essa regionalização, no dizer de Borges (2005, p. 71), deve ser percebida como uma

“tendência histórica” dos povos, caracterizada pela institucionalização em blocos autônomos

de Estados que formam comunidades estatais organizadas num movimento tendente à

unificação marcada por uma política econômica comum para, ao final, configurar a superação

do econômico para alcançar a união política, como parece se desenhar na União Européia,

embora com críticas bastante contundentes.

204

A autodeterminação dos Estados sofre restrições em decorrência da

associação regional de blocos na composição de interesses em face de terceiros, assinala

Lewandowski (2004, p. 116) ao registrar que essa forma de associativismo não tem a mesma

natureza dos acordos formalizados no passado, cujo escopo consistia na concretização de

“objetivos militares ou mercantis de natureza transitória ou localizada”. O autor esclarece que,

na atualidade, as composições entre os Estados têm “caráter permanente e abrangem uma

larga gama de interesses”. Dentre os tipos de blocos comerciais que atuam regionalmente,

Lewandowski (2004, p. 117) apresenta a seguinte tipologia: (i) acordo de comércio

preferencial, em que são estabelecidos privilégios tarifários para os interessados com o

propósito de facilitar a reciprocidade de acesso aos respectivos mercados; (ii) zona de livre

comércio, onde há eliminação das tarifas apenas entre os países partícipes; (iii) união

aduaneira, marcada pela liberação do comércio entre os partícipes e a uniformização das

tarifas para os demais países; (iv) mercado comum, caracterizado pela total exclusão de

“restrições à movimentação interna de fatores de produção”; e (v) união econômica, cujo

fundamento consiste na “unificação das políticas fiscal, monetária e social”.

Não constitui objeto do presente trabalho o estudo, em detalhe, das

características de cada bloco regional. No entanto, convém ressaltar que as características de

associação podem ser mescladas, posto que, na análise feita por Lewandowski (2004, p. 119),

a “eventual progressão de uma forma de integração menos complexa para outra mais

articulada, ou a regressão para outra com menor sofisticação, ou ainda a dissolução da

parceria, depende de variáveis históricas, políticas e econômicas”. Note-se, por pertinente,

que predomina a integração na base do livre comércio, circunstância que representa, em tese,

o predomínio dos interesses econômicos como forma de equilibrar as relações internacionais,

consideradas as diferenças entre os países. Mas, seria realmente a globalização uma tendência

voluntária e inevitável em que os povos formulam livremente suas adesões? Seria a

205

alternativa mais razoável para a solução de conflitos ou seu escopo está limitado a transações

econômicas em que o próprio poder de mercado simplesmente influencia e determina a forma

de agir dos países e, por conseguinte, os desígnios das pessoas? Esse questionamento tem

cerne no convívio das diferenças e na busca pelo estabelecimento de mecanismos voltados à

construção de princípios igualitários compatíveis com a humanidade, relacionados à

distribuição da riqueza, à percepção de que é preciso pensar na alteridade, no diferente, no

devir. No entanto, predominam os aspectos econômicos e comerciais sob o pressuposto da

manutenção da paz. Nesse sentido, é valiosa a colocação de Vergopoulos (2005, p. 234):

[...] o império mundial de hoje, o da globalização, já se acha ameaçado não por sua tolerância e suposto pluralismo cultural, mas sim pela ambição de estender suas próprias normas culturais a vastos espaços do mundo, tradicionalmente regidos por outros conceitos e prioridades. Não seria a primeira vez na história em que a sorte de um império se decide não no seu núcleo, mas no espaço de suas ‘ferramentas’ culturais.

Do cotejo entre os fundamentos do direito comunitário, da globalização e do

regionalismo não pode ser deslocada, como dito anteriormente, a necessidade de compartilhar

valores minimamente compatíveis que digam respeito aos direitos fundamentais e, por

conseguinte, à dignidade da pessoa humana, de tal modo que essas percepções passem a

nortear as escolhas ponderadas de interesses comuns ou que possibilitem a conciliação.

Portanto, o caminho para essas composições implica reconhecer a democracia não como o

único, mas provavelmente como meio imediato de levar a efeito a possibilidade de mudanças,

de modo a que a soberania e o direito interno de cada país acompanhem as adaptações

requeridas pela atualidade como sustentáculo do processo de integração decorrente da vida

comunitária erigida, quiçá, de forma espontânea, sem esquecer, por outro lado, que o regime

democrático e suas instituições trafegam ao longo do tempo e estão sujeitos às vicissitudes

dos retrocessos políticos, do exercício deturpado ou da usurpação do poder, mas também ao

seu próprio aperfeiçoamento.

206

Importa retomar alguns aspectos dogmáticos do direito comunitário. De

acordo com Borges (2005, p. 72), a doutrina do direito comunitário tem origem na teoria da

União de Estados, na “representação da multiplicidade de Estados postos de regra em pé de

igualdade e subordinados a um ordenamento jurídico que a todos vincula”, dando, por

conseguinte, ensejo a “personificações de ordenamentos jurídicos nacionais”. Dessa feita, a

união de Estados implica vinculação a uma ordem jurídica supra-estatal que, por sua vez,

forma um ordenamento jurídico superior à União dos Estados, do qual pode resultar, segundo

o autor, (i) o caráter universal do direito internacional ou (ii) o ordenamento jurídico especial

que “vigora com força (eficácia) própria, embora extraída originalmente do ordenamento

jurídico internacional, especificamente dos tratados”.

A evolução da comunidade, conforme já aventado, não se limita – ou assim

não poderia estar – ao campo econômico. Necessário se faz ampliar a concepção comunitária

no caminho da integração que principia pela atuação política em sentido amplo, na tentativa

de convergir interesses para a construção de consensos. De todo o modo, não se pode olvidar

que, segundo a tradição histórica, os Estados são reconhecidos pelo direito internacional como

marco de sua origem e fundamento da soberania e da independência nacionais. No preceito

universal, as normas de direito internacional primam sobre as de direito nacional. Assim, a

partir da concepção monista, o direito internacional proporciona validade ao direito nacional,

de tal modo que é evidente a supremacia do primeiro em face do segundo. Contudo, a atuação

dos Estados não é exclusivamente regulada pela ordem jurídica internacional. Para Borges

(2005, p. 77), esse fenômeno regulação se dá sobre os “indivíduos-órgãos e agentes que

compõem, com a sua conduta, o âmbito pessoal de validade das normas jurídicas

internacionais”. Dessa feita, na linha defendida pelo autor a teoria monista não retrata

hierarquia, mas fusão que se configura no primado da supremacia do direito nacional

condicionado e superado pela evolução do direito das gentes.

207

Por outro lado, a teoria dualista coloca o direito internacional e o direito

nacional como duas ordens jurídicas distintas e independentes que proporcionam

representação interna e externa, dando formato a uma relevante questão: como resolver os

conflitos de interesses e de interpretação, no campo do direito comunitário, a partir dessa

dualidade de ordenamentos jurídicos? Na linha dualista, a soberania concebida

ideologicamente e levada a extremos implica a não-vinculação dos Estados aos tratados

internacionais, donde (i) o Estado soberano não poderia estar vinculado, contra sua vontade,

por resoluções majoritárias de órgãos internacionais e (ii) o direito nacional não poderia ser

originado de procedimentos de direito internacional. O direito comunitário rompe com essas

concepções, posto que, na assertiva de Borges (2005, p. 83), a solução de conflitos entre

normas de direito internacional e nacional requer análise axiomática (evidência, máxima,

princípio), de modo que a “opção por um ou outro estará sempre saturada de um quantum de

discricionariedade ideológico-política. E não por critérios exclusivamente jurídicos”.

Lewandowski (2004, p. 187-188) assinala que o direito comunitário

constitui um tertium genus, posto que “não se identifica nem com o direito internacional

público nem com o direito interno, visto que possui fontes, institutos, métodos e princípios

informativos próprios”. O autor ainda adverte para a necessidade de não confundir direito

comunitário com direito da União, esclarecendo que o primeiro, originado do fenômeno do

processo de integração européia sob os fundamentos de um direito novo, “significa

literalmente direito da Comunidade”, a compreender, em stricto sensu, a união econômica e

monetária da União Européia, como berço desse direito, considerado que os demais pilares da

União (a política externa e de segurança comum e a cooperação judiciária e policial no campo

penal) estão sujeitos aos regimes jurídicos concernentes a cada matéria regulada. A

supranacionalidade é, nesse sentido, a pedra angular do direito comunitário, a representar um

208

conjunto de normas oriundo de fontes próprias que se diferem dos sistemas do direito interno

ou externo:

Com efeito, os tratados de integração, que representam verdadeiras cartas constitucionais, assim como as resoluções e diretrizes baixadas pelos órgãos comunitários, vinculam não só os Estados, como também as pessoas jurídicas públicas e privadas e ainda os particulares que neles se encontrem.

Essas ponderações conduzem à constatação de que o direito comunitário

mais adequadamente se harmoniza com a teoria monista, em razão do resguardo dado ao seu

campo híbrido e, por conseguinte, sui generis de aplicação, construído a partir da

compatibilização de interesses e da construção de consensos. A propósito, fortalece essa tese

o argumento segundo o qual o reconhecimento e a gradativa inserção, no ordenamento

jurídico nacional, de regras do direito comunitário, advêm, pois, dos postulados do direito

internacional, na medida em que se apóiam na soberania dos Estados-partes para a

formalização dos tratados, vistos não como instrumentos de limitação ou restrição da

soberania estatal, mas como garantidores da independência nacional e da própria soberania,

“adaptando-a a novas condições socialmente emergentes para o seu exercício e que ditaram o

aparecimento do fenômeno comunitário” (BORGES, 2005, p. 171).

Ainda segundo Lewandowski (2004, p. 188), o direito comunitário pode ser

caracterizado como primário ou derivado, de acordo com a fonte da qual se extrai a norma

dele originada. Via de regra, será primário o direito decorrente dos tratados sob o fundamento

dos quais são instituídas as comunidades, bem como formalizadas suas respectivas alterações,

tendo em vista que estabelecem objetivos, organização e regras mínimas que tratam da forma

pela qual a integração será levada a efeito. Outra hipótese de direito comunitário primário

admite a formalização de tratados com outros Estados e mesmo com organismos

internacionais. Por outro lado, o direito comunitário derivado se origina dos atos praticados

pelos Estados-partes no sentido de dar execução às regras dos tratados. Poder-se-á cogitar,

209

então, que o poder de legislar de cada Estado-parte se encontra obstado ou limitado pelo

direito internacional e mesmo pelo direito comunitário? Seria esse o principal sintoma da

chamada crise da soberania? Como superar esses questionamentos e encontrar argumentos

com base nos quais será possível uma maior integração entre os países, a transcender o

complexo e saturado campo econômico, resguardando-se, concomitantemente, as

independências e soberanias nacionais?

Coni (2006, p. 43 e 45), ao tratar da internacionalização do poder

constituinte, destaca que o modelo do Estado soberano clássico com base na soberania

absoluta está em crise de origens distintas e inter-relacionadas: (i) de fora do Estado, ante a

transferência para entidades externas de grande parte das funções antes exercidas com

exclusividade pelos países; e (ii) de dentro do próprio Estado, como conseqüência das

desagregações internas que impedem a concretização das funções estatais, quais sejam, a

unificação nacional e a pacificação interna. Não se trata de crise da noção de soberania como

efeito decorrente da globalização (e da regionalização). Esse argumento não passa de artifício

doutrinário (ou até mesmo de uma estratégia ideológica) destinado a evitar a ruptura de uma

hegemonia e a continuidade de determinado estado de coisas.

É instigante refletir a respeito do conceito de soberania e da força das

constituições nacionais na atualidade, a agirem – ou não – como fatores relevantes da

tendência mundial “de fazer ceder a autodeterminação dos povos em face da necessidade de

manutenção ou do alcance da paz” (CONI, 2006, p. 47). Por um lado, os instrumentos dessa

renúncia ou dessa imposição de novos valores poderiam decorrer, dentre outros fatores, da

influência religiosa deturpada ou de uma ordem econômica desatrelada dos princípios

eqüitativos de distribuição de riqueza, a contaminar o campo político tomado por movimentos

totalitários ou disfarçado do ideário democrático na busca de tentar tornar a humanidade

homogênea. O outro lado, embora pouco factível ou ainda distante do estado de evolução da

210

humanidade consiste em reconhecer o outro na qualidade de pessoa humana como requisito

fundamental para a construção de princípios consensualizados de justiça, para o fim de

proporcionar melhores condições de vida, independentemente do plano jurídico-social. Outra

inquietação, portanto, não pode deixar de ser considerada: a paz poderá ser alcançada

mediante a imposição de restrições, de fórmulas econômicas e de modelos democráticos que

não preservem as tradições e os valores cultuados por uma dada nação? É possível impor

valores?237 Por certo que não. Sem dúvida, essas questões interessam e influenciam a atuação

do campo político e não podem se afastar dos estudos a respeito da política de defesa nacional

ou comum a determinados Estados-partes.

Revela-se pertinente conhecer parte da abordagem sobre o poder político no

contexto da evolução e da titularidade da soberania. Lewandowski (2004, p. 197), ao sustentar

que um “indivíduo ou grupo de indivíduos sujeita-se simultaneamente a vários tipos de poder,

porquanto têm seu comportamento moldado por vontades distintas”, utiliza das três maneiras

(coação, recompensa ou persuasão) de exercício do poder descritas por Galbraith para

assinalar que esses mecanismos estão presentes no âmbito da política, em cujo seio atua o

poder social238. Esses mecanismos influenciam o êxito ou não da integração. A par dessas

ponderações, é importante frisar que os mecanismos de exercício do poder, a depender do

regime político de cada país ou nação, determinam a incidência da coação, da recompensa e

da persuasão, de maneira velada ou não, nos âmbitos interno e externo. Desse modo, cumpre

sustentar, uma vez mais, que a democracia, mesmo com suas deficiências, proporciona maior

legitimidade ao exercício do poder, posto que os direitos fundamentais e as liberdades

públicas funcionam como instrumentos de controle da atuação estatal, para o fim de evitar ou

237 A respeito, é apropriada a leitura de Isaiah Berlin (Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios.

São Paulo: Companhia das Letras, 2002), John Rawls (Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002) e Amartya Sen (Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000).

238 O poder e seus mecanismos também são abordados de maneira intensa por Michel Foucault (Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007), Riane Eisler (O cálice e a espada – nossa história, nosso futuro. Rio de Janeiro: Imago, 1989) e Étienne de La Boétie (Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003).

211

corrigir deturpações no exercício do poder político. Essa ponderação é essencial para definir

as escolhas, pois evitam distorções que não reflitam o interesse público interno e da

comunidade em processo de integração.

Na incursão que fez no conceito clássico de soberania, Coni (2006, p. 48) se

valeu dos quatro elementos essenciais propostos por Richard Hass: (i) autonomia política e

monopólio do uso legítimo da força em seu território; (ii) capacidade de controlar fluxos nas

fronteiras; (iii) eleger, livremente, uma política externa própria; e (iv) ser reconhecido por

outros governos como uma entidade independente com direito a não sofrer qualquer

intervenção externa. O autor (2006, p. 81) também sintetiza a tipologia da internacionalização

pela formalização de tratado como resultado da autoridade emanada de um organismo

internacional e sob a forma excepcional (mas não improvável) decorrente da “vontade de uma

potência estrangeira de se imiscuir no processo de reconstrução de Estados vencidos”.

Cumpre assinalar que, para o direito comunitário, cujo pilar consiste na composição de

consensos, a formalização de tratados se revela como a forma que melhor se compatibiliza

com a natureza jurídica do instituto. As demais – autoridade de organismo internacional e

deliberação de potência estrangeira –, por não guardarem, necessariamente, a legitimidade

advinda da vontade, da liberdade de escolha do povo pertencente ao Estado-parte destinatário

da medida extrema, parecem não se coadunar com os preceitos de direito comunitário ao se

afastarem da integração quando intervêm na autodeterminação dos povos, direta ou

indiretamente, pelo uso da força legalizada, não consentida ou legitimada.

A partir desses elementos o conceito tradicional de soberania restaria

desafiado pelo direito comunitário na medida em que seus fundamentos teriam de se adaptar a

novas formas de atuação do Estado no campo internacional, principalmente a composição de

entendimentos além do campo interno governamental, muitas das vezes contaminado por

disputas partidárias descompromissadas com as demandas do povo e distantes do interesse

212

público. Mas, se o ponto nodal do direito comunitário e, por conseguinte, da integração reside

na soberania ameaçada ou em crise, importa perguntar: quem detém a titularidade da

soberania? Lewandowski (2004, p. 232) ilustrou sua obra com discussões doutrinárias das

escolas francesa e germânica239 que colocavam, de um lado, a noção de soberania na

representação do povo, retratada pela realidade empírica da nação e, de outro, na conformação

jurídica do Estado. O autor assinalou que, na atualidade, não há antinomia entre essas

doutrinas, valendo-se de Miguel Reale240:

De fato, de um ponto de vista sociológico ou político, é possível afirmar que a soberania radica-se no povo ou na nação, mas de acordo com uma perspectiva jurídica, ou seja, encarando-a como um direito, ela só pode ser exercida pelo Estado. No fundo, a soberania do povo ou da nação é a mesma do Estado, porém, apenas num segundo momento, que apresenta um caráter eminentemente jurídico.

Dessa feita, é possível depreender que o efetivo exercício da soberania passa

da vontade do povo, da nação, ao Estado juridicamente organizado que formula, aplica e

interpreta o direito e, por conseguinte, o poder de coerção. Portanto, como noção jurídica a

soberania está atrelada ao poder de representação outorgado ao Estado, que o exerce nos

campo interno e externo, limitado, contudo, aos preceitos originados dos valores cultuados

pelo povo ou pela nação. A par dessas percepções é possível suscitar que a essência da crise

não está no conceito de soberania, mas na representatividade sob o fundamento da qual a

soberania é exercida juridicamente pelo Estado241, cujos efeitos repercutem, inevitavelmente,

na forma como são estabelecidas as relações internacionais, seja nas trocas multilaterais, seja

239 O autor faz uma interessante passagem pelos autores franceses Rousseau (Do contrato social) e Emmanuel

Sieyès (O que é o Terceiro Estado?), indo aos germânicos Krause, Gerber e Gierke, sob a inspiração de Hegel e, num outro momento, a Kelsen, que defendia a soberania como “uma qualidade do ordenamento jurídico estatal, negando-lhe qualquer correspondência com a realidade empírica” (op. cit., p. 232).

240 Na lição de Miguel Reale, o “tão debatido contraste entre a escola francesa da soberania nacional e a corrente germânica da soberania do Estado provém de uma confusão entre os pontos iniciais das pesquisas e perde sua razão de ser quando examinamos o problema, primeiro, relativamente à origem ou à gênese do poder, e, depois, quanto ao poder juridicamente organizado e à forma de seu exercício” (op. cit., p. 232).

241 A respeito da legitimidade na condução dos desígnios de um povo ou de uma nação, sugere-se a leitura de Manuel Castells (O poder da identidade, Cap. 5 – Um Estado destituído de poder? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

213

na composição de blocos regionais. A crise se desloca da noção central de soberania para duas

vertentes dependentes, porém inter-relacionadas: (i) a forma como os representantes do povo

ou da nação atuam, se estão atentos às demandas de seus representados, se agem com

probidade, ética e de acordo com o interesse público; e (ii) a maneira como os representados

exercem a cidadania, como elegem e vêem seus representantes, se como meros facilitadores

de interesses pessoais ou como responsáveis pela implementação de projetos de interesse

coletivo voltados à melhoria da condição de vida das pessoas, no campo interno e, também,

no externo, tendo em vista os preceitos norteadores da dignidade da pessoa humana.

É preciso observar com cautela as teorias que propalam a irremediável crise

da soberania, a fragmentação ou o fim dos Estados, a cessão de atribuições e o

compartilhamento do poder soberano, pois todos esses argumentos podem apenas ter o

propósito de servir de artifício doutrinário destinado a manter determinado estado de coisas,

em que os mais fortes mantêm suas prerrogativas e exercem o poder (mesmo que sob a capa

democrática), como também para evitar ruptura das amarras que dificultam o devir da

humanidade. Nessa linha, o direito comunitário, como passo primeiro da integração, precisa

ter como base o reconhecimento dos valores do outro, do diferente, não com o fim tosco de

apenas antever a vantagem econômica para restritos grupos de interesses, circunstância que

deturpa a soberania e a nacionalidade e coloca os indivíduos em permanente situação de

disputa e prontidão, interna e externamente. A soberania precisa, pois, ser desvelada sob a

forma de poder cognitivo dos homens para o fim de indicar aos seus representantes que os

direitos fundamentais e, em especial, a dignidade da pessoa humana, devem constituir a

preocupação primordial dos governos e das sociedades.

Claro está que o processo de integração interessa à política de defesa pelo

fato de colocar o direito e o político diante de desafios que superam a simples noção de

preparo e mobilização permanentes para o emprego contra ameaças efetivas ou potenciais, de

214

natureza militar ou não. Na integração, o conceito absoluto de soberania e a concepção restrita

de defesa como procedimento de vigilância permanente contra um inimigo efetivo ou

potencial encontram incompatibilidade com o princípio de cooperação e aceitação recíprocas

entre os Estados, a exigir uma continuada ponderação a respeito das estratégicas bélicas, da

construção de políticas públicas de interesse comunitário e de conformação das normas de

direito interno às expectativas das sociedades em processo de integração. A propósito, esses

fatores, na qualidade de elementos de persuasão pacífica, são capazes de diminuir ou evitar a

sensação de insegurança e de instabilidade que podem levar a processos de hostilidades

explícitas ou veladas, transitórias ou continuadas ao longo do tempo, prejudicando a

integração, a manutenção da paz e, por conseguinte, o desenvolvimento e o progresso. No

caso da América do Sul, há um caminho que pode levar à superação de assimetrias

irreconciliáveis: o Mercado Comum do Sul (Mercosul).

3.2 Mercosul, agenda externa brasileira e integração

O presente tópico apresentará apontamentos a respeito dos fundamentos do

Mercosul e de linhas da política externa brasileira, estabelecendo, sempre que possível, as

repercussões desses temas no conceito de soberania para o fim de enriquecer a discussão a

respeito da política de defesa nacional no contexto da integração. Como sabido, as relações

internacionais do Brasil são regidas pelos princípios de independência nacional, de

prevalência dos direitos humanos, de autodeterminação dos povos, de não-intervenção, de

igualdade entre os Estados, de defesa da paz, de solução pacífica dos conflitos, de repúdio ao

terrorismo e ao racismo, de cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e de

concessão de asilo político. Por certo que esses princípios não constituem invenção do

Constituinte de 1988, mas retratam a sensibilidade e, também, a pressão internacional para a

adoção, ou melhor, para a restauração de preceitos amplamente aceitos e consagrados no

215

direito das gentes, sob a inspiração dos dispositivos da Carta da Organização das Nações

Unidas, da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana e da Carta da Organização

dos Estados Americanos242.

É no bojo dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil que

se situa o dever de buscar “a integração econômica, política, social e cultural dos povos da

América Latina243, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”244.

Interessa destacar que o constituinte de 1988 foi além dos temas de ordem econômica ao

ampliar o escopo da integração, compreendendo os aspectos políticos, sociais e culturais da

América Latina, a representar significativo passo, relevante avanço rumo à composição de

entendimentos consensuais e sustentados em critérios de justiça e de igualdade, em que o

reconhecimento do outro, do diferente, há de ser considerado como fator essencial ao

estabelecimento de compromissos voltados ao desenvolvimento, ao progresso e à distribuição

da riqueza sem que haja, por outro lado, qualquer ameaça à independência nacional, à

soberania e à autodeterminação dos povos. Por certo que essa integração não está deslocada

da necessidade de fortalecimento do bloco formado por países pobres, subdesenvolvidos ou

em desenvolvimento, como forma de, pelo menos, tentar estabelecer mínimos (mesmo que

frágeis) mecanismos de proteção diante de mercados e de países industrializados, ricos e

desenvolvidos, na difícil tarefa de resistir e de não ceder às ingerências e às tentações

ideológicas, políticas e econômicas.

Balizado nesse contexto foi concluído em Assunção, no dia 26 de março de

1991, o Tratado para a Constituição do mercado comum entre a República da Argentina, a

República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai.

242 Promulgada pelo Decreto no 67.542, de 12 de novembro de 1970. Carta reformada pelo Protocolo de Buenos

Aires de 1967 (Decreto no 95.559, de 8 de março de 1989). 243 A América Latina engloba vinte países independentes, a saber: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,

Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

244 Cf. art. 4o, parágrafo único da Constituição Federal de 1988.

216

Também chamado de Tratado de Assunção, esse ato constituiu o denominado Mercosul,

tendo sido aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro pelo Decreto Legislativo no 197, de

25 de setembro de 1991. Em vigor internacional desde 29 de novembro de 1991, foi

incorporado ao ordenamento jurídico pátrio em 22 de novembro de 1991, quando da

publicação do Decreto de promulgação no 350, de 21 de novembro de 1991.

Contudo, é notório que a principal dificuldade no estabelecimento de um

mínimo de integração, a iniciar, no caso, pela área econômica, reside justamente na intrincada

composição de acordos paralelos voltados ao atendimento dos mais diversos interesses, tarefa

que deve observar o conjunto de demandas dos países que constituem o bloco, restando, na

maioria das vezes, a impressão de que uns tiveram vantagens sobre outros, o que desfiguraria

o escopo da integração na medida em que as decisões políticas se distanciam dos interesses

comunitários para atender a pretensões locais direcionadas a satisfazer projetos ideológicos de

poder pelo poder, distanciados das necessidades das populações na consecução de atividades e

projetos que, somados, possam repercutir benefícios de ordem social, econômica e comercial,

atrelados à distribuição da riqueza e ao desenvolvimento de cada Estado-parte. A atuação

integrada é, portanto, procedimento difícil que, para alcançar êxito, não pode prescindir da

sensibilidade dos dirigentes políticos e da vigilância da sociedade como um todo, não apenas

dos grupos de interesses preocupados com as questões negociais de mercado, mas também da

população em geral que anseia por mudanças significativas nos mecanismos de direito e de

justiça com base nos quais será exercida a cidadania.

Por certo que a integração econômica, política, social e cultural de povos

constitui processo que se estende e se ajusta ao longo do tempo. Não prescinde do

reconhecimento de valores comuns e éticos voltados ao reconhecimento do outro, da reflexão

continuada em favor da alteridade. Embora o aspecto econômico possa contribuir para o

primeiro passo, é preciso considerar que somente essa variável dificilmente proporcionará

217

integração capaz de efetivamente distribuir riqueza e proporcionar desenvolvimento

sustentável, que não se traduzem na mera remessa de recursos, de financiamentos de projetos

ou na realização de investimentos de um Estado no outro, diretamente ou por intermédio de

empresas públicas e privadas, mas sim com base em políticas públicas construídas a partir das

reais necessidades das populações e na transferência de tecnologias capazes de modificar a

condição social de miserabilidade, de pobreza, de exclusão. É, pois, com o oferecimento de

condições de justiça eqüitativa que o espírito da integração poderá ser plenamente alcançado,

com base nas quais as pessoas possam adquirir conhecimento e, por conseguinte, desenvolver

as habilidades necessárias ao seu próprio desenvolvimento como pessoa humana, o que sem

dúvida acarretará melhoria das condições sociais e, inevitavelmente, dos países, das nações,

dos Estados-partes.

A integração não pode pretender transformar as pessoas num aglomerado

uniforme contabilizado para fins de projeções de receitas e despesas. A integração deve

colimar pela atenção, pelo respeito à diferença, ao reconhecimento de que o outro (povo) não

é igual, de que os valores, as tradições, as inclinações religiosas e as culturas variam e se

diversificam de lugar para lugar (mesmo no território de um mesmo país), mas que na

natureza humana deve prevalecer o sentimento de igualdade, de dignidade:

O pluralismo, com a dose de liberdade ‘negativa’ que acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano do que as metas daqueles que buscam nas grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do autodomínio ‘positivo’ por parte de classes, povos ou de toda a humanidade. É mais verdadeiro, pois pelo menos reconhece o fato de que as metas humanas são muitas, nem todas comensuráveis, e em perpétua rivalidade umas com as outras. Supor que todos os valores possam ser graduados numa única escala parece-me falsificar nosso conhecimento de que os homens são agentes livres, representar a decisão moral como uma operação que uma régua de cálculo poderia, em princípio, executar. (BERLIN, op. cit., 2002, p. 272)

Convém lembrar, em razão da relevância para o processo de integração, que

a América Latina congrega uma diversidade de povos de origem milenar, os nativos, os

218

índios, os negros e outros oriundos da Europa, dentre os quais os portugueses, os espanhóis,

os franceses. Essa teia de identidades amplia a complexidade do agir comunitariamente de

maneira integrada, sem restrições ou preconceitos. O passado de predomínio português e

espanhol no subcontinente não pode ser ignorado nos atuais processos de integração da

região. Carvalho (2006, p. 13), ao abordar como as colônias portuguesas e espanholas na

América passaram a condição de independentes, identifica que, no campo político, a diferença

residiu em dois pontos principais: (i) no exercício do poder e (ii) no tipo de sistema político.

No primeiro caso, o autor destaca que, no início do século XIX, a colônia espanhola enfrentou

a fragmentação política para, em meados daquele período, se transformar em dezessete países

independentes. Por seu turno, a colônia portuguesa manteve a unidade política, tendo

formado, já em 1825, o Brasil na configuração de único país independente245.

Quanto ao segundo aspecto (sistema político), Carvalho (2006, p. 13)

registra que grande parte dos países formados a partir da ex-colônia espanhola experimentou

considerável período anárquico, de modo que somente foi possível a organização do “poder

em bases mais ou menos legítimas graças a lideranças de estilo caudilhesco”, enquanto que “a

ex-colônia portuguesa, se não evitou um período inicial de instabilidade e rebeliões, não

chegou a ter uma única mudança irregular e violenta de governo (não considerando como tais

a abdicação e a antecipação da maioridade)”, mantendo, em todas as circunstâncias, naquela

oportunidade, “a supremacia do governo civil”.

A fragmentação e a manutenção da unidade, cujas circunstâncias históricas

são relevantes para melhor entender o atual processo de integração da região, são

demonstradas por Carvalho (2006, p. 16-17) na comparação que fez entre a formação inicial

das colônias e a posterior constituição de países. Assim, é de grande significado apresentar a

245 O autor também aborda os mecanismos com base nos quais o poder foi exercido pela Coroa portuguesa, a

compreender o uso e a distribuição da riqueza, o ensino, o processo legislativo, a elite burocrática, a distribuição de títulos de nobreza e de propriedades e, até mesmo, a dilação de prazo para dar fim à escravidão (dos negros).

219

síntese desses dados. No começo do século XIX, a colônia chamada América Espanhola

possuía quatro vice-reinados: Nova Espanha (México), Nova Granada (Colômbia), Peru e La

Plata (Argentina). Em 1850, a colônia espanhola havia dado origem a dezesseis países

independentes, a saber: Honduras, El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Costa Rica, México,

República Dominicana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Bolívia, Argentina,

Uruguai e Paraguai. Cuba conquistou a independência em 1902. O Paraná, em 1903. No total,

dezoito países tiveram origem na colônia espanhola. Por sua vez, a colônia portuguesa, no

início do século XVIII, era representada por dois Estados: Maranhão e Brasil divididos em

capitanias-gerais que, em 1825, deram origem ao Brasil independente (a declaração de

independência ocorreu em 1822). Desse quadro é possível depreender as grandes dificuldades

a que estão sujeitas as medidas de integração econômica, política, social e cultural dos povos

da América Latina, tendo em vista que os desafios ultrapassam os aspectos econômicos para

indicarem a necessidade de equilibrar a composição política e reconhecer as diferenças de

cada povo. No entanto, há uma via comum a percorrer: a democracia.

De concreto, mas ainda em construção, o processo de integração da América

Latina tem por linha-mestra os aspectos econômicos e comerciais. Iniciado e centralizado na

América do Sul, por meio do Mercosul e sem desmerecer os demais acordos firmados por

outros países. É oportuno lembrar que a norma constitucional de integração prevista no

parágrafo único do art. 4o da Carta de 1988 não afasta a necessidade de que os instrumentos

pertinentes sejam submetidos aos procedimentos de recepção brasileiros246, que dispõem

sobre a aprovação dos tratados pelo Congresso Nacional, na representação da soberania

246 A esse respeito, o STF firmou o seguinte entendimento: "Sob a égide do modelo constitucional brasileiro,

mesmo cuidando-se de tratados de integração, ainda subsistem os clássicos mecanismos institucionais de recepção das convenções internacionais em geral, não bastando, para afastá-los, a existência da norma inscrita no art. 4o, parágrafo único, da Constituição da República, que possui conteúdo meramente programático e cujo sentido não torna dispensável a atuação dos instrumentos constitucionais de transposição, para a ordem jurídica doméstica, dos acordos, protocolos e convenções celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul" (CR 8.279-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17 de junho de 1998, Diário da Justiça de 10 de agosto de 2000). Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 de agosto de 2007.

220

popular, mesmo que os atos de pactuação tenham sido previamente firmados pelo Presidente

da República como Chefe de Estado eleito democraticamente por sufrágio universal, nos

termos, respectivamente, dos artigos 49, I e 84, VIII da Carta de 1988, dispositivos esses que

atribuem, respectivamente, ao Poder Legislativo a competência exclusiva para “resolver

definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou

compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, e, ao Presidente da República, também em

caráter exclusivo, a competência para “celebrar tratados, convenções e atos internacionais,

sujeitos a referendo” do Congresso Nacional.

A par dessas competências, convém lembrar que, no campo de proteção dos

direitos e garantias fundamentais, o constituinte de 1988 consignou que a República

Federativa do Brasil deve obedecer a outros direitos e garantias presentes no texto

constitucional, não exclusivamente os elencados no rol do art. 5o, a compreender, também, os

que decorram do regime e dos princípios adotados pela Carta Política, ou os que tiverem

origem nos tratados em que o país figure como parte. Relevante destacar que a Emenda

Constitucional no 45, de 30 de dezembro de 2004, incluiu no texto do art. 5o os §§ 3o e 4o. O §

4o dispõe sobre a submissão do Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI)247,

enquanto o § 3o inovou a forma de recepção de tratados que versem sobre direitos humanos,

ao adicionar a regra de quorum qualificado para que o ato, quando internalizado, passe a

vigorar com força equivalente a emenda constitucional248. Essa alteração alimenta a discussão

a respeito dos efeitos da nova regra, trazendo ao debate os argumentos segundo os quais

haveria gradação de direitos humanos: uma parte recepcionada como lei ordinária e, outra,

como de ordem constitucional, a trespassar, em cada caso, a maior ou menor possibilidade de

247 Também chamado Estatuto de Roma, foi incorporado ao direito interno pelo Decreto no 4.388, de 25 de

setembro de 2002. Esse tratado entrou em vigor internacional no dia 1o de julho de 2002 e, para o Brasil, em 1o de setembro de 2002.

248 Recente julgado do STF: HC 90.172, Relator Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 5 de junho de 2007. Informativo 470. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 13 de agosto de 2007.

221

modificação e de pleno exercício das garantias, além da necessidade – ou não – de submeter

os tratados anteriores ao novo rito, para conferir-lhes plena eficácia.

Essa questão interessa ao presente trabalho, pois revela a tendência cada vez

maior à supremacia dos direitos humanos como elemento indispensável a todo e qualquer

processo de integração, a compreender os aspectos econômicos, comerciais, políticos, sociais

e culturais. O econômico, o comercial e o mercadológico tendem a ceder aos valores humanos

como condição sem a qual a plena integração não será alcançada. Mas isso não pode ser uma

estratégia, uma armadilha para evitar a reação de países a políticas hegemônicas das potências

desenvolvidas. Impossível escapar do fato de que a integração para além do econômico pode

não interessar a grupos de interesses que dominam o cenário político, influenciam a atuação

do corpo social e delineiam um padrão homogêneo de sociedade, o que enfraquece a

pluralidade de que depende a democracia e as relações internacionais. Por essas razões é

preciso fortalecer o Mercosul e ampliar a legitimidade dos instrumentos voltados ao exercício

dos direitos humanos, sob o pressuposto de que esses postulados encontram caminho mais

seguro nos estados democráticos de direito que, mesmo em face da permanente

experimentação, aperfeiçoamento e até instabilidade, proporcionam liberdades a partir das

quais as sociedades e os países podem decidir seus desígnios. Não é demais lembrar que o

Brasil aderiu à Convenção Americana dos Direitos Humanos cerca de vinte e três anos depois

de sua elaboração249, ou seja, foi somente depois do regime militar e em meados do terceiro

ano do primeiro governo civil com eleições diretas para Presidente e Vice-Presidente da

República que o país, apesar de ainda lançar declaração interpretativa a determinados

dispositivos250, internalizou o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969.

249 Cf. Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992. 250 A declaração interpretativa foi redigida nos seguintes termos: “O Governo do Brasil entende que os arts. 43 e

48, alínea “d”, não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão da anuência expressa do Estado” (art. 2o do Decreto no 678/92).

222

No campo econômico internacional, Magalhães (2006, p. 121-140) registra

que o novo milênio e as expectativas promissoras para os países subdesenvolvidos revelam

um cenário diferente daquele vivido por ocasião da Revolução Industrial, período que, no

final do século XVII, marcou a distância entre países ricos e pobres, aferida no parâmetro do

produto per capita. O autor acrescenta que o fenômeno do terceiro milênio reside no rápido

crescimento de nações continentais, citando como exemplos a Índia e a China, não obstante as

assimetrias internas e externas que envolvem esses dois países, suscitando se o crescimento

será continuado ou não ao longo do tempo. O autor ainda pondera que os desequilíbrios entre

as grandes populações e os territórios nacionais, observados a “escassez relativa” de recursos

naturais e o distanciamento cultural do capitalismo, não constituem, no atual cenário, motivos

para a permanência no estado de subdesenvolvimento que, por sua vez, retrata uma grande

contradição da humanidade, fato que serve para demonstrar que a prosperidade ou o caminho

aberto para essa situação não se confunde com a melhoria das condições de vida de toda a

população dos países que intensamente atuam no mercado globalizado, donde as

desigualdades podem até aumentar em decorrência de processos de integração com fins

exclusivamente econômicos e comerciais, descompromissados com as demandas sociais.

De todo o modo, Magalhães (2006, p. 122-123) guarda ponderado otimismo

ao observar que o contexto em que o Brasil se encontra proporciona condições favoráveis a

políticas de desenvolvimento. No entender do autor as dificuldades brasileiras ultrapassam o

campo econômico. Não se trata, necessariamente, de inadequação das instituições. O autor se

reporta às origens históricas de exercício do poder para indicar os prováveis motivos para o

subdesenvolvimento do país, utilizando-se da expressão “barreira ideológica” para

caracterizar as elites “convencidas a adotarem voluntariamente, e por as considerarem as

melhores para o país, medidas em choque direto com o objetivo do desenvolvimento”. Mas,

quais os fatores que efetivamente impedem o desenvolvimento mais equitativo dos países no

223

mercado globalizado? A tese predominante consiste no argumento dos países ricos de que

seria inviável o desenvolvimento econômico em escala planetária. Tem-se, então, uma crítica

ao Consenso de Washington251, argumentando que o fiel cumprimento de suas regras levou a

América Latina à semi-estagnação, enquanto o descumprimento, pelos países asiáticos, gerou

rápido crescimento. No entender do autor, o caminho para a solução desse e de outros dilemas

passa pela criação, nos países subdesenvolvidos, de núcleos de pensamento crítico para o fim

de gerar paradigmas econômicos ajustados às diferentes realidades, o que poderia tornar

factível a atuação no mercado globalizado sem que para isso fosse necessária a subserviência,

com ênfase às exportações, ao crescimento acelerado do produto interno bruto e à

implementação de políticas destinadas a corrigir os alarmantes níveis de concentração de

renda e desemprego252.

Depreende-se, pois, que a política externa brasileira253, embora tenha por

prioridade a integração da América do Sul, está preponderantemente voltada aos aspectos

econômicos e comerciais (com as variáveis energia, ilícitos transnacionais, infra-estrutura,

fluxos de pessoas, políticas industriais e agrícolas, problemas ambientais, segurança,

tecnologia, cultura), atrelados à diversificação de parcerias entre países em desenvolvimento e

à manutenção das históricas negociações com os países ricos. Afigura-se a tentativa

empreendedora limitada pelo receio de represálias. Embora demonstre atitude voltada ao risco

e à confiança no potencial brasileiro, a política externa mantém cautela em face dos interesses

251 Política formulada em 1989 por economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e

do Departamento do Tesouro dos EUA, consistindo em regra básica aplicável ao ajustamento macroeconômico dos países em desenvolvimento, fundamentada nos seguintes pilares: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro direto, privatização de empresas estatais, desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e proteção ao direito de propriedade.

252 As ponderações a respeito das opões dos países na adoção de modelos próprios diante de crises econômicas e institucionais também são objeto dos estudos de Manuel Castells (Fim de milênio – A era da informação: economia, sociedade e cultura, v. 3. São Paulo: Paz e Terra, 2000) e de Hélio Jaguaribe (O Brasil ante o século XXI. In O Brasil é viável?: uma análise de aspectos críticos da realidade brasileira, seguida de esboço de diretrizes estratégicas para um projeto nacional. São Paulo: Paz e Terra, 2006).

253 Conforme o teor da Mensagem do Presidente da República encaminhada em 2007 ao Congresso Nacional, na abertura da 1ª Sessão Legislativa Ordinária da 53ª Legislatura, por força do disposto no inc. XI do art. 84 da Constituição Federal de 1988. Em 2008 o quadro manteve os mesmos fundamentos.

224

dos países desenvolvidos. Ainda é muito tímida a iniciativa de constituir sólido direito

comunitário, no âmbito regional, a partir do qual o processo de integração mais amplo possa

ganhar corpo, a compreender os aspectos políticos, sociais e culturais. O predomínio

econômico e comercial nos processos de integração influencia a elaboração do direito, com

forte tendência à planificação de regras e procedimentos para uniformizar demandas com o

intuito de proporcionar sensação de eqüidade e segurança jurídica.

Nesse cenário, cumpre destacar a relevante iniciativa, na América do Sul, do

desiderato de constituir o Parlamento do Mercosul como mecanismo de grande significado

para a integração de escopo mais amplo e, por conseguinte, representa significativo esforço na

construção de consensos regionais atentos às peculiaridades econômicas, políticas, sociais e

culturais em razão da natureza democrática da representatividade dos partícipes (pela

legitimidade outorgada a parlamentares eleitos pelo voto popular direto nos países de origem),

principalmente da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, signatários do Mercosul e

do protocolo constitutivo do respectivo Parlamento254, além, é claro, de Bolívia, Chile e

Venezuela, nos limites dos acordos firmados. Em julho de 2006 o bloco foi ampliado com o

ingresso da Venezuela, na qualidade de membro pleno. Contudo, a efetividade dessa medida

ainda está sujeita à deliberação do Congresso Nacional brasileiro.

Se para superar a agenda econômica e comercial as regras de integração

devem observar princípios de direitos humanos, o processo de integração depende

essencialmente da democracia, que poderá ser deturpada quando utilizada como instrumento

para a consecução de projetos de poder e concretização de interesses de grupos que pretendam

manter a hegemonia ideológica, mascarando ameaças totalitárias que configuram óbice à livre

254 Em vigor internacional desde 24 de fevereiro de 2007, foi ratificado pelo governo brasileiro em 23 de

novembro de 2006.

225

integração política, social e cultural. Na força democrática do Protocolo de Ushuaia255

(firmado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) reside a legitimidade do processo de

integração, no simbolismo de reafirmar os princípios e objetivos do Mercosul e dos

correspondentes acordos de cooperação celebrados com Bolívia e Chile. O desprezo ou a

ruptura com os ideais democráticos256 implicará o isolamento dos países, tendo em vista que a

recusa leva à suspensão de participar dos processos decisórios e da fruição dos direitos

acordados no âmbito do bloco. Além do compromisso democrático de Ushuaia, o Protocolo

Constitutivo do Mercosul contempla o propósito dos Estados de levar a efeito uma integração

mais ampla, na linha do pluralismo e da representação popular de todos os países.

Em que pese as intenções de ampliar as bases democráticas do processo de

integração para torná-lo menos pragmático sob o ponto de vista econômico e comercial,

priorizando-se o multiculturalismo257 e a conjugação de esforços para o alcance de resultados

coletivos, é preciso admitir que está distante a consecução desses objetivos. Verifica-se que o

Mercosul e a agenda externa brasileira estão em linha com os tradicionais princípios de

soberania e não guardam elementos de supranacionalidade capazes de macular a atuação

independente do Brasil258, posto que, em tese, os atos estão sujeitos aos ritos próprios de

direito internacional e, em cada caso, à deliberação do Congresso Nacional, à luz da

legislação nacional no que tange à internalização das regras comuns firmadas entre blocos ou

países. É evidente que o Mercosul e, notadamente, o Protocolo Constitutivo de seu

Parlamento, constituem um relevante gesto na direção da integração política, social, cultural e

255 O Protocolo de Ushuaia, formalizado no dia 24 de julho de 1998, foi internalizado no Brasil na forma do

Decreto no 4.210, de 24 de abril de 2002, publicado no Diário Oficial da União de 25 de abril de 2002. 256 No que tange os princípios democráticos na América Latina, é muito proveitosa a leitura do Relatório

intitulado A Democracia na América Latina rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos, elaborado pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (tradução de Mônica Hirts). Santana do Parnaíba, SP: LM&X, 2004.

257 Sobre o tema, C. Taylor (Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998). 258 Os temas soberania e integração também foram abordados por Paulo Napoleão Nogueira Silva (Direito

Constitucional do Mercosul. Rio de Janeiro: Forense, 2000).

226

econômica dos povos da América Latina, tendo como embrião a América do Sul, desde que

respeitadas as diferenças, a dignidade da pessoa humana e os princípios democráticos.

Essas reflexões denotam que a integração possibilita a superação de temas

econômicos e comerciais, afastando o argumento segundo o qual a soberania seria

fragmentada, compartilhada ou repartida em decorrência de valores, princípios e regras

comuns, posto que não se trata de mero positivismo, mas da percepção de que pode haver

crescimento, geração e distribuição de riqueza entre povos soberanos de origens diferentes,

desde que compartilhem valores comuns sem que para tanto o peso da moeda e a força de

políticas veladamente coercitivas ou persuasórias influenciem ou determinem os desígnios das

pessoas, das sociedades e dos países. Com essas percepções, passa-se a abordagem da política

de defesa brasileira no escopo da integração sul-americana.

3.3 Política de defesa brasileira e integração sul-americana

O tradicional conceito de soberania cedeu espaço a novas formas de

compreender a atuação dos Estados e das nações no contexto internacional, tendo em vista os

efeitos do mundo globalizado nas políticas internas de cada sociedade. Assim, decorrem

teorias segundo as quais a soberania restaria repartida, compartilhada ou fragmentada.

Provavelmente, o poder soberano ainda permaneça com os contornos originais, ou seja,

caracterizado pela decisão – nem sempre livre – dos povos na escolha das mais apropriadas

formas que aparentam assegurar a manutenção ou a assunção de determinado estado de

coisas, seja pela imposição de valores próprios ou pela necessidade de aceitar os de outros,

tendo como fatores decisivos o uso da força, da moeda ou mesmo da religião, em conjunto ou

isoladamente, de maneira abrupta ou continuada. Nessa ordem de idéias, as percepções acerca

da soberania se deslocam do senso de humanidade sem observar que os povos se distinguem

227

pelas origens, etnias, cor, prosperidade econômica, línguas. Portanto, nos processos de

integração é preciso revigorar o multiculturalismo e agir com base na alteridade.

Os movimentos de integração partem do pressuposto de que é preciso

pensar estrategicamente aspectos econômicos e comerciais para estabelecer critérios mínimos

de equilíbrio na tentativa de superar o nada ingênuo propósito de evitar fragilidade ou

vulnerabilidade a partir da qual o outro terá campo aberto para aproveitar o êxito. Não se trata

de rotular de tiranos os necessários propósitos da economia e do comércio, tendo em vista que

as sociedades giram em torno da subsistência, da troca e das negociações. Ocorre que desses

fatores também decorrem conflitos que vão dos diplomáticos aos bélicos, dos jurídicos aos

religiosos. A economia e o comércio, assim como a política e o direito, não podem ser

considerados apenas sob a ótica do conflito. Ao contrário, precisam ser compreendidos como

alternativa para a composição de consensos que determinem a distribuição equitativa da

riqueza para o fim de diminuir ou evitar desigualdades que levam a animosidades efetivas ou

potenciais entre países, blocos, regiões hemisféricas ou territórios de um mesmo país num

silencioso, continuado e prenhe sentimento de vingança, discórdia, desconfiança e desrespeito

à condição humana do outro. É nesse contexto que a política de defesa brasileira precisa ser

pensada no cenário de integração regional sul-americana, a partir do Mercosul quiçá como

instituição preparatória da conjugação de valores comuns dos povos da América Latina nos

campos econômico, político, social e cultural, nos quais, por via de conseqüência, estão os

aspectos humanitários259.

Com as devidas cautelas, a experiência da Europa pode ajudar a formar um

novo pensamento sul-americano em matéria de defesa, razão pela qual é de valia registrar

determinadas práticas vivenciadas por aquele continente. Borges (2005, p. 69) assinala que a

doutrina do direito comunitário europeu está assentada no pilar formado (i) pelas três

259 Nessa linha, a leitura de Emmauel Lèvinas (Entre nós – ensaios sobre a alteridade. Rio de Janeiro: Vozes,

2004; e Humanismo do outro homem. Rio de Janeiro: Vozes, 1993).

228

comunidades européias260, (ii) pela política externa e de segurança comum (PESC) e (iii) pela

área de justiça e assuntos internos. Essa “metáfora arquitetônica” foi construída depois da

Segunda Guerra Mundial na tentativa de diminuir as diferenças com base em variáveis que

determinam a probabilidade de ocorrer conflitos, criando interdependência entre todos os

países envolvidos para o fim de manter a paz calcada na cooperação recíproca, cujos efeitos

ultrapassam o continente europeu tendo em vista o grau sofisticado de composição que pode

ser observado para ilustrar possíveis cenários de integração.

Daquelas comunidades, a CECA e a EUROTOM têm correspondência

direta com os temas de segurança e defesa. A primeira foi fundada por França, Itália e a então

Alemanha Ocidental, em 1951, no Tratado de Paris, com o objetivo de integrar países e evitar

outra guerra mundial. Por sua vez, a EURATOM, constituída em 1957 pelo Tratado de

Roma261, tem o objetivo de fomentar a cooperação para o desenvolvimento e a utilização da

energia nuclear e, por conseguinte, elevar a condição de vida dos países-membros. Não

obstante a relevância dos temas justiça e assuntos internos, a PESC tem especial relevância

para a abordagem proposta no presente trabalho, tendo em vista sua natureza de cooperação

intergovernamental baseada nos objetivos de (i) salvaguardar os valores comuns, os interesses

básicos e a independência da União Européia, de (ii) reforçar, sob todas as formas, a

segurança daquela comunidade, de (iii) manter a paz e ampliar a segurança internacional e,

por último, de (iv) desenvolver e consolidar a democracia e o estado de direito, com respeito

aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.

Note-se que há contradição de princípios na política de defesa comum

européia. Dos seus quatro primeiros objetivos, dois são impeditivos de uma integração mais

ampla, pois admitem a salvaguarda, até as últimas conseqüências, dos valores, dos interesses e

260 Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), Comunidade Européia da Energia Atômica

(EURATOM) e Comunidade Européia (CE). 261 Instituiu a Comunidade Econômica Européia.

229

da independência exclusivamente em favor da União Européia, sem considerar as demais

nações, enquanto que os dois últimos buscam a paz e a segurança internacionais, a

consolidação da democracia e seus indissociáveis mecanismos de direitos humanos e

liberdades fundamentais. A contradição reside na assimetria que revela os resquícios de

soberania absoluta exteriorizada e contrastada com as realidades de outros blocos ou nações,

sujeitando os princípios democráticos à condição de instrumentos oponíveis àqueles que os

desafiarem, o que representa uma antinomia que coloca a democracia entre a paz que se

prepara para a guerra, podendo ser utilizada como meio de uma ou outra condição, servindo

de artifício para práticas persuasórias e expansionistas por meio de estratégias sofisticadas de

convencimento e imposição de valores, alternativamente às pretéritas anexações forçadas de

territórios, às intervenções não autorizadas e à prática de guerras justas, injustas ou de

conquista, como outrora foi utilizada a soberania absoluta. Não é demais dizer que a

democracia é contida pelas demandas que estão em jogo, fazendo com que a contradição de

seus argumentos atinja os próprios valores defendidos pelo país que a maneja, como foi o

caso da suspensão dos direitos civis e das liberdades públicas decretados pelos EUA para

fazer face às investigações, às medidas coercitivas e às ações intervencionistas armadas que

decorreram dos atentados terroristas de 11 de setembro.

Na medida em que a PESC admite a defesa incondicional das demandas da

comunidade a que se dirige, tolera a omissão ou a prática de atos que podem mitigar os

preceitos democráticos em que se inspira, concorrendo, inclusive, para o enfraquecimento da

paz e a ampliação de desequilíbrios que levam a instabilidades prejudiciais à segurança

internacional. De certo que a América Latina e, especialmente, o continente sul-americano,

ainda não experimentaram a composição de interesses que efetivamente transcendam a

230

economia e o comércio, sem desmerecer os acordos estratégicos formalizados262. Todavia, o

Tratado de Assunção, o Protocolo de Ushuaia e o Protocolo Constitutivo do Parlamento do

Mercosul constituem os pilares da integração sul-americana, constatando-se que a ênfase

embrionária aos aspectos econômicos e comerciais foram associados à tendência de

composição política, tendo em vista a prevalência dos princípios democráticos e a

possibilidade de tomar decisões vinculatórias não somente a cargo dos chefes de Estado, mas

– numa fase ainda em construção – também consignadas a representantes eleitos pelo voto

direto dos povos integrantes dos poderes legislativos de cada Estado-Parte, no Parlamento do

Mercosul. Entretanto, nem a América Latina nem a América do Sul dispõem de um tratado

voltado à defesa comum, o que remete à reflexão anteriormente suscitada: de que defesa se

trataria? Seria esse um tema de interesse para a integração da região? A respeito do tema, o

pensamento de Silva (2000, p. 343):

A questão relativa à defesa comum, parece ser uma das resultantes lógicas da existência de um ‘bloco’ econômico e social comunitário; pois, no atual contexto mundial, dificilmente a existência de uma tal entidade poderá deixar de, por extensão e corolário natural, representar algo muito próximo de uma confederação política. Tal confederação se afigura, aliás, mais estreita do que a Comunidade de Estados Independentes, surgida após a extinção da União Soviética. Por outro lado, não se pode excluir a possível formação, até mesmo, de uma ‘federação indireta’, às avessas e assimétrica, na medida em que as Constituições dos seus membros forem sendo compatibilizadas umas com as outras.

Silva (2000, p. 343) ainda assinala que as dificuldades para implementar

uma política de defesa comum vão além dos aspectos constitucionais que envolvem os países

do Mercosul. Para o autor, os maiores entraves são de ordem factual e permeiam a atuação

262 Com destaque para os atos promulgados pelo Brasil de 2005 até junho de 2007, dentre os quais: a Convenção

Interamericana sobre Transparência nas Aquisições de Armas Convencionais (Decreto no 6.060, de 12 de março de 2007); o Memorando de Entendimento firmado com a Argentina para estabelecer um mecanismo permanente de intercâmbio de informações sobre a circulação e o tráfico ilícito de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais correlatos (Decreto no 5.945, de 26 de outubro de 2006); o Acordo de Cooperação firmado com a Argentina para o combate ao tráfego de aeronaves supostamente envolvidas em atividades ilícitas internacionais (Decreto no 5.933, de 13 de outubro de 2006); e o Acordo Regional de Cooperação para a Promoção da Ciência e da Tecnologia Nucleares na América Latina e no Caribe – ARCAL (Decreto no 5.885, de 5 de setembro de 2006).

231

política na região, com destaque para temas que envolvem diretamente Brasil e Argentina, os

dois maiores parceiros do bloco. O autor lembra as animosidades históricas que, territorial e

demograficamente envolveram os dois países, além da economia de todos os países da região,

fatores que refletem nas respectivas populações, isso porque não se pode deixar de considerar

que a base da integração tem por eixo central os aspectos econômicos e comerciais que

influenciam políticas públicas e, notadamente, a política de defesa, tendo em vista que o êxito

do bloco depende da confiança recíproca e do compromisso de não beligerância efetiva ou

potencial.

Essas premissas indicam a necessidade de fortalecer o Mercosul, posto que a

existência do bloco representa mais do que acordos econômicos e comerciais, guardando forte

tendência à consolidação de uma integração política a partir de seu Parlamento. A defesa

comum ou um sistema de defesa que reúna interesses e valores convergentes será a

conseqüência natural do amadurecimento das sociedades e de suas escolhas como efeito do

processo de integração ampla, principalmente em tempos de paz. Para Silva (2000, p. 350),

“vingando a defesa comum, muitos outros problemas e ressentimentos ficariam superados

entre os respectivos países”, entendendo essa proteção comum como mecanismo de

integração que constitui um dos poucos aspectos do bloco que não demandam ajustes

constitucionais:

De notar, a defesa comum é um dos poucos aspectos a envolver o Mercosul sem, no entanto, demandar adequações constitucionais pelos países que o compõem: pode ser perfeitamente equacionado mediante legislação infraconstitucional, uma vez que não importa em diminuir, mas em ampliar o alcance da soberania de seus membros através da integração; deixando de lado no seu âmbito o conceito de ‘estrangeiro’, embora mantido o conceito de ‘nacional’ e, a nosso ver, superando até mesmo a expressão ‘direito comunitário’, em benefício da expressão ‘direito da integração’.

Segundo as reflexões de Silva (2000, p. 352), a efetividade do Mercosul e,

por conseguinte, da futura composição de consenso para a defesa comum da região encontra

232

maior obstáculo nas “estruturas internas” de cada Estado-Parte, especialmente nas do Brasil e

Argentina, países que teriam mais a conceder do que a obter. O autor destaca que nesses

países são fortes as influências das “oligarquias econômicas regionais” que acabam por

determinar como os governos devem se comportar no contexto regional, ponderando que a

plena efetividade do Tratado de Assunção vai além da ação diplomática na superação de

crises para alcançar a percepção de vantagens e de benefícios mútuos que somente seriam

revelados a partir de uma “reformulação e adequação dos respectivos pactos federativos” que,

no dizer do autor, seria “ampla no sentido horizontal” e “profunda no sentido vertical”,

transformação sem a qual a integração não passará dos aspectos meramente econômicos e

comerciais, vitimada pelas “guerras fiscais” entre os Estados brasileiros e pela acirrada

concorrência entre os países ou entre países e empresas do bloco, gerando crises pontuais

contornadas pela diplomacia e transferidas, total ou parcialmente, para as próximas disputas.

Silva (2000, p. 353) destaca, por fim, que a hegemonia da superpotência

norte-americana exige a existência de blocos supranacionais não como forma de fragmentação

ou enfraquecimento da soberania dos Estados nacionais, mas essencialmente como alternativa

mais viável para preservá-la, tendo por resultado o determinismo das relações dos campos

político, jurídico, militar e econômico:

Com certeza, a questão da defesa comum nem sempre esteve ligada apenas a interesses econômicos: tem sido notória a cooperação de meios militares e logísticos de diversos países, para a proteção eventual de espaços geográficos sem, necessariamente, a complementação de convergências econômicas. A partir da realidade que a última década deste século apresenta para o século XXI, isso não será mais possível: ‘o político-jurídico’ e o ‘militar’ devem voltar a determinar o ‘econômico’, e vice-versa; a nenhum destes parece possível dissociá-lo dos demais.

A política de defesa brasileira corresponde a essa concepção integradora da

região com base no Mercosul. Dentre os pontos mais relevantes estão a solução pacífica das

controvérsias e o fortalecimento da paz e da segurança internacionais. Apesar de considerar

233

pouco provável um novo conflito generalizado entre Estados, admite a renovação de conflitos

étnicos e religiosos, além da exacerbação de nacionalismos e da fragmentação de Estados, o

que poderia ameaçar a ordem mundial. A aproximação entre defesa e integração também se

verifica nas disputas por áreas marítimas, domínio aeroespacial e fontes de água doce e de

energia, com reflexos que ultrapassam o aspecto formal da soberania para atingir a

independência dos países na tomada de decisões e na adoção de medidas em seus territórios,

como fontes de conflitos. Exemplo dessa polêmica está na preservação da Amazônia

brasileira, sobre a qual o Brasil tem soberania ao tempo em que sente cada vez mais próxima

a possibilidade de ver sua independência mitigada por força da precariedade dos meios de

preservação ambiental, na demonstração de que o poder predominante maneja o argumento da

maneira que melhor lhe convém, pois no passado a guerra de conquista e a exploração

econômica e comercial tinham como um de seus pressupostos de validade a existência de

áreas não-cultivadas ou exploradas no território objeto da ofensa.

O ambiente regional e o entorno estratégico receberam o seguinte

tratamento na política de defesa:

3. O AMBIENTE REGIONAL E O ENTORNO ESTRATÉGICO

3.1 O subcontinente da América do Sul é o ambiente regional no qual o Brasil se insere. Buscando aprofundar seus laços de cooperação, o País visualiza um entorno estratégico que extrapola a massa do subcontinente e incluiu a projeção pela fronteira do Atlântico Sul e os países lindeiros da África.

3.2 A América do Sul, distante dos principais focos mundiais de tensão e livre de armas nucleares, é considerada uma região relativamente pacífica. Além disso, processos de consolidação democrática e de integração regional tendem a aumentar a confiabilidade regional e a solução negociada dos conflitos.

3.3 Entre os processos que contribuem para reduzir a possibilidade de conflitos no entorno estratégico, destacam-se: o fortalecimento do processo de integração, a partir do Mercosul, da Comunidade Andina de Nações e da Comunidade Sul-Americana de Nações; o estreito relacionamento entre os países amazônicos, no âmbito da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica; a intensificação da cooperação e do comércio com países africanos, facilitada pelos laços étnicos e culturais; e a consolidação da Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul.

234

A ampliação e a modernização da infra-estrutura da América do Sul podem concretizar a ligação entre seus centros produtivos e os dois oceanos, facilitando o desenvolvimento e a integração.

3.4 A segurança de um país é afetada pelo grau de instabilidade da região onde está inserido. Assim, é desejável que ocorram: o consenso; a harmonia política; e a convergência de ações entre os países vizinhos, visando lograr a redução da criminalidade transnacional, na busca de melhores condições para o desenvolvimento econômico e social que tornarão a região mais coesa e mais forte.

3.5 A existência de zonas de instabilidade e de ilícitos transnacionais pode provocar o transbordamento de conflitos para outros países da América do Sul. A persistência desses focos de incertezas impõe que a defesa do Estado seja vista com prioridade, para preservar os interesses nacionais, a soberania e a independência.

3.6 Como conseqüência de sua situação geopolítica, é importante para o Brasil que se aprofunde o processo de desenvolvimento integrado e harmônico da América do Sul, o que se estende, naturalmente, à área de defesa e segurança regionais.

Considerados esses termos, convém retomar as duas perguntas feitas no

início da abordagem desse tópico: qual o escopo de uma defesa comum? Seria esse um tema

de interesse para a integração da região? Cumpre afastar, de plano, a concepção pouco

provável (e indesejável em face das deturpações que poderia gerar) de forças armadas

regulares multinacionais organizadas, preparadas e empregadas na região. A atuação militar

encontra melhor caminho na cooperação estratégica do esforço para a consecução de

objetivos comuns, escolhidos por consenso pelos Estados a partir da observância das

demandas das populações, no processo democrático de representação popular liderado pelo

poder político civil, mediante trocas de experiências, realização de exercícios combinados,

desenvolvimento e transferência de tecnologias.

Por certo que essas formas de atuação conjunta devem ser trabalhadas a

partir do pressuposto da não-agressão e da não-intervenção, por meio de controles rígidos

estabelecidos sob o fundamento do estado de direito e da democracia, na elevada tarefa

política e no exercício da autoridade sobre as forças armadas regulares e demais instituições

públicas e privadas, observando-se regras claras de não-beligerância, de aceitação da

235

autodeterminação dos povos e de reconhecimento dos direitos humanos, tendo em conta a

legitimidade de políticas econômicas e comerciais que proporcionem a equidade

indispensável à preservação da paz, com severas sanções pelo descumprimento dos acordos,

tudo de conhecimento público e fiscalizado por colegiados proporcionalmente integrados por

representantes da sociedade civil, políticos e especialistas.

Sob essa perspectiva, a defesa comum estaria voltada a preservar a

construção da segurança a partir da qual os povos da região poderão desenvolver seu peculiar

processo de integração econômica, política, social e cultural. Essa segurança não poderia

tomar outro parâmetro senão aquele definido pela ONU: “condição pela qual os Estados

consideram que não existe perigo de uma agressão militar, pressões políticas ou coerção

econômica, de maneira que podem dedicar-se livremente a seu próprio desenvolvimento e

progresso”263. Nesse contexto, o recente acordo de cooperação em matéria de defesa firmado

entre Brasil e Argentina merece ser visto como a iniciativa mais relevante do processo de

integração que contempla como variável a defesa comum. O ato foi recepcionado pela

legislação brasileira na forma do Decreto no 6.084, de 19 de abril de 2007264, internalizando o

denominado Acordo Quadro de Cooperação, elaborado em Puerto Iguazú, no dia 30 de

novembro de 2005.

É relevante destacar os pontos do acordo Brasil-Argentina que mais se

aproximam da idéia central do presente trabalho. Seu objeto deixa claro que a cooperação será

baseada nos princípios de igualdade, reciprocidade e mútuos interesses, sujeita, todavia, às

legislações dos países e, também, aos compromissos assumidos em âmbito internacional, o

que denota a aceitação de procedimentos rígidos e a aceitação das regras estabelecidas pela

ONU, notadamente quanto aos aspectos nucleares, armamento e solução de controvérsias. Foi

263 Definição extraída do tópico “O Estado, a segurança e a defesa”, da Política de Defesa Nacional brasileira. 264 O acordo foi aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro, por meio do Decreto Legislativo no 484, de 20 de

dezembro de 2006, em vigor internacional no dia 26 de janeiro de 2007. O Decreto de recepção no 6.084, de 19 de abril de 2007, foi publicado no Diário Oficial da União de 20 de abril de 2007.

236

fixado que o acordo terá como principal objetivo o fortalecimento da “cooperação política em

matéria de defesa”, o que eleva e institucionaliza os procedimentos democráticos na escolha

de alternativas e dos intercâmbios que serão levados a efeito, a abranger a “troca de

experiências em desenho e gestão de políticas de defesa e de ações nas áreas de planejamento,

gestão orçamentária, pesquisa e desenvolvimento, apoio logístico e aquisição de produtos e

serviços de defesa”265. Os artigos segundo, terceiro e quarto do acordo tratam,

respectivamente, das ações, do alcance da cooperação e da forma como será executado, cujos

dispositivos se limitam a ações programáticas.

Não obstante os aspectos favoráveis que enuncia, o acordo Brasil-Argentina

está limitado aos países signatários e dirigido enfaticamente aos temas de natureza militar, os

quais, por sua vez, têm forte conotação econômica principalmente porque priorizam a

indústria de defesa e o conseqüente crescimento da produção bélica, circunstância que, se por

um lado poderá fortalecer as relações entre os dois países, por outro abre a possibilidade de

desequilíbrios indesejáveis nas relações com os demais Estados do entorno estratégico

regional, num movimento de precaução, afastamento e até ameaça, o que pode prejudicar a

construção do processo de integração ampla. A propósito, esses efeitos também repercutem na

comunidade internacional que, de acordo com as circunstâncias do jogo político, econômico,

tecnológico e ambiental, poderá ver a região como grande compradora de material de

emprego militar, provável adversária e inimiga potencial. Se o bloco sul-americano estabelece

tratado comum para dispor sobre a defesa da região, logo terá ampliada a integração

econômica e comercial, como também aperfeiçoado o reconhecimento das diferenças

políticas, sociais e culturais, pressupostos sob o fundamento dos quais a composição

eqüitativa de interesses ganha mais espaço, legitimidade e efetividade, proporcionando

desenvolvimento e progresso, na linha da definição de segurança adotada pela ONU.

265 Cf. Artigo 1 do Acordo Quadro de Cooperação.

237

Da defesa comum fundamentada em princípios democráticos e desprendida

de apelos meramente econômicos e comerciais com foco no fomento da indústria bélica e no

decorrente aumento da produção armamentista poderá resultar novos matizes de cooperação,

sob o pressuposto de que a defesa transcende o campo militar, de modo que a diminuição das

vulnerabilidades e os mecanismos de dissuasão compreendem, também, o desenvolvimento

sustentado e o pleno exercício da cidadania, mediante escolhas apropriadas de representantes

políticos, prestação de serviços de saúde adequados e amplo acesso ao sistema de educação,

apenas para exemplificar. Com esse escopo, os países terão mais do que interesses comuns,

mas políticas públicas essenciais e estratégicas a construir, a executar, a desfrutar e a

preservar conjunta e cooperativamente, dissipando-se algumas das mais potenciais formas de

ameaças, dentre as quais as bélicas, as econômicas, as sociais (miséria, tráfico, criminalidade

em geral), as terroristas e as ambientais.

São grandes as dificuldades para alcançar esse estágio de integração, pois os

antagonismos entre o fortalecimento e a atenuação do bélico impedem a fixação de pontos

decisivos que englobem amplos consensos equitativos. A hipótese de ameaça potencial coloca

os países em estado de latente preparação para o esforço de combate que, na atualidade,

assume variados contornos. O alinhamento com a política internacional predominante sujeita

os países a ingerências externas ao argumento da vigilância coletiva autorizada, enquanto que

a recusa em aceitar a política e as regras leva à exclusão e ao ônus de sanções rigorosas.

Recentemente, o Brasil e o Irã se viram às voltas com os conflitos desses valores, nos casos

que envolveram o enriquecimento de urânio. E a democracia praticada não é suficiente para

equacionar esses problemas; pode ajudar, mas não resolve porque sofre distorções e obedece a

dosimetria arbitrada pelo poder que tem maior possibilidade de persuadir, ou seja, é parcial.

A realidade imposta pela mundialização forçará o poder político a construir

a defesa comum na América do Sul. Não uma defesa armada uns contra os outros ou do bloco

238

regional contra outros blocos ou países da região ou do globo, mas uma defesa que prime pela

segurança no sentido de proporcionar as mais equitativas condições de desenvolvimento e

progresso, da necessidade de fortalecer as instituições, as sociedades e os indivíduos, de modo

a que todos percebam a importância da atuação em conjunto para evitar a fragmentação, não a

fragmentação das soberanias nacionais, mas da própria identidade dos povos na medida em

que a busca desenfreada pela sobrevivência e prevalência internacionais tende a ampliar o

isolamento dos países, o deslocamento dos preceitos humanitários e a extrema dependência

das demandas e das políticas dos países mais ricos ou desenvolvidos que, via de regra, não se

adaptam à diversidade e à singularidade dos interesses e das expectativas regionais266.

O direito comunitário, indutor da integração mais ampla, encerra o desafio

político de encontrar o caminho da cooperação para a construção de consensos legítimos,

capazes de reconhecer as diferenças e compor interesses. Nesse sentido, é pertinente refletir a

respeito da formulação de um tratado de cooperação entre os países da América do Sul, que

disponha sobre a atuação conjunta para a segurança e a defesa. Essa coexistência requer a

conciliação das demandas nacionais com os interesses comunitários sem, contudo, retirar a

soberania e as identidades nacionais, prestigiando a relevância da atuação política na

composição de consensos, num permanente trabalho voltado a desvelar confluências e ajustar

assimetrias, tendo como pressuposto o estado democrático de direito. O governo brasileiro

deu o primeiro passo na construção de idéias embrionárias do chamado “conselho sul-

americano de defesa” e da formulação do “plano estratégico de defesa”, tendo por fio

condutor a integração regional267, temas que estão sob a ponderação dos países.

266 Sugere-se a leitura de O Brasil no cenário internacional de defesa e segurança (in Pensamento brasileiro

sobre defesa e segurança, vol. 2. Brasília: Ministério da Defesa, 2004). 267 A esse respeito, as notícias veiculadas pelo Ministério da Defesa (disponível em: <www.defesa.gov.br>.

Acesso em: 11 de abril de 2008), a exposição feita pelos Ministros Nelson Jobim e Mangabeira Unger à Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados (disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 3 de junho de 2008) e a reunião de cúpula dos presidentes dos países da América do Sul, realizada em Brasília, no dia 23 de maio de 2008.

239

De certo que a defesa comum da América do Sul não poderá se voltar ao

equívoco de servir como instrumento de pressão, de coerção, de latente beligerância a

persuadir países em face do arsenal bélico, do efetivo militar ou de fatores econômicos.

Também não deve instrumentalizar barganhas globalizadas ou macular agendas políticas

voltadas à hegemonia e à imposição de valores, idéias e projetos de governo. A defesa não

pode se deslocar da definição de segurança elaborada pela ONU como mecanismo equitativo

para o livre desenvolvimento e progresso, a compreender a necessidade da cooperação e do

reconhecimento da condição humana do outro, como o mais apropriado mecanismo a partir

do qual a paz possa ser aperfeiçoada e mantida.

A aventada defesa comum precisa ser elaborada à luz de princípios

democráticos e, por conseguinte, de direitos humanos, de tal sorte que sua inserção no direito

nacional se opere de acordo com a nova regra constitucional prevista no § 3o do art. 5o da

Constituição de 1988, para o fim de evitar a ocorrência de distorções, na linha da Carta da

ONU, da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, da Carta da Organização dos

Estados Americanos, do Protocolo de Ushuaia e do Protocolo Constitutivo do Parlamento do

Mercosul, para o fim de proteger a região de pretensões totalitárias, indicando aos demais

países o imperativo dos preceitos adotados.

É nesse contexto que se situa a relevância do caráter transdisciplinar da

defesa, especialmente na composição das políticas públicas internas de cada Estado-Parte,

para o fim de que as populações nacionais, sem embargo da representação parlamentar e

governamental, possam efetivamente participar da construção de uma nova realidade

comunitária pela prática da eqüidade e da solidariedade, com a finalidade de proporcionar

condições de dignidade ao desenvolvimento da condição humana, da melhor distribuição da

riqueza, da educação e saúde de qualidade, acessíveis a todas as pessoas, de modo a que a

integração regional pretendida não se perca em promessas inexeqüíveis ou descontinuadas,

240

transformando a região em ilhas de privilegiados cercadas por cinturões de pobreza e miséria,

elevando o tema de defesa como política de Estado e não de governos transitórios, reforçando

a idéia de que sua formulação, em razão da democracia representativa e de seus amplos

efeitos vinculatórios, merece previsão constitucional ou, no mínimo, por lei ordinária.

241

CONCLUSÃO

A abordagem proposta no presente trabalho teve como problema central os

fundamentos ou princípios da formulação da política de defesa brasileira, levando em conta a

transição do regime de exceção para o democrático, considerado o contexto internacional e a

rede de interesses que atua em torno do tema. Na tentativa de desvelar os desafios que essas

circunstâncias colocam ao direito e ao poder político, os estudos foram iniciados a partir da

composição das assimetrias que compreendem o tripé composto pelas noções assimétricas

entre soberania, segurança e democracia.

O argumento da soberania como poder absoluto e fundamento da segurança

e da defesa foi contrastado com a interdependência imposta pelas práticas de globalização e

da decorrente tomada de decisões, determinando a conformação dos países com os desníveis

de poder que, na prática, permitem a supremacia de uns sobre outros, influenciando a forma

como a soberania é exercida. É com base na soberania teoricamente contida no exterior e

relativamente ilimitada no campo interno que as políticas de segurança e defesa são

elaboradas, refletindo as desigualdades existentes entre os países, o que determina, por

conseguinte, a maior ousadia ou a maior prudência em estabelecer princípios, estratégias e

táticas.

A segurança se preocupa primeiro com a preservação de interesses nacionais

para, num segundo plano, tentar compor arranjos coletivos. Mas, principalmente na

contemporaneidade, marcada pela velocidade e pela força do transnacional, torna-se quase

impossível distinguir os interesses, as demandas e as disputas de poder. Ao tempo em que a

idéia de segurança procura estabelecer ou manter a paz, na prática ocorre a suspensão da

beligerância explícita, isto é, não se interrompe a preparação permanente para um futuro ou

eventual enfrentamento, potencial ou manifesto, de natureza militar ou não, limite que poderá

242

ser evitado ou diminuído pelo senso coletivo de proteção, ou melhor, pela solidariedade, pelo

ainda distante gesto de partilhar. Logo, segurança implica criar condições para que os

conflitos se resolvam pacificamente, em decorrência do reconhecimento das diferenças e da

cooperação. Ocorre que por segurança também se entende prevenção e proteção contra o

outro, o que gera discórdia e uso da força política, econômica e militar para fazer valer

interesses nacionais (mas não necessariamente públicos ou do povo) ou de grupos que atuam

conjuntamente no cenário internacional.

A democracia integra o terceiro elemento do tripé assimétrico. Mas, o que é

democracia? Não é algo pronto e acabado que pode ser utilizado sob medida por todos os

povos ou nações. Sequer pode ser imposta como salvação ou libertação de natureza política

ou moral, pois, se assim ocorrer, seus preceitos serão profunda e irremediavelmente

distorcidos, violados. Democracia ou ditadura268, o senso crítico exige que as reflexões na

atualidade ponderem a respeito de formas disfarçadas que, ao abrigo de leis e de suposta

legitimidade, tentam retirar a soberania do povo na condução de seus desígnios, com o sutil

argumento de que a defesa, a segurança e a democracia prescindem do regime de liberdade e

igualdade complementado pela solidariedade. O totalitarismo é um desses disfarces, na visão

de Lefort (1991, p. 35): “a democracia já não dá lugar a instituições, a modos de organização

e de representação totalitária? Seguramente sim. Porém, não é menos verdadeiro que uma

mudança na economia do poder é necessária para que surja a forma de sociedade totalitária”.

O Brasil enfrentou e venceu a transição do regime autoritário para o

democrático, mas ainda caminha na consolidação da plena democracia. Não é tarefa fácil

compor conflitos numa sociedade tão complexa e desigual quanto à brasileira, ainda mais 268 Interessante observar que os povos antigos lançavam mão do instituto jurídico-político da ditadura para

preservar a república, porém com rígidos critérios. Parece antagônico, mas é revelador: “[...] Nos princípios da República recorreu-se muitas vezes à ditadura porque os alicerces do Estado ainda não eram bastante sólidos, para que só a força da Constituição o sustentasse; [...] Ademais, de qualquer modo que se confie tão poderosa comissão, cabe pôr um prazo de curta duração, que ela nunca transcenda; nas tempestades que a motivam, o Estado é logo subvertido ou salvo, e, além do instante arriscado, é tirânica ou inútil”. (ROUSSEAU, 2005, p. 114-115)

243

quando se verifica que o sistema político-partidário, apesar dos esforços, carece de maior

legitimidade para cumprir a finalidade de bem representar a soberania popular. É, pois, nesse

contexto que se faz necessário rever as percepções de como a defesa deve ser compreendida e

aperfeiçoada, situando-a como problema político-estratégico. Forçoso reconhecer que houve

significativa ruptura jurídico-normativa quando da mudança de regime, a partir da qual a

preocupação do Estado deixou a premência do inimigo interno, subversivo, insurgente e

atentatório ao poder vigente para dar lugar a questões muito mais amplas que transcendem as

ameaças externas exclusivamente militares, a compreender temas estratégicos mais densos,

complexos e sofisticados, vinculados e movidos pela velocidade dos fatos da

contemporaneidade afetada pela mundialização, a envolver intrincada teia de interesses e

demandas sem precedentes nos campos jurídico, tecnológico, social, econômico, político e

ambiental.

Por essas razões, a democracia exige cada vez mais a participação da

sociedade civil nas decisões de natureza política e, por conseguinte, de repercussão legal ou

normativa do país. Essa percepção não excetua a formulação da política de defesa, posto que a

legitimidade de seus dispositivos, ante os efeitos vinculatórios, depende da representatividade

conferida pela soberania popular na formação do consenso para uma nova forma de

cooperação social pode ser construído e experimentado. Por essa razão, a relação entre o

Estado e a sociedade civil precisa mudar, invertendo, ou melhor, retornando ao movimento

inicial de outorga do poder político, isto é, o poder público ao encontro da sociedade, antes

que esta se afaste totalmente ou diminua a importância das instituições públicas, encontrando

outros caminhos para resolver seus problemas, demandas e conflitos, cujos efeitos são difíceis

de mensurar, na linha das colocações de Sorj e Oliveira (2007).

A transição do regime autoritário para a democracia no Brasil significou,

como dito, profunda e significativa mudança na estrutura jurídica e política, a partir da Carta

244

Política de 1988 e da legislação infraconstitucional que a sucedeu ou por ela foi recepcionada,

com a subordinação do poder militar ao poder civil, embora com alguns temas que ainda

merecem aperfeiçoamento, notadamente quanto à atuação do Ministério da Defesa e dos

mecanismos com bases nos quais as Forças Armadas são organizadas, preparadas e

empregadas, como decorrência natural do amadurecimento das instituições democráticas e da

conscientização da sociedade. Por conseguinte, não há mais lugar para a distinção entre poder

civil e poder militar. Há um único poder, que é o político, originário da sociedade, dirigido

por civis, o implica dizer que esse poder é impessoal e irrestritamente condicionado às regras

do Estado de Direito Democrático, sob pena de sofrer distorção. Dessa maneira, as estratégias

de segurança e defesa são de responsabilidade do poder político e, na hipótese de emprego

militar, caberá às Forças Armadas indicar as hipóteses táticas de emprego, de atuação, sob a

autoridade e responsabilidade do poder político. Em síntese, não é o campo militar que

influencia o político, mas esse que determina e delimita o agir daquele.

Desfeito o que foi considerado doutrina de segurança nacional, a partir de

cujo fundamento a elite dirigente ou que influenciava o poder no país não apenas precisava se

defender de potenciais ameaças externas, mas também de práticas consideradas subversivas

ou insurgentes contra a ordem interna dominante, naturalmente o processo de consolidação da

democracia traz à discussão as bases das políticas de proteção da sociedade (na combinação

de segurança e defesa), para o fim de adequá-las às exigências do Estado de Direito. Essa

peculiar mudança de atuação institucional interfere diretamente na formulação da política de

defesa, que deve observar a realidade brasileira e mundial, mediante reflexão continuada a

respeito de temas como integração, cooperação, persuasão, dissuasão, estratégica e tática, na

ponderação entre as expectativas militares e as demandas de natureza social, todos

considerados no conjunto de vulnerabilidades do país.

245

A política de defesa consiste na decisão política sobre conjunto

multidisciplinar de situações que passou de estado de coisas a problema político. Diz respeito

à atuação do poder público em face das vulnerabilidades do país, as quais, como foi visto, não

se restringem às ameaças bélicas efetivas ou potenciais. Foi desvelado que as mazelas sociais

também constituem situações que diminuem a percepção de segurança e de defesa do país,

decorrendo daí a constatação de que a matéria não é exclusividade do setor militar,

transcendendo-o para compreender o poder público, a sociedade civil e o contexto

internacional. Cumpre destacar que a expressão “militar” não abrange somente as instituições

e as pessoas que exercem a atividade militar nas Forças Armadas. Para o propósito desse

trabalho, a noção de militar compreende os interesses principais e acessórios da militarização,

isto é, o conjunto de atores públicos e privados, nacionais e internacionais, que têm demandas

vinculadas direta e indiretamente à defesa e que interferem ou procuram interferir na tomada

de decisões sobre o tema.

Se a defesa implica reconhecer e evitar vulnerabilidades, sua política não

poderá prescindir, para lograr êxito, de efetivas políticas públicas destinadas ao fortalecimento

do tecido social, em observância aos direitos fundamentais que regem a democracia. Portanto,

as estruturas política, jurídica, militar, econômica e tecnológica não são capazes de

isoladamente inibir ou dissuadir as indesejadas investidas externas – na maioria das vezes

praticadas de forma silenciosa –, sejam elas de natureza militar ou não. Desse modo, a

persuasão e a dissuasão têm a vertente bélica e, também, a vertente social. Portanto, claro está

que esse problema transcende o campo militar, pois os instrumentos para a sua plena

implementação dependem do concurso e dos recursos de uma série de atores políticos, dos

mais variados cenários, nos campos interno e externo. Essa circunstância conduz ao principal

problema político-estratégico: a mobilização de forças políticas capazes e com legitimidade

para efetivamente dar concretude à política de defesa, tema que merece ser enfrentado e

246

resolvido mediante a adoção de políticas públicas sérias e eficazes, voltadas a esclarecer a

sociedade sobre a importância de seu papel político, visando a coesão e a unidade nacionais,

com base na parceria e na autodeterminação dos povos sem, contudo, desmerecer o papel e a

importância das Forças Armadas brasileiras, de cujos fatores decorrem a necessidade de seu

permanente preparo, nos limites dos princípios democráticos para o fim de colaborarem para

o desenvolvimento e progresso do país, concorrendo para a segurança e, naturalmente, para as

atividades de defesa.

Na democracia a defesa merece ser recebida sob nova concepção, não mais

voltada à doutrina de segurança nacional que vigorou durante o regime de exceção. O Brasil e

o cenário mundial mudaram e continuam em permanentes adaptações na tentativa de manter o

delicado desequilíbrio de forças, de poder. Essa rede transdisciplinar que orienta as bases da

estratégia brasileira – a abarcar os interesses de toda a população, as tensões e os conflitos –

têm reflexos diretos na política de defesa e nas demais políticas públicas. Dessa feita, é

preciso registrar que a principal fragilidade da política de defesa remonta à sua essência

normativa, cujos efeitos repercutem na diminuta legitimidade de sua natureza vinculatória.

Como assinalado, o Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005, foi aprovado

ao amparo do disposto no art. 84, inc. VI, alínea “a” da Constituição Federal de 1988,

dispositivo que trata da competência privativa do Presidente da República para, na qualidade

de Chefe do Poder Executivo, dispor sobre “a organização e funcionamento da administração

federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos

públicos”. Portanto, a política de defesa foi instituída pela edição de um ato normativo

(decreto) autônomo (que não regulamenta texto de lei), ou seja, de limitados efeitos. Esse fato

denota que, em seu campo de abrangência, a percepção política ainda se encontra no estágio

programático, embora os efeitos repercutam no restrito âmbito de competência dos órgãos

públicos envolvidos. Sente-se, por conseguinte, a falta de consenso a respeito dos

247

fundamentos da política de defesa, a partir do qual seriam elaborados seus princípios,

estipulando-se as fontes de recursos financeiros que continuadamente sustentarão as ações

decorrentes, indo além da costumeira previsão de orçamento não obrigatório, como também a

envolver todos os atores públicos e privados, direta ou indiretamente, no esforço de

mobilização voluntária e não simplesmente determinada por lei que traz arraigado o conceito

de preparação permanente, na perigosa antecipação de estado de sítio de uma guerra

hipotética e não-declarada, passível de críticas que apontem inconstitucionalidade.

Na integração regional, a democracia constitui o pilar da construção

jurídico-normativa do Mercosul, uma vez que orienta a elaboração das regras de direito e a

formulação de políticas públicas dos países que integram o bloco, com repercussão nos

acordos e nas regras de vinculação interna de cada país e da comunidade em formação. Para

tanto, é preciso fortalecer a cidadania a partir da educação (Bobbio, 2006, p. 43-45) das

populações dos Estados-Partes. A aproximação dessa simples equação significa, no mínimo,

um grande gesto na direção da efetiva integração, que transcende a superficial sujeição a

ordenamentos jurídicos supranacionais, para alcançar a percepção de que há outros povos a

que devem ser deferidos os mesmos direitos fundamentais. A integração tem por fundamento

primeiro a aceitação do outro, do diferente, dos valores universais. Logo, é preciso caminhar

do valor às normas, e não o contrário.

Compatível com essa ordem de idéias está o fato de que Argentina, Brasil,

Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile aderiram ao Protocolo de Ushuaia, ato que dispõe sobre o

compromisso democrático no Mercosul. Por esse instrumento, aqueles países acordaram que a

democracia constitui o fundamento de legitimidade do processo de integração. Não adotar ou

romper com os princípios democráticos resulta isolamento do país, suspensão de participar

dos processos deliberativos e decisórios, bem como dos direitos e deveres acordados. A

democracia é a pedra angular do processo de integração, de modo que seus efeitos

248

proporcionarão, também, maior segurança e estabilidade para a região, prevenindo-se

conflitos e ampliando-se a capacidade de solução pacífica das controvérsias, posto que, na

medida em que são abertos espaços para diálogos e são construídas soluções justas e

solidárias, afasta-se a possibilidade de enfrentamento bélico e, conseqüentemente, fortalece-se

a paz e diminui-se o estado de alerta, de desconfiança. Assim, a boa atuação do poder político

terá tempo e lugar para compor consensos, sob o fundamento dos quais os instrumentos do

Estado poderão servir não apenas para prevenir potenciais ameaças contra a soberania, o

território, os interesses e o patrimônio nacionais, mas também para cultivar o sentimento

universal de reconhecimento e proteção da pessoa humana, foco principal de todo processo de

integração. Essas são as bases que precisam orientar a formulação da política de defesa

comum da América do Sul, como estratégica de dissuasão coletiva.

A política de defesa depende da legitimidade das decisões vinculatórias que,

por sua vez, não prescinde da sustentação dada pela soberania e dos princípios que norteiam a

segurança. Não a soberania vista sob a ótica estreita e transitória dos governos e das

autoridades públicas, na pretensa tentativa de incorporar as prerrogativas do Estado, do poder

político. A soberania que deve sustentar a política de defesa não pode ser outra senão a

original, a natural, aquela que advém do povo. Por certo, cabe ao Legislativo, na qualidade de

representante da população, exercer papel fundamental na formulação da política de defesa

sem, contudo, mitigar ou se sobrepor às competências do Poder Executivo Federal e do Chefe

de Estado. Esse é o ponto fulcral no qual esse trabalho se sustenta para argumentar que a

defesa transcende a atuação isolada das Forças Armadas, instituições que estão sob a

autoridade suprema do Presidente da República. Não é preciosismo ponderar que as bases

dessa política devam se submeter ao regular processo legislativo, num esforço para a

construção de amplo consenso com a participação da sociedade civil, a exemplo da previsão

constitucional que prevê diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional

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equilibrado, a partir do qual serão incorporados e compatibilizados planos nacionais e

regionais de desenvolvimento269. Esclareça-se que não se trata de militarizar a Carta Política

ou a legislação. A elevação desse debate exige o fortalecimento do Legislativo e a superação

de suas crises, para representar o povo e não os interesses de grupos, de corporações e da

busca do poder pelo poder, na percepção de que a defesa não se situa na transitoriedade dos

governos, mas sim na política de Estado formulada com a participação da sociedade civil,

executada e fiscalizada em conjunto com as instituições públicas. Importa reconhecer que a

edição do Decreto no 5.484, de 2005, significa singular avanço na democratização da política

de defesa. Mas é preciso avançar mais, o que se espera do seu inevitável e constante processo

de reflexão e aprimoramento, em termos conceituais e estratégicos, nos limites da Carta

Política de 1988.

O desafio que a política de defesa coloca ao direito e ao poder político

reside na vigilância incessante de ponderar os fundamentos, os objetivos e os princípios

constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil em face das demandas e

expectativas que gravitam em torno da defesa considerada no contexto da segurança, de modo

a que o direito não sirva de mero instrumento do político para a consecução de fins

deslocados dos ideais democráticos.

269 Cf. § 1o do art. 174 da Constituição Federal de 1988, que ainda depende de regulamentação: “A lei

estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”.

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