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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ramon Silva Chaves Sombras negras: a imagem de autor em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2014

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ramon Silva Chaves

Sombras negras: a imagem de autor em Recordações do Escrivão Isaías

Caminha, de Lima Barreto

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

2014

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ramon Silva Chaves

Sombras negras: a imagem de autor em Recordações do Escrivão Isaías

Caminha, de Lima Barreto

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE em

Língua Portuguesa sob orientação da Prof.

Dr. Jarbas Vargas Nascimento.

SÃO PAULO

2014

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

RAMON SILVA CHAVES

SOMBRAS NEGRAS: A IMAGEM DE AUTOR EM

RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA

BARRETO.

SÃO PAULO

2014

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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

RAMON SILVA CHAVES

SOMBRAS NEGRAS: A IMAGEM DE AUTOR EM

RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA

BARRETO.

.

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE em

Língua Portuguesa sob orientação do Prof.

Dr. Jarbas Vargas Nascimento.

SÃO PAULO

2014

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BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

___________________________________________

___________________________________________

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Senhor de engenho

Eu sei bem quem você é

Sozinho, cê num guenta

Sozinho, cê num entra a pé.

Racionais Mc’s, Negro Drama.

Representou-se-me a luta daqueles heróis com os

Deuses, a sua teimosia em escalar o céu, a energia que

puseram em tão insensata empresa... Vi o quadro com

todas as cores e figuras... Abalei-me de emoção; achei

nessa atitude uma estranha grandeza, não sei que

fulgurante beleza que me tornou logo interiormente alegre

– tanto é verdade dizer-se que a beleza é uma promessa

de felicidade!

Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha,

cap. VI

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AGRADECIMENTOS

À vida, que de milagre em milagre, tem me apresentado a Deus

quotidianamente.

À minha mãe, que me instrui todos os dias e que me dá motivos para ser quem

sou.

A meu irmão, Anderson, que acreditou nessa pesquisa todos os dias.

Ao meu padrasto, Isaías, homem forte com o qual pude discutir pouco a pouco

todas as angústias de homem e de menino.

À Sheila, minha cunhada, parte integrante da minha família, que pode me fazer

rir nas longas horas de estudo.

Ao meu pai Venerando.

Ao meu orientador, Professor Dr. Jarbas Vargas Nascimento, homem

exemplar, na minha carreira, no meu ofício, em minha vida.

Aos membros do Grupo de Pesquisa, Memória e Cultura da Língua Portuguesa

Escrita no Brasil.

Aos meus alunos, que fizeram parte do meu crescimento.

À Profa. Dra. Izilda Maria Nardocci e à Profa. Dra. Paula Dias, pelas excelentes

contribuições para a minha pesquisa.

A toda comunidade do Sucupira, meu lugar de origem, que estimulou todas as

minhas iniciativas, ajudando-me a despir-me dos preconceitos.

Aos meus grandes amigos, em especial, Ricardo Celestino, Adilma Alencar,

Fábio Lana Nascimento, Silvia Costa, Carla França, que nunca se negaram de

me auxiliar, estando sempre ao meu lado.

À CAPES, pela bolsa de estudos.

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DEDICATÓRIA

In memoriam de Domingos Durante.

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RESUMO

Este trabalho está inserido nos postulados teórico-metodológicos da Análise de

Discurso de linha francesa e tem como tema o exame da Imagem de Autor em

Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Esse tema mostra-

se relevante, porque observaremos o discurso literário pela perspectiva

enunciativo-discursiva que aloca o Autor como sujeito que, enunciativamente,

projeta a própria imagem na polemicidade do discurso. Isso pode ser notado

pelo desvelamento das unidades tópicas e não tópicas que têm representação

extrínseca ao enunciado literário. Para tanto, tomaremos como base os

conceitos tratados por Maingueneau, tais como, o Autor e a Imagem de Autor,

Discurso Literário e cenografia. A análise proposta se alicerça em um

procedimento teórico-metodológico em que a cenografia institui as unidades

tópicas e não tópicas, que revelam no discurso literário selecionado, pela via

paratópica, uma Imagem de Autor. Nosso estudo identificou uma Imagem de

Autor que emerge enunciativa e discursivamente em Recordações do Escrivão

Isaías Caminha como uma sombra, que revela nuances de contratos, atos,

ações e formações discursivas do negro e mulato no final do século XIX e início

do século XX.

Palavras-Chave: Discurso, autor, cenografia, unidades tópicas e não tópicas.

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ABSTRACT

This study is inserted in the theoretical and methodological postulates of the

discourse analysis in French lines and has as theme the exam of the image of

Author in Recordações do Escrivão Isaías Caminha by Lima Barreto. This

theme shows itself relevant because we observe the literary discourse by the

enunciative-dircursive perspective which allocates the Author as subject who,

inunciatively, projects his own image in the polemically of the discourse. It can

be noticed by the unveiling of the topical and non-topical units and that have

extrinsic representation to the literary enunciation. For this purpose, we will

build on the concepts attendant Maingueneau, such as the Author and The

Image of Author, Literary Discourse and scenography. The proposed analysis

founded itself in a theoretical and methodological procedure in which the

scenography established the topical and non-topical units, which reveal in the

selected literary discourse, by paratopic via, an Image of the Author.Our study

identified an Image of Author which emerges enunciative and discoursively in

Recordações do Escrivão Isaías Caminha as a shadow which reveals nuances

of contrasts, acts, actions and discoursive formations of black and mulatto from

the late nineteenth century and early twentieth century.

Keywords: Discourse, scenography, author, topical and non-topical units.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................ 1

CAPÍTULO I SOMBRAS NEGRAS: A CONDIÇÃO PARATÓPICA DO DISCURSO

LITERÁRIO E A IMAGEM DE AUTOR ....................................................................... 4

1.1 O autor e sua imagem: ponto inicial .......................................................... 4

1.2 Uma Análise de Discurso .......................................................................... 5

1.3 O lugar e o não lugar: o discurso constituinte literário ............................ 11

1.4 As cenas enunciativas e os topismos do discurso literário ..................... 24

CAPÍTULO II OBJETO SOMBREADO: O EXTRÍNSECO AO DISCURSO

RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO .............. 30

2.1 A cenografia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha .................. 30

2.2 Um estudo das fronteiras ........................................................................ 33

2.3 Afonso Henriques de Lima Barreto: as práticas tópicas .......................... 35

2.3 A formação discursiva: racismo, prática não tópica ................................ 38

2.4 O cenário do final do século XIX e início do século XX: topismos. ......... 45

CAPÍTULO III A IMAGEM DE AUTOR: A CENOGRAFIA NA CONSTITUIÇÃO

PARATÓPICA DO DISCURSO LITERÁRIO ............................................................... 54

3.1 Procedimentos Metodológicos ................................................................ 54

3.2 A imagem de autor como sombra literária: análise do intrínseco em

Recordações do Escrivão Isaías Caminha. .................................................. 57

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 95

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ........................................................................... 98

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Esta pesquisa se interessa pela imagem de autor em Recordações do Escrivão

Isaias Caminha, de Lima Barreto. Nosso principal objetivo é operacionalizar

uma análise pela via da cenografia capaz de identificar aspectos enunciativo-

discursivos, que revelem a emersão de uma imagem de autor consagrado na

história do enunciador de Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

Utilizaremos a abordagem teórico-metodológica da Análise de Discurso de

linha francesa, que é, em sua gênese interdisciplinar, amparando-nos na

Crítica Literária, História, Sociologia e Filosofia. Visamos, com isso, a sustentar

uma análise que observa o discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha

de maneira ampla, privilegiando uma perspectiva de análise orientada a partir

da enunciação. Desta maneira, o olhar pela Análise de Discurso (disciplina da

linguística que considera a complexidade enunciativa) está justificado pelo

aparato que nos fornece, para perceber, na enunciação, como nosso objeto de

análise reflete as condições sócio-históricas de produção, os sujeitos inseridos

naquela contemporaneidade, as implicações no campo político que

interpelavam os sujeitos e os fazeres enunciativos.

Recordações do Escrivão Isaias Caminha é um discurso literário publicado em

1909, em Portugal, foi considerado em sua contemporaneidade como uma

enunciação autobiográfica. Isso se deve ao fato de que tanto Lima Barreto,

quanto os registros históricos atribuídos à vida do enunciador desse discurso,

sejam muito parecidos. O principal traço desse entrelaçamento entre vida e

enunciação é a denúncia em relação ao racismo enraizado nas práticas

quotidianas. Nesse sentido, fica evidente a presença política, social e estética

do autor na enunciação literária, pois, diferentemente dos padrões estéticos de

maior prestígio no início do século XX, o discurso Recordações do Escrivão

Isaías Caminha tinha forte interlocução com as práticas do dia a dia e com as

experiências vividas pelo autor.

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A identificação do discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha como

discurso autobiográfico acompanhou por muito tempo à crítica e, por

conseguinte, fez com que, por muito tempo, o valor literário daquele discurso

fosse equiparado a biografia de um homem que, insatisfeito com os problemas

causados pela cor, falou de si mesmo como um desabafo. No entanto, a

relação discurso biográfico e discurso literário nos permitirá observar

Recordações do Escrivão Isaías Caminha sob um olhar correlato, que se

debruça sobre o “dentro” e o “fora” da enunciação.

Selecionamos de Recordações do Escrivão Isaías Caminha vinte recortes, que

consideramos responsivos aos objetivos desta pesquisa, que examina a

categoria imagem de autor. A cenografia, no discurso literário, apresenta-se

como uma ancoragem entre o dentro e o fora da enunciação literária e, por

isso, evidencia-nos as formações discursivas que incidiam sobre negro no final

do século XIX e início do século XX no Brasil.

Nesse sentido, nossa meta é buscar uma concepção de cenografia, pois que

ela pode revelar, enunciativamente, comportamentos, ações, rotinas de sujeitos

localizados em um tempo e em um espaço. Assim, o sujeito que emerge na

cenografia corresponde ao enunciador do discurso, ou seja, seu autor e, além

disso, aquele que enuncia sobre o mundo que participa; por isso, constrói a

própria imagem e a imagem do mundo do qual participa.

A Análise de Discurso é uma disciplina sem fronteiras predelineadas; cabe ao

analista, a partir de uma opção metodológica, observar quais campos fazem

fronteira com seu objeto de análise e, a partir disso, apoiar-se em campos que

podem contribuir para a construção de efeitos de sentido possíveis,

materializados no discurso. Em nosso caso, optamos por uma pesquisa que,

em primeiro lugar se fundamenta em um arcabouço teórico-metodológico

enunciativo-discursivo, em razão dos objetivos desta pesquisa, e que, em

segundo plano, seleciona diferentes campos discursivos, que se integram à

enunciação literária de Recordações do Escrivão Isaías Caminha e com as

formações discursivas, que caracterizava o negro no Brasil no início do século

XX.

Deste modo, nossa pesquisa se organiza da seguinte maneira:

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No primeiro capítulo, tratamos da categoria imagem de autor, conforme

proposta por Maingueneau (2006,2010). Seguiremos um percurso que visa a

abordar o percurso histórico da Análise de Discurso desde sua fundação, na

França, na década de 1960. Nessa etapa, ocupamo-nos, também, da união

interdisciplinar que formatou a Análise de Discurso como disciplina, partilhada

por estudiosos de diversas áreas. Esse aspecto inaugural da Análise do

discurso importa, na medida em que irá justificar o processo teórico-

metodológico sob o qual está basilada a pesquisa. Ainda nesta etapa,

desenvolvemos aspectos da literatura como discurso constituinte paratópico,

imagem de autor, e os topismos discursivos.

No segundo capítulo, tratamos, também, do arcabouço teórico-metodológico,

com a contribuição de pensadores de campos alheios à Análise de Discurso.

Partimos do pressuposto que o autor em Recordações do Escrivão Isaías

Caminha, de Lima Barreto, se cristalizou como denunciante das condições às

quais estava submetido o homem negro no final do século XIX e início do

século XX. Organizamos o capítulo com o diálogo da História, da Sociologia e

da Crítica Literária sobre as condições sócio-históricas de produção do

discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha e sobre as condições do

negro em um período de transições políticas, marcado pela libertação dos

escravos, a república brasileira e o liberalismo.

No terceiro capítulo, por fim, de posse do arcabouço teórico-metodológico que

configurou as categorias de autor e de imagem de autor, como emergentes na

cenografia, dão-nos as condições de construção de uma análise

interdisciplinar. Neste sentido, nossa análise considera, na cenografia, as

unidades tópicas e não tópicas do discurso constituinte literário, para, nessas

unidades, notarmos as manifestações enunciativo-discursivas que dialogam

com o extrínseco enunciativo como parte integrante do discurso Recordações

do Escrivão Isaías Caminha.

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CAPÍTULO I

SOMBRAS NEGRAS: A CONDIÇÃO PARATÓPICA DO DISCURSO

LITERÁRIO E A IMAGEM DE AUTOR

1.1 O autor e sua imagem: ponto inicial

O conceito de autor foi objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento,

tais como a Teoria Literária, a Filosofia e a Linguística. A Literatura, por muito

tempo, negou a necessidade de considerar o autor empírico na produção de

sentidos de um discurso, mas o postulado de Bakhtin (2010) a respeito de um

sujeito enunciador trouxe um novo olhar sobre este ponto. Além disso, outros

filósofos ofertaram à academia pesquisas sobre o conceito de autor. Foucault

(1997), em seu texto O que é um Autor? condicionou a categoria autor a uma

função exercida dentro e fora do discurso e pressupôs que o autor representa-

se a si dentro de sua própria enunciação.Não obstante, a proposta de Barthes

(2004) de que a condição do autor não teria espaço diante da condição de

leitor, o pesquisador propõe refletir sobre o princípio de que o autor é um

criador. Nesse sentido, o produto do objeto literário passa a ser pensado a

partir dos efeitos de sentido possíveis nos inúmeros contatos que a Literatura

tem com os leitores, deixando o pensamento advindo do século XVIII, quando a

literatura ganha forte apelo editorial e mercadológico (Chartier, 2012). Notamos

que as diversas posturas em relação à autoria, tanto da Literatura, quanto da

Filosofia, se alteram, na medida em que se alocam em relação ao discurso.

A análise de Discurso de linha francesa (a partir de agora AD), por ser

interdisciplinar, poderá nos oferecer subsídios necessários, para considerarmos

a dispersão das abordagens que observam o discurso literário no que tange à

formalização do conceito de autor, conforme Maingueneau (2010). Durante

este capítulo, trataremos do conceito de autor e de imagem de autor nas

perspectivas da AD, mais particularmente como proposto por Maingueneau.

Para o estudioso, não há autor sem Imagem, e essa imagem emerge

enunciativo-discursivamente do/no discurso, que é criado pelo autor, na medida

em que enuncia seu discurso. A imagem de autor, nesse sentido, é uma

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espécie de sombra do autor, que se move de acordo com os movimentos de

seu enunciador, mesmo sem sê-lo.

Este capítulo destaca nossa opção pela AD, pois acreditarmos que esta

disciplina pode contribuir para instaurar a imagem de autor como um conceito

capaz de atualizar os efeitos de sentido em Recordações do Escrivão Isaías

Caminha, de Lima Barreto por meio de dispositivos de análise, que

delinearemos doravante. Além disso, a constituição do arcabouço teórico-

metodológico da AD torna-se capaz de perceber a imagem de autor como

emergente do discurso literário, que não se localiza nem no fora, nem no

dentro enunciativo, mas que está na fronteira do discurso literário. Por outras

palavras, a imagem de autor localiza-se como sombra do enunciador, que

projeta na enunciação literária um mundo possível, partilhado por sujeitos, em

uma época e em um lugar.

O discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha, a partir de agora

Recordações, foi produzido no final do século XIX, publicado no início do

século XX, tornou-se reconhecido como opus representante do Pré-

modernismo brasileiro, porque rompia com os padrões estéticos do movimento

literário anterior, o Parnasianismo. Recordações representa em seu conteúdo a

vida de um jovem mulato inserido em uma sociedade escravocrata, retratando,

por conseguinte, temática controversa ao esperado para a literatura da época,

conforme salienta Bosi (2002). A seguir, expomos o percurso teórico-

metodológico que dará subsídio a nossa análise. Pretendemos, portanto,

explicitar os constituintes da AD, que nos ajudarão a responder às questões

direcionados pelos objetivos elencados para essa pesquisa.

1.2 Uma Análise de Discurso

A AD vem desde a década de 1960 se situando como uma disciplina da

Linguística, que observa os discursos como práticas sociais. Sem paternidade

definida, a AD surgiu de uma necessidade fixada na história da França, no

campo da pedagogia, em tornar os discentes leitores e produtores de textos

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mais críticos e da possibilidade de diálogo com pensadores, que não eram

propriamente do campo da linguística, tais como Pêcheux e outros autores

ligados ao Estruturalismo, à Psicanálise e ao Marxismo. Essa

interdisciplinaridade possibilitou um olhar, em relação aos conteúdos discutidos

no campo escolar, menos recortado e, portanto, mais plural. Assim, a AD,

tornou-se uma disciplina capaz de fomentar a reflexão das práticas sociais,

tomando como objeto de estudo o discurso (em perspectivas mais recentes se

dirá interdiscurso, (Maingueneau 2010)). A AD parte do pressuposto de que o

texto é a materialização do discurso, o qual opera em sua relação enunciativa

uma série de eventos, que não são de ordem estritamente linguística, pois leva

em consideração outros territórios como a História, a Sociologia e a Psicologia.

Não podemos entender discurso apenas como um evento linguístico

organizado de acordo com a melhor opção lexical, porque os enunciados se

organizam nas relações que operam nos lugares em que estão e entre os

agentes que estão em contato durante a enunciação. Assim, pensar em

discurso é pensar na relação humana, que é histórica, social e psicológica,

para dizer o mínimo.

A AD se constitui como um território e está estabelecida por um arcabouço

teórico-metodológico bem delineado e, em certa medida, constituído. O fato de

pertencer a um território, a AD se aloca nos limites entre territórios, por outras

palavras, o arcabouço teórico-metodológico da AD é delineado pelo analista de

discurso, que constituirá um percurso de análise que melhor possa responder

aos objetivos de sua análise. Cabe ao analista, por conseguinte, perceber as

fronteiras as quais o discurso estudado se constitui e, a partir delas,

estabelecer o percurso teórico-metodológico que, com base na enunciação,

observe o discurso e relacione-o com outros.

Pensar que o discurso se aloca em zonas fronteiriças não é a mesma coisa

que pensar na noção de texto trabalhada sob perspectivas transfrásticas, como

acontece na Linguística Textual e na Semântica de textos (Paveau e Sarfati,

2006). Quando estudamos o texto nessas perspectivas, estamos falando do

universo estritamente textual, que não leva em consideração elementos

sociais, históricos, não-verbais e os sujeitos que tornam o texto possível. A AD

considera o texto como produto enunciativo situado em um tempo histórico, por

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sujeitos que têm relação direta com esse momento. Ela se interessa pelo

discurso, situa-o como evento social, não deixa, portanto, de relacionar os

sujeitos em sua complexidade ao texto propriamente dito. Não interessa à AD a

distinção entre texto e discurso, mas o discurso materializado na prática

textual, que não tem condição de ser observada por uma única via. A

linguagem é o próprio discurso, porque é por meio da linguagem que a relação

entre os homens se torna sustentável.

Desse modo, não se pode pensar na ideia de discurso, reduzindo-o apenas a

materialização dos códigos linguísticos que constroem o texto, pois o discurso

é a relação construída entre linguagem e sociedade. Pensar na ideia de

discurso é pensar na ideia de relação. Fora da relação, fora da sociedade e,

fora da sociedade, não há discurso.

O discurso é construído na sociedade, em um período, em uma circunstância,

por uma autoridade concebida como autor (em sentido lato) que é o “EU”,

porta-voz da enunciação, que se mantém fixo a uma concepção ideológica, ou

como prefere Maingueneau (2008), por uma formação discursiva. Todas essas

parcelas de construção do discurso são intrínsecas e simultâneas, acontecem

na enunciação, no processo enunciativo de interação.

A sociedade exerce uma importante função no processo enunciativo, porque a

enunciação não acontece de maneira caótica, sem estar ligada a outras

enunciações anteriores. O discurso não acontece de maneira nova todas as

vezes que é utilizado em um ambiente de interação, há relações “relativamente

estáveis (BAKHTIN, 2003), que se repetem, e para essas relações

relativamente estáveis, usamos, tanto quanto, gêneros do discurso

relativamente estáveis.

Não podemos desconsiderar o fato de que toda enunciação acontece baseada

em um universo de outras enunciações, há, portanto, a inextricável presença

de Outro em toda dada enunciação. Essa presença pode ser notada por níveis

de heterogeneidade, ou seja, imbricação de outras enunciações a uma posta;

um nível de heterogeneidade mostrada e outro constitutiva. (Maingueneau,

2008b).

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A heterogeneidade mostrada pertence à presença de Outro na enunciação que

pode ser localizada por aparelhos linguísticos, por meio de aspas, discurso

direto, referências a outros discursos. É comum encontrarmos a presença de

Outro na enunciação de um discurso por esse primeiro nível de

heterogeneidade, contudo, quando se trata do nível constitutivo de

heterogeneidade, não poderíamos circular sua presença por aparelhos

linguísticos. Em uma dada enunciação, podemos perceber a heterogeneidade

mostrada, mas é impossível perceber a constitutiva, pois, essa última, se dá de

maneira intrínseca à enunciação.

Não se pode dizer por quantas presenças se constituem uma dada enunciação,

se há um ou muitos Outro(s) histórico(s), sociológico(s), psicológico(s), ainda

mais especificamente, se esse Outro é uma marca autoral, ou de uma

comunidade, ou de um tempo histórico. A heterogeneidade constitutiva,

inerente a toda enunciação dada, é que torna possível a noção de

interdiscurso, superando a noção de discurso, e dando a AD seu verdadeiro

objeto, escopo de seu universo de interesse. A AD, enquanto disciplina

linguística, apoia-se em diferentes territórios da ciência, como a Psicologia, a

Psicanálise, a História, a Sociologia, entre outras, para examinar seu objeto de

estudo, considera a impossibilidade de um discurso ter uma única fonte

geradora e que não esteja pautada no primado do interdiscurso, categoria

constitutiva de toda prática social. Funda-se, assim, a interdiscursividade, ponto

basilar para a AD francófona que vem se desdobrando no Brasil.

O discurso passa a ser, sob esse ponto de vista, uma marca histórica, que tem

um conjunto finito de formações discursivas e constroem um Eu enunciador

pertencente a um tempo. A esse conjunto finito de formações discursivas, mas

impossível de ser delineado, chamamos de universo discursivo (Maingueneau,

2008a). O universo discursivo é uma zona ampla de suposição, e cabe ao

analista de discurso delimitar esse vasto espaço de restrições a um campo

mais restrito, ou seja, direcionar seu olhar a uma dada enunciação para um

sistema de restrições específico diante das formações discursivas possíveis de

terem relação direta ou indireta com esta dada enunciação.

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A partir das possibilidades de um universo discursivo, encontraremos campos

onde as formações discursivas se agruparam de forma a obterem certo tipo de

concorrência. Assim, se organizarem em favor umas das outras ou em

oposição umas às outras em favor de uma mesma função social, teremos

então, o campo pedagógico, filosófico, dramatúrgico (Maingueneau, 2008b).

O campo discursivo pode ser delineado, pois o agrupamento de formações

discursivas obedece a um processo lógico de construção, que está diretamente

ligado à enunciação, assim, à sua função social. Contudo, de pouco vale ao

analista de discurso preocupar-se com um “ambiente” discursivo

demasiadamente vasto, além de exaustivo; seria inapropriada uma pesquisa

que debruçasse a esse intento, pois não conseguiria dar cabo aos próprios

objetivos.

É mais apropriado que o analista de discurso isole – de acordo com seus

interesses – dentro do campo discursivo um espaço que possa ser observado

de maneira privilegiada pelo aparato que dispõe. Um espaço cujas formações

discursivas concorram de maneira simples de serem associadas às suas

funções sócias; como, por exemplo, o campo pedagógico, o espaço escola, ou

o espaço secretaria, entre outros. Trata-se de pensar em interdiscurso como

confirmação de que o discurso acontece por meio de raízes criadas na

comunicação do homem e pelo que o homem construiu em sociedade como

possibilidade. Todo discurso enunciado é possível.

O texto tem de ser observado como acontecimento. Não se trata de pôr em

relação dois paradigmas como se fossem distintos, em se tratando de texto e

discurso, mas relacioná-los. A AD propõe uma percepção discursiva do texto,

que o perceba como acontecimento social, que pode ser concebido pelo olhar

do analista de discurso, a partir, caso seja de seu interesse, também de

concepções linguísticas e de enunciação. Assim, podemos entender que os

textos –como acontecimentos sociais - são discursos que têm ocorrência

relativamente estável, pois toda enunciação acontece, também, de maneira

relativamente estável (Bakthin, 2003:236).

Nesse sentido, toda enunciação é portadora de um nome: “panfleto”, “carta”,

“redação de vestibular”, e essa nomeação obedece a critérios heterogêneos de

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nomeação, por exemplo, panfleto e carta estão relacionados às práticas sociais

distintas com funções sociais distintas; enquanto esta tem a função de

comunicar pessoas de diferentes localidades ou informar a respeito de trâmite

bancário, ou imposto, aquele tem a finalidade de informar a respeito de um

produto, e assim construir uma relação comercial. A redação escolar está

ligada à prática de um universo muito restrito: a escola. Podemos ainda pensar

em uma carta de publicidade e em uma infinidade de gêneros, que nascem de

distintas necessidades geradas socialmente.

Os gêneros, contudo, não existem como esqueletos textuais empregados

diante de uma necessidade de enunciação, mas são construídos

historicamente por enunciadores que veem surgir em variados ambientes

enunciativos novas maneiras de enunciação e novas necessidades

enunciativas. Os gêneros de discurso estão aglutinados a setores da atividade

social (Maingueneau, 2004), ou seja, dentro do setor escola, podemos

encontrar o panfleto, a carta e a redação escolar para citarmos poucos

exemplos.

As formas de organização, cujas inscrições na memória perpassam as

condições de produção da coletividade e, pelas quais se reconhecem lugares

sociais e posicionamentos, são setores da atividade social em que os gêneros

do discurso se manifestam. Nesses “ambientes”, pelos quais vastos números

de gêneros circulam, a AD chama de tipos de discurso. Os tipos de discurso

abraçam uma variedade inestimável de gêneros do discurso, e, embora sejam

concebidos historicamente como gêneros, possuem um caráter menos volátil

em relação ao tempo.

Os tipos de discurso possibilitam a circulação de atos de enunciação que

obedecem às condições de êxito (Maingueneau, 2006), por outras palavras,

quando temos que dar uma opinião incisiva a alguém que nos avaliará em um

ambiente escolar, escrevemos um texto curto, de algumas linhas de sequência

textual argumentativo-dissertativa, e a essa condição de produção enunciativa

dá-se o nome de redação escolar; contudo, há gêneros que estão

estandardizados socialmente, como a missa, a tese, a aula.

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Um gênero do discurso não é uma unidade que está completamente

distinguida e construída, se não o conceito bakthiniano “relativamente estáveis”

não faria sentido. Os gêneros são concebidos por finalidades reconhecidas, por

estatutos de parceiros legítimos, por lugar e momentos legítimos, um suporte

material e uma organização textual, (Maingueneau: 2004). O suporte material

“jornal”, por exemplo, pode “trazer” o gênero “tirinha” e o gênero “coluna”. Os

parceiros legítimos de uma “transmissão de futebol” podem no final da partida

ter uma “conversa formal”.

Os gêneros do discurso estão em todas as atividades sociais de comunicação,

e em todas as instituições sociais, como a religião, a ciência e a literatura e

servem a essas instituições de maneira relevante. Contudo, podemos notar que

o gênero do discurso carta, por exemplo, pode aparecer em territórios

institucionais variados, como o religioso e o literário, conquanto sirva a cada um

de maneira singular. Percebemos, assim, que há níveis dentro de uma mesma

enunciação; no exemplo citado, o discurso literário aparece em um “nível”

acima do gênero carta. Não se pode considerar a “carta” e a “literatura” sobre o

mesmo patamar, pois a segunda serve a primeira como fonte geradora.

A literatura é assim uma “forma” enunciativa maior, e envolve múltiplos gêneros

do discurso que modificam suas especificidades dentro da manifestação

enunciativo-discursiva literária. Desta maneira, não podemos conceber a

literatura como um gênero do discurso, pois ela é fonte geradora de gêneros do

discurso. Entretanto, também não se pode conceber a literatura como

instituição, como a escola, ou um hospital. É problemático, ainda, dizer que a

literatura é uma representação ideológica, como seria, por exemplo, o discurso

capitalista, ou comunista. Cabe, então, delinear o que, para a AD, se pode

considerar o discurso literário.

1.3 O lugar e o não lugar: o discurso constituinte literário

O discurso literário é um acontecimento social, portanto, um discurso que tem,

segundo o arcabouço teórico-metodológico da AD, um desvelamento

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profundamente relacionado à época, lugar e relações autorais que os sujeitos

componentes desse discurso mantiveram no ato de produção discursiva. Além

disso, o discurso literário não é um discurso que pode ser percebido apenas

como uma bolha que é preenchida por diversos gêneros do discurso que, de

uma maneira simples, irão representar o mundo. Mas uma manifestação da

linguagem, capaz de estar diretamente relacionada com o mundo em que está,

mesmo sem pertencer a ele, de fato. Essa dupla possibilidade – estar e não-

estar- é condição do discurso literário e parte do que se pode considerar

próprio dos discursos constituintes1.

Uma análise da “constituição” dos discursos constituintes deve assim

se ater a mostrar a articulação entre o interdiscursivo e o discursivo, a

imbricação entre uma representação do mundo e uma atividade

enunciativa. Esses discursos representam o mundo, mas suas

enunciações são parte integrante do mundo que eles representam,

elas são inseparáveis da maneira pela qual geram sua própria

emergência, o acontecimento de fala que elas instituem

.(MAINGUENEAU,2008:40).

Quando um discurso toma um potencial literário, quando uma “carta” , por

exemplo, torna-se literária, ou seja, quando a forma predomina em detrimento à

função? (Bourdier 1996: 321). A questão feita pelo filósofo Bourdier nos

interessa, na medida em que reflete sobre como a literatura tem acesso “aos

leitores”. Quando temos contato com uma obra da literatura, o contato se dá

pelo reconhecimento do gênero do discurso que é encenado, como

possibilidade e como necessidade dessa mesma enunciação (Maingueneau

2006). A literatura tem uma função geradora, e constitui-se como um discurso

“acima” do discurso mostrado. Embora, no caso citado, exista uma carta

aparentemente, existe um processo criado socialmente que a faz literária. A

literatura tem, portanto, uma fundação anterior ao gênero enunciado.

A literatura é considerada um campo primeiro, pois outros discursos decorrem

de sua constituência.

1 Nosso interesse é o discurso literário, contudo, há outros discursos constituintes trabalhados por

Dominique Maingueneau, especialmente nas obras “Gênese do Discurso” de 2008, e “Cenas da Enunciação” de 2008.

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A pretensão desses discursos, assim chamados por nós de “

constituintes”, é de não reconhecer outra autoridade além da sua

própria, de não admitir quaisquer outros discursos acima deles. Isso

não significa que as diversas outras zonas de produção verbal ( a

conversação, a imprensa, os documentos administrativos etc.) não

exerçam sobre eles; bem ao contrário, existe uma interação

constante entre discursos constituintes e não constituintes, assim

como entre discursos constituintes e discursos constituintes. Mas faz

parte da natureza dos discursos constituintes negar essa interação ou

pretender submetê-la a seus princípios. (MAINGUENEAU 2008b:37.)

Esses discursos autorizam a si mesmos, uma categoria que, embora aceite a

existência de outros discursos, tenta submeter o “Outro” às próprias condições

de produção. A visualização fica clara, se deixarmos o discurso constituinte da

literatura, e partirmos, rapidamente, para a oposição lógica entre o discurso

constituinte científico, e o discurso constituinte religioso: muito embora ambos

se aceitem, nem um, nem o outro, poderá apropriar-se de princípios e

procedimentos do outro, porque seria negar os próprios fundamentos.

Sendo assim, os discursos constituintes são auto e hétero constituintes,

(Maingueneau 2000,2008), Ou seja, eles se validam a si mesmos dentro do

interdiscurso, não aceitando intervenção de outros discursos constituintes. Isso

é possível pela associação de um lugar a um corpo de enunciadores

consagrados e uma gestão na memória.

O discurso constituinte submete toda manifestação enunciativa às próprias

regras de imersão no interdiscurso. Não se pode construir uma tese, sendo ela

própria do discurso constituinte científico, em forma de romance, pois isso não

seria socialmente aceito, e sua representação morreria antes de construir

qualquer tipo de relação.

Os discursos constituintes mobilizam o que se poderia chamar de

archéion da produção verbal de uma sociedade. Esse termo grego,

étimo do latino archivum, apresenta polissemia interessante para

nossa perspectiva: ligado a arché, “fonte”, “princípio”, e a partir daí

“mandamento”, “poder”, o archéion é a sede da autoridade, um

palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas também os

arquivos públicos. (MAINGUENEAU 2008a:37)

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Existem em sociedade espaços que podem ser facilmente reconhecidos como

aglutinadores de gêneros do discurso; uma redação de jornal, por exemplo, irá

aglutinar gêneros do discurso de sua esfera composicional, segundo

Maingueneau (2008) e pode-se tratar de tipos de discurso relacionados a

certos setores da atividade social. O discurso constituinte literário não existe

em função dos tipos de discurso, contudo cria em sua enunciação

representações dos tipos do discurso, simulando suas rotinas, construindo em

sua enunciação práticas de um mundo possível. Esse aspecto do discurso

constituinte literário nos permite considerar que esses territórios, os tipos de

discurso, são aglutinadores de gêneros que estarão em sua esfera, e ainda que

alguns gêneros sirvam a esses territórios de maneira recíproca, a esses

espaços considera-se a definição de topismos enunciativo-discursivos.

Os topismos enunciativo-discursivos têm, em parte, uma representação

linguística, correspondem a atividades extratextuais. Assim, observar as

unidades tópicas no discurso literário é como observar dois polos de um

mesmo objeto. O discurso literário envolve a prática quotidiana à atividade

linguística. De um lado, temos as rotinas do escritor ou produtor do texto

literário, que se relaciona com os pares de sua vida integrada à sociedade. Do

outro, temos a manifestação enunciativa da participação desse escritor com a

própria integração social. Nessa integração fronteiriça, aloca-se uma condição

do discurso constituinte, a paratopia (Maingueneau, 2006).

A enunciação paratópica do discurso literário olha para dois polos que se

integram; o “fora” e o “dentro” enunciativo. Contudo, quando se pensa na ideia

de paratopia não se trata de pensar no “fora” e no “dentro” isoladamente, sem

correspondência entre si, mas no atrito entre esses dois “espaços”, que se

percebe como a paratopia literária.

O olhar sobre a paratopia revela que, no discurso literário, as formas de

representação se integram, associando o “fora” e o “dentro” como unidades

discursivo-enunciativas que representam atividades reconhecidas socialmente.

Esse terreno encarado frente a frente pelo leitor no contato com a literatura é

chamado de topismo (Maingueneau 2007). Esses topismos são unidades que

interessam à pesquisa que se debruça sobre o discurso literário, porque

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revelam a condição paratópica do discurso literário, sem desprezar o “fora” e o

“dentro” enunciativo-discursivo, mas mostrando como a fronteira da enunciação

literária constituiu a si mesma como fonte de existência e possibilidade. Desta

maneira, estudar por uma análise que aponte para os topismos literários

significará localizar, de maneira analítica, um posicionamento na matriz da AD

em relação ao discurso literário, que se debruça sobre sua condição

paratópica.

A literatura não encontra em si um lugar de existência. Tem, em sua

enunciação, a própria necessidade enunciativa, que, da mesma maneira que

pertence ao mundo, não é o mundo. Dessa percepção, emerge uma imagem

que se acopla ao discurso literário como agente e paciente: o autor. O autor é

fonte enunciativa que pode sustentar o discurso literário, na mesma medida em

que é sustentado por ele. Desta maneira, é o autor uma representação

enunciativo-discursiva do enunciador. É o autor uma instancia que emerge do

discurso como uma imagem e essa imagem de autor tem de representar o

discurso enunciado como fonte fundadora. O discurso projeta, por conseguinte,

uma imagem de autor que o sustenta. Vemos, deste modo, no discurso literário

uma imagem de autor que é uma sombra do enunciador literário.

1.3 As sombras: a imagem de autor no discurso constituinte literário

Na confluência entre o “dentro” e o “fora” da enunciação literária está a

condição paratópica. Essa condição é a possibilidade geradora e mantenedora

do discurso literário. Desse espaço fronteiriço emerge uma imagem que liga a

materialidade do discurso literário a uma realidade extrínseca ao texto. Ou seja,

uma categoria que enquadra o discurso literário em uma possibilidade de

existência em um lugar, em um espaço, em um registro, em meio às condições

sócio-históricas de produção, em manifestações da linguagem, entre outros. É

assim a categoria do autor (Maingueneau, 2010), que sustenta e é sustentada

pela enunciação literária, cuja responsabilidade lhe pertence. O autor constrói

discursivamente a cena da própria vida, sem pertencer à cena literária.

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O autor é fruto da enunciação literária, pois a tradição dos estudos da crítica

literária assim revela: não existe autor sem opus. Só podemos pensar em um

autor, quando o associamos a uma imagem criadora a um opus de sua própria

responsabilidade. Desta maneira, o autor é condição da sua própria criação.

Existem autores que não estão relacionados a grandes opus literários; não são

referência e, por isso, negados por alguns, negligenciados por outros, quem

sabe, esquecidos. Cabe pensar se a condição de autor nesses níveis “

inferiores” não foi alcançada pela ausência do prestígio do opus literário, ou do

próprio autor2.

Quando pensamos em “autor”, também estamos pensando em discursos que

suportam autoralidade, por outras palavras, quando estamos tratando do

conceito de autor, também estamos tratando do conceito de gênero do

discurso, pois se todo gênero do discurso possui algum enunciador, não são

todos os gêneros que possuem um autor, (Maingueneau, 2010).

Evidentemente, quando nos direcionamos a autor de um bilhete e autor de um

discurso literário, estamos falando de autor em dimensões diferentes, mas, nas

duas situações, estamos falando de sujeito com o foco na enunciação. Se

considerarmos que todo enunciado só pode ser enunciado, pois já foi

executado em ocasiões anteriores e que, por representarem sua presença na

memória da coletividade, estaremos desconsiderando que são os sujeitos

enunciadores que representam a si mesmos, ora mais, ora menos, em

enunciados novos capazes de dizer o novo de maneira nova.

O estudo do autor conflui com o estudo do sujeito, porque são os autores, para

a AD, aqueles que representam a si no “dentro” e no “fora” da enunciação,

aqueles cujos enunciados trazem marcas sociais, textuais e da memória da

coletividade e que se consagram pela produção de gêneros são auto e hétero

constituintes (Maingueneau 2010). Grosso modo, a noção de autor parece ora

privilegiar a criação, ora a existência empírica. A perspectiva da AD, contudo,

marca-se na indistinção e na confluência desses “lugares” do discurso literário.

Por conseguinte, o trabalho da AD na investigação do autor, considera que o

discurso que tem autoralidade é aquele que se registra por discursos que

2 Essa reflexão será expandida na página 22 quando refletirmos sobre a questão da condição

do discurso literário na validação social

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tenham unidades linguísticas, territoriais e formações discursivas.3 marcadas

interdiscursivamente.

Pensar que o discurso literário é orquestrado por unidades pode parecer

embaraçoso a princípio, pois esse pensamento tende a fazer pensar que as

unidades compõem o discurso como peças de tetrix e que, por isso, podemos

dissecar o discurso como partes de um todo. Esse pensamento só está correto

em certa medida, pois o estudo sobre os “topismos” do discurso só pode ser

considerado, se estivermos pautados pelo interdiscurso. Então, só podemos

desmembrar o discurso, considerando o olhar do analista que direciona esse

desmembramento. Não podemos imaginar, porém, que esse desmembramento

seja intuitivo, pois o analista do discurso tem de estar orquestrado pela

possibilidade enunciativa que o próprio discurso sugere. No caso do discurso

literário, a imagem de autor é fonte norteadora, pois “fixa” a enunciação em um

tempo e em um espaço, esclarecendo possíveis formas de vida,

comportamentos e, desta maneira, instruindo o olhar analítico para as

condições sócio-históricas de produção, sob as quais estava o autor e os

sujeitos que são objetos reprodutores da sombra que é a literatura.

A consagração de determinada imagem, como a de um autor, pressupõe

evidentemente, uma obra, ou um corpus que se possa considerar de autor. De

acordo com o dicionário de língua portuguesa Houaiss, autor é

\ô\ s.m 1 Aquele que causa algo; agente (desse fato feliz) 2 escritor 3

inventor, descobridor (a. da bomba atômica) 4DIR quem pratica um

delito 5 DIR quem inicia um processo judicial ( autoria s.f HOUAISS

2004).

A primeira dimensão de autor em Houaiss parece aquela que vimos explorando

ao longo deste capítulo, a de que o autor está relacionado a um opus, no caso “

aquele que causa algo”. Contudo, os outros conceitos dados pelo dicionário

ainda podem nos trazer, em certa medida, curiosidade. O segundo conceito,

situa o autor como escritor. Essa perspectiva não é nova e parece a mesma em

que Foucault (1977), que a entende como função-autor. Não estamos

3A expressão formação discursiva foi explorada por Pêcheux e por Foucault, mas é sob a perspectiva de

Maingueneau, que trata a noção como unidades tópicas e não tópicas, que nos parece ser mais claro o conceito e, por isso, a nossa fonte de filiação.

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relacionando a postura do dicionário a do filósofo, mas optando por um olhar

acerca do dito. Embora Foucault relacione autor também à fala, essa relação é

apagada ao longo do texto e passa a privilegiar, quase que totalmente, a

escrita, ou ao que ele considera “à prática de escrita” (Foucault 1977:06).

A AD também percebe a dimensão escrita como a mais fortuita na emersão da

imagem de autor. Os gêneros de discurso da esfera oral, grosso modo, não

trazem a emersão de imagens de autor, por conta do dinamismo com o qual

circulam. Isso talvez justifique o fato de que a palavra autor, – quando se trata

de literatura – seja tratada como sinônimo da palavra escritor.

O terceiro e o quarto pontos trabalhados por Houaiss esclarecem a relação do

autor com uma instância comercial, ou seja, como aquele que produziu algo e

que pode ser beneficiado, economicamente, por exemplo, pelo fruto de sua

produção, ou pelo ônus jurídico de um ato criminoso. Essas duas abordagens

são correlacionadas e foram exploradas por Roger Chartier (2012:37), que

considera a ideia bipartida (aquele que ganha ou aquele que perde algo) de

autor, advinda do século XVI ou XVII, quando houve uma ligação

há de fato uma ligação estabelecida entre a “função autor” e o direito

de vigiar, censurar, julgar e punir, exercido por uma autoridade ou um

poder. [...] ]fica evidente que tal mecanismo censor referido é anterior

ao momento da definição jurídica de uma propriedade, o que levava o

leitor ou auditor da conferência de Foucault4 ao momento em que os

Estados ou as igrejas dotaram-se desse poder de vigiar e punir os

autores e os textos transgressores [...]

O conceito de autor não pode ser desatrelado do produto de um autor. Só se

pode consagrar autor aquele que produz algo, ou alguma coisa, como vimos no

verbete acima. Entretanto não são todos os gêneros do discurso que são

passíveis de se considerar um autor; uma conversa, por exemplo não tem nela

desvelada uma autoria.

Tratando-se de literatura há um problema de posicionamento de autor. O

discurso literário tem que ser parte da sociedade que está relacionado, sem

contudo, pertencer a essa sociedade, o que nos possibilitou pensar na

4 Chartier revisa em seu texto a conferência de Michel Foucault, e, neste ponto, usa a

conferência como exemplo.

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metáfora da “sombra”. Por isso, quem produz uma obra literária é alguém que

não tem um lugar/ uma razão de ser (nos dois sentidos da locução) e que deve

construir o território por meio dessa mesma falha, (Maingueneau 2006.)

Nota-se que a sagração de um autor não é concomitante à obra que ele criou;

desta maneira, esse é um processo complexo de criação, pois em se tratando

de discurso literário, em qual momento determinado o objeto se torna

literatura? O autor de literatura assume uma posição complexa, porque a

produção literária não é um campo que gera uma instituição comum, não há

um ofício garantido na produção autoral; por exemplo, em que momento se

processa a autoria? No ato de enunciação? Não poderíamos considerar isso

como verdade, pois não é a enunciação literária, somente, que torna um

discurso literário, mas o reconhecimento de um discurso como literário, por

uma instituição que pode ser a academia, ou como um grupo que valide

determinado discurso como literário. Assim ,

o campo literário e artístico atrai e acolhe agentes muito diferentes

entre si por suas propriedades e suas disposições, portanto, por suas

ambições, e com frequência bastante providos de confiança e de

segurança para recusar contentar-se com uma carreira de

universitário ou de funcionário e para enfrentar os riscos dessa

profissão que não é profissão. (BOURDIEU 1996:256.)

Ainda, nas palavras de Maingueneau(2006:90): uma das condições do discurso

literário é o pertencimento a um espaço privilegiado, que tem agentes de

validação,

Esse espaço é uma rede de aparelhos em que os indivíduos podem

constituir-se em escritores ou público, em que são garantidos e

estabilizados os contratos genéricos considerados literários, em que

intervém mediadores (editores, livrarias...) intérpretes ou avaliadores

legítimos (críticos, professores...) , cânons ( que podem assumir a

forma de manuais, antologias...)

A condição de ser autor nasce da relação lógica de “autor de”. A autoria se

justifica por aquilo que ela produz: o autor de uma carta, de um panfleto, de um

discurso. Sabemos, entretanto, que não são todos os gêneros do discurso que

possuem as condições ideais para a autoria. Uma anedota ou uma conversa

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têm em si muitos autores possíveis, pois seu dinamismo tornaria pouco

consistente algum estudo que tentasse desvelar desses gêneros seus

respectivos autores.

A literatura se manifesta, grosso modo, na esfera escrita. Dessa maneira, tem

como ser cristalizada na memória da coletividade. Isso facilita a emersão de

uma imagem de autor, mesmo sendo o Autor uma figura incontornável que tem

relação direta com um tempo e com um espaço (Maingueneau 2010). O

discurso que “viaja” no tempo tem maior chance de, um dia, validar-se como

literário e fazer emergir de si, uma imagem de Autor.

Para podermos considerar que uma figura deixe de ser autor de para tornar-se

Autor apenas, referência em um discurso literário que o desvela, um olhar

torna-se essencial: a qualidade que determinado “produto” do autor tem, pois

como pensa Bourdier (1996), a obra de arte se valida socialmente e não pela

predisposição de um autor em torná-la arte, e por isso, torna-se seu próprio

autor. Assim, para notarmos a figura potencial de autor em um discurso

literário, é necessário notarmos a validade que o discurso atingiu na sociedade

em que se circunscreve.

Existe um número muito restrito que atinge uma categoria máxima de autor,

aquele que se torna correlato de uma obra ou um Opus de produção.

Poderíamos ainda considerar duas outras dimensões na emergência de um

autor: uma primeira superficial em que o autor se torna apenas responsável

pelo dizer, e a segunda, o autor que se torna ator de sua produção enunciativa.

Essa segunda categoria entra em concorrência com outras como: “escritor”,

“homem de letras”, “literato”, “artista”, “intelectual”( Maingueneau 2010).

Essas duas categorias são as de mais simples apreensão, pois se trata de “dar

ao discurso” uma referência de criador. A primeira dimensão, que Maingueneau

(2010) nomeia como “autor-garante”, é aquela destinada a qualquer

enunciação dada, como um bilhete, um cartaz, um teste escolar. Vemos que,

embora muito superficial, essa dimensão ainda dependerá do gênero a que se

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circunscreve, pois não se atribuirá um autor-garante5 a uma aula, a menos que

essa aula atinja um estatuto diferenciado.

A segunda dimensão, autor-ator, é aquele que está associado ao universo das

produções escritas propriamente ditas, e, ainda, que se relacione à ideia de

literatura. Podemos tratar assim de um editor que reúne sob uma publicação

diversos poemas ou contos. Citemos, como exemplo, autores de biografias e

autores de textos, que não se consagram socialmente como um opus literário,

aqueles cuja obra se condensou, de maneira a trazer a ideia de unidade.

Percebe-se que não existe uma autoria plena, digna de autoridade e que ainda

não tenha dispersão, que seja autovalidada. É evidente que alguém que produz

um texto é um autor em potencial, entretanto, sua autoria plena será concebida

socialmente pela validação que sua enunciação atinge no espaço social que se

circunscreve. Assim, será “autor” efetivo, fonte de “autoridade”, apenas se

terceiros falam dele, contribuem para modelar uma “imagem de autor dele”

(Maingueneau 2010).

Dessa maneira, o autor precisa que outros, em especial figuras também

validadas socialmente, dirijam-se a ele e a seu opus como de prestígio. O Autor

de referência é aquele em que outros se dirigem a ele com admiração ou

consternação, aquele cuja obra é mencionada como compacta o suficiente

para ter uma “fonte” representante. Essa fonte representante se manifesta

dentro e fora da enunciação, ou seja, tem uma validade socialmente e na

mesma medida que essa imagem pode ser reconhecida no enunciado.

Essa última dimensão da ideia de autor, a que vimos chamando Autor de

referência é trabalhada por Maingueneau (2010, 20110 ) como Auctor6. Esse

termo é utilizado para revelar autores, que se consagraram socialmente por

uma produção literária, aos quais são atribuídas imagens de autor. O que nos

parece interessante explorar.

5 Gêneros do discurso como a aula, por exemplo, são entrecortados por uma rede enunciativa

muito dispersa. O conceito de polifonia (BAHHTIN, 2003) seria mais preciso para perceber as “vozes” se manifestam como autores na enunciação de uma aula. Ser autor de um gênero de caráter tão disperso só pode acontecer em circunstâncias muito peculiares.

6 Aqui trabalharemos esse conceito como o correlato à enunciação em Recordações do

Escrivão Isaías Caminha, sem, contudo, alterar a grafia da palavra: autor.

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A imagem de autor está filiada a um nome de autor. Embora pareçam figuras

indissociáveis – nome e imagem -, não são. Há exemplo de produtores que

constroem opus literários para imagens alheias, os ghost writers7 . Além disso,

se pensarmos nos heterônimos, a imagem de autor se distingue do enunciador

empírico, por outras palavras, o nome que representava o opus literário não é

um sujeito jurídico. A imagem de autor é uma representação extraída na

enunciação literária. Está, só em partes, filiada ao produtor empírico do

enunciado. Ela tem que sustentar e ser sustentada pelo que é enunciado, a

partir das formações discursivas cuja obra se circunscreve.

A enunciação literária é parte integrante de um tempo e um espaço

(Maingueneau, 2006). Essa integração pode ser percebida pela representação

de cenografias8 que, de uma maneira ou de outra, são representativas do que

a sociedade projeta para uma vida possível de um autor. Contudo, existem

enunciações literárias que não foram “entendidas” pela rede de aparelhos

como opus capazes de serem consagrados como “obra literária”. Assim, a

imagem de autor se filia diretamente à condição paratópica do discurso

constituinte literário, instaurando-se no lugar e no não-lugar da paratopia, pois

são nesses lugares que ocorrem verdadeiramente as relações entre o escritor

e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade (MAINGUENEAU,

op.cit.: 94).

Essa dupla face da existência de um autor, nome e imagem têm de conseguir

ser responsável pelo o que se enuncia no discurso, ou seja, a imagem de autor

tem de ser relacionado a um rito de produção, não poderíamos pensar em um

autor de textos de vertente comunista que se comportasse como um rei. A esse

processo se dá o nome de ritos genéticos, que

constituem, na verdade, o único aspecto da criação que ele pode

controlar, a única maneira de conjurar o aspecto do fracasso. Em

matéria de criação, o êxito é profundamente incerto: como se

assegura de que se fez uma obra de valor quando nem mesmo a

aprovação do público imediato é um critério seguro? Não resta ao

7 Na tradução literal “escritor fantasma”. O termo se reporta aos escritores que são pagos para

escrever para outras pessoas, que serão “autores” dos textos escritos pelos ghost writers. 8 A questão sobre a cenografia será discutida na página 24.

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autor senão multiplicar os gestos conjuradores, mostrar a si mesmo e

ao público os sinais de sua legitimidade. (MAINGUENEAU 2006:156)

O autor, assim, se constitui por dois aspectos intrínsecos; representar em vida

uma imagem que será desvelada no discurso literário, e regular o discurso de

maneira que desvele nele uma imagem que possa ser sustentada. Assim, cabe

propor que fundamentos, além da questão de gênero, unidades tópicas e

formações discursivas, fariam um discurso se tornar opus literário que garanta

uma autoria.

O que está sendo proposto, até agora, são condições do discurso literário, tais

como a paratopia e a imagem de autor, que parecem convergir na percepção

da dupla possibilidade de existência da enunciação literária; o intrínseco e o

extrínseco.

A condição paratópica do discurso literário condiciona uma imagem de autor,

na mesma medida em que é o autor da enunciação literária que cria as

condições paratópicas do discurso literário. Essa fricção das fronteiras existe,

porque a enunciação literária participa do mundo, construindo a própria

condição enunciativa de participação no mundo.

Essa condição enunciativa é construída – mesmo o termo “construir” não sendo

o mais adequado – por meio de cenas possíveis, as quais têm correspondência

com os membros de uma sociedade, em uma época, em um lugar, com autor

empírico, para o qual criamos uma imagem que é oriunda na enunciação

literária. Nesse sentido, a imagem de autor, emerge na enunciação, porque

pode representar a si mesma, a partir de um sistema enunciativo que coaduna

com a memória discursiva e com as condições sócio-históricas da produção do

autor como sujeito situado em um tempo e um espaço.

Quando, na enunciação literária, os pares enunciativos (leitores) tomam

contato com a materialidade do texto, estes pares têm a condição de perceber

que essa materialidade pertence a um “tipo de discurso”, ou seja, à literatura.

Contudo, essa percepção não acontece pelo mero contato com a

materialidade, pois essa materialidade não está desconectada de uma série de

aspectos que direcionam o olhar dos pares ligados à enunciação, como, por

exemplo, os elementos paratextuais, além disso, onde a materialidade circula e

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que tipos de relações se executam diante dessa materialidade. A esse

reconhecimento do tipo do discurso, juntamente com os elementos linguísticos

que “orbitam” a enunciação, damos o nome de quadro cênico (Maingueneau,

2013). O quadro cênico é subdividido em tipo de discurso. A cena englobante,

em nosso caso, a literária, e a cena genérica, os elementos que envolvem a

enunciação literária, dando a ela uma função social, uma estrutura entre

parceiros legítimos e uma formatação circunscrita na memória.

Contudo, a interação mais profunda entre os pares da enunciação literária não

acontece pelo quadro cênico, mas pela enunciação, que se acopla à vida como

uma sombra, ou seja, participando da vida, das rotinas e das possibilidades

reais de interação discursivas, sem ser a própria vida. A essa enunciação de

um mundo possível, Maingueneau (2006) chamou de cenografia e é, na

cenografia, que se pode perceber uma imagem de autor, que garante à

enunciação literária sua condição paratópica, pois é o ato do autor que constrói

um mundo que o integra como sujeito, sem participar efetivamente desse

mundo.

A cenografia no discurso literário dá condições de observar o que é enunciado

como possibilidade real. Essa possibilidade se reporta diretamente à vida de

um autor, cuja imagem se pode depreender na enunciação literária. Além

disso, a imagem de autor está fixada às condições sócio-históricas de

produção que, em certa medida, são depreendidas como cenografias. Por

outras palavras, perceber a cenografia do discurso literário é perceber uma

imagem de autor filiada a um tempo e a um espaço.

1.4 As cenas enunciativas e os topismos do discurso literário

O discurso literário toma contato com os leitores por meio das cenas

enunciativas. Cena englobante e cena genérica compõem o quadro cênico

(Maingueneau, 2013), cuja função está associada a formalizar, a partir das

condições sócio-históricas de produção, o que é o tipo de discurso literário.

Contudo, é pela cenografia que o discurso literário acessa seus leitores

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(Maingueneau, 2006). Na literatura, as cenografias serão aquelas às quais os

leitores criam expectativas.

Desse modo, a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e

aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez,

deve legitimá-la, estabelecendo que essa cenografia onde nasce a

fala9

é precisamente a cenografia exigida para enunciar como

convém (MAINGUENEAU, 2013:98)

A cenografia do discurso literário tem diálogo fixo com o autor e sua imagem,

pois “encena” as rotinas comuns à vida, que podem ser aceitas pelos leitores

como verdadeiras e pertencentes ao mundo extrínseco à enunciação literária,

ao que corresponderia ao “mundo” do autor.

O enunciado literário agrupa unidades enunciativo-discursivas que pertencem

às rotinas verbais, que, agrupadas, compõem a cenografia. Uma cenografia

corresponde às rotinas, que se executam no discurso literário. Vemos, na

literatura, ser enunciada uma rotina possível ao extraliterário. Essa

“possibilidade” paratópica é composta por uma série de eventos enunciativos

que correspondem às práticas conhecidas por membros da atividade

enunciativa. As cenografias da rotina literária são as mesmas das práticas

quotidianas, isso é parte da condição paratópica do discurso literário

(Maingueneau, 2007).

A partir disto, a imagem de autor ancora essas rotinas a um tempo e um

espaço, por exemplo, quando se toma a reflexão acerca de um autor,

pressupõe-se dele uma vida extraliterária, um mundo no qual esse “sujeito”

existe/existiu e percebeu o mundo a sua volta. Essa ancoragem viabiliza

observar, a partir de um olhar interdisciplinar, quais experiências são possíveis

em uma época, quais vivências um sujeito pôde/pode experimentar, qual era o

mundo e em qual tempo esse sujeito enunciador está/esteve. Desta maneira, a

cenografia do discurso literário dá condições de perceber, pela perspectiva

enunciativo-discursiva, a imagem de autor e o mundo em torno desse autor. As

9 Nesse exemplo, Maingueneau se refere a uma análise que está proposta em “Análise de

Textos de Comunicação”. Essa análise trata de um enunciado prototípico da fala, mas, com efeito, pode representar os enunciados escritos.

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unidades que compõem a cenografia são práticas, que correspondem ao que

vínhamos tratando como topismos do discurso literário.

Os topismos literários são unidades enunciativo-discursivas que compõem a

cenografia “desenhando” os acontecimentos e modelando comportamentos,

ações, fazeres. Esses fazeres têm correspondência com a história, com os

lugares e com os sujeitos que os enunciam. São as unidades tópicas e não

tópicas o “lugar”, onde se podem delinear os comportamentos de uma época,

os sujeitos e as instituições. Perceber as unidades tópicas e não tópicas é

perceber a própria sociedade, pois as relações de comportamento, de fazeres,

de quotidiano não são aspectos próprios da enunciação literária, mas dos

sujeitos interpelados pela sociedade onde estão.

Nesse sentido, quando obervamos nos discursos as unidades tópicas e não

tópicas, experienciamos, na mesma medida, um mundo enunciado como real,

por outras palavras, a enunciação registra, pelas unidades tópicas e não

tópicas, o próprio sujeito enunciador em sua relação com o mundo e com as “

forças” - instituições, acontecimentos, eventos -, que o fazem tomar essa ou

aquela atitude, ter esse ou aquele comportamento, por conseguinte, ser o que

é enunciativamente.

Existem unidades que correspondem a setores da atividade humana. Uma

redação de jornal, por exemplo, tem suas próprias práticas enunciativas, com

seus próprios sujeitos, com suas próprias funções. Em situações como esta,

teremos práticas assumidas como pertencentes a um grupo (jornalistas), que

acontecem em um universo discursivo-enunciativo de fácil delineação; são as

práticas tópicas. Contudo, há práticas que não pertencem a um setor da

atividade humana, mas os atravessam de maneira clandestina, são registradas

na memória da coletividade, mas só podem ser percebidas a partir de um

aparato interdisciplinar que as justifique na história, no contato com os sujeitos

e na “força” que exercem sobre eles; são as unidades não tópicas.

A enunciação literária se estabiliza no que se pode entender como uma rotina

cuja expectativa compõe um simulacro. Por outras palavras, a enunciação

literária se compõe de um agrupamento de gêneros que pertencem a um tipo

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de discurso literário que, por sua vez, está filiado a setores da atividade

humana. Assim

mesmo os gêneros definidos por um autor, como ocorre com

frequência em literatura ou em filosofia, somente são definidos no

interior de práticas verbais instituídas. Tipos e gêneros de discurso

são tomados numa relação de reciprocidade: todo tipo é um

agrupamento de gêneros, todo gênero só se define como tal por

pertencer a um determinado tipo. (MAINGUENEAU 2007:30)

As rotinas reconhecidas nas práticas verbais são, na cenografia, “pontes

paratópicas”, pois ligam o extrínseco e o intrínseco do discurso literário,

engendrando uma enunciação fronteiriça de onde se pode perceber uma

imagem de autor e uma sombra de um autor, que se consagra pelo/no discurso

literário. A essas rotinas filiadas aos setores e atividades reconhecidas,

concebidas na enunciação, dão-se o nome de unidades tópicas (Maingueneau

2007).

No entanto, existem unidades enunciativo-discursivas, reconhecidas pela

coletividade, que não bastaria chamar de unidades tópicas, pois elas

atravessam múltiplos gêneros do discurso, mas estão configuradas na

construção do dizer e no como dizer. Estão intrinsecamente relacionadas às

outras unidades, contudo estão aparelhadas sobre os recursos linguísticos,

como a narração, a argumentação, a descrição, entre outras. Essas unidades

estão voltadas ao “fazer” enunciativo, ou seja, estão pautadas sobre o

interesse do enunciador em contar uma história e fazer com que o co-

enunciador adira a um produto ou ideia, conforme postula Maingueneau (2007),

quando as chamou de unidades transversas. São estas manifestações

linguísticas que integram o discurso.

Há, contudo, unidades que estão nas fronteiras das unidades delineadas pela

função social e pelo atravessamento linguístico. Essas unidades são anômalas

e não autorizadas; além disso, são registradas pela marginalização de seus

dizeres e, por isso, não são admitidas, embora sejam construídas e concebidas

na memória da coletividade. São estas as unidades não tópicas.

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Discurso como o racista é de extensa circulação em nossa sociedade e, muito

embora se veja mencionar “que alguém é racista”, não será comum ver alguém

dizer “ sou racista”. Isso acontece porque a prática racista foi percebida, junto a

um longo processo de conscientização racial, que ainda acontece, como

extremamente negativa e, por isso, deve ser combatida, conforme afirma

Nascimento (2010). Contudo, o combate ao discurso racista não impede que

ele circule como unidades discursivas, que circulam em diversos tipos e

gêneros do discurso de maneira clandestina. Essas unidades estão nas

fronteiras, atravessam diferentes enunciados como fazem as unidades

transversas e estão registradas na coletividade. Assim, tais unidades só podem

ser percebidas pelo desenho de suas fronteiras, a partir de uma reflexão

histórica sobre sua enunciação. Nesse sentido, registrar uma imagem de autor

é também fixar, pela condição paratópica do discurso constituinte literário, uma

possível fronteira na qual se podem perceber unidades não tópicas.

Inferindo a imagem de autor, que emerge no discurso literário, podemos

verificar a que condições sócio-históricas este discurso está filiado na fronteira

paratópica. Nesse sentido, podemos constatar que as unidades não tópicas

são apreendidas, particularmente, pelo olhar de uma analista, que reconhece

nas fronteiras de determinado discurso, aspectos de clandestinidade dessas

unidades. Cabe, por conseguinte, ao analista construir um arcabouço que

revele como possível que determinada enunciação é perpassada por unidades

conhecidas por todos, mas que ninguém as autoriza. As unidades não tópicas

parecem úteis e produtivas ao estudo de nosso objeto de análise, pois

Restringir a análise de discurso apenas as unidades tópicas seria

denegar (no sentido psicanalítico) a realidade do discurso, que é

relacionamento do discurso e do interdiscurso: este último trabalha o

discurso, que em retorno o redistribuí perpetuamente. É esse

impossível fechamento que me parece testemunhar a persistência da

noção de formação discursiva: não haveria análise de discurso se

não houvesse agrupamentos de enunciados inscritos nas fronteiras,

mas, por outro lado, também não haveria análise do discurso, se o

sentido se fechasse nas fronteiras (MAINGUENEAU, 2008:25).

Neste capítulo, por fim, delineamos um arcabouço teórico-metodológico, que

será reavivado durante toda essa pesquisa como capaz de evidenciar uma

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imagem de autor emergida do discurso constituinte literário. Esse discurso se

configura em fronteiras enunciativas. Dá a seus autores grande prestígio e

pode tornar-se importante panorama para observação de uma época e dos

sujeitos dessa época. Contudo, como apontamos anteriormente, o autor não

está em uma localização confortável, não adianta nada se perguntar se a

autoralidade está no interior ou no exterior do texto: ela subverte essa oposição

(Maingueneau, 2010:46). O que parece ser mais interessante é a observância

da cenografia, para que ela possa ser ampliada, quando da busca da projeção

de uma imagem de autor.

Assim, nosso estudo se configura por meio de unidades tópicas e não tópicas

do discurso, pois consideramos esse estudo relevante para a clareza e

compreensão da imagem de autor. Vê-se que o Autor emerge do discurso

literário na confluência entre o fora e o dentro do discurso. A autoralidade é

possível pela condição paratópica do discurso constituinte literário. Essa

representação pode ser percebida no agrupamento de unidades tópicas -

atividades reconhecidas e autorizadas nas rotinas sócio-histórica de um sujeito

e não tópicas - discurso racista -, que contribuem para a construção de uma

imagem de autor. A partir do que antecede, seguimos para a configuração das

condições de produção e para a demarcação das unidades tópicas e não

tópicas

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CAPÍTULO II

OBJETO SOMBREADO: O EXTRÍNSECO AO DISCURSO RECORDAÇÕES

DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO

2.1 A cenografia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha

Neste capítulo, expomos aspectos extrínsecos à enunciação em Recordações.

Nosso objetivo é observar o diálogo entre o intrínseco e o extrínseco e, por

isso, apoiamo-nos na História, na Sociologia, na Filosofia e na Crítica Literária

para ampliar nosso olhar sobre os efeitos de sentido possíveis de serem

construídos na cenografia de Recordações. Para isso, dividimos nosso

percurso de pesquisa em dois tópicos. Primeiramente, desvelaremos as ações

que enunciativo-discursivamente representariam as unidades tópicas,

observando na vida do escritor de Recordações as atividades assumidas como

a de um grupo, seu percurso escolar, acadêmico e as rotinas propriamente

ditas. Em segundo lugar, construímos um percurso que reflete sobre as

formações discursivas, que incidem sobre o negro no final do século XIX e

início do XX. Isso nos dará condição de desvelar na enunciação de

Recordações aspectos discriminatórios e racistas sobre o negro, que não foram

assumidas por um grupo, mas reconhecidos, quando observados pelos vieses

da História, da Sociologia e da Crítica Literária. Debruçamo-nos, portanto,

sobre as unidades não tópicas.

Essa postura se justifica porque é pela cenografia que os leitores têm contato

direto com o campo literário (Maingueneau, 2013). A cenografia se instaura no

agrupamento de práticas enunciativo-discursivas, tópicas e não tópicas que,

materializadas em textos, integram o quadro cênico literário. Analisar as

unidades tópicas e não tópicas, na cenografia (a representação das atividades

do coletivo, que têm relação com as rotinas, com a vida) é examinar a

correspondência extrínseca ao enunciado e perceber a condição paratópica do

discurso constituinte literário. Observar em Recordações a cenografia

engendrada enunciativo-discursivamente é também considerar a emersão de

uma imagem de autor nascida no discurso, que cria rotinas da vida possível em

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seu enunciado, unindo o “dentro” e o “fora” do discurso numa fronteira

impossível, em um impossível lugar (Maingueneau, 2010).

O estudo da imagem de autor ancora o intrínseco e o extrínseco literário em

um período sócio-histórico, às formações discursivas, sujeitos de uma

contemporaneidade. Por outras palavras, a imagem de autor dá uma

possibilidade de leitura da condição paratópica, pois fixa o discurso literário em

um lugar, em um momento histórico, às formações discursivas que, na

enunciação literária, são sombras do mundo empírico, por conseguinte,

sombras do próprio autor. O estudo do extrínseco, a partir da condição dada

pela imagem de autor, em Recordações, é também o estudo do intrínseco, pois

no discurso literário, extrínseco e intrínseco são pares indissolúveis.

Nossa preocupação está na delineação das fronteiras que compõe, primeiro,

as unidades tópicas em Recordações, ou seja, as rotinas autorizadas que são

“sombras” das rotinas extrínsecas á enunciação literária, como a juventude em

uma família suburbana, o ofício de jornalista, o funcionalismo público e o que

está em volta dessas rotinas como prática de um sujeito ou de um grupo.

Depois disso nossa exporemos aspectos de uma prática que não é pertencente

a um grupo e que, além disso, não é autorizada: o racismo. O racismo é uma

unidade não tópica, pois não é aceita como atividade que pertence a um grupo,

contudo, é executada por grupos e só pode ser percebida como ação

cristalizada na história e nas rotinas que estão nas formações discursivas de

um grupo quando a delineamos, a partir dos pressupostos dados pela História,

pela Sociologia, Filosofia e Crítica Literária.

A rejeição ao racismo não o impede de ser reconhecido impregnado em

diversas práticas do quotidiano. O racismo recaiu sobre o homem negro como

uma chaga de grande preconceito, herdado dos anos de escravidão a que foi

submetido e dos discursos ideologicamente construídos sobre a perspectiva do

homem branco (Nascimento, 2010:65).

Nesse sentido, o que se manifesta como não tópico no discurso são as

formações discursivas do racismo, que foram historicamente construídas, no

Brasil, em um processo de inferiorização do negro e do mulato em relação ao

branco. A manifestação do racismo no discurso Recordações também é parte

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da composição da cenografia que sustenta, na mesma medida que é

sustentada, uma imagem de autor, pois as representações não tópicas se

localizam na fronteira entre intrínseco e extrínseco na enunciação literária do

quotidiano, como práticas

que produziram a ideologia dominante e fixaram as diferenças e a

superioridade dos brancos sobre os negros e indígenas. Nesse

sentido, o branco se perpetuou como sinônimo de sabedoria,

superioridade, e o negro e o indígena, de forma particular, o negro,

como sinônimo de ignorância, inferioridade. Assim, as desigualdades

sociais, construídas historicamente com base na superioridade do

branco, na submissão dos negros e na violência da escravidão

geraram, em nossa sociedade, uma mentalidade racista não somente

no modo de pensar, mas também no modo de agir. (NASCIMENTO,

2010:65)

Esse “pensar” e “agir” são percebidos no discurso Recordações no esconderijo

das relações e só podem ser percebidos pelo percurso instruído pelo olhar do

analista, amparado por bases epistemológicas de áreas distintas do

conhecimento.

De agora em diante, construiremos um percurso histórico das condições de

produção que cercam a paratopia literária em Recordações, apontando as

fronteiras perceptíveis e tornando possível exibir a emersão de uma imagem de

autor. Nossa finalidade é perceber unidades tópicas e não tópicas baseadas no

desvelamento das características realçadas na imagem de autor, ou seja, um

homem mulato que presenciou como jornalista e funcionário público, os

desmandos raciais do Brasil em parte dos séculos XIX e XX.

Quando tratamos de condições de produção de determinado discurso,

podemos incorrer em dois erros correlacionados. O primeiro é tratar as

condições de produção como “contexto”,

Condições de produção é um termo empregado [...] como variante de

contexto. Mas é cada vez menos utilizado, pois ele minimiza a

dimensão interacional do discurso e o caráter construído enquanto

dada da situação comunicacional (MAINGUNEAU, 1998:31)

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O segundo equívoco se localiza na necessidade de o pesquisador enxergar

nas condições de produção de seu objeto, a justificativa do discurso. O

discurso literário é parte integrante da sociedade e sua enunciação está na

impossibilidade de pertencimento a esta sociedade, ou seja, a enunciação

literária não pode ser justificada pelo extrínseco, tanto quanto o intrínseco

enunciativo não pode justificar o extrínseco.

A partir disso, delinearemos o percurso fronteiriço do final do século XIX e

início do século XX. Em AD, delinear o percurso do discurso literário já é uma

conduta de análise; por isso, direcionaremos nosso olhar, desde já, à imagem

de autor que se consagrou como cânon literário em Recordações. Enfocamos,

assim, o escritor Lima Barreto e o discurso racista, o qual foi objeto de

denuncia em Recordações.

2.2 Um estudo das fronteiras

O contato entre europeus e africanos, desde o século XV, período de expansão

marítima, até os dias atuais, trouxe grande miscigenação cultural, tornando o

mundo multicultural. O europeu, melhor aparelhado com a cultura bélica

(Munanga, 1986), levou ao continente africano e, por conseguinte, às diásporas

negras pelo mundo, uma corrosiva ideia de dominação econômica que, por

diversos mecanismos, acabou por diminuir a identidade negra ontológica,

epistemológica e teologicamente construída (Munanga, 1986). Desse modo,

tornou-se previsível que o negro, capturado de seu território para servir como

escravo em favor do crescimento econômico europeu, fosse inserido ao

discurso depreciativo, que os povos de pele branca criaram para justificar a

colonização africana e, por meio disto, a cultura escravagista. O processo de

miscigenação causado pelo contato entre europeus e africanos trouxe a chaga

da segregação, preconceito e falta de acesso aos que legaram a pele

azeitonada e o cabelo crespo. Emana da imagem de autor, em Recordações, a

denuncia em relação às manifestações de racismo oriundas das formações

discursivas racialistas, que se cristalizaram como formações discursivas no

período de produção de Recordações. Por isso, para melhor entendermos as

unidades tópicas e não tópicas que constituem a cenografia de Recordações,

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iniciaremos um percurso histórico, amparado por estudiosos diversos, incluindo

Lima Barreto, a respeito da questão do negro e da literatura, no Brasil do final

do século XIX e início do século XX.

Se, ainda hoje, presenciamos possíveis discussões a respeito de cor da pele,

oriundas da exploração do continente africano, sem dúvida, a sociedade à qual

pertencia Afonso Henriques de Lima Barreto não se manifestava menos hostil

para um mulato como ele. Reconhecer em Isaías Caminha traços de grande

semelhança com a história de vida de Lima Barreto não é equívoco: ambos

mulatos e descontentes com as condições geradas pelo preconceito da cor, no

período pós-escravocrata no Brasil. Podemos citar, ainda, a trajetória de ambos

em redações de jornais, na finalização do período imperialista e de

consagração da república. Tais fatos trouxeram ao discurso Recordações

inúmeras críticas e longo período de ostracismo. Esse fato fez com que um

crítico conhecido de Lima Barreto, desenrolasse tais aspectos a respeito de

Recordações,

É pessoalíssimo e, o que é pior sente-se demais que o é. [...] A

sua amargura, legítima, sincera, respeitável, como todo nobre

sentimento, ressumbra demais no seu livro, tendo-lhe faltado a

arte de a esconder, quando talvez a arte o exija. E seria mais

altivo não a mostrar tanto. (BOSI, 2002:292)

Recordações encontrou resistência por parte de importantes críticos de sua

época, pois o ideal parnasiano de arte pela arte não combinava com seu

caráter autobiográfico. O movimento pré-moderno – batizado posteriormente

por Tristão de Ataíde – no qual se enquadrava Recordações, é reconhecido

pela estética transgressora, que vê, no extrínseco, a força motriz da construção

do belo, ideal que vai à contramão do Parnasianismo e do Neoparnasianismo,

movimentos literários em vigor naquela contemporaneidade. Lima Barreto foi

um escritor que se contrapôs a esta estética. Para Lima Barreto, cabia ao autor

impregnar à enunciação literária com as próprias vivências, fazendo do

discurso literário uma possibilidade política, histórica, sociológica. Mais do que

pressupor um discurso político, contudo, o escritor de Recordações fez sua

enunciação ser um registro do olhar humano sobre as condições do homem,

que estava pressionado pela formação discursiva que recaí negativamente

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sobre o negro. Nesse sentido, perceber a vida do enunciador de Recordações

é perceber parte das práticas enunciativo-discursivas, que se arrolam, portanto,

é fazer uma análise de Recordações.

2.3 Afonso Henriques de Lima Barreto: as práticas tópicas

Filho de mãe mulata agregada à família Pereira de Carvalho, Carlota Maria dos

Anjos e de negro nascido escravo, João Henriques de Lima Barreto, Lima

Barreto nasceu mulato. Sua inteligência acima da média deu a Lima Barreto o

prognóstico de vida de “doutor”. Lima Barreto, na infância, alimentou o sonho

de se formar em medicina. Teve sua formação básica nas áreas das

humanidades, no Instituto Comercial da corte antiga e lá aprendeu francês.

Ainda na infância, começou a frequentar a casa dos Pereira de Carvalho,

família à qual um de seus integrantes fora o ilustre doutor Manuel Feliciano

Pereira de Carvalho, que é chamado Patriarca da Cirurgia Brasileira. A família

Pereira de Carvalho tinha uma série de agregados negros e mulatos, dos quais

diziam serem filhos dos varões da família. Foi nesta casa que Lima Barreto,

ainda na infância, conheceu quem viria a ser sua esposa e mãe de seus filhos,

a senhora Amália Augusta, também mulata, neta de africana.

Na juventude, Lima Barreto frequentou o instituto artístico, onde teve sua

formação técnica em tipografia, tal e qual seu pai, João Henriques de Lima

Barreto. Por ser tão bom no ofício, logo foi trabalhar na imprensa, na oficina do

jornal O Comércio.

O gênio forte e a confiança na própria competência fizeram com que Lima

Barreto pedisse seu desligamento da Oficina de O Comércio por não ter

conseguido ocupar o lugar de um chefe que havia falecido.

O futuro de doutor, projetado na infância por Lima Barreto, começa a ruir no

contato diário com a condição de se reconhecer como mulato em um mundo

composto por injustiças raciais. Recordações, discurso atribuído a Lima

Barreto, é conhecido por ter um enredo semelhante à sua biografia relatada por

estudo histórico e por notas escritas pelo próprio Lima Barreto. Por isso,

Recordações é considerada um resgate autobiográfico de um trajeto de

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humilhação racial. Lima Barreto percebia o racismo a sua volta com indignação

e posicionamento crítico, coisa que só poderia ser notado por alguém que,

naquela época, tivesse consciência crítica a respeito do mundo que o cercava.

O discurso Recordações foi associado pela Crítica Literária a um discurso de

posicionamento político, que dava voz a Lima pela força enunciativa de Isaías

Caminha.

No exame retrospectivo das humilhações porque passou na

adolescência o seu personagem Isaías Caminha. Este também

sentia-se um condenado por culpa da cor, proibido de viver, fechado

o caminho da vida “ por mais forte que a dos homens. Pretinho!

Mulatinho! Isso doía mais que uma bofetada! Está é pelo menos a

confissão de Isaías Caminha. (BARBOSA,2003:141)

Lima Barreto iniciou a publicação Recordações na Revista Floreal.

Infelizmente, a Revista fechou em seu quarto volume e Lima Barreto só

conseguiu terminar seu intento em uma publicação fora do Brasil, em Portugal.

A obra foi enviada a um editor português chamado Sr. A. M. Teixeira, por

intermédio de uma amigo de Lima Barreto, João Pereira Barreto, que também

havia trabalhado na Floreal.

Nesta época, Lima Barreto já tinha em mãos outra obra pronta, o seu mais

cerebrino trabalho, como Lima mesmo o tratou, Vida e Morte de M. J. Gonzaga

de Sá. Lima Barreto deixa claro o motivo que o fez optar por Recordações em

vez de Gonzaga de Sá como primeira publicação,

Mandei as Recordações do Escrivão Isaías Caminha, um livro

desigual, propositalmente malfeito, brutal por vezes, mas sincero

sempre. Espero muito que ele escandalize e desagrade. Como

contigo, eu terei grande desgosto que isso aconteça a outros amigos.

Espero que esse primeiro movimento muito natural, seja seguido de

um outro de reflexão em que vocês considerem bem que não foi só o

escândalo, o egotismo e a charge que pus ali. (LIMA BARRETO apud

BARBOSA: 2003: 184/185)

A charge em Recordações é constante, além do próprio Isaías Caminha que

disse à crítica da época ser uma representação de Lima Barreto. Encontramos

na obra outras figuras públicas, além de o Correio da Manhã, que aparece no

enredo, ter tido uma charge de O Globo, jornal o qual Lima fora funcionário.

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Quanto a estas charges, Lima Barreto dizia: “se lá pus certas figuras e o jornal,

foi para escandalizar e provocar atenção para a minha brochura” (apud

BARBOSA:2003:37).

O discurso Recordações está relacionado à decepção do homem mulato em

um período de grande desprestígio da cor. O discurso em questão trata das

condições emergentes dos homens negros, dentro ou fora dos discursos

literários: jovens com expectativa de grande ascensão, mas que não atingiram

os anseios da juventude por causa da opressão gerada pelo preconceito racial.

Antes de seu falecimento, em 1922, Lima Barreto, um dos grandes precursores

da estética moderna no Brasil, deu sua última contribuição intelectual, ao

escrever o discurso O destino da literatura, por ocasião de uma conferência,

em Rio Preto, cidade do interior de São Paulo, que fica próximo a Mirassol,

cidade, onde Lima Barreto se recolheu, para atenuar os problemas que os

excessos da vida boêmia havia lhe trazido. Lima Barreto, embora não fosse

exímio palestrante, optou por proferir a palestra. É pena, entretanto, a intenção

não ter sido contemplada, pois, no dia em que se faria a palestra, Lima Barreto

se entregou, mais uma vez, ao vício do álcool e não conseguiu concluir seu

objetivo. O que restou, contudo, pode nos dar a ideia do que Lima Barreto

entendia como literatura e qual a projeção que um escritor deveria ter em seu

texto. Para ele

E se uma percepção religiosa existe entre nós, então os sentimentos

tratados pela nossa arte deveriam ser examinados na base dessa

percepção religiosa; e como foi o caso sempre e em toda parte, a arte

que comunica sentimentos decorrentes da percepção religiosa de

nosso tempo, deveria ser escolhida dentre toda a arte medíocre,

deveria ser saudada, valorizada e, acima de tudo, promovida, ao

passo que qualquer arte que negue aquela percepção, deveria ser

condenada e menosprezada, e toda arte restante deveria nem

distinguir-se nem promover-se. (apud OAKLEY 2011:06)

Para Lima Barreto, a produção artística estava entrelaçada à condição de

sacerdócio; desta maneira, o literato deveria assumir uma postura sacerdotal.

O ideal artístico de Lima Barreto fora contemplado em sua arte, pois faz parte

do sacerdócio a doação, no caso de Recordações, a doação é de tanta

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relevância que, ao passo de exaltar uma autoria, trouxe-lhe o ostracismo da

crítica de sua época, que estava embebida no padrão parnasiano de arte pela

arte que Lima Barreto rompia. O escritor em questão só gozou de interesse da

crítica, na década de 1940, quase vinte anos depois de sua morte.

A relação de Lima Barreto com Isaías Caminha é notória. Entretanto, de qual

mulato com inteligência acima da média e nas mesmas condições sociais e

financeiras não seria? Nosso interesse aqui não é mostrar que Recordações

seja um registro da vida de Lima Barreto, mas considerar aspectos no discurso,

que representam, de maneira interdiscursiva, as condições sócio-históricas do

homem mulato, no Brasil, vivenciado por Lima Barreto e resgatar possíveis

aspectos, materializados, no discurso, de maneira interdiscursiva, que

corroboram com a construção de efeitos de sentido no ato enunciativo.

Consideramos que esses elementos nos deem condições de perceber a

emersão de uma imagem de autor, que rompeu não apenas preconceitos de

cor, mas também estéticos, tornando-se, assim, referência e interesse da

academia, uma vez que pode ser importante para a releitura do discurso

Recordações, no âmbito dos estudos literários e daqueles voltados sobre o

negro, no Brasil.

Isso posto, entendemos que se faz necessário um resgate histórico do

tratamento dado ao homem negro, no Brasil, no período mencionado, a fim de

estabelecermos a possível origem da presença de negros e mulatos em

discursos literários, e aspectos da condições sócio-históricas daqueles sujeitos,

que se encontram incrustados na enunciação literária como registro de um

período.

2.3 A formação discursiva: racismo, prática não tópica

Após 13 de maio de 1988, era de se esperar que o homem negro, no Brasil,

estivesse livre do ferrolho da dor causada pela chaga da escravidão. Contudo,

os processos que foram orquestrados por um princípio econômico de

enriquecimento de algumas potências europeias, desde o século XV, período

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de grande expansão marítima e de enraização da cultura eurocêntrica,

cooperou, para que o Brasil, do final do século XIX e início do século XX, fosse,

ainda, hostil com o homem negro10, mesmo diante da lei de libertação dos

escravos. Neste subitem, resgataremos alguns pontos cruciais para a

construção das condições sócio-históricas no Brasil no final do século XIX e

início do século XX. Este período está envolvido com a questão do preconceito

racial e o racismo, visto que as condições de produção de Recordações

registram como a sociedade lidou com a questão do negro no período que

corresponde ao pré-modernismo literário.

A lei áurea foi assinada em um cenário mundial de mudanças econômicas. A

revolução industrial se consolidava na Europa, que vendia produtos

manufaturados aos outros continentes. O homem europeu rompia com a ideia

de enriquecimento de maneira hereditária, e o homem religioso deixava o papel

doutrinário e mantenedor do status quo social. O processo de industrialização

europeu não gerou mudanças apenas na Europa, pois o mundo, de maneira

geral, conheceu novas formas de organização social. A ideia do livre capital,

que se desatrelava do lastro monárquico, bem como a ruptura com a igreja no

sentido de que o homem, agora, poderia enriquecer, sem estar associado às

famílias fidalgas ou aos cargos eclesiásticos, fomentaram, no século XIX e no

século XX, novas formas de acúmulo de capital e, como era de se esperar,

novas formas de trabalho.

Nesse sentido, a forma de trabalho pautada no processo de escravização do

homem só contemplava parte do processo econômico vigente de

industrialização – europeia – e do enriquecimento. Pela primeira vez, o Brasil

não estava ligado apenas ao meio rural, mas ao que ficou conhecido como

Liberalismo econômico. No momento inicial de chegada do negro, o braço

escravo produzia riqueza e fomentava o crescimento econômico; contudo, não

gerava força de consumo, pois a economia brasileira, com uma base escrava,

não distribuía o capital de forma que ele retornasse à indústria. Desta maneira,

o modelo brasileiro de industrialização não projetava por completo o ideal de

10

O discurso sobre o homem negro se estendeu sobre o homem mulato. O processo de

branqueamento sofrido pela ideia biológica de “ser negro” não atenuou o sofrimento causado pelo preconceito racial que o homem mulato sofreu no período de nosso interesse.

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liberalismo econômico europeu, pois já tínhamos o negro liberto, mas

cultivávamos a cultura de escravização. O trabalho escravo estava enraizado à

forma de cultura colonial e enraizado na sociedade de maneira tal que era

comum notar que ao negro no Brasil cabiam os cargos de menor prestígio, que

estivessem à margem social e que geravam pouco capital e pouco retorno

desse capital à indústria.

Entretanto, a posição do negro como marginal na sociedade brasileira se

consagra a partir de sua libertação, porque, enquanto braço escravo, o negro

agiu ao longo da história do Brasil, até o século XIX, como integrante bem

situado às circunstâncias sociais. O papel de negro foi delineado no percurso

de construção histórica, econômica, moral, religiosa, ética, filosófica, científica,

como pertencente do lugar de escravo. A sociedade, de modo amplo, na

Europa, América e na África, estava convencida de que o papel social do negro

era de escravo. Não se trata de afirmar que os homens, ao longo desse

percurso, não se insatisfizeram com a condição do negro como escravo, as

ações sociais, contudo, foram estabelecidas contra essa condição e não

bastaram, para que a maioria não aceitasse, disseminasse e usufruísse desse

estigma.

O Brasil foi organizado sob o estigma de pertencimento a Europa. Nesse

âmbito, o território brasileiro não existia como nação, mas como parte

integrante ao território português. Ainda no século XV, período das grandes

navegações, quando a América começava ser delineada, inclusive o Brasil, a

expansão portuguesa não acontecia apenas para dominação de território e

exploração deste por motivo da flora e minério, A exploração ao homem negro

também se ampliava e intensificava. As colônias africanas não obedeciam ao

olho europeu e às mesmas regras e necessidades das colônias americanas. O

interesse principal no continente africano era o braço do homem, que seria

utilizado ao longo de quatro séculos de maneira intensa como escravo, na

exploração e na extração de riquezas minerais e da flora americana.

Sem a escravização do homem africano, o projeto de colonização do

continente americano não teria acontecido como nós o conhecemos, pois foi,

sem dúvida, o braço do trabalho forçado que mais delineou as terras da

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América e, por conseguinte, as terras brasileiras. A princípio tendemos a

imaginar que o europeu convenceu o africano ao trabalho escravo pela força

bélica. Não à toa, que

quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana em

meados do século XV, a organização política dos Estados africanos

já tinha atingido um nível de aperfeiçoamento muito alto. As

monarquias eram constituídas por um conselho popular no qual as

diferentes camadas sociais eram representadas. A ordem social e

moral equivalia à política. Em contrapartida, o desenvolvimento

técnico, incluía a tecnologia de guerra, que era menos acentuada.

(MUNANGA,1986 :8).

A imposição eurocêntrica em relação à África pela força bélica fora o primeiro

passo do projeto de dominação do continente africano. A ideia de que o

continente africano deveria ser colônia, parte de um princípio básico: a ideia de

que o natural era ser europeu. O pensamento baseado na ideia de que a

Europa era o continente mais desenvolvido econômica, social e religiosamente

fez com que o homem europeu atribuísse a si o papel de explorador e

colonizador do mundo. Esse pensamento agregado às grandes descobertas

marítimas trouxe ótimo ambiente para o crescimento eurocêntrico, desde o

século XV.

Tratava-se, portanto, de um discurso de duas vias: na primeira via, aparecia um

discurso capaz de convencer e normatizar moralmente o europeu sobre a ideia

de que escravizar o africano poderia, deveria e era o melhor a ser feito, na

exploração do continente africano, por meio do trabalho escravo como forma

de ofício. Na segunda via, no convencimento do negro, pelo apagamento

social, religioso, cultural, do povo africano, de que o homem europeu, branco,

era o modelo para a economia, para a religião e para a cultura.

Neste contexto, o homem africano encontrava-se diminuído em todos os

setores da vida social. Isso foi necessário, para que europeu se eximisse

moralmente do peso da escravidão e para que o africano aceitasse,

discursivamente, a condição de escravo. A aceitação da condição de escravo

aconteceu de maneira relativamente simples, considerando que o discurso

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europeu fora inculcado na memória africana por faltar nesta o que aquela

dominava: a tradição escrita.

O continente africano possui uma série de línguas ágrafas, e sua tradição é, ou

era, nesse caso, passada de pai para filho de maneira oral, por meio de rituais,

cantos e ritos do quotidiano do sua população. Assim, para que os traços

culturais fossem perpetuados e a configuração de sujeito e de homem fosse

mantida, era necessária a ligação de pai para filho, entre os membros dos

grupos sociais. Para o europeu, bastou apagar os símbolos africanos pela

violência física e pôr em seus lugares símbolos, que correspondiam à visão

eurocêntrica de que o homem europeu era o exemplo a ser seguido.

Desta imposição cultural, o que ficava mais acentuado era a distinção entre

homem branco e homem negro. É certo que o europeu, após chegar à África,

notou variações físicas entre os homens das diversas etnias do continente,

contudo, o que mais se registrou em documentos, além de relatos de criaturas

com aparências mitológicas com apenas um olho e com chifres aparentes, era

o cabelo crespo, o nariz largo e a pele negra, (MUNANGA, 1986: 14). Dessa

visão, montou-se uma proposta que abstraísse a noção de cultura alheia por

completo, esvaziando a África de significados, símbolos, formas de

conhecimento, e reduzindo essa complexa sociedade à visão preconceituosa

do homem europeu.

As sociedades negras da África foram vistas como fora da normalidade

humana. Por outros meios, o homem europeu observou o africano a partir de si

e, desta maneira, considerou que o normal era ser branco e que o negro

correspondia a alguma anomalia que poderia ser justificada; e isso aconteceu

pela ciência, pela religião, pela filosofia, pela economia. As justificativas

tendiam, em suma, ao desprestígio do africano em relação ao europeu e,

ainda, no convencimento do homem africano que o europeu era superior e que

este poderia exercer sobre aquele vantagem social e econômica.

Nas diásporas negras pelo mundo, depois do grande processo de migração

compulsória que o povo africano sofreu, tornou-se comum a assimilação

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cultural do branco pelo negro. O modelo eurocêntrico funcionava como fonte de

inspiração para os negros, que assimilavam idiomas, vestes, religião, traços

culturais, ou seja, maquiavam-se e alisavam os crespos cabelos para ter sua

imagem associada ao do homem branco.

Na religião, a cosmologia do africano foi associada, discursivamente ao

negativo por dois planos diferentes e complementares. Em primeiro plano,

considerou-se o negro, em contato com o europeu, parte da ascendência de

Cam, filho de Noé, que tivera sido punido, na cosmologia cristã, por ter

cometido pecados e recebido em sua pele a marca destes pecados. Essa

marca foi interpretada pelo discurso eurocêntrico como a tom da pele. Em

segundo plano, toda a cosmologia negra fora associada à maldade cristã. Não

era incomum ver representações do demônio cristão como uma criança negra.

Essa prática social trouxe aos ritos africanos um peso negativo e,

gradativamente, ocasionou o apagamento de suas religiões. Por isso, tornou-se

comum a conversão negra ao cristianismo e, posteriormente, ao sincretismo

religioso, que unia traços cosmológicos da religião africana e europeia no

entendimento do mundo.

As diferenças do negro, sempre em relação ao branco, considerado exemplo,

tinham de ser justificadas por um meio (Munanga, 1986); coube, então, à

ciência fazer registro do que se considerou anomalia. Surgiram justificativas

baseadas na alimentação do homem africano, e também no clima. A ideia de

que o negro era um branco degenerado, era trabalhada por teorias e

observações que, na prática, não podiam ser comprovadas e que, por isso, o

mecanismo de maior potência era o religioso. Esse pensamento discursivo,

unido à resistência dos negros à conversão, trouxe a entendimento que era

urgente e necessário “salvar” os povos africanos da condição de escravidão.

De acordo com a simbologia de cor, alguns missionários,

decepcionados na sua missão de evangelização pensaram que a

recusa dos negros em se converterem ao cristianismo refletia, de

fato, sua profunda corrupção e sua natureza pecaminosa [...] Desse

modo, não haverá nenhum problema moral entre os europeus dos

séculos XVI e XVII, porque na doutrina cristã o homem não deve

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temer a escravidão do homem pelo homem, e sim sua submissão às

forças do mal. (MUNANGA, 1986: 15)

A forma de vida na colônia africana foi reduzida a uma espécie de fracasso

econômico e também relacionada à consciência de que o homem negro era

pior. A economia, em suma, na colônia africana não era baseada no propósito

de lucro, do imperialismo europeu. Evidentemente, essa diferença foi

associada ao desprestígio social em que o homem negro fora condicionado.

Desta maneira, as diásporas negras, que se espalharam pelo mundo,

passaram por um processo de assimilação dos valores culturais do branco

(Munanga, 1986). O negro, marcado por uma situação discursiva negativa,

submeteu-se, a princípio, a um processo de branqueamento, por imposição de

uma necessidade econômica, que o fazia escravo. Esse processo de

branqueamento acontecia em níveis diversos, com o intuito de aniquilar a

cultura negra; vestimentas, objetos e alimentos foram, primeiramente, impostos

aos negros pelo branco. Em nível maior, impôs-se sobre os africanos a língua

falada por seus colonizadores. A língua do branco dominador marcou-se com

acentuada intensidade, pois os negros que dominassem a língua imposta eram

mais respeitados em relação àqueles que não tinham este domínio.

A política de branqueamento da cultura se entendeu às noções do corpo.

Tornou-se comum, por conseguinte, a relação sexual entre mulheres negras

com homens brancos e homens negros com mulheres brancas. Essa relação

étnica trouxe problemas na compreensão do homem mestiço, que Munanga,

(1986, p. 28), expõe da seguinte maneira.

A questão do sexo misto já era objeto de falsa especulação científica

no século passado. Paul Broca escreveu que tal relação era possível

somente entre um homem branco e uma mulher negra. O contrário

não o seria, porque o homem negro tinha um pênis excessivo e a

mulher branca uma vagina estreita, mostrando até que ponto o sexo

era um motivo de distanciamento numa sociedade machista

dominada pelo branco [...] Desde esta época, nasceu o preconceito

que ainda hoje persiste sobre os mestiços, considerados fracos física

e moralmente.

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Não basta pensar, contudo, que o processo de assimilação do colonizador pelo

colonizado aconteceu de maneira tranquila sem nenhum conflito. Houve negros

que se mantiveram firmes contra esta postura e se colocaram em desacordo

com a situação, a qual, desde o século XV, o mundo tendeu a desenhar. O

homem negro, na diáspora, tomou contato com uma base política que o

percebia como representação de um homem, nem mais bonito, nem mais feio

que os brancos, mas igual.

A resistência do negro não bastou para atenuar a ideia de imposição racial que

ainda hoje persiste. O discurso negativo sobre o negro, desde o século XV,

estruturado em sólidas bases de pensamento, não conseguiu chegar ao total

apagamento. No final do século XIX e início do século XX, o sistema político

mundial mudou, e o braço escravo deixou de ser necessário. Aliás,

considerando o novo modelo político, que se moldava ao fluxo financeiro no

mundo, a escravidão deixava de ser necessidade, para ser um passo de atraso

no sistema econômico. O desenho social negativo em relação ao homem negro

nas diásporas africanas e brasileiras, em meio a uma necessidade de nova

forma de trabalho, merecerá, a seguir, nossa reflexão.

2.4 O cenário do final do século XIX e início do século XX: topismos.

A formação discursiva negativa que recaía sobre o negro, nos séculos XIX e

XX, no Brasil, foi construída ao longo de quatrocentos anos. Por isso, esse

posicionamento não pôde ser apagado, a partir do momento em que o

pensamento político no Brasil entendeu o trabalho livre, como parte do

processo de enriquecimento industrial. A essa época, percebeu-se que o

homem negro não poderia ser apreendido como mercadoria. Nesse período

pré e pós- republicano, de 1840 a 1920, quando viveu Lima Barreto, a

Inglaterra exerceu forte influência sobre as relações políticas no mundo e, de

modo particular, na América Latina. Essa pressão compreendia a mudança na

forma e nas condições de trabalho que, embora envolvida sobre um discurso

filantropo, tinha latente interesse comercial. Nessa perspectiva, era urgente

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libertar o escravo. Mesmo assim, considerando que é nesse período que se

inicia um forte processo de imigração europeia para a América, o homem

negro, em consequência do forte discurso negativo criado a seu respeito, fica

em segundo plano, obrigado a viver às margens da sociedade.

Seria ingenuidade pensar que a sociedade do inicio do século XX, que estava

embebida do discurso depreciativo em relação ao negro, fosse, a partir da Lei

Áurea, considerar os negros libertos cidadãos integrados às rotinas sociais.

Antes, o homem negro estava inserido na sociedade no papel de escravo, e

agora, esse “não-lugar” provocado pela Lei Áurea, oferta ao negro a

marginalidade como única possibilidade.

O período econômico que o Brasil experiência no final do século XIX e início do

século XX dão-nos condição de entender como o “novo lugar” do homem negro

foi delineado. Aproveitando-se do discurso inculcado nas mentes em relação à

inferioridade do homem negro, e a forte pressão econômica do capital

estrangeiro, as tendências políticas liberais no Brasil ganharam força e voz no

campo social. A tendência europeia de acúmulo de capital, engendrada pela

revolução industrial, e a produção em massa soou como um modelo

interessante de economia, ainda mais considerando a desgastada monarquia

brasileira que, sem potencial e representação política, começava a pressionar o

império a dar lugar à república. Havia, contudo, pelo menos duas tendências

liberais no Brasil, os vanguardistas, filhos de antigos burgueses brasileiros, que

esperavam que o modelo liberalista aqui adotado fosse idêntico ao modelo

europeu. Sob esta conduta o homem negro liberto serviria como força de

consumo, ou seja, se o trabalho do negro o recompensasse com dinheiro, esse

“novo” trabalhador se tornaria consumidor, o que geraria, em certa medida,

fluxo monetário na sociedade, pautada em acúmulo de capital.

A outra tendência liberalista era mais tradicional que a primeira. Acostumados

com o passado escravagista, esta segunda tendência não tolerava a ideia de

que o homem negro liberto poderia trazer melhorias à sociedade liberalista.

Para estes, o entendimento de livre mercado não está associado, de maneira

direta, a ideia de trabalho livre (Bosi, 1992).

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Essas duas formas de liberalismo em nada, ou muito pouco, privilegiavam o

homem negro, que, não se pode esquecer, agora partilhava da sociedade

brasileira como integrante marginalizado e hostilizado pelo discurso econômico

em especial. Além disso, as duas frentes políticas tinham alguns pontos em

comunhão. O principal é o pressuposto de que o capital é um bem que diferia

os sujeitos. Desta maneira, o liberalismo entende a sociedade baseada no

acúmulo de bens que dá a eles grande importância, podendo agregar aos

homens valor. Lima Barreto (2010:37) observa essa sociedade com certo

desprezo e registra um sentimento negativo a esse respeito, quando afirma:

A vida do homem e o progresso da humanidade pedem mais do que

dinheiro, caixas-fortes atestadas em moedas, casarões imbecis com

lambrequins vulgares. Pedem sonho, pedem arte, pedem cultura,

pedem caridade, piedade, pedem amor, pedem felicidade; e esta, a

não ser que seja um burguês burro intoxicado da ganância, ninguém

pode ter, quando se vê cercado da fome, da dor, da moléstia, da

miséria de quase toda uma grande população.

As duas posturas liberalistas, que representam a vanguarda política do final do

século XIX e início do século XX, consideram o homem negro uma mera

ferramenta de acúmulo de capital, quer livre, quer escravo, pois ora o negro

funciona como um bem, ora na manutenção dos bens.

Embora os dois posicionamentos liberalistas tivessem como escopo o modelo

econômico europeu, a frente que apoiava o livre trabalho sobressaiu em

relação a que apoiava a manutenção do trabalho escravo. O que se poderia

supor, com a libertação do negro escravo, seria o equilibro, mesmo que

demorado, das classes, agora, trabalhadoras remuneradas; contudo, não foi o

que aconteceu, por dois motivos iniciais. Primeiramente, o discurso justificador

do negro escravo ainda perdurava na sociedade burguesa, que preferia ver o

negro distante, anulado socialmente. Houve, inclusive, tentativas de tornar a

sociedade mais branca. Em segundo lugar, o processo de imigração dos

europeus proletários, que vinham à América em busca de enriquecimento.

Esses últimos chegavam e ocupavam ofícios de baixo prestígio social que, se

assim não o fosse, seriam ocupados por negros libertados. Aliado ao discurso

racial à oferta de trabalhadores brancos dispostos à má remuneração, o negro

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foi ainda mais marginalizado. O fracasso econômico do negro, diante destas

condições, trouxe ainda outro ponto para mencionar é a comprovação da

correlação entre cor da pele e classe socioeconômica.

Por pertencerem à classe socioeconômica mais pobre, recai

sobre o negro outro dado discriminatório, embora a condição

de ser pobre e negro seja reforçada. Nesse sentido, ao negro é

negado o direito de viver plenamente a sua identidade étnica,

pois o modelo branco prevalece, e ele se sente inferiorizado,

sem prestígio e sem o reconhecimento de sua condição

humana. Dessa forma, a população negra, enquanto grupo

social, passa a ser percebida e tratada como ameaçadora,

inferior, odiosa, sendo ela própria a causa do racismo, da

discriminação e da intolerância (NASCIMENTO, 2010:71)

A ideia de que a ascensão no mundo do trabalho está associada à força da

vontade individual é desmistificada, quando se observa a vida de um homem

marcada pela chaga do preconceito racial. Quando jovem, Lima Barreto quis se

tornar médico. Já maduro, o sonho de ser médico foi alterado para o de ser

escritor. Ambos os desejos não foram alcançados. Lima Barreto foi, além de

funcionário público, jornalista e, neste ofício, exerceu importantes diálogos com

representações sociais, literárias e políticas. Fez da possibilidade que a

imprensa lhe permitia importante meio de comunicação social e, na forma da

arte, um rico opus que tinha como principal fonte de produção as mazelas que

eram direcionadas, segundo ele, aos que não eram como a parte burguesa da

sociedade, branca e rica. Mais do que um escritor de romances, novelas e

contos, mostrou-se preocupado com as relações sócio-políticas pelas quais os

jovens do subúrbio carioca eram direcionados na Belle Époque. Para Lima

Barreto,

a literatura é construída por meio da beleza estética que depende da

“substância da obra”, que é o pensamento que o artista investe nela

(apud OAKLEY, 2011: 04).

O escritor considera que a arte não deve preocupar-se com sua construção

estrutural, como se fez no Parnasianismo, em que a arte literária tinha

interesse e fidelidade à técnica. Essa preocupação com a forma em detrimento

ao conteúdo é, para o escritor de Recordações, secundária, pois o que mais

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interessa à arte, em especial à literatura, é um instrumento sociológico, que

mais se revela pelo conteúdo do que pela forma. Nas palavras de Lima Barreto

(2010: 388)

A beleza [...] é a manifestação por meio dos elementos artísticos e

literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do

que ela se acha expressa nos fatos reais. [...] Não é um caráter

extrínseco da obra, mas intrínseco, perante o qual aquele pouco vale.

É a substância da obra, não a suas aparências.

Nas palavras do escritor de Recordações, percebe-se que a energia

empregada em seu opus literário não está contida na forma e que o conteúdo

para ele é, de certo modo, uma denúncia, que se marca pela observação da

época que está condicionada pelo racismo. Deste modo, a arte operada por

Lima Barreto constitui , segundo ele mesmo, uma reprodução do mundo à sua

volta.

A integração do negro na sociedade, no final do século XIX e início do século

XX, foi operada por discursos depreciativos associados ao negro, no período

em que o trabalho escravo foi utilizado por todo o mundo. Não se poderia

supor, considerados esses discursos que, ao ser integrado à sociedade, o

homem recentemente libertado do regime escravo fosse inserido à Belle

Époque como protagonista. Mesmo os movimentos abolicionistas, em especial

o sustentado por Joaquim Nabuco, não tinha representantes líderes negros e,

se estes eram representados pelo discurso abolicionista, não é porque a

liberdade humana interessava às classes dominantes, mas porque o sistema

político escravocrata já não representava o modelo liberal de economia

(Fernandes,1978).

Nessas condições, Lima Barreto considera que a verdadeira obra de arte

deveria se comportar como manifestação de resistência política do que ele

considerava prejudicial à sociedade e, principalmente aos jovens negros e

mulatos que, como ele mesmo, tinham o estigma de séculos oriundos da

escravização. Nessa empresa, o que Lima Barreto opera como opus, dentro de

sua enunciação, são suas próprias condições sócio-históricas de produção. O

escritor constrói dentro da enunciação, segundo ele próprio, uma

representação do mundo em que se acostumou viver e perceber as mazelas

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políticas. Por isso, age na própria enunciação dentro e fora, como protagonista

do mundo extrínseco à enunciação, crítico e atuante na vida pública e política,

e como protagonista no mundo intrínseco à enunciação, como parte dela. No

caso de Recordações, Lima Barreto (1998:243) argumenta em reposta à crítica

que o discurso era autobiográfico, por que:

Foi se como o próprio Isaías Caminha escrevesse suas recordações.

Pensei que, mesmo de tal maneira, ela teria qualidades, pois lá diz

Sheley, creio eu, que os nossos mais doces cantos são so que falam

dos nossos mais tristes pensamentos

O tom biográfico em Recordações não eximiu, para Lima Barreto, o potencial

artístico de sua enunciação Ao contrário, é dessa representação do mundo

exterior à enunciação que, para ele se considera o potencial artístico de fato. É

no mundo sócio-histórico-político que a arte, e a literatura devem estar

apoiadas, para se manifestarem. Aliás, é essa a condição essencial para a

estética artística de acordo com Lima Barreto. Assim, a força motivadora da

produção de Recordações é interdisciplinar, pois antes de considerar a

produção artística também havia interesses políticos

As recordações são fonte rica de dados para a história social e

cultural do Rio de Janeiro no começo do século XX. A condição do

mestiço humilde, interiorano, depois suburbano, e os seus percalços

para integrar-se na vida capital que se modernizava a passos largos;

a rotina do jornal onde achou emprego, com toda a sua galeria de

tipos beirando a caricatura; enfim, o clima de fatuidade e

subserviência que se respirava na imprensa e nos círculos literários

da Belle Époque carioca – tudo são índices de valor documental que

interessam de perto historiador das mentalidades da República Velha.

(BOSI 2002: 187)

Nessa empresa, Lima Barreto encontrou grande fortuna para reproduzir sua

literatura nos jornais em que tinha contato como escritor de periódicos, como

por exemplo, O Comércio, onde se inclinou ao jornalismo, e na Revista Floreal,

onde publicou parte de Recordações e na vida frustrada de funcionário público

amanuense. Aliás, a frustração acompanhou a vida profissional de Lima

Barreto, que não obteve prazer como jornalista, pois considerava que as

relações pessoais estavam influenciadas pelas formações discursivas racistas,

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fator que o impedia de ter acesso à vida de escritor de literatura em sua

contemporaneidade, onde poderia revelar verdadeiramente o próprio potencial

intelectual. Quanto a esse desconforto, Lima Barreto (1998:281,282) explana:

É isso que me aborrece, mesmo na boca de amigos, porque estou

bastante apto para saber que a maioria dos doutores, seja em que

forem, pode talvez tratar com alguma proficiência da matéria de sua

profissão; mas quando se abalança a escrever sobre assuntos

intelectuais de ordem geral, como literatura, arte, filosofia, enfim, a

manifestar um pensamento, uma vista geral da vida, do mundo e da

sociedade, - a maioria dos doutores revela-se totalmente besta,

fazendo uso de receitazinhas de curandeiro, expectorando clichês e

escrevendo colchas de retalhos. [...] Todos nós que escrevemos, que

queremos realizar uma obra intelectual seja ela qual for, sofremos

muito quando exercemos uma atividade normal na sociedade. Não é

só no comércio ou na banca, como dizem os italianos. é em todas

elas.

Exercer uma atividade normal, para o escritor de Recordações era matéria de

sofrimento. Ele acreditava que sua função intelectual não obtinha crédito

principalmente pelo apadrinhamento, que as classes dominantes estavam

acostumadas e que ele, por sua origem e pelo discurso em torno das próprias

suas condições sócio-históricas de produção do discurso, não teria acesso.

Acreditava, portanto, que sua manifestação política era ainda mais relevante

porque, além de trazer rigor artístico, portava a denuncia de um Rio de Janeiro

– o que, aliás, representava a sociedade brasileira como um todo -, dividido

entre classes; de um lado, a rica burguesia branca e bem apadrinhada, folgada

em conchavos, nepotismo e boas relações, de outro, a classe pobre, negra e

mulata.

O espaço social do negro e do mulato era, definitivamente, reduzido em

detrimento às figuras dominantes do fazendeiro e do imigrante, como descreve

Florestan Fernandes (1978). E é esse um dos pressupostos artísticos da

literatura em Recordações, que pressupõe, de um lado, uma classe dominante

caricata e, e em muitos recortes, cômica e, de outro lado, uma classe oprimida

representada pelo protagonista que, embora muito talentoso e inteligente,

estava submetido à força dos diplomas conseguidos pelo poder de dominação

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de anos de tradição eurocêntrica, cuja força opressora dessa tradição foi

exposta como unidade tópica e não-tópica, na enunciação de Recordações. A

mudança desse paradigma era urgente, Lima Barreto (1998:243) que

considerava que sua enunciação estava a serviço desse desconforto político,

pois

enquanto os costumes e as leis derem a estes privilégios, e àqueles a

consideração de nobreza, estou disposto a ajudar , até com sacrifício

meu, qualquer rapaz preto, branco, caboclo, amarelo, ou mulato a se

fazer doutor .Não é justo que se venham a obter as regalias do

diploma ( nunca digo pergaminho) os Aluísios de Castro e os

Calmons. É preciso que a coisa seja temperada e os de modesta

extração não sejam todos eles destinados aos duros ofícios em que é

preciso lutar, sofrer, provar capacidade e aptidão. Quanto ao

preconceito de cor, [...] diz o senhor que ele não existe entre nó.

Houve sempre que se ia fazendo preconceito quando o senhor Rio

Branco tratou de “eleganciar” o Brasil. Isto não se prova, sei bem;

mas se não tenho provas judiciais, tenho muito por onde concluir.

O sofrimento causado pela segregação racial e, naquele contexto, que

conduziu a separação de castas sociais, trouxe a Lima Barreto condição de

esclarecer o próprio mundo, expondo formas relacionais explícitas desse

mundo ou não como condução de seu processo de enunciação artística. Desta

maneira, o discurso Recordações não apresenta interesse apenas à produção

literária, mas a urgência em dar voz às condições, a que estavam submetidos o

negro e mulato que, de certo modo, se posicionavam contrários às condições

vigentes.

Essa relação simbiótica entre o extrínseco e o intrínseco é, na construção da

literatura barretiana, não o fim, mas justamente o processo inteiro, que une os

discursos sócio-históricos e a enunciação literária, como eventos que

acontecem concomitantemente. Mais do que a reprodução artística, o autor de

Recordações emerge da enunciação de Recordações como categoria, pois

revela, na sociedade em que está, como protagonista, o lugar social imposto

por anos de tradição, que corroboraram com a depreciação de uma parcela da

sociedade brasileira do fim do século XIX e início do século XX, e mesmo

sacrificando-se, deseja mostrar como protagonista e célula modificadora deste

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discurso. A enunciação em Recordações é concebida em um universo muito

hostil aos anseios dos homens negros; mesmo assim, mostra a imposição

contrária às castas e ao racismo, de um sujeito que, em seu tempo, sofreu com

as inadequações de sua contemporaneidade.

Consideramos, por fim, que a imagem de autor percebida em Recordações é

parte do discurso, pois integra o dentro e o fora enunciativo, localizando o

discurso literário nesse impossível lugar (Maingueneau, 2006). Desta maneira

se pode pensar em uma imagem de autor que seja também autor das próprias

condições de produção, portanto, sujeito de um discurso.

A imagem de autor em Recordações é um marco de uma época, que pode ser

estudado pelo viés histórico, literário, filosófico ou como sugeriu Lima Barreto,

(1998), antropológico. Em nosso caso, optamos por uma análise

interdisciplinar, amparada pelo arcabouço teórico-metodológico da AD, que se

debruça sobre o exame da cenografia do discurso literário, pois nela emergem

as unidades tópicas e não tópicas que são responsivas na percepção de uma

imagem de autor que tem correspondência extrínseca e intrinsecamente com a

enunciação.

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CAPÍTULO III

A IMAGEM DE AUTOR: A CENOGRAFIA NA CONSTITUIÇÃO

PARATÓPICA DO DISCURSO LITERÁRIO

3.1 Procedimentos Metodológicos

A Imagem de autor em Recordação do Escrivão Isaías Caminha, de Lima

Barreto, se localiza na fronteira paratópica do discurso literário, lugar onde

sustenta a enunciação na mesma medida em que é sustentada por ela. Esse

atrito entre sustentar e ser sustentado é gerado pela enunciação literária, que

une unidades reconhecidas como práticas circunscritas na história, que podem

ser admitidas ou não, no extrínseco e no intrínseco enunciativo discursivo: as

unidades tópicas e não tópicas. Observar essas unidades, a partir da análise

enunciativo-discursiva que perceba, por aparelhos linguísticos, traços dessas

unidades é inferir formas de representação da imagem de autor. O termo

representação não pode ser entendido como “ o que o autor cria representando

o mundo na enunciação literária”, mas como o autor que participa do mundo

revelando na enunciação literária parte dessa participação como sujeito que

viveu experiências próprias de um lugar e de um tempo.

A partir desse pressuposto, nossa análise caminha em direção à circulação da

fronteira paratópica constituída na cenografia por meio da circulação das

unidades tópicas, aquelas que se mostram na enunciação como princípio de

interação aos que estão envolvidos com ela, e as formações discursivas,

atualizadas por Maingueneau (2008) como unidades não tópicas, que são as

unidades direcionadas pelo olhar do analista, mas que estão circunscritas na

memória da coletividade, por comportamentos, enunciados, gestos, que não

são tolerados e que, mesmo assim, não deixam de ser propagados no

underground enunciativo, em nosso caso, no discurso racista.

Consideramos que as unidades tópicas e não tópicas nos darão forte aparato

para empresa de nosso trabalho de pesquisa que é o de delinear, no discurso

literário Recordações, a imagem de autor que pôde ser atribuída a um opus

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que não se encerra no discurso, que nos interessa nesta pesquisa, mas que

passa e depende dele.

Nossa análise tem interesse pela cenografia, pois ela é o ponto de acesso do

co-enunciador ao discurso literário (Maingueneau,2006). A cenografia está

associada ao extrínseco do discurso, como rotinas do quotidiano empírico, por

conseguinte, a cenografia engendra unidades tópicas e não tópicas as quais

podemos perceber por meio da compreensão das condições sócio-históricas

de produção do discurso. Desta maneira, nesse capítulo, delineamos as

unidades tópicas e não tópicas, mas retomamos o que está extrínseco e

intrínseco ao enunciado, pois é a cenografia a fonte do discurso e aquilo que

ele engendra (Maingueneau, 2004). Consideramos, ainda, particularmente, as

unidades não tópicas, fonte de representação que, interdiscursivamente,

pertence ao fora e ao dentro do enunciado em Recordações, pois são os

discursos racistas representações que

o narrador-protagonista, Isaías Caminha, declara que não é ambição

literária que o impele a dar ao mundo suas memórias, mas que,

mediante elas, espera modificar a opinião de seus pares, fazê-los

pensar de um modo diferente, para que sejam menos hostis quando

encontrarem gente como ele, com ambições como as que ele tinha

havia dez anos. Em prólogo, Isaías informa-nos que resolveu contar

trechos de seu passado para refutar a tese de que um dia ele tinha

lido num fascículo publicado por uma revista nacional: o mulato era

inferior e estava fadado a fracassar na vida por falta da capacidade

de resistência inerente ao mestiço. (OAKLEY 2011: 50.)

Os interesses do escritor de Recordações e de Isaías Caminha são, em suma,

os desejos de muitos jovens mestiços e negros do final do século XIX e início

do século XX. Essa interseção é mostrada, de maneira simbiótica, por Lima

Barreto, quando diz a um amigo o quanto concordava com a publicação de

Recordações, aceitando não ganhar pela produção do documento, na época,

fator que traria a Lima Barreto status de autor

Fizeste bem em lhe autorizar a imprimir o livro. Não tenho pretensão

alguma de lucro com Caminha. Além de saber que um primeiro livro

tem fortuna arriscada, sabes muito bem que penso sobre essa cousa

de make money com livros. Decerto, se eu estivesse aí, em Paris,

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havia de guardar bem escondida a pretensão de ter um castelo com o

produto das minhas obras; mas aqui, dentro do Brasil e da língua

portuguesa, as minhas pretensões são mais razoáveis. (1998: 213)

Vemos, em Lima Barreto e em Isaías Caminhas, as mesmas pretensões e as

mesmas realidades que confluem em Recordações. Não é a ambição literária,

ou a criação de fortunas, que fazem com que a enunciação ganhe um potencial

artístico, mas, como o próprio Lima acreditava, a excitação em dizer sobre as

coisas e, principalmente, as coisas que, de alguma forma, representassem a

formação sócio-histórica-política do final de um século e do início de outro,

marcados profundamente pelo preconceito da cor.

A análise baseada apenas nas unidades tópicas, como vimos, não é o único

ponto a ser observado neste trabalho. Trata-se também de um estudo que

relaciona as unidades, que não possuem propriamente um território e que são

construídas historicamente e delineadas pelo olhar do analista. Em

Recordações, vemos circular, na enunciação, a condição do homem negro

como foco do sentimento de frustração pelo qual o enunciador, Isaías

Caminha, passa em seu percurso de vida. Essa frustração, inclusive, justifica a

indignação com a qual Isaias Caminha inicia suas recordações. Não se pode

supor que, na enunciação, esteja explícito onde está representado o

preconceito racial que o narrador logra, pois o discurso literário não lida com o

que está explícito, mas com o que se percebe no processo enunciativo dos que

tomam contato com o enunciado. Desta maneira, podemos recorrer ao texto de

Oakley acima referido, e notarmos a condição determinista pela qual passava o

jovem Isaías e com a qual se inconformava. Essa era parte do que a sociedade

supunha para os homens negros e mulatos. Circulavam periódicos no final do

século XIX e início do século XX, discutindo a “ incapacidade do negro em

relação ao branco”.

Como vemos, nossa análise circula pelos aspectos de vida do escritor de

Recordações, que se comprova ativamente na enunciação e nas condições de

produção desse discurso. A época que produziu Recordações, Lima Barreto

também reproduziu as condições de produção, que são exibidas na

enunciação. Assim, Recordações é uma sombra da sociedade brasileira no

final do século XIX e início do século XX, pois não surge como representação

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social, mas tem a sociedade como motivo que a faz existir da maneira que

existe.

3.2 A imagem de Autor como sombra literária: análise do intrínseco em

Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

Recordações narra a trajetória de vida de Isaías Caminha, um jovem muito

mais inteligente do que os outros de jovens de sua época, mas que sofreu,

desde sua saída de casa, o preconceito gerado pela cor de sua pele. Filho de

uma negra com um ex-eclesiástico, o jovem Isaías Caminha não sofre os

males do preconceito em sua infância. Entretanto, o preconceito é desvelado,

na obra, desde o princípio, pois a comparação entre a mãe e o pai que a

personagem Isaías Caminha faz manifesta fortíssima tendência a considerar o

branco superior ao negro. Podemos notar isso no seguinte recorte O

espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de

outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um

deslumbramento (LIMA BARRETO, 2010:67)

Recordações, segundo análise de Bosi (2002), pode ser dividida em três

partes. A primeira com o deslumbramento da infância causado pela inteligência

acima da média, a segunda seria a raiva na juventude por não conseguir

durante o percurso de sua carreira chegar, por direito, aos lugares que imagina

e atribuir a essas barreiras ao preconceito causado pela cor, e, por último, a

resignação meio cômica, meio dramática, na maturidade e a própria inclusão

em um sistema social racista. Nossa amostra estará direcionada por esse

olhar. Extrairemos de Recordações recortes representativos dessas fases, a

que Bosi considerou pertinente para entender a totalidade do discurso.

Nascido no interior do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século

XX, o jovem Isaías Caminha decide ainda em sua juventude que sua

inteligência está incompatível com a pequenez interiorana. Com o apoio de sua

família e com o apadrinhamento de um coronel amigo de seu tio em sua

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cidade, o jovem Isaías, decide sair de casa para conquistar a vida com a

promessa feita por um deputado federal de um emprego político na capital.

Ao sair de casa, já em direção à capital carioca, o jovem Isaías Caminha tem

os primeiros contatos com a discriminação. Em uma parada para comer, em

dois recortes do discurso, um homem branco, que estava depois dele em uma

fila, é atendido primeiramente. O sentimento de raiva e rancor começa a ser

incorporado em seu discurso. Esse sentimento fica ainda maior quando, ao

chegar à capital, Isaías não consegue a prometida ocupação profissional e tem

de, por causa da iminente falta de recursos financeiros, sujeitar-se a trabalhar

em tarefas que julgava impróprias para seus conhecimentos. Mesmo se

sujeitando a trabalhar fosse do que fosse, Isaías não consegue emprego. Ao

ser chamado por um português, dono de padaria, para uma entrevista ao cargo

de entregador de pães, o já decepcionado Isaías é rejeitado sem explicação.

Logo fica claro ao jovem que o motivo que o fizera não ser aceito é justamente

a cor de sua pele.

Com o seu amadurecimento ao longo dos anos, Isaías consegue emprego em

um jornal – o qual consta ser uma charge do jornal o Globo -, onde Isaias se

empregou - e, mesmo em um cargo de melhor prestígio, ainda não consegue

cargos, que são ocupados, a vista de Isaías Caminha, por gente menos

preparada que ele.

A vida no jornal se torna possível para o Isaias, porque ele se vê absorvido por

um sistema que o tinha recusado, mas que, nesse estado de violência pela

recusa, deu-lhe recursos financeiros, em especial, para não ter uma vida

totalmente execrada da sociedade dominada pelo branco.

No fim do recorte, Isaías reflete sobre suas condições de vida em relação aos

eventos, que são associados à cor de sua pele e percebe que, se não fosse o

preconceito, a discriminação e as próprias condições sociais, ele teria

alcançado posições muito mais prestigiadas com seu nível de conhecimento.

Contudo, essas afirmações são possíveis, apenas pela retomada que o já

velho Isaías faz de sua vida, desde a adolescência. Retirando de lá cenografias

próximas à vida intrínseca ao discurso, teremos:

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Recorte I.

A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a Batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: Quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!...

O espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento. (p. 67).

A enunciação de Recordações se constrói, desde o início, como uma

“lembrança”. A existência de verbos no pretérito perfeito resgata o passado

cronológico da vida de Isaias, criando na interação enunciativa o acesso pela

cenografia de Recordações. O resgate do passado opera, na enunciação,

como um indício de como eram as condições sócio-históricas de produção da

época em que viveu o autor de Recordações

Sendo assim, a importância da obra literária que se quer bela sem

desprezar os atributos externos da perfeição de forma, de estilo, de

correção gramatical, de ritmo vocabular, de jogo de equilíbrio das

partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal

importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e

determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema

angustioso do nosso destino em face do infinito e do Mistério que nos

cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida. (BARRETO

1998: 388)

O exterior ao discurso, para o autor de Recordações é de extrema importância,

pois é nessa tensão que se aloca a beleza estética da literatura. Assim, a

reprodução de uma cenografia de recordação, ultrapassa a enunciação de

Isaias, mas incorpora a recordação típica de muitos jovens de mesmo destino

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por conta do preconceito de cor e que, na maturidade, repassam o passado.

Como disse Lima Barreto, já maduro, em carta enviada a um colega escritor

ainda jovem

O senhor está moço, muito e há de estranhar essa minha resolução,

mas, quando chegar à minha idade, depois de lutas e desgostos de

toda ordem, dera como tenho razão. Aproveite, portanto, a sua

mocidade e escreva livros como o que me deu a hora de ofertar, para

não ser surpreendido aos quarenta anos, com o desânimo e a

desesperança. (BARRETO 1998: 288)

A voz que enuncia relembra duas principais figuras infantis; de um lado, o pai

que o representa o saber dentro do núcleo familiar, o qual predestina o garoto

ao um destino próximo ao de Napoleão. De outro lado, a mãe que realça a

inteligência do pai pela falta de ilustração e saber. O resgate da formação

discursiva começa a ser acentuado neste ponto. A estrutura familiar que se

apresenta no Recorte I é bifurcada e o principal “pavimento” dessa bifurcação é

o que sabe o pai e o que sabe a mãe. Destarte, recordando o abordado nessas

condições de produção, Munanga (1986) chamou de erotismo afetivo. O

processo de assimilação do homem negro do discurso do branco aconteceu,

também, pelas relações sexuais e pelas eventuais proles geradas por estas

relações. Esse tipo de relação tornou-se comum, sendo mais comum a relação

do homem branco com a mulher negra, pois o contrário era considerado

indevido pela consideração, preconceituosa, sobre as genitálias dos homens

negros serem desproporcionais às genitálias de mulheres brancas.

Existe, ainda, uma questão em torno da dominação do estereótipo de homem

branco como dominador. O seio familiar, em Recordações, tem um dominador

que é apontado pela figura paterna que, nos olhos da criança, relembra o

adulto que enuncia e revela-se como um “deslumbramento”. Registra-se aí um

modelo social, cuja simbiose se constitui dentro e fora da enunciação de

Recordações. Para facilitar nossa análise colocaremos letras, entre parênteses,

para segmentar os recortes.

Recorte II.

(a) Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados... (b) Se minha mãe me aparecia triste e humilde - pensava eu naquele tempo - era

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porque não sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva...

Foi com estes sentimentos que entrei para o curso primário. Dediquei-me açodadamente ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram-se desdobrando as minhas primitivas noções sobre o saber.

(c) Acentuaram-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir...

Eu ouvia uma tentadora sibila falar-me, a toda a hora e a todo instante, na minha glória futura. Agia desordenadamente e sentia a incoerência dos meus atos, mas esperava que o preenchimento final do meu destino me explicasse cabalmente. Veio-me a pose a necessidade de ser diferente. Relaxei-me no vestuário e era preciso que minha mãe me repreendesse para que eu fosse mais zeloso.

Neste recorte, a enunciação mantém-se com verbos no passado, compondo

uma cenografia de recordação. Vemos, ainda, a voz que enuncia sem um

referencial evidente, mas que compõe o arquétipo de uma criança, que vive

uma rotina comum. A cenografia de recordação acessa os envolvidos na

enunciação de uma maneira a construir uma espécie de conversa em que

apenas uma voz é ouvida. Nesse sentido, essa voz pode, ao longo de toda a

enunciação, criar argumentos capazes de defender um ponto de vista sobre

algum posicionamento, quer patenteando, quer convencendo.

Vemos que, na cenografia em questão, o enunciador aproxima o co-enunciador

quase como num diálogo, no Recorte II (a).

O verbo, que inicia o período no pretérito, insere a ideia de conclusão sobre um

assunto que o co-enunciador já está habituado. Essa ideia é própria da

construção de um diálogo criado a base de uma recordação. Vê-se a

cenografia de uma “conversa” informal, sendo gerada pelo enunciado que, no

Recorte II(b), se incorpora à enunciação com os pronomes “me”, ”mim” e “ eu”.

As unidades transversas são alocadas para constituir cenografias, dentro do

discurso literário, que estejam de acordo com a vida cotidiana dos homens. O

autor de Recordações preferiu as cenografias de contato dinâmico, que estão

mais próximas aos gêneros da oralidade.

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O discurso não tópico é mantido no Recorte II(b) pelas referências que temos

do Recorte I, pois o enunciador, no traço comparativo entre pai e mãe, decide

associar-se ao universo paterno e, em certa medida, distanciar-se do universo

materno.

No Recorte II (b), a mãe é caracterizada como “triste e humilde”. Mas essa

tristeza que, no início, é relacionada ao saber, que a mulher possuía, era

apenas temporária. O enunciador reflete sobre a impressão que tem da mãe.

Não revela, contudo, o que no futuro se revelou a respeito da condição materna

de “triste” e “humilde”. Nesse ponto, inicia-se uma tensão que faz emergir

aspectos sobre uma imagem autoral relacionada com a forma de dizer e o que

se dizer.

A forma de dizer se filia aos muitos diálogos públicos sobre política e sobre a

visão de um homem que indignado com a situação sócio-histórica do homem

negro e, ainda, acuado pelo discurso negativo a respeito da própria cor, só tem

como direito falar a público a verdade, ou seja, o que sente a respeito da

condição que tem

Se a minha modesta pessoa deseja conseguir alguma coisa, é retirar

do “doutor” o halo de aristocracia , de sujeito digno de executar tudo,

melhor que os outros, mesmo aquilo que seja inteiramente diferente

da profissão que lhe marca o diploma.

O doutor não entende da nossa gente, de alto a baixo, é sempre o

mais apto, não pelo que ele revela , mas por ser doutor.(BARRETO

1998:243)

Além disso, o que se diz revela a insatisfação com o comportamento da época.

Essa representação gera uma imagem de acordo com o discurso, em sua

enunciação, em seu conteúdo, em seu interior e em seu exterior. A partir disso,

essa imagem, ora fora, ora dentro, torna-se indissociável em Recordações,

quando

a enunciação literária desestabiliza a representação que se tem

normalmente de um lugar, algo dotado de um dentro e de um fora. Os

“ meios “ literários são na verdade fronteiras. A existência social da

literatura supõe ao mesmo tempo a impossibilidade de ela se fechar

em si mesma e a de confundir com a sociedade “comum”, a

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necessidade de jogar com esse meio-termo e em seu

âmbito.(MAINGUENEAU 2006:92)

É nessa tensão paratópica que se encontra o discurso não tópico, aquele que,

apresentados no Recorte associam a exclusão da mãe à sua condição de

negra. E, assim, associam a esse discurso e a esta formação discursiva, uma

imagem de autor negra.

Recorte III

(a) A minha energia no estudo não diminuiu com os anos, como era de esperar; cresceu sempre progressivamente. (b) A professora admirou-me e começou a simpatizar comigo. De si para si (suspeito eu hoje), ela imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio. Correspondi-lhe à afeição com tanta força d’alma, que tive ciúmes dela, dos seus olhos azuis e dos seus cabelos castanhos, quando se casou. Tinha eu então dois anos de escola e doze de idade. (c) Daí a um ano, saí do colégio, dando-me ela como recordação, um exemplar do “Poder da Vontade”, luxuosamente encadernado, com uma dedicatória afetuosa e lisonjeira. Foi o meu livro de cabeceira. Li-o sempre com mão diurna e noturna, durante o meu curso secundário, de cujos professores, poucas recordações importantes conservo hoje. Eram banais! Nenhum deles tinha os olhos azuis de D. Ester, tão meigos e transcendentais que pareciam ler o meu destino, beijando as páginas em que estava escrito!...

Neste recorte, o enunciador mantém a cenografia de recordação. Contudo,

essa recordação mantém relações de proximidade com o co-enunciador.

Estabelece, na constituição da cenografia, respondendo expectativas que, por

ventura, o co-enunciador tenha, no Recorte II (a).

Esse “diálogo” gerado, vai se intensificando e normatizando a ideia dos eventos

que, no futuro, não justificaram às expectativas do enunciador. Vemos no

seguinte recorte, a similaridade do Recorte II (c) com o Recorte III (b).

A recorrência da falsa expectativa vai marcando presença na cenografia de

conversa. Nos recortes examinados até então, percebemos a criação de uma

cenografia, que tende a criar uma expectativa que não será confirmada,

“pensava eu naquele tempo”, “suspeito eu hoje”. A construção narrativa no

passado é contraposta á situação do hoje como uma decepção do que se

esperava e do que realmente tinha acontecido, sem, contudo, revelar no início

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o ponto de clímax, que quebrou em algum momento a expectativa inicial.

Nesse aspecto, discorre Oakley da seguinte forma:

O pai, ex-padre, era homem que sabia do grande herói do século e

chamava a atenção do menino para a coincidência das datas de seu

nascimento e de um dos triunfos do Corso. Um signo de vitórias

futuras, que marcava o desapontar de um eu já mergulhado em

sonhos de uma grandeza posta muito acima da sua condição de raça

e classe. (2011:188.)

A expectativa relacionada ao pai, de alguma forma, para Oakley, não

representa a classe a qual pertence o enunciador. A imagem que se propaga é

a da voz, denunciadora de um homem, que sofreu o preconceito gerado pela

classe e pela cor,

Na realidade, Recordações do Escrivão Isaías Caminha pode ser

considerado um romance social, psicológico ou existencial. Em todo

caso, a intenção inicial de Lima Barreto era criar um romance de

ilusões perdidas. (OAKLEY 2011:51)

As ilusões perdidas são projetas pela cenografia inicial. Apresentadas nos fatos

narrados na interação enunciativo-discursiva no início. Ainda, essas ilusões são

perdidas por causas, que começam a ser apresentadas, em primeiro plano

como deslumbramento, em um discurso de superioridade de beleza e de saber,

como se pode constatar no Recorte III (b).

Uma segunda figura que logra admiração do enunciador é a professora, que é

apresentada, pelo olhar do enunciador, como uma mulher que “sabe” e que

possuir “olhos azuis e cabelos castanhos”. Essa mulher, além disso, apresenta-

se como alguém de quem o enunciador cria um sentimento de ciúme, de inveja

“quando se casou”. Contudo, existe a expectativa do enunciador de que a

mulher também o admira. E essa expectativa é gerada pelo nível de

conhecimento do protagonista

Temos, ainda no Recorte III (b), a existência de um agrupamento de

informações, que alocam as condições do negro e do mulato no final do século

XIX e início do século XX.

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a perpetuação, em bloco, de padrões de relações raciais elaboradas

sob égide da escravidão e da dominação senhorial, tão nociva para o

“ homem de cor”, produziu-se independentemente de qualquer temor,

por parte dos “ brancos”, das prováveis consequências econômicas,

sociais ou políticas da igualdade racial e da livre competição com os

“negros”. Por isso, na raiz desse fenômeno não se encontra nenhuma

espécie de ansiedade ou inquietação, nem qualquer sorte de

intolerância e de ódios raciais, que essas duas condições fizessem

irromper na cena histórica. Em nenhum ponto ou momento o “

homem de cor” chegou a ameaçar seja a posição do “ homem

branco” na estrutura do poder da sociedade inclusiva, seja na

respeitabilidade e a exclusividade de seu estilo de vida (FERNANDES

1978: 250)

Nesse sentido, aos homens, fossem negros ou não, cabia a força do trabalho e

do esforço pessoal como recompensa pela ascensão socioeconômica.

Todavia, essa ascensão não passava de um mito gerado pelo liberalismo, pois

os patrimônios eram poucos, ou nada, divididos, cabendo a ascensão

econômica apenas aos brancos. E isso era evidente, por que [os negros] não

progrediam como os imigrantes que chegaram aqui com tão pouco e logo

tinham alcançado algum avanço? (SANTOS, 2002:119). As condições sócio-

históricas de produção são, nesse ponto, fortemente inseridas e delineadas às

condições de vida do enunciador, em Recordações. Aliás, torna-se tão

simbiótico extrínseco e intrínseco, que não existem condições distintas para o

fora e para o dentro, pois é na paratopia literária que emergem as unidades

não tópicas, como o racismo confirmado no discurso literário.

As unidades não tópicas não são identificadas por dizer próprio do racismo,

como, por exemplo, um xingamento, mas pelas condições de produção do

enunciador que percebe o racismo como parte destas condições. Assim, nos

Recortes em que se evidenciam o “saber” e o “cabelo castanho e olhos azuis”

da professora, bem como, no Recorte em que a ignorância materna ao saber

paterno, o universo extrínseco ao discurso, que representa a época de

reprodução e tiragem de Recordações é, interdiscursivamente, recuperado

pelas formações discursivas de uma comunidade discursiva, que revela um

posicionamento do autor, portanto, sua própria imagem representada na

enunciação, pois que

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o posicionamento supõe a existência de redes institucionais

específicas, de comunidades discursivas que partilham um conjunto

de tiros e normas. Podemos distinguir comunidades discursivas de

dois tipos, estreitamente imbricadas: as que gerem e as que

produzem o discurso. Um discurso constituinte não mobiliza apenas

autores, mas uma variedade de papéis sociodiscursivos.

(MAINGUENEAU 2008a: 44)

Os papéis gerados na cenografia, e, ainda, unidos às condições sócio-

históricas de produção, condicionam ao discurso racista ao qual o enunciador

está associado, sem perceber, contudo, enquanto é uma criança. Mesmo

assim, o discurso racial não deixa de ser representado no Recorte III (c)

O presente dado pela professora, que serviu como grande estímulo ao jovem

enunciador, intitula-se “o poder da vontade”. Esse título, dado ao enunciador,

relaciona-se ao período sociopolítico liberalista, próprio do início do século XX

no Brasil, em que se supunha que é a “vontade” individual força motriz das

ações e do movimento da vida e que, por isso, ser negro, mesmo naquelas

condições, não evitaria a ascensão econômica, social e política, do jovem

Isaías..Essa expectativa, como temos analisado, não será confirmada. Mesmo

assim, o enunciador é convencido pelo conselho e pelos “olhos azuis“ de Dona

Ester.

Em nota, Isabel Lustosa, escreveu na edição de 2010 de Recordações que, na

infância, Lima Barreto teve uma professora, D. Annie Cunditt, a quem se

afeiçoou e cuja descrição corresponde à imagem de Dona Ester. A imagem de

autor que se formata, assemelha-se com o ethos discursivo, ou, pelo menos,

uma imagem de autor, que entende os percalços pelos quais atravessava a

vida de um jovem mulato e negro no final do século XIX e início do século XX.

Tanto a cenografia quanto as formações discursivas compõem uma imagem de

autor correlata às condições sócio-históricas em que Recordações foi

produzido. Uma imagem de autor mulata, inteligente e com grandes

expectativas de futuro que a inteligência, na juventude, lhe trairia na

maturidade.

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Recorte IV.

(a) Quando acabei o curso do Liceu, tinha uma boa reputação de estudante, quatro aprovações plenas, uma distinção e muitas sabatinas ótimas. Demorei-me na minha cidade natal ainda dois anos, dois anos que passei fora de mim, excitado pelas notas ótimas e pelos prognósticos da minha professora, a quem sempre visitava e ouvia. (b) Todas as manhãs, ao acordar-me, ainda com o espírito acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido: Vai, Isaías! vai!... Isto aqui não te basta... Vai para o Rio! Então, durante horas, através das minhas ocupações quotidianas, punha-me a medir as dificuldades, a considerar que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações, protetores que me pudessem valer... (c)Que faria lá, só, a contar com as minhas próprias forças? Nada... Havia de ser como uma palha no redemoinho da vida - levado daqui, tocado para ali, afinal engolido no sorvedouro... ladrão... bêbado... tísico e quem sabe mais? Hesitava. De manhã, a minha resolução era quase inabalável, mas, já à tarde, eu me acobardava diante dos perigos que antevia.

A cenografia de conversa continua. Há, em poucos recortes, uma interação

entre “personagens”, mas a manutenção de um diálogo constante com o co-

enunciador. Esse diálogo se mantém vivo, mesmo na mudança de ambiente,

ou no avanço cronológico pelos marcadores de tempo, como vemos no

Recorte IV(a).

O encadeador “quando” iniciando o período, aloca o co-enunciador em um

tempo no espaço, mantendo o ato enunciativo atualizado ao espaço da

enunciação. A cenografia ainda se configura por outros elementos, como a

introspecção do enunciador com o que ele “pensa”. Isso é possível na

cenografia apresentada, porque o co-enunciador tece a enunciação como ato

de fala. Por outras palavras, uma conversa acontece, quando o enunciador

expõe fatos passados, presentes ou futuros, projetando o que se configura na

memória individual. E, em Recordações, a memória é sempre mostrada, como

podemos notar no Recorte IV (b)

Os sonhos expostos pelo enunciador revelam o que dizia a Sibila, figura

mitológica que, na enunciação, representa o eco dos pensamentos do jovem

enunciador. O jovem enunciador recupera, também, o desejo que começa a ter

de ir para o Rio de Janeiro, por considerar o interior onde nasceu e criou-se,

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pequeno diante aos seus sonhos e de sua inteligência. Isso nota-se, mais

especificamente, no Recorte IV (c).

A cenografia de conversa permanece, ainda, com as perguntar retóricas feitas

pelo enunciador. Essas perguntas, nessa cenografia, têm a função de manter a

atenção em um processo dialógico. Gera, no co-enunciador, expectativas,

mantém a atenção e o foco em um diálogo do qual o co-enunciador só pode

participar como expectador, considerando que sua voz não será ouvida ou lida.

As formações discursivas, aqui, projetam-se como expectativas em relação ao

destino de enunciador. Contudo, a falta de segurança em relação a “contar com

as próprias forças” se contrapõe ao um destino marcado por “

ladrão...bêbado... tísico e quem sabe mais ?” A oposição direta entre “futuro

glorioso” e ladrão...bêbado... tísico e quem sabe mais ?” sugere-nos um

processo na formação discursiva de integração com o interdiscurso

O suburbano funcionário público Afonso, talvez tentasse aplacar a dor

e a frustração de não poder viver exclusivamente daquilo que mais

gostava – escrever – entregando-se progressivamente à bebida. Por

trás daquela mesa, no escritório de repartição pública, escondia-se

um escritor e apaixonado pelas letras. [...] aos dezesseis anos,

quando ingressara na Escola Politécnica, de certa forma, a vida se

apresentava promissora. (BOTELHO 2002: 48)

O alcoolismo colidi, paratopicamente, no plano extrínseco e intrínseco do

enunciado. Nesse sentido, vê-se apresentar-se um discurso muito negativo

sobre as expectativas da vida do enunciador, relacionado ao discurso sobre o

negro e o mulato no final do século XIX e início do século XX. Sob esse

pressuposto, temos a imagem de um autor, que se forma nessa união, fora e

dentro do discurso, relacionada à vida do autor e a do enunciador de

Recordações, como uma verdade apreendida das condições sócio-históricas

em que viviam os homens negros e mulatos daquela sociedade, na medida em

que se encontram submetidos, isto é, “propensão do negro se concentrar na

cidade, para “viver na vadiagem” (Fernandes 1978). Fernandes discorre, ainda,

sobre as condições que os homens negros e mulatos foram submetidos na

vida, nos centros urbanos. Abandonados pelo Estado e inseridos em condições

sociais negativas, o homem negro e mulato eram obrigados a viver à margem

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da sociedade. A vida do homem negro e mulato longe do trabalho,

compulsoriamente, foi interpretada pelo povo, acostumado à negativação dos “

homens de cor negra”, como vadiagem

os recursos adaptativos e integrativos da “ população de cor”

revelaram-se insuficientes para criar tal padrão histórico de mudança

social – o que expôs essa população, prolongadamente, aos efeitos

sociopáticos da miséria, e ao impacto acumulativo da reação em

cadeia dos aludidos efeitos. Numa população que não conseguia

sequer ordenar as alterações econômicas e sócio-culturais no tempo,

o poder destrutivo desse impacto é naturalmente alto. Pois as forças

sócio-culturais indisciplinadas e incontroláveis passam a concorrer,

incessantemente, para alimentar a área da desorganização

social.(1978 :227)

Percebemos que o discurso negativo sobre os homens negros e mulatos é

absorvido pelo enunciador, que contrapõe, em relação ao próprio destino, às

vantagens de uma vida consagrada pelo saber – até aqui associado aos

brancos- e a vida entregue às desventuras, associadas aos homens negros de

mulatos.

Recorte V

(a) Um dia, porém, li no “Diário de * * *” que o Felício, meu antigo condiscípulo, se formara em Farmácia, tendo recebido por isso uma estrondosa, dizia o “Diário”, manifestação dos seus colegas. Ora Felício! pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também - eu que lhe ensinara, na aula de português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por quê!?

Li essa notícia na sexta-feira. Durante o sábado, tudo enfileirei no meu espírito, as vantagens e as desvantagens de uma partida. Hoje, já não me recordo bem das fases dessa batalha; porém uma circunstância me ocorre das que me demoveram a partir.(b) Na tarde de sábado, saí pela estrada fora. Fazia mau tempo. Uma chuva intermitente caía desde dois dias. Saí sem destino, a esmo, melancolicamente aproveitando a estiada.

Passava por um largo descampado e olhei o céu. Pardas nuvens cinzentas galopavam, e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada nelas. A mancha aproximava-se e, pouco a pouco, via-a subdividir-se, multiplicar-se; por fim, um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voara na frente,

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a formar um V. Era a inicial de “Vai”. Tomei isso como sinal animador, como bom augúrio do meu propósito audacioso. No domingo, de manhã, disse de um só jato à minha mãe: - Amanhã, mamãe, vou para o Rio.

A cenografia instituída, nesse Recorte, promove uma enunciação aferida pelo

enunciador ainda jovem. Desloca-se, assim, o enunciador que faz uma

retrospectiva para outro momento da enunciação em que, enquanto criança,

cria expectativas positivas sobre o seu próprio destino. Essas expectativas são

alocadas na comparação de saberes entre o enunciador jovem e o saber de

um amigo seu, de quem recebe notícia sobre a graduação em farmácia.

Tomemos o Recorte V(a) como exemplo.

A pergunta final “ Por quê?” sugere, na cenografia de conversa, um pacto entre

os envolvidos na cena enunciativa que diz respeito a um processo lógico. Esse

pacto está na configuração de uma sociedade que se habitou a diplomação

como ascensão econômica

Numa sociedade como a nossa em que certas virtudes

senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do

espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns

dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de

bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza.

Aliás, o exercício dessas qualidades que ocupam a inteligência

sem ocupar os braços, tinha sido expressamente considerado,

já em outras épocas, como pertinente aos homens nobres e

livres, de onde, segundo parece, o nome liberais dado a

determinadas artes, em oposição às mecânicas que pertencem

às classes servis.(HOLANDA 1968: 51)

A cenografia toma contato com um e liga ao pressuposto da época em que a

enunciação está imbricada, o homem inteligente ascende economicamente.

Esta máxima, apresentada no Recorte V, é bem mais acentuada em

decorrência dos símbolos que expressam a voz do enunciador ainda jovem.

Vê-se, assim, porque a enunciação deixa de ser conduzida, nesse ponto, pela

voz madura inicial e passa a ser conduzida, quase que de maneira mística,

pela voz de um jovem. Podemos tomar o Recorte V(b) como exemplificação.

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A enunciação, neste ponto, insere, topicalizando a cenografia pela locução

adverbial “na tarde de sábado” e inclui, por conseguinte, um novo espaço e um

novo tempo, mantendo, como em outros recortes, a cenografia de conversa,

unilateralmente. Nesse novo espaço, o enunciador recebe a mensagem de

ótimo agouro, que ele fia ser o próprio destino, comunicando-se, de maneira

fantástica, consigo.

O discurso não tópico emerge, nessa condição, pela construção do símbolo

agourento descrito no recorte acima. Embora sejam os patos que dizem “Vai”,

são patos de uma espécie muito peculiar, “um bando de patos negros”. A cor

negra se torna, nesse ponto, um símbolo de coragem. A descrição do que

nasce como uma nuvem cinzenta e que, aos poucos, a partir de processos de

transformação muito rápidos, se modifica a “bando de patos negros”, chega,

por fim, a ser representada pela expressão Tomei isso como sinal animador,

como bom augúrio do meu propósito audacioso.

O encorajamento do enunciador, ainda criança, metamorfoseia-se de nuvem

cinzenta a um bom agouro, que o faz tomar a decisão de ir para um grande

centro urbano, lugar onde teria sucesso por sua inteligente maior do que a de

muitos. As cenografias e as unidades tópicas circulam, em uníssono, São,

portanto, indissociáveis.

A cenografia de “conversa” que propõe o enunciador em Recordações, partindo

de que, na infância, a pele negra não seria um problema contraposto a uma

inteligência acima da média corroboram com as condições sócio-históricas de

produção e promove, assim, um agrupamento interdiscursivo de uma imagem

de autor colaborativa do tempo, da mensagem e do valor estético que apregoa

a Recordações, como artista e como empenhado nas condições do homem

negro de uma época, oprimido por um discurso de exclusão.

Os múltiplos contatos entre estudantes negros de diversas

procedências abriram-lhe os olhos sobre a sorte reservada a seu

povo em toda a parte. Assim, chegaram rapidamente a uma

consciência racial ( não- racista). Eles se convenceram de que a

opressão sofrida não era apenas a de uma classe minoritária sobre

uma outra majoritária inferiorizada, mas ao mesmo tempo a de uma

raça, independente da classe social. (MUNANGA 1986: 39)

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O processo paratópico, em Recordações, é percebido por uma rede

interdiscursiva que, no processo de enunciação, se desvela pelo olhar analítico,

que é possibilitado pelo arcabouço teórico-metodológico da AD,

particularmente, pelas condições sócio-históricas de produção de

Recordações. O primado do interdiscurso gera uma identidade de autor, que

está de acordo, em muito, com o ethos discursivo, contudo, que não é

apresentado e referenciado apenas na enunciação, mas pela maneira com a

qual o autor se apresenta no processo paratópico, que mencionamos acima.

Recorte VI

(a) Minha mãe nada respondeu, limitou-se a olhar-me enigmaticamente, sem aprovação nem reprovação; mas, minha tia, que costurava em uma ponta de mesa, ergueu um tanto a cabeça, descansou a costura no colo e falou persuasiva:

- Veja lá o que vai fazer, rapaz! Acho que você deve aconselhar-se com o Valentim!

- Ora qual! fiz eu com enfado. Para que Valentim? Não sou eu rapaz ilustrado? Não tenho todo o curso de preparatórios? Para que conselhos?

- Mas olhe, Isaías! você é muito criança... Não têm prática... O Valentim conhece mais a vida do que você. Tanto mais que já esteve no Rio...

Minha tia, irmã mais velha de minha mãe, não tinha acabado de dizer a última palavra, quando o Valentim entrou envolvido num comprido capote de baeta.

(b) Descansou alguns pacotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou o boné com o emblema do Correio e pediu café.

- Você veio a propósito, Valentim. Isaías quer ir para o Rio e eu acabo de recomendar que se aconselhasse com você.

- Quando você pretende ir, Isaías? indagou meu tio, sem surpresa e imediatamente:

- Amanhã, disse eu cheio de resolução.

Ele nada mais disse. Calamo-nos e minha tia saiu da sala, levando o capote molhado e logo depois voltou, trazendo o café.

- Quer parati, Valentim?

- Quero.

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O enunciador, nesse recorte, mantém-se como detentor da voz a ser ouvida;

contudo, sofre deslocamento. Até aqui, poucos vezes, a enunciação tinha

passado pela “voz” de outros enunciadores, mas nesse ponto, um diálogo

cenográfico entre os membros do núcleo familiar do enunciador é presenciado,

e o co-enunciador assume a posição de espectador de uma cenografia

arrolada pela narração do enunciador de Recordações.

Os membros no núcleo familiar do enunciador são apresentados pela relação

de parentesco, que têm com o protagonista: “mãe”, “tia”, e “tio”, que também é

tratado por “Valentim” e “ tio Valentim”.

A conversa se trava por meio de discurso direto, representado por travessão.

Contudo, o co-enunciador inicial não é excluído da cenografia de conversa,

pois esse momento se representa, interinamente, como exposição de fatos

passados na memória do enunciador.

A enunciação não tópica aparece com mais ênfase no Recorte VI (a). O

enunciador se relaciona com a parte materna da família que, de acordo com a

análise de recortes anteriores, percebe-se ser a parte da família de Isaías que

tem pele preta. A cenografia de conversa aproxima os enunciadores, no

cenário de recordação, pela exposição do enunciador da decisão revelada no

Recorte V. O funcionário do Correio, Valentim, é apresentado como homem

mais ilustre. Entretanto, essa característica é limitada pela condição que se

esclarece, ainda nesse recorte. Valentim aceita a bebida ofertada. Não

surpreende o fato, de esta bebida ser parati, como vemos no estudo de

Joaquim Botelho, em citação feita de João Antônio:

Conheci-o por volta de 1916. O primeiro ponto de parada de Lima

Barreto em suas andanças e bebericagens pelos bares urbanos era

um barzinho da sua Sachet (entre as ruas Sete de Setembro e do

Ouvidor). O barzinho era de três portas, um balcão, uma sala curta,

um mictório. Ali serviam-se café, bebidas. No mesmo prédio havia

uma livraria pequena, de Francisco Shetino (cujo filho era poeta),

onde se vendiam jornais, revistas e, principalmente, publicações

estrangeiras e de literatura e obras de interesse geral. (...). Aquele

era o primeiro ponto, a livraria, na passagem de Lima Barreto. Lima,

em geral, saía da Careta, na rua Sete de Setembro. (...) Pedia parati.

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Recusava qualquer outra bebida alcoólica, inclusive Cerveja.

(2002:52.

A relação do homem negro com o álcool é revelada. Além disso, retoma um

pressuposto social apresentado já no Recorte IV (c), o de que os “ homens de

cor” estavam destinados a um futuro relacionado “à vadiagem”. Esse discurso

opressor era a condição sócio-histórica de uma sociedade excludente que, não

via lugar social ao homem negro.

A cenografia revela um discurso racial observado por um menino, que fugia do

discurso de condicionamento social em que estava submetida toda a sua

geração. Por força e por entusiasmo de um bando de pássaros negros, o

enunciador justifica ao co-enunciador, por uma cenografia de diálogo, os

percalços em que se envolviam a sociedade, de maneira geral. É desta

simbiose que se apresenta um autor que compactua com esse discurso. Pelo

menos, de maneira a denunciá-lo.

Ora, a análise da atitude racista revela três elementos importantes já

presentes no discurso pseudojustificador que acabamos de ver:

descobrir e pôr em evidencia as diferenças entre colonizador e

colonizado, valorizá-las, em proveito do primeiro e em detrimento do

ultimo e levá-las ao absoluto, afirmando que são definitivas, e agindo

para que assim se tornem. (MUNANGA 1978: 21)

Vemos que, na cenografia existente, como unidade tópica, e nas formações

discursivas que agrupam as unidades não tópicas, o racismo se manifesta no

diálogo de um enunciador em Recordações, que poderia chamar Isaías,

Afonso, ou muitos outros negros do final do século XIX e início do século XX. A

imagem de autor que emerge condição paratópica do discurso literário é, em si

mesma, resultante das condições sócio-históricas de produção de

Recordações.

Já no Rio de Janeiro, o protagonista permanece em situações que remetem

aos conflitos do interior e do exterior. As condições sócio-históricas a que os

homens negros estavam submetidos denunciam um lugar do descrédito. Isso,

contudo, não era uma atividade revelada, aceita, ou enunciada, mas ação que

se percebia de maneira clandestina e escondida.

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Recorte VII

(a) O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: "Oh! fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!" Ao mesmo tempo, a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue. (b) O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação. (c) Curti, durante segundos, uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em pranto. Trôpego e tonto, embarquei e tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha pessoa. Os meus dezenove anos eram sadios e poupados, e o meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros largos e os membros ágeis e elásticos. As minhas mãos fidalgas, com dedos afilados e esguios, eram herança de minha mãe, que as tinha tão valentemente bonitas que se mantiveram assim, apesar do trabalho manual a que a sua condição, a obrigava. Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada.

(d) Além de tudo, eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares profundas, traço de sagacidade que herdei de meu pai. Demais, a emanação da minha pessoa. os desprendimentos da minha alma, deviam ser de mansuetude, de timidez e bondade... Por que seria então, meu Deus?

Na cenografia mostrada, no intrínseco enunciativo, há um jogo direto com o

extrínseco, e é nesse jogo de dentro e fora que podemos notar as unidades

não tópicas que estão reveladas apenas na dimensão das condições sócio-

históricas de produção do discurso Recordações. O tópico enunciativo

mantém-se nas referências ao passado, na recordação de um jovem, agora,

saído de sua casa, uma “espécie” de proteção, e irá desbravar o mundo em

busca de crescimento socioeconômico. Essa condição é construída no “dentro”

da enunciação pelo autor como uma sombra da própria condição de vida.

Podemos notar uma quebra de expectativa em relação às partes segmentadas

no Recorte VII. No Recorte (VII(a)), a cenografia mostra um jovem que não

passa por nenhum problema, observa o mundo com a novidade natural a um

jovem que sai de casa, sem grande tribulação; contudo, essa calma inicial é

abruptamente quebrada pelo acontecimento final do segmento, em que um

rapaz branco é tratado com preferência.

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No segmento VII (b) Isaías sofre uma forte amargura, que é mantida e revelada

em todo o Recorte VII. No entanto, podemos perceber que essa amargura não

é fruto de uma angústia, omitida pelo autor, e investigada por Isaías. Essa

investigação pode ser notada na comparação física do branco e do negro que

existe entre os segmentos VII (c) e VII (d). O branco e o negro são comparados

sem, contudo, apresentar uma denuncia marcada linguisticamente, a diferença

no tratamento dado a brancos e negros que Isaías não reconhece e que está

relacionada às condições que estavam representadas no discurso

Recordações.

Além de alienar o negro de sua própria história, apregoando seu

caráter passivo e desinteressado, o movimento abolicionista visava a

infundir uma imagem invertida do mundo dos negros, para que eles

tomassem como parâmetro a conduta dos homens brancos, não se

opondo à forma de “integração” que lhes era oferecida. (SANTOS

2002:120)

A unidade não tópica, no Recorte VII é, de maneira clara, oprimida. Ela,

todavia, permeia todo o recorte de maneira violenta, inclusiva, fazendo o

questionamento de Isaías ser associado - podemos ver no Recorte VII(b) - “a

um ferimento. A cenografia é a mesma dos negros do final do século XIX e

início do século XX, por outras palavras, é o retrato de um mundo possível, que

é observado pela emersão de uma imagem de autor que sustenta o discurso,

na mesma medida em que é sustentado por ele. O caráter paratópico do

discurso literário, evidenciado pela imagem de autor, que se sombreia, na

cenografia, é tratado por Bosi como documental

Chegando no Rio de Janeiro e antes de entrar na rotina do jornal,

Isaías Caminha toma o choque do conhecimento do Brasil formal, em

suas tragicômicas discrepâncias com o Brasil real. O valor

documental dessas páginas de espanto é alto, e o fato de instituições

visadas, o Exército, a Câmara dos deputados e a delegacia de

polícia, serem descritas por um interiorano que as vê pela primeira

vez produz duplo efeito de estranhamento e passagem a mais uma

etapa da maturação do narrador. A ingenuidade e o desaponto do

jovem Isaías têm algo a ver com o brasileirismo recrudescente

naqueles anos em que se refundava a não a partir das expectativas

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despertadas pelo fim do trabalho escravo e a proclamação do novo

regime. (BOSI, 2012:193)

A cenografia compacta as unidades tópicas e não tópicas na enunciação, onde

a imagem de autor se manifesta. O tópico está na enunciação direta com o co-

enunciador, que perpassa as unidades transversas como a narração e a

descrição citadas por Bosi. O não tópico só pode ser alcançado no exercício do

analista, que direciona o olhar sobre a amostra. Todavia, em Recordações, a

enunciação não tópica é referência no processo de consolidação do racismo

em um dos primeiros momentos após a libertação do homem negro escravo.

No próximo recorte, veremos outro traço paratópico, em que o enunciado que

narra acontecimentos nos quais o jovem Isaías não tem exata ciência e, por

isso, sente-se com raiva.

Recorte VIII

(a) A sala da delegacia voltou novamente ao seu silêncio primitivo. Um soldado veio apresentar-se, trocando rápidas palavras com o inspetor. Um relógio próximo bateu quatro horas. Dos compartimentos do fundo, chegou um personagem ventrudo, meão de altura, de pernas curtas, furta-cor, tendo atravessado no peito um grilhão de ouro, donde pendia uma imensa medalha cravejada de brilhantes. (b) Dirigiu-se ao inspetor:

— Raposo, vou sair: há alguma coisa?

— Nada, Capitão Viveiros.

— E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal “mulatinho”?

(c) Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se ajuntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada. (d) Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus sonhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. Não sei a que me compare, não sei mesmo se poderia ter sido inteiriço até ao fim da vida; mas choro agora, choro hoje quando me lembro que uma palavra desprezível dessas não me torna a fazer chorar. (e) Entretanto, isso tudo é uma questão de semântica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação injuriosa. Essa reflexão, porém, não me confortava naquele tempo, porque sentia na baixeza do tratamento todo o desconhecimento das minhas

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qualidades, o julgamento anterior da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir e examinar. (f) O que mais me feriu, foi que ele partisse de um funcionário, de um representante do governo, da administração que devia ter tão perfeitamente, como eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao Brasil e como tal merecia dele um tratamento respeitoso.

(g) As lágrimas secaram-se-me nos olhos, antes que o inspetor me apresentasse ao Escrivão Viveiros. Olhou-me com olhar de entendido. Creio que sondava as minhas algibeiras detidamente, antes de me fazer esta pergunta:

— O senhor é o moço do Hotel Jenikalé?

— Sou um deles.

— Qual é a sua profissão?

— Estudante.

(h) Houve algum espanto na sua fisionomia deslavada.

Neste Recorte, Isaías é intimado a ir à delegacia prestar queixa em decorrência

de um roubou acontecido no hotel onde estava hospedado. O sujeito

enunciador age com surpresa a esta intimação, pois não considera que pode

colaborar com as investigações. O que não é de conhecimento de Isaías é que

ele próprio é suspeito. No segmento (a) do Recorte VIII, o narrador descreve a

delegacia e o sujeito que o interpela de maneira muito negativa. Esse último

sujeito se refere a Isaías como “mulatinho”. A expressão “mulatinho” construída

no diminutivo é marcada pela formação discursiva da época, e, nesse caso,

reveladora das condições sócio-históricas pelas quais o autor de Recordações

era marcado e, ainda, como se revela na fronteira paratópica literária, que

associava negros e mulatos a crimes. A falta de acesso, a repressão moral, a

necessidade, a que o homem negro e mulato estavam submetidos, atualizava a

formação discursiva do negro como sujeito à margem.

os pobre e miseráveis [ex-escravos] passaram a ser tratados não

apenas como desclassificados sociais ( inúteis) mas também como

uma ameaça. [...] nesse período, os parlamentares engendraram a

ideia de que os pobres são sinônimos de classe perigosa. (SANTOS,

2002:120)

Ainda no segmento (a) do recorte VIII, a unidade não tópica sobre a formação

discursiva sobre o negro é transmitida pela expressão dada pela “voz” do

poder, que no segmento (c) e (d) é relatada por Isaías como efeito de “lágrimas

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aos olhos”. Essa “voz” de homem do poder era o principal incômodo de Isaías,

que no segmento (f) do recorte VIII é explanado. Nessa direção confunde-se o

narrador e o autor, pois a Iimagem que instaura a cenografia é de um autor que

narra as proporias condições

O tom e o andamento lembram os diários íntimos de romântica

memória: Lima vinha redigindo o seu nos mesmo anos em que

compunhas as Recordações.O movimento peculiar a esse gênero é a

sequência de registros de fatos e digressões psicológicas nas quais o

narrador faz ressoar cada episódio no seu próprio eu. A certa altura, a

fronteira entre ficção e a análise torna-se móvel, difícil de fixar. As

memórias assumem uma linguagem metanarrativa e o autor confessa

diretamente as suas dúvidas em relação à obra que está escrevendo.

(BOSI, 2012:197).

O autor constrói uma cenografia da vida possível, cuja condição é própria da

embreagem paratópica do discurso literário, que representa no enunciado a si

mesmo, por meio de marcas linguísticas

A noção de paratopia só interessa para uma análise do literário se for

remetida ao “contexto”, se for tomada a um só tempo como condição

e produto do processo criador. Essa relação dinâmica e paradoxal

deixa marcas no enunciado. (MAINGUENEAU, 2006:120).

No seguimento (g) do Recorte VIII, o narrador parece instaurar uma

conformidade que será parte de um processo que se desenvolverá por todo o

enunciado em Recordações, de um homem que passa a se conformar com as

próprias condições sócias históricas de produção e com as formações

discursivas sobre negros e mulatos da própria contemporaneidade (Bosi,

2012). Nesse sentido, intrínseco e extrínseco unem-se e corroboram com a

imersão de uma imagem de autor que pode ser associada aos “personagens”

seria necessário distinguir os estereótipos do autor dos estereótipos

das personagens – os primeiro sendo característicos de uma só

pessoa, talvez peculiares a ela, os segundos tendo mais

probabilidade de refletir o pensamento coletivo. Tendo mais

probabilidade, dizemos, pois anda aqui uma distinção seria

necessária, entre os romances psicológicos e os romances de

costumes. Se estes últimos pretendem mostrar o que pensam e

sentem os homens comuns, buscando assim o geral, os outros, ao

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contrário ( se bem feitos), apenas poderão mostrar os estereótipos

ligados à própria psicologia do herói, variando então com eles e

sendo, por conseguinte, peculiares também. (BASTIDE, 1973:114)

Essa associação instaura uma imagem de autor que se marca como alguém

que viveu situações em que o preconceito não é revelado, mas em que Tudo é

dito de passagem, em registro episódico, mas a lucidez da sátira corta fundo e

vai ponto a nu mazelas bem reais que o aparato do Estado mal consegue

encobrir (Bosi 2012:194). Vemos ainda, no segmento (h) do recorte VIII que

existe espanto ao saber que um mulato é estudante, ou seja, pertence à

camada que tem acesso ao saber, ao discurso de poder. Era intolerável pensar

que um mulato poderia chegar a “ser estudante”.

Recorte IX

(a) De forma que não tenho por onde aferir se as minhas Recordações preenchem o fim a que as destino; se a minha inabilidade literária está prejudicando completamente o seu pensamento. (b) Que tortura! E não é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública... Sofro assim de tantos modos, por causa desta obra, que julgo que esse mal-estar, com que às vezes acordo, vem dela, unicamente dela. Quero abandoná-la; mas não posso absolutamente. De manhã, ao almoço, na coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À noite, quando todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e escrevo furiosamente. Estou no sexto capítulo e ainda não me preocupei em fazê-la pública, anunciar e arranjar um bom recebimento dos detentores da opinião nacional. Que ela tenha a sorte que merecer, mas que possa também, amanhã ou daqui a séculos, despertar um escritor mais hábil que a refaça e que diga o que não pude nem soube dize

No recorte IX, Isaías diz querer fazer as próprias recordações, retomar o

passado. Como um espelho na frente do outro, o enunciado em Recordações

projeta uma imagem de si dentro de si mesmo. Preferimos até aqui, o exemplo

das sombras, pois uma sombra está ligada ao objeto sombreado, copiando-

lhes as feições, os gestos, existindo porque o objeto sombreado existe, sem,

contudo, ser o objeto sombreado, sendo, portando, uma simulação em tempo

real, que não pode ser enganada, participando do objeto sombreado como

realidade, sem ser o objeto ao qual se dá o foco, uma parte do todo, que segue

o todo incessantemente.

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No segmento (b) do Recorte IX, Isaías descreve uma “espécie de nudez “ que

o incomoda, que parece insuportável. Um autorreconhecimento, que ele não

quer aceitar, e parece-lhe um fardo muito grande e horrível. Se olhar no

espelho, nu seria representar algo que não gostaria e não quer. O motivo da

nudez ser negada não é revelado, é apenas sugerido não topicamente, mas, se

reunirmos as possibilidades geradas pela unidade não tópica, poderemos

alcançar a seguinte definição, pois havia um consenso na formação discursiva,

que impregnava a condição sócio-histórica daquela contemporaneidade.

O amplo consenso social que a ideologia escravagista tinha atingido,

mas também a disseminação, inclusive entre os “não-brancos”, de um

ideal que hoje chamamos de “branqueamento”; um ideário

historicamente construído ( uma “ideologia”, um “mito”) que funde

status social elevado com “cor branca e/ou raça branca” e projeta

ainda a possibilidade de transformação da cor da pele, de

“metamorfose” da cor (raça). Ao atuar como interpretação do mundo (

das relações sociais), esta construção ideológica foi fundamental para

a manutenção da ordem social. Chamar a atenção para a cor de pele

escura ( ou “traços raciais negróides”) de alguém era uma grande

ofensa, sobretudo para aqueles que buscavam ascender socialmente.

Enquanto as palavras “negro” e “preto” estavam intrinsecamente

associadas à vida escrava, a cor branca estada ligada ao status de

“livre”. (HOFBAUER,2006:177)

Recorte X

(a) — Decerto... não nego... mas quando era manifestação individual, quando não era coisa que desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também... É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses...(b) Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes idéias, fundar um que os combata... Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal... Vocês vejam: antigamente, entre nos, o jornal era de Ferreira de Araújo, de José do Patrocínio, de Fulano, de Beltrano... Hoje de quem são? A Gazeta é do Gaffrée, o País é do Visconde de Morais ou do Sampaio e assim por diante. E por detrás dela estão os estrangeiros, senão inimigos nossos, mas quase sempre indiferentes às nossas aspirações...

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No recorte X, o enunciador evidencia uma extrema angústia em relação ao

sistema econômico, que estava pautado em discurso de “liberdade” e

“evolução” pelo trabalho e pelo estudo que apresenta no segmento (a) do

Recorte X, não conseguir partilhar. Nesse mesmo segmento, o enunciador se

espanta com o fato de que existe uma força de dominação exercida por

grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o

domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade

mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus

desejos inferiores. Essa é uma descrição sobre as condições sócio-históricas,

que “são sombra” das condições em que estava imerso o autor, ser que

enuncia, no início do século XX. Essa cenografia está em diálogo com o

discurso concomitante com a libertação dos homens negros e da formação

discursiva sobre as formas de enxergar o trabalho. Os negros eram

necessários para compor a nova forma de mão de obra; mesmo assim, o

discurso negativo oprimia-os e distanciava-os da mão de obra do imigrante

europeu

Os negros libertos [...], estavam na última escala social, assumiam a

liberdade sem nenhuma profissionalização e enfrentariam a

concorrência da força de trabalho dos que os precederam na

liberdade – mulatos e negros, que não encontravam meios de

sobrevivência digna no Brasil. Além disso a política das classe

dominates voltou-se para imigração, primeiro para o Sul e os cafezais

paulistas e, depois, para a incipiente indústria que se formava.

Consolidou-se o mito que o negro era incapaz, obtuso e vagabundo;

ideologicamente, sedimentaram-se as teorias que o mito do

embranquecimento sustentava, de que o trabalhador bomera o

imigrante branco. a presença dos imigrantes , mais capazes

profissionalmente, ajudou a marginalizar ainda mais o negro.

(CHIAVENET0,1980:233).

A unidade tópica nesse recorte pôde ser percebida pelo direcionamento

histórico sobre os homens negros. A partir disso, o segmento (b) do Recorte X

dialoga intrinsecamente, como se as palavras do pesquisador se referissem às

palavras do autor em Recordações e como se as palavras do autor fossem

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condicionadas ao texto do pesquisador. Isso acontece porque tanto o

pesquisador como o autor de Recordações trabalham com o mesmo objeto,

discursos que fazem parte das ações sociais. No caso, Recordações é como

“retrato” do não-lugar paratópico de onde emerge uma imagem de autor, que

se consagrou como representativa de Recordações, repetidas vezes tratada

como uma imagem mulata, inteligente e insatisfeita com as condições

opressoras de sua contemporaneidade. Tais traços estão marcadamente

posicionados na enunciação, topicamente descritos como ações corriqueiras,

geradoras de raiva, desconforto, angústia, não acesso, não topicamente

percebida como fruto do preconceito racial.

Recorte XI

O espaço era diminuto, acanhado, e bastava que um redator arrastasse um pouco a cadeira para esbarrar na mesa de trás, do vizinho. Um tabique separava o gabinete do diretor, onde trabalhavam o secretário e o redator-chefe; era também de superfície diminuta, mas duas janelas para a rua davam-lhe ar, desafogavam-no muito. Estava na redação do O Globo, jornal de grande circulação, diário e matutino, recentemente fundado e já dispondo de grande prestigio sobre a opinião. Falei ao Oliveira, perguntando-lhe pelo doutor Gregoróvitch. O eminente repórter levantou um pouco o olhar de cima do importante escrito (relação dos decretos assinados no último despacho) e, ao dar com a minha fisionomia conhecida e humilde, abaixou-o logo e, entre dentes, transcendentalmente superior, respondeu: “Ainda não veio”. Eu não tinha mais onde dormir, havia dois dias que não comia, tinha a máxima necessidade de falar ao russo. Intimidado com a secura do Oliveira, fiquei de pé hesitando fazer-lhe uma segunda pergunta. Medroso e esfomeado, deixei-me assim permanecer alguns minutos debaixo daquele teto que abrigava a falange sagrada que vinha combatendo pelos fracos e oprimidos.

No recorte XI, o enunciador está na redação do jornal o Correio da Manhã,

onde procura por emprego. A redação é descrita com certa humildade em

relação ao poder que exercia. A mídia carioca, nesse período, ganhava

extrema força política inclusiva. No segmento (b) do Recorte XII, nota-se uma

grande esperança trazida pelo novo ofício no jornal. Sabe-se que Lima Barreto

trabalhou no jornal O Globo, o que trouxe a Recordações a ideia de um caráter

autobiográfico e irônico.

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A partir desse recorte, encontrado no capitulo VI de Recordações, o discurso,

parece, tomar um caminho que está menos relacionado à causa do homem

negro. Nas palavras de Oakley

Assim que Isaías Caminha entra no mundo da imprensa, o que até

aqui tinha sido uma narrativa introspectiva centrada na angústia do

herói se torna um veículo para uma sátira em grande escala à

imprensa carioca. Como já repararam vários críticos, de óbvio centro

de interesse Caminha passa a espectador, através de cujos olhos

contemplamos o mundo jornalístico, à medida que os poucos trechos

de introspecção que subsistem vão mostrando o jovem abandonando

suas ideiais literárias e acadêmicas, engolindo seu desagrado,

consentindo com a imoralidade de seu novo ambiente e

compactuando com ela. (2011:54)

A imprensa começa a funcionar como unidade tópica, como o que se revela no

discurso Recordações. Isso não significa o abandono do discurso não tópico

racista, pois se o enunciador “vai se acostumando” ao discurso opressor que

participa só em parte, isso significa que o discurso sobre o negro e o mulato se

torna ainda mais sutil, ainda mais não revelado, ainda mais cerebrino.

Resumidamente, ainda mais não tópico.

Recorte XII

(a) E o monstruoso redator desandou dizendo asneiras. Eu estava ali de colarinho sujo, esfomeado, mas tive ímpeto de discutir e de quebrar a cara dos idiotas que o ouviam. Entre eles, havia alguns a quem cabia bem a carapuça, mas que se calaram cobardemente. (b) Queria perguntar-lhe se aqueles seus artigos acacianos, cheirando ainda muito à brochura francesa de dois mil e quinhentos se podiam pôr a par dos trabalhos do Tito Lívio, do Tobias Barreto; eu queria perguntar-lhe se a sua genialidade no artiguete seria capaz de aparecer se tivesse nascido nas condições desfavoráveis do Caldas Barbosa, do José Maurício, do Silva Alvarenga e outros!

No recorte XII, o enunciador carrega sua voz com ironia que esta direcionada

aos que detém o poder. Instaura-se aqui, uma guerra entre classe, que na

cenografia estão separados o narrado e os “ditos” poderosos; senhores da

imprensa carioca. No segmento (a), o “redator” é qualificado com a palavra

“monstruoso”, ainda, o enunciador revela de si “ que teve ímpeto de quebrar a

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cara dos idiotas”. A cenografia apresenta um sujeito enunciador que está

abaixo economicamente e socialmente dos que deseja afrontar pela

inteligência superior.

No segmento (b), do mesmo recorte, a cenografia reafirma a distinção entre

classes: “os que têm acesso e por isso ascendem e dominam” e os “ que não

têm acesso e por isso são dominados”. Contudo, essa relação de acesso e não

acesso é direcionada à causa do homem negro e mulato. O enunciador cita

homens reconhecidamente negros, como Tobias Barreto (de mesmo

sobrenome do autor de Recordações) e Tito Lívio. Além disso, os artigos

escritos pela classe dos homens com acesso é diminuído linguisticamente,

como “artiguete”.

Nessa direção, a ironia parece mencionar a formação discursiva cristalizada,

do negro como inferior intelectualmente, que só poderia exercer trabalhos de

força, distante dos ofícios que exigissem práticas intelectuais.

Nas camadas superiores da sociedade brasileira, por exemplo, no

que se refere à formação de atitudes raciais, a identificação histórica

da população de cor com as camadas laboriosas e mais pobres da

sociedade tem servido para para que, sobre o fundo de uma ideologia

conservadora, do status quo, haja uma fusão de atitudes contrárias à

ascensão social das massas trabalhadoras com atitudes contrárias à

ascensão social da população de cor (COSTA PINTO, 1998:172).

A unidade tópica, a partir do ingresso de Lima Barreto na imprensa, torna-se

ainda mais sutil, ainda mais clandestina. Só a base de um estudo que direcione

o olhar sobre a formação discursiva do negro é que se pode perceber que é

por meio da ironização das atores, dos ambientes, das posturas demonstradas

topicamente, nas praticas de um quotidiano possível às rotinas de quem

partilha do universo da mídia, que se percebe o racismo, cristalizado nas

pequenas práticas.

Recorte XIII

(a) No começo, custei a conformar-me com a posição de continuo, mas consolei-me logo, ao lembrar-me dos meus heróis do Poder da Vontade; e não foi sem desgosto que aceitei as fatiotas daqueles desconhecidos. Custou-me muito curvar-me a tão vil necessidade; com o tempo, porém, conformei-me, e

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de tal modo me habituei que, mais tarde, quando a minha situação mudou, foi-me preciso grande esforço, para me habituar a comprar roupa em primeira mão. Achava-a cara, e o dinheiro gasto nela, despendido inutilmente, como se o gastasse em orgias e bebedeiras. (b) Os meus vencimentos eram aumentados pelas gorjetas. Havia-as de duzentos réis, mas, em geral, eram de quinhentos réis para cima. (b) A gente dos jornais é pródiga como jogadores e gosta de aparentar desprezo pelo dinheiro e generosidade. Uma vez, recordo-me bem, um repórter, entrando alta noite na redação, com o olhar brilhante e o passo um tanto trôpego, disse-me cheio de efusão:

— Caminha, tens dinheiro?

— Tenho, sim senhor, dois mil-réis... O senhor...

Ele não entendeu bem a minha resposta e continuou com a voz pastosa:

— Sabes donde venho? Do Aplomb Club. Ganhei oitocentos mil-réis no baccarat... Arre! Que desta vez levei a melhor ao Laje... Sabes quem bancava? O Demóstenes, o doutor Demóstenes Brandão, pretor, primo de um ministro.

O repórter falava bamboleando a cabeça e agitando os braços molemente. Esteve alguns instantes calado, a revirar os olhos, e depois puxou da algibeira uma nota de vinte mil-réis e disse-me:

— Toma! Vai procurar um bom fim de noite...

No segmento (a) do Recorte XIII, vemos a semelhança com o que se declara

no Recorte XII. O enunciador revela insatisfação com a situação de subalterno

a que estava como contínuo, cargo que julgava não merecer. A similaridade

com a biografia do autor de Recordações é evidente, quando

Isaías já fora recusado inclusive em empregos humílimos e já

percebera, enfim, que estava na sua cor o motivo da rejeição. Como

contínuo em um grande órgão da imprensa da capital aprenderá o

poder da hierarquia em meios pretensamente liberais. Ele observará

atentamente os colegas de redação ora de baixo para cima, enquanto

subalterno, ora de cima para baixo, enquanto olho crítico que julga

cada palavra e cada gesto seu interlocutor. (BOSI,2002:199)

A partir do segmento (b) desse recorte, o narrador parece ser incorporado pela

formação discursiva de poder. O poder do dinheiro vai desestimulando-o,

causando-lhe angústia, mas desejos de ascensão social. Nesse ponto,

ascender economicamente é confortável, e o o enunciador revela um certo

relaxamento com a ideia de ser “doutor”, presente nos primeiros recortes do

discurso Recordações.

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Recorte XIV

E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos.

Ao ser apresentado, ninguém lhe deu importância, mesmo porque dias antes houvera um crime sensacional, que monopolizara a atenção da cidade.

A ironia toma a enunciação em Recordações, criando uma cenografia tórrida

de um quotidiano de notícias absurdas sobre as classes mais abastadas

socialmente. Toma conta, no Recorte XIV, uma notícia sobre os sapatos das

gueixas orientais. Faz parte da cultura oriental medieval, a mutilação dos pés

das gueixas em prol de uma estética dos pés pequenos. Nesse recorte, no

segmento (a), o enunciador fala de uma sociedade “higienista”, que anseia pelo

embraquecimento social. Essa é uma formação típica da época, que se volta

às características biológicas dos negros e que, aos poucos, seriam

“minimizadas” pelo convívio e pelo processo de miscigenação (HOFBAUER,

2006).

Além disso, a vida na imprensa permite que o enunciador possa observar as

relações políticas e os costumes das classes mais abastadas. Sempre com tom

irônico, que se direciona às condições dos homens negros. A convivência com

jornalistas, criaturas lábeis, que viviam tão-só da opinião, e não da busca isenta

da verdade, fortaleceu a sua suspeita de que na capital daquele novo Brasil a

representação tomava o lugar da realidade (Bosi, 2006).

Recorte XV

(a) Demais eram as banalidades, os conceitos familiares sobre o crime e os criminosos que ele desenvolvia com a convicção de quem estivesse fazendo um estudo profundamente psicológico e social. (b) Oh! A vaidade dos desconhecidos da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções excepcionais, proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo. Não reconhecem que são como um empregado qualquer, funcionando

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automaticamente, burocraticamente, e que uma notícia é feita com chavões, chavões tão evidentes como os da redação oficial. Quase todos os repórteres e burocratas dos jornais desprezam a literatura e os literatos. Não os grandes nomes vitoriosos que eles veneram e cumulam de elogios; mas os pequenos, os que principiam. Estranha ignorância de quem, por intermédio dos artigos dos que sabem, copia os processos dos romancistas, as frases dos poetas e deturpa os conceitos dos historiadores, imitando-lhes o estilo com uma habilidade simiesca...

A ironia se mantém viva no Recorte XV. No segmento (a), o enunciador destina

um pequeno trecho destinado a parte das rotinas do quotidiano do jornal.

Reflete, muito rapidamente, que os jornalistas imaginavam ser cientistas

sociais, analisando os crimes como causa e não como efeito de uma sociedade

desigual. Crimes cometidos por homens negros eram vastamente noticiados e

isso corroborava com a manutenção da imagem do negro e o mulato como

perigoso. Essa formação discursiva havia se estandardizado desde a libertação

dos negros escravos.

A descrição do negro como lascivo, libidinoso, violento, beberrão,

imoral ganha as páginas dos jornais compondo a imagem de alguém

em que não se pode confiar. Condenavam o samba e a capoeira

como práticas selvagens e que terminavam em desordem e violência.

Acusavam os negros por praticarem bruxarias, por não possuírem

espírito familiar sendo as mulheres sensuais e infiéis e os maridos

violentos, retratos da falta de estrutura moral, psíquica e social do

negro. (SANTOS, 2002:131)

Além disso, no segmento (b) do mesmo recorte, a ironia que recai sobre os

colegas da imprensa se atualiza. O enunciador explana o discurso soberbo das

classes dominantes que, por ocuparem lugares de prestígio, acreditavam ser

intelectuais e pessoas de grande prestígio.

A sua posição de contínuo de jornal, sem raízes na cidade, só lhe dá

oportunidade de conhecer diletantes de ideiais antiburguesas. Esses

contatos no plano da palavra, e não da ação da organizada, suscitam

em Isaías uma desconfiança paralisante em relação às próprias

doutrinas que lhe aparecem sempre mediadas, quando deformadas,

pelo discurso dos intelectuais que as pregam ( BOSI, 2002:202)

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Recorte XVI

(a) Adelermo era a imaginação do jornal. Nascera no Maranhão e escrevia regularmente. Apesar de nunca se ter feito notar por uma associação mais original de idéias, no jornal era imaginoso porque nascera no Norte e tinha uma boa dose de sangue negro nas veias. As generalizações dos jornais são infalíveis... (b) Mas... Adelermo era a imaginação do jornal, e em seus ombros recaia todo o peso da necessidade de informações imediatas ao público quando os documentos faltavam ou eram omissos. Se havia um atentado anarquista ou um terremoto na Europa e o telegrama era por demais conciso, Adelermo tinha o encargo de desenvolvê-lo, de explicá-lo, de reconstruir a cena para o gosto público. Às vezes, pediam-se-lhe mais detalhes; o diretor queria a descrição do complot, a cena da “sorte”, à lôbrega luz de um fumarento lampião, em uma mansarda.

(c) Adelermo era obediente e fazia. Intimamente desgostava-se com aquele papel de mentiroso; mas temia ser despedido, posto na rua. Era esse o grande terror de todos. Não eram os ordenados, não era a miséria que os apavorava; temiam não encontrar outro lugar nos jornais e perderem por isso a importância, a honra suprema de pertencer ao jornalismo. Eles não valiam por si; o jornal é que lhes dava brilho. Nas invenções de Adelermo, quase sempre se passavam coisas fantásticas e curiosas

No recorte XVI “Adelarmo”, um dos membros do corpo do jornal em que o

enunciador estava, é descrito. No segmento (a), as características físicas de

Adelarmo são salientadas, bem como seu lugar de origem e sua própria

origem; “dose de sangue negro” nas veias. Adelarmo é mostrado como uma

pessoa pouco criativa, mas que, pelo poder da generalização, deveria ser

“imaginoso”, e mesmo não se levando em consideração o potencial de

Adelarmo, no segmento (b), notamos que a ele cabia uma a responsabilidade

de ser “criativo” em relação às noticias. Dois pontos que têm correspondências

com o extrínseco valem a pena ser salientados. O primeiro, o fator biologizante

a que a sociedade estava impregnada, desde o século XVIII (HOFBAUER,

2002). O segundo ponto é o fato de a mídia ser associada à criatividade.

No segmento (b) do Recorte XVI, Adelarmo é associado àquele que deveria

preencher lacunas, quando os documentos faltavam ou eram omissos. Cabia a

Adelarmo o trabalho de forjar partes da notícia como se fossem verdadeiras.

No segmento (c), vemos que Adelarmo não se satisfazia com o oficio, mas era

oprimido. Em linhas gerais, vemos no segmento (a), um homem biologicamente

definido e generalizado, no segmento (b) a este homem recaía um trabalho na

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ilegalidade e no (c) a ilegalidade era impulsionada pela formação discursiva do

poder, naquela contemporaneidade.

Aqueles que se entendiam como “progressistas” pregavam um

Estado liberal, mas recorriam também a ideias raciais biologizadas e

concepções evolucionistas. À primeira vista, parecia haver mais

incompatibilidade entre liberalismo e “modelos evolucionistas” e

“raciais” do que uma possibilidade de aproximar esses dois anseios.

Vimos que ao longo do século XIX, o critério mais poderoso de

inclusão e exclusão (raça) sofreu definições e foi obejto de constantes

discussões entre intelectuais. A ideia de raça em si, no entanto, não

foi posta em questão. (HOFBAUER, 2002:198)

Recorte XVII

(a) A casa pertencera talvez a um oficial de Marinha, um chefe de esquadra. Havia ainda no teto do salão principal um Netuno com todos os atributos. O salão estava dividido ao meio por um tabique; os cavalos-marinhos e uma parte da concha ficaram de um lado e o deus do outro, com um pedaço do tridente, cercado de tritões e nereidas.

(b) Num cômodo (em alguns) moravam as vezes famílias inteiras e eu tive ali ocasião de observar de que maneira forte a miséria prende solidamente os homens.

(c) De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se misturavam e se confundiam. Talvez não se amassem, mas viviam juntos, trocando presentes, protegendo-se, prestando-se mútuos serviços. Bastava, entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte.

No recorte XVII, a descrição se volta a um espaço que foi tomado como

residência de muitos. Esse espaço é descrito como lugar, antes preenchido

com símbolos europeus de religião e arquitetura. Mas, agora, esse espaço,

podemos notar nos segmentos (b) e (c), está tomado por gente e, mais

especificamente no segmento (c), por gente pobre e negra. Além disso, o

enunciador descreve um estado de violência entre os moradores desse

ambiente, “Bastava, entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os

tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte”. O extrínseco ao texto

faz emergir uma imagem de autor e revela uma sociedade em que o século XIX

e o século XX delineavam-se. Uma sociedade que considera os negros

biologicamente inferiores e, de tão intensas as distinções, discutia-se a

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hipótese de separar o Brasil por territórios, mais ou menos, avançados

racialmente (HOFBAUER, 2002). Os negros ficavam cada vez mais oprimidos

nos guetos, distantes dos centros e do acesso à educação e da cultura erudita,

por conseguinte, ao avanço econômico e, por esses meios, mais próximos à

marginalidade. Era um ciclo muito bem engendrado pela ideal branco de poder:

o negro marginalizado era biologicamente taxado assim; quando um ou outro

negro cometia um crime, um delito ou infração, a mídia noticiava isso como

expressão do traço biológico negativo do negro. Era um estado de pânico e

rejeição no qual a imagem de autor emerge na mesma medida em que se

projeta em uma cenografia.

a paratopia só é motor da criação quando implica a figura singular do

insustentável, que torna essa criação necessária. A enunciação

literária é menos a manifestação triunfante de um “eu” soberano do

que a negociação desse insustentável. Presente neste mundo e dele

ausente, condenado a perder para ganhar, vítima e carrasco, o

escritor não tem outra saída senão seguir em frente. É para escrever

que preserva sua paratopia, é escrevendo que pode se redimir desse

erro. (MAINGUENEAU, 2006:115)

Recorte XVIII

(a) O doutor Ricardo cumprimentou a alta autoridade e, a seu chamado, foi-lhe falar. Além do ministro, intermeteu-se uma nova personagem; um preto velho, quase centenário, de fisionomia simiesca e meio cego.

(b) Trazia na mão esquerda um caniço que distendia um arame de pescaria; com a direita, auxiliado por uma varinha, vibrava dolentemente a corda, enquanto balbaciava qualquer coisa. Ia de grupo em grupo, tangendo o seu monocórdio extravagante. Cantava talvez uma ária de uma extravagante beleza, certamente só percebida por ele e feita pela sua alma para a sua alma... Tocava e esperava esmolas. Em todas as fisionomias, havia decerto piedade, comiseração, e mais alguma coisa que não me foi dado perceber. Era constrangimento, era não sei o quê...

No recorte XVIII, um negro velho é descrito. Ele é apresentado pelo doutor

Ricardo, como um homem simples, com gestos simplórios e tranquilos.

Contudo, no final do segmento (b), o enunciador não consegue explicar o

motivo de ter por esse homem negro um sentimento de “constrangimento”. A

lacuna deixada pela narrativa pode ser preenchida pelo traço autoral. A

simplicidade do negro no fim da vida ao lado de um doutor causa, mesmo que

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não de maneira deteriorada, constrangimento. O “retrato” da simplicidade ao

lado do doutor possibilita a leitura sobre o “fracasso” dos planos iniciados na

infância, com a leitura de “o poder da vontade”, presente da professora

(OAKLEY,2011).

Recorte XIX

(a) Eu não quis dizer tudo isso ao poeta de Anelos. Era melhor mantê-lo na ilusão de que pudesse haver alguma independência e espontaneidade no julgamento dos jornais; e quando Floc chegou, com o seu grande queixo atirado para diante como um aríete e os seus bigodes de azeviche, dei-lhe o livro. Depois de manuseá-lo um instante, falou com azedume:

(b) — Que nome! Félix da Costa! Parece até enjeitado! É algum mulatinho?

— Não. É mais branco que o senhor. É louro e tem olhos azuis.

— Homem, você hoje está zangado...

Ele não compreendia, que eu também sentisse e sofresse.

No segmento (a) do Recorte XIX, o discurso reflete sobre o poder e o olhar da

imprensa sobre a literatura. O cuidado que a imprensa tinha em tratar um novo

“autor”, o que era bom, o que era ruim, o que seria lido e o que não seria. Esse

trato pelo qual sofreu pungencialmente o autor de Recordações e que, de certa

maneira, é denunciado como prática corriqueira pode ser visto, ainda no

segmento (a) e afirmado no (b), pelo tratamento que o interlocutor da narrativa

dá ao livro apresentado por Isaías a ele. Para Oakley, essa é uma temática

central em Recordações.

Lima Barreto, consciente de que sua obra ameaçava o poder político

brasileiro vigente e que este poder depende de uma retórica de

insinceridade literária, vai criando um cronista do Rio de Janeiro

republicano e, logicamente, conduzi-lo precisamente para o centro

desse mundo de ilusão linguística: a redação do jornal popular mais

influente de seu tempo. Eis, portanto, os fatores que conferem a

Recordações do Escrivão Isaías Caminha sua estrutura peculiar. A

força toda-poderosa no Brasil da época era a imprensa (2011:55).

No segmento (b), ainda se pode perceber que as condições enunciadas são as

próprias condições do autor. Isso corrobora com a emersão de uma imagem de

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autor que tem plenas condições de enunciar o que se propõe. O conhecimento

de causa, o traço de grande proximidade fez com que Recordações, em sua

época, fosse associado à produção autobiográfica. Contudo, a condição

paratópica, que inclusive se associa ao desejo autoral, norteia uma percepção

acerca da literatura que atualiza o discurso literário e que constrói as próprias

condições de sua enunciação, existindo na própria existência

Isaías- narrador, tentando evocar e definir marcos históricos através

da arte, defronta-se com a contradição que desafia frequentemente a

crítica literária e o escritor criativo: a arte tem capacidade de

comunicar poderosamente, mas não deixa, ao mesmo tempo, seu

próprio sistema retórico que pode ser usado e abusado (OAKLEY,

2011:56).

Recorte XX

(a) Perguntei então a mim mesmo por que não casara aquela rapariga, por que não vivera dentro dos costumes tidos por bons. Não achei resposta, mas julguei-me, não sei por quê, um pouco culpado pela sua desgraça.

(b) O carro chegou e eu saltei para ajudar Leda a apoiar-se. Paguei ao cocheiro e, na calçada, e a perguntou-me:

— Não entras?

— Não, obrigado.

Insistiu várias vezes, mas recusei. Vim vagamente a pé até ao Largo da Carioca, sem seguir um pensamento. Vinha triste e com a inteligência funcionando para todos os fados. (c) Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer. Tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco devido aos outros e um pouco devido a mim. Encontrei Loberant:

— Então? perguntou maliciosamente.

— Deixei-a em casa. — Pois se eu me tinha separado de vocês de propósito... Tolo! Vamos tomar cerveja... (d) Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos. As cogitações não me passaram... Loberant, sorrindo e olhando-me com complacência, ainda repetiu:

— Tolo!

No recorte XX, final de Recordações, Isaías reflete sobre as condições da

própria vida, de maneira geral. Sente-se incomodado por não ter atingido o

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desejo de infância de ser doutor. E embora responsabilize os outros, notamos

no segmento (c), que também se responsabiliza a si mesmo. De maneira

desconfortável, percebe-se como incorporador das formações discursivas da

época e retoma o fato de que, aos poucos, foi simplesmente aceitando os

lugares e papeis sociais aos quais os negros e mulatos, como ele foi, estavam

condicionados, de acordo com as condições sócio históricas do Brasil no final

do século XIX e início do século XX.

Emerge, destes recortes, uma imagem de autor que invariavelmente constrói

cenografias sobre o homem negro. As práticas quotidianas vividas, descritas e

narradas revelam um submundo enunciativo, que só pode ser notado com base

em reflexões nos campos da Linguística, da História, da Filosofia e da Crítica

Literária. Assim, a cenografia, ponto de partida para essa análise, é a categoria

que liga a paratopia literária, porque nos dá condição de perceber no intrínseco

o extrínseco e que, ainda, nos possibilita enxergar uma imagem de autor, que

nos apresenta, a partir de um processo interdisciplinar, as condições sócio-

históricas daquela contemporaneidade, marcada por práticas de racismo,

permitidas apenas, na clandestinidade, que essa pesquisa, observando a

imagem de autor de Recordações se preocupou em examinar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na empresa de estudar a imagem de Autor em Recordações do Escrivão

Isaías Caminha, de Lima Barreto, optamos pelo arcabouço teórico-

metodológico da Análise de Discurso, direcionada por Dominique

Maingueneau, porque acreditamos ser pela interdiscursividade, princípio de

discursividade, que se encontra a resposta sólida o suficiente, para responder

às questões geradas em nosso projeto de pesquisa, proposto há dois anos: a

imagem de autor emergente no discurso literário pode colaborar com uma

leitura e com a percepção de efeitos de sentido na enunciação literária, e,

ainda, como em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o diálogo

interdisciplinar pode contribuir com a percepção das unidades não tópicas,

marcadas de maneira clandestina nos discursos.

No percurso de fundamentação de nossa pesquisa, investigamos o discurso

literário de Recordações do Escrivão Isaías Caminha sobre o princípio dos

discursos constituintes. Os discursos constituintes, pela validação auto e

heteroconstituinte, possibilitou-nos responder à questão gerada por Lima

Barreto no ensaio “O destino da Literatura”. No ensaio, Lima Barreto discutia,

em certa medida, a relação do extrínseco com o intrínseco à enunciação

literária. O que no chamou atenção, além da descoberta de um autor envolvido

na teoria literária (fato inovador em se tratando de Lima Barreto), foi a

similaridade com a noção de paratopia, própria dos discursos constituintes.

Embora este trabalho não tenha se preocupado inicialmente com essa questão,

ela pôde ser suscitada e, no futuro, poderá gerar outros trabalhos de pesquisa

que se debrucem sobre um Lima Barreto.

Partimos do pressuposto teórico-metodológico para construir nosso método de

análise, referendado na Análise de Discurso, que considerasse a condição

paratópica dos discursos constituintes, pois a imagem de autor, no discurso

literário Recordações do Escrivão Isaías Caminha, emerge na confluência extra

e intra enunciativo-discursiva, o que Maingueneau (2010) optou chamar de

impossível lugar.

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Desta maneira, foi-nos necessário resgatar as condições sócio-históricas de

produção do discurso literário Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Isso

inclui o resgate do próprio autor enunciador, pois é a imagem de autor uma

condição de produção do discurso de nosso interesse. Fizemos uma pesquisa

que envolvia o repertório da História, Sociologia, Filosofia e Crítica Literária

para esse intento.

Nosso repertório de condições sócio-histórica identificou o que Munanga (1978)

chamou de discursos pseudo-justificadores, utilizados para normatizar a ideia

de que o homem negro e, por conseguinte, o mulato, eram inferiores ao

homem branco, estado social que é, de certa forma, denunciado em

Recordações do Escrivão Isaías Caminha, no final do século XIX e início do

século XX, período de libertação dos negros cativos, sob regime escravo,

quatro séculos depois do início da atroz exploração humana dos homens

negros.

O ambiente delineado nas condições sócio-históricas de produção de

Recordações do Escrivão Isaías Caminha era também o ambiente do autor

deste discurso, que, como o sujeito narrador sofreu, literalmente, na própria

pele, os discursos pseudo-justificadores, que resistem, até hoje, no submundo

da literatura e incrustados nas variadas relações sociais.

Construímos uma análise que considerou o interdiscurso na formação da

imagem de autor e, para identificar o “fio” interdiscursivo, selecionamos duas

unidades: as tópicas e as não tópicas.

Entendemos que as unidades tópicas são delineadas historicamente e que

possuem, no contato mais próximo da enunciação, uma construção

relativamente estável (BAKHTIN 2003), mas que não se podem confundir com

gêneros de discurso, pois se incrustam a eles, sendo a formatação pela qual os

enunciação acontece.

Entendemos, por conseguinte, que as unidades não tópicas, como as tópicas,

são construídas historicamente, mas que não possuem, para si, uma

formatação relativamente estável. Assim, parasitam discursos variados na

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enunciação. São negadas pelos enunciadores, mas confirmadas nas ações nas

quais se executam.

A análise, que tendeu por esse caminho, fez-nos perceber que a confluência de

unidades tópicas e não tópicas gerava, paratopicamente, a projeção de uma

imagem de autor altamente envolvida com as condições sócio-históricas de

produção de Recordações do Escrivão Isaías Caminha e de toda a parcela

negra e mulata em meados de 1900, no Brasil.

Por fim, acreditamos que a imagem de autor aparente em Recordações do

Escrivão Isaías Caminha, mais do que o autor que logra prestígio por uma

obra, mas aquele que, emergindo no espaço literário e da vida, tem autonomia

política, social, cultural muito a frente do próprio tempo. Assim, consideramos

que a imagem de autor em Recordações do Escrivão Isaías Caminha se torna

o canal interdiscursivo entre a literatura e a denúncia de, pelo menos, quatro

séculos de exploração e exclusão, por isso, fonte de produção acadêmica,

importante aspecto de discussão social e via de leitura e, no mais,

indispensável ponto de crescimento humano.

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