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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS CEATEC - CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS, AMBIENTAIS E DE TECNOLOGIAS REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANENTE (APP´s). CONFLITOS DAS GESTÕES URBANíSTICA E AMBIENTAL JOÃO LUIZ PORTOLAN GALVÃO MINNICELLI CAMPINAS 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

CEATEC - CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS, AMBIENTAIS E DE TECNOLOGIAS

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANENTE (APP´s). CONFLITOS DAS GESTÕES

URBANíSTICA E AMBIENTAL

JOÃO LUIZ PORTOLAN GALVÃO MINNICELLI

CAMPINAS 2008

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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANENTE (APP´s). CONFLITOS DAS GESTÕES

URBANíSTICA E AMBIENTAL

Dissertação apresentada como exigência para obtenção do Título de Mestre em Urbanismo ao Programa de Pós-Graduação na área de Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Orientadora: Profa. Dra. Raquel Rolnik

PUC - CAMPINAS 2008

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Ficha Catalográfica

Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas e Informação - SBI - PUC-Campinas

t711.4 Minnicelli, João Luiz Portolan Galvão. M665r Regularização fundiária em áreas de proteção permanente (APP’s) : conflitos das gestões urbanística e ambiental / João Luiz Portolan Galvão Minnicelli. - Campinas: PUC-Campinas, 2008. 200p. Orientadora: Raquel Rolnik. Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologias, Pós-Graduação em Urbanismo. Inclui bibliografia. 1. Urbanização. 2. Política habitacional. 3. Ambientalismo. 4. Favelas. 5. Posse de terra. 6. Usucapião. I. Rolnik, Raquel. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologias. Pós- Graduação em Urbanismo. III. Título.

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Dedico

A Luís Frederico e Luís Felipe, meus filhos, por tudo o que sempre significaram

Ao Douglas Carvalho Portela,

pelo companheirismo, incentivo e colaboração na checagem final

Ao Dr. Sérgio de Andrade Sant´Anna, prodigiosa inteligência, engenheiro civil, historiador,

filólogo, jurista, por sua amizade e pela gentileza da revisão final e À Sylvia Borgerth Lafond Lemos,

cujas virtudes a fazem permanentemente linda e jovem

À Dra. Daisy Brochado Saraiva, dentista, humanista e

à Zulmira Justino, incorrigível na bondade,

ambas Doutoras em amor e dedicação às pessoas

À Profa. Dra. Raquel Rolnik razão pela qual procurei o mestrado em urbanismo da PUC-

Campinas, pela urbanista notável que é,

pelas aulas mais agradáveis que já tive, e por ter aceito me dar a honra de tê-la como Orientadora

In memoriam de

Georgina Portolan Galvão (minha avó), João Piragibe Galvão (meu avô),

Paulo Augusto R. B. Baptista Pereira, Prof. Dr. Haroldo Teixeira Valladão,

Prof. e Ministro João Leitão de Abreu com os quais tive o privilégio de conviver

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AGRADECIMENTOS Leda Roxana Valverde Barbato e Cíntia Teixeira Zaparoli, que tanto contribuíram me orientando pelo caminho (repleto de novidades) do urbanismo e abrindo as portas oficiais para a pesquisa Profissionais da SEHAB/Campinas e da COHAB-Campinas, compreensivos e receptivos, que franquearam documentos e arquivos Professores Dr. Nelson Saule Jr e Dra. Laura Machado de Mello Bueno, que me orientaram na qualificação e demais Professores do Mestrado da PUC-Campinas, que contribuíram nos caminhos das descobertas terminológicas que configuraram grande desafio Regina M. Moraes Torres, pelas inúmeras provas de confiança e carinho Maria Aparecida Medeiros, amiga e autora, comigo, do nosso capo lavoro: nossos filhos Priscila Portolan Viegas, Hilda Minnicelli, Mirthes T. Minnicelli e Suzana Minnicelli pelo carinho familiar Maria Aparecida de Oliveira e Benedita Lizionete de Faria, pela amizade e pelos tantos cuidados comigo e meus filhos Dra. Akiko Oyafuso, Dra. Alexandra Lebelson Szafir, Dra. Almira Maria Garcia, Ana Lúcia de Godoy Gonçalves, Profa. Beatriz D. Corrêa Leite, Dra. Carla Vieira Stella, Cristina Mattoso, Dra. Deise Cariani Carmona, Lisete Elias, Dra. Luciana Rangel Nogueira, Profa. Maria Amélia D. F. D’Azevedo Leite(Mel), Maria Goreti Pinheiro Sampaio, Maritha Koy, Regina Gambarotto, Renata Bertelli, Dra. Rosali Medeiros, Silvia de Fátima Barreto Rangel Luz, Dra. Suzy Hungria Nucci Bento (autora da versão do resumo para a língua inglesa), Dra. Tereza N. R. Dóro e Yolanda Martinelli, presentes que a vida me deu, pela amizade e pelo carinho Antonio Viviani (Itália),Ari Sardelli de Camargo Barbosa, Dr. Cláudio Magalhães, Didier Alejandro Bala, Dr. Eugênio Alati, Dr. Fortunato A. Badan Palhares, Dr. João Luiz Horta Neto, Dr. José Carlos Cosenzo, Dr.Luiz Antonio Silva Ramos, Luiz Apolônio, Dr. Moacir Caparroz Castilho, Dr. Nivaldo Dóro, Dr. Pedro Gomes Filho , Dr. Pedro Pessotto Neto, Dr. Ricardo J. Negrão Nogueira, Dr. Ricardo de Lima, Dr. Rover Rondinelli Ribeiro e Tony Gandra, meus irmãos de coração, pelas indescritíveis provas de amizade Colegas do Setor de Relações Públicas da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, especialmente Maria Irene de Bojano e Maria Evelina Pereira Quartim Barbosa, por terem me proporcionado muitos cursos extra-curriculares e pelo incentivo à dedicação aos estudos no início de minha vida profissional; Paula Cristina de Almeida, Secretária do Mestrado em Urbanismo da PUC-Campinas e Patrícia Gomes de Paula Beluci, da La Pietra, pelas colaborações pessoais; Aos meus afilhados Sérgio Masirevic Jr., Isabel Pintas Marques Horta, Luiz Matheus Godoy Betti e Patrícia Burgareli, bem como às crianças dos abrigos de Campinas, por me permitirem o agradável exercício de uma espécie de “segunda paternidade”. In memoriam de Conceição Galvão, Alcyr Fernandes, Emílio Sacomani, Rogelio, Roberto Lavieri e Luiz Antonio Coriolano, amigos que trago permanentemente comigo Aos meus alunos e ex-alunos e a todos os que de alguma forma contribuíram para que esta pesquisa pudesse realizar-se.

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RESUMO MINNICELLI, João Luiz P. G.; REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS DE

PROTEÇÃO PERMANENTE (APP´s): Conflitos das gestões urbanística e

ambiental. Dissertação (Mestrado em Urbanismo), 2008, 240f. – Pós

Graduação em Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Campinas.

Pesquisa de Mestrado destinada a averiguar a gênese e a motivação dos

conflitos que surgem entre urbanistas e ambientalistas nos casos em que se

pretende regular e regularizar situações de moradia em assentamentos

irregulares já consolidados, quando tais moradias se situam em Áreas de

Proteção Permanente (APP´s) que são espaços ambientais especialmente

protegidos. A regularização se dá por meio do instrumento da “regularização

fundiária” cujas origem e evolução também aqui se pesquisa. Estudam-se

igualmente os casos de regularização fundiária de áreas de moradia situadas

em área de APP em Campinas promovidas pela municipalidade local para se

averiguar a forma como tais regularizações foram concebidas, realizadas e

posteriormente avaliadas.

Termos de indexação: regularização fundiária; segurança da posse; área de

proteção permanente; estatuto da cidade; parcelamento do solo urbano;

ambiente; sustentabilidade; plano diretor; favela; usucapião; concessão de uso

especial para fins de moradia; direito à moradia.

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ABSTRACT

Master´s research with the scope of looking into the origin and the

motivation of conflicts that arise between urban planners and environmentalists

when the objective is to regulate and legalize situations of dwellings in irregular

settlements that have already been established, being those dwellings located

in “Areas of Permanent Protection” (APPs). These are environmental locations

that are especially protected.

This normatization is carried out by means of “land legalization”,

the beginnings and evolution of which are hereby also researched. Cases of

land legalization of inhabited areas located in APPs of Campinas have also

been studied; said legalizations have been sponsored by the local municipal

government.

The objective of the study was verifying the conditions under

which said legalizations were conceived, effected and then evaluated.

INDEX TERMS – land legalization, land tenure, areas of permanent protection,

city code, urban development, environment, susteinability, town (or city)

planning, slum, acquiring land prescription, dwelling wright.

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LISTA DE SIGLAS

APA – Área de Preservação Ambiental

APP – Área de Preservação Permanente

BNH – Banco Nacional da Habitação

CC – Código Civil Brasileiro

CF - Constituição Federal

COHAB – Companhia de Habitação Popular de Campinas

CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente

EC – Estatuto da Cidade

ETEP – Espaço Territorial Especialmente Protegido

GRAPROHAB – Grupo de Análise e Aprovação de Projetos

Habitacionais do Estado de São Paulo

PD - Plano Diretor

PMC – Prefeitura Municipal de Campinas SEHAB – Secretaria Municipal de Habitação de Campinas SFH – Sistema Financeiro da Habitação

SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação

UC – Unidade de Conservação

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SUMÁRIO

1 – OBSERVAÇÃO INICIAL 02 2 – INTRODUÇÃO 04 3 – CONCEITOS INICIAIS 09\ 3.1 - Regularização Fundiária – Evolução 09 3.1.1 – Conceituação 20 3.1.2 – Conceituação de “Regularização Fundiária de Interesse Social” 23 3.1.3 – Regularização Fundiária – Diversas Dimensões 24 3.1.4 – Regularização Fundiária Plena 32 3.2 – Áreas de Preservação Permanente – App´S (Áreas “Non Aedificandi”) 36 4 – ALGUNS ASPECTOS JURÍDICOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA 45 4.1 – Explicando “Propriedade” 45 4.2 – Usucapião 47 4.3 – Permissão de Uso e Concessão de Uso 48

4.4 – HIS - Habitação de Interesse Social e ZHEIS - Zona Especial de Habitação de Interesse Social 49

4.5 – “Direito de Permanência” (ou de “Não Remoção”) e Segurança na Posse 51 4.6 – Área Urbana Consolidada 53 4.7 – Bacia Hidrográfica 54 4.8 – Recuperação de Danos Urbano-Ambientais 56 4.9 – Aspectos básicos da legislação 57 4.9.1 – Código Florestal 58 4.9.2 – Constituição Federal de 1988 59 4.9.3 – Estatuto da Cidade 60 4.9.4 – Constituição Estadual Paulista 63 4.9.5 – Resolução Conama 369/06 65 5 – ESTUDO DE CASOS 68 5.1 – Apresentando Campinas 68 5.2 – Ribeirão das Anhumas e seu Contexto 69 5.2.1 – Bacia do P.C.J. (Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí) 69 5.2.2 – Bacia do Rio Piracicaba 73 5.2.3 – Bacia do Rio Atibaia 75 5.2.4 – Bacia do Ribeirão das Anhumas e sua formação 75 5.2.5 – Necessidade de proteção do recurso hídrico 80 5.3 – As ocupações pesquisadas e a região em que se encontram 88 5.4 – Histórico dos Núcleos Residenciais - Impacto humano das ocupações 90 5.5 – A regularização fundiária dos núcleos residenciais pesquisados 92 5.5.1 – “Núcleo Residencial Guaraçaí” 101 5.5.2 – “Núcleo Residencial Vila Nogueira” 119 5.5.3 – “Núcleo Residencial do Parque São Quirino” 134 5.5.4 – “Núcleo Residencial Dom Bosco” 156 5.5.5 – “Núcleo Residencial Gênesis” 163 6 – CONFLITOS 173 7 – CONCLUSÕES – ANÁLISE CRÍTICA DAS SITUAÇÕES PESQUISADAS 206

7.1 – Conciliação das agendas – Compatibilizando direito ao ambiente e direito à moradia 218

7.2 – Regularização em área de APP – O direito à regularização e seus limites 221 7.3 – Regularização curativa e atuação preventiva 226 REFERÊNCIAS 234

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1. – OBSERVAÇÃO INICIAL

Em abril de 2006 ouvi pela primeira vez a expressão “regularização

fundiária” e era tanta minha desinformação a respeito do tema, que sequer imaginei a

quê exatamente essa expressão aludia, embora a designação “fundiária” me

permitisse intuir tratar-se de assunto ligado ao solo. Em maio de 2006, participando de

um debate sobre regularização fundiária organizado pela municipalidade de

Campinas, ao ouvir uma palestrante mencionar “ZEIS”, que eu desconhecia, percebi

que havia muito a estudar.

Embora me considerasse bem informado em assuntos jurídicos, nada

tinha ouvido sobre regularização fundiária. E se considerarmos que esta questão

envolve muitos aspectos jurídicos, constatei aí a verdadeira dimensão da minha

desinformação. E comprovou, ao menos sob minha ótica, a exatidão da afirmação que

posteriormente ouvi da Profa. Raquel Rolnik de que a periferia é quase invisível aos

olhos da sociedade, que prefere fingir que ela não existe.

Se eu mesmo não sabia da existência de um movimento em favor da

regularização fundiária (e ele existe pelo menos desde 1983) é possível perceber o

quanto é necessário caminhar no sentido de dar corpo, voz e visibilidade a um tipo de

procedimento que visa apenas atuar em favor da sociedade melhorando questões

urbanísticas e reconhecer o direito de famílias brasileiras que um dia se viram na

contingência de ocupar determinada área para garantir abrigo.

Para isto é preciso considerar que quando a ocupação acontece em

área de proteção ambiental, a regularização fundiária atua também em favor do

próprio ambiente que foi de alguma forma agredido.

Os locais escolhidos pela população de baixa ou nenhuma renda para

fixação de moradia que constituem agrupamentos de abrigos precários, toscos,

elaborados com material improvisado, com arruamento desordenado ou mesmo sem

arruamento, com passagens estreitas, vias tortuosas, sem planejamento adequado,

desprovidos de higiene e de condições mínimas de habitabilidade costumam ser

chamados “favelas” ou “invasões”.

Ao longo deste trabalho será utilizada preferencialmente a denominação

“núcleo” para referir cada uma das áreas que serão objeto de estudo. Se utilizarão

também, excepcionalmente, as designações “favela” e “invasão” mas desde logo é

preciso advertir que esta última não condiz adequadamente com a realidade jurídico-

urbanística não apenas em razão da conotação pejorativa que ela encontra no meio

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social (abrangendo o científico), como também pela roupagem de ilicitude que a

palavra “invasão” possui.

O objetivo é pesquisar o tema “regularização fundiária em áreas de APP”. Assim, embora existentes outros núcleos residenciais carecedores de

regularização fundiária nas proximidades dos núcleos residenciais que aqui serão

estudados, não serão eles pesquisados por não se encontrarem em áreas de APP.

É preciso criar uma “cultura do possível” em relação à regularização

fundiária em áreas de APP. Em urbanismo e em ambientalismo, o “não pode” é quase

onipresente. São duas áreas em que a sociedade criou leis que miram um ideal de

ordem e de preservação impossíveis de atingir pela maioria da população brasileira.

Há razão no argumento de MARTINS (2006) de que: As normas urbanísticas e ambientais, regulando o que ‘pode’ e o que ‘não pode’, acabam por via do ‘não pode’ dificultando o acesso à cidade e relegando à informalidade grande parte da população. Nestes termos põem em evidência embates entre os direitos sociais e as normas de direito administrativo, confrontam direito à cidade e direito urbanístico e ambiental.

A “nota de corte” da legalidade em questões urbanísticas e ambientais

está muito acima das possibilidades do brasileiro médio.

Somente uns poucos conseguem colocar-se de acordo com o padrão

ideal que leis urbanísticas e ambientais visam atingir. Antes das recentes alterações

legais (que foram muitas) quase nada era possível ser feito daquilo que significasse

dar uma solução a verdadeiros dramas pessoais e familiares de tanta gente sem

moradia regularizada. Quase tudo o que se pretendia fazer em favor de regularização

fundiária ambiental e urbanisticamente sustentável era proibido por algum tipo de lei

ou norma inferior.

Era fundamental, então, encontrar “caminhos de legalidade” já que

fechar os olhos para essa impossibilidade de atingimento do ideal é que tem

contribuído para causar o atual expressivo passivo de irregularidade. Importava criar

uma “alternativa legal” que permitisse compatibilizar os múltiplos interesses em jogo

neste litígio aberto entre ambiente e moradia social.

Há ainda muito a ser feito no terreno da legislação e da formação de

uma cultura de regularização fundiária.

É com este debate que esta pesquisa pretende de alguma forma

contribuir. Se ela for utilizada para ajudar a ao menos tentar resolver problemas de

moradia e ambientais, já terá servido ao propósito.

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2 – INTRODUÇÃO O Estado de São Paulo tem apresentado grande expansão urbana e

industrial, especialmente nas últimas 6 décadas. No contexto brasileiro é o Estado

Federado que, sob o aspecto econômico, mais intensa e aceleradamente cresceu.

Este processo de intensa urbanização se deu de modo indiferente às

limitações e capacidade dos ecossistemas e recursos hídricos existentes onde o

progresso acontecia, o que gerou grande impacto ao meio ambiente e

comprometimento de diversidade biológica. Restam hoje poucas áreas de preservação

ambiental e a vegetação nativa foi severamente devastada. A Mata Atlântica, principal

ecossistema paulista, por exemplo, viu-se reduzida para cerca de 7% de sua

composição original.1

A preservação do meio ambiente tem sido, mais recentemente, neste

início de século XXI, intensa preocupação da raça humana. Evitar agressões ao

ambiente (mares, rios, lagos, mananciais em geral, ar, solo) constitui atualmente

obrigação de todo ser humano envolvido com qualquer tipo de atividade. A

preservação deveria ser, também uma obstinada busca por equilíbrio efetivo entre os

aspectos econômicos, ambientais e sociais do desenvolvimento.

Historicamente a deterioração das bacias hidrográficas, por exemplo, e

da qualidade de vida da população são resultados do processo de

extração/uso/consumo de recursos ambientais, a conseqüente geração de resíduos e

relações socioeconômicas desiguais.

Paralelamente ao crescimento desatento com a capacidade do

ambiente de auto-regenerar-se das agressões que ocorreriam, outro fenômeno

acontecia, mas de caráter social, efeito desse mesmo crescimento: enquanto boa

parte da população conseguia erigir sua moradia em locais adequados e dentro da

legalidade, outra parte promovia uma busca desesperada de uma alternativa de

moradia que acabou se dando no campo do mercado informal.

A moradia é, evidentemente, uma necessidade humana primária

indispensável. Sem ela não há qualidade de vida possível. O trabalhador precisa

abrigar-se depois da jornada de trabalho, já que não “desaparece” depois dela para

“ressurgir” no ambiente de trabalho no dia seguinte. Para algum lugar precisa dirigir-se

para renovar suas forças e recuperar sua capacidade de trabalho para a jornada

seguinte. E construir a moradia, base essencial da reprodução da força de trabalho, é

dos itens mais custosos do orçamento de qualquer família.

1 Dado existente no seguinte site, acessado em abril de 2008 http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/biomas/bioma_mata_atl/bioma_mata_atl_ameacas/index.cfm

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É exatamente o que prega Maricato (1988) afirmando que a habitação é

uma mercadoria especial, de produção e distribuição complexas. É a mais cara dentre

as mercadorias de consumo privado (roupas, sapatos, alimentos, móveis etc.).

Segundo ela, nem todo mundo pode ter automóvel, também uma mercadoria cara, de

consumo privado; mas todo mundo precisa morar de alguma forma, em algum lugar.

Exatamente por isto os salários precisariam ser suficientes para que as

pessoas pudessem, dentre todas as suas prioridades, arcar com a expressiva despesa

da construção da moradia ou o sistema de crédito precisaria funcionar a contento para

que o acesso à moradia fosse facilitado. Mas nem uma coisa nem outra aconteceu.

A polaridade do sistema entre capital e trabalho não pode compreender

apenas a reprodução do capital mas também a reprodução da força de trabalho;

quando salários pagos não são suficientes para a edificação da moradia, isto precisa

significar que salários não cobrem o custo da reprodução da força de trabalho.

Família que, com renda insuficiente, precisa enfrentar despesas com

alimentação, transporte e moradia além de todas as demais, termina priorizando seus

gastos com alimentação e transporte, indispensáveis à manutenção de sua fonte de

renda. O resultado disto é a auto-construção. Construção com recursos próprios na

medida do possível. É imperioso, nestas situações, o encontro de uma solução alternativa para a questão fundamental da moradia.

Essa alternativa nem sempre é digna. “Os pobres encontram as

seguintes saídas para essa necessidade: ocupação de áreas abandonadas ou, no

momento, sem maior valor imobiliário; morros, mangues, terrenos de marinha, aluguel

de habitações precárias e baratas, mais próximas do local de trabalho; cortiços e

habitações similares; compra de lotes baratos nas periferias distantes para a

construção de barraco ou casa própria.”2

Essa alternativa produz custos sociais importantes: “Via de regra a

população muito pobre, dada à insegurança de seus rendimentos, prefere ter um lote

onde possa construir sua moradia, ao longo de vários anos, com suas próprias mãos e

freqüentemente em regime de mutirão”.3 E não são poucas as dificuldades que essas

populações precisam vencer. “Construíram seus barracos em íngremes encostas, em

mangues e sobre palafitas, praticamente sem contar com nenhuma infra-estrutura,

carregando sobre os ombros ou na cabeça todo o material de construção. Tal esforço

2 Item 44 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral. 3 Item 40 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.

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exigiu, sem dúvida, muita criatividade na solução dos difíceis problemas

encontrados.”4

Não é possível desvincular então o fenômeno a auto-construção (ou

construção informal) assim como todas as suas conseqüências diretas dentre as quais

avulta o avanço sobre espaços ambientalmente protegidos, do fenômeno da

desigualdade das relações entre capital, trabalho e salário.

Por vezes a família se vê mesmo na contingência de fixar residência em

áreas que estejam fora do mercado formal. Áreas em que não haja disputa ou nas

quais a disputa se arrasta há muito tempo, por se tratar de área ou imóvel contestado

ou condominial. Nestas situações a moradia está então fixada em local do qual ela, em

condições normais, jamais conseguirá a propriedade, por se tratar de área invadida

(pública ou particular).

Uma das áreas que estão fora do mercado é exatamente aquela

declarada como sendo de “preservação permanente”. Hoje ela apenas integra o

mercado quando faça parte de um empreendimento fechado, hipótese em que uma

área de APP é fator de substancial valorização do empreendimento. Em se tratando

de empreendimento aberto, no entanto, ela é, para o proprietário, um estorvo; para o

empreendedor, uma dificuldade a mais para comercialização do empreendimento

(ninguém deseja perto da própria casa uma área “ocupável” por moradias de baixo

padrão); para a vizinhança, uma fonte de preocupações. Ou seja: elas só exercem

algum nível de atração para aqueles casos que esta pesquisa levanta.

Tais áreas, mercê de sua grande importância ambiental, são

designadas pela lei como “APP´s” (Áreas de Preservação Permanente), situação em

que se acham as margens de rios, a vizinhança de nascentes, o topo de morros e

outros locais especialmente protegidos.

Todo loteador é obrigado a doar uma parte da gleba loteável para o

Poder Público poder utilizá-la como área institucional (instalação de escola, creche,

posto de saúde, centro esportivo público, etc) ou como área de uso comum de todos

(praça, por exemplo). Como as áreas em APP não têm atrativo algum para quem

pretende lotear uma gleba (já que nelas não se pode legalmente construir), o loteador

que, dentro da gleba, possua uma parcela do imóvel em área de APP, prefere sempre

doar ao Poder Público exatamente essa área em APP para compor uma parte da área

que precisa ser doada.

Como o Poder Público donatário dessas áreas usualmente não possui

condições orçamentárias para cercá-las e nelas instalar um sistema de vigilância para

4 Item 55 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.

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evitar invasões, preservando assim sua futura destinação pública, elas se tornam

então altamente atraentes para quem pretende fixar residência em caráter informal.

Normalmente nelas se formam verdadeiros aglomerados de moradia

que com o tempo por vezes se solidificam. Se concretizam até mesmo a ponto de

inviabilizar a volta à situação sócio-ambiental anterior.

E com o tempo, petrificada a situação de um aglomerado habitacional

informal é, por vezes, lícito anseio das populações moradoras dessas áreas obter a

titularidade dessa posse, de modo a dar a ela algum valor jurídico que seja

transformável em valor de mercado e, como tal, ser transacionável, ser negociável.

Mas tais aglomerados geram quase sempre, fixados ou não em áreas

ambientalmente sensíveis, problemas ambientais às vezes severos que precisam ser

enfrentados. Em geral o despejo de dejetos e de lixo produzidos nessas moradias se

dá nas proximidades, no próprio ambiente ocupado. Havendo um manancial por perto

(como se dá nos casos aqui estudados) é ali mesmo que esses produtos são

lançados. E o que já em si é um problema ambiental, sendo despejado no rio causa

impacto ainda mais expressivo.

Essas moradias que formam pequenos, médios ou grandes

aglomerados, quase sempre se situam em áreas longínquas em relação à área central

da cidade, gerando áreas esquecidas como se não fizessem parte do ambiente

urbano. A pouca ou nenhuma visibilidade desses ambientes de moradia precária pelo

restante da população que tem o problema da moradia equacionado produz

desatenção para com estas áreas. A ausência de equipamentos públicos suficientes,

inexistência de saneamento, de viário oficial, de transporte e de outros serviços de

interesse público brutalizam a vida nessas áreas, causando impactos sociais

acentuados.

Em tais áreas não há, portanto, apenas problemas de ordem ambiental,

mas urbano e social.

Apesar do grande número de áreas em que este tipo de complexo de

problemas aparece, a regularização fundiária em áreas de APP vinha sendo ignorada

ou adiada por não haver consenso sobre qual o interesse prioritário a ser protegido: se

o direito de alguns à moradia ou o direito da maioria à fruição de um ambiente

saudável e ao consumo de água de qualidade. Esta omissão, esta morosidade no

enfrentamento e na solução do problema o agrava.

A solução para essas áreas costuma ser a concentração de esforços da

população local, da sociedade, do poder público e dos demais agentes envolvidos

nestas questões urbanas para que ali se dê a um só tempo não apenas a integração

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dessas áreas ao tecido urbano, a aproximação para convivência social, como também

o saneamento ambiental.

Ao ato de reconhecer a existência dessas áreas de moradia, trazendo

essas regiões para o mapa oficial da cidade, praticando atos tendentes a integrar a

área ao complexo urbano, munindo-o de um desenho urbano adequado, de

equipamentos públicos necessários e de transportes, reconhecendo a posse,

outorgando a propriedade ou concessão de uso aos moradores, se tem designado

“Regularização Fundiária”.

Mas como regularizar essa posse, reconhecer os direitos dessas

pessoas à moradia (direito, de resto, assegurado por normas universais de direitos

humanos e por normas brasileiras) nessas áreas ambientalmente protegidas e

permitir, com a eternização da moradia, a perenização da agressão ambiental?

Surgem, evidentemente, conflitos quando se pretenda legalizar a

situação de uma moradia situada em APP. Os que defendem essa legalização o

fazem porque reconhecem o direito à moradia (ou à habitação) e sua preponderância

sobre as questões ambientais; já os que se opõem buscam dar maior relevância às

questões ambientais e afirmam que a questão da moradia pode ser resolvida de

outras formas que não contemplem, necessariamente, a mantença daquele

assentamento residencial naquela área.

Pesquisar a gênese, os mecanismos e os agentes envolvidos neste

conflito; estudar métodos de regularização e verificar como a regularização fundiária

tem sido aplicada em Campinas (especialmente aos núcleos residenciais objeto desta

pesquisa) são os objetivos deste trabalho.

Uma pesquisa desta espécie precisa levar em conta, segundo

MARTINS (2006) aspectos técnicos, urbanísticos, jurídicos, fundiários e administrativos, tanto quanto o debate teórico da questão central – assentamentos irregulares em áreas de proteção – e do enfoque dado a ela por cada um dos campos disciplinares envolvidos. Situa-se desse modo na confluência de diversos campos do conhecimento: meio ambiente urbano, formação da periferia e habitação de interesse social, legalidade, ilegalidade e a natureza do direito urbanístico e ambiental.

Fique, todavia, desde logo, a lembrança de que este estudo não se

refere a todo e qualquer tipo de regularização fundiária, mas apenas àquela

regularização fundiária de um espaço de moradia situado em área de preservação

permanente (APP).

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3 – CONCEITOS INICIAIS Estaremos lidando, aqui, com expressões como “regularização

fundiária”, “direito à moradia”, “assentamento urbano consolidado”, “concessão de uso”

“habitação de interesse social” etc e a precisa definição do quê exatamente seja cada

uma delas parece ser indispensável.

3.1 – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – EVOLUÇÃO É curiosa a origem desta expressão que, se analisada com a separação

das duas palavras que a formam, não se presta de imediato ao entendimento de seu

verdadeiro significado.

Apesar de a regularização fundiária constituir uma espécie do gênero

“loteamento”, a Lei dos Loteamentos (6.766/79) não a previu nem mesmo nas

alterações que nela foram feitas. Ela prevê indiretamente as APP´s (na medida em

que no art. 3º. menciona áreas “non aedificandi” às margens das “águas correntes e

dormentes”) mas não utiliza a expressão “regularização fundiária” em nenhuma

passagem. O conceito de regularização fundiária apareceu apenas alguns anos

depois.

O histórico da regularização fundiária é indissociável da história recente

da luta pela reforma urbana no Brasil e é marcado pela atuação da sociedade civil

organizada: movimentos sociais, entidades profissionais, sindicatos e organizações

não-governamentais.

Bandeira de movimentos populares pelo direito à moradia, sua gênese

é, aparente e paradoxalmente, institucional. Se inicia em 1982, com a estruturação de

alguns órgãos institucionais pela regularização de loteamentos clandestinos e

irregulares, dentre os quais o “Núcleo de Regularização de Loteamentos Clandestinos

e Irregulares da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro”, uma demanda das

comunidades excluídas dessa cidade.

Inspirado dentre outros profissionais pelo Procurador do Estado Dr.

Miguel Baldez, este e outro núcleo – o Núcleo de Terras – passam a atuar em favor

da regularização de tais loteamentos, favelas e ocupações na capital bem como em

assentamentos rurais em Nova Iguaçu, Paracambi, Piraí e outras regiões daquele

Estado. As próprias comunidades organizadas coletivamente decidiam as prioridades

e encaminhamentos do Núcleo de Terras.

Quando somente se falava em remoção de favelas, tais núcleos

buscavam regularizá-las. Tinham o objetivo de centralizar informações fundiárias e

buscar na Justiça (já que ainda não havia lei garantindo direito algum à regularização)

uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico da época para se concluir pela

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possibilidade jurídica da regularização. A regularização se dava, então, por ordem

judicial.

“Regularização Fundiária” é um termo utilizado desde início dos anos 90

mas que tem sua origem legal na Lei 3532 de 06 de janeiro de 1983 do Município de

Belo Horizonte que, pioneiramente no Brasil, permitiu “regularizar favelas” desde que

“densamente ocupadas por população economicamente carente, existentes até o

levantamento planialtimétrico realizado no primeiro semestre de 1981.”5 Trata-se do

“Programa Municipal de Regularização de Favelas – PROFAVELA.”

Conforme nos lembra Pinho (1998) foi esta lei que pela vez primeira

criou um zoneamento municipal denominado “setor especial 4”, que seria “específica

para urbanização e regularização jurídica das áreas”. O segundo município brasileiro a tratar deste assunto em regramento

municipal foi RECIFE. Conforme a mesma autora à semelhança do que aconteceu em Belo Horizonte, a lei municipal de uso e ocupação do solo urbano (lei 14511/83) criou as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS – identificando-as como áreas de ocupação espontânea e consolidada, ocupadas por população de baixa renda, onde o Poder Público deveria promover ações destinadas à sua integração à estrutura urbana.

Também Fernandes(1998) afirma ter sido dessa cidade a iniciativa

pioneira que transformou em lei a preocupação da sociedade local com o desconforto

habitacional de tantos: (...) a lei que criou o PROFAVELA de Belo Horizonte, em 1983, foi pioneira ao propor um programa social de regularização das favelas, tendo introduzido uma fórmula original: a combinação entre a identificação e demarcação de favelas como áreas residenciais para fins de moradia social – inicialmente denominadas ‘setores especiais’ – no contexto do zoneamento municipal; a definição de normas urbanísticas específicas de uso, parcelamento e ocupação do solo em tais áreas; e a criação de mecanismos político-institucionais de gestão participativa dos programas de regularização. Esta fórmula acabou se tornando um paradigma seguido por diversos outros centros.

Parece importante deixar claro, portanto, que em seu primórdio a hoje

chamada “regularização fundiária” não era mais do que erradicar (ou remover) favelas

ou conformar uma determinada área da cidade (a favela) a um mínimo de urbanismo

que o restante da cidade já observava. Daí o nome “urbanização de favelas”. Consistia

apenas em dar a essas áreas um aspecto mais regrado, obediente, aformoseado. As

demais preocupações (especialmente segurança na posse e a questão ambiental) não

estavam presentes. A emergência da época era outra. 5 conforme previsto na aludida lei.

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Mera remoção de favela, sem maiores preocupações com as questões

sociais não solucionava problema algum (quando muito apenas transferia fisicamente

ou adiava o problema) porque focava na questão urbanística quando deveria focar a

questão social. “A política de remoção de favelas não atingiu os objetivos propostos. A

população não se adaptou às soluções oferecidas. Houve perda de renda familiar e

novos encargos com transporte e moradia. Em conseqüência muitas das famílias

removidas para os conjuntos ‘passaram as chaves’ de suas casas, retornando à favela

ou adquirindo lotes na periferia da cidade.”6

Leis urbanísticas e ambientais não permitiam a regularização de

praticamente nenhuma área. Ou as situações estavam inteiramente regulares

(conformadas às regras urbanísticas e ambientais) ou inteiramente irregulares. Não

havia regras que dialogassem com a realidade do modo de produção popular de

moradia que obedece a toda uma especificidade que a população moradora das áreas

“regulares” prefere não ver.

Para regularizar alguma coisa era preciso, portanto, desfazer o que

havia sido feito ou de algum modo adaptar às regras aquilo que havia sido produzido

informalmente. Adaptar a realidade à lei.

A moradia irregular era um grande incômodo a eliminar, especialmente

quando presente em áreas públicas, áreas verdes ou espaços ambientais legalmente

protegidos. A questão das APP´s não foi, portanto, o único campo em que o conflito do

direito à moradia se evidenciou. Era impensável permitir a continuidade de uma

moradia em qualquer dessas áreas.

Àquela época (décadas de 70, 80 e 90) as leis urbanísticas e as de

inspiração ambiental simplesmente proibiam qualquer tipo de intervenção em área de

APP. Regularização fundiária em área de APP era impossível. Configurava um

absurdo jurídico.

Foi apenas no ano 2000, com o direito à moradia constitucionalmente

entronizado e a modificação do Código Florestal três meses depois que a

regularização fundiária em área de APP passou a ser legal e juridicamente uma

possibilidade. E mesmo assim foram necessários mais 6 anos para que se elaborasse

a Resolução CONAMA prevendo os critérios para que essa intervenção para fins de

regularização fundiária em área de APP fosse inteiramente permitida.

A partir daí nasceu a regularização fundiária de assentamentos

irregulares e consolidados de moradia em áreas de APP que possui características

próprias.

6 Item 51 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.

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Antes de toda essa reformulação legal, conseguir permanecer em área

ocupada consistia verdadeira loteria: “Aqueles que moram em áreas do poder público

ou em bens de uso comum do povo (praças, áreas destinadas a equipamentos

sociais) têm, em alguns casos, conseguido algum benefício, após muita luta e

sacrifício. Outros têm sido expulsos, sem consideração.” 7

Existem dois históricos, portanto:

• o da regularização fundiária (com seus marcos em 1983, 1988, 1992, 2000 e

2001) e

• o da regularização fundiária em área de APP (com marcos comuns em 1992,

2000, 2001 e marco exclusivo em 2006) que somente no ano de 2001 (com o

Estatuto da Cidade) se tornou uma possibilidade jurídica para todo o país.

Durante cerca de 18 anos (1983 a 2001) só existiu como possibilidade

legal aquela regularização fundiária que não ensejasse qualquer intervenção em área

de APP.

Desde os anos 70, contudo, as ocupações para moradia em áreas de

APP se têm realizado, a despeito da (então) impossibilidade de regularização. Do ano

2000 em diante a regularização fundiária sustentável tem sido realizada no Brasil

inteiro. Conviveu-se, portanto, por praticamente 30 anos com essa realidade da

existência de assentamentos irregulares de moradia popular, consolidados, sem que a

Lei sequer se preocupasse em olhar de frente para ela, confrontando-a.

Três décadas praticamente perdidas nas quais, se a regularização

fundiária dessas áreas tivesse sido prioritária, talvez hoje já pudéssemos contar com

um acúmulo tal de conhecimento sedimentado que nos permitisse estar atuando há

bastante tempo na prevenção de novas situações.

Antes da Constituição Federal de 1988 predominava, nos meios

jurídicos e nas administrações municipais a visão legalista segundo a qual um imóvel,

para ser regularizado, carece adaptar-se integralmente às regras urbanísticas

(posturas) da localidade em que se encontra. Um imóvel construído em terreno

invadido sofreria dos defeitos congênitos próprios de quem não tem direito a

reivindicar. Quem construía em área ocupada precisava torcer para que os

proprietários do imóvel (quando se tratava de área privada) ou a administração pública

(quando se tratava de área pública) fossem tolerantes e condescendentes. Era a única

forma de não se verem expulsos da área, perdendo todo o investimento feito na

construção.

7 Item 41 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.

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Essa situação é lembrada por Pinho (1998): Apesar desses assentamentos habitacionais existirem há várias décadas, só no início dos anos 80 as administrações públicas, notadamente as municipais, passaram a elaborar e executar políticas voltadas à sua regularização. Já no final da década de 70, no plano federal, dois elementos parecem relevantes ao interesse público que então se avizinha: primeiro, o PROMORAR – programa governamental destinado a promover a oferta de moradia para a população de baixo poder aquisitivo – começa a prever alocação de recursos para urbanização de favelas. Depois a legislação de parcelamento do solo (Lei Federal 6766/79) é promulgada, trazendo em seu bojo, ao mesmo tempo em que determinava um tamanho mínimo para lotes na cidade, a possibilidade de lotes menores com padrão denominado de urbanização de interesse social.

A palavra “regularização”, não tinha, juridicamente, nenhuma relação

com a regularização fundiária de hoje porque significava a adequação dos imóveis às

leis urbanísticas que regulam o direito à edificação e seus limites ou significava

regularização dominial.

A “regularização” dominial tem lugar nos casos de Usucapião, que

reconhece a posse e declara a propriedade transformando o possuidor em

proprietário. A rigor jurídico, no entanto, salvo a situação de usucapião vintenário, não

havia como regularizar dominialmente uma posse de área com vício de origem

patrimonial. Posseiro era considerado apenas esbulhador e assim tratado. Era tratado

como autor de ilícitos civil e penal tanto o posseiro de área pública quanto o de área

privada (no caso da área privada, quando houvesse contestação).

O único que permanecia no imóvel sem maiores dificuldades (situação

que ainda é assim até hoje) era o posseiro de área privada quando não houvesse

contestação porque este, conforme o tempo passava, ia pouco a pouco adquirindo a

propriedade do bem por meio da usucapião.

Mas regularizar documentalmente a posse de uma área pública ou de

uma área particular nos casos de contestação era impensável. O detentor da posse

sabia da precariedade desta e que mais dia menos dia haveria de precisar deixar o

imóvel mesmo tendo construído sobre ele. Não havia chance de nele permanecer.

Não havia segurança na posse.

Hoje ainda é assim em relação ao imóvel particular nos casos em que

há contestação do proprietário em relação ao invasor, especialmente se aquele agir

logo, embora em casos de regularização fundiária haja, como se verá, possibilidade de

desapropriação do imóvel para entrega aos moradores, pagando-se o proprietário. A

regularização documental, dominial, tem caráter personalístico, o que significa que não

se refere ao imóvel mas à pessoa do proprietário.

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A regularização urbanística (regularizar imóveis “normais” que tinham

desatendido um ou outro aspecto da legislação urbanística) era possível mas não

questionava questões patrimoniais. A regularização urbanística tem caráter material, o

que significa que o objeto da regularização é o imóvel e não a pessoa de seu

proprietário. Essa a essência das “leis de anistia” da época. O que tais leis curavam

era a irregularidade da construção com as posturas municipais (construção

clandestina, que é aquela produzida sem licença, ou construção em desacordo com a

licença obtida) mas jamais a do título de domínio, que era resolvida em outras

instâncias.

Poucas municipalidades tinham preocupação com uma regularização

dominial até porque este assunto não costuma mesmo interessar ao poder público que

não precisa saber quem é que está pagando o tributo incidente sobre o bem, desde

que esteja sendo pago. Já um imóvel construído sem licença ou em desacordo com

esta não existe ou existe apenas “em parte” para a municipalidade; estando invadido e

não regularizado, não contribui para a cidade e para a economia. Mas esta noção de

que o imóvel poderia, se regularizado, estar contribuindo para o conjunto da cidade

não existia ou parecia não importar.

A preocupação quanto à regularização dos imóveis de posse irregular

(ocupações de áreas públicas e privadas) é bem recente e nasceu com uma

concepção de “urbanização”. Sensibiliza a sociedade somente a partir do final dos

anos 70 e amadurece legislativamente apenas na década de 80 e não nasce com

intenções tributárias (arrecadatórias).

A situação da irregularidade assumiu proporções de tal ordem que a

sociedade brasileira passou a viver de impasses e a conviver com índices altíssimos

de irregularidade de posse.

A partir daí a “não regularização” deixou de ser uma opção viável. A

regularização foi, em outras palavras, ao tempo em que surgiram as primeiras leis que

a possibilitaram, inevitável.

Ou seja: a regularização fundiária é, mais que necessidade, uma

imposição feita à sociedade pelos fatos.

Hoje a regularização fundiária aparece no Estatuto da Cidade como

“diretriz geral” e como “instrumento” e é igualmente prevista em outras passagens

desse texto legal. Assim,

• o inciso XIV do art. 2º. do Estatuto a considera uma dentre muitas “diretrizes gerais” da política urbana

• a letra “q” do inc. V do art. 4º. do Estatuto o chama de “instrumento” para atingimento dos objetivos dessa Lei

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• o inc. I do art. 26 a prevê como uma das situações (aliás, a principal) nas quais a administração pública poderá lançar mão do direito de preempção (preferência na aquisição de um imóvel)

• o inc. III do art. 35 igualmente a prevê como uma das situações em que a administração pública poderá lançar mão do instrumento da transferência do potencial construtivo ou do direito de construir.

Mais recentemente, a Resolução 369 do CONAMA trouxe toda uma

regulamentação a respeito da regularização fundiária em áreas de APP, conforme

veremos.

Assim regularização fundiária entrou definitivamente nas agendas

municipais e estaduais de política urbana; os entes federados estão desenvolvendo

amplamente programas dessa espécie.

MOVIMENTOS POPULARES Mas para se chegar à formulação constitucional desse direito e à sua

decomposição pelos diversos instrumentos legais posteriores (Estatuto, Resolução,

Leis Estaduais e Municipais, etc.), muitas lutas populares foram, evidentemente,

necessárias.

Os movimentos populares pela reforma urbana parecem ter tido origem

nos assuntos do campo. Na seqüência de uma a primeira reunião de lavradores para

tratar das bases da proposta de reforma agrária, em 1961, se esboça, em 1963,

segundo Maricato (1988) uma proposta de reforma urbana que ficou praticamente

restrita a um conjunto de pessoas e entidades de profissionais. Sem contar com

respaldo popular, o movimento desapareceu durante os temos de exceção política.

A década de 70, caracterizada por forte concentração urbana (migração

campo–cidade acentuada devido ao crescimento decorrente do período do sucesso

dos planos econômicos de 1967 a 1973), consolidou os processos de metropolização

das principais capitais do país, especialmente do sudeste e sul.

Nessa mesma década registrou-se pela primeira vez na história do

Brasil um decréscimo da população rural que caiu, em números absolutos, mais de 2

milhões de habitantes em relação ao total registrado no censo de 1960. Mais de 16

milhões de pessoas migraram, nesse período, do campo para a cidade.8

Apesar da amplidão das necessidades e das lutas urbanas, o debate da

questão urbana no Brasil parecia, nos anos 70, segundo Maricato (1988), sempre

atrasado e relegado a plano político secundário em relação às demais lutas políticas

operária e camponesa, o que a condenava à “diluição e indefinição”.

8 Sinopse do Censo Demográfico, FIBGE, 1981.

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No final dos anos 70 e início dos anos 80, a população favelada vinha

crescendo mais rapidamente do que o total da população urbana; a prática de

ocupação de terras torna-se atividade organizada, massiva e multiplica-se a cada ano;

é indiscriminada a abertura de loteamentos irregulares e, talvez pela existência dessas

alternativas, não se falava em crise habitacional.

Mas em 1980 a CNBB, por ocasião de sua 18ª Assembléia Geral,

analisando a situação do solo no campo alertava: “uma grande parte dos lavradores

migrou para as grandes cidades à procura de uma oportunidade de trabalho, indo

engrossar a massa marginalizada que vive em condições subumanas nas favelas,

invasões e alagados, em loteamentos clandestinos, cortiços e nas senzalas modernas

dos canteiros de obras da construção civil.”

Em seguida, em 1982, a mesma instituição, referenciando o solo urbano

já aludia (no documento ‘Solo Urbano e Ação Pastoral’ de sua 20ª. Assembléia Geral)

a que: “O Estado não exerce controle efetivo do desenvolvimento urbano, o que

proporciona irregularidades e clandestinidade na construção das cidades. O Estado

tolera gigantesca desorganização no tecido urbano, cuja correção exigirá

elevadíssimos custos pecuniários e sociais”. (parágrafo 42).

Mesmo assim, enquanto existiram as opções de favela, cortiços,

loteamentos clandestinos e irregulares, nenhuma “crise habitacional” eclodiu.

Todavia a Lei Federal 6.766/79 (“Lei Lehmann”), que trata dos

loteamentos irregulares ou clandestinos, foi fator de diminuição sensível da abertura

de novas loteamentos. E estes loteamentos, que constituíram, durante muitos anos

(acentuadamente a partir de 1940), uma alternativa importante de acesso à precária

casa própria por trabalhadores de classes populares, deixaram de existir como opção.

Segundo Maricato (1988) “a porta do pequeno lote na periferia desurbanizada foi

fechada e nenhuma outra foi aberta.”

Em 1983 o assunto começa a ocupar espaço na imprensa e quando a

dificuldade de acesso à moradia atinge a classe média, há uma clara consciência

social sobre ela, o que decorre, ainda segundo Maricato(1988) da crise econômica dos

anos 80 (com a recessão da construção e indisponibilidade de financiamentos

habitacionais) e da disputa da classe média por locações antes destinadas à

população de menor renda (até 5 salários mínimos).

A partir de então emerge a questão urbana e esta conjuntura permite a

configuração de condições básicas para o ressurgimento da bandeira pela Reforma

Urbana. De 1963 a 1983, portanto, foram 20 anos de represamento de conflitos

urbanos em que a questão não encontrava espaço democrático para o debate.

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Uma nova proposta da reforma urbana é produzida em 1987 e com ela

a possibilidade de apresentação de emendas de iniciativa popular (com pelo menos 30

mil assinaturas de eleitores de todo o país) à Assembléia Nacional Constituinte. Dentre

as 122 emendas populares apresentadas estava a que previa profundas modificações

na estrutura urbana, assinada por seis entidades nacionais (Articulação Nacional do

Solo Urbano, Federação Nacional de Arquitetos, Federação Nacional de Engenheiros,

Coordenação Nacional de Associações de Mutuários do BNH, Movimento em Defesa

do Favelado e Instituto dos Arquitetos do Brasil) e apoiada por 48 entidades estaduais

ou locais.

Esta Emenda Popular contou com cerca de 200.000 assinaturas e

contribuiu para a incorporação do capítulo da política urbana na Constituição e seu

conteúdo pode assim ser resumido:

• direito de propriedade e uso do solo: facilidade para desapropriação de grandes propriedades ociosas (com títulos da dívida pública, pagáveis em 20 anos); coibição de lucros especulativos (imposto progressivo, imposto sobre valorização imobiliária); usucapião especial urbano, discriminação das terras públicas, concessão de direito real de uso (mecanismos de regularização fundiária, embora esta expressão não apareça na Constituição); maior controle do uso do solo pelo Estado (urbanização compulsória, proteção urbanística e prevenção ambiental).

• Política habitacional: fixação de responsabilidades do Estado na promoção pública da habitação; eliminação de agentes privados nos programas habitacionais populares; equivalência salarial nos reajustes de aluguéis e prestações da casa própria.

• Serviços públicos: eliminação do lucro privado na exploração dos serviços públicos; tarifas compatíveis com salário mínimo;

• Gestão das cidades: participação popular na elaboração de planos urbanos; iniciativa popular para apresentação de projetos e para o veto a projetos legislativos apresentados.

Como se vê, o Direito à Moradia não esteve inicialmente previsto e

precisou ainda amadurecer por 12 anos para ingressar no texto constitucional.

Em outubro de 1988 se realiza o "Seminário Nacional pela Reforma

Urbana – Avaliação e Perspectivas", para avaliar as conquistas advindas da

Constituição e elaborar referenciais para o processo de elaboração das Constituições

Estaduais e Leis Orgânicas Municipais que se avizinhava. Setores das universidades,

ANPUR, órgãos municipais, movimentos populares, ONG´s, órgãos profissionais de

Arquitetos e de Engenheiros se articulam e concluem que as conquistas urbanas já

previstas na Constituição Federal eram ainda tímidas, principalmente porque a função

social da propriedade estava condicionada aos planos diretores.

Este é considerado o marco fundador e primeira reunião do Fórum

Nacional de Reforma Urbana (FNRU) no qual as diversas organizações da sociedade

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civil se articularam nacionalmente para atuar pela aprovação de importantes marcos

legais e institucionais como o Estatuto da Cidade, o Fundo de Habitação de Interesse

Social e o Conselho Nacional das Cidades e contribuir na construção da uma política

nacional de desenvolvimento urbano democrática e participativa.

Já em outubro de 1989 se reúne o 2º. FNRU, elaborando a carta de

princípios para orientar a elaboração das emendas populares, nas cidades, para a

formulação dos novos planos diretores.

O Fórum se descentraliza e articulam-se fóruns estaduais (regionais) e

municipais (locais) para influir nas discussões das Constituições Estaduais, Leis

Orgânicas e Planos Diretores. As leis orgânicas das principais capitais do país

contaram com emendas populares desses “fori”.

Os conflitos renascem em 1990 com a discussão no Congresso sobre o

PL 775/83 (Desenvolvimento Urbano) que 11 anos depois se converteria no Estatuto

da Cidade. O Fórum participou ativamente da discussão do projeto, elaborando

emendas.

Em 1991 o Fórum participa da preparação da ECO/92 que se realizará

no Rio de Janeiro. Realiza-se o 3º. FNRU que resolve organizar, em paralelo à ECO –

92, em parceria com redes internacionais, o Fórum Internacional pela Reforma

Urbana, dentro das atividades programadas pelo Fórum Global (da sociedade civil).

O 4º Fórum se realiza na véspera da Rio-92, quando se politizam as questões urbanas em relação às questões ambientais, defendendo a articulação

entre meio ambiente e questões urbanas. Elabora-se um documento básico

denominado "Nossas propostas para o Meio Ambiente nas Cidades", aprovado

pelas entidades brasileiras e submetido às entidades internacionais, quando se

transforma no Tratado por "Vilas, Povoados, Cidades Justas, Democráticas e Sustentáveis".

No processo de preparação da Conferência Internacional Habitat II (de

1996), nova mobilização acontece com a "Conferência Brasileira pelo Direito à

Moradia e à Cidade".

Concentram-se as forças dos movimentos em 1998 pela aprovação da

Lei de Desenvolvimento Urbano – Estatuto da Cidade - e do Fundo Nacional de

Moradia Popular pois se percebem condições concretas de aprovação, o que

efetivamente ocorre em 2000.

O Estatuto da Cidade, primeira Lei Federal a tratar do tema da

regularização fundiária utilizando esta expressão, foi outra conquista desses

movimentos.

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O Conselho das Cidades (ConCidades), criado em 2004, outro embate

vitorioso, é um órgão colegiado de natureza deliberativa e consultiva, integrante da

estrutura do Ministério das Cidades, constituído por 86 titulares – 49 representantes de

segmentos da sociedade civil (envolvendo o setor produtivo, organizações sociais,

OnG’s, entidades profissionais, acadêmicas e de pesquisa e entidades sindicais) e 37

dos poderes públicos federal, estadual e municipal – com mandato de dois anos e tem

por finalidade estudar e propor diretrizes para a formulação e implementação de uma

Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.

A liderança da sociedade civil demonstrou competência ao focar com

precisão seus objetivos no campo da reforma urbana, identificar com clareza os

entraves (especialmente os legais) que obstavam esses objetivos e na formulação de

estratégias para alcançá-los. Talvez tenha sido o mais bem-sucedido movimento

social brasileiro, pela eficácia demonstrada ao atingir seus objetivos (ao menos os

principais) em um espaço temporal bastante curto.

Essa competência foi demonstrada com a estruturação de um

movimento que:

• contou com ampla base social (apoio popular) vinculada às lutas urbanas: mutuários, inquilinos, posseiros, favelados, arquitetos, geógrafos, engenheiros, advogados etc.

• resumiu as principais aspirações dessa parcela expressiva da população urbana;

• suscitou o debate dessas questões • estimulou um certo acúmulo de proposições e reflexões, realizadas por aquelas

entidades

Alguns entraves identificados por esse movimento como “adversários”

das cidades foram:

• A propriedade privada praticada de forma individualista, algo selvagem, desconsiderando os interesses sócio-urbanos e ambientais locais. Era necessário “domesticar” a propriedade para torná-la dócil à cidade.

• A inexistência de um “direito à cidade” minimamente dedutível que permitisse a todos (e não apenas a alguns) a fruição dos benefícios que a vida urbana permite e a efetiva distribuição democrática dos serviços públicos (educação, saúde, transporte, etc).

• A inexistência de um direito à participação na governança da cidade que permitisse às classes populares corrigir distorções da democracia.

• sistema legislativo engendrado para priorizar o interesse daquela propriedade e tratar a legalidade e a gestão urbana como privilégios de poucos.

Daí porque o movimento teve, desde seu início, os seguintes princípios

básicos:

• “Direito à Cidade e à Cidadania”, universalização do acesso aos equipamentos e serviços urbanos, a condições de vida urbana digna e ao usufruto de um

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espaço e da participação ampla dos habitantes das cidades na condução de seus destinos.

• Gestão Democrática da Cidade entendida como forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades submetidas ao controle e participação social, destacando-se como prioritária a participação popular.

• Função Social da Cidade e da Propriedade entendida como a prevalência do interesse comum sobre o direito individual de propriedade, que implica no uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano.

Note-se que dentre eles não estava a regularização fundiária que surgiu

posteriormente como decorrência do primeiro desses objetivos do movimento.

De 1986 (aproximadamente) até 2006 (resolução CONAMA), em vinte anos de atividade do Movimento Popular pelo Direito à Moradia, um a um foram

removidos os obstáculos à regularização fundiária em áreas de APP. Como esta

possui três bases (propriedade alheia, moradia própria e ambiente de todos) três

alterações legais foram decisivas:

• Na Constituição Federal: Introdução da função social da propriedade, da usucapião (áreas privadas) e da concessão de uso (áreas públicas) e do direito à moradia na constituição federal

• No Estatuto da Cidade e em todo um conjunto de leis: usucapião (em todas as suas hipóteses) e concessão de uso especial para fins de moradia (áreas públicas)

• Fixação, por resolução, das hipóteses em que a regularização fundiária em áreas de APP é juridicamente possível.

Tantas e tão profundas alterações tornam admirável o movimento

popular pelo direito à moradia. Um movimento eficaz porque contava com causa justa,

apoio popular e articulação. O apoio político para essas alterações foi apenas

conseqüência. Todas foram conquistas da luta social e não fruto de um trabalho

meramente técnico. Os apoios, as pactuações, foram construídos e conquistados.

3.1.1 – CONCEITUAÇÃO Para Pinho (1998), na definição de regularização predomina o caráter

patrimonialista: regularização jurídica para “legalização” da posse e acesso ao

“domínio” (propriedade). O termo “fundiário”, do latim fundus, é utilizado como adjetivo relativo a terrenos. Assim, regularização fundiária é o processo destinado a tornar terrenos regulares para o cumprimento de determinado fim. No caso das áreas ocupadas por favelas, admitindo-se como fim a manutenção do uso para moradia, o processo de regularização fundiária compreende um conjunto de ações voltadas à regularização do domínio da terra em favor das famílias ocupantes. Tais ações são necessariamente associadas à regularização urbanística das áreas, de forma a corrigir situações de degradação e a introduzir parâmetros formais de regulação do uso e da ocupação do solo. Trata-se, pois, da consolidação – através de um instrumento formal – das situações

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de posse das famílias sobre a área e a incorporação dos assentamentos à estrutura urbana regulada.

Já Saule (2004) vê a regularização com olhos mais ambiciosos. Tem,

para ele, uma acepção abrangente, por referir-se não apenas a questões patrimoniais,

como ambientais, urbanísticas e sociais:

é o processo de intervenção pública sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar, para fins de habitação, a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária.

Esta designação, no entanto, não parece muito adequada para o objeto

que se pretende conceituar, pois o adjetivo “fundiário” termina por restringir por demais

o substantivo “regularização”, conforme mais adiante se verá.

Não é possível, todavia, desconsiderar que regularização fundiária é

parcelamento de solo. Diferenciado, mas é ! Feito como “regularização legal” de algo

que já foi de fato realizado, mas que carece de algum “rearranjo” para poder ser

incorporado (em um sentido de “ser recepcionado”) à cidade (dimensão urbana), à

cidadania (dimensão social), ao ambiente (dimensão ambiental) e à legalidade

(dimensão administrativa, regularização do loteamento).

É preciso, contudo, discriminar:

• regularização fundiária de assentamento existente em área que não afronte a

legalidade ambiental e

• regularização fundiária de assentamento existente em área de APP.

Esta última precisa previamente encontrar soluções para a questão

sócio-ambiental (ambiental no sentido de natureza) enquanto aquela se compraz com

soluções sócio-urbanísticas.

Parece evidente que mesmo o assentamento informal de moradia

emerso em área que não pertença a nenhuma APP não prescinde por inteiro de

cuidados ambientais se tomarmos a palavra “ambiente” em sua acepção mais ampla,

que inclui o ambiente urbano, construído.

Assim, uma regularização de assentamento erigido em espaço que

originalmente deveria ter sido preservado para constituir uma praça pública e que está

bem longe de qualquer área de APP precisará enfrentar questões ambientais (emissão

de ruídos, tratamento de esgotos, saneamento, destinação de resíduos) mas que são

de natureza diversa daquela regularização de um assentamento nascido e criado em

área de APP.

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Como sabemos que tanto o esgoto daquele assentamento de moradia

distante da APP como aquele que está totalmente ou em parte dentro de uma área de

APP serão fatalmente lançados no córrego, ribeirão, rio ou lado mais próximo, e que

tanto o esgoto de um quanto o esgoto de outro precisarão evidentemente ser tratados,

quando falamos de “regularização ambiental de moradia em APP” não estamos falando em encontrar soluções para o esgoto. Nem falamos de destinação de

resíduos, pois tanto o lixo de um quanto o lixo de outro, para não poluir, precisarão ser

recolhidos.

Quando falamos de “regularização de moradia em área de APP”,

portanto, estamos falando da APP e não do córrego, ribeirão, rio ou lago em cujas margens ela se encontra.

É importantíssimo, portanto, para entender os motivos todos da

controvérsia entre ambientalistas e urbanistas quanto a regularizar-se ou não

determinado assento que está no todo ou em parte em APP, ter clareza na distinção entre o objeto protegido e o elemento protetor. Diferençar bem o rio e a APP que

visa protegê-lo.

Teoricamente a existência de moradias em áreas de APP não é que

poluam o corpo d´água (pois as moradias que estão fora da APP também poluem),

mas que impedem (ou dificultam) que a APP continue a prestar, para os elementos

ecológicos que estão próximos dela, os “7 (sete) serviços ambientais” que os estudos

técnicos afirmam que ela presta e que são, como consta da própria lei 4771 (inc. II do

§ 2º. do art. 1º.):

• preservar os recursos hídricos • preservar a paisagem • preservar a estabilidade geológica • preservar a biodiversidade • preservar o fluxo gênico da fauna e flora • proteger o solo e • assegurar o bem-estar das populações humanas.

“Regularização fundiária de área em APP” pode, portanto, ser

conceituada como o procedimento público de recepção (integração) à cidade, à legalidade e à regularidade ambiental, de um parcelamento informal (clandestino ou irregular) de solo para fins de moradia de baixa renda, já consolidado, situado no todo ou em parte em área com algum tipo de restrição legal de caráter ambiental, para garantir a posse, estimular o exercício da cidadania, individualizar lotes, reconhecer a propriedade ou conceder o uso, com foco especial na recuperação da área de APP para que ela possa, tanto quanto possível, continuar ou voltar a exercer suas funções e serviços ambientais.

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3.1.2 – CONCEITUAÇÃO DE “REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL” A expressão “regularização fundiária de interesse social” soa

pleonástica, em primeiro momento, posto não parecer existir uma regularização

fundiária despida de interesse social. Esse interesse parece ser ínsito a toda

regularização desta espécie.

Utilizam-se as expressões “zona especial de interesse social” e

“habitação de interesse social” para estabelecer a diferença de tratamento legal que

pode e deve ser dada a este tipo específico de zona ou de habitação em relação à

zona e habitação em geral. A legislação precisa mesmo ser mais flexível –

diferenciada – nos casos das zonas e habitações de interesse social exatamente por

dizerem estas respeito à zona ou habitação que atende aos interesses das classes

menos favorecidas da sociedade (classes populares) e que de outra forma não teriam

como atender às exigências de uma legislação urbanística geral.

Ou seja: embora o tema “habitação” possa ter conotação única e todos

os membros da sociedade careçam de habitação como requisito primordial para que

posteriormente cada um possa assumir seus compromissos com a busca individual da

felicidade, há habitações e habitações. A sociedade cunhou, para melhor atender os

interesses habitacionais de uma determinada parte da população, a expressão

“habitação de interesse social” que diz respeito àquela habitação destinada a classes

populares. Assim, conquanto o assunto “habitação” tenha sintonia com o interesse

público que consiste, neste particular, em a sociedade empenhar-se por criar

mecanismos que favoreçam cada família a conquistar uma habitação, um abrigo, a

expressão “habitação de interesse social” tem sentido porque se refere a um tipo

específico de habitação: aquela que atende aos interesses de uma determinada classe

de pessoas.

Desta forma, quando falamos em mecanismos econômicos, por

exemplo, que favoreçam o incremento da construção civil, para atender às

necessidades de abrigo de famílias de classes média e alta, estamos falando em

interesse público. Mas não há apenas interesse público no fomento à criação de

mecanismos que favoreçam a construção de unidades habitacionais para atender às

classes populares: aqui se evidencia também o interesse social.

O mesmo acabou acontecendo quando se fala hoje em regularização

fundiária. Não existem dois ou mais tipos de regularização fundiária. A regularização é

uma só. Sendo todavia apenas uma e tendo ela sempre uma conotação nítida de

interesse público, há regularizações que não se destinam a classes populares. Há

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municipalidades que utilizam, hoje, a mesma legislação da regularização fundiária

para regularizar áreas de distritos industriais ou de distritos sanitários. Então, quem se

refere àquela regularização que alcança sobretudo os interesses de uma categoria

frágil, vulnerável, como é a classe popular, se está referindo a uma “regularização

fundiária de interesse social”.

Hoje encontramos até mesmo em Lei Federal a conceituação de

“regularização fundiária de interesse social”:

Dec. Lei 9760 de 1946 Art. 18-A (...) § 1o Considera-se regularização fundiária de interesse social aquela destinada a atender a famílias com renda familiar mensal não superior a 5 (cinco) salários mínimos. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)

Todavia, a despeito da conceituação legal – por demais simplista, por

levar em conta apenas um determinado aspecto objetivo – desse tipo de conduta

solidária da sociedade para com os ocupantes de áreas para fins de moradia, essa

delimitação dos elementos da regularização fundiária ainda está acontecendo. Se a

própria designação “regularização fundiária” carece de precisão terminológica, a

conceituação de “regularização fundiária de interesse social” está longe de ser

afirmada em todas as suas nuanças. Há ainda um extenso caminho de evolução

conceitual a trilhar.

3.1.3 – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – DIVERSAS DIMENSÕES Assim como outros institutos de direito urbanístico, a regularização

fundiária se iniciou com uma determinada finalidade para posteriormente assumir

importância crescente até se chegar à regularização fundiária plena, abrangente de

soluções sociais, urbanísticas, econômicas e ambientais. Resultado desse progressivo

incremento de outras dimensões àquilo que inicialmente se pensava (regularização de

favela, por exemplo) é que hoje se encontram na literatura especializada sobre o

assunto regularização fundiária diversas “espécies” de regularização. Elas costumam

ser estudadas nas suas mais variadas dimensões, separadamente.

A regularização fundiária “tradicional” (feita à época em que as

preocupações ambientais ainda não haviam incorporado e dominado as agendas

administrativas e políticas do mundo todo) podia ser elaborada sob os enfoques a

seguir, conforme a ênfase para este ou aquele dos múltiplos aspectos envolvidos na

questão.

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DIMENSÃO ESSENCIAL (OU DIGNITÁRIA) Diz respeito à dignidade mínima constitucionalmente assegurada a todo

cidadão. Ao reconhecer-se a existência de um assentamento precário e informal,

enquanto a questão da continuação ou não do grupamento naquele local é objeto de

debate, importa reconhecer a condição humana dos ocupantes e lhes fornecer água e

luz, minimamente. A água pode provir de caminhões pipa e a luz pode limitar-se a

alguns pontos estratégicos da área ocupada.

É necessário ficar esclarecido que essas medidas são meramente

paliativas e tomadas a título precário, para durar apenas o tempo de discussão da

permanência ou não do grupo naquela área e que não representam reconhecimento

de qualquer direito dos ocupantes de permanecer no local.

Estas providências são necessárias apenas para o período em que a

ocupação não se torna sedimentada, consolidada porque caso essa consolidação

aconteça, não restará mais que reconhecer a situação como tal e instalar em caráter

definitivo aqueles serviços (água e luz) que são evidentemente o mínimo exigível.

Não deve haver nenhuma ocupação desprovida desses serviços

públicos – mesmo que a título precário. Não se trata, aqui, de preocupação social, que

precisará ser objeto de todo um cuidado posterior, com cadastramento das famílias,

identificação de necessidades, atendimento o mais possível à demanda ensejada por

essas necessidades, geração de renda, etc. Trata-se apenas de garantir que os

ocupantes dessas áreas não se vejam privados das condições mínimas de vida digna

às quais todo ser humano, em qualquer condição pessoal ou social e em qualquer

situação que seja, tem direito.

DIMENSÃO DE SEGURANÇA NA POSSE Neste modelo o que se pretende quase que unicamente é garantir aos

ocupantes dos lotes a permanência no local em que se encontram. Este tipo de

providência tranqüiliza os moradores e permite que progressivamente outras medidas

sejam posteriormente tomadas no objetivo último de garantir o domínio desses

moradores sobre seus lotes.

Isto é mais fácil quando a área ocupada é pública, pois as providências

(que costumam ser as “permissões de uso”) cabem apenas ao ente público. Algumas

municipalidades chegaram, nos anos 70 e 80 (e Campinas assim também procedeu) a

expedir decretos de “permissão de uso coletivo” em caráter emergencial, apenas para

outorgar aos moradores mínimas garantias de não remoção da área ocupada.

A permissão de uso que visa apenas dar alguma garantia jurídica à

comunidade tem caráter precário e é feita para permitir-se à municipalidade maior

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prazo para, mais detidamente, estudar as medidas necessárias para uma

regularização mais completa. A idéia de “segurança na posse” posteriormente assumiu

relevância maior e evoluiu como conceito para abranger procedimentos mais

complexos que atingem até mesmo a “segurança no domínio”.

DIMENSÃO URBANÍSTICA Antes de aparecerem as primeiras leis que tratavam ou de programas

de “regularização de favelas” (primórdios do que hoje se conhece por regularização

fundiária) ou da regularização fundiária tal como hoje a conhecemos, a

“regularização”, que deste procedimento resultava, ou tinha foco em resolver questões

ligadas à estética, segurança e conforto, bem como à integração da área ao

arruamento da cidade, circulabilidade, arejamento dos espaços ocupados pelas

habitações, eliminação de riscos e instalação de equipamentos públicos, dentre outros

melhoramentos, ou visava apenas garantia na posse com outorga de direitos básicos.

Mas sempre melhoramentos urbanísticos que tinham, claro, inspiração social.

Já ficou dito que ao final dos anos 70, quando se começou a pensar em

melhorar a qualidade de vida dos habitantes de favelas, não se levavam em conta

aspectos ambientais. Por preocupações meramente sociais é que se pensava nas

questões urbanísticas e se visava dar à área atendida uma aparência aceitável de

“cidade” para que as pessoas pudessem continuar ali vivendo em condições menos

indignas.

Quando a regularização se faz com caráter meramente urbanista o que

se busca basicamente é dar ao local, normalmente tomado por caminhos e ruas

estreitos e sinuosos, uma “conformação mais adequada”, um assemelhamento à

cidade, com arruamentos, alargamentos e transitabilidade com escoamento de águas

pluviais; nos casos em que a regularização tem sobretudo este enfoque, a

preocupação maior não é solucionar qualquer problema social, ambiental ou

patrimonialista; é sobretudo dar à área mínima conformação às normas urbanísticas

vigentes naquela comunidade, embora amaciadas e mais palatáveis.

Interessante, contudo, a construção jurídica feita por Staurenghi (2000)

a partir da análise do art. 2º. Estatuto da Cidade. Para ela o objetivo de “conformar às

regras urbanas o espaço a ser regularizado” é muito modesto. O objetivo da regularização fundiária, no que toca ao Estatuto da Cidade, deve ser o de adequar os assentamentos ilegais de população de baixa renda ao modelo de ambiente urbano sustentável, definido como aquele que gera direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte, os serviços públicos, trabalho e lazer para a presente e as futuras gerações (Estatuto da Cidade, art. 2º., inciso I). (...)

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Da mesma forma, a regularização deverá • corrigir as distorções do crescimento urbano • corrigir os efeitos negativos do crescimento urbano sobre o meio ambiente (art. 2o., inciso IV), • evitar o uso excessivo ou inadequado em relação à infra-estrutura urbana (art. 2o., inciso VI), • garantir a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população (art. 2o., inciso V), • zelar pela proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (art. 2o., inciso XII).

A ser realmente assim, como parece ser, a regularização fundiária

atingirá objetivos muito mais saudáveis para o conjunto da comunidade urbana.

DIMENSÃO SOCIAL Já na regularização fundiária que tenha olhos postos primariamente em

questões sociais, se mantêm as condições originais morfológicas daquele espaço de

moradias, mas se procede ao fornecimento mínimo de água (mesmo que

improvisadamente) e luz (ainda que apenas em determinados pontos) e à instalação

de equipamentos sociais importantes como escola, centro de saúde, creche, etc; se

busca garantir renda para as famílias envolvidas, de modo a permitir progresso social

para os ocupantes da área; não envolve necessariamente questões urbanísticas,

documentais ou ambientais.

DIMENSÃO ADMINISTRATIVA Nada impede que em alguns casos a municipalidade promova desde

logo, enquanto se aguarda o início ou o desenvolvimento de todo o procedimento (por

vezes moroso) da regularização fundiária à regularização administrativa, que consiste

em reconhecer aos moradores o direito que todos temos a “um endereço”. Nomear as

ruas, mesmo que provisoriamente, transformando aquele endereço de fato em

endereço de direito, fornecer um CEP, já são atitudes de respeito do poder público

aos ocupantes da área. Trata-se de providência rara que poderia ser largamente

utilizada como instrumento de encaminhamento à regularização.

DIMENSÃO LEGAL Aspectos ligados à legalidade estão evidentemente sempre presentes

também quando se regulariza o aspecto urbanístico (com remodelação do

assentamento e fornecimento de serviços públicos) e quando se regulariza a questão

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fundiária com a outorga de escrituras ou de concessão de uso especial para fins de

moradia.

Mas na dimensão especificamente “legal” o que se busca é resolver a

questão da existência legal do “loteamento” junto ao cartório competente para que

aquela área inteira (que tem um número de registro em cartório que a identifica como

área inteira) possa ser legalmente fracionada (embora de fato já esteja) para que

possam ser abertas tantas matrículas (registros) quantos lotes individuais existam

naquela área, individualizando esses lotes perante o cartório para que possam ser

objeto de propriedade para seus moradores. É a única forma legal de transformar cada

família em proprietária de seu lote individual e seus pósteros em herdeiros.

DIMENSÃO FUNDIÁRIA

Também chamada de regularização fundiária jurídica, dominial ou

patrimonial, a preocupação, aqui, já tem caráter bem diverso, por buscar

especialmente respeitar o direito dessas pessoas à propriedade com outorga de

escrituras públicas de propriedade ou de concessões (não meras permissões) de

direito real de uso (conforme se trate de área privada ou pública, respectivamente)

sem levar em excessiva conta os demais aspectos sociais e urbanísticos da questão;

a preocupação aqui é precipuamente dominial para garantir definitivamente a posse,

elemento que é da propriedade; preocupação marcadamente ligada, portanto, a

princípios de segurança da posse.

Mas é equívoco confundir “segurança na posse” de um imóvel com

“direito ao domínio” deste mesmo bem. Aquela diz respeito ao direito de não ser

compelido a abandonar o imóvel, que equivale ao Direito de somente ser alijado da

posse havendo outra opção de destinação. Direito de ser mantido na posse do imóvel

ocupado. Mas este direito não envolve necessariamente o direito à propriedade

(domínio) deste bem, que é algo que se deve resolver posteriormente àquela questão

ligada à posse. É de boa cautela que primeiro se resolvam questões de posse para

depois se tentar equacionar a questão da propriedade.

Encarando-se a moradia como um direito, o risco da retirada forçada

dos possuidores de uma determinada área, especialmente quando de há muito

ocupada e consolidada, deveria ser mínimo, salvo evidentemente situações de risco

pessoal ou ambiental grave. O direito à permanência no local ocupado é importante

mas o direito à propriedade é o objetivo final da regularização fundiária. O direito a

receber documento de propriedade ou de concessão deve consistir no objetivo último

e mais importante do trabalho de regularização fundiária.

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DIMENSÃO AMBIENTAL Aqui é preciso distinguir entre assentamentos que estão no todo ou em

parte em área de APP e que apresentam, por isto mesmo, implicações ambientais,

daqueles assentamentos que estão fora desses espaços ambientais especialmente

protegidos.

Em ambos a preocupação ambiental estará presente, uma vez que

tanto um assentamento quanto outro serão inevitavelmente fontes poluidoras (lixo,

esgoto e outros resíduos).

O problema é que quando falamos em “dimensão ambiental” logo que

pensa em assentamento que está em área de APP porque não costumamos

reconhecer o ambiente construído como parte do “ambiente” como ele efetivamente é.

Assim, apesar de na regularização fundiária de assentamentos postados fora de áreas

de APP estar necessariamente presente a preocupação com a destinação de lixo e de

esgoto (por exemplo) e isto configurar evidentemente um aspecto “ambiental” dessa

regularização, não costumamos denominar essa dimensão de “ambiental”.

A “dimensão ambiental” somente aparece, portanto, na literatura, como

aquela em que a regularização fundiária é de assentamento que está em área de APP

o que é uma impropriedade, já que por exemplo a mesma questão deverá estar

presente quando se pense em regularização de uma área destinada a ser “área verde”

de um condomínio, que terminou ocupada para fins de moradia.

Foi ao final dos anos 90 que se passou a falar na dimensão ambiental

no contexto da regularização. E como ela não é a dimensão última a enfrentar, mas

aquela que deve ser por vezes equacionada antes mesmo ou contemporaneamente

com a questão urbanística, hoje a questão ambiental, na regularização fundiária,

costuma ser um dos pontos iniciais ou intermediários do processo de intervenção.

Dependendo da área, é necessário priorizar a questão ambiental de modo a atendê-la

antes mesmo de se abordar questões urbanísticas.

Perceba-se, pelo texto a seguir transcrito, como no final dos anos 80 e

mesmo em meados dos anos 90 a questão ambiental não era, ainda, suficientemente

amadurecida para ser colocada como requisito necessário para a regularização

fundiária. É um texto de Pinho(1998): As legislações de interesse social para áreas ocupadas trazem como princípio básico para as intervenções de regularização urbanística e jurídica a garantia de que estas se efetivem respeitando as características e tipicidade das ocupações. Por “característica” e “tipicidade” entende-se o conjunto de elementos de natureza urbanística surgido com o processo de ocupação e de consolidação da população na área. Diz respeito à forma utilizada na ocupação dos ´lotes` e suas dimensões, à formação do sistema viário e demais áreas de convívio público. Assim, o processo de regularização

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fundiária (jurídica e urbanística) deverá observar, tanto quanto possível, as características da ocupação espontânea dos assentamentos, razão pela qual constam das leis de interesse social dispositivos excluindo a aplicação nessas áreas de outras normas municipais que porventura lhe sejam conflitantes. É norma especial e, assim, prevalente sobre demais normas gerais do município, salvo no caso de a lei orgânica e do plano diretor por serem hierarquicamente superiores.

Diante da nova realidade jurídico-legal brasileira, estabelecida pela

Constituição Federal de 1988, a regularização fundiária não pode limitar-se à

regularidade do título de domínio nem à questão urbanística porque o direito de

propriedade é garantido apenas quando atende a sua função social (art. 5o., incisos

XXII e XXIII da Constituição Federal). E “atender à função social” consiste hoje em

integrar no processo os aspectos urbanísticos, sociais e ambientais.

Se o Poder Público, com a regularização, irá transformar um posseiro

em um proprietário, cumpre lembrar-se de que proprietários têm compromissos com a

cidade e com a sociedade decorrentes do fato de a propriedade urbana precisar

cumprir funções sócio-ambientais. Logo, a regularização fundiária não pode,

legalmente, desprezar preocupações ambientais que a todas as propriedades

(inclusive às decorrentes de regularização) são impostas pelas leis brasileiras.

Oliveira e Staurenghi têm a mesma visão em relação a esta

interpretação das leis aplicáveis a este tema: É ínsito ao direito de propriedade o ser ele exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam protegidos os elementos ligados à flora, à fauna, às belezas naturais, ao equilíbrio ecológico e aos patrimônios histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (Código Civil, art. 1228, parágrafo 1o.).

O processo de regularização fundiária precisa ter por objeto transformar

o possuidor em “dominus”. Há de enfrentar,então, não só os problemas ligados ao

título de domínio, como todos os aspectos diretamente ligados à propriedade

juridicamente considerada, o que compreende os aspectos sociais, econômicos e

urbanísticos, sem descurar dos ambientais.

Sendo a questão ambiental um dos elementos da “regularização

fundiária sustentável”, as mesmas dificuldades com as quais depara quem pretenda

conceituar “ambiente”, migram para o conceito dessa regularização. Não basta então

afirmar que o direito a um ambiente saudável é universal, indivisível em suas

dimensões e atemporal. É preciso ainda reconhecer que esse direito está em

movimento; não é, ainda, senão opus incertum, circunstância que contamina, por

contato, a noção de regularização fundiária ambientalmente sustentável, produzindo

imprecisões que dificultam a regularização.

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Uma propriedade urbana nascida de uma regularização fundiária é uma

propriedade igual a qualquer outra e precisa igualmente atender àqueles requisitos

preservadores dos interesses do ambiente.

O problema é saber em quê consiste essa preservação. Não significa

apenas tratar esgoto e destinar lixo e outros resíduos. É muito mais que isto.

Consiste especialmente em encontrar soluções efetivas para que a APP não seja

privada nem no todo nem em parte do exercício de seus serviços ambientais.

E isto se pode conseguir com:

• remoções (e reassentamento preferencialmente na mesma gleba) que sejam indispensáveis para que a APP esteja “livre para funcionar, cumprindo suas funções”.

• Recuperação das as áreas de vegetação e de matas (mesmo as ciliares) quando ambiente ainda existe e pode ser recuperado - recuperação

• reposição no próprio local (quando irremediavelmente perdidas) – mitigação • reposição em área próxima se a conformação do assentamento não permitir

que se faça no mesmo local. - compensação

Repor a vegetação da APP para futura utilização como área de lazer

pelas famílias, com baixo impacto ambiental, por exemplo, é também outra medida

que parece importante.

É evidente que estamos falando de situações em que isto seja possível.

Há locais, como se vê por exemplo em determinados espaços da Grande São Paulo,

em que o córrego foi canalizado e as casas foram construídas sem distanciamento

algum de suas margens, quando não por sobre o córrego mesmo, sem que se possa

até minimamente identificar, visualmente, por onde é que passa o córrego. Ele

desapareceu. Nesses locais é preciso reconhecer a realidade: a APP deixou de existir

e de exercer suas funções há várias décadas e pode ser altamente questionável se é

realmente importante fazer as moradias recuarem em relação ao leito desse curso

d´água.

Em casos tais, que são extremos e felizmente não tão comuns, a

solução haverá de ser permitir recuos diferenciados para que a regularização possa

ser feita. Mas solução desta espécie precisa configurar a exceção.

Como tais casos são muito diferenciados e constituem realidade em

algumas poucas municipalidades, avulta ainda mais em importância reconhecer-se o

predomínio do interesse local.

É caso típico de “peculiar interesse” daquele determinado município

(salvo, evidentemente, nos casos em que o córrego alcança outros municípios, caso

em que o licenciamento estadual precisará ser feito), razão pela qual é preciso

avançar para o licenciamento municipal com os cuidados que a lei atual já exige e que

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consistem em conselho de meio ambiente com poder deliberativo e plano diretor (§ 2º.

do art. 4º. do Código Florestal).

O único reparo que se faz é que por se tratar de problema urbano e

ambiental contemporaneamente, a lei federal deveria exigir “conselho paritário urbano

e de meio ambiente” permitindo assim que ambas as perspectivas (a ambiental e a

urbana) estejam garantidas nessas discussões de regularizar ou não essas áreas.

3.1.4 – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PLENA Regularização fundiária não se faz sem critérios. Não basta, como já se

fez na municipalidade de Campinas, dar às pessoas que moram nessas áreas uma

“permissão” de uso, uma “garantia de permanência” que em nada modifica a essência

do problema que se expressa na tríade 1- desconformidade urbana, 2- invisibilidade

social e 3- degradação ambiental.

A modalidade “plena” (ou “integral”) envolve, por óbvio, o mais possível,

todos estes aspectos. Com ou sem primazia a qualquer deles, mas os envolve a

todos.

Note-se que quando se falava, por volta do ano 2000, em “regularização

fundiária plena” não se previa, ainda, o equacionamento das questões ambientais. As

preocupações sociais, urbanísticas e legais prevaleciam. Com a força invencível das

questões ambientais que se tornaram prioridade das prioridades, essa questão

terminou sendo incorporada definitivamente à discussão sobre regularização fundiária,

de modo permanente.

O principal problema da regularização fundiária tal como vem sendo

realizada no Brasil é que, detonado o processo de regularização, se enfrentam – e se

resolvem na maior parte dos casos – os problemas urbanísticos da área que se

pretende regularizar; em seguida se enfrentam e por vezes se conseguem resolver os

problemas de ordem ambiental daquela área; mas quando se chega ao final, no

momento de entregar aos moradores o título de propriedade ou o documento –

qualquer que seja – que signifique de alguma forma a titulação do bem para que eles

se possam sentir seguros quanto à posse ou garantidos quanto à propriedade, a

regularização empaca.

Com sua habitual capacidade analítica, Fernandes (1998) constata,

depois de pesquisar a forma como a regularização tem sido feita no que toca à

legalização, que (...) Com todas suas limitações, tais programas têm sido mais bem sucedidos no que se refere às políticas de urbanização no que diz respeito às políticas de legalização (...).

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São poucas as regularizações fundiárias que realmente chegam, no

final, a ponto de dar aos possuidores uma garantia de propriedade (se a área ocupada

é particular) ou de concessionário (se é área pública).

Problemas complexos de ordem jurídica costumam antepor-se entre o

ocupante e o documento, impedindo a fruição dos direitos constitucionalmente a ele

assegurados.

A partir desta constatação, operadores de regularização fundiária de

diversas áreas começaram a manifestar-se no sentido de que “regularização fundiária”

que se preze, precisa ser plena. Ou é tudo ou não valeu por inteiro todo o esforço

desenvolvido pela sociedade para que aquela regularização fundiária acontecesse. À

tarefa de, com obstinação, acompanhar a regularização até que ela documentalmente

se expresse em benefícios efetivos para os moradores, se tem costumado chamar

“regularização fundiária plena.”

Esta tem, portanto, por pressuposto, que a regularização fundiária deva

sempre ser buscada no seu contexto inteiro atingindo não apenas suas dimensões

social, urbanística e ambiental, mas igualmente fundiária.

Falar, portanto, em regularização fundiária plena é utilizar uma

expressão até certo ponto pleonástica, já que não se concebe, hoje em dia, uma

regularização fundiária que não seja “plena”. O termo regularização fundiária, tenha ou não a área a ser regularizada comprometimentos ambientais, já abrange,

mesmo, essa “integralidade”, essa inteireza reclamada pelos que a defendem.

A regularização fundiária apresenta, portanto, necessariamente as

dimensões:

• Urbanística – rearranjo espacial, remodelação, afastamento dos riscos

• Social – instalação de serviços mínimos e de equipamentos públicos e sociais.

• Ambiental – saneamento, afastamento e tratamento de esgotos, destinação de

lixo e outros resíduos, recuperação ambiental com medidas de efetiva proteção

à APP.

• Administrativa – reconhecimento da existência física das moradias, com

nomeação do arruamento, objetivando reconhecer o endereço dessas

pessoas.

• Legal - regularização documental do fracionamento de solo perante o cartório

competente, individualizando legalmente os lotes.

• Fundiária – jurídica, documental, com outorga de título dominial (escrituras ou

concessão de uso especial para fins de moradia).

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Se antigamente a regularização fundiária abrangia apenas um ou outro

dos múltiplos aspectos que hoje a informam, atualmente ela assume uma

complexidade maior, ante a maximização das exigências da própria sociedade para

que ela se materialize.

Se antes as questões urbanísticas não eram prioritárias, ou as questões

sociais ou ambientais poderiam, em uma regularização, em nome da economia de

recursos, ser considerada de menor essencialidade em uma regularização fundiária,

hoje esta atividade não se contenta com o olhar centrado em apenas um ou dois deste

múltiplos aspectos.

De um lado exigências de cidadania assim determinam e de outro

deveres do administrador – especialmente os atinentes ao exercício das atividades de

administração pública com observância dos critérios de legalidade e moralidade, que

informam a probidade – também o exigem.

A regularização fundiária, que antes tinha algum sentido mesmo quando

na sua formulação simplificada, precisa atualmente conter uma preocupação

“urbanística, social e ambientalmente sustentável”. Para que a regularização fundiária

aconteça com critério, equilíbrio e responsabilidade, é preciso atentar para suas

dimensões de sociais, urbanísticas e ambientais, culminando com a dimensão da

propriedade.

Este também o entendimento de Staurenghi (2003): (...) o processo de regularização fundiária deve enfrentar não só as irregularidades do título de domínio, mas todos os aspectos que qualificam a propriedade, atendidos especialmente os aspectos ambientais, urbanísticos e sociais.

O ponto final de uma regularização fundiária precisa ser a entrega do

título dominial, que pode ser tanto a escritura definitiva – se a área for privada – ou a

concessão do direito real de uso, caso seja pública. Depois, apenas providências de

pós-regularização, avaliação e controle.

Do até aqui exposto se percebe que a designação “regularização

fundiária” não é muito feliz, por não referir de modo abrangente a todo um complexo

de soluções que pode e deve ser elaborado quando se pretender integrar efetivamente

à cidade um assentamento informal e consolidado de moradias. Por quê referir apenas

ao aspecto “fundiário” de uma regularização que tem hoje muito maior abrangência?

O lado “fundiário” da regularização é apenas um dos múltiplos aspectos

de uma regularização que visava precipuamente integrar urbanisticamente uma área à

cidade e, na questão fundiária (documental, jurídico-administrativa), fornecer aos

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possuidores da área um documento que lhe permitisse negociá-la ou dá-la, por

exemplo, em garantia de pagamento de mútuos, como é lícito fazer a quem é

proprietário de um imóvel.

Hoje se toma a parte pelo todo, falando-se em “regularização fundiária”

para designar uma regularização que abranja aqueles aspectos todos e que atinja à

sua destinação de resolver documentalmente a situação.

Vingou a expressão “regularização fundiária” (hoje largamente utilizada

nos meios em que ela opera e efetivamente consagrada até mesmo em textos legais)

talvez porque a dimensão fundiária seja naturalmente a última a ser efetivada, pois as

dimensões urbanísticas e ambientais têm necessariamente precedência lógica. Falar

em regularização “fundiária” é falar no objetivo último a atingir.

A exemplo de quem, querendo descer em um ponto intermediário do

trajeto, se utiliza do ônibus que traz o nome do ponto final, também quem começa um

projeto de regularização, mesmo procurando realizá-lo apenas em parte, precisa

referir-se ao nome do “ponto final” da regularização: a solução fundiária.

Regularização “fundiária”, “urbanística”, “jurídica”, “ambiental”, “plena”,

“integral”, “de interesse social” e tantas outras expressões nos dão a idéia da

multiplicidade de dimensões que envolve o ato de regularizar a habitação informal,

irregular, em área consolidada.

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3.2 – ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – APP´S (FAIXAS E ÁREAS “NON AEDIFICANDI”)

(...)a função das APP´s é preservar a área que protege o caminho que a água percorre.9

Áreas de Preservação Permanente (APP) são áreas definidas como

protegidas pelo Código Florestal e por resoluções do CONAMA e estão localizadas em

• faixas marginais de cursos d’águas, tanques, represas e lagos naturais; • ao redor de nascentes; • em topo de morros, e • em declividades maiores que 30 % entre outras situações.

Há APP´s protetoras de mananciais e APP´s de outra natureza, que

protegem ambientes especiais não necessariamente ligados a águas.

Esta pesquisa refere-se exclusivamente às APP´s ambientais que protegem águas nascentes, correntes ou dormentes.

Um exemplo de APP, apenas com caráter ilustrativo, é visto abaixo.10

Imagem 01 - Neste exemplo, o que está sendo levado em consideração é a vegetação natural situada nos limites dos corpos d’água. O esquema mostra a área de preservação permanente de 50m ao redor da nascente, 30m ao longo do ribeirão com menos de 10m de largura e 50m ao redor do lago.

Mais tecnicamente definidas, APP´s ambientais são espaços territoriais

que exercem funções essenciais à proteção de ecossistemas, que observam rígidas

normas de proteção ambiental, nas quais a intervenção humana e as atividades

econômicas devem ser mínimas. De preferência as áreas de APP´s devem observar o

9 Dionete Santin, 1999. 10 Ilustração retirada do site http://www.iema.es.gov.br/default.asp?pagina=3886%20 acessado em 27/03/08

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princípio da intocabilidade mantendo-se íntegras para bem exercer suas múltiplas

funções ambientais. Essas áreas prestam “serviços ambientais” fundamentais para todos os

seres vivos e para sua qualidade de vida, como produção e qualidade da água,

controle de erosão, deslizamentos e assoreamentos, proteção de vales, da

diversidade biológica, dos micro-climas, das paisagens, entre outros.

Segundo a própria lei, a APP é importante para a saúde do meio

ambiente, “possuindo a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a

paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico da fauna e flora,

proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.

Apesar dessas áreas serem protegidas por instrumentos legais, é

comum verificar-se sua ocupação irregular com agropecuária, moradia ou outros usos

urbanos.

As APP´s não chegam tecnicamente a configurar uma Unidade de Conservação já que a própria idéia dessas Unidades é a delimitação geográfica de

uma determinada área, tornando-a única e personalizada e sob única gestão, o que

não se conseguiria fazer com todos os rios, córregos, mares, lagos e nascentes

brasileiros. Assim, embora protegidos, os rios, ribeirões, córregos, lagos, encostas,

topos de morro, etc configuram APP´s e não Unidades de Conservação. Por não

serem Unidades de Conservação, não são sequer mencionadas na Lei que criou

essas unidades e o SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

Área de APP também não configura “Reserva Legal”. As propriedades

devem diferenciar e proteger suas APP´s e Reservas Legais. O art. 3º da Resolução

369/2006 exige a comprovação da averbação da área de reserva legal como pré-

requisito para eventual autorização de intervenção em APP. Se uma propriedade

precisa compensar uma determinada Reserva Legal que tenha sofrido alguma

intervenção, a área de APP não pode ser utilizada para essa compensação. Essas

duas modalidades de áreas protegidas possuem origens e funções ambientais

distintas, não se sobrepondo para fins de compensação.

Vem de Bueno (2004) uma idéia da razão de ser da existência das

APP´s quando estas protegem mananciais: “As áreas de proteção dos mananciais têm

sido definidas para proteger, através do controle do uso e da ocupação do solo (...)

para recarga de fontes de água para abastecimento público.”

A APP coberta com vegetação nativa melhora, segundo a lei, as

condições de vida da população, contribuindo com mais área verde e de lazer, maior

permeabilidade, infiltração da água e favorece a amenização da temperatura

ambiente. Mas mesmo a não coberta com vegetação é protegida pelo Código Florestal

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(inc.II, § 2º. art.1º.). Não deixam elas, este o entendimento da lei, de cumprir algumas

de suas funções ambientais pelo só fato de não abrigarem vegetação.

A legislação evoluiu muito. Inicialmente se ignorava a existência dessas

áreas. Atualmente a proteção dessas áreas é declarada e buscada.

As APP´s não eram, antes do Código Florestal reconhecidas como

espaços ambientais importantes; eram simplesmente incorporadas ao restante da

propriedade e seu uso seguia o mesmo destino da propriedade toda.

Em 1934 Vargas aprova, por Decreto Federal com força de Lei (Decreto

Federal 23.793, de 23 de janeiro de 1934) a primeira versão do Código Florestal que,

referindo-se aos espaços marginais aos rios, embora os definisse como “florestas

protetoras” e as declarasse como áreas de “conservação perene”, não fixava metragem marginal alguma como ““non aedificandi”. O critério único era a

existência ou não de floresta (que hoje chamamos “mata ciliar”). A proteção incidia

apenas sobre a floresta e não sobre as margens.

Este é o texto desse Decreto no que toca às hoje chamadas “APP´s”: Art. 4º Serão consideradas florestas protetoras as que, por sua localização, servirem conjunta ou separadamente para qualquer dos fins seguintes: a) conservar o regime das águas; b) evitar a erosão das terras pela ação dos agentes naturais; c) fixar dunas; d) auxiliar a defesa das fronteiras, de modo julgado necessário pelas autoridades militares; e) assegurar condições de salubridade publica; f) proteger sítios que por sua beleza mereçam ser conservados; g) asilar espécimes raros de fauna indígena. (...) Art. 8º Consideram-se de conservação perene, e são inalienáveis, salvo se o adquirente se obrigar, por si, seus herdeiros e sucessores, a mantê-las sob o regime legal respectivo, as florestas protetoras e as remanescentes.

Em 10 de julho do mesmo ano é decretado o “Código das Águas”

(Decreto Nº 24.643, de 10 de julho de 1934, Decreto do Governo Provisório com força

de Lei). Este código:

- não possui qualquer disposição a respeito de proteção, preservação ou conservação

das águas;

- cuida de mares, rios, lagos, lagoas, águas pluviais, subterrâneas, poços, aquedutos,

força hidráulica (hidroelétricas), quedas d´água,etc;

- tem caráter visivelmente patrimonialista e de exploração econômica dessas águas,

prevendo concessões e permissões;

- regula a partição de poderes dos entes federados (união, estados e municípios)

- traz detalhada definição de domínios

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- prevê inclusive a dominialidade privada de determinadas águas

- traz detalhada normatização de direitos de vizinhança

- prevê nos artigos 11 § 2º. , 12, 80, 196, normatização em relação às margens das

águas, mas apenas com caráter econômico, patrimonial ou de facilitação de acesso

para serviços.

- não traz nenhuma palavra a respeito de restrições, com fins protecionistas, ao uso

das margens do elemento físico.

Antes da década de 60, portanto, quando entrou em vigor o Código

Florestal estabelecendo a faixa de 5 metros, cada município fixava a faixa de proteção que melhor aprouvesse não à sua idéia de proteção ambiental (noção

quase inexistente à época) mas às necessidades locais de exploração e produção.

Em 1965, o novo Código Florestal (lei 4771) definiu essas distâncias em

relação às margens dos córregos e rios, sem definir os critérios de distâncias para

tanques e represamentos artificiais, nascentes e topo de morro.

Para cursos d’água com até 10m de largura, a faixa mínima prevista em

cada lado da margem, era de 5 metros.

A generalização da faixa para todo o país em 5 metros já foi um avanço

(pois não se pode prescindir de critérios para edificação à margem de cursos d’água)

mas ainda não se baseava em critérios preservacionistas.

O critério àquele tempo era urbanístico. A sociedade reputava caríssimo

recuperar a degradação provocada pelo povoamento dessas margens. Mas fiel à

tradição de inexistência de faixa alguma, o mesmo Código Florestal permitia a

desconsideração dessa faixa, conforme o caso. Bueno (2004) traz à nossa lembrança

que “O código Florestal prevê a possibilidade de supressão dessas faixas para ações

de interesse público ou social através de prévia autorização.”

Com a edição da Lei Federal 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que

dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, o legislador já entendia que esta faixa de

apenas 5m não era suficiente para cumprir o objetivo proposto e agregou uma faixa de

10 metros como “non aedificandi”, estendendo a uma faixa total de 15 metros nas

áreas urbanas: (“Art 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes

requisitos: (...) III - ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de

domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma

faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências

da legislação específica;”).

Mas o critério dos “15 metros” continuou não sendo a proteção

ambiental. A Lei 6.766 visava ordenação de território apenas, como se percebe pela

inexistência nela de qualquer outra disposição que implicasse em proteção ambiental.

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A lei 7.511, de 7 de julho de 1986, alterou o Código Florestal para

aumentar a faixa mínima de preservação permanente de 15 para 30 metros de largura

para cursos d’água de até 10 m de largura. Esta última alteração é efetivamente

marcada pela idéia de proteção ambiental, denotada pela extensão fixada. Não se

sabem, contudo, os critérios que foram utilizados para se chegar à faixa de 30 metros,

nem os estudos em que essa fixação se baseou.

Em 1989 a lei 7.511 foi revogada pela Lei 7.803/89 que manteve a faixa

de 30 metros afirmando, na exposição de motivos (projeto de lei 2.114/89 e

mensagem do executivo 167/89, assinada pelo Ministro do Interior) que se baseava

em “estudos realizados no âmbito do ‘Programa Nossa Natureza’ criado pelo Decreto

96.944 de 12/10/1988, que indicaram a necessidade de se proceder à revisão dos

artigos (do Código Florestal)”.

A Resolução CONAMA nº 4, de 18 de setembro de 1985, revogada pela

Resolução 303, de 20.3.2002, enquadrou as Áreas de Preservação Permanente como

Reservas Ecológicas e definiu critérios e parâmetros para as lagoas, lagos ou

reservatórios de água naturais ou artificiais; de nascentes; topos de morro, montes e

montanhas; bordas de chapadas e declarou como de preservação permanente as

encostas com declividade superior a 100% ou 45°.

A resolução 369/06 do CONAMA reduziu, para efeito de regularização fundiária, a faixa de preservação para 15 metros(letra “a” do inc. IV do art. 9º) desde que obviamente observadas as demais regras para essa regularização previstas na própria resolução. Existem hoje, portanto, duas faixas mínimas: uma de 30 metros para as situações que não sejam de regularização fundiária (lei 7.511) e outra, de 15 metros, para a regularização (resolução 369). A sociedade vê as APP´s sob três óticas. A ecológica, que trata da

necessidade de preservar os serviços ambientais, mas que, via de regra, não

sensibiliza os proprietários rurais; a da qualidade da água, já que desempenham um

papel fundamental para a manutenção do regime hidrológico; e a da segurança, pois

nas grandes cidades as APP´s são sinônimos de várzeas que alagam e de encostas

que desmoronam nos períodos de chuva.

APP´s constituem, portanto, a faixa "non aedificandi" (na qual não é

lícito construir) ao longo de lagos, rios, cursos d'água, nascentes e matas (bem como

manguezais, lagoas e lagunas, áreas estuárias, vegetação de restinga quando

fixadoras de dunas, costões rochosos e as cavidades naturais subterrâneas, cavernas

etc) que varia de 30m a 50m, e que visa preservar a integridade destes elementos.

São aquelas faixas em que o manancial todo (que inclui as águas, as florestas e

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demais formas de vegetação natural ali existente) não pode sofrer qualquer tipo de

degradação.

Essa metragem estabelecida de forma objetiva valendo indistintamente e com caráter geral para todos os rios, ribeirões, córregos, lagos e outros elementos naturais do país (que tem suscitado acerbas críticas) é de discutível validade.

Não se discute, evidentemente, a utilidade das APP´s, mas seu

estabelecimento com critérios objetivos indistintos para todas as situações.

Há uma idéia preconcebida de que as normas nacionais “protegem as

APP´s”. Mas essa proteção é discutível na medida em que se avalia a multiplicidade

de situações que tais normas visam prever e que efetivamente não prevêem.

Ao analisar bacias de drenagem e APP´s, Coelho Neto (2007)

demonstrou com clareza o quanto são dinâmicos os processos hidrológicos e

geomorfológicos modeladores da superfície terrestre e que a interação desses

processos com biota e solo criam uma tal variedade de situações, por sua vez de tal

forma mutáveis, que se torna inviável estabelecer, por norma nacional, um regramento

único válido para todo o país.

Por exemplo:

• Há APP´s em áreas rurais e em áreas urbanas. Estas são em muitos aspectos diferentes daquelas, mas a regra que vale para ambas é uma só.

• Há APP´s em rios largos e em córregos diminutos, mas as regras que se aplicam a ambos são as mesmas, com variação apenas de metragem da faixa.

• Há APP´s cobertas com vegetação (ecossistemas ciliados) e APP´s desprovidas até mesmo de grama, mas a lei é a mesma para ambas.

• Há APP´s em áreas urbanas que estão ocupadas para fins de moradia e APP´s em áreas urbanas que não estão ocupadas e que apesar disto a lei é a mesma para as duas situações que são inteiramente diversas;

• Há APP´s em áreas urbanas que estão ocupadas para fins de moradia de modo consolidado, de tal forma que torna inviável qualquer tentativa de remoção de moradores, permitindo quando muito apenas uma intervenção urbanística ou fundiária (desconsiderando o aspecto ambiental) e ao mesmo tempo há APP´s em áreas urbanas, com ocupação para fins de moradia ainda não consolidada e onde é possível uma intervenção mais acurada, levando em conta diversas dimensões de regularização. As normas de regularização, federais que são, exigentes de uma solução ambiental, impedem a regularização da primeira situação mesmo em se sabendo que para a cidade a regularização configuraria inegável ganho urbano e social.

• Há determinados trechos de rios cercados com florestas por ambos os lados ou em apenas um dos lados e se torna desnecessária a aplicação de regra de APP em uma situação na qual já se aplicam leis protetoras de florestas. Nestas situações a APP nem existe (coberta que está pela floresta) mas a norma que a protege se aplica da mesma forma.

• Há áreas geológicas estabilizadas e áreas geológicas fragílimas, submetidas a constantes e vorazes voçorocas, causadoras de processos de intensa erosão, que se alimentam da beira dos rios, levando áreas de APP, áreas de moradia,

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áreas industriais, áreas de lazer, etc. e nas quais uma regra protetora de APP é inteiramente inútil.

• A instabilidade faz parte do próprio conceito de “duna” (monte de areia móvel, formada geralmente pela ação do vento) e a duna é cercada por APP´s que a acompanham conforme ela muda de posição. Uma casa que está fora de uma área APP de duna pode repentinamente estar dentro da faixa para depois tornar a estar fora dela, sem que a casa jamais tenha saído do lugar.

• Há em alguns locais (como no Rio Araguaia, por exemplo) um complexo sistema de canais aqüíferos entrelaçados, onde há amplo domínio fluvial dinâmico, criando igualmente uma infinidade de áreas de APP entrelaçadas que legalmente praticamente inviabilizam qualquer tipo de uso humano, mas que na prática acomodam grupamentos de moradias ou mesmo vilarejos perfeitamente sustentáveis.

Ou seja: há áreas em que a aplicação das regras federais de proteção

ambiental (como as faixas de APP) é fácil. Mas há outras nas quais consiste, como

lembra Coelho Neto (2007), verdadeiro “desafio encontrar justificativa técnica de respaldo para essas larguras estabelecidas pelo CONAMA.”

A mesma autora proscreve as tentativas de legislar uniformemente e definir APP´s em situações dinâmicas.

É preciso, de um lado, reconhecer nossa impossibilidade prática –

verdadeira impotência – de prever por norma federal as mais diversas peculiaridades

regionais e locais, e de outro delegar para Estados e para municípios a competência

para legislar nessas situações, liberando municípios da desnecessária tutela federal

que apenas agrava a dependência e fortalece esferas de controle político.

Por outro aspecto, é importante questionar para quê serve a suposta

proteção legal federal das APP´s, quando se constata:

• Que determinadas APP´s urbanas ocupadas há décadas por moradias já se incorporaram definitivamente ao ambiente urbano construído e não exercem mais as funções que a lei afirma que ela deva exercer, nem as voltariam a exercer caso se desse a retirada de moradores para recuperação do espaço ambiental; a retirada dos moradores dessas áreas não garante, na prática, uma recuperação ambiental minimamente aceitável

• A pouca serventia da APP (exceto o exercício limitado de suas demais funções ambientais) quando o manancial já esteja poluído por diversas fontes

• Que a degradação do ambiente do manancial pode provir de situações nada ligadas à atividade humana, como erosões a montante, ou em áreas mais íngremes, que detonam grandes deslizamentos que fornecem grande carga de sedimentos produzindo assoreamento a jusante

• Que quando a degradação dos aqüíferos locais acontece por atividade humana, em geral é de iniciativa da cidade toda e não apenas das moradias em áreas de APP ou próximas (lixo, rejeitos humanos poluidores); ou provém do exercício de atividades econômicas importantes para a cidade, como extração de argila, areia ou minérios

• Que o café mudou completamente a hidrologia do Vale do Paraíba assim como no passado as atividades agrícolas avançaram sobre a mata atlântica e atualmente as atividades agropastoris estão alterando significativamente o

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ambiente amazônico. A moradia não pode, portanto, ser acoimada de grande vilã do ambiente presente nas APP´s já que não é necessariamente o uso de moradia que desprotege o ambiente existente nas APP´s

• Que as cidades muita vez crescem junto aos canais; entre vazante e cheia a cidade se espraia a partir dali e que o tipo de uso dessas áreas se incorpora à cultura local

• Os diferentes significados que têm os aqüíferos nas estruturas urbanas e nos usos locais configurando, em alguns casos, elemento fundamental da constituição histórico-cultural e integrador da vida local

• É possível que determinados empreendimentos tenham indiscutível qualidade urbanístico-ambiental e paisagística, mesmo ocupando em parte área de APP

• Que cidades não são personas independentes que vivem sós e isoladas; cidades atualmente são redes e que as regras não podem levar em conta apenas determinada situação de um bioma na sua relação isolada com uma determinada cidade.

É preciso reconhecer, com Rolnik (2007) que o marco regulatório

brasileiro sobre APP´s “está subdesenvolvido em relação à sua própria complexidade

e natureza porque a lei cria uma padronagem que não serve nos mais diversos

corpos.”

O novo marco regulatório que precisa nascer deve partir da

necessidade de dialogar com o conhecimento científico e com a realidade; de

enfrentar a diversidade; de gerir diferentes situações, diferentes formas de ocupação e

diferentes biomas; de delegar capacidade normativa para municípios ou Estados,

vencendo o mito segundo o qual municípios são por demais frágeis e desestruturados

para exercer funções desta magnitude. O ente local não será fortalecido na

capacidade de gerir por inteiro seu território enquanto existir tutela federal impediente

do exercício sadio da liberdade de gestão.

A velocidade das transformações ambientais tem sido cada vez maior; é

preciso enfrentar problemas magnos; mas ainda nos apegamos à pequenez das

APP´s na tentativa de protegê-las de moradias. Talvez porque sejam mais visíveis ou

mais próximas que os demais ETEP´s.

Um último aspecto ligado às APP´s convém analisar e diz respeito ao

próprio título desta dissertação. Ali se expressou APP´s como “Áreas de Proteção

Permanente”, embora se saiba que o Código Florestal as designa como “Áreas de

Preservação Permanente”.

Em considerando que “preservar” consiste em “garantir a integridade e

a perenidade de algo” e que “proteger” consiste em “ter cuidado”, “abrigar”, “defender”

e “resguardar”, referenciando portanto a idéia de uma conduta que visa impedir

agressões, ofensas ou agravos, se notará que o vocábulo “proteção” admite a

possibilidade de algum tipo de atividade humana não degradante.

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Preservar tem, em questões ambientais, uma acepção de

“intocabilidade”, exatamente como o afirmam as compilações vernaculares (garantir

integridade e perenidade): manter algo exatamente como está, para que perdure o

mais possível. Embora nos dois casos se esteja a falar em “defender” algo, a diferença

do “preservar” para o “proteger” está no nível de defesa. Naquele, intocabilidade,

ausência inteira de qualquer atividade humana possível. Neste, possibilidade de algum

nível de manejo.

Assim, quando se analisam as leis atuais que permitem (ainda que em

casos excepcionais) o manejo, a atividade humana (incluindo moradia) e mesmo a

retirada de vegetação em áreas que deveriam ser de “preservação”, é forçoso concluir

que essas são, atualmente, “áreas de proteção” (nas quais se admite algum nível de

atividade humana, desde que posta o mais possível a salvo de agressões) do que

propriamente de “preservação”. Daí ter-se escolhido a designação “proteção” para o

título da dissertação: sua maior adequação à idéia que hoje se deve ter das “APP´s”,

segundo o nível de defesa que atualmente lhes dão as leis ambientais brasileiras.

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4 – ALGUNS ASPECTOS JURÍDICOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Regularizar comporta necessariamente resolver as questões social,

urbanística, ambiental, administrativa e patrimonial permitindo que o habitante do

assentamento irregular de moradia possa tornar-se “dono” do imóvel e, com isto,

tornar sua propriedade visível aos olhos da lei e integrar-se à vida social, econômica e

tributária, favorecendo-o e favorecendo a cidade. Para entender o que “ser dono”, “ser

autorizado”, ter “direito de permanência” e tudo o mais que está no entorno dessas

questões significa é preciso lançar mão de alguns conceitos jurídicos.

4.1 – EXPLICANDO “PROPRIEDADE” Para o Direito Civil Brasileiro de início do século XX, que reflete o

pensamento dominante para a época das grandes fazendas cafeeiras, dos latifúndios

e das amplas porções até então ainda inexploradas de terras, a propriedade é um

direito sagrado, absoluto, inatingível, ilimitável, insubordinável a qualquer conceito ou a

outro direito.

Mas o conteúdo desse direito mudou substancialmente. É claro que a

propriedade, embora continue sendo um direito, já sofre limites importantes para o

contexto social, que refletem de forma significativa no direito à moradia social.

Quanto mais, no Brasil, se limita o direito à propriedade em geral, mais

amplitude de significado se dá ao Direito à Moradia Social, o que faz parecer que tais

direitos sejam incomponíveis.

Quatro são, tradicionalmente, os elementos da propriedade: o

proprietário pode, em relação ao bem dominado, usar, gozar, livremente dispor e

reivindicar.

A rigor, o uso da propriedade nunca foi exatamente ilimitado. Seu “uso

nocivo”, por exemplo, tem sido de há muito penalizado.

O uso que o proprietário poderia fazer de seu bem, já há tempos

limitado pelas leis urbanísticas (leis regentes do uso e da ocupação que podem ser

dados ao bem), sofre com leis mais recentes ainda mais intensa limitação.

Com a Constituição Federal de 1988 e as leis que a sucederam, houve

nítida redução do alcance de pelo menos 3 destes elementos. Assim:

• O direito de uso (que envolve o direito de não usar) está agora subordinado ao

interesse social que é prevalente. Não pode mais o proprietário, mesmo

respeitando as leis urbanísticas, dar à propriedade a destinação que entender

conveniente. Essa destinação precisa “cumprir uma função social”. Ou seja: a

relação do proprietário com o bem dominado há de dar-se sem afrontar os

interesses sobrelevantes do meio urbano em que o bem está situado. Precisa

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harmonizar-se com os demais direitos dos habitantes da cidade. Precisa

compor a paisagem urbana de direitos e não dissentir dela. Com o

parcelamento obrigatório, por exemplo, o proprietário não tem mais o direito de

não usar o bem.

• O direito de livremente dispor está igualmente bastante afetado, mais

recentemente pelo dever de vender à municipalidade em caso de esta erigir em

relação ao bem um “direito de preempção”. A preempção é um “direito de

preferência” na aquisição de um determinado bem que se estabelecia em geral

no interesse do vendedor do bem e que hoje se efetiva em favor da sociedade.

Veja-se que o direito de propriedade era de tal forma ilimitado que mesmo

depois da venda o proprietário continuava, observadas certas regras, ligado ao

bem pelo direito de preempção. É notável a evolução da preempção ao longo

do tempo, tendo passado da condição de “direito individual” para sua atual

situação de “direito difuso”. Assim, o direito de preempção, originalmente

estabelecido como um direito do vendedor do bem de recomprá-lo do

comprador no caso de este resolver vendê-lo, hoje se transformou no direito da

sociedade de adquirir com preferência o bem, em detrimento de todos os

demais interessados, quando presente o interesse social, por exemplo, de ver

mais adensada uma determinada área da cidade, impedindo meras

especulações.

• O direito de reivindicar o bem em caso de esbulho ou turbação há muito se viu

limitado nos casos em que a posse do invasor de torne antiga. A usucapião,

direito estabelecido em favor do invasor de determinado lote ou área, hoje

assume dimensões muito mais avantajadas com a criação de novas espécies

de usucapião pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, com prazos

prescricionais muito menores.

Como se vê, o direito de gozar (usufruir) o bem, recebendo, por

exemplo, os aluguéis em caso de entrega onerosa de sua posse a terceiros, foi até o

momento o menos afetado dos elementos que informam a propriedade. É Pinho (1998) quem alerta para as limitações que a interpretação

sistemática das leis brasileiras atualmente em vigor permitem dar ao conceito de

“propriedade”: “a garantia do direito de propriedade está diretamente relacionada à

compatibilidade do uso desta propriedade com os limites estabelecidos pela lei

provocando os efeitos por ela – a lei – desejados.”

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4.2 – USUCAPIÃO Como se viu, o direito de propriedade tem por elementos o “usar”, o

“gozar”, o “livre dispor” e o “reivindicar”.

Pode-se perder a propriedade voluntariamente, dispondo do bem em

caráter definitivo (por venda, doação, etc) , como se pode também perdê-lo como

“sanção” pelo não uso e por não defendê-lo de invasores.

Quem permanece por determinado período ocupando um imóvel alheio,

como seu, sem oposição, ininterruptamente, adquire o domínio desse imóvel. Torna-se

proprietário dele. Transforma-se de mero possuidor (posseiro) em caráter precário em

dono do bem. O antigo proprietário perde o imóvel definitivamente. Em linguagem

jurídica se diz que nestes casos aconteceu a “prescrição aquisitiva” do direito em

relação ao imóvel.

Ao se tornar proprietário do bem, aquele que era mero possuidor obtém

ao mesmo tempo todos os direitos inerentes à propriedade do bem: usar, gozar,

livremente dispor e reivindicar. Esse que, antes, como mero possuidor, tinha apenas o

direito de usar o bem, tem agora (como proprietário que passa a ser) todos os demais

direitos que lhe faltavam em relação a esse bem. O direito de uso está, portanto,

abrangido no direito à propriedade.

Sendo assim, não há possibilidade de alguém passar a ser, por

usucapião, dono de um bem, e não ter em relação a este mesmo bem o direito de uso,

salvo nos casos em que ele, uma vez se tornando proprietário, conceda a alguém o

direito de superfície por exemplo.

Assim como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas têm também

direito de propriedade. E assim como os particulares, os órgãos públicos têm também

esse mesmo direito. Embora os entes públicos União, Estados, DF e municípios

tenham direito à administração dos bens de uso comum do povo, há determinados

bens de que eles são proprietários. Bens de que eles têm domínio e que, por isto

mesmo, são chamados de bens “dominiais”.

Diferentemente do particular, entretanto, os entes públicos não perdem,

por usucapião, a propriedade de seus bens dominiais.

Então, se “A” se mantém na posse de terreno de “B” (um particular) por

determinado tempo, ininterruptamente e sem oposição, se tornará dono (proprietário,

“dominus”) do bem possuído. “B” perderá a propriedade e “A” a obterá.

Já a mesma solução não acontece se “B” for um ente público (o que em

direito se chama “pessoa jurídica de direito público) pois, neste caso, o máximo que

“A” terá em relação ao imóvel será uma “concessão de uso”; jamais obterá a

propriedade.

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4.3 – PERMISSÃO DE USO E CONCESSÃO DE USO É da tradição do direito público brasileiro que os bens públicos (o que

inclui evidentemente os imóveis) não sejam passíveis de usucapião. A própria

Constituição Federal brasileira atual assim o determina expressamente em parágrafo

do art. 183. Ou seja: ainda que alguém se mantenha por muitos anos, por décadas

mesmo, ininterruptamente e sem oposição, em um imóvel de propriedade de um

Estado, da União ou de algum município, jamais poderá ingressar com ação de

usucapião em relação a esse bem. Essa impossibilidade decorre de um dos princípios

dos bens públicos: a imprescritibilidade. Ainda que um órgão público deixe de cuidar

de seus bens e permita que eles sejam invadidos, não perderá seu direito de

proprietário desse imóvel.

Esse princípio existe como decorrência da inconfiabilidade do

administrador público aos olhos do sistema administrativo. A sociedade não pode

confiar no administrador público a ponto de permitir que todas as atitudes por ele

tomadas sejam por ela convalidadas, aceitas e assumidas como válidas. Há

administradores e administradores. Por este motivo, é preciso por lei impedir que

eventual omissão de determinado administrador possa ensejar para toda a sociedade

a perda de seus bens. Daí o cuidado da Constituição Federal ao declarar

aprioristicamente imprescritíveis os bens públicos.

Segundo Saule (2006) no Brasil, a terra e o direito à propriedade foram tratados, desde o início do processo de colonização, sob a ótica estrita da especulação, ou seja, da exploração da propriedade em benefício – especialmente econômico – de seu proprietário. Associava-se, em uma só equação terra, riqueza e poder. Essa lógica de tratamento da terra era também aplicada ao patrimônio público: o Estado – reflexo da sociedade – sempre olhou suas propriedades sob a perspectiva prioritária das transações onerosas.

Até 1967 não se admitia permitir, oficialmente, por algum documento,

que alguém se mantivesse morando ou explorando comercialmente algum imóvel

público. Quando muito, a “regularização” se dava por meio da autorização de uso, o

que apenas adiava uma solução para o problema da ocupação.

E com o tempo a realidade dessas ocupações sem controle de áreas

públicas assumiu proporções alarmantes e a inteira impossibilidade prática de os

órgãos públicos retirar os invasores todos, por meios próprios ou por meio da Justiça,

fez com que durante algum tempo tais órgãos convivessem com o problema e,

posteriormente, buscassem dar pelo menos uma roupagem jurídica para essas

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situações para lhes permitir lidar com o problema futuramente, já com alguma garantia

ou chance jurídica.

Em 1967, pelo Decreto-lei n.º 271 de 28/02, se instituiu, como direito

real resolúvel, a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, de forma

remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, para fins específicos de

urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de

interesse social, materializado por instrumento público ou particular ou, ainda, por

termo administrativo, registrável no registro imobiliário e transmissível por ato inter-

vivos ou em razão de morte (mortis causa). Não se destinava essa concessão

especialmente à regularização de situações de moradia. Buscava resolver situações

pontuais, de moradia ou não, de alguns.

Essa concessão de uso não é, portanto, exatamente a CONCESSÃO

DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA hoje prevista na Medida Provisória

2220/01. Mas foi a primeira brecha no dique da impossibilidade jurídica de

permanência das pessoas nas áreas ocupadas.

E já aqui, antes de avançar para o estudo da CONCESSÃO DE USO

ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA, convém chamar a atenção para o fato de a

“concessão de direito de uso” ter enorme semelhança com o “direito de superfície”.

Pela concessão o Estado e pelo direito de superfície o particular transferem a terceiros

seu direito de usar da parte edificada no terreno (que continua sob propriedade de

quem transfere). Notar essa semelhança ajuda muito ao entender a concessão de uso

e a concessão de uso especial para fins de moradia.

4.4 – HIS - HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL e “ZEIS” - ZONA ESPECIAL DE DE INTERESSE SOCIAL É tão significativamente alto o índice de irregularidade na construção

habitacional, que a regularização fundiária chega a ser uma medida emergencial. É

uma imposição da realidade e dos fatos.

No entanto, desde logo foi possível perceber, ao se estudarem os

entraves legais ou burocráticos que existiam para que a regularização fundiária

pudesse ser realizada em larga escala, que somente a eliminação das barreiras em

que se constituem as exigências legais normais, aplicáveis indistintamente a toda

construção para fins habitacionais na cidade (legalidade na posse, dimensões

mínimas do lote, loteamento regular, infra-estrutura básica, etc) tornaria possível atuar

a contento nessa área.

É claro que uma pessoa que tem sua vida econômico-financeira

resolvida e que trabalha por diletantismo faz parte da sociedade tanto quanto dela faz

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parte uma pessoa desprovida de recursos. Então, falar em “interesse social” para

referir-se à categoria de pessoas pobres não parece ser uma utilização adequada do

vocábulo “social”. A despeito disto, consagrou-se nos meios institucionais, científicos e

universitários o emprego da palavra “social”, como também da palavra “popular” para

referir a pessoas de classes economicamente menos favorecidas. Daí advieram

“movimento popular”, “moradia social”, “interesse social” e tantos outros.

Pensou-se então na possibilidade de, em determinadas áreas

específicas da cidade, áreas que seriam delimitadas por lei, as exigências seriam

menos rigorosas e menos onerosas, facilitando a ação de edificações de “moradias

sociais”, “dentro da lei”. A essa “área especial” se deu o nome de “Zona Especial de

Habitação de Interesse Social” que seria, portanto, uma zona específica da cidade na

qual se construiriam, com padrões diferenciados, habitações para pessoas pobres.

Segundo Fernandes (1998) a definição de uma área como sendo de

“interesse social”, “(...) permite redefinir em parte, ou pelo menos minimizar, a dinânica

do mercado imobiliário, garantindo, assim, espaços no território da cidade para os

grupos pobres.”

Pelo país inteiro disseminou a experiência de aplicar padrões

construtivos diferenciados em determinadas áreas. Primeiro por leis municipais.

Depois até mesmo a lei federal foi alterada para abrigar a novidade.

Analisem-se aqui as diferenças:

Lei 6.766/79 Art. 2º - O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes. (...) § 5º Consideram-se infra-estrutura básica os equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto sanitário e abastecimento de água potável, e de energia elétrica pública e domiciliar e as vias de circulação pavimentadas ou não.(Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) § 6º A infra-estrutura básica dos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei como de interesse social (ZHIS) consistirá, no mínimo, de: (Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) I - vias de circulação; (Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) II - escoamento das águas pluviais; (Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) III - rede para o abastecimento de água potável; e(Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) IV - soluções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar.(Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) Art. 4º - Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: (...) II - os lotes terão área mínima de 125 m2 (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando

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a legislação estadual ou municipal determinar maiores exigências, ou quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes;

Note-se que em se tratando de “ZEIS” se dispensaram as seguintes exigências que precisam ser atendidas nos casos das demais habitações:

• iluminação pública

• “rede para esgotamento sanitário” (bastando uma “solução” para este aspecto)

• “rede de iluminação domiciliar” (idem)

• dimensões mínimas do lote.

Criaram-se assim exigências especificas para tornar possível o

exercício do direito de erigir “dentro da lei”. Criou-se desta forma um padrão

diferenciado que pode ser chamado de “padrão de urbanização de interesse social”.

Isto não significa, contudo, que as leis urbanas tenham sido

“flexibilizadas” quando se trate de ZEIS. O que faz a lei é apenas criar alternativas de

legalidade para que as pessoas possam estar dentro da lei. A ZEIS não é, portanto,

flexibilização, mas apenas um diálogo que a lei abre com a realidade popular.

4.5 – “DIREITO DE PERMANÊNCIA” (OU DE NÃO REMOÇÃO) E SEGURANÇA NA POSSE Habitação não é só teto. É um lugar na cidade.

Daí a necessidade de respeitar-se a opção do local de fixação

habitacional dos moradores desses assentos habitacionais informais consolidados e

evitar-se o quanto possível a transferência compulsória dos moradores para outras

áreas menos nobres da cidade ou mesmo para áreas ainda mais degradadas do que

aquelas em que eles se encontram. Seria importante, ao se decidir pela regularização

de determinada área, fixar como compromisso primeiro dos agentes de regularização:

1. a não remoção como premissa; 2. sendo inteiramente necessária a remoção por se

tratar de área de risco ou de proteção ambiental ou ainda por razões urbanísticas, não

realizá-la caso seja de alguma forma possível remover o risco, resolver a questão da

agressão ambiental ou contornar as dificuldades urbanísticas.

Estas premissas conformam-se com o respeito às pessoas que não

tiveram alternativa senão avançar sobre as áreas ambientais para encontrar uma

forma de abrigar a si e à sua família.

Embora se trate de citação fora do vernáculo, convém reproduzir por

inteiro cada uma das frases de Heidegger, citado pelo Arq. Magaña, já que todas elas

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demonstram de alguma forma a importância que as moradias, o entorno, os lugares,

assumem na vida de determinadas pessoas. Habitar es más que un simple estar (morar, en el sentido Heideggeriano), habitar y morar son entonces dos cosas diferentes, aunque en el lenguaje común las dos se utilicen como sinónimos. En esta visión el hombre puede morar en cualquier construcción pero no en toda construcción puede habitar, como se dijo, las construcciones pertenecen a la esfera del habitar, pero no en todas se habita. (…)en las que se da el echo del habitar son las que el hombre denomina como, "alojamiento, vivienda, casa, morada", donde encuentra descanso, adonde siempre regresa para permanecer (a un que sea por poco tiempo). (...) Este sentido del habitar (…) configura (…) perteneciendo a la comunidad de los hombre]".(…)Habitamos las cosas, lo material o lo ideal de ellas; Se habitan las cosas, los objetos, se habitan las calles, las plazas, las ciudades, el espacio, (…) por que al usarlos parte del ser reside en ellas (...) sólo se habita plenamente cuando se reside en las cosas (…) Para quien habita el entorno, lo arquitectónico-lo ingenieril-lo urbano, el espacio esta lleno de contenido. (...) cuando no existe un vinculo con los espacios o los objetos esto llega a ser no significativo es cuando se dice que el hombre solo mora. (…).

É inevitavelmente preciso compreender o espaço do local em que se

encontram os moradores desses assentamentos informais utilizando a noção de

“lugar” que, culturalmente, possa representar sentidos aglutinadores de identificação

simbólica e afetiva para o individuo; a terra natal, o lugar de convívio, a fazenda, o

bairro, a praça, a rua, a cascata, a escola, etc.

Da apreensão e compreensão até que simples dessa verdade de que o

homem está ligado não apenas ao espaço por ele escolhido para ser o abrigo seu e de

sua família como também o entorno, a vizinhança, as casas dos amigos, o empório, a

praça, o córrego, a barbearia, e que esta ligação é em grande parte responsável pela

sensação de harmonia, de conforto, de segurança, de proteção, de ordem e de

garantias diversas, desenvolveram-se duas teorias que ganharam amplo espaço no

que se pode chamar de “doutrina do urbanismo”.

Primeiramente a idéia de “segurança na posse” e posteriormente a idéia

de “direito de não remoção”. Aquela, nascida da elite do pensamento do urbanismo.

Esta, provinda dos movimentos populares de defesa do direito à moradia.

A rigor, no entanto, “segurança na posse” não tem apenas a acepção de

direito de ver respeitada sua posse e, portanto, de não ser removido do espaço

escolhido para moradia. Trata-se de conceito mais abrangente, que envolve a idéia de,

sob aspecto prático, ao final do procedimento de regularização fundiária, caminhar-se

resolutamente em direção ao objetivo de transformar a mera posse em efetiva

propriedade ou em algo que possa merecer praticamente o mesmo “status” de

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proteção jurídica como é, por exemplo, o caso da concessão de uso especial para fins

de moradia. Caminhar para a legalização. Isto sim configuraria bem e precisamente o

que se espera de uma efetiva “segurança da posse”.

Já os movimentos sociais populares, mais preocupados com aspectos

práticos dos problemas que diuturnamente enfrentam (dentre os quais o da

verdadeira “Espada de Dâmocles” que configura o permanente perigo de remoção

pura e simples, sem alternativa de moradia, do local em que suas moradias se

encontram) cunharam a expressão “direito de não remoção” que pode, por outra forma

ou ótica, ser também chamado de “direito de permanência”.

Estas expressões dizem mais claramente e com maior precisão a quê

se prestam. Dizem respeito ao direito que tais pessoas, moradores dessas áreas, têm

de, uma vez equacionada a questão de risco ou uma vez solucionada a questão

ambiental ou resolvida a questão urbana, permanecer no local em que se encontram e

ter o mérito de receber a titulação dessas áreas, sejam elas públicas ou privadas. Isto

porque algumas remoções que se fizeram ou que ainda hoje se fazem, levam em

conta apenas o interesse egoísta ou mesquinho do proprietário da terra que é, por

vezes, o próprio poder público.

Razões de ordem urbanística, ligadas sobretudo ao interesse primeiro

dos moradores dessas áreas é que devem prevalecer quando se pensa em remoção.

• Remove-se para evitar riscos que não possam ser por outra forma

solucionados.

• Remove-se para melhorar a qualidade de vida para o morador e se possível

para todos os demais moradores.

• Remove-se para amplificar a circulação de pessoas e de veículos.

Mas sempre com os olhos postos no direito à moradia e na

melhoria urbanística sobretudo para a população daquele determinado núcleo em que

a intervenção precise ser realizada.

4.6 – ÁREA URBANA CONSOLIDADA Quando se vai dedicar à regularização fundiária o poder público precisa

definir alguns critérios que diferenciarão umas áreas elegíveis para a intervenção, de

outras em que a regularização não se dará, pelo menos naquele determinado

momento.

Um dos critérios, obviamente, é a catalogação daquela área como

“consolidada” a ponto de não ser econômica e socialmente recomendável a remoção

de famílias. Uma irregularidade consolidada é aquela em que já se deu uma

estabilidade de situação que recomenda que o tratamento seja o mesmo que se dá às

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demais situações legais. Assim, quando uma determinada área urbana já vive uma

vida de comunidade em que as relações humanas estão assentadas e as relações do

grupo com o local e o entorno (o espaço) têm um entrosamento que não deva ser

rompido, já se pode reconhecer a ligação desse grupo com a cidade; a comunidade

local já é vista pelo restante da cidade como uma parte dela e não resta mais que

oficialmente incorporá-la à cidade.

Incorporar legalmente à cidade uma área consolidada como urbana é,

pois, reconhecê-la oficialmente como sendo aquilo que efetiva e concretamente ela já

é: uma parte da cidade.

Embora isto pareça simples, não são poucos os embates jurídicos que

essa definição permite. O proprietário da área, que não pretende que sua área seja

definitivamente entregue àqueles que ele considera invasores, bate-se pelo não

reconhecimento daquela situação como consolidada. E mesmo de município para

município variam as definições sobre o quê efetivamente se deve considerar como

uma “área consolidada”. São tantas as discussões a este respeito que em 2002 o

CONAMA resolveu conceituar legalmente11 o que é que, a partir dali, poderia

merecer a designação de “área urbana consolidada”. E para a resolução, uma área

consolidada é aquela legalmente definida pelo poder público (é preciso, pois, que a

municipalidade afirme por lei essa consolidação), densidade demográfica superior a

cinco mil habitantes por km2 (altamente povoada, portanto) e ainda que conte com

pelo menos 4 das 6 seguintes infra-estruturas urbanas:

• malha viária com canalização de águas pluviais; • rede de abastecimento de água • rede de esgoto • distribuição de energia elétrica e iluminação pública • recolhimento de resíduos sólidos urbanos • tratamento de resíduos sólidos urbanos.

Para se ter por “consolidada” uma área urbana é necessária a

convergência de três fatores mínimos:

• Definição por lei • Alta densidade demográfica e • Existência de pelo menos 4 itens que permitem dar à área um aspecto urbano.

4.7 – BACIA HIDROGRÁFICA O planejamento ambiental tem como objetivo organizar uma

determinada área visando um melhor desempenho, considerando sua vocação

natural. Esse ordenamento pode ser realizado através da organização dos espaços

11 Resolução 302 de 20/03/2002 que trata de APP dos reservatórios artificiais.

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em bacias hidrográficas, consideradas unidades territoriais para implementação da

Política Nacional de Recursos Hídricos.

Bacia Hidrográfica é a área total, inteira, completa, de onde promana

toda e qualquer água que alimenta determinada unidade fluvial ou lacustre. É também

a unidade territorial administrativamente utilizada para implementação da Política de

Educação Ambiental, por meio dos Comitês de Bacias Hidrográficas.

Bacia hidrográfica é, por outras palavras, o “conjunto de terras por onde

todas as águas pluviais, dos rios e seus afluentes correm”. 12 Estas águas tomam a

direção do rio principal, que determina seu nome. Para Coelho Neto (2007) bacia é a

“área que drena fluxos líquidos, sólidos e solúveis para uma saída comum.”

Um exemplo interessante para compreender melhor o que é uma bacia

hidrográfica é olharmos nossa mão: nossos dedos seriam os rios (que correm da

ponta de nossos dedos para a palma da mão) e que se vão encontrar na palma da

mão, ou seja, no rio principal, no lago ou no oceano. A mão, tomada por inteiro,

configuraria uma bacia. Assim, se determinada água não alimenta um determinado rio,

não pertence à bacia deste rio. Apenas as águas que alimentam este rio pertencem à

sua bacia.

As bacias estão divididas pelas montanhas (divisores de água) e se

interligam por vales (já que, evidentemente, as águas buscam sempre os pontos mais

baixos do relevo), onde as águas se encontram formando córregos, ribeirões e rios. A

título de exemplo podemos citar as águas que correm para o Ribeirão das Anhumas,

formando a “Bacia do Ribeirão das Anhumas”; tais águas correm depois para o rio

Atibaia, formando assim a “Bacia do Rio Atibaia” e depois correm para o Piracicaba,

quando todas as sub-bacias se tornam a “Bacia do Piracicaba”. Assim, chegamos à

“Bacia do PCJ”, que vai depois formar a “Bacia do Tietê” e a do Rio Paraná para

chegarmos enfim ao oceano, que é a maior bacia do mundo.

O maior desafio ambiental de toda e qualquer bacia é o lançamento de

efluentes urbanos e industriais.

Mas em se tratando de regularização fundiária um desafio importante

consiste em conseguir fazer harmonizar, quando sobrepostos, os mapas político-

administrativos e hidrográficos. O homem criou e cria unidades políticas e

administrativas rebeldes aos desenhos da natureza, o que inclui evidentemente o

desenho das bacias. (...) a compartimentação geográfica e a compartimentação político-administrativa não coincidem, criando alguns impasses de competência e dificultando a ação regulatória e de fiscalização. Por

12 definição e explicações encontráveis em http://www.gazetadelimeira.com.br/gazetinha/noticias.php?codigo=52

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exemplo: a área de mananciais do município de São Paulo encontra-se em duas diferentes sub-bacias: COTIA-GUARAPIRANGA e BILLINGS-TAMANDUATEÍ. Assim, se a articulação de políticas públicas entre os três níveis de governo é normalmente complexa, por conta das competências concorrentes, no caso da gestão de bacias hidrográficas é ainda mais complexa, já que os limites de bacias não coincidem com os limites de municípios ou de Estados, exigindo um diálogo ainda mais difícil para que os diferentes níveis de governo exerçam suas atribuições de forma harmônica. Martins(2006)

4.8 – RECUPERAÇÃO DE DANOS URBANO-AMBIENTAIS Por vezes o empreendedor imobiliário realiza uma atividade sem obter

previamente a necessária licença urbanística ou ambiental para, depois, já causado o

dano ambiental ou urbanístico, buscar junto ao Poder Público aquelas licenças. É o

que se costuma denominar “licença a posteriori”.

Uma vez realizada uma atividade causadora de algum nível de

degradação ambiental ou urbanística, qualquer providência pública tendente à

regularização da área para colocá-la conforme às exigências normativas precisa ser

condicionada à minimização dos danos causados. Configura-se uma troca: dá-se a

autorização desde que antes o empreendedor realize alguma atividade de

recuperação dos prejuízos ambientais já perpetrados.

Fala-se muito em “recuperação” de dano ambiental e a doutrina silencia

quanto à possibilidade de a “recuperação” se dar também quanto aos danos urbanos

causados.

Assim como quem causa dano ambiental sem previa licença precisará

realizar atividades recuperadoras do ambiente como condição necessária para obter

posteriormente a licença que deveria ter sido obtida previamente e não o foi, também

é possível pensar em exigir-se o mesmo de quem causa prejuízos urbanísticos sem

obter previamente a necessária licença.

“Recuperação” de prejuízos é gênero que abrange as seguintes

espécies:

• MITIGAÇÃO – que consiste em recuperar parcialmente no mesmo local;

• REPARAÇÃO – recupera integralmente no mesmo local

• COMPENSAÇÃO – recupera integral ou parcialmente em outro local

• INDENIZAÇÃO – não recupera, em razão de alguma impossibilidade concreta

de fazê-lo, mas ressarce (indeniza) em dinheiro ou outro meio o prejuízo

causado.

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É necessário, contudo, ter cuidado com “recuperações” ou outros

tentativas semelhantes de reconstrução do status quo que por vezes são incapazes de

causar um bem equivalente ao mal sofrido pelo elemento natural.

Embora a situação de uma floresta tropical seja bastante diversa de

uma mera “APP”, é importante demonstrar que a compensação (que pode se

relacionar com uma perda em floresta ou uma perda em APP) pode não gerar

benefício equivalente ao prejuízo que se busca “recuperar”.

Por tal motivo, reproduz-se aqui pesquisa realizada pela Universidade

de East Anglia e do museu Emílio Goeldi, de Belém (PA)13, divulgada em outubro de

2007 revelndo que o reflorestamento de florestas tropicais pode ser inútil na tentativa

de conservar a biodiversidade dessas áreas. No estudo analisaram-se quinze áreas de

floresta no nordeste da Amazônia brasileira. Recolheram-se informações sobre

animais e plantas em cinco florestas primárias (mata virgem), cinco secundárias (que

crescem sobre áreas antes desmatadas) e cinco florestas de reflorestamento com

árvores de eucalipto. Os resultados revelam que pelo menos 25% das espécies

analisadas não foram encontradas fora da mata virgem. Carlos Peres, pesquisador

que liderou o estudo, afirma que a pesquisa deixa claro que é muito melhor preservar

as florestas primárias do que realizar o reflorestamento das regiões devastadas. Além

disto, a pesquisa também indica que as florestas de reflorestamento não são tão

eficientes na absorção de dióxido de carbono da atmosfera, em comparação com as

florestas primárias.

Embora o estudo se refira a florestas primárias e as situações de

regularização fundiária em áreas de APP quase nunca atinjam tais corpos vegetais,

fato é que por vezes as moradias em áreas de APP devastam pequenas florestas

nativas intocadas que não têm o porte nem a expressão de uma floresta primária mas

que, quando devastadas, são de recuperação igualmente inviável à condição anterior.

O Código Florestal, prevê a possibilidade de, mediante autorização e

observadas inúmeras condições, se fazerem remoções vegetais mas, apesar de

prever mecanismos de compensação, não foi suficientemente técnico, causando

impasses para a aplicação das regras.

4.9 – ASPECTOS BÁSICOS DA LEGISLAÇÃO A legislação ambiental e urbanística brasileira foi progressivamente se

dando conta da necessidade de regular mais de perto de um lado a proteção ao

ambiente e de outro salvaguardas à moradia; e se viu em determinado momento

13 os dados constam de http://www.ambientebrasil.com.br/noticias/index.php3?action=ler&id=34679

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vivendo o dilema de precisar regular (decidir, portanto) as questões em que a moradia

protegida ameaçasse o ambiente protegido; ou por outra, situações em que a proteção

ao ambiente fosse colocada em risco exatamente pela moradia que a lei também

protege. Hoje inúmeras leis visam preservar a saúde do ambiente (em geral e urbano).

Desde a Constituição Federal, Código Florestal, Lei de Crimes Ambientais, Lei da

Política Nacional de Meio Ambiente, entre outras, a legislação é extensa, bastante

complexa, gerando dificuldades de interpretação, impasses, conflitos, incertezas

quanto a qual lei aplicar quando houver divergência de normas, e o mais nocivo dos

pecados: sobreposição de gestões. E há extensa legislação protegendo igualmente a

moradia. Qual delas há de prevalecer em situações de conflito?

Aqui estão alguns dos principais instrumentos legais ambientais,

urbanos e de proteção à moradia.

4.9.1 – CÓDIGO FLORESTAL É uma das leis mais importantes que disciplina o uso e ocupação do

solo das Áreas de Preservação Permanente (APP). O artigo 1º da versão atual do

Código Florestal declara que as florestas existentes no território nacional e as demais

formas de vegetação “são bens de interesse comum a todos os habitantes do País,

exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral

e especificamente esta lei estabelecem”.

Isto fez com que Machado(2004) concluísse que “O Código Florestal

(de 1965) antecipou a noção de interesse difuso, e foi precursor da Constituição

Federal quando conceituou meio ambiente como bem de uso comum do povo”.

O Código Florestal foi editado em sua primeira versão durante o Estado

Novo de Vargas (Decreto Federal 23.793, de 23 de janeiro de 1934), e já trazia alguns

conceitos de preservação de áreas marginais a cursos d’água, embora não fixasse distâncias mínimas a serem preservadas.

Eis o texto desse Decreto no que toca às hoje chamadas “APP´s”: Art. 4º Serão consideradas florestas protetoras as que, por sua localização, servirem conjunta ou separadamente para qualquer dos fins seguintes: a) conservar o regime das águas; b) evitar a erosão das terras pela ação dos agentes naturais; c) fixar dunas; d) auxiliar a defesa das fronteiras, de modo julgado necessário pelas autoridades militares; e) assegurar condições de salubridade publica; f) proteger sítios que por sua beleza mereçam ser conservados; g) asilar espécimes raros de fauna indígena. (...) Art. 8º Consideram-se de conservação perene, e são inalienáveis, salvo se o adquirente se obrigar, por si, seus herdeiros e sucessores,

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a mantê-las sob o regime legal respectivo, as florestas protetoras e as remanescentes.

O que hoje chamamos APP´s (áreas de preservação permanente)

foram primeiramente designadas como “florestas protetoras” e eram declaradas de

“conservação perene”. Praticamente a mesma idéia das “Áreas de Preservação

Permanente” de hoje. E as funções ambientais dessas tais “florestas protetoras” eram

basicamente as mesmas de hoje. Apenas descrevemos atualmente nas leis mais

funções dessas APP´s porque o desenvolvimento da ciência ambiental permitiu a

descoberta dessas funções que as APP´s sempre cumpriram.

4.9.2 – CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Em 1988 houve o advento de uma nova matriz legal no Brasil. Após

elaborada por uma assembléia constituinte inevitavelmente crivada por pressões de

toda espécie, foi promulgada a nova Constituição Federal.

Para aquilo que interessa a esta pesquisa, daquilo que está no texto

constitucional somente os direitos ao ambiente e à moradia interessam.

Curioso que até a Constituição de 1988 a divisão político-administrativa

chamada “município” não era expressamente mencionada como parte integrante da

Federação, embora muitos entendessem que a Federação brasileira também os

compreendia. A Constituição esclarece agora definitivamente este ponto, inserindo,

expressamente no seu artigo primeiro e também no artigo 18, o Município como ente

federativo autônomo.

A autonomia se expressa no art. 29: o Município se rege por Lei

Orgânica própria, promulgada pela Câmara Municipal. Romperam-se, assim, as

rédeas de interferência do legislador estadual em assuntos de organização específica

do Município, a quem está garantida independência administrativa, legislativa e

financeira em relação a qualquer autoridade estadual ou federal no desempenho de

suas atribuições exclusivas (questões de seu “peculiar interesse”).

A Constituição Federal previu a proteção ao ambiente em diversos

dispositivos. Agindo diferentemente do que fez em relação a todos os demais

importantes direitos de cidadania, que foram elencados agrupadamente em um

determinado artigo (5º.) o constituinte decidiu tratar do assunto em capítulo específico

(VI, art.225) o que diz da seriedade e da importância com que o assunto foi tratado.

A questão ambiental, nas suas mais diversas conotações, está tratada

nos seguintes dispositivos:

• Art. 5º. LXXIII – direito à petição para proteção jurisdicional de questões ambientais

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• Art. 23, VI – União tem o dever de proteção do ambiente • Art. 24, VI – União e Estados membros têm competência concorrente para

legislar sobre ambiente • Art. 129, III – Ministério Público tem obrigação institucional de proteger o

ambiente • Art. 174, § 3º. – atividades garimpeiras não podem abalar o ambiente • Art. 186, II – função sócio-ambiental da propriedade • Art. 200, VIII – Sistema Único de Saúde e o meio ambiente do trabalho • Art. 220 – comunicação social não pode defender práticas ambientais nocivas • Art. 225 – todo um capítulo dedicado à proteção ambiental em todas as suas

nuanças.

O legislador constitucional foi, portanto, bastante devotado à causa

ambiental e muito minudente e cauteloso ao prever sua proteção.

Já com o Direito à Moradia foi diferente. Apesar de toda a articulação,

pressão e negociação dos movimentos populares, não foi de imediato que o Direito à

Moradia foi incorporado ao texto constitucional. De início o artigo em que ele hoje está

colocado não o previa nem como direito social nem como qualquer outro.

Sua previsão veio sob a forma de Emenda (a de número 26), apenas 12

anos depois da promulgação da Constituição Federal.

Mas se veio tarde ou se ficou tratado em apenas uma palavra dentre

muitas de um determinado artigo, é forçoso reconhecer que veio com força.

O ambientalismo deve ter vivido no ano 2000 seus piores pesadelos.

Foi nesse ano que aconteceu a emenda do direito à moradia e, três meses depois, a

alteração do Código Florestal flexibilizando a alteração ou supressão vegetal de áreas

de APP. A Resolução 369 do CONAMA apenas explicitou, seis anos depois, que uma

das possibilidades de intervenção na APP seria por meio de regularização fundiária.

Mas a previsão de intervenção se deu mesmo no ano 2000. Além disto foi no mesmo

ano, no segundo semestre, que a esquerda preparou para o então candidato “Lula” à

Presidência da República o “projeto moradia”, quando já se sabia da força com que tal

candidatura se vinha impondo, o que terminou por ser confirmado 2 anos depois.

Foram dois severos baques normativos para os que julgavam intocáveis

esses espaços. Na verdade, porém, a intocabilidade não passava de uma previsão

legal porque, na realidade, as APP´s já vinham sendo ocupadas há pelo menos 3

décadas.

4.9.3 – O ESTATUTO DA CIDADE (Lei 10.257 de 10/07/01, Projeto de Lei Nº 5788/90)

A primeira tentativa de aprovar uma Lei de Desenvolvimento Urbano

surge no âmbito da Comissão Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU, em

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1977, que considerava que as administrações municipais não dispunham de um

instrumental urbanístico para enfrentar eficientemente a especulação imobiliária e

democratizar a fruição dos serviços públicos urbanos. Mas não foi bem sucedido.

Com a nova Constituição Federal (1988) na qual os setores

conservadores haviam conquistado a não auto-aplicabilidade da “função social da

propriedade” fazendo-a depender de lei Federal e de Plano Diretor, tornou-se

necessário regulamentar o artigo 182 e 183 da Constituição. No Senado se inicia um

projeto (do então Senador Pompeu de Souza) denominado “Estatuto da Cidade” que

terminou aprovado em 1990.

Os prefeitos eleitos no final da década de 80 pleiteavam instrumentos

capazes de permitir uma gestão direcionada ao atendimento às demandas da

população e enfrentamento da especulação imobiliária. Alguns municípios já

utilizavam certos instrumentos legais (como o imposto sobre a propriedade predial

urbana progressivo no tempo) mas enfrentavam grandes dificuldades jurídicas para

aplicá-los, para o quê contribuía a posição conservadora do Supremo Tribunal Federal

ao julgar inconstitucional a Lei Municipal de São Paulo que dispunha sobre a

progressividade, em razão da ausência da lei federal de desenvolvimento urbano.

Aprovado no Senado, o projeto seguiu para a Câmara Federal, onde

tomou o nº PL 5788/90. Seus princípios eram:

• função social da propriedade (definição) • direito a cidades sustentáveis, terra urbana, moradia, saneamento básico, infra-

estrutura, transporte, serviços públicos, trabalho e lazer para as presentes e futuras gerações;

• gestão democrática da cidade, resgatando os instrumentos constitucionais e acrescentando os conselhos de participação, orçamento participativo, audiências públicas e tribunas populares

• regularização fundiária (usucapião e concessão de uso especial para fins de moradia)

• recuperação, para a comunidade, da valorização imobiliária decorrente de investimentos do Poder Público

• justa distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização • cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da

sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social

O Fórum Nacional pela Reforma Urbana pressiona, mobiliza e negocia

desde 1990 pela visão dos movimentos populares e do lado empresarial o mesmo

acontece com a CBIC – Câmara Brasileira da Indústria da Construção na elaboração

de emendas. Mas a Câmara dos Deputados demonstrou grande reação ao projeto. Na

Comissão de Finanças (relator Luis Roberto Ponte, deputado pelo PMDB do Rio

Grande do Sul, empresário ligado à Câmara Brasileira da Indústria da Construção

Civil) tramitou por 5 anos. Nas comissões de Meio Ambiente e do Consumidor outros

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dois anos foram necessários e no final de 1998 a comissão de Desenvolvimento

Urbano e Interior a analisou. Até ser votada em plenário foram muitos anos de

tramitação.

Aprovado o Estatuto da Cidade (denominação oficial da lei 10.257 de

10/07/01) regulamentando o desenvolvimento urbano, uma das mais importantes e

inovadoras que entraram em vigor recentemente no Brasil.

É preciso chamar a atenção para o fato de que apesar do nome, o

“Estatuto da Cidade” não é uma “lei mais importante” que as demais leis. Um Estatuto,

salvo quando elaborado na forma de Lei Complementar, tem o mesmo “status” de uma

lei normal. Não é hierarquicamente superior às demais leis.

Seus principais méritos estão:

• na imposição aos municípios da elaboração de planos diretores

obrigatoriamente participativos (para municípios com população superior a 20

mil pessoas ou em outras situações especiais), traçando as diretrizes para

áreas básicas, como ocupação do solo, habitação, meio ambiente e prioridades

de investimentos econômicos. Temos hoje quase 21.700 cidades pensando e

planejando o seu futuro urbano.

• definição de diversos instrumentos urbanísticos que objetivam o combate à

especulação imobiliária e o incentivo à regularização fundiária.

• Na modificação radical do conceito de “propriedade”, que abandonou sua ótica

egoísta voltando-a ao atendimento dos interesses coletivos, expressos na

“função social da propriedade”. O proprietário não pode mais utilizar sua

propriedade em função apenas de seus próprios interesses invididuais. Eles

que antes deviam observar apenas os direitos de vizinhança e as posturas

municipais, agora têm o dever de utilizá-la (dificultando que os imóveis sejam

mantidos ociosos, o que combate a especulação imobiliária e a existência de

vazios urbanos já que a sociedade precisa dessas áreas para poder atender às

necessidades do conjunto da população).

• Desvinculação do “direito à propriedade” em relação ao “direito à edificação”.

• Tratar a regularização fundiária como prioritária, cercando-a de cuidados legais

especiais de modo a permitir sua efetivação concreta desde que o

administrador público assim o deseje.

• Reforçar a autonomia municipal criando ferramentas aplicáveis pelo município

que possibilitam uma intervenção mais abrangente e efetiva do Poder Público

no planejamento e desenvolvimento urbano.

O grande desafio está em implementá-lo como ferramenta concreta de

modificação dos costumes predatórios na relação do homem com a propriedade e com

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a cidade, pois ele tende a favorecer a ocupação ordenada e democrática dos espaços

das cidades. Para isso a sociedade deve conscientizar-se, e manter-se vigilante,

fiscalizando a efetiva utilização dos novos instrumentos pelo município embora se

saiba que os primeiros efeitos da implantação do Plano Diretor só começarão a fazer-

se sentir em prazo de cinco a dez anos. Bem utilizado, o Estatuto poderá tornar-se

importante ferramenta para corrigir algumas das mais graves mazelas urbanas

brasileiras.

Para Martins (2006) se há de difundir o Estatuto porque “Conhecer o

Estatuto da Cidade vai além conhecer o que ele regula, enquanto direitos, e os

instrumentos que ele apresenta, mas inclui também considerar o que pode ser

implementado a partir de suas disposições enquanto Política Urbana para o conjunto

do país e para cada cidade em sua especificidade de modo participativo e

descentralizado.”

4.9.4 – A CONSTITUIÇÃO ESTADUAL PAULISTA Inserida no contexto das inovações ou alterações legislativas que foram

feitas ao longo das duas últimas décadas para reformular a Política Urbana e permitir

a concreta efetivação do “direito à moradia”, a alteração da Constituição Paulista se

fazia necessário para retirar dela a proibição de alteração da destinação de áreas

verdes ou institucionais nos loteamentos.

Como se sabe, quando um loteamento é autorizado, determinados

espaços desses loteamentos se transformam em ruas, praças (áreas públicas) que ou

se destinam a “área verde” (para transformar em parque ou assemelhados) ou a “área

de interesse institucional” na qual se instalam creches, escolas, postos de saúde,

distritos policiais ou outros equipamentos públicos.

A redação primeira do art. 180 da Constituição proibia expressamente a

alteração de destinação (desafetação) dessas áreas para o fim de permitir outro tipo

de uso de tais áreas. Visava-se com isto impedir que, a critério de autoridades locais

movidas algumas vezes apenas por interesses políticos, a população moradora

desses loteamentos se visse privada desses espaços de lazer ou de equipamentos

públicos importantes.

Com o impedimento legal os registros de imóveis não podiam registrar,

as prefeituras estavam inibidas de fazer projetos e o Estado não podia repassar

recursos. Por conta disso, o Ministério Público – agindo corretamente até então –

tomava posição de defesa da Constituição do Estado.

A nova redação do inc. VII do art. 180 da Constituição do Estado de São

Paulo lhe foi dada pela Emenda 23 de 31/01/07

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Artigo 180 – (...) VII - as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão ter sua destinação, fim e objetivos originais alterados, exceto quando a alteração da destinação tiver como finalidade a regularização de: a) loteamentos, cujas áreas verdes ou institucionais estejam total ou parcialmente ocupadas por núcleos habitacionais de interesse social, destinados à população de baixa renda e cuja situação esteja consolidada; (...) §1º - As exceções contempladas nas alíneas "a" e "b" do inciso VII deste artigo serão admitidas desde que a situação das áreas objeto de regularização esteja consolidada até dezembro de 2004, e mediante a realização de compensação, que se dará com a disponibilização de outras áreas livres ou que contenham equipamentos públicos já implantados nas proximidades das áreas objeto de compensação. §2º - A compensação de que trata o parágrafo anterior poderá ser dispensada, por ato fundamentado da autoridade competente, desde que nas proximidades já existam outras áreas com as mesmas finalidades que atendam as necessidades da população local. (NR)

Torna-se expresso, portanto, que se possa desafetar áreas de uso

público ocupadas, para assim liberar a regularização fundiária de interesse social e

possibilitar aos moradores a aquisição de propriedade dessas áreas ou, ao menos, a

obtenção da Concessão de Direito Real de Uso para posterior registro de seus títulos.

A medida favorece diretamente a população de baixa renda e

moradores de áreas irregulares estabelecidos até 2004 (limitação temporal imposta

pela emenda para evitar benefício àqueles que, sabendo da alteração pretendida,

houvessem invadido essas áreas durante a tramitação do projeto).

Trazem-se agora os imóveis para a condição de legalidade. É mais

importante legalizar do que construir novos imóveis. Em dez ou quinze anos, esse

investimento retorna para a sociedade apenas com o pagamento de tributos gerados

por esse imóvel legalizado.

Há limites, todavia. A alteração da destinação poderá se dar desde que

seja realizada uma compensação das áreas públicas ocupadas por moradia, por

outros espaços ou que contenham equipamentos, como escolas, postos de saúde,

creches, implantados nas proximidades dos locais objeto de compensação.

Tal compensação poderá ser dispensada, desde que nas proximidades

do assentamento já existam áreas públicas, que atendam às necessidades da

população local por serviços públicos essenciais.

O processo de regularização fundiária dessas áreas públicas requer

• verificação do projeto de loteamento • levantamento da situação real

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• o estudo sobre o atendimento das demandas dos moradores por equipamentos públicos implantados inclusive nas imediações do assentamento.

• desafetação de tais espaços. Para tanto deverá elaborar um projeto de lei, que será enviado à Câmara Municipal para aprovação e que permitirá a regularização para fins de moradia.

• registro do loteamento e do núcleo habitacional no Cartório de Registro de Imóveis.

• concessão ou venda dos imóveis, utilizando-se (a prefeitura) ou de concessão, pela qual a família terá um título que garantirá a posse, mas não a propriedade do imóvel; ou de venda, pela qual a família obtém a propriedade definitiva de seu imóvel.

• registro da propriedade de cada lote em nome do morador, no Cartório de Registro de Imóveis.

4.9.5 – A RESOLUÇÃO CONAMA 369 Apesar da enorme força política e do apoio institucional e popular do

movimento ambientalista, a mudança do texto constitucional brasileiro para prever a

moradia como “direito social” provocou naquele movimento severas baixas.

Embora a proteção à natureza continuasse a gozar de prestígio

constitucional, a partir daquela alteração aquela proteção passou a enfrentar algumas

dificuldades pois os assentamentos de moradia em áreas de APP passaram a

configurar um direito constitucional tanto quanto a proteção ao ambiente já

anteriormente configurava. A moradia, que costumava ameaçar as APP´s, até então

não era páreo – no campo jurídico – para o ambiente. Inversamente proporcional se

davam as coisas no plano fático, em que a moradia nadava de braçada.

A alteração na Constituição Federal veio, assim, a colocar em pé de

igualdade – no plano jurídico – tanto o direito ao ambiente livre de degrados de

qualquer espécie, quanto o direito à moradia.

Resultado prático: a moradia, que no terreno dos fatos já era mais forte

do que o ambiente, fortalecida agora na questão jurídica, venceu a disputa.

Foi o momento certo para os ambientalistas correrem à normatização

federal e, por resolução do CONAMA, estabelecerem pelo menos alguns critérios para

que o reconhecimento do direito à moradia não aquilo que ambientalistas

consideravam ainda maior devastação ambiental pelo país afora.

Em 26 de maio de 2000 a Medida Provisória 1956 que vinha sendo

sucessivamente re-editada pelo Governo Federal, foi re-editada novamente mas com

alterações. Dentre elas avultada uma grande novidade: a possibilidade de, em

algumas situações muito particulares, excepcionais mesmo, e desde que atendidos

inúmeros requisitos, ser suprimida vegetação de APP, mediante autorização do órgão

estadual competente.

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Essa mesma medida provisória determinou que Resolução do

CONAMA é que deveria prever quais as situações concretas em que a supressão

poderia ser feita.

Essa alteração do até então inflexível e duramente criticado Código

Florestal é um marco importantíssimo da regularização fundiária em área de APP

porque foi fruto de um movimento urbanista bastante combativo e organizado que

forçou ambientalistas a reposicionar-se, avaliar melhor a situação e... ceder.

E foi exatamente a Resolução 369/06, feita por um órgão ambiental e

não urbanista que terminou prevendo a regularização fundiária em APP como uma das

situações passíveis de supressão da vegetação dessa APP.

Se a entronização do Direito à Moradia na Constituição Federal foi o

marco mais importante para a permissão da regularização fundiária em geral, a

Medida Provisória 1956/50 deve ser comemorada como o marco permissivo mais

importante para a regularização fundiária em área de APP.

Assim, as Áreas de Preservação Permanente que historicamente foram

e continuam sendo sacrificadas, especialmente no meio urbano, onde dão lugar a

estradas, favelas, avenidas e até mesmo a bairros, continuaram “protegidas” por lei,

embora permitidas algumas incursões do meio ambiente urbano por sobre elas.

A Resolução 369/06 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)

de maio de 2006 teve, pois, seu nascedouro, na Medida Provisória 1956/50 de 2000 e

trouxe alguns avanços.

Primeiro: só admite descaracterização de APP em

• “casos excepcionais” e • que sejam “de utilidade pública” ou “de interesse social” e • que tenham baixo impacto ambiental e • apenas quando não haja outra alternativa e • obtenção de autorização do órgão ambiental estadual. e • em se tratando de regularização fundiária, será ainda necessário atender os

seguintes requisitos: o a regularização precisará ser sustentável; e o a intervenção na APP somente será possível se o assentamento de

moradia estiver consolidado; e o essa consolidação precisa ter acontecido até 10 de julho de 2001

(limitação temporal para evitar que ocupações mais recentes possam ser legalizadas) e

o a área precisa ter sido ocupada por famílias de baixa renda; e o a ocupação precisará ser em área urbana; e o essa área urbana precisará estar declarada como ZEIS no Plano Diretor

ou outra lei municipal; e o a densidade habitacional da área em questão precisa ser superior a 50

hab/hectare; e o estar a área fixada em um tipo específico de APP previsto na resolução

(o que proibe a regularização fundiária para determinados tipos de APP); e

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o o município deverá apresentar um “Plano de regularização fundiária sustentável” (altamente detalhado); e

o a área não pode ser de risco; e o a gestão precisará ser democrática; e o precisará ficar garantido o monitoramento ambiental da área; e

finalmente o deverá ser garantida a não ocupação do restante da APP.

São ao todo 20 requisitos para que uma regularização fundiária em área

de APP se dê de acordo com a legislação aplicável. Parece haver mais do que

suficientes garantias de que a regularização fundiária precisará ser feita dentro de

critérios protetivos do ambiente.

Segundo: clarificou o ambiente jurídico. Embora não houvesse, alguns

Estados e Municípios acreditavam haver um vácuo legislativo a respeito de APP´s e

elaboravam leis mais ou menos permissivas. A resolução é, neste sentido, uma

resposta a essas legislações. A clareza da lei dificulta posteriores acessos ao Poder

Judiciário buscando favores que as leis omissas sugerem.

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5. – ESTUDO DE CASOS Aqui se inicia propriamente o relato da pesquisa de alguns dos casos de

regularização fundiária em área de APP realizados em Campinas.

Busca-se pesquisar se tudo o que até aqui ficou dito a respeito de

regularização fundiária realmente ocorreu em Campinas.

5.1 – APRESENTANDO CAMPINAS Município brasileiro do Estado de São Paulo, Campinas se localiza ao

noroeste da capital do estado, distando dela cerca de 90 quilômetros. Possui área de

795,697 km² (algumas fontes informam 794 km2). No censo 2000 do IBGE apontou-se

para 980.204 habitantes. Sua população estimada a partir de 2004 é de

aproximadamente 1.059.420 ou 1.029.898 (2005 estimativa da Fundação Seade) com

mais de 98% vivendo em área urbana.

É sede de Região Metropolitana criada em 2000, que abrange 19

cidades totalizando população de aproximadamente 3,2 milhões. É a terceira maior

cidade do Estado em termos populacionais, depois de São Paulo (10.927.985 hab. -

2006 est.) e Guarulhos (1.283.253 hab. - 2006 est.). O povoamento se inicia por volta

de 1739 e em 1842, contando então pouco mais de 2.100 habitantes, se eleva a

“cidade” com o nome de Campinas.

Campinas teve sempre uma vocação agrária. A cidade viveu,

economicamente, ciclos de produção de cana de açúcar (século XIX) e,

posteriormente, cafeeira (início do século XX) geraram economias que ajudaram a

formar a cidade tal como ela tradicionalmente foi sempre vista: uma cidade de

características marcadamente rurais com amplas fazendas a seu redor.

Com a crise da economia cafeeira, a partir da década de 1930, a cidade

"agrária" de Campinas assumiu uma fisionomia mais industrial e de serviços. Chegam

imigrantes procedentes das mais diversas regiões do estado, do País e do mundo,

especialmente italianos, atraídos pela instalação de um novo parque produtivo

composto de fábricas, agroindústrias e atividades as mais diversas.

Em 1950 havia cortiços, construções baratas, mas não havia favelas.

Os pobres se organizam, encontram soluções alternativas de moradia mas é talvez o

fato de a quantidade de famílias sem moradia ser ainda relativamente pequeno que

determina a invisibilidade do problema de moradia. Também o fato de boa parte das

industrias criarem, quando de sua instalação, vilas de moradia para seus operários

(bem próximas às indústrias) joga um papel importante para que o drama social da

falta de moradia ainda não apareça como algo capaz de modificar agendas públicas.

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A industrialização que começa então a acontecer é que vai ser o

atrativo principal para que grandes contingentes populacionais busquem Campinas. O

território da cidade (área urbanizada) aumentava 15 vezes e sua população, cerca de

5 vezes.14

Foi entre as décadas de 1970/1980, que os fluxos migratórios internos

levaram a população a praticamente duplicar de tamanho.

Desde 1998, a cidade vem assistindo a uma mudança acentuada na

sua base econômica: perde importância o setor industrial (com a migração de fábricas

para cidades vizinhas ou outras regiões do país - em parte por causa da violência e

dos altos impostos), e ganha destaque o setor de serviços (comércio, pesquisa,

serviços de alta tecnologia e empresas na área de logística) .

5.2 – RIBEIRÃO DAS ANHUMAS E SEU CONTEXTO 15

Desde o início dos estudos pareceu claro que a pesquisa sobre a

regularização dos múltiplos assentamentos de moradia irregulares que se instalaram à

margem esquerda do Ribeirão das Anhumas em Campinas (em área de APP,

portanto) não se faria completa sem que se estudasse a conformação desse mesmo

ribeirão, sua importância, a situação de suas APP´s, sua morfologia e outros

elementos que a pesquisa revelasse importantes. O Ribeirão está situado na chamada

“Bacia do PCJ”, razão pela qual o estudo se inicia por ela.

5.2.1 – BACIA DO PCJ O Estado de São Paulo é dividido em 22 bacias hidrográficas. A de

número 5, situada na porção centro-oriental do Estado tem o nome de “Piracicaba,

Capivari e Jundiaí”, tecnicamente conhecida por “Bacia do PCJ”.

A localização da “Bacia do PCJ” no contexto do Estado é vista aqui nas

imagens 2 a 4:

14 Conforme http://www.campinas.sp.gov.br/campinas/campinas/origens/ 15 os mapas reproduzidos neste capítulo se encontram disponíveis em http://www.cori.unicamp.br/foruns/agro/evento12/jose.ppt#1

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AS BACIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO E A DO PCJ

(imagens 02 e 03)

LOCALIZAÇÃO DAS BACIAS PCJLOCALIZAÇÃO DAS BACIAS PCJ

BACIAS HIDROGRÁFICAS PCJBACIAS HIDROGRÁFICAS PCJ

A BACIA DO PCJ

(imagem 04)

mapa indicando a qualidade das águas que formam a “Bacia do Rio Piracicaba”, onde “Classe 1” indica excelente qualidade e evidentemente “Classe 4” a quase ausência de qualidade.À direita do mapa estão as montanhas que formam a divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais e onde, portanto, estão as nascentes dos rios que posteriormente formarão o “Rio Piracicaba”. À esquerda do mapa temos as áreas a JUSANTE da bacia, que posteriormente formarão o Rio Tietê (imagem encontrável no site http://www.saisp.br/site/piracicaba.html acessado em 25/07/07)

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Dados gerais da bacia hidrográfica do PCJ :

• abrange 60 municípios paulistas e 4 municípios mineiros. • Atinge aproximadamente 5 milhões de habitantes no Estado de São Paulo e

aproximadamente 70 mil habitantes no Estado de Minas Gerais. • Tem área total de 15.320 km2 • Isto corresponde a 6,2% do território total do Estado de São Paulo • Do total da bacia do PCJ o Rio Piracicaba é o que abrange maior área: 12.600

km2, que significa 82,2% da área total da bacia • Seguem-se a bacia do Capivari que tem 10,2% da área total da bacia (o que

significa 1.570 km2) e a bacia do Jundiaí c com seus 1.,150 km2 atinge 7,6% do total da bacia.

• É uma das regiões mais ricas do Brasil, possuindo condições sócio-econômicas quase comparáveis às de Primeiro Mundo. A área é responsável por aproximadamente 10% do Produto Interno Bruto brasileiro.

• Esgotos sanitários em operação abrangem 85% da população urbana, com coleta.

• Desses 85% coletados, apenas aproximadamente 35% do esgoto urbano da bacia é tratado, o que gera enorme carga poluidora.

• Criados e instalados segundo a Lei Estadual (SP) nº 7.663/91 e Lei Federal nº 9.433/97 os comitês das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí têm tido regular funcionamento.

A análise do mapa da bacia do PCJ revela situações mais que

previsíveis:

a- quanto mais próximo das nascentes, melhor, evidentemente, a qualidade das

águas;

b- logo após ultrapassar os limites da cidade de Jundiaí, o “Rio Jundiaí” degrada

intensamente sua qualidade, recobrando-a em parte somente após transpor as

turbulências saneadoras situadas próximas à cidade de Indaiatuba;

c- logo após deixar para trás a cidade de Atibaia, o “Rio Atibaia” igualmente

degrada bastante;

d- o mesmo acontece com o Rio Camanducaia logo após passar por Amparo;

e- o mesmo se dá com o Rio Jaguari após deixar para trás a cidade de Pedreira.

f- logo após deixar a cidade de Bragança Paulista para trás, o “Rio Jaguari” sofre

desmesurada degradação, passando da classe 1 para a classe 3 diretamente, sem a

escala da classe 2;

g- o mesmo acontece com o “Rio Atibaia” logo após transpostos os limites das

cidades de Campinas e Paulínia (violenta degradação, passando da classe 1 para a 3,

sem escala intermediária).

h- Impressiona também a agressão em sua qualidade que sofre o Rio Capivari

logo depois de banhar o limite urbano da cidade de Campinas.

i- Não é toda a verdade que “as ocupações humanas para fins de moradia, na

beira de córregos, poluem”; a verdade inteira é que a cidade inteira polui os cursos

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d´água e não apenas as áreas invadidas para fins de moradia. Estas não poluem mais

que as demais atividades humanas industriais, comerciais, agrícolas e de serviços

realizadas no espaço urbano.

5.2.2– BACIA DO RIO PIRACICABA Dos rios que formam a bacia do PCJ, o que mais de perto interessa a

este trabalho é o Rio Piracicaba, que é formado, dentre outros, pelo Rio Atibaia. Seus

outros principais tributários são os rios Camanducaia e Jaguari.

Como se vê do mapa da bacia do Piracicaba, no esquema

individualizador abaixo, ela é formada pelos rios Corumbataí, Camanducaia, Jaguari e

Atibaia.

Já na imagem seguinte encontramos detalhamento da mesma bacia,

evidenciando a grandiosidade de suas dimensões (12.400 km).

Detalhe importante para a compreensão dos fenômenos urbanos

pesquisados é a proximidade da área estudada em relação à área ocupada pela

chamada “Grande São Paulo”.

O rio Piracicaba tem grande importância econômica e ambiental para

toda a “grande Campinas” não apenas devido às suas dimensões ou à multiplicidade

de seu uso como igualmente pela ampla variedade de espécies animais e vegetais

que abriga.

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A BACIA DO PIRACICABA

(imagens 05 e 06)

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5.2.3– BACIA DO RIO ATIBAIA Dos rios que formam a “Bacia do Piracicaba”, o Rio Atibaia é o que

apresenta maior interesse a este trabalho, por ser alimentado, dentre outros, pelo

Ribeirão das Anhumas que corta a cidade de Campinas. Este Ribeirão é seu afluente

da margem esquerda.

A bacia do Atibaia “abrange uma região de alta densidade urbana e

industrial e, sendo o Atibaia o principal corpo aquático que corta a “Região

Metropolitana de Campinas”, de alguma forma reflete em termos de resíduos todos os

usos e ocupações do solo. Ademais, 95% da água potável de Campinas é extraída do Atibaia, que nasce próximo a Monte Verde, no distrito de Camanducaia, MG, e que

na confluência com o rio Jaguarí dá origem ao rio Piracicaba (mas já depois de

ultrapassados os limites da cidade de Campinas). (...)as águas do Atibaia são

classificadas como regulares para abastecimento publico até chegar à Região

Metropolitana de Campinas, tornando-se ruins após passar pelo município de

Campinas, situação que paulatinamente vem se agravando, mostrando que as ações

sobre a bacia por enquanto não trouxeram benefícios.” (conf. LOCATELLI)

O mesmo pesquisador chama a atenção para o equívoco da prioridade

escolhida pelas autoridades de saneamento das sucessivas administrações municipais

campineiras em relação a este importante curso d´água: a velocidade de degradação do rio Atibaia é enorme. As novas estações de tratamento ainda em construção possam reverter um pouco o quadro(...) Precisamos levar em consideração não só a potabilidade da água mas também a possibilidade de preservar a saúde do ecosistema.16

5.2.4 – BACIA DO RIBEIRÃO DAS ANHUMAS E SUA FORMAÇÃO Campinas é bem vascularizada por córregos, ribeirões e rios.

O “Ribeirão das Anhumas”, principal dos cursos d’água urbanos, nasce

no Jardim das Andorinhas, bairro da cidade e sua foz se encontra no Rio Atibaia, em

Paulínia, próximo à empresa multinacional Rhodia. Vence o canteiro central da

Avenida José de Sousa Campos, e passa próximo à Lagoa do Taquaral e à

UNICAMP, na Cidade Universitária, em Barão Geraldo.17

16 idem 17 Obtido em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ribeir%C3%A3o_das_Anhumas

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A BACIA DO ANHUMAS

imagem 07 - BACIA DO RIBEIRÃO DAS ANHUMAS

Imagem 08 - Confluência dos córregos Proença (em primeiro plano, visto de montante a juzante) e Canal Saneamento, também denominado Orozimbo (acima, provindo da esquerda), que formam o Ribeirão das Anhumas (saindo à direita). Imagem acessível em http://www.iac.sp.gov.br/projetoanhumas/f14.htm, acessado em 02/05/2008

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ÚLTIMO AFLUENTE DO ANHUMAS ANTES DO INÍCIO DA ÁREA DOS NÚCLEOS HABITACIONAIS DA MARGEM ESQUERDA

Imagem 09 - O ribeirão “Mato Dentro” que provém da região do Parque Monsenhor Salim. Ele é visto em sua direção jusante. É este o ponto em que ele conflui com o Ribeirão das Anhumas (que provém da esquerda, na imagem).

Dado curioso: existência da ferrovia correndo paralelamente ao Ribeirão, marcante presença no cenário e na vida das comunidades dos núcleos aqui estudados. A partir deste ponto mostrado na imagem, à direita dela, começam um pouco mais adiante os núcleos Vila Nogueira, São Quirino, Dom Bosco e Gênesis, nesta ordem. O “Núcleo Residencial Guaraçaí” está em região situada à esquerda desta imagem. Veja-se logo acima da mureta esquerda de concreto, uma base de pedras. Aqui havia uma ponte ferroviária, da qual restaram apenas suportes de pedra. A Estação Anhumas fica em região situada à direita desta imagem e o Parque Taquaral à esquerda dela. Há projeto de trazer novamente o trem, agora com interesses turísticos, da Estação Anhumas para uma futura estação “Taquaral”. Assim a “Maria Fumaça” poderia futuramente ligar uma área de lazer da Campinas (Taquaral) com o centro da cidade de Jaguariúna (já servida hoje por este ramal ferroviário). Caso isto aconteça, esta ponte precisará ser reativada exatamente neste ponto.

Imagem 10 - do passado cujo nome inspirou a denominação do “Ribeirão das Anhumas”

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A bacia hidrográfica do Ribeirão das Anhumas, afluente da margem

esquerda do rio Atibaia, drena ao longo do curso dos seus principais tributários os

esgotos pluviais e domésticos de bairros de classe alta, situados nos topo dos morros,

em direção a vilas e barracos das regiões ocupadas pela população pobre. Abrange

áreas dos municípios de Campinas e Paulínia.

Grande parte do sítio urbano da cidade de Campinas está dentro de

seus divisores, além de importantes áreas industriais e de comércio deste município

paulista.

O estudo da Bacia do Ribeirão das Anhumas se justifica pela sua

extensão espacial, com 150 km2 de área, grande parte pertencente ao Município de

Campinas, e pela quantidade de habitantes na área, um total de 350 mil pessoas.

Além disso, o Ribeirão das Anhumas é responsável por parte significativa do volume

d’água poluída que chega no Rio Atibaia, sub-bacia do Rio Piracicaba.18

A bacia apresenta elevado grau de degradação ambiental,

conseqüência da falta de planejamento da ocupação da terra, o que permitiu o avanço

dos núcleos urbanos e industriais, de maneira desordenada, sobre áreas rurais e de

APP. Apenas 5% da extensão dos cursos d’água da bacia do Ribeirão das Anhumas

está coberta de mata ciliar (TORRES et al., 2006).

Como conseqüência, problemas de alagamentos em áreas densamente

ocupadas, poluição do ar, do solo e das águas, perda de diversidade biológica,

habitações em áreas de risco, dentre outros, ameaçam o ambiente e a qualidade de

vida da população (BRIGUENTI, 2005; TORRES et al., 2006).

Córregos Proença e Orozimbo Maia são dois dos principais cursos

d´água alimentadores do Ribeirão das Anhumas, que deve sua designação à

freqüência de aves com este nome, ave anseriforme (que tem forma de ganso), de

dorso preto e com um espinho na testa (ver ilustração).

Segundo Torres et al. (2006), tais córregos, situados nas áreas centrais

de Campinas, encontram-se já canalizados ou revestidos, recebendo esgoto in natura.

Recebem quase todas as águas pluviais e o esgoto domiciliar da região central da

cidade. A área drenada por estes afluentes é densamente urbanizada e

impermeabilizada (TORRES et al., 2006).

O Córrego Proença possui sua nascente no bairro Jardim Itatiaia, e

drena parte da área central da cidade e do bairro Cambuí, recebendo as águas do

sistema de drenagem e de esgoto desses bairros. No seu início, na avenida Princesa 18 conforme http://www.archive.org/details/esboco_metodologico

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D’Oeste, o córrego encontra-se canalizado e, posteriormente, revestido parcialmente e

com vias expressas marginais. Após o cruzamento com a avenida Moraes Sales, onde

se inicia a avenida José de Souza Campos (via Norte-Sul), o córrego possui em seu

entorno, ao longo de aproximadamente 300m, uma área que foi integrada à estrutura

urbana como área verde.

O encontro do Córrego Proença com o Córrego Mato Dentro, onde se

forma o Anhumas, dá nome à bacia (TORRES et al., 2006).

Seguindo a jusante, na margem direita do Anhumas, localiza-se a foz do

Córrego Brandina, que provém da região do bairro Vila Brandina, junto à avenida

Carlos Grimaldi, área em que se localiza, dentre outros locais de grande comércio, o

Shopping Center Iguatemi.

Todos esses afluentes e o Ribeirão das Anhumas vão abastecer o rio

Atibaia importante manancial regional e formador, mais adiante, do rio Piracicaba.

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5.2.5 – NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DO RECURSO HÍDRICO

A água é evidentemente elemento essencial à vida e à configuração dos

ecossistemas. Sem ela a vida é inviável. Mas é também o destino de boa parte da

poluição produzida pelo homem, que sempre lançou detritos nos cursos de água. Até

a Revolução Industrial isto não causava maiores conseqüências, já que os mananciais

têm considerável (mas limitado) poder de auto-limpeza, de regeneração. Com a

industrialização, porém, isto se alterou pois o volume de detritos despejados nas

águas cresceu de modo a superar aquela capacidade de auto-purificação.

É realmente necessário proteger os igarapés, córregos, ribeirões, rios,

lagos, etc. em cujas margens há formação de moradias? De que forma a poluição que

essas moradias inegavelmente produzem é capaz de agredir um curso d´água? E em

comprometendo, em quê medida essa agressão é capaz de comprometer o ambiente?

Segundo os padrões internacionais, a água é considerada escassa

quando se dispõe de menos de 1.000 m3/hab/ano. O Brasil disponibiliza uma média

de 38 mil m3 de água per capita/ano (REBOUÇAS, 1997, p.128). O Brasil sofre a má

distribuição geográfica da água em seu território: 80% da massa hídrica doce ocorre

nos setores ocupados por apenas 5% da população, enquanto 95% da população

disputam a utilização dos 20% restantes (IBGE, 1991). Estes dados já permitem

suspeitar que a água utilizável é um bem raro, que carece proteção.

A regulamentação constitucional da água se triparte em três níveis

básicos, considerando-se a água como:

• recurso natural,

• fator ambiental e

• elemento primário do saneamento básico.

Importa, quando se alude à regularização fundiária destacar todos

esses níveis.

Como recurso natural, a Constituição Federal atribui à União e aos

Estados o domínio sobre as águas (arts. 20, III e 26, I), atribuindo à primeira a

competência privativa para legislar sobre o assunto (art. 22, IV) e estruturar o sistema

nacional de gerenciamento dos recursos hídricos (art. 21, XIX). Os Estados somente

podem legislar sobre a matéria em conseqüência de uma delegação legislativa tal

como prevista no art. 22, § ún. ou com fundamento no art. 25 § 1º e art 26, incs. I e II.

Considerando a água como um fator ambiental, caberá à União, ao

Distrito Federal e aos Estados a competência concorrente para legislar sobre a sua

conservação e proteção (art. 24, VI). Os municípios têm competência administrativa

para a preservação dos corpos hídricos presentes em seu território e ainda a

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competência legislativa em matéria ambiental, conforme o interesse local, mesmo que

de modo suplementar à competência legislativa dos demais entes federados e da

União.

A legislação federal incidente sobre as águas parte do Código das

Águas (Decreto nº 24.643/34) à Política Nacional dos Recursos Hídricos (lei 9433/97),

isto sem mencionar leis que tratam das políticas estaduais de recursos hídricos. Do

viés privatista e do controle do uso da água no aspecto quantitativo do Código para o

tratamento publicista e controle pelos aspectos quantitativo (pagamento pelo uso) e

qualitativo (controle comunitário) exigidos pela Lei Federal que traçou a Política

Nacional de Recursos Hídricos (9433/97), nota-se evidente amadurecimento e

aprimoramento da lei no sentido da preservação. Essa visão privatista da água está

ultrapassada já que a água é agora vista como um bem econômico. Acabou a

possibilidade de domínio privado das reservas hídricas.

A mesma lei reconheceu o recurso hídrico como limitado; atribuiu

prioridade ao uso humano nas hipóteses de escassez (aspecto que não tem relevo

para esta pesquisa) e instituiu uma gestão não apenas descentralizada, como também

comunitária (o que permite mas não garante controle) desses recursos, com o

envolvimento do poder público, da comunidade e dos usuários; ademais, estabeleceu

a cobrança pelo uso da água e definiu a forma de controle de qualidade dos recursos

hídricos.

A água enquanto fator ambiental, integrante do meio ambiente, tem

também regulamentação na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81) que

estabelece a tutela administrativa ambiental por parte do Poder Público nas diversas

esferas de poder. Suas metas principais são preservação, melhoria e recuperação da

qualidade ambiental propícia à vida.

Muitos ambientalistas consideram que atualmente as principais

agressões aos mananciais são:

• Despejo de grande quantidade de elementos não biodegradáveis.

• uso indiscriminado de fertilizantes químicos e agrotóxicos na agricultura, que

terminam despejados em parte nos rios.

• ocupação de áreas de mananciais hídricos pela população carente.

Os males causados pela localização de habitações muito próximas de

córregos são importantes. Toda ação que ocorre no solo de uma bacia hidrográfica

pode afetar a qualidade de sua água. Sem a participação humana a bacia é ocupada

por vegetais em sua condição natural e essa água tende a possuir boa qualidade

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porque recebe apenas folhas e alguns resíduos de composição dos vegetais e

animais.

A ocupação desordenada do solo e seu uso inadequado são fatores que

podem ocasionar a escassez de água disponível para o consumo humano. Se a bacia

é utilizada desordenadamente para a construção de casas, implantação de indústrias,

plantações, a água passa a receber outras substâncias além daquelas que têm seus

ciclos naturais. Esgoto de casas, os resíduos tóxicos de indústrias e substâncias

químicas utilizadas em plantações, tudo isto, se não contido, se direciona para o curso

d’água.

Como não é possível afastar as espécies, é importante entender como

era a bacia e como a interação humana interferiu nas mudanças nela ocorridas. 19

Em estudos sobre a Bacia PCJ constatou-se o óbvio: haver uma relação

direta entre a quantidade de esgoto doméstico nos rios e o número de habitantes da

região em questão. Essa relação - que parece evidente! - só acontece porque a maior

parte dos esgotos domésticos é lançada in natura diretamente na rede hídrica.

Esses efluentes de origem orgânica produzem alterações

principalmente do balanço entre Carbono e Oxigênio dissolvidos no curso d’água (há

uma diminuição do oxigênio e um aumento do carbono). A pesquisa do balanço entre

estes elementos é que dá a noção de quanto o rio está poluído. Essas alterações

podem ser medidas observando-se as mudanças na quantidade de oxigênio dissolvido

e outros aspectos físico-químicos de qualidade da água como o pH , a condutividade e

a temperatura .

O ácido úrico proveniente dos esgotos e o uso de fertilizantes na terra

geram grande quantidade de nitrogênio . Jogar o esgoto sem tratamento nos rios

altera os sistemas biológicos já que o aumento da quantidade de nitrogênio faz com

que algas e bactérias se reproduzam muito rapidamente, consumindo todo o oxigênio

e transformando o ambiente de aeróbio (com oxigênio) para anaeróbio (sem oxigênio).

Essa diminuição do oxigênio nos ecossistemas aquáticos pode causar mortandade de

extensa quantidade de peixes, e outros seres que dependem do oxigênio dissolvido na

água.

Outra grave conseqüência da poluição hídrica é o aumento da emissão

de óxido nitroso (um dos componentes do efeito estufa) que pode provocar a

acidificação do solo (que fica mais pobre). A conseqüência mais rápida é a perda da

biodiversidade do local.

Já os efluentes industriais são, em sua maioria, tratados. Mas como seu

volume é bem maior, a quantidade final não tratada jogada nos rios é quase a mesma 19 Conforme o site http://hydro.cria.org.br/usos/solo

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dos esgotos. Jogar o esgoto e resíduos industriais sem tratamento nos rios faz

também aumentar a quantidade de carbono orgânico dissolvido nas águas. O carbono

existente pode ser transformado em biomassa, isto é, em seres vivos, dependendo

também da disponibilidade de nitrogênio no sistema. Pode ser também decomposto

química ou microbiologicamente ou, quando em grande quantidade, depositado no

lodo do rio.

As alterações na biodiversidade são, portanto, conseqüências,

principalmente de: 1. maior disponibilidade de Nitrogênio e Carbono; 2. mudança do

ambiente natural dos rios de aeróbios para anaeróbios, ou seja, menor disponibilidade

de Oxigênio; e 3. aumento da quantidade de óxido nitroso, prejudicial não apenas às

espécies hídricas como também às demais espécies que dependam do solo.20

Um dos critérios que parecem importantes para regularização fundiária

em área de APP é o da proteção das águas.

É preciso lembrar, contudo, que os assentamentos irregulares de

moradia marginais dos ribeirões, córregos, rios, lagos, etc, não são os exclusivos

responsáveis pela degradação desses elementos, embora sejam por vezes vistos

como tal pela população do entorno e pela mídia em geral. É como se todo o restante

da sociedade fosse comportado e respeitoso para com os elementos naturais e a

população dessas áreas de APP fosse a grande vilã dessa disputa entre moradia e

ambiente.

Quanto maior a extensão de determinado curso d’água coberta com

matas ciliares em uma bacia, maior a sua importância. Recuperar mata ciliar significa

reduzir a fragilidade dessas APP´s. Os dados de extensão linear de matas ciliares

existentes nas bacias foram obtidos do estudo da vegetação remanescente do

município de Campinas (SANTIN, 1999; TORRES et al.,2006).

A grande extensão da degradação a que essas áreas de preservação

estão submetidas recomendam a necessidade de recuperação desses ambientes.

Todavia, a recuperação ambiental de maneira simultânea em toda área de APP é

raramente viável, sendo necessária uma análise sistemática que leve em

consideração o custo econômico da recuperação que, contraposto aos rendimentos

atuais com o uso agro-silvo-pastoril, dificulta a persuasão do proprietário da terra a

trocar o uso econômico convencional pela função ecológica das matas ciliares.

Não é passível de discussão, portanto, a necessidade de que os

recursos hídricos sejam protegidos. A questão está em saber qual o tipo de proteção

que deve ser feita. Teria sentido combater a poluição produzida por moradias e

20 sempre de acordo com http://hydro.cria.org.br/usos/esgoto

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permitir a industrial? Ambas devem ser combatidas? Somente a industrial precisa ser

proibida?

E já que é necessária a proteção do recurso hídrico, é importante, por

conseqüência, a atenção que a lei dá à poluição, definida nos termos do seu art. 3º, III.

Como a água é incluída no rol dos recursos ambientais, a poluição hídrica está

evidentemente abrangida.

Para uma adequada proteção é necessário o estudo de toda a bacia,

como adverte Staurenghi (2000) A análise dos impactos de uma ocupação e das intervenções necessárias sobre o ecossistema requer uma análise destes impactos sobre uma região – uma sub-bacia hidrográfica, por exemplo. Esse levantamento buscará identificar os impactos presentes e futuros, definindo uma unidade de gestão que poderá conter normas específicas de urbanização, transferência de construir, etc.

A qualidade do manancial envolve o controle dos usos e das atividades

desenvolvidas em toda a bacia hidrográfica e não apenas em um rio específico. As leis

brasileiras adotam como instrumento de ação o controle da qualidade ambiental e a

repressão às atividades poluidoras.

Mas essa repressão às atividades poluidoras se aplicaria às áreas

ambientais degradadas pela presença de moradias humanas que a resolução 369/06

do CONAMA permite, observadas suas restrições, serem objeto de regularização

fundiária?

Sem dúvida que sim. Aliás, a própria Resolução estabelece como uma

de suas múltiplas exigências para que a regularização fundiária dessas áreas

aconteça, o encontro de alternativas para cessar a agressão ambiental.

É preciso relembrar, contudo, o que já ficou dito: os assentamentos

irregulares de moradia marginais dos ribeirões, córregos, rios, lagos, etc, não são

exclusivos responsáveis pela degradação desses elementos. Quando alguém

argumenta com o fato de o assentamento de moradia poluir, dá a entender que todo o

restante da sociedade seja comportado e respeitoso para com os elementos naturais e

a população dessas áreas de APP seja a grande vilã dessa disputa entre moradia e

ambiente.

O critério de proteção do manancial é inafastável. Não pode haver

regularização fundiária em área de APP sem a correspondente proteção, por mínima

que seja, do elemento hídrico. O ser humano é o intruso e como tal é necessário que

ele mesmo se veja. Algum regramento está certo que deva haver.

Mas que tipo de proteção deve acontecer?

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Proteger por meio da proibição de qualquer tipo de edificação à margem

dos mananciais, dentro de uma largura de margem pré-fixada?

Onde houver curso de água, será que realmente importa que as

construções fiquem no mínimo a 15 metros das margens?

Nem sempre este critério pode ser o mais adequado. Os cursos d´água

variam conforme sua largura, a quantidade de água, a quantidade de material sólido

que levam consigo, a fluidez e velocidade das águas, etc. Há todo um conjunto de

elementos que dão aos mananciais uma diversidade enorme que lei nenhuma tem o

poder de prever.

Assim, fixar 15 metros de cada lado como áreas de preservação

permanente para um determinado ribeirão que tenha 20 metros de largura pode

proteger suficientemente essas APP´s mas pode ser regra inadequada e não proteger

suficientemente as APP´s de outro ribeirão das mesmas dimensões.

Por outro lado há ribeirões, rios ou córregos para os quais uma faixa de

APP de apenas 5 metros seja suficiente para permitir sua adequada proteção.

Tudo depende da situação de cada manancial.

Daí não parecer adequado fixar como regra geral, válida para o país

inteiro, uma faixa de APP fixa. Mesmo em se prevendo um tipo de APP de largura

variável (dependendo da largura do curso d´água) como as normas atuais prevêem,

ainda assim o regramento feito de forma geral, indistinta para todo o país, pode ser

excessivamente protetor para determinado manancial e ser completamente permissivo

com outro.

Melhor seria deixar esse tipo de regra aos cuidados ou do Estado-

Membro ou, mais adequado ainda, do Município, desde que ela se faça ou por Lei

(compelindo assim o parlamento local a fixar a regra e impedindo que ela se dê

apenas por ato do Executivo, que poderia subordinar a normatização a critérios por

demais políticos) ou mesmo por resolução do órgão ambiental colegiado e paritário

local.

Proteger por meio da proibição de atividades industriais nas margens

hídricas?

Veja-se o caso da Indústria Campineira de Sabão e Glicerina Ltda.,

empresa poluidora também situada à margem do ribeirão anhumas. As moradias do

“Núcleo Residencial Dom Bosco” estão em uma margem do rio e exatamente na

margem oposta se encontra essa empresa que, não por acaso, foi construída

exatamente na margem do rio.

Se a moradia e a indústria poluem e estão ambos à beira do rio e

ambos, juntamente com todos os bairros da vizinhança poluem o curso d´água, soa

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pelo menos injusto carrear a conta da poluição apenas aos ambientes de moradia

precária. Seria dar razão aos moradores que, quando instados a deixar o local em que

moravam, afirmavam: “Eles vão remover a favela, que polui, para a indústria de sabão

(que está ainda mais próxima do rio do que a favela) poder poluir sozinha...” A

remoção de moradias não pode, portanto, justificar-se por só o argumento da proteção

ambiental. Se é justo remover uma fonte de poluição, é igualmente justo remover

todas as demais.

imagem 11 - Indústria Campineira de Sabão e Glicerina Ltda., localizada em área de preservação permanente, na margem direita do Ribeirão das Anhumas, defronte aos Núcleos Residenciais Dom Bosco e Gênesis, já próximo à rodovia Dom Pedro I (Gênesis). Data: 10/05/2003.21 Proteger por meio da coleta e tratamento de esgoto? Apenas 25% do esgoto coletado no País (em média) é tratado. Os

números do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das

Cidades mostram que o Brasil ainda tem muito a avançar em saneamento básico. O

índice médio de coleta de esgoto no País é de 69,7%, sendo que o tratamento atinge

apenas 25%. Estes números refletem diferenças regionais históricas do País: no

Sudeste, o índice de coleta é de 91,4%; na região Norte não chega a 9% das

habitações. A distribuição do desenvolvimento é desigual e a conseqüência evidente

dessa imperfeição é que as políticas públicas muitas vezes também acompanham

esse desnível. Um dos principais desafios do Brasil é a coleta e tratamento de esgoto,

em especial nas áreas mais urbanizadas. Há um grande déficit a ser atendido.

Em Campinas os trabalhos de saneamento são ambiciosos pois

pretendem atingir ainda nesta primeira década deste século o percentual de 70% de

esgoto tratado e sua devolução em forma de água limpa para os curso d’água que 21 Imagem disponível em http://www.iac.sp.gov.br/projetoanhumas/f15.htm, acessada em 25/07/07

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irrigam a cidade, embora já se fale até em “venda do esgoto tratado” que parece ser

uma futura possibilidade geradora de recursos.

Obviamente esse percentual abrange as áreas marginais em que se

acham instalados os núcleos residenciais informais e precários (os aqui pesquisados e

outros) e o tratamento de esgoto poderá ser feito quase sem remoção de moradores

(remoção apenas das áreas de risco) e com expressivos ganhos na qualidade das

águas.

Somente a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) do Piçarrão,

tratará esgotos de 210 mil moradores, mas será superada, em dimensões, por outra

Estação, a do Ribeirão das Anhumas (que mais de perto interessa à pesquisa)

projetada para as margens da rodovia D.Pedro I. A “ETE do Anhumas” tratará o

esgoto correspondente a uma população de 50 mil pessoas.

Ainda serão construídas outras 5 estações que contribuirão para a

despoluição relacionada aos esgotos urbanos, das águas nas três bacias hidrográficas

onde está localizada a cidade de Campinas (rios Atibaia e Capivari e Ribeirão

Quilombo). A “ETE do Anhumas” será fundamental para a limpeza do Ribeirão das

Anhumas, que como visto nasce em Campinas e deságua no rio Atibaia, já no vizinho

município de Paulínia.

O tratamento de 70% dos esgotos domésticos de Campinas

representará, evidentemente, uma grande evolução para a despoluição dos rios da

região.

O tratamento de esgoto é, portanto, um aliado importantíssimo da

regularização fundiária sustentável em área de APP. Permite diminuição dos conflitos que se baseiem apenas no argumento da “proteção das águas”, embora

remanesçam as dificuldades em relação às funções ambientais (não necessariamente

ligadas ao rio) exercidas pela APP.

A par dos mecanismos que se voltam para o controle do uso e da

poluição é importante a ação educativa prevista na lei 9795/99 (institui a Política

Nacional de Educação Ambiental).

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5.3 – AS OCUPAÇÕES PESQUISADAS E A REGIÃO EM QUE SE ENCONTRAM

espaço reservado para

a imagem geral

com letras e números

(imagem 12)

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5.3 – AS OCUPAÇÕES PESQUISADAS E A REGIÃO EM QUE SE ENCONTRAM

A área objeto deste estudo é, se analisada em contexto mais

amplificado do que simplesmente os núcleos habitacionais situados à margem direita

(Guaraçaí) ou esquerda (os demais aqui pesquisados) do Ribeirão das Anhumas,

componente do que a Emplasa22 chama de “Unidade de Informação Territorial 2 –

(UIT-2) – Flamboyant, cuja ocupação territorial é basicamente residencial com vários

bairros apresentando casas de alto padrão e áreas menos adensadas como o Jardim

Paraíso e o Parque Nova Campinas, localizados na sua porção sul, nas proximidades

do Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim.

Na porção sudeste da UIT Taquaral está a Vila Nogueira, outro bairro

residencial horizontal, de padrão médio/alto como pode ser constatado pela ocupação

da Rua Nuno Álvares Ferreira. Já na Avenida Diogo Álvares, no Parque São Quirino,

em frente à Associação Desportiva Polícia Militar (ADPM) encontra-se grande área de habitação popular (as áreas objeto desta pesquisa), objeto de projeto de

urbanização pela prefeitura. Trata-se da Favela Núcleo Residencial Getúlio Vargas,

área de baixa renda, assim como o Núcleo Residencial Gênesis e a Vila Moscou (favela), já nas proximidades da Rodovia Dom Pedro I. Ainda no Parque São Quirino

situa-se o Bosque Chico Mendes, área de 34.000 m2 inaugurada em 1995 como local

de preservação da mata nativa e com equipamentos para esportes e lazer.

Partindo-se da lagoa do taquaral e seguindo o caminho que percorrem

as águas que dela escoam, hoje canalizadas, chegamos à Praça Arautos da Paz. Dali,

direção jusante, ainda canalizadas, as águas que provém da aludida lagoa alcançam o

ponto em que havia antigamente a ponte ferroviária que permitia à composição

ferroviária transitar da margem esquerda para a margem direita do Ribeirão das

Anhumas. É neste ponto que se dá a confluência dessas águas com as que provém

da área da Avenida Norte/Sul (José de Souza Campos), que já banharam a esta altura

a área do Núcleo Residencial Guaraçaí. Aqui se dá a junção com o Córrego Mato

Dentro, formando-se a partir daí verdadeiramente o Ribeirão das Anhumas, em cuja margem esquerda, a partir deste ponto, se encontram quatro dos cinco núcleos residenciais (favelas) estudados nesta pesquisa.

Apesar da importância social desta área, ocupada por centenas de famílias como se verá no estudo mais detalhado da situação de cada um destes

núcleos precários de moradia, ela praticamente não é mencionada nos

22conforme http://www.emplasa.sp.gov.br/portalemplasa/infometropolitana/campinas/destaques_urbanisticos/padrao_urbanistico_rmc/Campinas/Campinas_Final3.pdf

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documentos oficiais. É uma exceção a menção que é feita no estudo da Emplasa,

acima mencionado. E mesmo assim essa menção é, como se viu, en passant.

Confirma-se, em parte, o que diversos autores afirmam, quanto à quase

invisibilidade dessas áreas para as fontes oficiais de informação. É como se tais áreas

não existissem, apesar de serem local de moradia de centenas de famílias situadas,

socialmente, abaixo da linha de pobreza. Ainda não se completaram 30 anos desde

que estes locais passaram a ser oficialmente discutidos e ser visualizados para sua

integração à cidade formal.

Os núcleos V. Nogueira, São Quirino, Dom Bosco e Gênesis ao longo

da margem esquerda do Anhumas, formam um conjunto bastante extenso de

ocupações (favelas), totalizando quase três quilômetros. É uma área longilínea,

parecendo apenas uma única favela, por não haver nada fisicamente que indique o

término de uma determinada favela e o início de outra. Delas, a mais extensa era a do

“Núcleo Residencial São Quirino”, que para efeitos práticos terminou sendo dividida

pela municipalidade em “São Quirino (6b)”, “São Quirino (6B1)” e “Dom Bosco” de tão

extensa. É que ela ocupa uma área estreita existente entre o Anhumas e a via pública

(Rua Dona Luísa de Gusmão e sua continuação, Rua Moscou) mas extensa, que

acompanha a pequena sinuosidade do ribeirão.

5.4 – HISTÓRICO DOS NÚCLEOS RESIDENCIAIS – O IMPACTO HUMANO DAS OCUPAÇÕES

“O quadro de exclusão territorial brasileiro, sempre presente, agrava-se nas décadas de 60 e 70, período de intenso crescimento das cidades – sobretudo as maiores. Nesse mesmo período, verifica-se o auge de uma concepção de planejamento urbano na qual o Estado se via como protagonista único da política urbana, capaz de promover o equilíbrio das cidades a partir de dispositivos técnicos universalizantes.”(ROLNIK, 2000)

No início da década de 1970 existem poucas construções ou habitações

na margem esquerda do Ribeirão das Anhumas de Campinas. Afinal, como todas as

demais áreas lindeiras de qualquer curso de água natural, essa faixa marginal não é

edificável. Constitui, desde 1965 (pelo Código Florestal, art. 2º.) a chamada “área de

preservação permanente” e, como tal, “non aedificandi” (áreas em que é vedada

qualquer construção). Essas áreas marginais do Anhumas ainda são parte de

fazendas e, portanto, terras privadas.

Mas estão se loteando extensas áreas dessas antigas fazendas e os

proprietários dessas áreas precisam, para cumprir obrigação legal, reservar da área a

ser loteada uma parte para “uso institucional” a ser doada à municipalidade.

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Como as áreas “non aedificandi” também fazem parte da propriedade

que será loteada, os proprietários costumam, até por ausência de vedação legal, doar

à municipalidade para fins de utilização institucional (colocação de uma praça, um

centro de saúde, uma escola pública, etc) exatamente essas áreas “non aedificandi”,

além, é claro, de outras em que a construção é possível.

As municipalidades não têm estrutura para proteger, com cercas e

vigilância, essas áreas que lhe são doadas nos mais diversos loteamentos que são

aprovados em profusão.

Os núcleos residenciais Guaraçaí, Parque São Quirino, Vila Nogueira,

Dom Bosco e Gênesis, aqui pesquisados, vão-se formando a partir de 1970 com a

ocupação de famílias oriundas da capital e de outras cidades do interior de São Paulo.

O estudo revela esta primeira surpresa: as primeiras famílias que

ocupam essas áreas não são em sua maioria provenientes do Nordeste brasileiro

como é corriqueiro pensar. Provém das proximidades geográficas da área invadida.

Essas famílias, diante da baixa qualidade de vida dos locais em que

viviam, migravam buscando em cidades da região, como Campinas, melhores

oportunidades.

Durante toda a década de 1970 outras famílias oriundas de diversas

regiões do Brasil, tais como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Paraná e interior de

São Paulo gradativamente começaram a ocupar a área, passando o local a ser

caracterizado como favela pela sua precariedade habitacional.

A vizinhança não gosta, reclama para a administração pública. Ninguém

gosta de “favela” perto de casa, que traz dois graves problemas ao valor desses

imóveis dos novos loteamentos que estão próximos do anhumas: deixam de valorizar

e, pior, perdem valor. Tinham elevado potencial de valorização porque provavelmente

a municipalidade criaria áreas de lazer para a população nas proximidades do ribeirão

e, com a ocupação, isto não acontecerá; e perdem valor porque favela perto de casa é

sinônimo de problemas e de violência. E mesmo a convivência com “pessoas de outra

condição social” precisa, sob ótica dos moradores “regulares”, ser evitada.

Mesmo assim os núcleos se vão formando e a condição de

precariedade própria de favelas vai se evidenciando: ausência de ruas como as

conhecemos no mundo da regularidade, amontoamento de barracos de diminutas

dimensões, convivência com animais (aracnídeos, batráquios, répteis, roedores,

insetos e peçonhentos de todo tipo), caminhos estreitos, topografia de risco e ausência

das condições mínimas para se morar com algum resquício de dignidade. Para quem

não vive a situação de favelado é incompreensível como uma pessoa ou uma família

possa viver em ambiente assim precário.

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A área marginal do Ribeirão das Anhumas eleita por essas famílias para

fixar suas precárias moradias é altamente suscetível a enchentes. Situa-se a partir do ponto em que se forma o Anhumas: encontro do Córrego Proença com o Córrego Mato Dentro e com águas que provêm da Lagoa do Taquaral. Ali se

verifica, claramente, de longa data, a falta de prioridade do poder público em relação

às condições naturais, de infra-estrutura e com a população que reside próxima

àquelas margens. Neste curso d’água que dá nome à bacia, são registradas as mais

freqüentes e graves cheias devido ao padrão social da população atingida (TORRES

et al., 2006).

Nessa região, quando da ocorrência de chuvas intensas, há um grande

aumento no volume e na vazão do ribeirão, explicável pela contribuição dos afluentes,

que acontece pouco a montante daquele ponto. Naquele ponto não corre apenas “um

ribeirão”. Corre o resultado da soma de dois córregos. Pode-se, também, constatar

nessa área o assoreamento do Ribeirão das Anhumas, com a formação de um grande

banco de areia, o que ocasiona o alagamento de vias, residências e outras áreas

marginais (TORRES et al., 2006).

É claro que a urbanização precisa acontecer. Mas há critérios mínimos

que precisam ser observados: a urbanização não deve ser impedida, mas ser feita de

forma planejada e sustentável, aumentando-se a área permeável e expandindo a área

arborizada.23

5.5 – A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DOS NÚCLEOS RESIDENCIAIS PESQUISADOS

Cerca de 400 mil pessoas carecem, em Campinas, de programas de

regularização fundiária, segundo dados da municipalidade, que considera essa

regularização como forma de trazer esses imóveis para a luz da legalidade e de trazer

para a cidade (e até para sua economia) expressivos benefícios. Significa

recolhimento de mais tributos (os imóveis regularizados passam a pagar IPTU, por

exemplo), maior possibilidade de a família obter empréstimos e financiamentos

fornecendo o imóvel como garantia, gerando assim novos negócios e mais agilidade e

fluidez à economia, pelo giro da moeda.

A Regularização Fundiária em Campinas é decorrência lógica de todo

um sistema de atendimento às necessidades dos ocupantes de terras públicas ou

privadas, situadas ou não em áreas de proteção de mananciais.

Como em outras cidades, a regularização em Campinas não se limita às

ocupações informais. Abrange também as outras irregularidades de parcelamento do 23 Segundo João Carlos Rocha, diretor da Faculdade de Engenharia Civil da Puccamp

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solo como loteamentos (não necessariamente de baixa renda) em áreas privadas. A base legal para a regularização fundiária em Campinas está na Lei Orgânica Municipal, que é de 31/03/90, nos seus artigos 175 e 176, e em diversas

outras leis. Artigo 175 - O Município estabelecerá critérios para regularização e urbanização, assentamentos e loteamentos irregulares. Artigo 176 - Assegurar-se-á a função social da propriedade imobiliária, mediante as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor e em suas diretrizes, especialmente no que concerne a: a) acesso à propriedade e à moradia para todos; b) regularização fundiária e urbanização específica para áreas ocupadas por população de baixa renda;

Igualmente a previa a Lei Complementar Nº 004 de 17/01/1996 que

dispunha sobre o PLANO DIRETOR do município de Campinas, bem como o NOVO PLANO DIRETOR aprovado pela Lei Complementar nº 15 de 27/12/2006 :

Art. 10 - A intervenção do Poder Executivo Municipal na propriedade imóvel terá como finalidades principais: (...) IV – promover, na forma da lei, a regularização fundiária de favelas, ocupações e loteamentos clandestinos e irregulares; (...) Art. 50 - São objetivos da Política de Habitação: IV – promover a requalificação urbanística e a regularização fundiária dos assentamentos habitacionais precários, clandestinos e irregulares, dotando–os de infra–estrutura, equipamentos públicos e serviços urbanos e erradicando riscos; (...) Art. 62 - São instrumentos da política urbana sem prejuízo de outros previstos na legislação municipal, estadual ou federal: (...) III – urbanísticos, administrativos, ambientais e de regularização fundiária: (seguem-se 21 hipóteses)

Campinas possui, diferentemente da imensa maioria dos municípios

brasileiros, uma equipe específica, multiprofissional, trabalhando exclusivamente com

regularização fundiária, o que foi possível a partir da criação de um órgão específico

para tratar desse assunto.

DECRETO Nº 14.038 DE 15 DE AGOSTO DE 2002. CRIA A COORDENADORIA ESPECIAL DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA - CERF - VINCULADA DIRETAMENTE AO GABINETE DA PREFEITA (consideranda) Art. 1º. Fica criada a Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária – CERF, órgão desprovido de personalidade jurídica e

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vinculado diretamente ao Gabinete da Prefeita, que ora recebe, por delegação e desconcentração administrativas, os poderes aqui especificados, e cuja estrutura administrativa fica definida com base neste Decreto.

A criação de um órgão próprio para regularização fundiária permitiu à

cidade elaborar uma lei específica tratando desse assunto. Trata-se da lei municipal 11.834 de 2003 regulamentada em 2004, que dispõe sobre a Regularização e

Parcelamento do Solo implantados irregularmente na cidade.

Como se percebe, os marcos da regularização fundiária em Campinas

foram 1990, 1996, 2002, 2003 e 2004. Mas isto não significa que desde a década de

80 (época das primeiras leis de regularização fundiária brasileiras) Campinas não

tenha dado nenhum tipo de atendimento às famílias que hoje são beneficiadas pela

regularização. Programas de regularização de favelas chegaram a ser realizados mas

“regularização fundiária” mesmo, tal como hoje é conhecida, somente está

acontecendo de forma sistemática e abrangente, como programa mesmo de

administração, a partir da edição daquela lei.

A regularização fundiária e urbana é uma das principais diretrizes da

política habitacional definida pela 1ª Conferência Municipal de Habitação de Campinas

que se realizou em 2002. A gestão da habitação parece fazer-se de forma

democrática, contando com participação de diversas organizações da sociedade civil e

movimentos populares, como se viu quando da realização da 2ª. Conferência, entre 31

de julho e 01 de agosto de 2004.

Com o Decreto criando a Coordenadoria Especial de Regularização

Fundiária, Campinas reuniu uma equipe de profissionais nas áreas de arquitetura e

urbanismo, engenharia, social e jurídica para o desenvolvimento de todo o processo

para regularizar mais de 230 áreas, entre ocupações irregulares, clandestinas, núcleos

e favelas. Esse trabalho envolve, dentre outros órgãos, os seguintes:

• Companhia de Habitação Popular de Campinas – Cohab • Secretaria Municipal de Habitação – Sehab • Secretaria de Planejamento • Secretaria de Assuntos Jurídicos e Cidadania • Coordenadoria Especial de Habitação Popular – Cehap • Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária (CERF) • Fundo de Apoio à População de Sub-habitação Urbana (Fundap) • Caixa Econômica Federal

Para demonstrar como se chegou à decisão de regularizar, convém

historiar a regularização fundiária das áreas aqui pesquisadas.

Ao final dos anos 80, já consolidadas as invasões (ocupações) em

diversos pontos, começaram a articular-se soluções.

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A rigor técnico, os núcleos Vila Nogueira e São Quirino, além de Dom

Bosco e Gênesis, como são seqüência um do outro com quase nenhum espaço vago

entre os casebres (isto na época em que esses assentamentos se consolidaram com

caráter de definitividade), deveriam ser todos tratados como uma ocupação só,

gerando apenas uma regularização. Ou ao menos as situações de Vila Nogueira, São

Quirino e Dom Bosco poderiam ter tido tratamento único. A comprovar que a situação

era uma e apenas uma, a associação dos moradores que se forma em 1993 tem o

nome de Associação dos Moradores da Vila Nogueira e Parque São Quirino.

Mas como se tratam de invasões contíguas de uma área extensa que

no total alcança perto de 3 (três) km de extensão (sem contar a área do Guaraçaí),

uma regularização fundiária de tais dimensões seria impossível gerar e gerir.

Torna-se necessário então, com objetivos de praticidade, segmentar a área para que se possam enfrentar separadamente as situações de regularização de

cada uma delas. Tal opção torna o enfrentamento mais facilitado e mais rápido.

Após muitas reuniões entre os principais órgãos públicos encarregados

das questões ligadas a urbanismo, moradia e ambiente com a participação das

comunidades envolvidas, já com vista à “urbanização de favelas” se decidiu pela

observância dos seguintes critérios de intervenção naquelas áreas:

• O “Núcleo Residencial Guaraçaí” seria tratado separadamente dos demais, por

estar fisicamente distante deles; além disto, Vila Nogueira, São Quirino e Dom Bosco estavam assentados em área pública e o Guaraçaí está parte em área pública e parte em área privada, o que justificava um estudo diferenciado tanto quanto se daria com o Gênesis, assentado em área privada mas de sociedade de economia mista.

• O “Núcleo Residencial São Quirino” seria tripartido em São Quirino 6-B (sem problemas de APP), São Quirino 6-B1 (com problema de APP) e Dom Bosco (mais adiante, na direção da Rodovia Dom Pedro).

• Como estava meio isolado entre um final de rua (onde hoje é o campo de futebol) e a escola estadual, o Dom Bosco seria regularizado por primeiro, o que se deu a partir de 1986. Assim, de todas as áreas de regularização aqui pesquisadas, o primeiro núcleo atendido foi o Dom Bosco, destacado em relação à área à qual ele até então pertencia (“Núcleo Residencial São Quirino”). As intervenções visariam dar um “aspecto de cidade” aos núcleos, formando-se quadras e ruas, removendo-se assim a situação de aglomeração de moradias.

• Depois seriam regularizados os dois “São Quirino” e o Vila Nogueira. Seriam atendidos concomitantemente (embora em procedimentos administrativos separados) de modo a dar-se a toda a área marginal esquerda do ribeirão atendimento conjunto, preferencialmente uniforme.

• Dessas áreas somente as moradias de elevado risco seriam removidas. A remoção de algumas famílias seria, portanto, inevitável

• Finalmente se regularizaria o Gênesis, evitando-se remoção (até porque o núcleo não estava, como efetivamente até hoje não está) em área de APP.

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Mas justificava-se atuação preventiva, de modo a evitar que a ocupação chegasse à APP. Ele seria mantido por inteiro mas sob nova configuração espacial, no mesmo lugar em que ele estava instalado.

• Em caso de remoção a administração pública providenciaria abrigo em alguma unidade habitacional, sem garantia alguma quanto à localização

• Se respeitaria, na intervenção, a faixa “non aedificandi” de 15 metros em relação ao ribeirão

• O “Núcleo Residencial Guaraçaí” posteriormente também seria mantido por inteiro, mas sob nova configuração em outro local bem próximo daquele em que o núcleo estava instalado

Ou seja: durante a década de 80 a palavra proibida era “remoção”.

Nenhum núcleo seria por inteiro removido, exceto as situações de risco. E mesmo

assim, quem fosse removido de área de risco seria reassentado em unidades

construídas pela COHAB em outra área, mesmo que distante. Em linhas gerais esse

“acordo” foi mantido.

Em 1986 se regularizou o Dom Bosco; em 1988 e 1989 foram

assinados decretos e leis visando garantir aos moradores da Vila Nogueira e do São

Quirino sua permanência nas áreas de assentamento. Como não se contava ainda

com os instrumentos de regularização fundiária que somente em 1992 apareceriam

em Campinas, o modelo de “regularização” consistia em dar à comunidade local

alguma esperança de permanência por meio da “permissão de uso” e da “concessão

de uso”. Mas estas providências estavam longe da regularização fundiária plena que

hoje se busca realizar. Com a introdução da regularização fundiária na Lei Orgânica Municipal

de 1990, Campinas passou a tratar o assunto dos assentamentos como regularização

fundiária mesmo, embora ainda não se soubesse, à época, em quê exatamente essa

regularização deveria consistir. Não havia noção de suas múltiplas dimensões.

Em 1997 a municipalidade regularizou o Gênesis.

Atualmente as prioridades, dentre os aqui pesquisados, são Guaraçaí e

o conjunto formado por Vila Nogueira e São Quirino.

A partir de 2001 a regra observada em Campinas passa a ser “não regularizar o risco”. As enchentes seguidas dessa época, causando estragos até

então inusitados, foram os argumentos mais decisivos para que as autoridades

jogassem a toalha e para que população se convencesse da necessidade imperiosa

de remoção de moradias da margem esquerda do Anhumas. A administração pública

decide priorizar a criação, em toda a extensão do Anhumas, desde as proximidades do

Parque Taquaral até a Rodovia Dom Pedro, de um ambicioso Parque Linear. Como a

questão das áreas de risco à margem do Anhumas remanescesse, desenvolveu-se a

idéia de que Vila Nogueira e São Quirino, (reconhecidamente áreas de risco em razão

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de sua proximidade com o Anhumas), não poderiam permanecer. Decidiu-se que

deveriam ser removidos.

Aliás, “regularização fundiária” e “risco irremediável” são expressões

incomponíveis. A regularização do risco que não possa ser removido é proscrita pela

legislação federal.

LEI FEDERAL 6.766/79 – LOTEAMENTOS Art. 3º (...) Parágrafo único. Não será permitido o parcelamento do solo: I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; II - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados; III - em terreno com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes; IV - em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;

Chega-se a permitir que a regularização fundiária aconteça, desde que haja remoção e reassentamento em outro local.

MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.220 DE 4 DE SETEMBRO DE 2001 Art. 4o No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local.

E mesmo as Leis Campineiras proíbem regularizar o risco:

LEI COMPLEMENTAR Nº 15 DE 27 DE DEZEMBRO DE 2006 PLANO DIRETOR DE CAMPINAS Art. 2º - São objetivos da política de desenvolvimento do Município: (...) VII – proteção e recuperação do meio ambiente das áreas urbanas e rurais, especialmente de áreas verdes, mananciais de abastecimento, cursos d’água, áreas de interesse social, áreas de risco ao assentamento humano e áreas de interesse histórico; Art. 36 - São diretrizes da política de meio ambiente: (...) XIX – assegurar ações de proteção e recuperação ambiental após a desocupação de imóveis em situação de risco, evitando–se a reocupação das áreas; (...) Art. 50 - São objetivos da Política de Habitação: (...) IV – promover a requalificação urbanística e a regularização fundiária dos assentamentos habitacionais precários, clandestinos e irregulares, dotando–os de infra–estrutura, equipamentos públicos e serviços urbanos e erradicando riscos;

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(...) VI – remover e reassentar as famílias que ocupam áreas de risco ou inadequadas para habitação. (...) Art. 86 - Nas ZEIS de Regularização será preservada, sempre que possível, a tipicidade da ocupação local, desde que observadas as exigências técnicas necessárias à execução da infra–estrutura e à circulação e garantidas condições adequadas de habitabilidade, ressalvados os casos de situação de risco. LEI N º 11834 DE 19 DE DEZEMBRO DE 2003 Regularização fundiária (...) Art. 9º - Os procedimentos de análise dos processos de regularização observarão: I -- as condições de estabilidade, segurança e salubridade das áreas do parcelamento; II -- o uso e ocupação em conformidade com a finalidade urbana, privilegiando-se, em especial, o de moradia; Parágrafo único -- Na regularização dos parcelamentos, sempre que possível será preservada a tipicidade da ocupação local, desde que, sanados os eventuais impedimentos e restrições, sejam garantidas as exigências técnicas necessárias à execução de infra-estrutura e circulação, ressalvados os casos de situação de risco. (...) DECRETO N.º 14.776, DE 17 DE JUNHO DE 2.004 Regulamenta a Lei Municipal n.º 11.834, de 19 de dezembro de 2003 Art. 1º - Poderão ser regularizados, desde que atendidas as exigências da Lei 11.834/03, quaisquer parcelamentos do solo implantados no Município de Campinas, independentemente da zona de uso onde se localizam, ficando excluídos os localizados nas seguintes áreas: I – em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, a menos que sejam tomadas providências para assegurar o escoamento das águas; II – em terrenos aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados; III – em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento) salvo se atendidas as exigências específicas das autoridades competentes; IV – em terrenos em que seja tecnicamente comprovado que as condições geológicas não aconselham edificações; V – nas áreas em que a degradação ambiental impeça condições sanitárias suportáveis, até sua correção; VI – em faixa de proteção de adutoras, oleodutos e de redes elétricas de alta tensão; (...)

Decidida a remoção de todos os moradores e reassentamento em outra

localidade, por volta do ano 2002 novas reuniões foram feitas com os moradores

dessas áreas e se decidiu um plano que em linhas gerais seria:

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• Em algumas etapas seriam removidos “São Quirino” e “Vila Nogueira” e seus moradores seriam remanejados no Residencial Vila Olímpia, bem distante do assentamento atual e com infra-estrutura ainda precária. Buscava-se permitir reconfiguração do local para aguardar a implantação do Parque Linear do Anhumas, projeto macro para toda a área. E para evitar novas invasões das áreas das quais as famílias seriam removidas, seriam plantadas árvores que futuramente constituiriam parte daquele parque projetado.

• Daquilo que então era conhecido como “favela da Moscou” (o São Quirino) ou como “favela da Luísa de Gusmão” (Vila Nogueira) não restaria nenhum morador. A própria comunidade acompanharia o processo de remoção das famílias das áreas de risco da Vila Nogueira e Parque São Quirino para a Vila Olímpia.

Mas havia um “plano B” da municipalidade que não aparece nos

procedimentos administrativos da própria SEHAB. Quem lê os procedimentos de

regularização fundiária das áreas aqui pesquisadas é surpreendido, ao final, com

informações até ali inimagináveis.

Como se viu, durante este período de 2004 a 2008 se vem

regularizando o GUARAÇAÍ, com vencimento de uma etapa. Restam duas, que vêm

patinando pela falta de recursos para construção das novas unidades habitacionais. E

se vem, igualmente, procedendo às remoções de V.Nogueira e S.Quirino.

A mesma motivação (falta de verba) resultou no retardamento dessas

remoções. Embora se soubesse que os reassentamentos seriam feitos na Vila

Olímpia, a precariedade daquele local é tanta que se optou para remover mais

lentamente para tornar possível “casar” essas remoções com a finalização das novas

habitações e instalação de equipamentos sociais da Vila Olímpia. Mesmo assim

muitas remoções foram feitas e centenas de moradores que antes estavam na Vila

Nogueira e no São Quirino, hoje residem no Vila Olímpia. Essa lentidão terminou sendo providencial para os moradores que

permaneceram nas áreas da Vila Nogueira e do São Quirino, beneficiados pelo “Plano

B”. O que parecia falta de sorte (não ser reassentado em uma casa ou apartamento

“decente”) parece que foi em verdade a sorte dos que resistiram.

O “Plano B” combina as idéias de “não remoção” e de “não regularização do risco” e consiste em:

• criação do Parque Linear do Anhumas • remoção de todas as famílias da Vila Nogueira e do São Quirino, mas com

realocação nas proximidades e não na Vila Olímpia. • (a novidade) incorporar ao Parque duas vilas, totalizando 210 unidades

habitacionais situadas fora do Parque mas a apenas alguns metros de seus limites. Se utilizariam, para tanto, duas “barrigas” de terra criadas pelo tipo de traçado entre a rua Moscou e o Ribeirão. Em alguns momentos o ribeirão se afasta da rua. Ribeirão e rua não são exatamente paralelos. No traçado geral são. Mas no real, há sinuosidades que geram aquelas linhas de “praia”. E nelas é que as duas vilas serão (se vingar o plano) implantadas. Elas acolheriam

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todos os moradores que ainda não foram removidos da Vila Nogueira, todos os ainda não removidos do São Quirino e todos os remanescentes do Guaraçaí.

• Construção de centros comunitários, oficinas profissionalizantes, equipamentos de lazer (ginásios poliesportivos, piscinas, ciclovia, etc,) todas próximas ou dentro mesmo da área de APP, mas garantido o mínimo impacto.

• Edificação de centro comercial • Urbanização dos núcleos Guaraçaí e Gênesis • Recuperação ambiental da APP do Anhumas.

O Parque Linear prevê, além evidentemente da recuperação da mata

ciliar, dotar a margem esquerda do Anhumas dos seguintes equipamentos: Calçadão,

Play ground, Jardim de pedras, Pomar e quiosques, Bocha e malha, Quadra

poliesportiva, Sanitários, Centro comunitário, Ciclovia e Área de convívio.

Para realizar tal projeto de parque a municipalidade conta com recursos

do Governo Federal (pelo PAC-Programa de Aceleração do Crescimento), no valor de

R$ 37.000.000,00 (trinta e sete milhões de reais) com contra-partida municipal.

A respeito deste projeto, cumpre avaliar que: a) ele harmoniza

praticamente todos os interesses: moradores ainda não removidos, moradores do

entorno (os loteamentos formais regulares), municipalidade e COHAB, bem como

urbanistas; b) não é difícil perceber, todavia, que tão logo tomem conhecimento do

projeto (ainda não é por inteiro de conhecimento público) ambientalistas tenderão a

criticá-lo por conta da possível ofensa a espaços ambientais; c) o projeto configura um

“meio termo” entre os projetos mais antigos e os mais recentes acerca das remoções

programadas e em parte executadas; os mais antigos, pela permanência no local em

que estão; os mais jovens, pela remoção completa dos moradores do assentamento.

Pelo projeto, famílias ainda não foram removidas não serão mais e ocuparão uma

unidade habitacional dos blocos que venham a ser construídos nas tais “barrigas” de

terra próximas ao ribeirão.

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“NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ”

margem direita do

Ribeirão das Anhumas

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5.5.1 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ” foto aérea

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6.5.1 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ” planta 1

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imagem 13 - As obras se iniciaram no início de 2005

Imagem 14 - Panorâmica do “Núcleo Residencial Guaraçaí”. À direita na imagem, não mais que 2 metros abaixo (logo após as árvores que aqui são vistas) está o Ribeirão das Anhumas, neste ponto ainda não fortalecido pelo desaguadouro do Córrego Mato Dentro que mais adiante o incorpora (imagem seguinte). O Ribeirão provém da área em que se encontram as edificações altas, brancas, aqui visíveis.

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Imagem 15 - Aqui havia barracos, cujos moradores foram remanejados nas unidades construídas pela Cohab-cp no próprio núcleo. No espaço se construiu a base daquilo que será o barracão para atividades cooperadas para geração de renda para os moradores. Logo abaixo de onde se vêem as árvores, está o córrego. Uma das prioridades da regularização: o saneamento. Não tem muito sentido respeitar o direito à moradia, que afeta uma coletividade, sem associar com a solução para o problema ambiental, que afeta toda a sociedade.

Imagem 16 – A principal e única rua do Guaraçaí. Ao lado direito temos o córrego. À esquerda, as casas recém construídas. Ao fundo delas estão as terras da Escola Americana. Ao fundo da imagem se situam as duas áreas em que ainda não houve intervenção (que seretapas 2 e 3)

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Imagem 17 - A seqüência de casas já habitadas. Ao fundo delas, terras da Escola Americana. Todas as casas têm água, luz, esgoto.

Imagem 18 - Duas casas geminadas. São sobrados com equipamentos de uso comum no térreo e dormitórios no piso superior.

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5.5.1 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ” Processo de regularização na SEHAB: 02099

Moradias: 125

Moradores: 500

Domínio da área: parte pública e parte privada.

O “Núcleo Residencial Guaraçaí” é o único objeto deste estudo,

destacado deste conjunto de núcleos, situado à margem direita do Anhumas.

A área em que está este núcleo tem 14.673,04 m2 e ocupa:

• Parte do espaço que deveria ter-se constituído (caso não tivesse ocorrido ocupação) em Praça do Loteamento da Vila Guararapes, com aproximadamente 5.000 m2

• Idem, loteamento Alto da Barra, com aproximadamente 5.680 m2

• Área de propriedade de Odilon G. Nascimento Filho, chamada de Gleba 7, remanescente do loteamento por ele realizado nas proximidades, área de 3.880 m2, matriculada sob número 58.108 no 1º. Cartório de Registro de Imóveis .

• Parte do leito da Rua Natividade da Serra (antes Rua 9 da Vila Guararapes) e da Av. Paulo de Góes (antes Av. 1 do Loteamento Alto da Barra).

A área pertence à macrozona 4, área de planejamento 17, Leste.

A área particular invadida é o quarteirão 3324 (em alguns

documentos quarteirão 3036).

Quando se loteou, em Campinas, em 1970, o miolo de área que se situa

entre os atuais bairros Jardim Moreira, Chácara da Barra e Jardim Alto da Barra e que

abrange a extensa área em que hoje se incrusta a chamada “Escola Americana de

Campinas” o loteador foi obrigado, por lei federal, a doar para a municipalidade uma

área para fins institucionais.

Como a Escola Americana respeitou o distanciamento mínimo de 30

metros entre o córrego e seus muros mais próximos a esse córrego, remanesceu livre

de construções uma área longilínea demarcada entre os limites do córrego e o muro

da escola. O loteador escolheu, obviamente, para ser doada, exatamente esta área, a

mais depreciada de toda a área maior que fora loteada.

Mas como essa área longilínea era maior do que a área que precisava

ser doada, parte dessa área se tornou pública e parte continuou particular. A porção

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pública é bem maior do que a privada. Por conta dessa diferença de dimensões, na

área privada terminaram cabendo não mais que 30 moradias enquanto que na área

pública quase 100 delas couberam. Mas a presença de um espaço privado entre áreas

públicas terminou sendo um enorme problema a ser enfrentando quando se resolveu

regularizar esta área inteira.

O município de Campinas deveria, tendo recebido doação da área,

demarcá-la, estabelecer com precisão qual passava a ser a área de seu domínio e

qual a que continuaria na posse dos proprietários da gleba loteada. Deveria ter então

cercado sua área e nela mantido vigilância para depois poder criar ali os serviços

institucionais de atendimento a toda a população do entorno que, com o tempo,

apresentariam demandas específicas.

Isto não foi feito, como de resto não é feito por nenhuma municipalidade

no Brasil inteiro. A área ficou então “desamparada”, “desassistida”, vaga e com toda a

aparência de ociosa. E como esta área alongada estava ali quase que pedindo para

ser invadida, os que buscavam uma área para instalar sua moradia resolveram

apossar-se dela e ali erigiram seus barracos, de forma desorganizada, sem maiores

preocupações espaciais ou formais, sem critérios técnicos. Tudo sem estabilidade,

sem arejamento nem segurança. Tudo fragilidade, tudo incerteza. Sem rua e sem

endereço.

Foi assim, com a instalação de algumas moradias precárias pelos

primeiros moradores provindos do interior dos Estados de São Paulo e Minas Gerais e

de cidades do Nordeste do país que a Campinas acorreram em busca de emprego e

melhoria na qualidade de vida que começou a se instalar, em 1970, aquilo que

posteriormente viria a chamar-se “Núcleo Residencial Guaraçaí”.

A informação de uma área em condições de ser invadida para fins de

moradia correu rapidamente e moradores de Campinas chamaram parentes e amigos

de outras cidades para virem fixar residência naquela área.

O número de moradores do local começou a crescer a partir de meados

da década de 70, resultando em um aglomerado bastante precário, com caminhos

emaranhados entre os barracos que não podem ser chamados de ruas, caminhos

estes em que até mesmo a circulação a pé é difícil ante a presença de varais para

secagem de roupas em meio a eles.

Começaram a estabelecer-se as primeiras relações sociais entre os

residentes já que todos se encontravam na mesma situação. A necessidade de todos

terem um dia resolvida sua situação de moradia condigna fez com que houvesse

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necessidade de organização entre os moradores.

Com auxílio de políticos locais, ou aspirantes a políticos, começaram a

realizar-se as primeiras reuniões dos moradores e resolveu-se, até por

amadurecimento das relações e por orientação jurídica gratuita recebida, formalizar o

grupo de moradores na forma de uma associação de moradores, que todavia apenas

se viria mesmo a efetivar depois da remoção de boa parte dos moradores para a

região dos DIC´s, circunstância que fez com que os moradores se conscientizassem

da importância de lutar não apenas organizadamente mas sobretudo inseridos na

formalidade e na legalidade de uma associação.

Segundo a Presidente atual da Associação de Moradores, Sra. Rita

(cujo inteiro teor de entrevista com ela realizada se encontra mais adiante) o político

mais assiduamente presente ao núcleo era o atual Vereador Francisco Sellin, que no

momento se encontra no partido PSDB e atualmente é filiado ao PDT.

Terem-se organizado foi importantíssimo para aquelas pessoas, pois a

mobilização, ainda em meados dos anos 70, impediu, ao final dos embates, que

fossem frutíferas as pressões feitas pelos moradores das proximidades (consideradas

famílias de classe média) que solicitavam à municipalidade, naquela ocasião, a

erradicação da favela. A existência de uma favela nas proximidades de uma residência

erigida dentro dos padrões de legalidade deprecia em boa parte o imóvel e se não

gera violência causa pelo menos uma situação de intranqüilidade para os “não-

favelados”.

Mas os primeiros lances desta luta foram favoráveis aos moradores da

“área legal”, tanto que em razão da necessidade de se realocar os moradores deste e

de outros núcleos residenciais já então existentes, se criou um programa municipal,

que se chamou “Profilurb” (Programa Municipal de Lotes Urbanizados), com o objetivo

precípuo de construir unidades habitacionais que se prestassem a atender à demanda

e pelo menos diminuir este passivo. “A proposta do Programa era assentar as famílias

em situação de risco e de ocupações de áreas públicas, com renda de até três

salários mínimos. O lote era de aproximadamente 220m2 composto de três cômodos

com espaço para futuras ampliações”.24

Em 1980 vitoriosa (momentaneamente) a pressão feita por parte dos

moradores do entorno, a municipalidade decidiu a remoção de algumas das famílias

ali residentes, o que não constituía providência de grande porte já que na ocasião ali

havia não mais que trinta barracos.

24 Conforme documento oficial da COHAB Campinas, no processo administrativo de regularização nº 21.

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Os moradores foram incluídos no programa PROFILURB por meio do

Departamento Municipal de Urbanização de Favelas e da Cohab/campinas,

cadastrados e depois removidos para a área do DIC I - Ouro Verde, situado na

Região Sudoeste do Município, distante 15 Km da área central da cidade. Mas nem

todos os moradores aceitaram a transferência. Três dessas famílias resistiram e

permaneceram no Guaraçaí.

O local escolhido para a nova moradia dos re-assentados era por

demais afastado do centro; faltavam infra-estrutura e equipamentos públicos para

utilização por parte destes novos moradores. Os moradores não se adaptaram à nova

realidade. Consideravam o local distante demais. E os entrelaços sociais já

consolidados no Guaraçaí, ali não se reproduziram por completo. Estes moradores

devolveram então os novos imóveis à Cohab-CPs e retornaram ao Núcleo Guaraçaí.

Foi então que, decididos a permanecer na área do Guaraçaí e

conscientizados da importância da luta com armas formais, formaram uma “Associação

de Moradores” com o apoio do movimento social denominado "Assembléia do Povo". A

partir daí, intensificaram a luta pela permanência do Núcleo, buscando diversas

melhorias na infra-estrutura local.

Logo após o retorno desses moradores à área, novas famílias vieram

agregar-se àquelas que, somadas às que não haviam saído do local, ocasionaram, por

volta de 1986 um maior adensamento da área que já então contabilizava

aproximadamente cem famílias.

Cumpre lembrar, todavia, dado curioso até, que as famílias mais

recentemente instaladas, se fixaram nas áreas mais baixas do núcleo, mais próximas

do córrego, exatamente as áreas mais expostas aos riscos de inundação e serão

justamente estas as primeiras famílias beneficiadas pela regularização, pois o critério

escolhido pela municipalidade para regularização não foi o de antiguidade no

assentamento, mas o de risco.

Esta solução causou grande incômodo para os moradores mais antigos

do assentamento que esperavam ser os primeiros beneficiados com as novas unidades

de moradia para as quais alguns moradores das áreas de risco já foram transferidos. E

trouxe ainda outro gravame: uma certa dificuldade de relacionamento entre os

moradores antigos do núcleo (que no atual estágio da regularização do “Núcleo

Residencial Guaraçaí” ainda não foram retirados dos barracos) e os mais recentes

moradores, já beneficiados exatamente porque estavam em áreas consideradas “de

risco”.

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É que os moradores mais antigos temem que com a eventual

descontinuidade administrativa (“vai que muda o prefeito...”) se paralise a regularização

e eles acabem não sendo atendidos com uma unidade habitacional. Ocupantes só

acreditam na nova casa prometida quando se mudam pra ela.

Nos anos seguintes as únicas melhorias feitas no núcleo não foram

propriamente iniciativas da municipalidade: foram as ligações domiciliares da rede de

água (por meio da SANASA, companhia autárquica de água e esgoto de Campinas) e

os postes coletivos de energia elétrica (pela CPFL – Companhia Paulista de Força e

Luz – empresa atualmente particular, privatizada, de fornecimento de energia elétrica

na região de Campinas).

Por volta do ano 2000 aquilo que até então eram programas de

“erradicação de favelas”, ou que recebiam outros nomes em outros lugares, mas

sempre com o mesmo objetivo de trabalhar no sentido do reconhecimento do direito

dos moradores de favela à moradia condigna (projeto Singapura, etc) passam por uma

revisão conceitual e programática. Como decorrência de um trabalho metódico e bem

urdido, catalisador de esforços de múltiplos grupos de “sem terra”, “sem teto”,

“moradores de cortiços” e outros, surgem as idéias, os conceitos, as ações

institucionais e sociais ligadas àquilo que se convencionou chamar “Regularização

Fundiária”, que vem minudentemente explicitada em capítulo próprio deste trabalho.

Já em 2002, a Companhia de Habitação Popular de Campinas - Cohab-

Cp (empresa de economia mista e de caráter social, agente financeiro e promotor do

Sistema Financeiro da Habitação e responsável para aplicação da política habitacional

local, criada em 17 de fevereiro de 1.965 pela Lei 3.213, que tem como acionista

majoritária a Prefeitura Municipal de Campinas) por meio do contrato 248/02 firmado

com a Prefeitura Municipal, passou a empenhar-se, neste e em outros núcleos

prioritários, pela realização do “Projeto de Regularização Fundiária de Favelas”.

Os primeiros estudos, de novembro de 2002 (fls. 36) e maio de 2003 (fls. 31), constataram todos os “problemas normais” que um assentamento apresenta:

habitações precárias, vielas tortuosas, desordem, ausência de planejamento,

aglomeração de moradias, promiscuidade urbanística, problemas ambientais (lixo na

encosta, lançamento de esgoto in natura no ribeirão, etc). Um dos problemas

“diferenciados” deste núcleo é que muitos moradores trabalham com separação de

resíduos sólidos e utilizam suas próprias moradias para armazená-los, ante a ausência

de alternativa. E isto torna as moradias, evidentemente, insalubres.

Constatou-se também:

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• Como há duas áreas no núcleo, uma pública e uma privada, haveria necessidade de dois projetos distintos pois elas têm “natureza jurídica distinta”; a solução ideal seria desapropriação para que a área privada se tornasse pública e permitisse a unificação de matrículas para que um projeto apenas pudesse ser elaborado, evitando-se confusões.

• 70% das casas eram de madeira

• haveria necessidade de edificação de 121 moradias para substituir as existentes mas no mesmo núcleo.

• Elevado risco de enchentes, com expressiva mancha de inundação

• As contenções de enchentes feitas pela prefeitura no ribeirão foram arrancadas, em vários trechos, pela força das águas.

• Haveria necessidade de aterro sobre a faixa de APP para aumentar a cota e eliminar os riscos de enchentes.

Inicia-se em 15/03/2004 o procedimento administrativo interno na

SEHAB para esta regularização fundiária, quando a DT/COHAB, encaminhando

projeto, solicita à CERF/SEHAB parecer a respeito.

No mesmo ano de 2004 se inicia perante a Justiça o processo 1119/04

que tramita perante a 9a. Vara Cível de Campinas buscando a USUCAPIÃO COLETIVA desta área (no que toca, evidentemente, à área privada). Mas a ação foi

mal proposta. Requer a citação de quem não é proprietário e deixa de pedir a citação

dos proprietários.

Era clara, como se vê, a disposição de regularizar o Guaraçaí. Mas uma

das principais dificuldades para a regularização fundiária desta área do “Núcleo

Residencial Guaraçaí” consiste no fato de os invasores estarem parte em área privada e parte em pública. É um entrave bastante dificultoso porque o problema de

uma área invadida precisa normalmente ser resolvido com enfrentamento abrangente.

Ou se regulariza a situação para toda aquela determinada comunidade ou não se

regulariza para ninguém. E como as situações são diferentes (estar em área pública é

uma coisa e estar em área particular é outra quando se pensa na solução final com a

outorga do direito de propriedade aos invasores) é preciso trabalhar com critérios e

prioridades sem todavia tirar os olhos do processo todo e trabalhar insistentemente

para se chegar ao final em que todos sejam atendidos em seu direito à moradia e à

propriedade, independentemente da titularidade do imóvel que foi originalmente

invadido.

O problema é que, olhando a terra no momento da ocupação, não se

consegue saber onde termina a área privada e onde começa a pública. A terra é a

mesma, sendo evidentemente idênticas, sob aspecto meramente visual, as porções

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pública e privada de terreno. Ocupar uma área pública ou uma área particular acaba

sendo, na prática, um componente de “sorte” de quem invade. Um risco.

Em uma situação dessa em que não se sabe qual é a área pública e

qual a particular, nenhum dos invasores se apossa da área em que construirá sua

casa pensando previamente na situação dessa área ser pública ou ser privada. Este

aspecto não entra no projeto ou nas intenções de quem invade. Não faz parte do

universo de preocupações do invasor. O que ele busca, prioritariamente, é uma área

para poder erigir o abrigo seu e de sua família, que preferencialmente não gere

problemas de futura remoção forçada.

Áreas públicas causam menos problemas (já que o poder público, se

não tem interesse ou não tem condições econômicas para dar uma solução para o

invasor normalmente não retira mesmo os invasores) mas algumas áreas privadas

também não causam dificuldades (como se dá quando, por exemplo, se trata de área

de propriedade controversa). Se a área é pública ou particular, portanto, não vem ao

caso no momento da ocupação, pois a prioridade para quem invade não é

documental, mas protecional. Quem invade não vê o futuro, mas o presente.

Esta preocupação a respeito de quem exerça o domínio do bem (quem

seja o proprietário do bem) só aparece muito tempo depois de consolidada a

ocupação, quando os diversos invasores começam a manifestar interesse em tornar-

se proprietários do bem invadido.

A partir daí, importa muito saber se a área é pública ou particular, pois

disto dependerá o tipo de caminho que precisará ser trilhado para que aquele grupo

que compõe o núcleo habitacional consiga atingir a meta de ter o imóvel

definitivamente para si e sua família, garantindo assim a si e herdeiros.

Como se vê, a propriedade de determinado terreno invadido é, para

quem o invade para fins de moradia, um mero detalhe. Uma ocasionalidade. Se ele,

invasor, “tiver sorte”, a área é privada, o que lhe dá pleno direito de usucapião e outras

medidas jurídicas que permitirão acesso ao domínio com muito maior facilidade. Se a

área é pública, o invasor jamais conseguirá o domínio do bem. Quando muito

conseguirá uma “concessão de direito real” que antes das medidas jurídicas

governamentais recém tomadas não se equiparava, na prática, ao pleno direito de

propriedade e que hoje, como se verá em capítulo próprio, equivale.

Seria pelo menos estranho, quando não injusto, que o acaso

determinasse que determinada ocupação pudesse ser regularizada fundiariamente e

que outra, vizinha, não pudesse. Imagine-se a situação de alguém que, como

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acontece no “Núcleo Residencial Guaraçaí”, invadiu uma área privada e consegue

obter, ao final de toda uma luta, que não é só dele, o domínio (a propriedade) do bem

invadido, enquanto que seu vizinho (vizinho mesmo, da moradia vizinha que se situa a

alguns metros apenas da dele) não consegue atingir o mesmo objetivo porque ocupou

área pública e “não teve a sorte” de ocupar área privada. Resultados diferentes para

duas situações que, não fosse a questão jurídica, seriam rigorosamente idênticas.A

regularização se transformaria, nestes casos, em loteria.

O projeto de regularização foi elaborado em maio de 2004 e apresenta

os seguintes pontos relevantes (fls. 64):

• Houve estudo prévio da mancha centenária de inundação, contratado à Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica – FCTH-USP

• A remodelação do local foi precedida de contatos com moradores, que preferiram que as remoções que precisassem ser feitas ocorressem com reassentamento das famílias dentro do próprio núcleo, o que foi respeitado.

• Realizou-se prévio estudo das áreas de APP, com demarcação da faixa de 15 metros e indicação precisa das edificações que precisavam ser removidas para que a faixa fosse respeitada.

• A constituição de um arruamento que permita circulação de veículos e pedestres. Esta providência é tão importante quanto o próprio saneamento da área. Aglomerado de casas emaranhadas sem critério, sem espaço para circulação de veículos não condiz com os interesses de ninguém. As casas do Guaraçaí, tal como acontece com a grande maioria dos núcleos criados sem prévia organização, não formam arruamento adequado. As “ruas” que elas formam são tortuosas. As casas não vencem o relevo do solo em que se instalam, o que faz com que não raro uma casa se situe em área mais baixa do que outra, embora sejam adjacentes uma à outra. Assim, a re-arrumação espacial das moradias é providência importantíssima que melhora a aeração das casas (o que tem implicação direta para a saúde dos moradores), permite arborização, facilita escoamento de águas pluviais, tudo isto implicando diretamente no bem estar e na auto-estima dos habitantes. Para os autores dos projetos, eliminar riscos não significa apenas risco de enchentes e de declividade. Diz respeito também ao “risco da proximidade das moradias umas das outras”.

• a remoção e o reassentamento, no próprio núcleo, das famílias que precisassem ser removidas de áreas de risco (primeiras famílias a serem atendidas).

• Eliminação das áreas de risco com levantamento da cota da área em que se re-instalarão os moradores (para respeitar-se o laudo da mancha centenária de enchentes que foi elaborado) para evitar que futuras enchentes possam atingir os moradores já reassentados. Onde não é possível eliminar o risco, a remoção e reassentamento será feito.

• Solução para os problemas ambientais observando-se a faixa de 15 metros de lançamento de esgotos, detritos e água servida diretamente no córrego em cujas margens o Guaraçaí se encontra instalado. Retirada das moradias que se encontravam dentro da faixa de 15 m

• Ante a especificidade do trabalho de expressiva maioria dos moradores desta

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ocupação, projetou-se a construção de um galpão para armazenamento e separação de resíduos sólidos antes de serem levados para os containers deixados nas proximidades do núcleo por empresas interessadas na captação desse material já separado pelos moradores.

Em outubro de 2004 se elabora o Projeto Oficial, com Memorial

Descritivo (fls. 166) para construção de 103 unidades.

Em novembro de 2004 (fls. 198) elaboraram-se explicações a respeito

do projeto:

• Manutenção da faixa de 15 metros

• Permanência das unidades em alvenaria que se encontrem em boas condições e não ocupem área de risco

• Remoção das demais unidades e reassentamento na própria área após execução de aterro para erradicar o risco de inundação

As obras para a construção de Unidades Habitacionais foram projetadas

para serem realizadas em 3 etapas.

PRIMEIRA ETAPA – SITUAÇÕES DE RISCO DA ÁREA PÚBLICA

Em 2004 foram assinados contratos com o Governo Federal Brasileiro

(via “Programa de Subsídio Habitacional de Interesse Social” – PSHIS) para

construção de 40 Unidades Habitacionais constituindo assim a primeira etapa do

projeto de remoção e reassentamento das famílias residentes no núcleo.

O programa de regularização fundiária do “Núcleo Residencial

Guaraçaí” abrange o seguinte detalhamento:

• Não atender, no primeiro momento, ninguém que esteja em área particular, já

que as prioridades são atender moradores de área de risco e invasores de área

pública.

• 40 famílias atendidas inicialmente (primeira etapa).

• O recurso total disponibilizado pelo governo federal é resultado do

entendimento de que é necessário investir R$ 6.000,00 (seis mil reais) por

família a ser atendida.

• Tal valor é suficiente não apenas para a construção das unidades habitacionais

como para a realização de toda a infra-estrutura necessária para o total das

unidades;

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• As Unidades constituem casas assobradadas e contam com aproximadamente

48m2 de área útil sendo 1 sala, 1 cozinha, 1 banheiro no pavimento térreo, e 2

dormitórios no pavimento superior.

• Todas as unidades contam com rede de abastecimento de água, energia

elétrica e captação de esgoto, bem como a colocação de guias e sarjetas,

drenagem e pavimentação com blocos de concreto intertravados.

• Tais recursos são repassados pela Caixa Econômica Federal à Cohab-cp -

Companhia de Habitação Popular de Campinas.

• A Cohab-cp – é a responsável pela elaboração do trabalho técnico e social,

fiscalizada pela Caixa.

• Cada família atendida se compromete, por contrato, a pagar o financiamento

por meio de prestações cujo valor não excede 10% do salário mínimo (hoje o

valor da prestação não ultrapassa, portanto, R$ 38,00)

As 40 Unidades Habitacionais construídas e toda a infra-estrutura local

foram entregues oficialmente em maio de 2007.

SEGUNDA ETAPA – SITUAÇÕES SEM RISCO DA ÁREA PÚBLICA

Mantidas as características gerais do empreendimento em relação à

primeira etapa, esta segunda etapa pretende:

• Atender quem está em área pública e que ainda não foi beneficiado na primeira

etapa.

• Atender 55 famílias, que já assinaram contrato em maio de 2006, removendo

dos barraquinhos e remanejando nas unidades a serem construídas.

• Manter, basicamente, o mesmo plano estabelecido para a primeira etapa.

• Financiamento pela mesma Caixa Econômica Federal, tal e qual programado

para a etapa anterior.

TERCEIRA ETAPA – ATENDIMENTO AOS INVASORES DA ÁREA PRIVADA

Esta é a etapa prevista para o atendimento dos moradores assentados

em área privada.

• contemplará 30 famílias que residem em área particular, que está em processo

de desapropriação pela Prefeitura Municipal de Campinas

• Os recursos não virão da Caixa Econômica Federal mas do PAC - Programa

de Aceleração do Crescimento do Governo Federal

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• Tais recursos serão suficientes para a construção de 30 Unidades

Habitacionais e a realização de toda infra-estrutura prevista como modelo para

as etapas anteriores.

Para viabilizar a transformação da área privada em pública e permitir

unificação das matrículas junto ao Cartório de Registro de Imóveis, se expediu

Decreto 15.930 de 09 de agosto de 2007 declarando a área privada como sendo de

interesse social para fins de desapropriação.

Assim que houver os recursos necessários para a desapropriação ela

será feita e a regularização fundiária da área inteira proderá prosseguir como sendo uma área apenas, inteiramente pública.

Hoje, as principais necessidades do “Núcleo Residencial Guaraçaí” são

a finalização do projeto de reurbanização da área e a regularização fundiária, com

entrega do Termo de Concessão de Direito Real de Uso.

Ainda não foi feita a regularização documental para remessa a cartório, nem concedido nenhum documento individual de concessão de uso especial para fins de moradia. A esperança dos moradores é que a 2ª e 3ª etapas se encerrem logo,

completando-se o projeto de regularização fundiária. Temem que eventual

descontinuidade administrativa impeça a conclusão do projeto.

RESULTADOS:

• Regularização Fundiária ainda em andamento, mas caminhando para plena.

• Desapropriação da área particular em andamento (já expedido decreto desapropriatório).

• Faltando também lei de desafetação da área toda (tão logo se torne pública a área privada) e

• posterior parcelamento da área toda em apenas um projeto, • com expedição de concessão de uso especial para fins de moradia. • Regularização realizada sem qualquer remoção para núcleo distante. • Foram feitas apenas realocações para imóveis novos na mesma área da

ocupação.

SERVIÇOS

Embora se projetasse uma melhoria importante para a qualidade de

vida local, enquanto a solução com a regularização fundiária não aconteceu algumas

melhorias pontuais foram se dando ao longo de algumas administrações públicas.

Antes da regularização acontecer tal como hoje ocorre, o núcleo já contava com

alguns serviços públicos:

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Bem antes da regularização fundiária passar a ser realidade no local, a

população do Guaraçaí já contava com equipamentos sociais importantes, instalados

nas proximidades do núcleo.

Há creches próximas, escolas públicas estaduais, um posto de saúde

com atendimento domiciliar e ambulatorial e algumas instituições privadas

complementando o trabalho como: Centro Educacional de Assistência Social Menino

Jesus Praga, com atendimento sócio-educativo às crianças de 0 a 4 anos; Igreja

Católica São Pedro Apóstolo, da Chácara da Barra, promove distribuição de cestas

básicas; o Instituto Dom Nery, atendimento aos adolescentes de sexo masculino, a

Casa Caridade e Cultura João XXlll assistência às famílias com entrega de cestas

básicas.

A Associação de Moradores ainda existe formalmente e realiza

periódicas eleições para sua diretoria (periodicidade bienal). A Associação tem hoje

por presidente a Sra. Rita de Cássia Arruda, moradora ainda em barraco já que sua

casa ainda não foi construída.

Embora a associação não possua sede social para desenvolvimento de

atividades sócio-culturais, algumas organizações não-governamentais situadas no

entorno do núcleo se encarregam de prestar atendimento.

Trata-se de comunidade que tem tido boa participação na formulação

de políticas municipais na medida em que possui representantes no Conselho do

Orçamento Participativo (OP).

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“NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA”

(primeira de uma seqüência de ocupações que formaram 4 núcleos residenciais à margem esquerda do Ribeirão das Anhumas)

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6.5.2 – “NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA”

planta

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6.5.2 – “NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA”

foto no sentido contrário

imagem 26

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Imagem 20 - Vista da margem direita do Ribeirão das Anhumas, a partir da margem esquerda. As mudas de árvore que são vistas em primeiro plano ocupam o espaço de barracos que aí estavam instalados e que foram removidos para viabilizar a regularização fundiária desta área do Núcleo da Vila Nogueira.

Imagem 21 - Estas mudas de árvore ocupam lugar em que estavam os barracos do N.R. Vila Nogueira. Os barracos que aí se encontravam foram removidos como condição para viabilizar a regularização fundiária deste núcleo. Uma parte do núcleo ainda tem barracos atualmente mas a regularização está em andamento. Plantam-se árvores para impedir a realização de novas invasões.

Imagem 22 - Em primeiro plano, margem esquerda do Ribeirão das Anhumas. Ao lado das árvores de médio porte vistas no centro da imagem corre o Ribeirão. Mostra novamente a área em que havia moradias que foram removidas e as árvores plantadas para impedir novas invasões e para compensar o ambiente pela ocupação da margem do Ribeirão. Note-se o tipo de condomínio de luxo postado do outro lado do Ribeirão das Anhumas (já na margem direita). O contraste é notável. Entre o ribeirão e as casas que são vistas no alto há uma estrada que é também visível na imagem. Entre essa estrada e o ribeirão, mais adiante na direção jusante, há outros 2 condomínios de luxo.

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Imagem 24 - há lazer e diversão para as crianças e adolescentes no período do dia em que não estão na escola. Na imagem, uma aula de capoeira.

Imagem 25 - segurança

Imagem 23 - Núcleo comunitário de crianças e adolescentes da vila nogueira. Para quem segue pela Rua Luíza de Gusmão em direção à Rua Moscou, este núcleo comunitário é utilizado pelos próprios moradores como referência do ponto que divide o “Núcleo Residencial Vila Nogueira” e o “Núcleo Residencial São Quirino”.

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5.5.2 – “NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA” Proc. 73.134/04 - (5-B) Moradias: 132

Moradores: 504

Domínio da área: PÚBLICA

JOSÉ PAULINO NOGUEIRA era grande proprietário de terras e dono,

no final do século XIX (juntamente com seus irmãos Artur, Sidraque e seu genro Paulo

de Almeida Nogueira), de imensa fazenda em terras onde hoje está a cidade de

Cosmópolis, chamada de “Fazenda do Funil”. As atuais cidades de Paulínia, Sumaré,

Valinhos e Cosmópolis eram, na época, bairros periféricos de Campinas, afastados do

centro e sem nenhum tipo de melhorias ou benefícios.

Por volta de 1880, houve um intenso movimento entre fazendeiros da

região visando a construção de uma estrada de ferro, que viesse facilitar o

escoamento da produção agrícola das fazendas, prejudicado pelos rios Atibaia e

Jaguari, cuja transposição dificultava sobremaneira a comercialização dos produtos.

Esse movimento culmina com a aprovação de empréstimos para a construção da Cia.

Carril Agrícola Funilense, ligando Campinas à tal Fazenda do Funil.

A Estrada de Ferro é inaugurada em 18/09/1899, quando também se

inauguram suas várias estações, todas elas recebendo nomes de diretores e membros

da própria Companhia: "Barão Geraldo", "José Paulino Nogueira", "João Aranha",

"José Guatemozin Nogueira" e "Artur Nogueira", dentre outras que levaram o nome da

fazenda onde estavam situadas: "Santa Genebra", "Deserto", "Santa Terezinha" e

"Engenho". Obviamente, os bairros onde estavam essas estações foram sendo

conhecidos pelos mesmos nomes. Surge, assim, a vila "José Paulino". Em 30 de

novembro de 1944, através do Decreto-lei 14334, a vila de "José Paulino" foi elevada à condição de Distrito, com o nome de PAULINIA.

Aquele mesmo proprietário de terras, tão importante para a história da

cidade de Paulínia, adquire terras em Campinas e as unifica para o fim de realizar um

loteamento que terminou se chamando Vila Nogueira. Como se vê, José Paulino

Nogueira foi bastante homenageado: nome da cidade de Paulínia, em 1944;

loteamento “Vila Nogueira” 11 anos depois; e Rua José Paulino no centro de

Campinas.

Seu genro Paulo de Almeida Nogueira é proprietário das terras situadas

ao lado do loteamento da Vila Nogueira e é nessas terras vizinhas que seus herdeiros

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José Bonifácio Coutinho Nogueira Paulo Nogueira Filho vão fazer surgir o Loteamento

São Quirino.

O “Núcleo Residencial Vila Nogueira” está situado na área que deveria

ter-se transformado na PRAÇA 2 do Loteamento da Vila Nogueira, uma faixa

longilínea e estreita que ocupa o espaço existente entre a Rua Dona Luiza de Gusmão

(antiga Rua 1) e o Ribeirão das Anhumas, poucas dezenas de metros após o Ribeirão

receber as águas do Córrego Mato Dentro e as da Lagoa do Taquaral, razão pela qual

é das áreas mais sujeitas a inundação de toda a região. Sua extensão se dá desde os

limites do Parque Novo Taquaral e Jardim Lídia com o Loteamento Vila Nogueira até

os limites deste com o Loteamento São Quirino (praça 6, igualmente ocupada por

moradias, mas do núcleo seguinte). Quarteirão municipal 8379, zona leste, macrozona

4, área de planejamento 17, Administração Regional 3. Quanto à área ocupada, as

informações são controversas:

• Para o Cartório de Registro de Imóveis a praça tem a área de 38.690,00 m2 • Para a COHAB a área ocupada é de 37.775,00 m2 (conforme consta da Lei

Municipal 6126 de 04/12/1989. • Em alguns documentos oficiais da municipalidade, tal como consta do

procedimento interno de regularização, a ocupação possui 40.150,14 m2, e de duas uma: ou não pode ser correto porque a área de ocupação seria maior do que a área da praça, ou a ocupação ocorreu na praça toda e em parte de rua.

Na verdade jurídica a ocupação deste núcleo atinge não apenas a praça

2 do loteamento da Vila Nogueira, como também:

• Parte de uma avenida projetada para o loteamento Vila Nogueira • a Praça 6 do Loteamento do Jardim Novo Taquaral • parte de uma avenida projetada para o Loteamento Jardim Novo Taquaral.

Somente não houve muito grande preocupação com a situação jurídica

dessas áreas porque em determinado momento do caminho da regularização se

percebeu que manter os moradores naquele espaço seria inadequado. Mas se a não

remoção prevalecesse teria sido necessário desafetar essas áreas e criar

juridicamente um “loteamento” que abrangesse apenas a área invadida, para permitir o

registro desse assentamento.

Pelas transcrições 23.398 (livro 3T, fls. 136), 23.397 (livro 3T, fls. 136) e

26.862 (livro 3Y, fls. 193) JOSÉ PAULINO NOGUEIRA se tornou proprietário de toda

a área e em 1955 consegue aprovar o loteamento junto à municipalidade e ao cartório

e doa algumas áreas (que posteriormente viriam a ser ruas, avenidas e praças) para a

municipalidade, conforme obrigam as leis da época. Uma das áreas doadas foi

exatamente a PRAÇA 2. A doação desta praça foi feita por escritura pública de

doação de 29 de dezembro de 1955, lavrada perante o 3o. Tabelionato de Campinas,

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às fls. 264 do livro 205 e gerou a transcrição 27.084 de 13 de janeiro de 1956, feita às

fls. 281 do livro 3-Y do Cartório de Registro de Imóveis em que figura como

transmitente doador JOSÉ PAULINO NOGUEIRA, então qualificado como desquitado

e como donatária a Municipalidade de Campinas.

Deixando para trás o “Núcleo Residencial Guaraçaí”, instalado à

margem direita do córrego de dimensões não muito expressivas que neste trecho já é

chamado de Anhumas, embora não constitua ainda o Ribeirão das Anhumas (que só

se forma mesmo como “Ribeirão” posteriormente ao recebimento das águas do

Córrego Mato Dentro e do córrego que provém da Lagoa do Taquaral) e caminhando

direção jusante, formou-se por volta de 1969 o “Núcleo Residencial Vila Nogueira” à

margem do curso d´água que, neste trecho sim, já se trata do “Ribeirão das

Anhumas”.

Este núcleo teve início com a ocupação de uma família provinda do

Estado de Pernambuco, do nordeste brasileiro. O alto desemprego em sua região de

origem impulsionou a família para cidades em desenvolvimento do sul do país, como a

região de Campinas, buscando emprego e melhor qualidade de vida.25

O incremento populacional se deu ao longo década de 1970 por

famílias de diversas regiões do Brasil: Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Bahia,

Espírito Santo e Interior de São Paulo contribuíram para o aumento dessa população

ocupante do que hoje é este núcleo residencial.

A organização dos moradores ocorreu no ano de 1973 com a formação

da Associação de Moradores, denominada “Associação de Moradores das Favelas

Vila Nogueira e Parque São Quirino”, aspecto importante que confirma que até mesmo os moradores dessas áreas tratavam suas situações como uma só.

Neste mesmo ano, os moradores se organizaram e realizaram um mutirão para a

drenagem das minas d´água existentes na Praça 5 do mesmo loteamento, que

posteriormente será ocupada.

Em 1975 os moradores passaram a reivindicar junto às autoridades

municipais melhoria da infra-estrutura local, obtendo junto à CPFL a regularização da

iluminação pública e, em apenas parte do núcleo, a energia elétrica individualizada

nas casas. Foi possível também organizar um mutirão e construir a sede social do

“Núcleo Residencial Vila Nogueira”, conhecida como “barracão”.

Em 1977 chega o transporte. Os moradores conseguem fazer com que

25 Este histórico foi elaborado a partir de pesquisa do histórico que consta do processo de regularização fundiária dessa área junto à Cohab-cp-Companhia de Habitação Popular de Campinas, que tem o número 5-B

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algumas linhas de ônibus passem a atender a demanda local, o que decorreu de

reivindicação específica junto à Secretaria Municipal dos Transportes.

Em 1978 novamente organizados em mutirão, os moradores abriram

ruas na praça 5 e vielas na Rua Dona Luíza de Gusmão.

Novo mutirão, agora com o apoio da Administração Municipal (Regional

03) em 1979, e se aterrou uma grande erosão que existia na antiga praça 5 do Vila

Nogueira.

Em 1980 a Associação de Moradores participou ativamente do

movimento social denominado “Assembléia do Povo” que reivindicava melhorias

físicas nas favelas e a posse definitiva da terra urbanizada. Essa assembléia é um

movimento de esquerda, aparentemente inspirado no movimento APU – Assembléia

do Povo Unido que segue o modelo clássico dos movimentos de libertação nacional

do Terceiro Mundo.

A associação e os moradores realizam, em 1982, mutirões de limpeza

da margem do córrego Ribeirão das Anhumas, sempre aos sábados. Nesse mesmo

ano, os moradores também se organizaram em mutirão para reconstruir as moradias

danificadas pelas fortes chuvas.

Percebendo que cada segmento de núcleo habitacional que pudesse ter

suas características individualizadas precisaria de um tratamento separado e

específico junto às instituições públicas e privadas, a Associação se desmembra em 1985 e após eleição da nova diretoria, registrou-se em cartório de registro de pessoas

jurídicas com uma nova denominação a “Associação de Moradores do Parque Social

Isa”.

Neste mesmo ano, as famílias moradoras da Rua Dona Luiza de

Gusmão, área considerada de risco, ocuparam a Praça 5 do Vila Nogueira, que

passou a ser denominada Núcleo Residencial Parque Social Isa.

Em 1986 a Associação passou a receber doações de material de

construção feitas pela instituição filantrópica da Alemanha "Pão para o Mundo" e

realizaram um mutirão para a construção da sede social em alvenaria.

Decreto Municipal nº 9.664 de 19/10/88 “declara de utilização de

interesse social e permite o uso pelos moradores da favela da Vila Nogueira e pela

respectiva Associação de Moradores da área de 37.775,00 m2”. O mesmo decreto

afirma no art. 2o. que “será destinado a cada morador um lote de terreno representado

por parte ideal da área descrita no art. 1o., a ser utilizado apenas para fim residencial

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(...)”. Não consta que qualquer morador tenha recebido qualquer documento de

permissão. Em 1989 a Lei Municipal 6126 de 04 de dezembro desincorpora da

classe de “bens públicos de uso comum do povo” o transfere para a de “bens

patrimoniais” a área de 37.775,00 m2 da Praça 2, Vila Nogueira para viabilizar

juridicamente a concessão de direito real de uso “aos seus atuais ocupantes, com a

finalidade de promover a urbanização de favelas.” Ao que consta nenhuma concessão

foi realmente feita na prática e não consta, igualmente, que tal lei tenha sido revogada.

Logo após, no entanto, em janeiro de 1990, grande inundação atinge

muito especialmente esta área e grande parte dos moradores é transferida

provisoriamente para a sede social do núcleo e para escolas da região, permanecendo

nesses locais por aproximadamente 20 dias. A administração municipal da época

efetivou a remoção de todas as famílias desabrigadas para o “Núcleo Residencial

Floresta I’’ que havia sido projetado e executado pela COHAB - CP.

Estes fatos permitem confirmar a idéia de que não se deve realizar

regularização fundiária com mantença de moradores em área em que o risco não

possa ser eliminado. Manter os moradores nesses locais é literalmente desperdiçar

recursos públicos e continuar a expor os moradores a perigos desnecessários. Área

de risco irremovível (inundações, deslizamentos, explosões, contaminação, etc) não

combina com regularização fundiária. Esta precisa acontecer somente após

solucionada a situação de risco.

Ao longo de 1991 as famílias gradativamente retornaram para a Rua

Luiza de Gusmão, devido à precariedade da infra-estrutura e equipamentos sociais

existentes na área do “Núcleo Residencial Floresta I’’.

Com o rompimento da tubulação da SANASA (chamado “Tubão”), em

1994, desabrigando cerca de 60 famílias, foram elas reassentadas no N.R. Lafayette

Álvaro.

Na seqüência várias enchentes atingiram o local obrigando a Secretaria

Municipal de Habitação, juntamente com a COHAB-CP, a reassentar as famílias

desabrigadas em vários núcleos residenciais do Município.

Em fevereiro de 2003 outra grande inundação atingiu novamente o

local, desabrigando várias famílias e danificando inúmeras moradias obrigando as

autoridades a novas intervenções.

O processo administrativo instaurado pela SEHAB para regularização fundiária da área da Vila Nogueira se inicia em dezembro de 2004. A Diretoria

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Técnica (DT) da COHAB solicita à Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária

análise prévia de “Projeto de arruamento e loteamento para a favela do Núcleo

Residencial da Vila Nogueira”, juntando documentos.

Em vistoria prévia para estudos de viabilidade da regularização se

constatou uma série enorme de problemas desta ocupação:

• Existência de construções de madeira ou material misto • Ausência de ordenação mínima entre edificações (implantação adensada e

desordenada). • Inexistência de definição de quadras e caminhos. • Vias internas (vielas e passagens) irregulares com larguras variáveis entre 1 e

5 metros. • Vielas com circulação precária com grande quantidade de entulho obstruindo e

lixo doméstico lançado diretamente à via ou ao córrego • Ausência de pavimentação. • Impossibilidade de circulação de veículos. • Drenagem pluvial por superfície com destino ao ribeirão agravada por erosão

provocada pela retirada de vegetação para construção das moradias • Ausência de vegetação à margem do ribeirão em grandes extensões, bem

como grande quantidade de terra sem compactação da margem é carregada para o leito do ribeirão, aumentando assoreamento do leito, criação de bossorocas e incrementando situações de enchentes.

• Região de baixada com risco iminente para moradores • Freqüente reorganização espacial das moradias dentro da ocupação, como

resultado das constantes enchentes. • Áreas de desmoronamento já ocorrido • Grande quantidade de entulho em saída de galeria pluvial • Moradias em situação de risco de deslizamento, por ocuparem barrancos

desvegetados (encostas) • Barrancos implantados em cota intermediária entre a via pública e o leito do

ribeirão • Lançamento de esgoto a céu aberto, com abertura de valetas pelos moradores

para escoamento de águas e esgoto, causando alta insalubridade por perigo de refluxo

• Entulho acumulado em diversos pontos do núcleo, servindo de abrigo e criadouro de animais peçonhentos

• Degradação das margens do ribeirão • Áreas brejosas com densa vegetação bem próximas das habitações • Ligações de água e energia clandestinas

Diante de estudos hidrológicos feitos pela Fundação Centro Tecnológico

de Hidráulica (FCTH-USP) que constatou uma faixa de 60 metros como sendo a

mancha de inundação de 100 anos, bem como à vista da periodicidade e multi-

reincidência de eventos naturais desastrosos, evidenciada assim a

insustentabilidade da situação, a administração municipal não teve outra alternativa

senão encontrar uma solução definitiva para o problema. Por consulta à comunidade

local, se concluiu que aquele local não poderia ser mantido ocupado. Decisão de

2003.

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Aquela alternativa definitiva alvitrada por tantas administrações vinha

sendo efetivada pela Cohab-CP/Sehab em parceria com a Autoridade Federal e Caixa,

pelo Programa de Subsídio Habitacional (PSH), prevendo a construção de um novo

conjunto habitacional na região Norte denominado Residencial Olímpia, que atenderia

as famílias em situação de “risco iminente” das Ruas Luiza de Gusmão e Moscou e

demais áreas de risco das regiões leste e norte da cidade.

Além disto, diante da iminência da remoção das moradias, se procedeu

à planificação ambiental da futura área que seria por inteiro desocupada, prevendo-se:

• Faixa de 60 metros de distância em relação ao ribeirão, obedecendo-se a mancha centenária de inundação.

• Limpeza da calha do córrego

• Recomposição da mata ciliar

• Ações educativas junto à comunidade do entorno

• Controle e fiscalização das ocupações na bacia toda para garantir permeabilidade

• Remoção dos moradores (exigência da municipalidade), em 3 etapas (exigência dos moradores).

• A remoção abrangeria a integralidade não apenas a o núcleo da Vila Nogueira como também o núcleo São Quirino (6B1 e não o 6B). Seriam, portanto, 132 unidades (504 pessoas) naquele e 317 unidades (1.268 pessoas) neste.

Em abril de 2005 (fls. 69 do processo de regularização) há nova

indicação de 100% de remoção (“sobretudo pela presença de anfiteatros, encostas e

baixadas e também pela repetição de incidentes de alagamentos”) e a remoção se

inicia em seguida. O mesmo projeto que propõe remoção alerta para a necessidade de

urbanização desta Praça 2 assim que se der a desocupação, “para inibir novas

ocupações”. E ainda propunha a “recuperação (ambiental) de um espaço (que está)

bastante degradado...” com a “restituição da área à condição originária”.

Considerando que em ambos os núcleos a Associação e os moradores

concordavam com a remoção das famílias para a Vila Olímpia proposta pela

SEHAB/COHAB-CP, desde que essa nova área possua infra-estrutura e

equipamentos sociais para atender a demanda, a Coordenadoria Especial de

regularização fundiária encaminha pedido de remoção para o setor de assistência

social da SEHAB (maio de 2005, fls. 71 dos autos de regularização).

No Vila Nogueira, na primeira etapa seriam removidas 33 unidades da Vila Nogueira com base em compromisso firmado com Caixa Econômica Federal por

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meio da “7a. Portaria PSH”. Na segunda etapa a remoção abrangeria 39 unidades

(“8a. Portaria PSH”). E finalmente na terceira etapa, 60 unidades (“9a. Portaria PSH”).

Remoções se iniciam em meados de 2005.

Houve plantio de árvores em todos os espaços dos quais foram

removidos moradores. Este é o motivo pelo qual se percebe, visitando o local, que a

área originalmente ocupada pelas moradias hoje está desocupada e plantada com

árvores de médio porte.

Em setembro de 2007, 270 (duzentas e setenta) famílias do Vila

Nogueira e do São Quirino somadas já tinham sido removidas mas remanesciam 179

moradias, com aproximadamente 716 pessoas.

Núcleo 1ª. Fase (unidades)

2ª. Fase (unidades)

3ª. Fase (unidades)

Total (unid.)

Resistentes em 01/08/07

V. Nogueira 33 39 60 132 23

São Quirino 33 87 207 317 156

Estavam decidindo a estratégia para remover para o Núcleo Vila

Olímpia essas 179 famílias do Vila Nogueira e do São Quirino, quando houve

significativa mudança de planos entre novembro e dezembro de 2007.

Com a aprovação do PAC – Plano de Aceleração do Crescimento para

criar-se o Parque Linear Anhumas as remoções foram paralisadas.

Os moradores da Vila Nogueira serão acomodados na vila que tem sido

chamada de “Vila 1” e que está prevista para 80 unidades (protocolo de aprovação no

DUOS, municipal, 07/11/9880). Também o GRAPROHAB já se manifestou

(protocolados 824/07 e 825/07) e expediu Termos de Dispensa de Análise das

aludidas vilas. O DPRN, órgão estadual, igualmente foi consultado a respeito da

recuperação da APP e a autorizou (protocolo 63.956/07). Ou seja: os caminhos para a

construção do Parque e das Vilas já está desobstruído.

Seja para reassentar os moradores na nova Vila prevista para ser

construída no Parque Linear, seja para reassentá-los na Vila Olímpia, ou ainda para

outra solução qualquer, fato é que a praça 2 será desocupada e a regularização

fundiária no próprio local está, por todos os motivos já elencados, inteiramente

inviabilizada.

Assim como já alertou o departamento jurídico da SEHAB em parecer

no processo administrativo deste núcleo, se aplicará à área da praça 2 o art. 7o. da Lei

Municipal 11.834 de 19/12/03 (Lei de regularização fundiária de Campinas):

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Art. 7º - Verificada a impossibilidade de regularização do parcelamento, por ausência das condições técnicas, por acarretar risco à vida ou à saúde pública ou ainda, pelo não atendimento ao artigo 6º desta lei, a área deverá ser revertida à condição de gleba, devendo o loteador ou o responsável executar as obras e serviços necessários para sanar eventuais danos ambientais causados pela implantação do parcelamento, bem como suportar os demais ônus pelas lesões e prejuízos provocados aos terceiros e à Administração Pública.

E considerando que a área é pública, as despesas deverão correr a cargo do orçamento municipal conforme consta do primeiro parágrafo deste mesmo artigo:

§ 1º - Na impossibilidade de regularização das ocupações espontâneas em áreas públicas, as obras necessárias para restituição da área a sua condição originária, serão de responsabilidade do Poder Público.

Restará, contudo, uma questão jurídica após a remoção de todos os

moradores do núcleo da Vila Nogueira: a área da praça 2 foi desafetada para poder ter

seu uso concedido aos ocupantes. Com a remoção, a praça precisará voltar à sua

condição original de “área afetada para o uso comum do povo”. Conviria ser revogada

a lei de desafetação de 1989.

SERVIÇOS Durante todo o tempo em que os ocupantes ali permaneceram e em

que não tinham ocorrido ainda as remoções, essa comunidade pôde contar (assim

como contam ainda os que por lá permanecem) com diversos serviços públicos e

privados.

Um dos mais antigos é o Núcleo Comunitário Pq. Social Isa26 (não

confundir com o “Núcleo Residencial Parque Social Isa”), instalado na própria Vila

Nogueira. É exatamente este Núcleo comunitário que marca a divisa entre o núcleo

residencial da Vila Nogueira e o do Parque São Quirino. Trata-se de órgão público

subordinado à Secretaria Municipal da Promoção Social que atende crianças e jovens

de 6 a 14 anos com atividades como reforço escolar, oficinas de artesanato e pintura,

esporte, lazer e cultura, projeto em parceria com a Faculdade de Pedagogia da

Unicamp. Atende no horário complementar da escola. Se a criança ou jovem freqüenta

escola regular pela manhã, pode ir ao Núcleo à tarde e vice-versa.

Já a Fundação Espírita Bezerra de Menezes (particular), situada na Vila

Nogueira desenvolve trabalhos sócio-educativos e de ação social com cursos

profissionalizantes, palestras educativas e orientação psico-social.

26 ver fotos do núcleo comunitário no anexo

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A Seta - Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência, do Jardim

Santana (bairro contíguo) realiza trabalhos sócio-educativos e de reforço escolar, bem

como oficinas de dança e artesanato, para crianças e jovens de 07 a 12 anos. A

mesma entidade, em sua filial da própria Vila Nogueira ministra cursos de informática,

datilografia e teatro mas apenas para jovens de 12 a 17 anos.

A Igreja Católica São André de ação assistencial dos Vicentinos atua

junto às famílias carentes da região com cestas básicas, e em parceria com a pastoral

da criança concretiza o projeto de nutrição e pesagem de crianças.

No atendimento a toda a comunidade, com realização de bingos, festas

e reuniões comunitárias, atua a “Associação dos Moradores” que, atualmente (2008)

está articulada e integrada com as demais Associações de seu entorno. A liderança

atual (Dona Ginalva) também faz parte do Conselho Consultivo do Fundap (Fundo de

Apoio à Sub-Habitação Urbana) e do COP (Conselho Municipal do Orçamento

Participativo).

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

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5.5.3 – “NUCLEO RESIDENCIAL DO PARQUE SÃO QUIRINO” (abrangendo duas áreas distintas)

O Núcleo Residencial do Parque São Quirino se localiza pouco adiante

do Núcleo Residencial Vila Nogueira na direção jusante do ribeirão.

Está instalado onde deveriam ter sido as praças públicas de números 10 e 06 que passaram a existir como resultado da aprovação do loteamento do Parque

São Quirino. Primeiramente foi invadida a praça 06 e uma década depois a praça 10.

Ao analisar o Vila Nogueira se viu que José Paulino Nogueira era

proprietário da área que se transformou no Loteamento Vila Nogueira e que seu genro

Paulo de Almeida Nogueira era proprietário das terras vizinhas e que é nessas terras

que seus herdeiros José Bonifácio Coutinho Nogueira Paulo Nogueira Filho vão fazer

surgir o Loteamento São Quirino.

A origem do nome “São Quirino” deve-se ao fato de que toda aquela

região constituía a Fazenda São Quirino, que ainda existe mas com área bastante

diminuta e que se situa nas proximidades do Shopping Galleria. A fazenda abrangia as

duas margens do Ribeirão das Anhumas e os dois lados da atual Rodovia Dom Pedro,

o que nos dá idéia de sua magnitude. Aliás, “Quirino” é um nome bastante ligado a

Campinas, a julgar pelas ruas centrais “Dr.Quirino” e “Cel. Quirino”.

A propriedade das terras em que foi erigido o Loteamento do Parque

São Quirino está registrada (antigamente o nome era “transcrição”) sob nº 49770 no

livro 3AU, fls 156 do 1o. Cartório de Registro de Imóveis de Campinas.

O histórico do “Núcleo Residencial Parque São Quirino” (não da

Fazenda) é comum ao da Vila Nogueira. Iniciou-se por volta de 1972 (pouco depois do

núcleo da Vila Nogueira e quase contemporaneamente com o Núcleo Gênesis) com a

ocupação de uma família oriunda da cidade de São Paulo que evidentemente buscava

melhorar a qualidade de vida que experimentava na megalópole em que vivia.27

Durante toda a década de 1970 outras famílias provindas de diversas

regiões do Brasil, foram gradativamente ocupando a área, passando o local a ser

caracterizado como favela dada à sua precariedade habitacional.

A organização inicial dos moradores se deu em 1973 com a formação

da primeira Associação de Moradores, denominada “Associação de Moradores das

Favelas Vila Nogueira e Parque São Quirino” (vide histórico do Núcleo da Vila

Nogueira).

27 Este historico foi elaborado a partir daquele que se encontra nos autos do processo de regularizeção fundiária existente na COHAB-CP.

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O local passou a ser conhecido como "pichão" em razão da existência

de um despejo de resíduos negros da produção de açúcar, semelhantes a piche, na

área da Rua Moscou, proveniente da empresa Açúcar Pérola (Companhia de Usinas

de Açúcar Nacionais) que se situava ao lado de onde hoje está erigido o conjunto

residencial Cidades do México, no Bairro Guanabara (a aproximadamente 5 km,

portanto, do local em que esta indústria despejava seus resíduos).

Até 1985, quando a associação se divide em duas (uma para cuidar da

Vila Nogueira e outra para o São Quirino) a história dos dois núcleos é idêntica.

Após eleição da nova diretoria, registrou-se em cartório de registro de

pessoas jurídicas a “Associação de Moradores da Favela Parque São Quirino”. No

mesmo ano parte das famílias moradoras da Rua Moscou (praça 06) ocupou a praça

10. Neste ano ainda, mediante apoio técnico da Regional 03, os moradores

realizaram um mutirão para terraplanar da área do “pichão”.

Importante inovação acontece em 1988 quando parte destacada do Parque São Quirino foi urbanizada, passando a ser denominada como "Núcleo Residencial Dom Bosco". Feita a remoção das áreas de risco, as famílias que

residiam neste local receberam o “Titulo de Concessão de Direito Real de Uso” (ver

histórico próprio do Dom Bosco).

Em razão de grande inundação em 1990, que causou muitos danos à

cidade de Campinas e em especial na área aqui estudada, boa parte dos moradores

perdeu suas moradias e foi abrigada no Ginásio do Taquaral e em escolas da região,

permanecendo nestes locais por aproximadamente um mês.

A administração municipal da época pela Cohab-CP e DUF

(Departamento de Urbanização de Favelas, atual Coordenadoria Especial de

regularização fundiária da Sehab - Secretaria Municipal de Habitação) providenciou a

remoção das famílias desabrigadas, para outra região da cidade, reassentando-as no

Núcleo Residencial Parque Floresta I. Mas a precariedade da infra-estrutura ali

instalada; a falta de equipamentos sociais importantes, a não-adaptação dos

moradores à região noroeste da cidade (muito diferente da região leste onde antes se

encontravam instalados) e a significativa distância do novo local de moradia em

relação ao centro da cidade (20 km) fez com que gradativamente as famílias

voltassem para o São Quirino.

Ainda neste ano de 1991 em uma parte específica da Rua Moscou

houve um surto de escorpiões e a partir daí, o local passa a ser conhecido como "área do escorpião".

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A partir de 1992 a limpeza da margem esquerda do Ribeirão das

Anhumas, na qual se encontra este núcleo, passou a ser realizada pela Prefeitura, por

meio da Administração Regional 03.

Foram feitas algumas tentativas de regularização conjunta das duas

áreas invadidas. Mas com este núcleo aconteceu algo muito curioso que vale a pena

ser relatado para que se possam aquilatar as dificuldades que os profissionais

envolvidos com a regularização fundiária precisam enfrentar e a criatividade que

precisam utilizar para solução dos problemas.

Como se sabe, foram ocupadas duas praças: uma mais distante da

área de APP e a outra com boa parte dentro da área de APP. Embora a comunidade

seja a mesma abrangendo as duas praças, optou-se por separá-las para que uma

delas pudesse ser regularizada mais rapidamente (aquela que não enfrenta as

dificuldades provenientes da área de APP) e a outra fosse regularizada

posteriormente, com calma e maiores cuidados decorrentes das implicações

ambientais.

Assim resolvida pela separação das áreas, a municipalidade de Campinas abriu dois processos administrativos na área de regularização fundiária:

• Em 1996, o proc. 24.185/96 (6-B) para regularizar o assentamento da praça 10

(distante da APP) e

• Em 2004, o proc. 73.132/04 (6-B1) para regularizar o assentamento da praça

06 (com partes dentro da APP).

Já pelo ano de abertura de cada um desses processos (1996 e 2004) se

percebe a distância em tempo entre a regularização daquele em que não aparecia a

discussão ambiental para aquele em que essa discussão era necessária.

As diferenças não param aí. O processo mais antigo já resultou na

expedição de praticamente todos os termos de concessão de direito de uso para fins

de moradia e já contemplou praticamente todos os moradores. Somente não foram

ainda beneficiados aqueles que não se interessaram em buscar na prefeitura o

documento que já está pronto há tempos.

Já o outro processo, que tomou o número 6-B1 ainda não foi

regularizado, mas a pesquisa demonstrou que a população que ali permaneceu sem

regularização terminou sendo particularmente favorecida por esta demora, conforme

se verá.

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 6)

foto aérea

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 6)

planta proposta de remoção de

moradias 1ª e 2ª fases

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 6)

planta de pós remoção

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 6)

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Imagem 26 – Núcleo São Quirino (6-B1) - início da praça 6 em ponto próximo ao Núcleo da Vila Nogueira e da Praça 10 do São Quirino. À direita uma área vazia de onde houve remoção de moradores que foram realojados na Vila Olímpia conforme o plano original de regularização fundiária deste núcleo. As moradias são remanescentes dessa desocupação. Moradores que resistiram à desocupação e que agora serão instalados nos conjuntos habitacionais que serão erigidos nesta área.

Imagem 27 – moradias situadas na parte central do núcleo são Quirino, entre o Núcleo Vila Nogueira (às costas do observador) e o Núcleo Dom Bosco (ao fundo, ao final da curva)

Imagem 28 – área do São Quirino de onde ocorreu extensa remoção de moradores com reassentamento no Vila Olímpia. Ao final dessa curva se inicia o Núcleo Dom Bosco.

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Imagem 29 - O mesmo condomínio, visto pelos fundos (a partir da margem oposta do ribeirão). Do local em que se postou o autor da imagem, já foram retirados ocupantes para serem realocados em unidades habitacionais edificadas pela COHAB-CP. No local onde havia famílias, hoje há árvores plantadas que formarão o futuro “Parque Linear das Anhumas”. Esta imagem e a seguinte foram tomadas a partir do mesmo ponto da margem esquerda do Anhumas. Esta, feita em direção montante. A seguinte, direção jusante

.

Imagem 30 - O Ribeirão das Anhumas, visto de sua margem esquerda e em direção jusante. As construções vistas nesta margem, mais adiante, são parte do “Núcleo Residencial São Quirino”. Exatamente no ponto em que se postou o autor da imagem havia inúmeros barracos que foram retirados por configurar, este trecho, como de elevado risco de inundações.

Imagem 31 – ao final da área da qual houve remoção, já bem próximo do Dom Bosco, a imagem apresenta: 1.- Primeiro plano – à direita, barraco de um dos muitos moradores que resistiram à remoção para o Vila Olímpia. 2.- Plano intermediário – pouco abaixo da construção, passa o ribeirão 3.- Terceiro plano – a fumaça está sendo expelida pela “Maria Fumaça” que está próxima da estação Anhumas, já na margem direita do ribeirão

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NÚCLEO RESIDENCIAL DO PARQUE SÃO QUIRINO – PRAÇA 06 Processo de Regularização na SEHAB 73.132/04 (6-B1)

Moradias: 317

Moradores: 1268

Domínio da área: pública

Este núcleo está assentado em parte da área que deveria ter-se

transformado na PRAÇA 06 do Loteamento Parque São Quirino.

A praça está no quarteirão 8379, macrozona 4, área de planejamento

17, Administração Regional 3, Zona Leste de Campinas e possui área de 91.400 m2 (em outros documentos, 60.955,96 m2). Trata-se, portanto, de área de grandes

dimensões, estreita e longa, que acompanha o traçado do Ribeirão das Anhumas,

ocupando toda sua margem esquerda neste trecho. Essa praça se inicia na divisa do

Loteamento Vila Nogueira com o Loteamento São Quirino e se estende por um milhar

mais centenas de metros até a Rodovia Dom Pedro. É tão grande que ali couberam os

núcleos São Quirino, Dom Bosco e Gênesis (parte deste).

Essa área foi repartida em diversas áreas menores e todas elas foram,

com o tempo, desafetadas para fins de regularização fundiária.

• Desafetação pela lei 5.704/86, da área de 31.420 m2 para formar o Dom Bosco

• Declaração de interesse social da área de 59.980 m2 pelo Decreto 9673 de

25/10/88.

• Desafetação final pela lei municipal 13.242/08 para viabilizar o Parque Linear

do Anhumas e a construção das Vilas I e II para realocação dos moradores da

Vila Nogueira, São Quirino e Guaraçaí (parte).

A doação desta área enorme para a prefeitura se deu a partir da

aprovação do loteamento do Parque São Quirino, de área pertencente a José

Bonifácio Coutinho Nogueira, sua mulher Maria Thereza Coutinho Nogueira e Paulo

Nogueira Neto e sua mulher Lúcia Ribeiro do Valle Nogueira. A doação foi feita por

escritura de 09/05/68 das notas do 5o. tabelionato de Campinas, livro 217, fls, 8v.,

posteriormente registrada no 1o. cartório de registro de imóveis em 24/05/68 sob o

número de transcrição 53.354 no livro 3AX, fls. 112.

Houve em 1988 tentativa de regularização por meio de permissão de uso (não é concessão), pelo Decreto Municipal 9673 de 25/10/88 da área de 59.980

m2, desta Praça 06 aos moradores do São Quirino. Nos anos seguintes, se comprovou que esta decisão da municipalidade,

exatamente por desconsiderar a situação de risco, era equivocada. Como várias

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enchentes atingissem o local, a municipalidade, pela Sehab, juntamente com a

COHAB-CP, se viram na contingência de remanejar famílias em vários bairros da

cidade de Campinas. Núcleos Gênesis, Lafayette Álvaro, São Luis, Vida Nova e

Jardim Telesp foram alguns dos recipiendários dos moradores remanejados.

Nova grande enchente atingiu o local em 2003 produzindo novamente

expressiva quantidade de famílias desabrigadas e danificando as moradias, a

administração local, ante tão constantes enchentes, buscou uma alternativa mais

definitiva que contemplasse a participação das famílias em situação de risco iminente

em um projeto de moradia com vistas à remoção e reassentamento.

O procedimento administrativo aberto na CERF/SEHAB para

regularização desta ocupação se inicia em 2004 quando a COHAB/Campinas elabora

um projeto urbanístico que, conforme ele mesmo se define, “prevê a remoção total

das moradias em três etapas distintas, com a transferência das famílias para outras

áreas, pela ação conjunta entre os departamentos de assistência social e técnico da

COHAB e Prefeitura Municipal de Campinas.” (fls. 16 dos autos).

O projeto foi precedido de estudo hidrológico “contratado pela COHAB à

Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica que indica a área atingida pela mancha de

inundação num período de até 100 anos.”

O estudo que culmina com a proposta de remoção constatou:

• Topografia de baixada, com presença de encostas

• Ocupação adensada e desordenada

• Construções de madeira ou mistas

• Vias internas irregulares com larguras entre um e cinco metros

• Pavimentação ausente

• Inviabilidade de tráfego de veículos

• Drenagem de águas pluviais por superfície com destino ao ribeirão

• iluminação pública existente

• eletrificação domiciliar e abastecimento de água (medidores coletivos) apenas nas moradias voltadas para a rua principal

• esgoto apenas em algumas dessas moradias voltadas para a rua principal

• coleta de lixo regular

• existência de local apto à instalação de sistema de lazer e de área verde

• extensa área de risco iminente (risco 1) abrangendo a maior parte das moradias

• reorganização freqüente dos moradores dentro da área ocupada, não permitindo uma ordenação mínima entre as edificações

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• para qualquer projeto seria necessário observar a faixa de APP de 15 metros, mas “em alguns trechos do ribeirão essa faixa foi ampliada para até 65 metros em virtude do resultado do estudo hidrológico”.

• Necessidade de melhoria das condições ambientais, com: 1- limpeza da calha; 2- recomposição da mata ciliar nos limites do núcleo; 3- ações educativas junto à comunidade local; 4- maior controle e fiscalização em relação às ocupações urbanas na bacia de contribuição do córrego, objetivando garantir taxas adequadas de permeabilidade”.

A remoção foi então proposta porque um projeto que

contemporaneamente contemplasse todas essas necessidades era na época

economicamente inviável.

Esse projeto foi gestado em diversas reuniões preparatórias entre

moradores e Poder Público, visando atendimento integral.

Contemporaneamente se elabora então o projeto de loteamento

denominado Núcleo Residencial Vila Olímpia, a instalar-se na zona norte da cidade,

fruto de parceria entre a Prefeitura, a Cohab-CP, o Ministério das Cidades (pelo

Programa de Subsídio Habitacional – PSH) e a Caixa Econômica Federal. O objetivo

é, evidentemente, atender com moradia digna as 323 famílias moradoras das Ruas

Moscou (São Quirino) e Dona Luiza de Gusmão (Vila Nogueira), priorizadas como

“risco iminente”.

A Associação de Moradores participou das principais ações junto aos

moradores, e havia, tal como aconteceu com o Núcleo da Vila Nogueira, concordância

na remoção das famílias para o Residencial Olímpia, proposta pela SEHAB/COHAB-

CP, desde que a citada área possua infra-estrutura básica e equipamentos sociais

para atender a demanda.

Realiza-se em 2005 novo estudo, agora pela área técnica da CERF

(Eng. Ralpho B. Gobbo) confirmando a necessidade de remoção e se inicia então o

remanejamento das famílias.

Em 04 de maio de 2005 a Sra. Coordenadora da área de regularização

fundiária, após diversas considerações (fls. 74) conclui ser: “inconveniente o

reconhecimento pelo poder público do direito à moradia naquele local”. Mas não

propõe a remoção pura e simples. Propõe o reassentamento das famílias no Vila

Olímpia.

Entre 2006 e 2007, 209 famílias foram removidas deste núcleo para o

Vila Olímpia. Os que resistiram, serão beneficiados conforme já se afirmou nos

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resultados da pesquisa da Vila Nogueira. Este último estudo alertava para a

necessidade de, em “paralelo às remoções seja desenvolvida a urbanização da Praça

06 para inibir novas ocupações”.

Deu-se, no entanto, entre novembro de dezembro de 2007 uma

mudança de planos em relação às remoções do Núcleo Vila Nogueira e deste Núcleo

São Quirino, já abordada na descrição da regularização do Núcleo Vila Nogueira que

se deixa de descrever aqui, por desnecessário.

Os moradores do São Quirino (Praça 06) serão acomodados na vila que

tem sido chamada de “Vila 2” e que está prevista para 100 unidades (protocolo de

aprovação no DUOS, municipal, 07/11/9880). Também o GRAPROHAB já se

manifestou (protocolados 824/07 e 825/07) e expediu Termos de Dispensa de Análise

das aludidas vilas. O DPRN, órgão estadual, igualmente foi consultado a respeito da

recuperação da APP e a autorizou (protocolo 63.956/07). Ou seja: os caminhos

jurídico-legais para a construção do Parque e das Vilas já estão desobstruídos.

A mudança de planos (realocação na Vila Olímpia / realocação na

Praça 06 do São Quirino) criou uma situação jurídica no mínimo curiosa. Locais da

Praça 06 que já estavam desafetados para fins de concessão serão agora utilizados

para área verde do Parque Linear; e espaços dessa mesma Praça em que o risco foi

removido e que não estavam desafetados porque iria acontecer a remoção, agora

precisam ser desafetados porque neles se prevê a construção de uma vila que

posteriormente precisará ser parcelada para fins de concessão de direito real de uso

aos futuros moradores dessa vila.

E como a realocação dos atuais ocupantes da Praça 02 da Vila

Nogueira será (se os planos atuais vingarem) feita na Praça 06 do Parque São

Quirino, que é uma área enorme; como diversos trechos desta Praça já foram

desafetados (para o Dom Bosco, por exemplo e para a concessão de direito real de

uso para os ocupantes da área conforme Lei 5704/86); como o projeto do Parque

Linear Anhumas ocupa toda a praça 06 sendo uma parte área verde e outra parte

construção da vila residencial; e como a construção da Vila dentro do Parque Linear

Anhumas precisa acontecer com a praça toda já desafetada (para permitir o posterior

registro do parcelamento do solo da futura vila); era necessário desafetar toda a área

remanescente da praça 06 que ainda não havia sido desafetada.

E isto se fez por meio de um procedimento administrativo nº

10/61567/2004 que resultou na Lei Municipal 13.242 de 07 de janeiro de 2008 que desafeta a área de 60.955.96 m2 da Praça 06. Assim, toda a área já está desafetada

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e isto evitará discussão jurídica sobre estar ou não desafetada a área em que será

construída a Vila Residencial. Esta mesma Lei já determina que ali se implantará o

Parque Linear e unidades habitacionais serão erigidas para acomodar os moradores

das áreas de risco do Vila Nogueira e do São Quirino.

SERVIÇOS

As entidades assistenciais públicas e privadas que atendem as mais

diversas demandas deste núcleo são basicamente as mesmas já mencionadas em

relação ao Núcleo da Vila Nogueira, dada à proximidade das áreas.

A Associação de Moradores está integrada com as demais Associações

de moradores de seu entorno. Além da diretoria da Associação, existe ainda a

colaboração de uma antiga liderança da área (Sr. Sebastião) que faz parte do

Conselho Consultivo do Fundap (Fundo de Apoio à Sub-Habitação Urbana), do

Conselho Municipal do Orçamento Participativo - COP, do Conselho Gestor e do

Conselho Municipal da Saúde.

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 10)

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 10)

foto aérea

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 10)

planta proposta de remoção moradias

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 10)

documento regularização feito pela prefeitura

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“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”

(Praça 10)

documento concessão direito real uso

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Imagem 32 - São Quirino – Praça 10 - À esquerda, as casas que compõem o núcleo São Quirino (6-B). O Ribeirão está a aproximadamente 50 metros à direita desta imagem. Este é o encontro da Rua Dona Luiza de Gusmão com (ao fundo, seguindo a mesma linha em continuação) a Rua Moscou. Divisa entre os bairros (e os núcleos) Vila Nogueira e São Quirino. Imagem tomada na direção norte/nordeste.

Imagem 33 - O mesmo núcleo (praça 10) visto a partir do outro lado

(imagem tomada na direção sul/sudoeste)

Imagem 34 - Viela de passagem do Núcleo São Quirino – Praça 10 – As casas de ambos os lados desta viela compõem o núcleo. Ao fundo, prédio de 4 andares em construção na área deste núcleo. Em terreno público portanto (o concessionário da área a vendeu para a pessoa que está construindo o prédio). O córrego está a aproximadamente 50 metros às costas do observador.

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NÚCLEO RESIDENCIAL DO PARQUE SÃO QUIRINO – PRAÇA 10 Processo de Regularização na SEHAB 24.185/96 (6-B)

Moradias: 45

Moradores: 180

Domínio da área: pública

Essa área está situada na unidade Básica Territorial 26 – Zona Leste.

Trata-se de área pública praça esta com área de 6.226,16 m². Ocupa o quarteirão

municipal 2654 do cadastro municipal; certidão gráfica A3/350 e se situa entre a Rua

José R. Aboim Gomes, Rua 44, Rua Edgard Segaglio, Rua Jorge Curado e os limites

da Vila Nogueira.

Analisando-se o mapa original do loteamento se percebe que a Praça 10 não estava originalmente prevista. A área em que ela deveria ter sido criada

estava prevista, originalmente, para ser loteada, constituindo a quadra 7. Era

formada pelas Ruas 44, prosseguindo pela 45 pouco depois da confluência das duas,

deflete à esquerda seguindo por aquilo que originalmente deveria ter sido a Rua 41

fazendo curva em “s” ao contrário, defletindo à esquerda pela rua 47 onde estava

previsto um “cul-de-sac” paralelo com a rua 44 onde a descrição começou.

A praça 10 passou a existir porque, ao que se nota da documentação,

foi necessária uma remodelação do loteamento por exigência do cartório porque para

atingir o percentual de áreas públicas que a lei exigia para aprovação do loteamento

faltavam áreas. Então, parte que deveria ter sido loteada se transformou em área

pública com o nome de Praça 10 quando a quadra 7 foi dividida em quatro partes:

7-A, 7-B e 7-C e praça. O núcleo central da quadra 7 recebeu o nome de Praça 10.

O espaço à direita da Praça 10 (de quem olha o mapa) se transformou em 7-C e foi

loteado; o espaço à esquerda do 7-C (cercando a praça) se transformou em 7-A e foi

também loteado e a área situada à esquerda da praça 10 se transformou em 7-B e foi

também loteado.

Ou seja: a Praça 10 ficou cercada ao norte pela quadra 7-A, a oeste

pela quadra 7-B, ao sul pela pela divisa com o loteamento Vila Nogueira r pela Rua 44

e a leste pela quadra 7-C. Requerimento de 08/08/78 acompanhado de memorial

descritivo e planta aprovada pelo Decreto Municipal 2496 foi acatado pelo Cartório de

Registro de Imóveis, resultando na averbação de 30/08/78 sendo então oficialmente

criada a Praça 10, que posteriormente viria a ser invadida tornando-se o Núcleo

Residencial do Parque São Quirino (6-B).

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A praça 10 deveria ter tido, então, a seguinte conformação: iniciaria

divisa com o loteamento da Vila Nogueira, defletiria à esquerda prosseguindo pela Rua

44, prosseguindo até o ponto em que a Rua 44 encontra com a Rua 45. Defletiria

deste ponto para a esquerda, pela Rua 55 (divida da quadra 7-A com a 7-B) até atingir

a Rua 54 (divisa com a quadra 7-A), faria curva de quase 180 graus à esquerda

novamente pela Rua 47 (divida com a quadra 7-B), prosseguindo depois à direita

contornando a área da quadra 7-B, terminando na divisa com o loteamento da Vila

Nogueira, formando um perímetro que desenha uma espécie de bota.

Em 1978 os moradores se organizaram em mutirão e abriram ruas na

Praça 10 do Parque São Quirino e vielas na Rua Moscou.

Em 1996, já sedimentado o assentamento de moradia da Praça 10, a

SEHAB instaura internamente o processo 24.185 objetivando ali concentrar

informações a respeito da regularização do conjunto de moradias instaladas no que

deveria ter sido a Praça 10 e solicita à Secretaria de Obras e Urbanismo que por sua

Coordenadoria de Parcelamento de Solo expeça parecer técnico a respeito da

viabilidade da regularização desta área.

Secretaria elabora um “Plano de Urbanização Específica” para

“promover a melhoria das condições de habitabilidade dos moradores do local e a

regularização fundiária com base na Lei 5079 de 30/03/81”

Em 26 de agosto de 2003 o CSU/DUOS corrige o projeto inicial para

prever a distância da área de regularização em relação à APP, de 15 para 30 metros,

observando assim a regra do Código Florestal. Assim se fez porque a topografia do

local permite a observância dessa distância. Veja-se pelo mapa da área (anexo) que

em alguns trechos a distância entre a Rua Moscou e o leito do ribeirão é bem grande

em relação a outros trechos em que tal rua está mais próxima do leito. E como esta

parte do Núcleo Residencial tem uma rua (a Moscou) entre ele e o ribeirão, não foi

difícil fazer essa adaptação.

No projeto se observou, com relação ao meio ambiente, que “o núcleo

não causa interferências ambientais e não existem áreas de risco ambiental”(referindo-se obviamente à APP).

O mesmo projeto assim observou:

• 25% da área do núcleo estava sendo reservada, pelo projeto, para área útil • não são previstas áreas verdes ou de lazer; apenas as casas, os caminhos e

as vielas. • Há todavia duas outras áreas contíguas que têm sido utilizadas para lazer e

área verde e que suprem essa deficiência.

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Para viabilizar a regularização fundiária plena era necessário desafetar

a área de 6.226,16m2 em que essas famílias estão assentadas. Isto se fez por meio

da Lei Municipal 12.616 de 04/09/06. Elabora-se então Memorial Descritivo completo

prevendo todas as 45 unidades habitacionais e respectivos lotes.

Expede-se o Auto de Regularização do “loteamento”; é o documento

final de regularização de todo o espaço e que, depois de publicado no Diário Oficial do

Município, é enviado a registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Uma vez expedido o Auto de Regularização, são expedidos os Termos

de Concessão de Direito Real de Uso (individualizados) que, devidamente

numerados, são igualmente enviados a registro para que cada morador de lote passe

a ser oficialmente cessionário desse espaço garantindo assim uma situação

semelhante à de proprietário.

RESULTADOS:

• Regularização Fundiária foi PLENA • Em setembro de 2006 foram entregues os termos de concessão de direito

real de uso. • Na regularização desta área não houve qualquer remoção. • Não foi possível, no entanto, registrar de imediato em cartório o parcelamento

do solo deste núcleo porque quando de sua aprovação havia regra na Constituição Estadual de São Paulo proibindo a alteração de destinação de áreas públicas institucionais nascidas de loteamentos (como é o caso desta área, que ocupa a Praça 10 do Loteamento São Quirino). Com a alteração do artigo que trata deste assunto, o registro se tornou possível e está sendo providenciado.

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“NÚCLEO RESIDENCIAL DOM BOSCO”

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“NÚCLEO RESIDENCIAL

DOM BOSCO”

planta

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“NÚCLEO RESIDENCIAL DOM BOSCO”

DOCUMENTO ELABORADO PELA SUPERINTENDÊNCIA DE REGULARIZAÇÃO DE

FAVELAS DA PREFEITURA DE CAMPINAS

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Imagem 35 - Para melhor localizar o Núcleo Dom Bosco. À direita desta imagem se encontra o Núcleo Gênesis. Ainda mais à direita, a Rodovia Dom Pedro I. No terço superior da foto, logo abaixo das casas que se situam no morro, estão as casas que formam o Dom Bosco e que se encontram à margem esquerda do Anhumas. À margem direita, a fábrica de sabão que aqui é vista no terço superior também, à esquerda. Em primeiro plano os trilhos do trem turístico (“Maria Fumaça”) cuja Estação Anhumas está pouco mais de 500 metros depois da fábrica.

Imagem 36 - Aproximação. Estas casas compõem o núcleo Dom Bosco, já regularizado antes mesmo da Lei de Regularização atual. As árvores do centro da imagem estão à margem do Ribeirão, o que dá bem a idéia da proximidade do Núcleo Dom Bosco em relação ao ribeirão. A imagem foi feita a partir da margem oposta do ribeirão. A mata situada acima do casario compõe o Bosque Chico Mendes, municipal, que integrará futuramente o conjunto de “eixos verdes” que configurará o “Parque Linear das Anhumas”.

imagem 37 - a mesma rua vista a partir da margem direita do anhumas ...

A mesma imagem da fot. acima, agora aproximada e vista sob 2 ângulos opostos. Percebe-se o traçado das ruas (em verdade vielas) que desembocam todas no ribeirão.

... e aqui vista a partir da margem oposta. O autor da imagem está agora de costas para a casa azul que é vista, na imagem da esquerda, ao final da rua. (imagem 38)

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Imagem 39 - “Núcleo Residencial Dom Bosco” visto a partir da margem oposta do ribeirão, que se encontra, nesta imagem, logo abaixo das casas, paralelamente aos trilhos.

Percebem-se as ruas endireitadas, corrigidas em relação à sinuosidade do traçado original feito sem critério pelos invasores. Percebem-se lotes demarcados. Entre as casas e a mata que é vista acima delas (Bosque Municipal Chico Mendes) se encontra a Rua Moscou. O núcleo Gênesis está à direita mas não é visualizado. Os núcleos Guaraçaí, Vila Nogueira e São Quirino, também não visualizados, estão à esquerda.

Imagem 40 - CEMEI São João Batista - a partir daqui começa o Dom Bosco, que para fins administrativos e intervencionais foi desmembrado do São Quirino para ser mais rapidamente regularizado e que está situado à direita desta imagem, ao fundo

Imagem 41 - Proximidades do Dom Bosco. à esquerda o conjunto propriamente dito, composto de ruelas e casas. o ribeirão está, portanto, também à esquerda desta imagem, logo abaixo do casario. À direita o início do bosque municipal chico mendes. o espaço que se localiza um ponto de ônibus, próximo de onde está o caminhão, foi recentemente invadido por sem-teto. mas como se trata de área particular o proprietário obteve mandado de reintegração de posse que foi cumprido em 15 de outubro de 2007

AO FUNDO, ANTES DO CONJUNTO DE CASAS INSCRUSTRADO SOBRE O MORRO, HÁ UMA BAIXADA ONDE SE VÊ PARTE DO NÚCLEO DOM BOSCO.

Imagem 42 - A vegetação retilínea mais clara que é vista no terço superior da imagem demarca o leito do ribeirão das anhumas em cuja margem esquerda está o Dom Bosco. O observador está na margem direita e a edificação grande vista no canto esquerdo da imagem é a fábrica de sabão que está, como se vê, postada mais próxima do ribeirão do que o próprio conjunto do Dom Bosco. cada um está em uma margem do ribeirão

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5.5.4 – “NÚCLEO RESIDENCIAL DOM BOSCO” processo de regularização na GUF (SERLA): 034455 de 05/11/85)

Moradias: 136

Moradores: 544

Domínio da área: PÚBLICA

Trata-se de um assentamento habitacional irregular, posteriormente

regularizado, destacado do Núcleo Residencial São Quirino.

A área em que se erigiu este assentamento, aproximadamente

31.420m2, é parte daquilo que deveria ter-se convertido na Praça 06 (que tem área

total de 91.400 m2) do Loteamento do Parque São Quirino se a área não tivesse sido

invadida. Tal praça foi doada pela transcrição 53.354 (feita no Livro de Transmissões,

no de número 3AX, a fls. 112), de 24 de maio de 1968 (transcrição anterior: 3AU-156-

48.770) originária de escritura de doação de 09 de maio de 1968, das notas do 5º

tabelião local, livro 217, fls. 8v. em que figuram como transmitentes doadores o Dr.

José Bonifácio Coutinho Nogueira e sua mulher Maria Thereza Coutinho Nogueira,

Paulo Nogueira Neto e sua mulher Lúcia Ribeiro do Valle Nogueira e como adquirente

(donatária) a Municipalidade de Campinas.

O processo interno de regularização (protocolo administrativo nº

034455) se inicia como uma “urbanização de favela” em 31/10/85 quando a Gerência

de Urbanização de Favelas (um dos órgãos municipais executores do Programa de

Combate às Enchentes) por meio do Engº Carlos Armando Mendes Conagin, ultimou

um projeto inicial e expediu ofício para o Secretário de Promoção Social de Campinas

sugerindo ao reurbanização e solicitando encaminhamento do projeto ao Prefeito

Municipal.

O projeto estava acompanhado de minudente Memorial Descritivo,

algumas plantas daquilo que estava sendo proposto, descrição detalhada dos lotes

(em 20 folhas); e descrição de vielas sanitárias.

Em 19/02/86 se inicia a tramitação. Note-se que a esse tempo a reurbanização era tratada como assunto predominantemente social, o que se

denota pelo tipo de subordinação da GUF.

O Gabinete do Prefeito encaminhou, como medida preliminar, projeto de

lei à Câmara local para desafetação da área. Interessante que atualmente a

desafetação da área costuma ser, na tramitação, uma das últimas providências,

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depois que os demais aspectos (urbanístico, social) estão solucionados. Neste caso

foi uma das primeiras providências.

A Municipalidade orçou em seguida custos do projeto; obteve valores

junto à CPFL (14/05/1986) elaborou cronograma de desembolsos e por meio da

COHAB (agente promotor) buscou recursos junto ao BANESPA (agente financiador).

Em 20 de agosto de 1986 a Câmara Municipal de Campinas aprovou a

lei Municipal nº 5704 determinando a desincorporação da classe de bens públicos de

uso comum do povo e transferida para a de bens patrimoniais a área de terreno de

propriedade da prefeitura municipal de Campinas “parte da praça 6, localizada no

quarteirão 8.379 do cadastro municipal, loteamento São Quirino, com 31.420,00 m2 de

área e as seguintes medidas: 250,00 m + 143,50 m de frente pelo alinhamento da rua

Moscou; 13,00 m de curva pelo alinhamento da rua Moscou e da estrada do sabão;

84,00 m + 35,00 m lateralmente à direita, onde confronta com a estrada do sabão;

510,00 m aos fundos, onde confronta com o córrego Ribeirão das Anhumas; 38,00 m

lateralmente à esquerda, onde confronta com o remanescente da mesma praça”.

A mesma Lei autorizou “a prefeitura municipal de Campinas a conceder

o direito real de uso da área descrita no artigo anterior a seus atuais ocupantes, com a

finalidade de promover a urbanização das favelas”.

Aprova-se, em 1988, um “Plano Específico do Núcleo Residencial Dom

Bosco” por meio do Decreto 9.448 de 19/02/88.

Aprovado o plano, antes mesmo da aprovação em juízo e em cartório a

municipalidade já estava expedindo (desde 27/02/88) os primeiros Termos de

Concessão de Direito Real de Uso com base no cadastro de moradores que já havia

sido realizado in locu , tempos antes, pelo serviço de assistência social.

Este “Plano Específico” prevê:

• Destaque de uma área de 15.049,70 m2 para constituir uma praça que se instalaria praticamente ao centro (pouco deslocado) da área já depois de urbanizada; seria a “Praça 6-A”

• Destaque de outra área, de 1.785,00 m2, colocada entre as quadras “J” até “O”, e a Rua Moscou, delimitada a leste pela Estrada do Sabão; seria a “Praça 6-B”.

• Abertura de 13 “Ruas” situadas transversalmente à Rua Moscou, terminando todas na margem esquerda do ribeirão. Não são ruas para circulação de veículos, mas de pedestres; são praticamente só utilizadas para acessos dos moradores a suas casas; não são ruas de passagem.

• 16 quadras no núcleo, de “A” até “O”, totalizando 136 lotes. • arruamento regular, numeração dos lotes e nomeação das ruas. • Observância da faixa de preservação de 15 metros

O órgão que o aprovou administrativamente foi a SERLA – Supervisão

Especial de Regularização de Loteamentos e Arruamentos (órgão já extinto).

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A municipalidade formaliza requerimento para regularização do Dom

Bosco em 17/03/88, dirigido ao Juiz de Direito, originando o Processo 35/88, que

tramitou na Justiça (Vara Cível cumprindo funções de Vara de Registros Públicos), do

que decorreu sentença favorável em 30/09/88. Expede-se então mandado de registro

do loteamento com características diferenciadas.

O “loteamento diferenciado” é finalmente registrado em 1989, 04 de

janeiro, tendo o 1o. Cartório de Registro de Imóveis de Campinas aberto matricula da área, devidamente regularizada, sob o n º 57.410.

A partir daí os lotes terminam sendo matriculados individualizadamente

e cada morador figura oficialmente, em cartório, como concessionário de seu

respectivo lote.

Assim que expedidos os documentos os moradores receberam da municipalidade o termo de concessão e, anexa, a matricula de seu lote dela

constando seu nome como concessionário, o que constitui expressiva conquista. A

entrega era feita pela Procuradoria Municipal, que aproveitava para fornecer

orientação jurídica gratuita aos moradores, individualizadamente, quanto a seus novos

direitos.

A pesquisa permite perceber que, estranhamente, alguns moradores ou

não foram buscar seus documentos ou simplesmente desistiram dele ou ainda

abandonaram suas casas ou não tinham documentos pessoais para que a

regularização documental da posse e concessão de direito real do imóvel pudesse ser

feita.

Lastimavelmente, como a Associação de Moradores a esta época não

estava organizada (estava sem diretoria executiva e sem conselho fiscal) houve

dificuldade para expedição dos termos de concessão, termos de renúncia e termos de

novas concessões a partir das renúncias.

Até hoje há um departamento na prefeitura encarregado de atender os

casos de renúncia à concessão, formalizando os Termos Administrativos de Renúncia

e expedição de novas concessões.

RESULTADOS:

• Regularização plena

• Apenas 18 remoções em época em que não havia ainda um consenso quanto à regularização desses espaços de moradia.

• Registros individuais no Cartório de Registro de Imóveis realizados

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“NÚCLEO RESIDENCIAL

GÊNESIS”

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“NÚCLEO RESIDENCIAL GÊNESIS”

FOTO AÉREA

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“NÚCLEO RESIDENCIAL GÊNESIS”

PLANTA

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Imagem 43 - Panorama do gênesis tomado de sobre a ponte da rodovia Dom Pedro I – o arvoredo que é visto no centro da imagem no sentido longitudinal esconde o Ribeirão das Anhumas.

imagem 44 - panorama do Gênesis tomado da estrada do Carrefour (Dom Pedro até estação ferroviária anhumas).

Quem deste ponto olha 45 graus para a esquerda, divisa o “núcleo residencial Dom Bosco”

Imagem 45 - Em primeiro plano o campo de futebol utilizado por moradores de todos os núcleos residenciais próximos (aproximadamente 8 núcleos). ao fundo, as casas que formam o “núcleo residencial Gênesis”

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FIM DA LINHA – A ESTAÇÃO ANHUMAS

Imagem 46 - Panorama visto de sobre a ponte da Rodovia Dom Pedro em direção montante do Ribeirão das Anhumas. Vêem-se os trilhos da ferrovia. À direita, a fábrica de sabão instalada na beira do Ribeirão. Ao fundo, logo após a torre branca, se encontra a Estação Anhumas da ferrovia, de onde parte o trem turístico que hoje alcança o centro da cidade de Jaguariúna.

Imagem 47 - A estação Anhumas da ferrovia Imagem 48 - “Maria Fumaça” realiza o percurso turístico

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5.5.5 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GÊNESIS” Processo de regularização na SEHAB: 57.661(124)

Moradias: 356

Moradores: 1.424

Domínio da área: semi-pública (sociedade de economia mista).

O “Núcleo Residencial Gênesis” se localiza, tal e qual os demais

núcleos aqui estudados, na Região Leste do Município de Campinas.28

Delimitações: entre o loteamento e arruamento do Parque das

Anhumas, loteamento e arruamento Jardim Santana (3ª.Parte), parte da chácara

Santa Terezinha, parte da Chácara Santa Lúcia, faixa desapropriada pelo D.E.R. para

construção da Rodovia Dom Pedro I, trecho do Ribeirão das Anhumas e finalizando no

trecho da Rua Comendador Herculano Gracioli (antiga estrada do sabão) do

arruamento e loteamento Parque das Anhumas.

Se encontra na Gleba 15, quarteirão 30.013, área de planejamento 14,

macrozona 4, Administração Regional 3. Alguns documentos mencionavam área de

166.631,00 m2 e outros ainda 117.314,44 m2 já que consideram outros espaços como

integrantes.

A área toda de 190.462,00m2 era objeto da Transcrição 29.981 feita

no livro 3-AB, fls. 136 do 1o. Cartório de Registro de Imóveis, com área de. Essa área

toda configura em 31/01/1958 parte da FAZENDA SANT´ANNA.

Em 13 de setembro de 1957 essa área toda foi permutada por escritura

pública do 3º. Tabelionato de Campinas (livro 222, fls. 54v.) por outra área, entre os

membros da FAMÍLIA ARRUDA CAMARGO (Francisco Xavier de Arruda Camargo e

outros) com a Prefeitura de Campinas. A Prefeitura tornou-se proprietária com base na

aludida transcrição 29.981.

Em 1966, por lei municipal 3534 de 12/12/66, art. 18, estas e outras

terras municipais passaram a integrar o patrimônio do DAE (Depto. de Água e Esgoto),

autarquia municipal.

Em 11/06/1970, por escritura do 4º. Tabelionato de Campinas o Depto

de Estradas de Rodagem desapropria desta fazenda a área de 23.831,00 m2 que

seria necessária para passagem da estrada Campinas a São José dos Campos 28 Este histórico foi elaborado a partir dos documentos oficiais que constam do processo de regularização fundiária junto à COHAB-CP e por meio de entrevistas e outros documentos obtidos durante a pesquisa junto a cartórios.

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(depois designada por Rodovia Dom Pedro I). Remanesce, da área original da

fazenda, a área aproximada de 166.631,00m2.

Essa área de 166.631,00 m2 foi transferida, pela Lei Municipal 4356 de

28/12/73, do DAE para a SANASA, Sociedade de Economia Mista que essa mesma lei

autorizou a ser criada, o que se deu em 28/08/74. Essa área era conhecida na

SANASA como “Área da Depuradora do Anhumas” conforme item 28 da Ata das

Assembléias Gerais Ordinária e Extraordinária de 30/04/81 e terminou matriculada no

1º. Cartório de Registro de Imóveis sob número 76.993 em 28/12/1995.

A área total matriculada no 1o. Cartório de Registro de Imóveis sob o

número 76.993 (de 166.631m2) posteriormente foi desmembrada gerando:

• Matrícula 77.813 – Gleba 15 - área de 136.766 m2, posteriormente retificada para 114.483 m2, que terminou prevalecendo como sendo efetivamente a área em que o núcleo estava assentado.

• Matrícula 77.814 – Gleba 15-A – área de 16.167 m2 que se situa na divisa do Gênesis com os Loteamentos Parque Anhumas e Jardim Santanas (3a. Parte), limitada pela Rua Comendador Herculano Gracioli (antiga Estrada do Sabão).

• Matrícula 77.815 – Gleba 15-B – área de 13.898 m2 confrontando com a rodovia Dom Pedro.

Este núcleo residencial surge na mesma época dos outros núcleos das

proximidades, em áreas públicas ou particulares, na década de 70.

Esta área é parte do complexo de ocupações ocorrido à margem

esquerda do Ribeirão das Anhumas que se inicia na Rua Luíza de Gusmão, passa

pela Rua Moscou e termina no citado Núcleo, dando impressão de tratar-se de uma

única ocupação enorme.

A partir de 1978, durante a administração de Francisco Amaral como

Prefeito, houve na área a ocupação de aproximadamente 200 famílias migrantes de

diversas regiões do Nordeste do país e do interior do Estado de São Paulo.

Essa área era propriedade particular da Sanasa (Sociedade de

Abastecimento de Água e Saneamento S.A., empresa de economia mista por ações,

criada em 1973 para prestar serviços de abastecimento de água e esgotamento

sanitário no município de Campinas) e já estava ocupada pelos moradores há muito

tempo quando passou a pertencer à Prefeitura Municipal de Campinas em outubro de

1995, aprovado pela Lei 8.514/95, que autorizou o Poder Executivo a receber tal área

mediante “dação em pagamento” (e não “doação” como consta de alguns documentos

oficiais) de empréstimos obtidos pela SANASA junto à municipalidade conforme leis

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municipais 5.814/87 e 5.955/88.

A escritura de dação em pagamento foi assinada em 23/11/95 nas notas

do 5o. Tabelionato de Campinas, fls. 394 do livro 557.

Tal acordo visava a urbanização da área e o reassentamento de

famílias em situação de risco da Região Leste do Município de Campinas.

O desenho da ocupação era caótico, mas não diferençava de todo tipo

de ocupações que conhecemos: vielas, passagens, caminhos ora estreitíssimos ora

mais largos, sinuosidade, relevo não vencido gerando casas vizinhas em platôs

diferenciados.

Era necessário, para que a regularização acontecesse, planejar

inteiramente a área, projetar uma urbanização completa, com arruamentos, guias,

escoamentos de água, saneamento, circulabilidade, aeração e, o quanto possível,

todos os demais itens de urbanismo que se observam quando se pretende realizar um

loteamento.

A regularização do GÊNESIS foi feita por meio de DUAS

INTERVENÇÕES. A primeira em 1997 e a segunda em 2004.

Da primeira a Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária não

possui a documentação. A regularização de 2004 está bem documentada.

Pelos documentos da regularização de 2004 se pode constatar que a

primeira intervenção, de 1997, buscou apenas dar uma conformação urbanística ao

local, com arruamento, iluminação e água, bem como construção de unidades

habitacionais na forma de embriões de 25 a 31 m2 (construções que permitem

posteriores ampliações, conforme as necessidades e as possibilidades de cada

família). A construção dessas unidades foi, em grande parte, financiada pelo FUNDAP

– Fundo de Apoio à População de Sub-Habitação Urbana.

Havia espaço nas proximidades, que permitiu começar “do zero”

engendrando sistema de construção do novo núcleo em três etapas.

Projeto abrangeu criação de 12 quadras com desenho regular, de “A” a

“N” e foi necessário aprová-lo na SANASA, CPFL, DPOV e posteriormente (última

fase) no GRAPROHAB, criado em 1991.

Já que o projeto previa a mantença dos moradores na mesma área já

por eles ocupada, construiram-se alojamentos nas proximidades destinados a receber

famílias. Retirou-se um terço dos moradores, instalando-os nesses alojamentos

enquanto eram construídas casas no local de onde tais famílias haviam sido retiradas.

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Os barracos de onde eles haviam saído foram destruídos. Iniciaram-se então aterro,

parcelamento do solo, implementação domiciliar de água, energia elétrica e esgoto

sanitário e uma vez terminadas as casas, era hora de voltar para ocupar as casas

novas. Mas qual casa era de quem? Isto se resolveu por sorteio.

Vagos os alojamentos, retiraram-se moradores da segunda etapa para

lá, repetindo-se o processo até que a terceira etapa terminou e todos os antigos

moradores estavam instalados nas novas casas.

Gradativamente a área foi se transformando em Núcleo Habitacional

dotado da infra-estrutura necessária em processo que se estendeu por

aproximadamente cinco anos.

A urbanização da área se deu, portanto, em 1997 e obedeceu projeto

da Cohab-Campinas; executaram-se 356 lotes.

Foi esta a razão pela qual os estudos feitos por ocasião da segunda

intervenção, em 2004, constataram a presença de “casas de alvenaria”, “vias retas e

largas”, etc. O local já tinha sofrido uma intervenção com caráter de urbanização.

A construção de novas unidades neste núcleo foi possível, portanto, a

partir da assinatura do contrato 248/02 entre a COHAB e a Prefeitura local. Em

outubro de 2004 o Diretor Técnico da COHAB envia ofício à Coordenadoria Especial

de Regularização Fundiária encaminhando um projeto de regularização e solicitando

análise das variadas áreas técnicas da SEHAB. Se pretendia construir no local mais

52 moradias pelo PSH do Governo Federal, em duas fases.

Esta segunda intervenção foi necessária porque ainda remanesciam

nas proximidades algumas famílias que precisavam de moradia e havia ainda neste

núcleo algum espaço possível para receber casas. No início do ano de 2004 foi

assinado convênio entre municipalidade campineira e Caixa Econômica Federal para

construção de 52 moradias pelo Programa de Subsídio Habitacional (PSH) da

Administração Federal em duas fases.

O diagnóstico inicial da regularização de 2004 do núcleo constatou:

• Topografia plana

• Ocupação pouco adensada e ordenada

• Maioria das construções em alvenaria

• Vias oficializadas, sem pavimentação, em bom estado de conservação, largura média de 9m

• Iluminação pública ausente

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• Drenagem de águas superficialmente em direção ao ribeirão (canalizada em alguns poucos trechos, pelos próprios moradores)

• Eletrificação domiciliar presente

• Água potável abastecida com medidor coletivo

• Rede de esgoto presente

• Coleta de lixo infreqüente, com existência de acúmulos locais

• Ausência de situações de risco

• Desnecessidade de remoções

Se comparado aos demais núcleos, portanto, o Gênesis até que

apresentava boas condições de habitabilidade porque, insista-se, já havia sofrido uma

intervenção em 1997, com intuitos urbanísticos.

O projeto da segunda intervenção foi elaborado prevendo:

• Faixa “non aedificandi” de 15 m para APP

• Instalação de sistema de lazer e de áreas verdes

• Limpeza da calha

• Recuperação da mata ciliar

• Ações ambientais educativas

O projeto alertava já na época a necessidade de “maior controle e

fiscalização do poder público em relação às ocupações urbanas próximas, na bacia de

contribuição do ribeirão, objetivando garantir taxas adequadas de permeabilidade e

reversão do processo de degradação ambiental.”

A primeira fase foi totalmente concluída com a entrega de 27 moradias em julho de 2004 e a segunda fase se concluiu em setembro de 2005 com a entrega de 25 moradias.

Um segundo estudo, em 2005, a cargo da Arq. Vanderléia M.C.Guedes,

às fls. 40 e seguintes do procedimento, já a título de acompanhamento pós regularização, revela grande sensibilidade com as questões ambientais. Constata que

a partir da intervenção de 1997 a parte que havia ficado vazia (entre o

empreendimento e o ribeirão) havia sido novamente invadida e partilhada; que a área

de APP apresentava “depósito de madeiras, entulhos, horta particular, etc” e que se

fazia importante “que esse espaço seja revertido a APP, para a devida proteção do

córrego.” Constatou também a presença de esgoto e, analisando o laudo da mancha

de inundação da área, constatou “a presença da faixa amarela que indica forte

inundação ao longo do curso d´água.”

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Obtidas informações que faltaram quando desse segundo estudo, a

mesma profissional elabora (fls. 65) em setembro de 2006, novo estudo em que

novamente revela sua intensa preocupação ambiental. Havia aumentado o número de

ocupantes da área de APP, os “lotes” frutos da partilha dessa área estavam cercados

com arame ou madeira, havia estoque de lixo reciclável, havia barracos possivelmente

para moradia e era necessário remover “todas as atividades impróprias ao local e

assim retomar a função original de APP com a recuperação da vegetação ciliar,

proteção do córrego e maior permeabilidade.”

RESULTADOS:

Para a regularização fundiária plena está faltando a formalização do

loteamento inteiro (abrangendo primeira e segunda intervenções) junto ao registro de

imóveis; como a área é pública, precisará haver

• Desafetação da área, por lei

• emissão dos Termos Individuais de Concessão de Direito Real de Uso e finalmente

• registro dos títulos de concessão no cartório de registro de imóveis em nome dessas pessoas, para que elas possam futuramente, se desejarem, comercializar suas casas.

• Não há impedimentos para isto. Caminhos jurídicos já estão desobstruídos uma vez que a empresa que era proprietária transferiu a propriedade para a municipalidade

• regularização caminhando para “plena”, sem nenhuma remoção ter sido necessária.

SERVIÇOS A organização dos moradores deste núcleo sempre esteve ligada às

Associações de Moradores das áreas do entorno, como as da Rua Moscou (Parque

São Quirino), Vila Nogueira, Cafezinho e Independência. Por serem muito próximos

uns dos outros, estes núcleos chegaram a unir suas principais lideranças para

reivindicar em conjunto melhorias nas condições de habitabilidade não só pelas suas

áreas, mas para toda região que contava com diversas ocupações sem qualquer

infra-estrutura. Ante a proximidade dos demais núcleos, os serviços de que se

utilizavam os moradores do GÊNESIS foram sempre os mesmos que eram oferecidos

aos outros. Tanto dos órgãos públicos quanto das Não Governamentais. E contou-se

também com a assessoria do Movimento Social “Assembléia do Povo”.

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6 – CONFLITOS Se o tema da “regularização fundiária” já suscita diversos conflitos

legais, sociais, administrativos, políticos, ideológicos, profissionais e institucionais, a

“regularização fundiária em área de APP” é tema ainda mais polêmico.

Regularização fundiária é primordialmente tema urbano e quando ela se

dá em áreas privadas não suscitam muita controvérsia, na medida em que a oposição,

quando existe, acontece apenas entre o proprietário da área e os ocupantes.

Se a área é pública, é preciso distinguir entre áreas públicas destinadas

a área verde, áreas públicas institucionais e áreas públicas dominicais. O conflito entre

urbanistas (pela regularização) e administrativistas (opondo-se a ela) vão se

apresentar na controvérsia quando a regularização se pretenda fazer em áreas

dominicais ou destinadas a fins institucionais.

Enquanto não aconteceram as muitas reformas legais que permitiram a

regularização fundiária nessas áreas públicas, a oposição à regularização nessas

áreas era intensa. Mas uma vez feitas as modificações legais não cabe mais dúvida a

respeito da possibilidade jurídica de regularização, de modo que aquela oposição de

administrativistas tende a situar-se em patamares formais não de todo impedientes da

regularização.

Mas se a regularização fundiária se refere à ocupação em área pública reservada para transformar-se em área verde ou em área de APP (seja pública ou

privada) este componente ambiental amplifica a complexidade do assunto. É que tal

tema prende tentáculos em diversos campos políticos (ocupantes, municipalidade,

proprietários) e científicos (urbanistas, ambientalistas). Os conflitos se apresentam

então muito mais evidentes.

Embora muitos sejam os personagens desses profundos embates de

toda ordem, há dois protagonistas. Ambientalistas e urbanistas se destacam pela

solidez de princípios, pelo apego às convicções e pelo aguerrimento com que

assumem posições e defendem seu ideário.

Há nas abordagens de uns e outros, diferenças conceituais importantes,

objetivos diferentes, métodos substancialmente divergentes, que por vezes justificam

que ambientalistas e urbanistas sugiram, para um mesmo problema social e ambiental

grave, soluções inteiramente opostas.

Esta pesquisa pretendeu mapear estes conflitos não para evitar que

eles aconteçam mas especialmente para fazê-los transparentes e, com isto, ou

prevenir sua ocorrência ou contribuir para que os profissionais se permitam entender

essas diferenças e, apesar delas, tratar a regularização como um instrumento urbano

e ambiental importante que ele é, e que não pode ficar subordinado unicamente à

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eventual predisposição desfavorável de alguém cuja formação impede ver os fatos

mais claramente e em toda a sua complexidade.

ALGUMAS CONVERGÊNCIAS

Nem tudo são conflitos entre ambientalistas e urbanistas. Quando o

assunto seja, por exemplo, construção de garagens subterrâneas nas cidades,

ambientalistas e urbanistas não divergem. Garagens diminuem o tempo de

deslocamento de veículos e reduzem congestionamentos, permitindo economia de

combustível e gerando menor nível de poluição decorrente da queima desse

combustível.

Também nos casos em que pessoas bem situadas no contexto social se

apropriam de dunas, de praias, de espaços ambientalmente protegidos, quando

poderiam ter optado por não instalar suas moradias no ambiente natural, a solução de

remoção soa justa para ambos estes profissionais. Urbanistas não fazem conta de

eventual remoção porque não se envolvem aí questões sociais.

É justamente a questão social que antagoniza essas duas ciências

quando o assunto seja a regularização fundiária em áreas de APP. Não é o problema

ambiental que as adversariza. Todos concordam com a necessidade da proteção

ambiental. A questão está, no entanto, em saber até que ponto a ocupação das APP´s

por moradias configura verdadeira ofensa ambiental.

LOCALIZAÇÃO DOS CONFLITOS São muitos os conflitos entre profissionais do urbanismo e defensores

da causa ambiental a respeito do tema regularização fundiária quando esta se destine

a regularizar um assentamento informal, irregular, sedimentado, em

• área verde (reservada, nos loteamentos, para a criação de locais de lazer dos

moradores)

• área de preservação permanente

O tema da regularização, propriamente, não deveria acender pavios de

intolerância entre estes dois ex adversi pois o que os devia antagonizar seria apenas

a tentativa de regularizar espaços de moradia em espaços ambientais.

Mas o embate já se iniciou ao tempo em que se discutia regularização

fundiária na constituinte de 1988. Enquanto ela deveria ser apenas uma preocupação

urbana, sem abranger áreas verdes ou ambientes protegidos, o movimento

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ambientalista já se preocupava com ele e já o combatia mas provavelmente por razões

estratégicas. Ambientalistas não têm, normalmente, preocupações urbanas mas

provavelmente se temia, na época, que com a abertura da porta da regularização

fundiária em áreas urbanas se tornaria mais fácil abrir a discussão – como

efetivamente aconteceu – da regularização fundiária em áreas ambientalmente

protegidas (áreas verdes, APP´s, Unidades de Uso Sustentável, Unidades de

conservação e até mesmo reservas legais).

Então era melhor não discutir regularização fundiária de área nenhuma.

O assunto entrou, contudo, fortemente na agenda ambiental quando a

regularização deixou de cuidar apenas de áreas urbanas desprovidas de maior

interesse ambiental e passou a abranger essa dimensão tão significativamente

presente nas áreas verdes e de APP.

Retirada a questão ambiental da discussão, o litígio entre ambos se

esvai, embora se mantenham outros personagens. No tema “regularização” (não em

áreas ambientais) os personagens que litigam são outros. São progressistas

(defendendo o direito à moradia) litigando com conservadores (defensores do direito à

propriedade, como a T.F.P.29 por exemplo); Proprietário contra ocupante (nas áreas

privadas ocupadas para fins de moradia); administração pública se opondo a ocupante

(quando a ocupação se dê em área pública), administrativistas em choque com

urbanistas (quanto à possibilidade de permitir que uma área pública seja dada em

concessão, sem licitação, à fruição privada), moradores do entorno em litígio com os

ocupantes daquilo que deveria ter sido uma praça ou um equipamento social

comunitário se não tivesse havido a ocupação. Vejam-se, para exemplificar, as áreas reservadas em loteamento para

fins institucionais (escola pública, creche pública, posto público de saúde). É claro que

a palavra “ambiente” não exprime somente o conjunto de condições naturais e de

influências que atuam sobre os seres humanos e demais organismos vivos.

(FREITAS, 1999, fls.281).

Se a tomarmos em sua acepção ampla, que abrange, além da

ambiência natural tutelada, o cultural (patrimônio histórico, artístico, arquitetônico, etc),

o do trabalho (condições de salubridade e segurança das atividades laborais) e o

artificial (espaço urbano construído, conforme art. 182 e 225 da Constituição Federal),

concluiremos que os conflitos entre urbanistas e ambientalistas poderiam

perfeitamente se dar também no exemplo da área reservada para fins institucionais,

como efetivamente se deram.

29 Tradição, Família e Propriedade, entidade civil da ultra-direita católica.

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Mas se deram não porque ambientalistas tivessem resolvido estender

sua atuação para o “ambiente construído”, mas porque já se sabia os caminhos que

seriam abertos a partir da possibilidade de regularização fundiária de áreas privadas e

públicas. Se os conflitos aparecem também quando se trate de regularização fundiária

de assentamento em área destinada a fins institucionais que esteja fora de área de

APP e de área verde, a motivação só pode ser estratégica.

Mesmo em se sabendo que, uma vez regularizadas essas moradias, os

moradores das proximidades deixarão de contar, ao menos naquele espaço, com

serviços públicos importantes e que isto poderá afetar a qualidade de vida dessas

pessoas (o que é também um dado ambiental) a questão ambientalista não emerge

nessas situações, salvo por temores em relação às novas possibilidades que surgirão

a partir daí.

Surgem aí outros conflitos (moradores das proximidades e moradores

da área que se pretende regularizar) e a conotação ambiental é mera coadjuvante das

discussões.

È como se os ambientalistas só tivessem olhos para o ambiente natural

e lhes fosse invisível o ambiente acinzentado das construções em meio à cidade.

O tema desta pesquisa se limita às áreas de APP, razão pela qual não

se abordarão aqui os conflitos entre urbanistas e ambientalistas nos casos de áreas

verdes condominiais.

VISÃO MÚTUA DISTORCIDA Intui-se que os conflitos entre urbanistas e ambientalistas nascem da

diversidade de formação das pessoas envolvidas nessas grandes áreas do

conhecimento humano ou das diferenças de gênese histórica dos movimentos sociais

(apoiados por urbanistas) e dos ambientalistas.

Não há congresso, simpósio, encontro, em que se as questões

ambientais estejam em pauta, em que não se afirme, pejorativamente, que

movimentos ambientalistas são “movimento de elite” ou “movimento de direita”, como

se isto configurasse grave distorção genética que comprometesse todas as propostas

dali advindas; já os movimentos sociais, populares, são auto-proclamados “movimento

de pobres” ou “movimento de esquerda”, como se este fato lhes outorgasse um direito

divino de infalibilidade em seus diagnósticos e propostas.

É comum ambientalistas considerarem os membros de movimentos

sociais (também chamados “populares”) como “trogloditas ambientais” enquanto estes

vêem aqueles como “alienados”, extremistas, “xiitas ambientais”, insensíveis às

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causas sociais, e pessoas para quem o mundo estaria bem melhor sem a presença de

nenhum ser humano.

Há claramente uma visão anti-urbana no ambientalismo, na medida em

que se origina de uma postura de defesa do ambiente natural, sem interferências

humanas.

A percepção que ambientalistas e urbanistas parecem ter uns dos

outros é carregada de preconceitos que só limitam a discussão e a circunscrevem ao

terreno da galhofa, que não aprofunda conceitos nem encontra elementos comuns a

partir dos quais é possível construir pontes e não erigir barreiras.

CONFLITOS NO CAMPO DOS DIREITOS Ao adentrar na discussão acerca dos conflitos entre estes

protagonistas, o que surge de pronto são conflitos de direitos que produzem até

mesmo conflitos intra-institucionais.

Na regularização fundiária em áreas de APP combinam-se dois temas

jurídicos: o direito pessoal (individual e social) à moradia digna e o direito transpessoal

(difuso, difundido, expandido, espraiado) ao ambiente saudável. Evidenciam-se, então,

desde logo, conflitos entre direitos sociais e direitos difusos.

A esta questão se aplicam não apenas leis que regulam o direito de

propriedade (propriedade esta que tem índole privada e configura, por isto mesmo,

direito disponível) como também normas ambientais ou urbanísticas que regulam seu

uso e ocupação (que são de ordem pública e de direito indisponível) que não admitem

disposição em contrário pelos particulares, nem discricionariedade pelos

administradores e agentes públicos.

O conflito que se estabelece entre o direito à moradia e o direito ao

ambiente saudável não é apenas conflito de objeto, como também conflito de essência

de direitos e conflito de sujeitos. O objeto do direito à moradia é a proteção

habitacional, proteção contra a remoção; o do direito ao ambiente é a proteção da vida

em sua existência e em sua qualidade; em sua essencialidade, o direito à moradia é

individual; o direito ao ambiente é, mais que coletivo, “difuso”; o sujeito do direito à

moradia é o morador; o do direito ao ambiente é a sociedade.

Assim, no exato momento em que nasce um direito individual à

moradia, nasce igualmente um direito da sociedade a que essa moradia cumpra suas

funções sócio-urbanístico-ambientais.

Não há “direito à moradia” ou “direito à propriedade” que nasça sem que

contemporaneamente nasçam também os “deveres” de quem é morador ou de quem é

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proprietário. “Direito à propriedade” e “deveres ligados à propriedade” são gêmeos

tanto quanto se dá entre o “direito à moradia” e os “deveres ligados à moradia”.

Não é por outro motivo que o desatendimento às leis ambientais pelo

proprietário de um imóvel gera uma “presunção de dano ambiental” e por vezes um

dano ambiental efetivo. E se, como visto, as questões social e ambiental estão hoje na

essência, no cerne, na própria conceituação da propriedade, é possível concluir que

um defeito em uma parte do que se pretenda definir termina por contaminar o próprio

objeto definido.

Assim, uma violação ambiental em propriedade (privada ou pública)

constitui sempre uma violação à função sócio-ambiental da propriedade e,

conseqüentemente, uma violação não a um “direito” mas a um “dever” da propriedade.

Não é – em geral – possível admitir uma regularização que inobserve os

deveres de atendimento às normas legais ambientais ou urbanísticas em vigor e de

recomposição o mais integral possível dos bens ambientais e urbanísticos atingidos.

Os princípios é que, de um lado, permitem a edição de leis que

dialoguem com a realidade das classes populares (normas urbanísticas) e, de outro,

impedem este mesmo diálogo no campo ambiental.

Mas é preciso discutir a veracidade do entendimento segundo o qual

enquanto as regras urbanísticas variam em latitude, longitude e no tempo, a supra-

espacialidade e ultra-temporalidade informam as questões ambientais e impedem que,

por regramento nacional, regional ou municipal, as normas protetivas do ambiente

possam tornar-se de observância “dispensável” ou possam flexibilizar-se.

Este raciocínio parte da noção segundo ao qual as normas urbanísticas

são flexibilizáveis mas as ambientais não.

Por um lado, a existência de ZEIS não significa flexibilização, mas um

diálogo que a lei abre com o território popular de modo a permitir que as pessoas

edifiquem com observância à lei.

E por outro, embora a doutrina repudie a flexibilização de regras

ambientais, elas variam tanto quanto as leis urbanísticas. Se as regras urbanísticas

têm, tanto quanto as regras ambientais, caráter de direito publico e são regras de

ordem pública, e têm sido modificadas para dialogar com a realidade, não há muito

senso em afirmar que as normas ambientais não possam igualmente variar conforme

o dado de realidade.

Ademais não é verdade que urbanismo só abranja ou alcance

interesses espacialmente localizados, nem é verdade que as regras ambientais gozem

da presunção de abrangência universal.

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A decisão urbanística da cidade de São Paulo optando pela realização

de rodízio municipal de veículos exerce influência em um número enorme de cidades

não apenas de seu entorno como até de outros Estados da Federação. E as regras

para manejo em bacias hidrográficas são tão díspares que serviram de motivo para a

criação de Unidades Territoriais de Bacia e, dentro destas, os Comitês de Bacias que

têm justamente por razão de vida a criação de regras harmônicas de todos os entes

políticos cujos territórios estejam naquelas bacias. Isto mostra que as regras urbanas

são apenas desejadamente locais, e que as regras ambientais são desejadamente

universalizantes. Mas daí a serem em verdade, há enorme distância.

Normalmente a diferenciação de uma regra urbanística traz

conseqüências boas ou negativas para indivíduos ou para todo o conjunto de uma

coletividade espacialmente localizada. Mas a flexibilização de uma regra ambiental

pode gerar conseqüências imprevisíveis para indivíduos, coletividades e até mesmo

para sociedades diversas daquela em que a flexibilização aconteceu. Não respeita

limites espaciais ou fronteiras políticas.

Daí a conclusão de que as normas ambientais (dentre as quais a

brasileira que protege APP´s) embora não devessem aprioristicamente sofrer grandes

modificações de uma localidade para outra, precisam adaptar-se em certas situações

muito particulares à realidade. E isto não significa necessariamente “flexibilização”

dessas normas, mas apenas uma adaptação à realidade para atender interesses

sociais.

Hoje na prática quem faz essas “adaptações pontuais” à lei é o

Ministério Público com seus “termos de adaptação de conduta” que permitem que o

Ministério Público se transforme em legislador caso a caso na medida em que ele

aceita uma realidade que não está conforme à lei.

É o que se dá, por exemplo, em situações muito comuns na prática, nas

quais uma área de APP ou uma unidade de uso sustentável é em parte ocupada para

fins residenciais e o morador, convocado pelo Ministério Público, afirma que é melhor

ele não ser removido (por exercer vigilância e impedir o acesso de outras pessoas ao

local) e o Ministério Público termina por formular com esse morador um termo que

tolerará aquela presença naquela área para prevenir “situações piores”.

É melhor que estes ajustes, esta “sintonia fina” se faça por leis locais,

sujeitas a controle político e social e não por uma instituição à qual é defeso legislar.

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CONFLITOS INSTITUCIONAIS As ciências ambiental e urbanística são portanto substancialmente

diversas e o conflito de direitos que da aplicação de cada uma delas emerge explica

antagonismos que se constatam até mesmo nos espaços institucionais.

A discussão a respeito da “autonomia do direito urbanístico”, por

exemplo, que aparentemente não configura mais que um conflito de direitos, em

verdade mascara, dentre outros, o conflito entre regularizar ou não regularizar

ocupações de áreas públicas.

O Direito Administrativo é um ramo muito antigo do Direito Público. O

Direito Urbanístico provém também desta cepa, mas é bem mais recente.

Um dos pontos mais arraigados na bi-milenar consciência jurídica de

administrativistas, ponto quase convertido em totem dessa área do Direito, é a res

publica (coisa pública). Intocabilidade ou inapropriabilidade individual ou grupal (assim

considerado um pequeno coletivo) das propriedades públicas. Estas são de todos e

não podem servir apenas a um ou a alguns.

Assentamentos informais para fins de moradia tanto acontecem em

áreas públicas, como privadas; tanto se dá em áreas ambientais privadas, como

públicas; mas estas estavam até recentemente protegidas por um verdadeiro cipoal de

normas jurídicas federais, estaduais, distritais e municipais e alterá-las para permitir a

regularização fundiária nessas áreas constituía um desafio imenso.

Administrativistas constataram que a autonomia do direito urbanístico

ensejaria – como acabou se demonstrando verdade – flexibilização nesse símbolo

sagrado da administração pública. Houve então resistência àquela autonomia,

registrada por Fernandes, 2006: enquanto as cidades e seus problemas crescem assustadoramente, e a despeito do fato de que milhares de leis urbanísticas têm sido aprovadas em todos os níveis de governo, desde a década de 30, mas sobretudo ao longo das três últimas décadas, tais juristas ainda perdem tempo em discussões estéreis acerca da autonomia do Direito Urbanístico. De modo geral, o Direito Urbanístico somente tem sido aceito como um sub-ramo do Direito Administrativo ou, em alguns casos, do Direito Ambiental. (...) Tal resistência é de natureza ideológica.

E as alterações na lei acabaram acontecendo e só se tornaram

possíveis, entre outros motivos importantes, porque urbanistas, desvinculados da

matriz administrativista, se viram autorizados a enfrentar aquele totem.

Não fosse a independência científica do direito urbanístico em relação

ao administrativo teria havido, para a liberação da regularização fundiária em áreas

públicas, muito maior resistência do que houve.

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O conflito entre autonomia ou não do direito urbanístico escondia,

portanto, também essa questão importante: a liberação das áreas públicas para fins de

moradia de alguns para resgatar injustiças seculares e tentar aumentar a oferta de

terras e assim contribuir para diminuir seu preço, facilitando o exercício do direito de

construir legalmente.

Sob aspecto institucional há ainda outro embate importante a lembrar,

que diz respeito a um dos personagens que se apresenta nos conflitos: a instituição

Ministério Público (ora o Estadual, ora o Federal, dependendo do tipo de propriedade

ocupada).

Ministério Público é a instituição encarregada, no âmbito cível, de

proteger os chamados direitos difusos, que são todos indisponíveis, como por exemplo

o meio ambiente, o urbanismo, o loteamento clandestino e os registros públicos. Um

Promotor de Justiça para cada uma dessas áreas.

Como estão todos estes quatro assuntos presentes no tema

“regularização fundiária em área de preservação permanente”, fica claro que, ao

menos no Estado de São Paulo, quatro Promotores deveriam atuar em cada

procedimento que se instaurasse visando à regularização de cada área ocupada. Mas

como “loteamento clandestino” e “urbanismo” são temas tradicionalmente ligados na

instituição Ministério Público, houve um tempo em que três promotores atuavam em

cada um desses procedimentos: o PJ do meio ambiente, o de Urbanismo e o de

Registros Públicos, cada qual defendendo um ponto de vista diferente – muitas vezes

conflitante com os demais – de uma mesma instituição.

Como sabemos que as ocupações se intensificaram a partir de meados

da década de 1970, é surpreendente que o tema “regularização fundiária” não tivesse

sido ainda “descoberto institucional e normativamente” pela instituição Ministério

Público até 1995 quando aparece pela primeira vez (mas com a designação de

“regularização de loteamento”) em norma interna dessa instituição.

Veja-se que em 1998 se expediu Ato 168 do Procurador Geral (chefe da

instituição) fixando detalhadamente as atribuições dos Promotores de Justiça do

Estado de São Paulo e ali ficaram consignadas as seguintes funções para cada um

dos promotores que hoje são envolvidos na regularização:

PJ Registros Públicos Art. 254 - Nos casos de parcelamento do solo urbano (loteamento e desmembramento) e regularização de loteamentos: I - manifestar-se, no prazo legal, nos autos de impugnação de pedido de registro, atentando para a rigorosa observância dos requisitos impostos pela legislação federal, estadual e, se houver, municipal, bem como para a titulação imobiliária da área objeto do pedido;

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PJ Habitação e Urbanismo Art. 447 - Considerar que todo parcelamento do solo deve satisfazer os requisitos da legislação federal, estadual e municipal, observadas as fases administrativa (licenças, autorizações, aprovações etc.), civil (registro especial) e urbanística (execução de obras de infra-estrutura), assim como as condições geológicas, sanitárias e ecológicas para a sua implantação. PJ Meio Ambiente Art. 461 - Instaurar investigação (inquérito civil ou procedimento preparatório, conforme o caso) ao tomar ciência da existência de lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio ambiental.

Havia, portanto, no que toca à fiscalização das atividades de

parcelamento de solo urbano, trípla gestão. Cada qual objetivando proteger um

aspecto diverso: PJ Habitação e Urbanismo pretendendo a regularidade (legalidade)

dos parcelamentos, PJ Meio Ambiente objetivando impedir que os parcelamentos

chegassem às áreas ambientais e o PJ de Registros Públicos desejando que, uma vez

formulada pretensão de regularização, os requisitos legais de todos os níveis (federa,

estadual, municipal) fossem “rigorosamente observados”.

Mas um assentamento informal de moradias em área de APP não

consegue atender integralmente aos requisitos de prévia legalidade de parcelamento,

não lesionamento ambiental em nenhum nível e regularidade documental.

O resultado é que em alguns processos que chegavam à Justiça se

viam três manifestações diversas de três órgãos do Ministério Público (que deveria ser

uma instituição una): um (o “Promotor Ambientalista”) pretendendo a retirada dos

moradores da área; outro (o “Promotor Urbanista”) pleiteando reformas destinadas a

urbanizar a área, com a mantença (ou não) dos moradores desde que atendidos

requisitos mínimos de segurança ambiental; e outro (o “Promotor Registral”)

pretendendo o não reconhecimento legal do parcelamento informalmente realizado.

Como se vê, eram posições incomponíveis de uma mesma instituição. E o mais curioso: todas defendendo o interesse público, já que:

• é do interesse público que as áreas só sejam parceladas depois que a área seja “urbanizada” (com instalação de arruamento, sistema de escoamento de águas, fornecimento de água, luz, etc);

• atende ao interesse público que áreas ambientais não sejam privatizadas e • serve ao interesse público que só se registrem documentos que atendam

inteiramente à legalidade.

Tal situação mereceu esta crítica de Fernandes (2006, p. 37): Argumentos de ordem ambiental têm sido cada vez mais utilizados para justificar a oposição – freqüentemente de cunho ideológico – às políticas sociais de regularização fundiária . Em que pese o papel fundamental que a instituição tem tido na construção de uma ordem pública no Brasil, o próprio Ministério Público, com freqüência, opõe

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valores ambientais a outros valores sociais – como o direito social, constitucional, de moradia – mesmo em áreas urbanas (públicas e privadas) onde os assentamentos humanos já foram consolidados ao longo de várias décadas de ocupação informal.

A situação chegou a tal ponto, naquilo que toca ao parcelamento

informal de solo em áreas de proteção ambiental, que foi necessária a emissão de um

ato que esclarecesse a qual profissional competiria atuar nesta questão: se ao PJ do

Meio Ambiente ou ao PJ de Habitação e Urbanismo.

O resultado foi a edição do Ato 55 em 1995, por meio do qual o

Ministério Público fez sua opção institucional pela prevalência do Direito à Moradia, conforme se pode constatar pela leitura do ato que determina caber ao Promotor de Habitação e Urbanismo (e não ao do Meio Ambiente) a atuação nesses casos de fracionamento de solo em áreas de proteção ambiental:

ATO Nº 55/95 - PGJ, DE 23 DE MARÇO DE 1995 O Procurador-Geral de Justiça, no uso de suas atribuições legais, Considerando a freqüência de casos relativos a parcelamento de solo em área de proteção ambiental; Considerando que tais casos, em tese, envolvem atribuições dos cargos de Promotor de Justiça do Meio Ambiente e de Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, ambos especializados, gerando dúvida e conflitos de atribuição; Considerando, portanto, a conveniência de definir regras específicas de atribuição na matéria; Resolve: Artigo 1º. Observar-se-á o princípio da unicidade de atuação dos Órgãos do Ministério Público na apuração e adoção das medidas judiciais e extrajudiciais em defesa do meio ambiente e do urbanismo, na hipótese de parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental. Artigo 2º. O dano ao meio ambiente relacionado com o parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental será da atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, o qual providenciará, prontamente, nos autos da peça informativa ou do procedimento instaurado, exame pericial ou estudo técnico, sem prejuízo de outras medidas, observado o disposto no artigo 5º deste Ato.

Passados alguns anos de experiência dessa separação clara de

atribuições parece que não foi possível compor os conflitos mesmo assim e

continuavam as dificuldades de atuação nesta área. Por tal razão em 2003 novo ato

institucional foi expedido, desta feita unificando essas promotorias, encerrando-se

de vez o conflito: a partir de então apenas um Promotor de Justiça atuaria em tais

casos, devendo ele analisar tanto o aspecto do direito à moradia quanto o da proteção

ambiental e tentar na prática e em cada caso compor os dois interesses. Ato Normativo nº 303-PGJ, de 6 de fevereiro de 2003 O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, (...) Resolve (...)

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Art. 1º. Ficam unificados, sob a denominação de Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo, criado pelo art. 2º do Ato Normativo nº 84, de 5 de março de 1996, e o Centro Operacional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, criado pelo art. 1º, inc. I, do Ato Institucional nº 1, de 5 de março de 1990.

A experiência tem demonstrado, desde então, que a visão do Ministério

Público sofreu profunda modificação em relação à regularização fundiária de

assentamentos informais em áreas ambientais, pois tem prevalecido o entendimento

da prevalência do direito à moradia, desde que tomadas medidas recuperadoras do

ambiente lesado. Prova disto é que têm partido do Ministério Público muitas

manifestações públicas favoráveis a este tipo de regularização. A composição dos dois

interesses tem acontecido na prática em cada caso concreto aspirante à

regularização.

Como se nota, os conflitos em relação a tal tema existem até mesmo

dentro das instituições, o que não é de todo excêntrico dada à multidimensionalidade

deste assunto.

CONFLITOS DE PERFIL A história do movimento ambientalista no Brasil se caracterizou pela

participação dominante das classes da elite, mais esclarecida e com alta escolaridade,

como mostra a pesquisa iniciada em 1992: "O que o brasileiro pensa do meio

ambiente e do consumo sustentável", coordenada pelo Instituto de Estudos da

Religião.30

O ativista ambiental “clássico” é: homem, branco, escolaridade média

ou superior, morador de área urbana, com renda familiar superior a 5 salários

mínimos, preocupado com fauna e flora. Possui tendência a conservador e

contemplativo, embora isto tenha mudado muito conforme se verá.

Urbanistas não provêm, em condições normais, de classes populares.

Tanto quanto os ambientalistas, são pessoas que vivem em cidades, têm boa renda e

formação superior. O que os distancia não é a origem social, mas as crenças, a

maneira de pensar, suas disposições psíquicas e morais, sua personalidade e

formação. O que os distingue, portanto, são suas características psicológicas ,

intelectuais e comportamentais que dirigem ao longo do exercício de vida ou de suas

profissões as suas escolhas e escalas de prioridade.

30 Disponível no site pesquisado 21/04/08 http://www.repams.org.br/downloads/uso%20sust.%20dos%20RN.pdf

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O que produz nítida dissemelhança entre essas duas classes de

intelectuais é o que está antes da formação e é também o que vem depois dela. São

as características pessoais com as quais a formação teórica irá interagir e aquilo que

resultará (comportamentalmente) dessa interação.

Na formação, até se aproximam. São ambos universalistas, embora em

microcosmos diversos. O planeta e a cidade. Curioso é que em determinado momento

da história contemporânea brasileira, urbanistas e ambientalistas compuseram

partidos de mesma base ideológica: a esquerda. Isto ao tempo em que ambientalistas

acreditavam (o que por volta do início dos anos 80 se constatou ser inviável) que a

Política Verde se poderia executar pelos partidos de esquerda somente.31

O urbanismo, que nos anos 30 abrigava planejadores e executores de

planejamento, sofre a partir do pós guerra significativas mudanças. A partir do final dos

anos 40 planejar e projetar são vistos como dois processos distintos. “Os órgãos

municipais passam a definir um espaço de atuação específica de urbanistas.

Constituem-se departamentos de urbanismo, arquitetura e obras, que vão concretizar

a clivagem na atuação de urbanistas, arquitetos e engenheiros na administração

local.(...) Define-se [então] o novo perfil do urbanista: profissional generalista, não

especialista, com capacidade coordenadora de equipes multidisciplinares.”

(FELDMANN).

Este personagem, cuja necessidade de existência se constatou a partir

do agigantamento das cidades produzido pela industrialização, personagem dos

lumiares do século XX, portanto, teve todo esse século XX para se dar conta da

importância de fazer a cidade funcionar levando em conta dimensões políticas e

sociais. A experiência o ensinou. Se a formação do urbanista abrange hoje

conhecimentos de ciências sociais e de ciências políticas, não é sem motivo.

O urbanista é, desde que abandonou as escrivaninhas públicas do

planejamento tecnocrático, capacitado a traduzir as necessidades individuais, de

grupos sociais e das comunidades, com relação à concepção, planejamento e

construção de espaços, promovendo a valorização do patrimônio natural e do

construído, o respeito à história e à cultura e contribuindo na manutenção do equilíbrio

entre ambiente físico, natural e social.

Tais circunstâncias, aliadas à sua inquietude por natureza e à sua

inconformidade por formação o tornam um profissional que aspira por reformas e quer

fazê-las. Urbanista deseja priorizar o homem, ver eqüalizados os múltiplos interesses

que determinam a formação da cidade e organizá-la e sabe que a existência da cidade

deve o quanto possível complementar o ambiente natural. 31 conforme site pesquisado em 21/08/08: http://www.pvrs.org.br/menu/pvnobrasil.htm

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O Movimento Ambientalista, que conta atualmente com diversas

ciências envolvidas na defesa do patrimônio ambiental (engenheiros químicos e

florestais, biólogos, geólogos e outros), ligados ou não a órgãos públicos, foi gestado

em países industrializados surgindo como movimento planetário dos anos 60. Não é

de há muito que percebeu a importância de sua participação política e é aos poucos

que tem notado que política nenhuma se realiza sem considerar a dimensão humana e

social.

Se a este cenário aduzirmos a brandura de índole de seus membros e

seu pouco entusiasmo com rupturas, teremos um profissional que vê a natureza e o

mundo em tal ordem de prioridade e preciosismo que é preciso conter o homem, frear

sua voragem insaciável de urbanização e desenvolvimento e ecologizar as cidades.

Para ambientalistas, o quanto existe de natureza precisa ser expandido introjetando-a

nas cidades existentes e é necessário combater o avanço das cidades pois o quanto

existe de ambiente urbano é suficiente para contentar a sede humana de progresso. O

ambientalista está aos poucos constatando a necessidade de sociologizar as questões

ambientais.

Essas duas formas bem diversas de perfil terminam por manifestar-se

no embate sobre regularizar ou não moradias situadas em áreas ambientais. Uns

desejam regularizar porque a prioridade é o homem que precisa de um abrigo e vêem

na regularização uma chance de compor os interesses humanos com os ambientais.

Outros desejam afastar as moradias desses ambientes porque objetivamente,

segundo eles, as áreas de proteção não conseguem, com a presença humana

diuturna que uma moradia representa, exercer suas múltiplas funções ambientais de

preservação de flora, fauna e mananciais.

CONFLITOS DE GESTÃO

Visto o conflito sob outra ótica, era natural que os embates entre

ambientalistas e urbanistas não tardassem a acontecer. Com as cidades avançando

no território, chega sempre um momento em que a cidade alcança áreas naturais

preservadas, intocadas ou pouco modificadas de sua vocação ambiental.

Embora ambos os profissionais sejam universalistas, fato é que o

urbanista atua de forma centrada em um tema especializado: o meio urbano. Ainda

que se exija dele que se sinta confortável em diversas áreas do conhecimento para

poder dar conta da multiplicidade de necessidades urbanas, esse universalismo é

segmentado, o que não ocorre com o ambientalista, para quem praticamente não há

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nada no mundo que se possa dizer inalcançável pelo ambientalismo. Ambiente é tudo,

ou um pouco de tudo.

E aqui outra diferença entre estas ciências: uma pesquisando tudo de

uma parte e a outra analisando uma parte de tudo.

Urbanista é levado a pensar o local e a levar em conta as questões

sociais ambientadas nesse local. Sua sensibilidade para as questões sociais é

inevitável. Mesmo que não o desejasse, o urbanista não teria como deixar de encarar

as diferenças sociais ou as injustiças múltiplas que na cidade são ainda mais cruentas.

A concentração do urbanista nos problemas do urbano (ainda que

multifacetados) lhe facilita simpatizar-se com a causa dos que vivem e se consomem n

a cidade, objeto de seu estudo.

Já o conhecimento ambientalista, em razão de sua amplitude, se

fragmenta. Ele que foca no “tudo” que o ambiente natural representa, se desvincula do

homem e das situações específicas. Fuchs (1992) evoca este apriorístico desafio da

atividade ambientalista:

...sua definição é regida pelas tensões e articulações entre o caráter universal da formulação (...) e a particularidade inevitável das situações contextualizadas. (FUCHS, 1992)

O ambientalismo tem no multi-setorialismo sua força e sua fragilidade. A

propriedade que tem o ambientalismo de se espalhar entre diversos setores da

sociedade e sua penetrabilidade transversal nas demais ciências, são consideradas

suas principais conquistas e ao mesmo tempo o motivo principal de suas derrotas.

Quanto maior a diversidade, tanto mais apoios pela universalização de

pretensões; quanto menor sua especificidade, tanto menor simpatia por parte dos que

defendem o ambientalismo se manifestando pontualmente, caso a caso.

Talvez seja por estes motivos que a dimensão humana das questões de

regularização fundiária em áreas ambientais sensibilize tão pouco a ambientalistas.

Não há foco possível. A tendência necessária é ver o amplo, o supra-humano, para

entender mecanismos mais complexos que talvez acabem um dia fazendo total

diferença para a preservação da raça.

Não deixa de ser verdade que o ambientalista vê o homem. Mas o vê

não isolado no contexto de sua condição humana ou de sua condição urbana. Ele o vê

no contexto ampliado do ambiente inteiro. Este o motivo pelo qual não se lhe advém

pruridos de consciência ao propor a remoção do homem dos espaços ambientalmente

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protegidos, mesmo sabendo que aquele espaço não é utilizado senão para fins de

moradia.

É que encarando o homem como elemento no qual diretamente

incidirão os resultados seja dos maus tratos, seja dos bons cuidados com o ambiente,

ele o vê ao encerramento dos ciclos ambientais sendo beneficiado pelo contexto

ambiental final favorável, ou por ele prejudicado, se hostil. E se para isto seja

necessário que o homem abandone aquela área utilizada “indevidamente” para fins de

moradia, será este um preço a pagar para que esta e as futuras gerações possam

harmonizar-se com o ambiente natural mais do que o fazem com o ambiente urbano.

O ambientalista tanto vê o homem que sua preocupação central não é,

propriamente, o destino do planeta, mas o da raça humana.

Segundo o ambientalismo, não é preciso que ninguém se preocupe com

a Terra. O Planeta vai se salvar. Ele se adapta. Estava aqui antes dos homens e

estará depois. É muito mais velho do que os seres humanos. A humanidade é que

talvez sucumba. O ser humano na terra é que corre risco de inviabilidade. O homem

desenvolve capacidade tecnológica cada vez maior, muda tudo de acordo com sua

conveniência e está, por conta disto tudo, aumentando de forma por demais

significativa sua pegada na terra. A preocupação central do ambientalista, portanto, é

com o ser humano e não propriamente com a Terra.

CONFLITOS DE TRAJETÓRIA E ATUAÇÃO POLÍTICA Não há substanciais diferenças entre as estratégias dos movimentos

urbanistas e dos movimentos populares (apoiados por urbanistas, conforme ficou

demonstrado no capítulo dos movimentos sociais ao longo da pesquisa) para legitimar

politicamente suas ações. A ativa participação da sociedade civil, especialmente dos

movimentos sociais, das entidades e associações populares, no que toca às questões

urbanas e ambientais busca sempre introduzir novos atores como agentes decisivos

na adaptação do modelo ou na construção de um novo modelo de desenvolvimento e

requer dos organismos internacionais e dos governos que estes os aceitem como

interlocutores e se abram à participação democrática.

Ambientalistas sempre enfatizam as dificuldades que experimentaram

para trazer as questões ambientais para o centro da agenda política dos governos,

sindicatos, partidos, movimentos sociais. Para isto contribuiu o desinteresse de alguns

setores da esquerda brasileira, para cujos grupos o ambientalismo era “uma questão

menor”, frente aos “problemas estruturais da sociedade”.

Apoio à discussão ambiental faltou também de setores da direita

chamados “desenvolvimentistas”, que viram o ambientalismo como um conjunto de

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“idéias românticas” que poderiam espantar investidores e fontes de lucro, ou como

obstáculo para superar o atraso.

A soma de desinteresses dos principais matizes políticos foi motivo de

grande dificuldade para firmar-se o ambientalismo como matéria política digna de

disputar espaços e os primeiros militantes ecológicos tiveram de arrombar várias

portas bem fechadas para tornar legítima a preocupação com o meio ambiente.32

Analisando-se as conexões sociais e políticas, percebe-se que se

urbanização consiste no deslocamento de pessoas que saem da área rural para os

centros urbanos, quem estuda os processos que levam a esses movimentos e a forma

como devem as cidades estar preparadas para receber essas pessoas com qualidade

ou minimamente com dignidade, estará inevitavelmente mais próximo de pessoas do

que profissionais de outras áreas, ainda que afins.

Assim, embora urbanistas sejam, tanto quanto ambientalistas,

profissionais com formação acadêmica (o que já garante àqueles um diferenciamento

social que mais os aproxima de ambientalistas que de movimentos populares) o fato

de urbanistas exercerem atividades muito mais próximas de pessoas do que os

ambientalistas (mais voltados aos processos do ambiente preferencialmente com

pouca interferência humana) dá àqueles uma visão das necessidades humanas que o

ambientalista normalmente não possui.

Urbanistas não são necessariamente arquitetos ou engenheiros que

podem centrar sua visão profissional na edificação do belo, do confortável e do

harmônico. Por isto urbanistas se vêem na contingência de encarar a cidade de forma

ampla, com suas conexões e confrontos e não podem prescindir de uma visão política

das questões urbanas, que contribui muito para o entendimento das complexidades do

urbano e dos dramas humanos que ali se apresentam.

Disto resulta que urbanistas estejam mais propensos a sensibilizar-se

com problemas humanos do que ambientalistas estão.

Por tais características próprias da atividade escolhida, é natural que

urbanistas se aproximem de classes populares para aprimorar o desempenho de sua

atividade profissional.

Data dos primeiros lampejos de redemocratização no Brasil a

aproximação e maior envolvimento dos urbanistas com os movimentos populares

(movimentos de moradores de cortiços, favelados, de regularização de loteamentos

clandestinos e sem-teto).

32 Pesquisa oficial Juventude, Cidadania e Meio Ambiente - Subsídios para a elaboração de políticas públicas, em http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaoambiental/jcambiente.pdf acessado em 14/04/08

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É nesta ocasião que, segundo Rolnik (2000), “os parâmetros

tradicionais do planejamento urbano começam a ser questionados no contexto do

processo de politização da questão urbana, que ocorre com a emergência dos

movimentos sociais urbanos a partir do final dos anos 70. Dentro do âmbito de reforma

do ordenamento jurídico nacional, os movimentos impulsionaram o tema da Reforma

Urbana, politizando o debate sobre a legalidade urbanística e influenciando fortemente

o discurso e as propostas nos meios técnicos e políticos envolvidos com a formulação

de instrumentos urbanísticos.

A aproximação se expressou, então, em boa parte:

• na luta pela redemocratização

• no apoio às reivindicações urbanas e, mais intensamente,

• na formulação da emenda popular da reforma urbana para a constituinte de

1988.

Nesta mesma época, “um dos temas que marcaram os debates foi a

relação da legislação com a cidade real e, sobretudo, sua responsabilidade para com

a cidade irregular, informal e clandestina. A idéia da necessidade de legalizar a cidade real parte do movimento popular, alcançando diversos setores da sociedade

e resultando em uma proposta de reformulação da legislação através da Emenda Popular da Reforma Urbana, encaminhada ao Congresso Constituinte em 1988 pelo

Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Aí estavam contidas as propostas que

procuravam (...) [democratizar] o solo urbano.” (também ROLNIK 2000)

E como tais movimentos populares já estavam conectados com setores

da intelectualidade brasileira de esquerda e com setores da igreja, a aproximação dos

urbanistas com esses setores foi reflexa.

Esta multiface das relações humanas na cidade envolvendo urbanistas

permitiu a estes uma visão de mundo, de processos econômicos e de mecanismos

políticos que os impede de desconsiderar problemas sociais presentes na

regularização da situação de moradias, que são inseparáveis das questões urbanas e

fundiárias.

Talvez para os conflitos contribua, ainda, como lembra Rolnik, 1996, o

fato de que urbanistas estão aliados a lideranças construídas por fora da rede de

intermediação política, enquanto as lideranças ambientalistas foram gestadas dentro

do ambiente político, como parte mesma do staff político.

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COMPROMISSO COM REFORMAS SOCIAIS Há ainda conflitos quanto às diferenças no compromisso com rupturas

da estrutura social. É da essência do movimento urbanista o comprometimento com

mudanças na estrutura da sociedade, pois o desenvolvimento verdadeiro só ocorre

com reformas social.

Feito o diagnóstico da questão urbana, especialmente o da

insustentabilidade intrínseca do processo de crescimento urbano lateralizado,

centrifugado e espraiado, não restava senão combater as causas desse crescimento,

identificadas como aquelas ligadas à estrutura econômica e social. É critica corrente entre não-ambientalistas, que o ambientalista entenda,

in genere, dada à sua formação algo mais conservadora, que o desenvolvimento é

compatível com a continuidade. Daí seu radicalismo bem menos acentuado do que o

de profissionais de algumas outras áreas.

Em seus primórdios, no início dos anos 70, o movimento ambientalista

operou de forma radical em razão da necessidade de firmar-se como opção política

mas tendeu à moderação a partir da década de 80, com a decadência do regime

militar, ganhando força a partir de então. Isso se deu em função da abertura política e

do retorno de exilados políticos, como Fernando Gabeira, que conviveram com grupos

ecológicos europeus. O movimento começou a deixar de ser radical quando se

percebeu que, passando a oposição a ser uma alternativa de poder, era preciso

passar a propor soluções viáveis e criativas.

A partir daí ambientalistas politizaram seu movimento, ingressaram na

política, conquistaram simpatias e fração considerável do eleitorado brasileiro, avesso

a radicalismos; e passaram a interferir nas discussões e decisões da sociedade. Essa

transformação, entretanto, não pode ser considerada um avanço histórico porque isto

seria confundir o ganho em posições meramente setoriais com uma efetiva mudança

civilizatória.

Se dependesse apenas do movimento ambientalista os valores que

guiam a sociedade sofreriam mudanças pontuais, setoriais, mas continuariam a ser

em essência os mesmos da lógica de mercado e da burocracia estatal. Sem dúvida

que por conta das atividades ambientalistas mudanças e progressos aconteceram mas

não causaram uma ruptura conceitual no modo de produção das cidades.

Sempre segundo alguns urbanistas, as estruturas sociais pré-

estabelecidas informam a atuação dos movimentos ambientalistas, que desenvolvem

projetos de incentivo ao desenvolvimento do mercado. E não é possível falar em

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mudança histórica se a estrutura de mercado prevalece, se a atuação das ONGs tem

como pautadores a mídia a opinião pública.

Por tudo isto o Movimento ambientalista brasileiro não teria contribuído

para grandes mudanças ou reformas sociais. Não provocou mudanças radicais na

estrutura social do país.33

O ambientalismo não chega a ser, no Brasil, portanto, um marco

civilizatório, a partir do qual surgem novas relações do homem com o meio ambiente já

que não alterou de forma significativa as relações sociais. Pelo contrário, conformou-

se à estrutura de mercado e à cultura tradicionais.

Por outro lado, o comprometimento de urbanistas com reformas que

permitissem o florescimento de novos valores, novas práticas e com isto resultados

diferentes dos até aqui obtidos, permitiu o entendimento de que a regularização

fundiária em área de APP precisa acontecer, por atender a um critério de justiça; por

priorizar o homem; por priorizar o direito à moradia; por permitir uma nova prática na

conduta do homem frente ao ambiente.

As agressões da moradia ao ambiente são, segundo muitos urbanistas,

infinitamente menos gravosas para o ambiente do que a agricultura e a produção

industrial, por exemplo, que, por se sintonizarem com padrões de desenvolvimento,

são vistas pela sociedade com alguma tolerância.

CONFLITOS DE OBJETO (CONCEITUAIS) Aqui se agrupam as diferenças na forma de ver a cidade e o ambiente e

de propor encaminhamentos e soluções.

VISÃO DO REAL E VISÃO DO IDEAL Os conflitos dessas áreas se estabelecem a partir de falsas premissas

quanto àquilo que seja ambientalmente ideal ou urbanística ou socialmente adequado.

As questões ambientais são quase sempre colocadas em uma

perspectiva do “ideal” enquanto que as questões de moradia (ligadas ao direito à

moradia e ao urbanismo tomado em sua acepção ampla) são colocadas sob ótica do

“real”. Esta diferença quanto à extensão de um e de outro já gera conflitos na medida

em que o ideal ambiental é necessariamente extenso, abrangendo áreas da realidade

urbanística.

33 ALEXANDRE, Agripa Faria; tese de doutorado Ambientalismo político, seletivo e diferencial no Brasil. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). In http://www.multirio.rj.gov.br/sec21/chave_artigo.asp?cod_artigo=3537 acessado em 01/04/08.

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Argumento comum que se encontra em escritos de origem urbanística é

que, uma vez constatada uma situação de irreversibilidade, de consolidação do

assentamento de moradia e de inviabilidade da remoção pura e simples dessas

verdadeiras cidades construídas, por falta de opção, à margem da lei, é preciso ser

realista e promover as remoções possíveis que sejam necessárias para dar ao espaço

uma conformação mais urbana e para liberar o mais possível o espaço de APP.

Ambientalistas, porém, alertam para a necessidade de agir

considerando situações ideais e caminhando em direção a elas. Partem às vezes da

idéia de que as situações de irregularidade não são eternas e que a insistência em

manter-se a irregularidade terminará gerando a regularidade de uma forma ou de

outra.

O problema é que a experiência demonstra claramente que a única

forma de tornar regulares situações de irregularidade urbana têm sido as leis de

anistia que não regularizam nada e não garantem nenhuma recuperação ambiental.

A regularização fundiária teria, portanto, pelo menos a vantagem de

regularizar exigindo algum nível de recuperação ambiental, que será saudável para o

conjunto da sociedade.

Ambientalistas insistem, no entanto, que se realmente é necessário

levar em conta a “consolidação” como critério, seria importante seguir dois critérios

filosóficos: a distinção entre passivo urbanístico-ambiental e loteamentos futuros; e

evitar que a flexibilização dos requisitos ambientais somente beneficie ocupantes que

não tiveram outra opção senão a irregularidade e evitar que essa flexibilização

aproveite a loteadores de alto padrão que, apenas por cobiça, aterraram nascentes,

destruíram rios e desmataram na calada da noite.

FORMAS DE ENCARAR A CIDADE Divergem ambos, também, na forma de encarar a cidade.

A cidade, que a lógica imediatista do capital vê como “fonte de

acumulação” se contrapõe fortemente à cidade como “valor de uso” onde todos

possam ter acesso aos custos e benefícios de urbanização e onde prevalece o direito

à cidade. Urbanistas vêem a cidade, aceitam-na como palco comunitário no qual se

confrontam todas as forças econômicas, políticas, sociais e populares e desejam vê-la

transformada naquele “valor de uso” na qual, para que todos tenham vez, não pode

haver espaço para exclusões.

Ambientalistas vêem a cidade como um adversário embrutecido que

precisa ser domesticado para que haja um mínimo de convivência com a natureza ou

que, pelo menos, para existir, não enseje necessariamente a aniquilação do ambiente.

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A cidade é vista como a causa dos principais males do ambiente e que precisa,

exatamente por isto, ser confrontada na sua vocação expansionista.

Para ambientalistas, portanto, todos os males que digam respeito ao

ambiente urbano precisam ser contidos, ficar circunscritos aos limites da cidade e ser

por ela resolvidos, com seus próprios meios. O assentamento informal para fins de

moradia, sendo uma das expressões físicas do malfunction urbano, precisa ser

resolvido no próprio ambiente urbano e não transferido para outros setores que

supostamente em nada contribuíram para que aquele sintoma de males urbanos

surgisse.

Diferenças e conflitos se revelam também na forma de encarar a

ocupação de uma determinada área para fins de moradia.

Para urbanistas a ocupação para fins de moradia de espaços

ambientalmente protegidos mais não é do que legítima manifestação do direito à

moradia.

Veja-se que ambientalistas, no entanto, em geral encaram as

ocupações para fins de moradia nas áreas ambientais não como uma expressão do

direito à moradia mas como “lesão ambiental” que carece ser curada. É o que se dá,

por exemplo, em Figueiredo (2005, FLS. 517): O grande desafio do Direito Ambiental Brasileiro no Século XXI será enfrentar (...) a condição de país pobre, periférico, com uma crescente desigualdade social que acaba acarretando um outro tipo de lesão ambiental: a ocupação humana de espaços ambientais via de regra acompanhada de uma ausência completa de condições sanitárias ambientalmente adequadas. O desrespeito à legislação ambiental produz, paradoxalmente, mais intensa certeza da importância vital do Direito Ambiental para a sobrevivência planetária.

Um tal entendimento apriorístico de que moradias em áreas ambientais

são apenas lesões ambientais (deixando de ver nelas a dimensão social) por certo

apenas dificulta o diálogo que precisaria acontecer entre as duas ciências para

encontrar caminhos de consenso que permitissem acudir, a um só tempo, tanto as

fragilidades urbanas e sociais, como as ambientais.

É substancial equívoco o movimento ambientalista não se dar conta de

que o verdadeiro inimigo ambiental não é, em essência, a moradia. As principais

agressões urbanas atuais ao ambiente decorrem de movimentações irregulares de

terra, caixas de empréstimo (locais de extração de terra, areia ou pedra), pedreiras,

lixões, aterros sanitários, usinas de compostagem, incineradores, fontes industriais, e,

no meio rural, agricultura mecanizada e derrubada de florestas para criação de

pastagens.

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FORMAS DE COMPREENDER O CUSTO SOCIAL Quando ambientalistas defendem a retirada dos moradores das

proximidades dos mananciais, buscam defender o recurso hídrico ou ambiente além

de, obviamente, o bolso público que é, se visto na essência, o bolso de cada um (o

que os inclui). São pessoas em geral de classe média que têm noção de que o

tratamento da água poluída do manancial pelas descargas de esgotos e de águas

servidas tem custo elevado para a sociedade.

A respeito do mesmo tema, no entanto, os urbanistas argumentam que

o preço que a sociedade paga para tratar a água que milhões de pessoas precisam

consumir e que é conspurcada pelos moradores dessas áreas, é um custo a pagar

pelo descaso com que no passado enfrentou e ainda hoje vem enfrentando o tema da

segregação e o da exclusão. Se ela, sociedade, pretende um dia livrar-se deste custo,

que atue desde já em favor da regularização fundiária (atuação curativa) e em favor de

outras formas que incentivem a inclusão e a convivência dos diferentes nos espaços

nobres da cidade (atuação preventiva).

CONCEPÇÃO DO ALCANCE DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA O urbanista sabe que a regularização fundiária que a sociedade anseia

em relação a essas áreas ambientais que foram ocupadas e que já estão consolidadas

é aquela que se faça com o mínimo de sacrifício ambiental possível. E se houver

algum nível de sofrimento ambiental, a sociedade deseja que ele seja mitigado,

compensado, indenizado ou de alguma forma recuperado. Ele olha a realidade e vê a

necessidade de intervenção levando em conta princípios impregnados de realidade.

O ambientalista põe seus olhos no ideal e teme pelos resultados de

uma regularização fundiária feita maciçamente sem critério ou com critérios não

suficientemente protetores para o ambiente.

Considera que o homem ainda não conhece os mecanismos de

sofrimento e de capacidade de auto-recuperação do ambiente. O homem sabe muito

pouco do ambiente, suas reações e capacidades. Exatamente por isto, permitir que

áreas ambientalmente importantes sejam ocupadas para depois regularizá-las

mantendo-se os ocupantes nesses locais, mesmo que se tomem medidas protetivas

que hoje julgamos eficientes e adequadas, pode resultar em convivência pacífica e

saudável do homem com a natureza, mas pode na verdade constituir uma tragédia no

futuro. Não se sabe até onde irão os resultados dessas ações humanas que

confrontam o ambiente e o sobrepujam.

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Então, por não se saber desses resultados, o que a prudência

recomenda é a não agressão ou a cura da agressão por meio da remoção dessas

moradias desses locais. Nada mais, nada menos, que utilização do princípio da

precaução que hoje já se aplica a situações como antenas de telefonia móvel em

áreas urbanas ou como segurança dos alimentos transgênicos. Por precaução, já que

o conhecimento técnico não atingiu ainda níveis que permitam afirmar com segurança

os resultados da utilização de um ou de outro, melhor não os utilizar.

Assim pensa então o ambientalista: se já pudesse a humanidade

dominar com folga conhecimentos que permitissem afirmar com segurança que a

regularização fundiária feita com observância de cuidados ambientais não resultaria

males irremediáveis às áreas em que os assentamentos de moradia se encontram,

então se poderia sim falar em regularizar tais assentamentos. Como isto está longe de

acontecer, melhor não regularizar e promover a remoção dos moradores dessas áreas

tão logo quanto possível, preferencialmente encontrando alternativas para a moradia

dos removidos.

Parece, contudo, que urbanistas, técnicos e moradores dessas

ocupações possuem já um capital acumulado de conhecimento a respeito do tema da

regularização em área ambiental capaz de evidenciar de forma algo clara que

regularizar seja a medida correta que consulta ao interesse de todos os envolvidos:

moradores, ambiente e instituições.

VISÃO DE FUTURO Enquanto para urbanistas é preciso pensar no hoje, na situação

consolidada, nas verdades que nascem da realidade constatável ictu occuli no

ambiente social, para ambientalistas é preciso pensar no amanhã e projetar um futuro

minimamente desejável.

Este confronto é, além de óbvio, dos mais saudáveis por permitir uma

digressão franca a respeito daquilo que realmente importa para aqueles que ocuparão

a terra depois de nós.

Não há quem possa, pelo menos no atual estágio de desenvolvimento

do conhecimento humano, que eventual regularização de espaços de moradia possa

comprometer os recursos hídricos e, com isto, o futuro da humanidade de forma

irremediável. As evidências são, isto sim, em sentido contrário, pois não é crível que

por conta da regularização dos espaços de moradia, desde que postas em prática

soluções técnicas para a questão ambiental, o planeta se veja sob impacto tal que o

impeça de continuar a exercer suas funções de abrigo humano.

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Fato é que enquanto se discute se essa regularização compromete ou

não o ambiente de forma irremediável, há milhões de pessoas sem moradia

adequada, vivendo em condições sub-humanas, em franca oposição à regra

constitucional da proteção mínima da dignidade inerente aos seres humanos, e o

problema agudiza ainda mais.

O mesmo diagnóstico é dado por Bueno (2004): A intensificação da pobreza, da precariedade e da irregularidade na forma de morar nas cidades, por um lado e, por outro, o aprimoramento da legislação urbanística e ambiental a partir dos anos 80, resultaram em uma situação generalizada de impasses operacionais e legais, associados a um grande sofrimento das populações envolvidas – seja pelas condições precárias de vida, seja pela insegurança em relação à moradia. A fiscalização do uso do solo, principalmente de interesse local, é historicamente ineficaz. A redemocratização do Brasil e a atuação do movimento urbanista recolocam o tema do controle urbano na pauta da gestão municipal nos anos 90.

A conclusão é pela necessidade de pensar já no agora, no hoje,

logicamente equacionando soluções ambientais de forma a compatibilizar esses

diversos interesses. É uma solução que atende aos interesses da moradia sem

afrontar por demais o interesse ambiental. É, portanto, uma solução viável, compatível

com o que se pode esperar de um pais da linha sul do planeta, ainda não

suficientemente desenvolvido.

CONFLITOS DE ESFERAS DE COMPETÊNCIA Por conta do campo mesmo em que atuam, ambientalistas carecem

elaborar normas de interesse mais difuso, conteúdo mais amplo, abrangente,

genérico, enquanto urbanistas se ocupam de normas de interesse local, específico.

Isto explica que ambientalistas atuem mais nos âmbitos federal e estadual criando leis

ou outras normas nacionais ou regionais, enquanto urbanistas tenham atuação muito

mais destacada nos municípios. E explica também o fato de ambientalistas terem um

Conselho Nacional de Meio Ambiente com poder deliberativo, enquanto urbanistas

somente recentemente conquistaram o direito a um Conselho Nacional, mas com

caráter meramente consultivo. É que as regras urbanísticas não costumam mesmo ter

caráter nacional vinculante, salvo em algumas exceções como aquelas atualmente

contempladas no Estatuto da Cidade.

É de pouca valia criar uma regra ambiental altamente protetora para a

cidade de São José do Rio Preto, se a cidade vizinha polui desbragadamente. Mas

convém ao peculiar interesse do município que as regras de edificação sejam por ele

estabelecidas.

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Por isto mesmo, são poucas as incursões de ambientalistas no campo

local e são igualmente raras as de urbanistas no nível federal.

Todos sabem, contudo, que para realmente produzir novos valores,

nova cultura e com isto comportamentos diferenciados, é preciso editar regras

nacionais, que devam ser observadas pelos Estados Federados e pelos municípios.

Mas há muito assunto que convém sobremodo ao interesse do

município mas só pode ser regulado por lei federal. A propriedade, por exemplo. O

preço da terra não sofreria nenhuma alteração significativa se as regras para obrigar a

propriedade urbana a cumprir funções sócio-ambientais não fossem fixadas

nacionalmente.

Por outro lado, adianta pouco que se criem regras ambientais nacionais,

no CONAMA, se municípios tiverem liberdade para alterar essas regras de acordo

com seu “peculiar interesse”.

É por isto que em alguns assuntos urbanistas se prestam a elaborar

regras de caráter nacional e ambientalistas se debruçam a limitar a edição de regras

locais.

A diferença é que as regras de interesse urbanístico elaboradas no nível

federal criam um mínimo necessário a partir do qual todos os municípios possam agir

segundo seu “peculiar interesse” enquanto que as regras de interesse ambiental

elaboradas no nível federal criam um limite máximo possível a partir do qual a

liberdade municipal não existe. Normas urbanísticas federais criam piso aquém do

qual município algum pode regrar; e regras ambientais federais estabelecem um teto

além do qual nenhum município pode normatizar.

Antes da democratização urbanistas e ambientalistas tinham

reduzidíssima participação política e por isto não influenciavam de forma importante ou

metodizada a elaboração de normas. A legislação ambiental dessa época se limitada a

criar parques nacionais e regras anti-poluição.

Como os assentamentos irregulares ou clandestinos de moradia

ganharam impulso em meados anos 70, a situação parecia grave em 1977 quando o

então Senador Otto Lehmann, da ARENA (Suplente do Senador Orlando Zancaner,

que havia renunciado ao cargo em 19/04/76 em virtude de ter sido nomeado

Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo) formulou Projeto de Lei

18/79 (de 12/03/79) que se converteu na Lei de Loteamentos (6.766) de 1979.

O movimento ambientalista não estava, nesta época (meados dos anos

70) estruturado, o que o torna insuspeito de ter sido agente inspirador desse conjunto

de normas.

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Nem se tinha então noção exata do tipo de mecanismos que levam

moradores para as áreas públicas e para as de APP (o que impedia a visão da

injustiça que se cometia pela exclusão social e pela segregação espacial, noções que

apareceram alguns anos depois), razão pela qual a Lei 6.766 não decorreu de

qualquer “movimento social” ou popular.

O fato de ter havido uma Lei em 1979 com caráter protetivo da ordem

urbana, nos permite elucubrar a respeito do tipo de pressões políticas que a

inspiraram. Seu autor: um advogado com formação na principal academia de São

Paulo, conhecida por seus alunos de condutas liberais mas de formação

conservadora.

Lendo-se sua exposição de motivos não se percebe senão uma

preocupação com a ordem e a organização na produção irregular de moradias dos

grandes centros urbanos, o que faz então presumir que provavelmente tenha sido

engendrada por urbanistas, preocupados com a ordem urbanística, ainda não

sintonizados com os movimentos de esquerda como posteriormente aconteceu.

Até que fossem desfocados da questão meramente urbanística e

despertados para a fulcralidade do problema social, urbanistas não viveram crise

alguma de identidade. Apesar de sua formação nitidamente voltada para as questões

que já então empolgavam os partidários da esquerda abrigados nas academias,

urbanistas não viveram grandes dramas de consciência naqueles anos políticos

instáveis da década de 70. Em vigor a ditadura no seu apogeu (o Ato Institucional 05 é

de 1968) que calava discordâncias, intelectuais e povo evitavam o quanto possível as

irregularidades de quaisquer espécies.

As tormentosas questões conflitantes entre o direito à regularidade

urbana e o direito social à moradia ainda não se apresentavam. Urbanistas sequer

desconfiavam, a despeito de sua formação voltada para questões de importância

social, que menos de uma década depois estariam liderando movimentos pelos

direitos sociais.

Há de ter havido, portanto, ao final dos anos 70 e início dos 80, um

conflito inesperado, de dissensão: urbanistas preocupados com a regularidade urbana

em oposição a urbanistas focados nas questões sociais que mais de perto falavam às

comunidades populares.

Com a chegada ao poder de partidos de centro-esquerda e, mais

recentemente, de esquerda, os assuntos de direto interesse urbano puderam contar

com regras federais que flexibilizaram direitos identificados com valores da direita

(propriedade por exemplo) e assuntos de direto interesse ambiental foram

empoderados para que a sociedade ditasse as regras (criação do CONAMA, por

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exemplo). Convém lembrar, a propósito, que embora o ciclo autoritário político

brasileiro tenha se extinguido oficialmente somente em 1986, como a desmilitarização

do poder se deu de forma “lenta, gradual e restrita”, alguns assuntos foram

democratizados bem antes de 1986, a por exemplo da questão ambiental.

A criação do CONAMA, em 1981, facilitou a democratização do assunto

ambiental e a participação da sociedade civil organizada na edição de normas nesta

área.

A Constituição Federal, em 1988, se revela a regra-mãe mais ecológica

de todas as que o Brasil já teve. Em nenhuma outra Constituição brasileira foram

incrustradas tantas regras tão reveladoras de preocupação ambiental. Ela reflete a

chegada ao poder normativo (poder parlamentar constituinte) de tantos personagens

que a redemocratização política resgatou de exílios compulsórios ou voluntários.

Reflete a onda de regramentos que o pensamento ambiental gerou naquela

oportunidade.

Quando tiveram chance de se aliar aos movimentos populares e atuar

no âmbito federal, por volta de 1984, urbanistas produziram o capítulo da Reforma

Urbana e o Estatuto da Cidade. Quando tiveram receio de que regras municipais

pudessem comprometer todo um conjunto de esforços normativos federais,

ambientalistas produziram Resoluções que, como a 369, limita e condiciona muito

(pela fixação de inúmeros requisitos) a possibilidade de os municípios licenciarem a

regularização fundiária em áreas ambientais atendendo a seu “peculiar interesse”.

Foi este o momento em que os ambientalistas limitaram o alcance do

“peculiar interesse municipal” para fazê-lo submeter-se a um expressivo conjunto de

regras federais de observância cogente por todos os municípios.

Até aqui, todavia, por conta de um determinado assunto qualquer,

urbanistas se lançavam à elaboração de leis federais e, por conta de outro assunto

qualquer, ambientalistas corriam a limitar a liberdade de estados e municípios

editarem leis por demais liberais.

Com a regularização fundiária, pela primeira vez um mesmo assunto

produz contemporaneamente os dois resultados. A regularização fundiária tem sido

responsável, portanto, por algumas mudanças importantes naquela dinâmica

urbanistas/local, ambientalistas/nacional. Urbanistas têm sido responsáveis por

significativas mudanças legais na área federal (para permitir a CONCESSÃO DE USO

ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA, por exemplo, foi necessária a alteração de

quase uma dezena de leis federais) e ambientalistas têm produzido normas federais

com caráter de aplicabilidade bem local, focado, como é o caso da Resolução 369 do

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CONAMA que embora permita a edição de norma municipal, a condiciona

intensamente.

Isto tudo pode ser visto como um dos muitos sintomas positivos da

ambientalização da questão urbana (em processo) e a incipiente urbanização da

questão ambiental. O que preocupa é que a resolução 369, por exemplo, exatamente

por estabelecer duas dezenas de requisitos para que a regularização seja possível,

evidencia de modo claro a preocupação dos ambientalistas não com a questão social,

mas com a questão ambiental. Embora ambientalistas já dêem mostras de assimilação

da possibilidade de o ambientalismo impregnar-se de assuntos urbanos, há ainda

muito a trilhar para que o ambientalismo se inocule da questão social.

DILUIÇÃO DE CONFLITOS Os conflitos e o lado negativo da ocupação de áreas ambientalmente

sensíveis são de alguma forma amenizados, suavizados, quando se busca

compreender que a ocupação, embora aprioristicamente possa ser considerada

inadequada, é em boa medida justificável e que mesmo não sendo um direito, é sob

muitos aspectos moral e legítima e juridicamente lícita.

Contribui também para serenar os ânimos dos conflitantes o saber que

para regularizar, é necessário compatibilizar, por critérios eminentemente técnicos, o equilíbrio dos interesses envolvidos, objetivando de um lado a permanência – quanto possível - dos assentamentos humanos e, de outro, proteger – o mais possível - o ambiente natural. E ajuda, também, saber que este mesmo objetivo de busca do equilíbrio

entre atividade humana e proteção ambiental tem sido também insistentemente

perseguido pelas próprias normas ambientais e urbanísticas.

A mudança no perfil dos ambientalistas também poderá brevemente

contribuir para integração das questões ambientais e sociais

Pesquisa do Ministério da Educação e do Ministério do Meio Ambiente

de dezembro/04 e janeiro/0534 ouviu 241 jovens em todo o Brasil. Os resultados estão

detalhados no livro “Juventude, Cidadania e Meio Ambiente - Subsídios para a

elaboração de políticas públicas” e revela que hoje os jovens que participam da

sociedade civil ambiental organizada é predominantemente

• do sexo feminino (56%)

• da cor parda (55%)

• cursou ensino médio em escola pública (80%)

34 Pesquisa oficial Juventude, Cidadania e Meio Ambiente - Subsídios para a elaboração de políticas públicas, em http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaoambiental/jcambiente.pdf acessado em 14/04/08

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• mora em área urbana (95%) e

• pertence a famílias de renda mensal até 5 salários mínimos (51%).

Estes dados dão conta de que a maioria desses jovens não provém da

classe média ou das elites mas emerge das classes mais populares e com níveis de

escolaridade mais baixos.

Os dados, portanto, representam uma novidade e indicam que começa

a haver uma renovação nos quadros do movimento.

Tal fenômeno pode contribuir para a popularização da questão

ambiental no Brasil, para que o movimento se fortaleça, integre a problemática social às questões ambientais e tenha maiores condições de influenciar os rumos

das políticas públicas.

Isto deve significar uma mudança na percepção do conceito que o

brasileiro tem sobre o meio ambiente. Parece que o “novo ambientalista” deixou de

acreditar que ambiente é apenas um sinônimo de fauna e flora, e passou a relacioná-

lo a seu dia-a-dia, aos problemas urbanos, do bairro e da comunidade. Cada vez mais

os elementos ambientais se têm aproximado dos sociais.

Para explicar a adesão dos jovens de classes mais baixas ao

movimento ambientalista é possível considerar que essas pessoas estão cada vez

mais expostas a problemas como enchentes, desabamentos e falta de saneamento, e

começam a entender essa realidade social à luz da questão ambiental.

Por outro lado, a contribuição para amenizar os conflitos provém às

vezes de fontes inesperadas. Muitas empresas abandonaram em parte a visão

mercantilista, amesquinhada de sua relação com a comunidade e já se transformaram

em “cidadãs”, especialmente após o advento das noções de responsabilidade

ambiental. A cada dia mais e mais empresas incorporaram a responsabilidade

ambiental no planejamento de suas ações.

E como as empresas estão, desde meados dos anos 90, aprendendo

que essa incorporação do ambiente precisa completar-se com a incorporação de

questões sociais (essência da chamada “responsabilidade sócio ambiental das

empresas”) também isto tem tido uma participação didática para uma alteração, ainda

que pouco perceptível, na mentalidade ambientalista.

Uma das soluções para prevenir conflitos consiste, evidentemente, na

harmonização das agendas verde e marrom.

Para isto é importante lembrar Fernandes (2006) (...) Já a maior aceitação do Direito Ambiental [como ramo autônomo do direito] deve-se em parte ao fato de que a agenda ‘verde’ é freqüentemente a expressão de uma visão naturalista de um

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espaço abstrato e sem conflitos, sendo como tal certamente mais próxima da sensibilidade das classes médias do que a agenda ‘marron’ das cidades poluídas – que são estruturadas a partir de conflitos político-sociais e jurídicos em torno da terra e das relações de propriedade.

Cada uma das ciências –ambiental e urbanística – se empenham por

pautar nos mais diversos foros de participação política ou social sua própria agenda.

Fala-se em agenda verde para evidentemente referir às coisas ambientais (que é tudo,

menos cidade) e em agenda marron (embora devesse ser “cinza”) para tratar questões

da sociedade urbanizada (que é a cidade, sem o complicador das questões

ambientais).

Pouco se fala de entrosamento dessas agendas, até porque elas

parecem referir-se a questões inteiramente separadas e intocáveis, cada qual com

seus conflitos e necessidades.

Para ambientalistas, por exemplo, existe apenas uma fragilidade

realmente significativa no planeta: a do ambiente que tem sido bombardeado por sem-

número de agressões que precisam ser brecadas a qualquer custo.

Urbanistas constatam hoje no ambiente urbano uma soma de

fragilidades: a sócio-ambiental.

E a questão ambiental que tradicionalmente opôs ambientalistas e

urbanistas pode ser o elo que faltava para a desejada harmonização de agendas.

Esse entrosamento só se dará por completo quando ambientalistas aceitarem incluir

em sua agenda a questão social. Fora disso, os conflitos gerarão sempre uma

tendência maniqueísta, fragmentadora, partidarizada e por vezes ideologizada, que

em nada contribui para o diálogo entre essas duas vertentes do pensamento e da

ação.

Essa questão não passou desapercebida de Rolnik (1996): (...)a dimensão urbano-ambiental como outra das grandes mudanças de paradigma que separam Vancouver/76 de Istambul/ 96. (...) Há quem (...) [veja a] cidade como inimigo declarado; há quem aponte a luta contra a miséria e o desemprego como condição de sustentabilidade. Entretanto, duas imagens parecem emergir com força. Uma, que aproxima os temas ambientais do Primeiro Mundo àqueles dos países pobres: a poluição (...) o (...) lixo(...)a deterioração da cidade causada pelos automóveis não são mais temas apenas de cidades européias e norte-americanas. Outra, que os afasta: nas cidades pobres (ou cidades do Sul, na linguagem da Conferência), os problemas ambientais estão intimamente ligados aos sociais e não podem de forma alguma ser tratados separadamente. No Brasil, esta afirmação é mais que conhecida, é vivida (...) exemplos de cenas urbanas recorrentes entrelaçaram a fragilidade ambiental com a vulnerabilidade social. Para as cidades brasileiras, portanto, uma agenda urbano-

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ambiental centrada na sustentabilidade passa pelo enfrentamento difícil, mas inevitável, da questão social.

Dar aos conflitos a importância que eles efetivamente têm e não a que

achamos ou desejamos que eles tenham é já uma forma de contribuir para a

minimização não de sua existência ou quantidade, mas de seus efeitos.

É evidentemente reducionista o argumento segundo o qual a

regularização fundiária em áreas ambientais protegidas não seja mais que um mero

conflito de direitos que se resolve com decisões administrativas ou judiciais ou ainda

com normas que, privilegiando um dos lados da questão, esvaziem o conflito.

É claro que as convicções produzem conflitos, que reclamam normas

que os resolvam. Mas o conflito não se soluciona apenas com mais leis, com decisões

ou com sentenças judiciais. É clara a necessidade de criação de uma cultura de

regularização de moradias dessas áreas, mostrando com clareza que é possível

encontrar complementaridade entre ambiente e moradia, especialmente para os casos

em que:

• se saiba que o ambiente está irremediavelmente comprometido, em razão da já

solidificação do espaço de moradias; ou

• quando medidas prévias de cunho ambiental protecionista ou reparador sejam

tomadas como condição necessária para ter lugar a regularização fundiária.

Conflitos se resolvem com enfrentamentos e com experiências que na

prática evidenciem até onde estão certos uns ou outros. Quanto mais regularizações

bem sucedidas em áreas de APP forem feitas, tanto mais se sub-dimensionarão os

conflitos. É a prática que demonstra a veracidade dos argumentos em favor da

regularização plena e sustentável capaz de satisfazer tanto os urbanistas atuais (que

compreendem a importância de contextualizar a cidade no ambiente natural) quanto

os ambientalistas de visão contemporânea que não são incapazes de lidar com a

questão social e de sensibilizar-se com ela.

Uns e outros não atentam à experiência e às recomendações de

Staurenghi (2000) para quem há pontos a partir dos quais é possível a construção de

harmonias: Sob o ponto de vista meramente jurídico, o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225) e a moradia (art. 6º.) são igualmente protegidos pela Constituição Federal. No plano infraconstitucional, encontramos normas ambientais regulando espaços necessários à preservação ambiental, bem como o Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal.

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Ou seja: é inevitável que essas duas áreas precisem dialogar para que a proteção de ambos os direitos possa acontecer com harmonia.

Criando condições para que, mantidas suas bases individualizadoras,

cada vez mais a ciência ambiental se urbanize e a ciência urbanística se ambientalize,

poderemos prevenir conflitos.

Ambiente e moradia se não são convergentes, não carecem ser

antagônicos. Podendo ser complementares, não precisam ser excludentes. Nem se

advoga que componham uma unidade descaracterizadora da essência de cada

ciência.

O VERDADEIRO CONFLITO Os conflitos aqui apresentados, ligados ao compartilhamento do

território e na utilização de espaços naturais não são, todavia, os socialmente mais

perniciosos. Quando muito podem dificultar ou impedir uma determinada regularização

por não atendimento integral dos requisitos urbanísticos, ambientais ou de legalização

dominial que as normas exigem. Ou seja: quando muito contribuem para dificultar às

classes populares o acesso à moradia própria regularizada. São conflitos que

produzem males no varejo.

O conflito verdadeiro, lembrado por Rolnik (2007), produz males no

atacado, permeando as relações humanas urbanas e conflagrando a arena do

território. É conflito pouco visível, decorrente do fato de os espaços territoriais não

terem sido, no Brasil, compactuados. É o conflito entre o uso do espaço da cidade como território para viver e o uso do mesmo espaço para fins de lucro,

entesouramento e aumento do patrimônio individual. Visualizar apenas os conflitos aqui pesquisados e deixar de considerar

o conflito de uso do território é submeter-se à armadilha que este verdadeiro conflito

oculta.

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7 – CONCLUSÕES – ANÁLISE CRÍTICA DAS SITUAÇÕES PESQUISADAS A pesquisa revela o pioneirismo de Campinas no campo da

regularização fundiária. Foi das primeiras cidades a enfrentar o problema da

irregularidade, tentando solucioná-lo até mesmo por meio da “permissão de uso”.

Embora sem sucesso, ao menos demonstrou a preocupação do poder público com a

questão fundiária. Sua lei de regularização é das primeiras do país.

Há no processo administrativo da regularização do Dom Bosco

arquivado junto à Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária um curioso

documento datado de 26/02/89 (poucos dias após a abertura da matrícula no registro

de imóveis, portanto), por meio do qual os moradores são convidados, pela

“Superintendência de urbanização de Favelas” a participar de um “Seminário de

Associações de Favelas” documento este que já mencionada o “direito à moradia” que somente 11 anos depois seria transformado em Direito Social previsto na

Constituição Federal. Tal documento já consignava que “o direito à moradia não se

restringe ao acesso a um abrigo; é necessária infra-estrutura e serviços urbanos.”

Também esse documento mencionava, já na época, a necessidade de “solução

jurídica para o problema da posse definitiva da terra” assunto que somente em 1999 a

ONU iria discutir por meio da Conferência Habitat.

Ou seja: a Superintendência de Urbanização de Favelas de Campinas

estava já então surpreendentemente sintonizada com as reivindicações e os mais

modernos instrumentos de luta dos movimentos sociais iniciados em 1978.

Se considerarmos que a Coordenadoria Especial foi criada em 2002 e

que Dom Bosco (com apenas 18 remoções) e Gênesis (com apenas 20) foram

regularizados antes disto, perceberemos quão extraordinário foi o trabalho de

Campinas pela regularização fundiária antes mesmo da criação de seu órgão público

específico.

Se Campinas dava mostras, de um lado, de tenacidade em favor da

prevalência do Direito à Moradia sem sacrifício ao Direito ao Ambiente Saudável antes

mesmo da existência da Coordenadoria (de que são exemplos a regularização do

Dom Bosco e do Gênesis), por outro lado dava exemplos aparentemente negativos

nessa mesma época, formalizando permissões ou, pior, concessões de uso

indiscriminadamente (como se deu nos casos da Vila Nogueira e do São Quirino)

como se regularização fundiária consistisse unicamente no reconhecimento do direito

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de posse da área já ocupada. Essas concessões desprezavam critérios ambientais e

urbanísticos, mas especialmente jurídicos.

Em boa hora foi aprovado, portanto, o Estatuto da Cidade, que garantiu

que a regularização fundiária se fizesse com observância de critérios técnicos, sociais,

ambientais e urbanísticos.

Outro aspecto extremamente positivo, talvez o mais importante deles,

foi a criação na estrutura da Secretaria Municipal de Habitação (subordinado

diretamente ao gabinete do Prefeito e com status de Coordenadoria) de um

Departamento específico para regularização fundiária, dotado de alguma estrutura

material e reunião de profissionais das áreas de urbanismo, arquitetura, jurídica e

social. Campinas foi das primeiras cidades a criar um órgão desta natureza, por meio

do qual foi possível organizar a questão das centenas de regularizações que

precisariam ser feitas, centralizar as informações, facilitar a troca de informações entre

os diversos profissionais encarregados das regularizações, criar um banco de dados,

formar novos profissionais, gerar experiência desse tipo de intervenção e diversas

outras vantagens em favor da regularização na cidade.

A criação da Coordenadoria foi um marco importantíssimo para avançar

ainda mais ousadamente nas práticas positivas e equilibradas de regularização

fundiária.

É possível afirmar, pesquisando a forma como a regularização fundiária

se desenvolveu em Campinas, que a partir da criação da Coordenadoria Especial de

Regularização Fundiária, em 2002, o assunto passou a ser tratado com equalização

de critérios, com organização, visão abrangente, profissionalismo e como prioridade,

permitindo a realização de uma espécie de “linha de montagem” de regularizações que

às dezenas se fizeram a partir daí.

Até então, se fazia aquilo que era possível mas o possível, se estava

sempre muito além do que se podia exigir daqueles profissionais, situava-se muito

aquém da demanda por regularização. A precariedade ainda se nota, mas a criação

da Coordenadoria foi sem dúvida alguma um salto de qualidade.

Foi ali que se sedimentou de vez a idéia de que regularização e

remoção não combinam, salvo em situações de risco irremovível.

Em entrevistas com profissionais daquele setor a pesquisa pôde

constatar seu compromisso com uma regularização fundiária de resultados.

É comum ouvir desses profissionais que apesar de todos os avanços na

cultura da regularização fundiária seja ou não em área de APP, ainda prevalece nos

moradores “regulares” da cidade a idéia de que só se regulariza a situação dos

assentamentos habitacionais irregulares com remoção e com encaminhamento dos

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moradores removidos para os lugares mais longínquos da cidade. E mesmo depois de

tantas alterações legislativas destinadas a remover obstáculos à regularização,

quando se trate de regularização fundiária em área de APP, o conceito até mesmo de

muitos profissionais urbanistas e ambientais é de que só se deve regularizar

removendo. Há muito a fazer para modificar valores enraizados na cultura da moradia

popular.

Lastimavelmente não há nenhum profissional da área ambiental nesse

departamento, o que teria sido de muita utilidade nos casos das regularizações objeto

desta pesquisa, das quais apenas uma não abrangia aspectos ambientais a analisar.

A questão ambiental foi tratada pelos profissionais da área jurídica, o que não parece

ser suficiente.

A municipalidade de Campinas tem agido preventivamente na medida

em que 1. impede a consolidação de novas ocupações; 2 - retira ocupantes de áreas

reservadas para empreendimentos de interesse ambiental e 3 - retira novos ocupantes

de áreas limítrofes de espaços já regularizados.

Campinas agiu preventivamente no caso do GÊNESIS, evitando

previsíveis gravames ao ambiente e agiu curativamente no caso do GUARAÇAÍ,

elevando a cota para fixá-la acima da mancha centenária de inundação, assim como

no caso do DOM BOSCO, mantendo o mais possível os moradores nos locais em que

se encontravam, resolvendo a um só tempo as questões social, urbanística e

ambiental.

GUARAÇAÍ

O critério de priorizar, no Guaraçaí, os ocupantes das áreas de risco,

para fins de reassentamento nas novas unidades habitacionais construídas no próprio

núcleo, causou alguma polêmica. Ocorre que os ocupantes das áreas de risco eram

justamente os ocupantes mais recentes do assentamento. Os ocupantes mais novos

vão se apoderando das áreas “que sobram”, que são as piores do assentamento,

exatamente as áreas de risco. Segundo os moradores mais antigos do núcleo eles é

que tinham prioridade, exatamente em razão da “antiguidade”.

Mas a decisão é correta e atende não apenas à lógica de uma

intervenção como também às leis e regulamentos de regularização que vigoram em

Campinas. Não tem sentido priorizar os que não correm risco, até porque caso os

males que em determinado momento são apenas “risco” realmente aconteçam nesse

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período, a responsabilidade é do administrador público que, conhecendo a situação de

risco, a ignorou momentaneamente.

Embora previstas no projeto inicial, as plantas finais de regularização

não prevêem áreas verdes para o núcleo remodelado. Isto se explica, contudo, pela

exigüidade de espaço da área deste núcleo, que é bastante pequeno se comparado

com os demais aqui pesquisados.

As dificuldades operacionais para atuar em área de dominialidade mista são imensas. Por isto mesmo, tal como se deu depois no Guaraçaí, o Poder

Público precisa empenhar-se por regularizar não apenas o quinhão de invasores de

áreas públicas, como também o dos que o fizeram em área privada. Não é correto que

o administrador público relegue à própria sorte os que ocuparam área privada e

acredite já ter feito sua parte quando regulariza fundiariamente a situação dos que

ocuparam a área pública. A administração pública precisa olhar por todos.

Caberia aqui, talvez, alguma crítica à atividade desenvolvida pela

COHAB-CP em relação a esta terceira etapa em que expressiva soma será entregue

pelo poder público (recursos de toda a sociedade, portanto) para os proprietários da

área particular que foi invadida pelos atuais moradores e que está sendo

desapropriada.

A crítica que se poderia fazer decorre da circunstância de os

proprietários dessa área privada encravada em meio às áreas públicas do Guaraçaí já

terem muito provavelmente perdido seu direito à propriedade dessa área, uma vez que

os atuais moradores do Guaraçaí já têm direito à usucapião da área por eles ocupada.

Na usucapião, uma vez superado o prazo exigido pela lei, o posseiro se torna

automaticamente proprietário; o direito já está constituído por inteiro; o que o Poder

Judiciário fará caso o interessado ingresse com ação de usucapião será apenas

DECLARAR que a propriedade já pertence ao posseiro (domínio mesmo).

Ou seja: a(s) pessoa(s) em cujo(s) nome(s) se encontra registrada a

área privada que existe no Guaraçaí já perdeu(ram), provavelmente, o direito a essa

propriedade em razão do decurso do que no âmbito jurídico se convenciona chamar

de “prescrição aquisitiva” da propriedade (a própria usucapião).

Se já perdeu esse direito não fazendo jus a indenização nenhuma; a

aquisição da propriedade por parte dos atuais possuidores do imóvel é uma questão

de tempo, já que tramita na Justiça uma ação de usucapião em relação a exatamente

esta área privada. A desapropriação da área pela municipalidade era, à primeira vista,

portanto, desnecessária. A municipalidade desapropriar a área e pagar por ela é um

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prêmio para os ex-proprietários, que receberão por algo que já não é deles e uma

parte dos recursos do PAC, em lugar de ser utilizada para a melhoria das condições

urbanísticas do próprio núcleo, será privatizada.

Ocorre, todavia, que a desapropriação e a transformação da área em

pública permitirá a unificação de todas as áreas (as públicas e a privada) e apenas

uma e assim será mais fácil fracionar o terreno legalmente e entregar a cada morador

seu quinhão por meio da concessão de uso.

Imaginemos que a desapropriação não se fizesse: precisariam ser

feitas, juridicamente, duas regularizações na área do Guaraçaí: uma da área pública e

outra envolvendo a área privada. E como a área não comporta um desenho perfeito do

loteamento que ali se pretende implantar, o resultado é que alguns moradores teriam

suas áreas em parte em área pública e em parte em área privada, praticamente

precisando receber dois títulos diferentes: a escritura da área privada e a concessão

de uso da área pública. Isto geraria dificuldades imensas que não cabia permitir.

Além disto, os moradores da área privada precisariam reunir-se em

condomínio para juntos administrar a área por meio de uma espécie de usucapião

coletivo. Não seria possível individualizar a área de cada um e o problema apareceria

no cartório, que provavelmente não registraria nenhum documento de propriedade que

não individualizasse a área. Ou seja: os moradores ganhariam a ação na justiça mas

ela correria o risco de ser inócua.

Ademais, o formalismo da área jurídica e sua tradicional morosidade

impedem que a regularização fundiária se faça, num caso destes, com a celeridade

que seria necessária, já que os recursos federais previstos para esta regularização

estão por ser liberados.

A solução encontrada, então, parece convir ao interesse de todos:

• o do poder público, que termina por ser o condutor do processo de

regularização até final solução jurídica com outorga de documentos

garantidores do pleno direito dessas pessoas à moradia; e finalmente

• o do proprietário da área, que recebe indenização por uma área que ele já

havia, na verdade, dado por perdida;

• o dos moradores do núcleo, que mais facilmente e mais rapidamente recebem

os títulos de concessão de direito real de uso, que poderão ser comercializados

no mercado posteriormente.

VILA NOGUEIRA

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Antes da decisão de remoção de 100% dos moradores do “Núcleo

Residencial Vila Nogueira” a prefeitura havia decidido, conforme se viu, manter os moradores naquela área.

Tal área, no entanto, sempre se soube ser de grande risco porque está

no início do trecho do Ribeirão das Anhumas, no espaço em que ele recebe as águas

do Mato Dentro e da Lagoa do Taquaral (que do Taquaral até este trecho vêm

canalizadas). Ou seja: o núcleo da Vila Nogueira está exatamente no início de um

caudal enorme de águas, que neste trecho se vêem enforcadas, afuniladas, quando

de grandes chuvas.

Se isto nunca foi segredo para ninguém, não era também de

desconhecimento da administração pública local que, mesmo assim, resolveu por

documento oficial (decreto e posteriormente lei) primeiramente permitir o uso e,

depois, conceder o uso para os moradores.

Se houvesse sido apenas permitido o uso não caberia falar-se em

indenização. Mas quando se trata de concessão a situação é diferente e tribunais há

que reconhecem direito à indenização. Se os moradores têm hoje (já que a lei não foi

revogada) direito à indenização por serem concessionários de uma área da qual estão

sendo removidos e a população de Campinas corre hoje o risco de ter de pagar

indenização como decorrência de uma decisão que bem poderia ter sido evitada se o

administrador público houvesse sido minimamente prudente na condução da coisa

pública, é oportuno questionar se não caberiam ação de improbidade e ação

regressiva indenizatória contra tal administrador.

Por vezes o administrador, no afã de beneficiar certos segmentos da

população, realiza determinados atos administrativos de legalidade duvidosa podendo

expor a desnecessário risco suas finanças pessoais (em caso de uma posterior

condenação por improbidade administrativa), sua carreira política e o dinheiro público.

Se foi corajosa a decisão de manter os moradores na área de risco por

meio do instrumento da permissão de uso, o foi também a decisão posterior de

remoção de 100% dos ocupantes da área.

Em uma época em que a palavra “remoção” soava a ofensa, a decisão

da Coordenadoria de regularização fundiária de remover todos os ocupantes do Vila

Nogueira e do São Quirino convinha sobretudo aos interesses dos próprios ocupantes.

Primeiro, porque os protegia do risco; segundo, porque não se trataria de uma

remoção pura e simples, mas de uma remoção com alternativa (no caso, a realocação

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em outro núcleo residencial); terceiro, porque a remoção foi acordada com as

associações de moradores; quarto, porque a remoção não seria feita abruptamente,

mas gradativamente, em três etapas.

Somente bons administradores são capazes de tomar decisões levando

primariamente em conta interesse das pessoas atingidas pela decisão e relegando a

uma dimensão de importância inferior as pressões políticas e ideológicas que orbitam

tais decisões. Posteriormente, com o anúncio da existência de verba para a

construção do Parque Linear, foi possível rever em parte a decisão de remoção.

Houve mudança de planos em relação a este núcleo e o núcleo do

Parque São Quirino. Se havia decidido por 100% de remoção de ambos os núcleos

para o Núcleo Vila Olímpia. Entre 2005 e 2006 cerca de 270 famílias foram removidas.

Cerca de 179 famílias, no entanto, resistiram.

Resultado: os ocupantes que resistiram à remoção terminarão sendo beneficiados pela construção das duas vilas no Parque Linear Anhumas que

será implementado em toda a região à margem do Anhumas. Para os que já foram

removidos e estão na Vila Olímpia, não há projeto de retorno à área primitiva. Quem

foi compreensivo, tolerante, acatou as recomendações da autoridade e se mudou,

perdeu. Embora se saiba ser uma situação difícil, deveria ter havido um mecanismo de

acomodar na Vila do Parque Linear as famílias que foram removidas e, em relação

aos resistentes, continuar com o programa inicial de remoção para a Vila Olímpia.

Teria sido, aparentemente, uma solução mais justa em favor daqueles que atenderam

aos apelos do município no sentido de deixar a área de risco.

Correta, igualmente, a decisão de, paralelamente à desocupação da

Praça 02, desenvolver-se o plantio de árvores e a reurbanização da Praça.

Plantar obedece a uma dupla lógica: prevenir e inibir novas ocupações

e compensar o ambiente que continuará em parte degradado com a eventual

mantença de parte dos moradores deste núcleo no mesmo local, próximo ao ribeirão.

O "Núcleo Residencial Vila Nogueira" não é, hoje, senão uma sombra do que já foi

quanto à sua extensão.

SÃO QUIRINO De louvar-se a iniciativa da Coordenadoria Especial de Regularização

Fundiária em separar as áreas da Praça 10 e da Praça 06. É que se as duas áreas

tivessem sido mantidas juntas para fins de uma regularização única, ambas estariam

até hoje com dificuldades de regularização. A regularização separada evita que a

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discussão ambiental referente a uma das áreas “contamine” a outra, causando

dificuldades para regularização de ambas. Ao menos uma “se salva” mais

rapidamente.

Aliás, o que aconteceu na regularização do Núcleo Residencial do

Parque São Quirino faz lembrar o drama que vivem profissionais da área de infância e

juventude quando deparam com grupos de irmãos abandonados ou órfãos que

precisam ser colocados em família substituta. Colocar crianças em família, salvo nos

casos em que essa criança seja menina, branca e de pouca idade, é difícil. Sucede em

alguns casos que no grupo de irmãos há algum ou alguma adotável. E nestes casos o

drama consiste em separar ou não os irmãos para que pelo menos o menor deles

consiga uma família.

O tempo mostrou que a decisão da CERF foi correta pois todos os moradores da Praça 10 já conseguiram a regularização plena. Outro ponto importante a considerar nesta regularização da Praça 10 é

o fato de não ter sido feita nenhuma remoção. Apenas remodelação espacial das

moradias para acomodação de todos em lotes adequadamente desenhados.

Valem aqui as observações críticas feitas em relação ao “Núcleo

Residencial Vila Nogueira” já que o histórico, os problemas, o enfrentamento e as

soluções foram praticamente os mesmos em ambas as áreas.

DOM BOSCO

Quando ainda não se falava em regularização fundiária (a expressão

não havia ainda sido cunhada) pois se conhecia apenas ou “remoção de favelas” ou

“urbanização de favelas”, Campinas realizou, em 1988 (há 20 anos, portanto) a

regularização plena do “Núcleo Residencial Dom Bosco” .

Se a regularização do Dom Bosco não tivesse sido feita na época, hoje

somente seria possível realizá-la em razão da alteração constitucional no Estado de

São Paulo.

A regularização foi realizada no momento certo (fevereiro de 1988)

porque em 1989 foi aprovada a Constituição do Estado de São Paulo proibindo

remanejamento (mudança de destinação) de áreas verdes nascidas de loteamentos.

Como este núcleo está sobre a praça 06 do Loteamento São Quirino,

essa alteração de destinação (de institucional para dominical) não seria possível

enquanto durasse a proibição constitucional.

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Esse empecilho foi derrubado em janeiro de 2007, e se a isto somarmos

o fato de ter sido respeitada a faixa de 15 metros, atualmente a regularização prevista

na Resolução 369 do CONAMA seria possível.

Como se vê da documentação do “Núcleo Residencial Dom Bosco”

observou-se faixa de 5 metros mas da planta se vê que entre o limite final dos 5

metros e o início da construção mais próxima há no mínimo 10 metros, o que totaliza

os 15 metros que a lei exige. Embora a faixa de 15 metros seja decorrente de lei de

1979 e a faixa de 30 metros seja imposição de Lei federal de 1986 (lei 7.511) a regularização fundiária do Dom Bosco ignorou a faixa de 30 metros que era a aplicável à época em que a regularização foi feita.

Se a regularização do Dom Bosco tivesse demorado mais poucos

meses, teria sido legalmente inviabilizada nas condições em que foi feita.

Apesar de esta regularização ter sido feita com 15 metros, não há

indicação alguma de que haja risco seja para os ocupantes, seja para o ambiente

natural do ribeirão pela não observância dos 30 metros. A convivência da comunidade

local com o ribeirão é de respeito, como se pode notar das imagens feitas no local.

Esta experiência do Dom Bosco de certa forma desmente os critérios de 15 ou de 30 metros que constam do Código Florestal e que se repetem na Resolução 369.

GÊNESIS

O tipo de intervenção realizada pela COHAB-CP neste “Núcleo

Residencial Gênesis” parece exemplar.

Há no Brasil experiência suficiente para se poder saber o mecanismo

com que acontecem as invasões dessas áreas ambientalmente frágeis. É preciso

entender esse mecanismo e atuar preventivamente.

A ocupação da área em que hoje se encontra o Gênesis se deu com

algum distanciamento em relação ao Ribeirão das Anhumas, como se pode perceber

pelas imagens encontráveis ao longo desta pesquisa. Entre a data de início da

ocupação, 1978, e a data da primeira intervenção urbanística no local, em 1997, não

se passaram 20 anos. Como na primeira intervenção da municipalidade na área não

havia recursos suficientes para uma regularização completa, decidiu-se pela

realização de arruamento, água e iluminação.

Se considerarmos como as coisas funcionam no poder público, que

demora a detectar os problemas e mais ainda para tomar atitudes; se considerarmos

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que tudo, na administração pública, depende de mobilização, pesquisas, projetos, leis

(cuja tramitação é igualmente lenta), licitações, prazo para execução de obras,

descontinuidade administrativa cada vez que um novo administrador toma posse e

todos os demais aspectos que contribuem para a lentidão de todo e qualquer processo

que dependa de vontade política e de tramitação dentro da administração, veremos

que 20 anos não é muito tempo.

No caso do Gênesis, houve tudo isto e mais a complicação de precisar

depender de recursos federais. Mas em menos de 20 anos o problema estava

equacionado, com todos os invasores deixando uma situação de favelamento precário

para o urbanismo satisfatório.

Parece evidente que o fato de a área ocupada ser propriedade não de

um ente da administração direta mas da administração indireta (onde as coisas

acontecem mesmo mais rapidamente) como o é a SANASA, há de ter contribuído com

alguma parcela para a agilização da solução.

Como a SANASA é empresa de economia mista (possuindo, portanto,

também investidores privados) lhe seria muito difícil justificar junto aos investidores a

inércia diante da ocupação de uma sua gleba de significativas proporções.

Juridicamente a empresa poderia doar (após autorização legislativa) sua área aos

ocupantes e até mesmo outorgar escritura definitiva em cartório. Mas esta providência,

isoladamente, não urbanizaria a área. Era preciso pensar mais abrangentemente.

Pensar nos aspectos urbanísticos, sociais e não descurar dos ambientais já que o

ribeirão se situa a poucas dezenas de metros de uma das extremidades do núcleo.

Simplesmente entregar a área aos invasores não seria decisão sensata

e poderia haver resistência dos investidores privados da empresa. Como a SANASA

possuía dívida com a municipalidade, engendrou-se um plano de entregar a área em

dação em pagamento de parte da dívida para a municipalidade e esta, uma vez

urbanizada a área com os recursos já informados, se encarregaria de, após

autorização legislativa, proceder à entrega de títulos de Concessão de Direito Real de

Uso. Já que um bem público não pode ter seu domínio transferido a particulares, só

mesmo a concessão de direito real de uso garante ao concessionário alguma certeza

de que aquele imóvel é praticamente seu (embora não o seja).

A rápida intervenção da municipalidade e solução ao problema

daquelas famílias evitou para a sociedade como um todo o agravamento severo de um

problema ambiental: o despejo de lixos, dejetos, esgoto, rejeitos de obras e todo tipo

de resíduos no Ribeirão das Anhumas.

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Quem vê hoje o Gênesis e vê a distância que existe entre ele e o

Ribeirão, pode falsamente entender que o Gênesis jamais apresentou problemas de

poluição desse curso d´água. Mas se hoje o Gênesis tem seu problema de coleta de

lixo equacionado e coleta de esgoto de todas as residências, com evidente prevenção

do problema ambiental que poderia ter ocorrido com a extensão dos barracos do

Gênesis até poucos metros do ribeirão, isto se deveu à atitude decidida dos quantos

administraram a cidade, a Secretaria de Habitação, a de Obras e a COHAB-CP nesse

período de pouco menos de 20 anos.

A regularização fundiária tem sido vista freqüentemente, pelas

experiências Brasil afora, como uma importante conduta curativa das administrações

públicas, sobretudo municipais, de elevado interesse urbanístico, social e ambiental.

Mas a COHAB-CP que liderou o processo de regularização fundiária do Gênesis

demonstrou eficaz e eficientemente que é possível atuar preventivamente, antes que o

problema ambiental se instale por completo e degrade o ambiente por demais.

Em se tratando de regularização fundiária, não há como atuar

preventivamente em relação aos aspectos sociais de uma ocupação. Isto só se

consegue com mecanismos macro-econômicos de distribuição de renda que a um só

tempo contribuem para a prevenção da violência, a fixação das comunidades no

campo, a significativa diminuição das invasões e tantos outros resultados que tornam

melhores as cidades.

Mas atuar preventivamente em relação a aspectos ambientais de uma ocupação é possível. Gênesis é exemplo dessa possibilidade. Não fosse aquela

intervenção a tempo e a hora, as moradias precárias hoje estariam muito próximas ao

leito fluvial. Talvez tivessem suplantado a beira do ribeirão e estivessem até

palafitados.

Certo que a sociedade campineira como um todo acabou pagando pelo

terreno (a SANASA teve cancelada parte de sua dívida com a prefeitura por conta

desta dação da gleba em pagamento da dívida) mas estaria hoje pagando ainda mais

caro se precisasse recuperar ambientalmente o Anhumas ainda mais do que já se faz

necessário. E estaria pagando de forma indireta em outras áreas como saúde da

população que foi abrigada com dignidade pelo Gênesis.

Sob aspectos exclusivamente econômicos, a regularização fundiária do

Gênesis, da forma como foi feita, foi um “bom negócio” para a sociedade campineira

que hoje conta com um bairro a mais, integrado quase que por completo à malha da

cidade; conta com cidadãos mais participativos (instruídos pela experiência de

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participação comunitária trazida pelos primórdios das discussões desta regularização)

e com casas que contribuem – pelo IPTU, para ficar apenas em um exemplo – com as

receitas da cidade.

Hoje temos o Ribeirão geograficamente preservado do núcleo de

moradores; o entorno da margem esquerda conservado para o que futuramente

constituirá o “Parque Linear do Anhumas” com valorização daquela área toda e do

entorno; os moradores assentados condignamente em unidades minimamente

ajustadas à função de morar; a municipalidade consciente do dever cumprido sem

aviltamento de qualquer direito de qualquer segmento social; e a sociedade em

condições de viver melhor, com menos violência. E em relação ao Ribeirão, as

agressões ambientais que a ele teriam sido feitas durante esse período de 10 anos

passados entre o término das obras principais do Gênesis e os dias de hoje foram

evitadas, foram prevenidas.

O tipo de regularização fundiária que se fez no Gênesis é adequado, a

todos os títulos, seja qual for o ângulo que se pretenda tomar para analisá-lo.

Mas é preciso considerar que o trabalho preventivo ali realizado pode

estar comprometido com a situação que hoje se vê, visitando o local, de diversos

barracos ocuparem a área mais próxima do leito do Ribeirão e que está destinada ao

Parque Linear. A remoção desses barracos é necessária para que se possa continuar

a preservar o Ribeirão e permitir a futura implantação do Parque Linear sem maiores

percalços e sem maiores dispêndios. Quanto mais o tempo passa, mais se consolida a

situação desses novos ocupantes. É preciso removê-los providenciando uma

alternativa de moradia.

INEXISTÊNCIA DE ACOMPANHAMENTO E AVALIAÇÃO PÓS-REGULARIZAÇÃO As necessidades de regularização em uma cidade das dimensões de

Campinas são tantas e são de tal ordem reduzidos os recursos humanos, materiais e

orçamentários, que se tem dado pouca importância para as avaliações de pós-

regularização. Apenas o Dom Bosco vem recebendo periódicas visitas de uma

profissional para avaliar as condições de pós-colocação.

A falta dessa avaliação é preocupante na medida em que se deixam de

pensar, coletivamente, os caminhos trilhados, quais os que foram mais importantes

para o sucesso do empreendimento e quais os que poderiam – ou deveriam – ter sido

evitados.

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É a avaliação organizada, feita não muito tempo após se considerarem

terminados os serviços que caberiam à instituição pública, privada ou mista, que

permite o acúmulo de experiência para abreviar procedimentos nos empreendimentos

futuros de regularização. A avaliação tem objetivo estratégico (facilitar procedimentos

futuros) e econômico (menores gastos) visando eficiência (fazer mais, com menos).

Perder a chance de uma avaliação pós-regularização incentivando os

moradores à reflexão conjunta com os técnicos e demais atores desperdiça recursos,

dispersa forças e cria risco de reincidir em equívocos.

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7.1 – CONCILIAÇÃO DAS AGENDAS – COMPATIBILIZANDO DIREITO AO AMBIENTE COM DIREITO À MORADIA

Essas agendas são conciliáveis quando se trate de regularização

fundiária em área de APP ?

A experiência dos casos aqui pesquisados evidenciou que sim.

Mostrou que é possível que a regularização fundiária se faça sem

sacrifícios ambientais ou com alguma dificuldade ambiental superável.

No GUARAÇAÍ, por exemplo, os interesses ambientais, os urbanísticos

e os habitacionais foram conciliados na medida em que houve:

• respeito ambiental (observância do distanciamento necessário em relação à APP e equacionamento das questões do lixo, estando a caminho a solução para o esgoto);

• respeito aos interesses urbanísticos (arruamento e construção de novas unidades, com individualização de lotes)

• respeito aos interesses sociais (construção atualmente em andamento de barracão destinado a depósito de material reciclável para a atividade cooperada dos moradores)

• respeito à moradia (com eliminação do risco mediante levantamento da cota para 619 ms, superação da mancha centenária de inundação e pouquíssimas remoções)

• respeito à solução jurídica (a desapropriação da área particular e futuramente unificação de todas as áreas em apenas uma pública, como concessão de direito real de uso individualizado aos moradores).

• Resultado: compatibilização entre direito à moradia e direito do ambiente à preservação

No VILA NOGUEIRA e no SÃO QUIRINO (PRAÇA 06) houve:

• em um primeiro momento, prevalência do direito social à moradia, com permissão de uso coletivo para os moradores;

• com a seqüência de inundações (e ante a falta de recursos para a construção das moradias nas proximidades) prevalência do direito à vida e à integridade física dos moradores por meio de remoções, mas com respeito ao direito social à moradia, pois não aconteceu nenhuma remoção sem destino; o que motivou a retirada dos moradores (inclusive da faixa de APP não foi, portanto, a preocupação ambiental, mas preocupação com a segurança dos moradores);

• na seqüência, ante a possibilidade de se poder contar com esses recursos federais, prevalência do direito à moradia com respeito às questões ambientais pois as remoções foram paralisadas e se está aguardando a chegada dos recursos para se construir as unidades habitacionais fora da área de APP ;

• como as unidades habitacionais serão individuais, na seqüência da intervenção se dará o respeito ao direito de regularização jurídica pois a todos os moradores se conferirá a concessão de direito real de uso de suas unidades.

• Resultado: compatibilização do direito à moradia com o direito do ambiente à preservação.

No SÃO QUIRINO (PRAÇA 10) deu-se:

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• Respeito ao direito à moradia – foi feita a regularização do espaço praticamente sem remoções;

• Respeito às necessidades urbanísticas - remodelações com caráter urbanístico foram feitas.

• Respeito ao ambiente – a administração buscou separar a área que apresentava problemas ambientais e dar a ela um tratamento separado; coleta de lixo regularizada.

• Respeito à questão jurídica – cada morador recebeu concessão individualizada de direito real de uso.

• Resultado: compatibilização entre questões ambientais, urbanísticas, sociais e jurídicas.

No DOM BOSCO, ocorreu:

• Respeito ao direito à moradia – regularização com pouquíssimas remoções. • Respeito às necessidades urbanísticas – remodelação do espaço, com

arruamento, etc. • Respeito ao ambiente – retirada das moradias que haviam invadido a área de

APP; colocação das casas fora dessa área; encaminhamento de solução (ainda em andamento) para a destinação do esgoto; solução para a destinação do lixo, com coleta freqüente.

• Respeito às necessidades jurídicas dos moradores – todos receberam concessão individualizada de direito de uso da área em que suas moradias estão construídas.

• Resultado: compatibilização entre essas agendas de modo a priorizar a todas, sem detrimento a nenhuma.

No GÊNESIS houve:

• Respeito ao direito à moradia – regularização da área inteira (que não é pequena) com pouquíssimas remoções; depois de regularizada a área houve espaço até para a construção de outras unidades para acomodação de moradores que precisaram ser removidos de outras áreas da cidade.

• Respeito ao ambiente – atuação preventiva eficaz, que evitou que o assentamento se expandisse até a área de APP, o que fatalmente teria ocorrido se não tivesse havido a intervenção pública.

• Respeito aos aspectos jurídicos dos moradores – É decisão tomada que tão logo os problemas documentais sejam resolvidos se fará a concessão

• • individualizada de direito de uso da área pública para cada morador em relação

à área em que sua moradia se encontra. • Resultado: compatibilização entre os direitos à moradia, ao ambiente e demais

direitos, priorizando-se todos os aspectos, sem sacrifício de qualquer deles. Resultado geral: não houve uma área sequer, de todas as aqui pesquisadas, em que o ambiente tenha sido sacrificado para que os direitos sociais (moradia, direito à cidade, direito à produção regular, etc) pudessem ser respeitados. Em todos os casos pesquisados o direito ao ambiente saudável foi respeitado. E para isto não foi necessário impedir que qualquer outro direito fosse protegido.

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NÚCLEO

ESTRUTURA “Núcleo

Residencial Guaraçaí”

“Núcleo Residencial

Vila Nogueira”

“Núcleo Residencial

São Quirino”

(Praça 06)

“Núcleo Residencial

São Quirino”

(Praça 10)

“Núcleo Residencial

Dom Bosco”

“Núcleo Residencial

Gênesis”

Água S S S S S S

Energia elétrica S S S S S S

Iluminação pública S N N S S S

Coleta esgoto S (parte) N (fossas e

despejo córrego)

N S N S

Coleta lixo S S N S S S

Águas pluviais S N S S N S

Permeabilidade S S S S S S

Transporte e acessibilidade S S S S (reduzida) S (precária) S

Correio S N N S S S

Telefone público S S S S S S

Escola pública e profissionalizante S S S S S S

Creche S S S S S S

Posto saúde S S S S S S

Associação atuante S S S S N S

Regularização fundiária plena N (ainda) N (ainda) N (ainda) S S N (ainda)

Remoção para núcleo distante N S S N N N

Remoção para o mesmo núcleo S S S S S S

Área pública S S S S S S

Área privada S N N N N N

Ao longo da pesquisa criticamos a existência de regras federais de

regularização fundiária em área de APP, afirmando enfaticamente a necessidade de

que essas regras sejam municipalizadas.

Em Campinas temos a demonstração cabal da procedência dessa

afirmação. A regularização fundiária em áreas de APP em Campinas aconteceu

sempre com obediência às normas federais. Mas se as regras fossem municipais,

provavelmente os resultados não teriam sido diferentes. Teria sido indiferente, para o

resultado, se as regras fossem federais, estaduais ou municipais. Ambiente e

urbanismo teriam dialogado e se harmonizado da mesma forma.

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Se a regra é federal mas o ente local pretende regularizar sem observar

critérios ambientais, providencia-se sempre uma lei local que permita essa não

observância da regra federal, sob argumento da necessidade de atender às

peculiaridades locais. E é discutível se os mecanismos para declaração de

inconstitucionalidade dessa lei local e para posterior punição do administrador local

funcionam a contento.

Se a regra é federal e o ente local pretende regularizar com observância

de critérios ambientais, sociais e urbanísticos, a norma federal é desnecessária. Ele

observará aqueles critérios com ou sem lei federal.

O que faz diferença, portanto, é a cidade contar ou não com um

administrador que, ao decidir-se pela regularização fundiária, efetivamente leve em

conta as dimensões todas necessárias.

Campinas quase comprometeu a regularização fundiária da Vila

Nogueira e do São Quirino (Praça 6) ao utilizar, por decreto, o instrumento da

permissão de uso que eternizaria as moradias até mesmo em locais de risco, quando

já incidiam ali as tais regras federais. E isto mostra que a existência de regras federais

é inteiramente inútil quando no ambiente local não haja administrador disposto à

observância dessas regras.

7.2 – REGULARIZAÇÃO EM ÁREA DE APP – O DIREITO À REGULARIZAÇÃO E SEUS LIMITES Mas e se tivesse havido, nos casos aqui pesquisados, uma situação em

que, apesar dos agravos ao ambiente, houvesse sido necessário fazer prevalecer o

direito à moradia ? Qual teria sido a solução ?

Isto remete a um outro questionamento: há direito à regularização sem

que medidas protetivas ao ambiente sejam tomadas ou mesmo quando não haja

alternativa técnica à agressão ao ambiente ? Ou seja: se o ambiente de APP sofre

agravos decorrentes de moradia(s) erigida em área em que não poderia ter ocorrido a

edificação e tais agravos não podem ser removidos senão com a remoção da(s)

moradia(s) o direito à não remoção e, conseqüentemente, à regularização, existe ?

Convém então questionar se existe aquilo que se possa chamar de

“direito à regularização fundiária de moradia situada em área de APP” e se existe um

ponto-limite a partir do qual o comprometimento ambiental não justifica a regularização

de uma ocupação informal, mesmo que para fins de moradia. Ou seja: saber se os

argumentos de regularizar moradia e de esta constituir um “direito” podem justificar

qualquer tipo de agressão ao ambiente.

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Partindo dos extremos, podemos afirmar que em áreas de risco a

regularização, além de não ser direito, é proibida.

Ademais, não há no direito brasileiro um artigo de lei que declare,

peremptoriamente, que as pessoas em tais ou quais situações tenham “direito à

regularização”.

Esse direito existe como decorrência da existência de leis que

expressamente declaram a usucapião (Estatuto da Cidade) e a concessão de uso

especial para fins de moradia (Medida Provisória 2220/01) como “direitos”. Decorre

também da análise conjunta e sistemática de diversos textos legais. Como “direito à

regularização”, todavia, ele é apenas “entrevisto” ou “sugerido” em meio a tais leis,

somente se mostrando com clareza após uma análise jurídica acurada.

Se alguém tem direito à usucapião ou à concessão de uso especial para

fins de moradia e reside em assentamento irregular e consolidado de moradias só há

uma forma de se fruir esse direito: regularizando-se fundiariamente a área para que o

interessado possa, com a usucapião, ter direito ao título dominial de seu imóvel ou,

com a concessão de uso especial para fins de moradia, ter um direito à permanência

exclusiva e definitiva na área.

Daí poder dizer-se que o direito à usucapião ou à concessão de uso

especial para fins de moradia é direito-fim que abrange o direito à regularização como

direito-meio (direito-instrumento).

Que o direito à regularização fundiária exista hoje integrando o

complexo de direitos sociais ligados à moradia, praticamente não há quem objete.

Afinal, vivemos todos na cidade e esta “(...) não pode ser algo que castigue os pobres

e privilegie os ricos, como nos burgos murados da Idade Média, que deixavam os

miseráveis de fora junto com o esgoto e a peste.”35

Excetuadas as situações de risco, o Estatuto da Cidade impõe a

regularização fundiária de assentamentos ocupados por população de baixa renda

como uma diretriz da política urbana. E já que se trata de “norma de ordem pública”,

a regularização tornou-se, juridicamente, uma atividade vinculada. Assim, deixou de

ser uma discricionariedade do administrador para ser uma obrigação político-

administrativa.

Mas nas múltiplas hipóteses em que a ocupação acontece em área de mananciais ou em áreas de preservação permanente, o direito à regularização é

bastante limitado. Nestas situações é possível a regularização fundiária, condicionada

ao equacionamento das questões-satélite ligadas ao urbanismo e ao ambiente. 35 Rosângela Staurenghi, Promotora de Justiça de São Paulo, ao depor na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados, em Brasília, definindo A cidade que queremos.

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A mesma legislação que proscreve regularização de áreas de risco sem

que esse risco seja resolvido, igualmente proíbe a regularização de áreas de risco ambiental sem que esse risco seja enfrentado e removido.

Lei Federal 6.766/79 – Loteamentos Art. 3º (...) Parágrafo único. Não será permitido o parcelamento do solo: (...) V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção. Medida Provisória nº 2.220 de 4 de setembro de 2001 Art. 5o É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local na hipótese de ocupação de imóvel: (...) III - de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;

E mesmo em Campinas é assim também. A legislação campineira

forma uma barreira jurídica à regularização de assentos de moradia irregular em APP

quando haja risco de perenização da ofensa ambiental. Até impressiona que

quantidade de leis e outras normas que protegem o ambiente da agressão que a

moradia por vezes supostamente representa:

LEI COMPLEMENTAR Nº 15 DE 27 DE DEZEMBRO DE 2006 PLANO DIRETOR DE CAMPINAS Art. 2º - São objetivos da política de desenvolvimento do Município: (...) VII – proteção e recuperação do meio ambiente das áreas urbanas e rurais, especialmente de áreas verdes, mananciais de abastecimento, cursos d’água, áreas de interesse social, áreas de risco ao assentamento humano e áreas de interesse histórico; Art. 27 - São diretrizes e normas específicas da Macrozona 3: IX – preservar as microbacias do Ribeirão Anhumas Art. 36 - São diretrizes da política de meio ambiente: (...) XIX – assegurar ações de proteção e recuperação ambiental após a desocupação de imóveis em situação de risco, evitando–se a reocupação das áreas; Art. 39 - Os Corredores Ambientais Estratégicos serão constituídos inicialmente pelas áreas de preservação permanente e várzeas dos rios Capivari, Atibaia e do ribeirão Anhumas. Art. 50 - São objetivos da Política de Habitação:

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(...) omissis LEI N º 11834 DE 19 DE DEZEMBRO DE 2003 Regularização fundiária (...) Art. 4º - O processo de regularização consiste no conjunto de ações que visam adaptar o parcelamento do solo irregular aos padrões urbanísticos e ambientais recomendados na legislação municipal e definidos na presente lei, compreendendo a implementação de obras de infra estrutura básica e o registro do plano no Cartório de Registro de Imóveis competente e, quando pertinente, a outorga de concessão de direito real de uso, mediante Termo Administrativo. (..) Art. 6º - A regularização prevista nesta lei pressupõe a comprovação da irreversibilidade do parcelamento. Parágrafo único - A situação de irreversibilidade do parcelamento será caracterizada por laudo técnico elaborado pela Municipalidade, contemplando, em especial, os seguintes aspectos: localização do parcelamento, acessibilidade por via oficial de circulação, situação física e social, em especial adensamento, obras de infra-estrutura, ocupação das áreas de risco, interferências ambientais e impacto de vizinhança. (...) Art. 15 -- A regularização deverá observar as seguintes condições técnicas e urbanísticas: I -- quanto às obras e serviços de infra-estrutura urbana, serão definidos de forma a assegurar: (...) g) recuperação geotécnico-ambiental das áreas degradadas; DECRETO N.º 14.776, DE 17 DE JUNHO DE 2.004 Regulamenta a Lei Municipal n.º 11.834, de 19 de dezembro de 2003 Art. 1º - Poderão ser regularizados, desde que atendidas as exigências da Lei 11.834/03, quaisquer parcelamentos do solo implantados no Município de Campinas, independentemente da zona de uso onde se localizam, ficando excluídos os localizados nas seguintes áreas: (...) VII – em unidades de conservação legalmente constituídas ou em áreas reconhecidas como de interesse ambiental; VIII – em áreas tombadas pelos órgãos de preservação do patrimônio histórico e/ou ambiental. (...) Art. 11 – A análise técnica, que abrangerá a gleba objeto da regularização e seu entorno, deverá compreender, entre outros: I - avaliação urbanística que contemple os aspectos ambientais, sistema viário, equipamentos públicos;

Interessante que o art. 50 do Plano Diretor de Campinas, ao tratar da

política de habitação no município tenha ignorado a proteção ambiental.

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Ao que se nota da redação dessas leis, no Brasil e em Campinas não é

legalmente possível admitir uma regularização que inobserve os deveres de

atendimento às normas legais ambientais ou urbanísticas em vigor e de recomposição

integral dos bens ambientais e urbanísticos indevidamente atingidos.

Ou seja: se levarmos em conta apenas as leis, na regularização

fundiária é preciso considerar, sempre que se decida – em atendimento à demanda –

regularizar determinada área:

• O direito à moradia – criando unidades habitacionais que possam abrigar

aquele contingente populacional (preferencialmente todos os moradores e

naquele mesmo local) e excepcionalmente realizando reassentamento com

transferência para outras áreas próximas;

• O direito à cidade – com melhoria física da área e do entorno, desadensando a

área, ordenando o arruamento, criando lotes definidos e individuais ou

individualizáveis, melhorando o acesso do transporte público, permitindo o

acesso das atividades de proteção social (bombeiros, polícia, ambulâncias) ou

de comunicação (correios, acessibilidade física);

• O direito à vida social – com atividades comunitárias preferencialmente

cooperadas, por exemplo, por boa parte dos moradores, incluindo os

moradores com limitações físicas, mentais ou econômicas, para que tais

pessoas possam passar a pagar a prestação da casa de alvenaria para a qual

serão transferidas bem como eventuais despesas condominiais;

• O direito de acesso ao mercado (questões econômicas da regularização)

abrangendo o direito de ser proprietário da área na qual se habita para poder

ser parte do mercado, contribuir (por impostos, por exemplo) com a vida

econômica da cidade e poder até mesmo negociar o bem de que se é dono

(observadas certas cautelas no caso de concessão de uso especial para fins

de moradia).

• O direito ao ambiente saudável – com saneamento (fornecimento de água e

criação de redes de coleta e afastamento de esgotos e outros dejetos) e

instalação de serviços de coleta de resíduos (lixo). Em se tratando de

ocupações de áreas de mananciais esta precisa ser a grande prioridade da

regularização (depois da eliminação de situações de risco). A tarefa primeira

será, sem dúvida, uma vez elaborado e aprovado o plano de intervenção pelos

órgãos apropriados, e resolvidas as situações de risco, tomar providências

para com efetividade proteger a APP e ao final enfrentar os demais problemas

(urbanização, legalização, etc).

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Em resumo, pelas leis atuais o direito à regularização fundiária de assentamento irregular em área de preservação permanente existe desde que

atendidos alguns requisitos fundamentais, nesta ordem: eliminação das situações

de risco, equacionamento das questões ambientais, solução dos problemas

urbanísticos e sociais e legalização.

Embora moradores nesses assentamentos fixados em áreas de APP

tenham direito à regularização, nem tudo é regularizável. Há, evidentemente, pelas

leis em vigor, limites que precisam ser observados. Mas também esses limites

precisam ser flexibilizados.

Mas se é direito dos moradores, então a discussão precisa se dar apenas quanto aos aspectos de conveniência, oportunidade e limites dessa regularização. Que ela deva ser feita, não se pode validamente discutir. Ou por outra: é possível afirmar que a regularização fundiária de moradias em áreas de preservação permanente poderá ser excepcionalmente admitida para atender a população de baixa renda nas zonas urbanas ou de expansão urbana. Todavia, o processo de regularização fundiária deverá buscar a sustentabilidade do meio ambiente urbano e do construído. Para isto é necessário superar dificuldades tradicionais ditadas

basicamente pela visão parcializada da impossibilidade de conciliação de interesses

ambientais com os de moradia. É neste sentido o alerta de Denaldi (2004): “É

necessário abandonar a falsa dicotomia ‘habitação x meio-ambiente’ e transpor a abordagem setorial, adotando-se uma visão integrada e participativa. Trata-se de

uma questão (...) que precisa ser enfrentada para impedir que o passivo sócio-

ambiental continue aumentando. “

Ou, no dizer de Staurenghi (2000): A regularização fundiária em áreas de preservação ambiental não pode ser analisada como um problema pontual, mas em suas implicações para os ecossistemas. A partir de um levantamento técnico multidisplinar, é possível identificar os conflitos existentes e minimizá-los, seja com a manutenção da ocupação com medidas técnicas efetivas de redução da degradação ambiental e compensações, seja com a recuperação integral da área e recolocação das pessoas.

A regularização fundiária precisa, portanto, observar certos limites. A

regularização não pode gerar um custo ambiental expressivo. Este custo precisa ser

tolerável.

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Todas estas afirmações se baseiam nas leis atualmente em vigor no

Brasil. Mas é preciso discutir se essas leis estão certas em exigir esses cuidados

ambientais.

Incide aqui o tema da constitucionalidade da Resolução CONAMA

369/06 e o tema de saber se será constitucional (para evitar discussões a respeito da

constitucionalidade daquela resolução) transpor para a futura Lei de Responsabilidade

Territorial Urbana (atual Projeto de Lei 3057/00 da Câmara dos Deputados) regras que

por demais limitem a regularização fundiária em áreas de APP. Por diversas razões a

constitucionalidade daquela resolução é bastante discutível e por razões outras haverá

aparente inconstitucionalidade caso a futura lei imponha restrições de grande porte

para que a regularização aconteça em áreas de APP.

Como Direito à Moradia e Direito ao Ambiente saudável e

ecologicamente equilibrado são direitos de igual envergadura (são ambos direitos

fundamentais e ambos assegurados pela Constituição) qualquer limitação ambiental

que impeça o exercício do Direito à Moradia estará correndo sério risco de declaração

de inconstitucionalidade. O máximo que a lei poderá fazer será criar critérios para

harmonizar (nunca impedir) os direitos ao ambiente e à moradia para que ambos

convivam sem sacrifício por inteiro de qualquer um deles.

7.3 –REGULARIZAÇÃO CURATIVA E ATUAÇÃO PREVENTIVA A regularização fundiária é onerosa e é importante preveni-la. Se o

custo individual da irregularidade é alto, o custo social (coletivo) da regularização é

igualmente pesado. Engana-se quem entenda que a irregularidade apresente um

custo apenas para o indivíduo ou sua família. Ela socializa custos indiretos. Na cidade a injustiça e a iniqüidade social revelam-se numa visualização dramática pela própria contigüidade, no mesmo espaço, dos grandes contrastes sociais. A qualidade de vida do meio urbano se arruína em ritmo alarmante. O ambiente material é sacrificado pela (...) invasão das populações carentes rechaçadas para as encostas e para as periferias. O ambiente social se deteriora pela escalada do crime, da violência e do tráfico de drogas. Aumentam as cargas conflituais exacerbadas pelas frustrações coletivas. Um pequeno episódio pode detonar crises com reações em cadeia imprevisíveis. (...) registra-se a existência de vários milhões de menores abandonados nos centros urbanos, sem mencionar os chamados órfãos diurnos, crianças de tenra idade, fechadas no estreito espaço doméstico durante as longas horas de ausência do pai e da mãe ocupados no trabalho. A permanência e, mais ainda o agravamento da situação (...) não interessam a nenhum dos setores da população citadina. A todos cabe tomar consciência da gravidade da situação e empenhar-se em sua solução.36

36 Itens 59 a 63 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.

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Muitos administradores públicos e agentes do poder público atuando na

prática da regularização fundiária constatam o óbvio: os programas de regularização

fundiária solteiros, divorciados de políticas preventivas, de caráter apenas curativo,

cuidam somente do passivo social existente. Olham para o passado. Não tocam no

problema enraizado na sociedade que, fruto de um conjunto de fatores socialmente

injustos, continuam agora mesmo a excluir social e espacialmente e estão ainda agora

gerando novas irregularidades, novas informalidades, novos passivos que precisarão

em um futuro breve ser enfrentados por nossos sucessores.

Só que a julgar pela quantidade de seres humanos incorporados à vida

diariamente, a julgar pela finitude da capacidade de recursos ambientais e pelo nível

de injustiça que cada vez em maior escala estamos produzindo, parece correto

presumir que o problema que estamos transmitindo – como legado – aos que nos

sucederão, terá dimensões muito mais dramáticas do que as já gravíssimas que

herdamos e que temos tentado equacionar com grandes dificuldades, das quais o

custo é apenas uma.

Fernandes (1998) critica a regularização apenas curativa. (...) em virtude da enorme pressão para que respostas sejam encontradas para o fenômeno crescente de ilegalidade, as agências públicas têm se concentrado mais na cura do que na prevenção do problema, sobretudo no âmbito municipal. (...) [programas de regularização têm tido caráter curativo] precisando ser combinados com investimentos públicos e políticas sociais e urbanísticas que gerem opções adequadas e acessíveis de moradia social para os grupos mais pobres. Os governos locais devem urgentemente conceber mecanismos que se prestem a romper com o processo de ilegalidade urbana em alguma medida, sobretudo mediante a formulação de políticas urbanas e fiscais mais eficientes de provisão de terras e moradias nas áreas centrais das cidades.

A ação preventiva, mesmo que feita à custa de recursos de enorme

envergadura, é infinitamente menos onerosa para a sociedade do futuro e socialmente

mais justa na exata medida em que evita que tantos seres humanos sejam obrigados

a confrontar-se com a natureza para ter o direito de morar e mesmo assim em

condições aviltantes e indignas.

É este também o entendimento de Smolka (1998):

(...)O desafio apresenta-se em como regularizar sem alimentar o círculo vicioso da irregularidade assegurando um conteúdo preventivo a tais políticas e programas. Qualquer política mais conseqüente passa, no mínimo, por uma visão mais completa e/ou abrangente dos programas de regularização e, idealmente, por uma alteração das regras do jogo imobiliário urbano – o que por sua vez exigiria uma política fiscal mais contundente sobre o valor da terra urbanizada. A

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postura dominante em relação, por um lado, à tolerância às ‘soluções informais’ e, por outro, a inserção destes programas de regularização na agenda pública parece bastante conveniente para o status quo. (...) Tais políticas reiteram ou representam um contínuo desde o passado: ‘diferenciar – quando não ignorar – a situação do pobre, oferecendo-lhe uma solução que não afete ou melindre a essência do sistema. Trata-se, antes de tudo, de uma política curativa focalizada em projetos específicos para cada assentamento (...) essas intervenções não só reiteram e mantém intocadas as ‘regras do jogo’ imobiliário urbano que produzem a informalidade, como também exacerbam algumas das ‘taras’ do sistema.

Com o espraiamento da área urbana e a mantença das condições

ideais para a continuidade do processo de segregação, nossas cidades não terminam e estamos sempre produzindo novas irregularidades e carecendo de novas regularizações. Estão sempre incompletas. Há sempre nelas a marca

desconcertante e embaraçosa do algo mais a fazer. E isto vai dos prédios às casas,

das ruas às avenidas. Quem visita a periferia tem permanentemente a incômoda

sensação de incompletude. Está sempre faltando alguma coisa. Parece próprio da

cultura brasileira (de não terminar o que se inicia), mas é em verdade próprio da

condição de pobreza, de miséria, impingida a milhões de cidadãos.

Bueno (2004) descreve as características que servem a qualquer área

carente de regularização fundiária e retrata uma realidade ainda pior quando o

conjunto de moradias está em área de APP: Nossas cidades são resultados de nossas estruturas sociais, caracterizadas por diferentes condições de vida e de acesso a serviços e equipamentos urbanos. Historicamente nosso ambiente construído apresenta uma urbanização incompleta – bairros sem pavimentação e com erosão (causando assoreamento dos cursos d’água e dificuldades de acesso ao sistema de transporte e outros serviços), lançamento de esgoto nos cursos d’água pelos próprios sistemas de afastamento de esgotos domésticos, coleta de lixo parcial e com disposição final inadequada, inacessibilidade à moradia digna, com a formação de assentamentos precários e irregulares.

Podemos não ser responsáveis pela situação de urbanização

incompleta de que atualmente padecem nossas cidades mas somos nós que estamos

construindo um programa de regularização fundiária (que precisa ser completo),

enfrentando esse imenso passivo, tentando corrigir agravos ambientais. Nosso

trabalho só se completa com atuação preventiva de modo a impedir a continuação de

um modelo, um sistema, que tem produzido sempre mais daquilo que hoje

combatemos à custa de expressivos recursos de nossas nações que não são

economicamente opulentas.

Atuação incompleta é a receita de problemas sociais, urbanos e

ambientais que estaremos transmitindo.

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Atuar investindo naqueles aspectos que previnem as ocorrências de

ocupação é ainda a providência que mais condiz com a inteligência humana e com a

capacidade econômica da sociedade.

Sem pretender reducionismos, é possível afirmar que, se objetivamos

atuar preventivamente quanto a regularizar assentamentos urbanos irregulares, será

preciso primeiramente insistir na aplicação efetiva dos instrumentos que o Estatuto da

Cidade permite. Elaborado propositalmente para ser um “conjunto de objetivos a

atingir” o Estatuto precisará progressivamente ser viabilizado e colocado em prática.

Combater os vazios urbanos, adensando os centros das cidades é outra

medida preventiva válida em razão de suas múltiplas implicações na redução do

tamanho da cidade, no aumento da oferta de terras e conseqüentemente na regulação

do preço da terra urbana.

Importa, também, flexibilizar o mais possível as leis que regulam a

atividade de construção popular para que maior número de pessoas possa construir

licitamente, podendo regularizar sua moradia sem maiores entraves administrativos,

burocráticos ou econômicos (valores das taxas, etc).37 A lei precisa dialogar com a

realidade e a diversidade.

Convém, a respeito deste tema, levar em conta o alerta de Alfonsin

(1998) de que as pessoas precisam ter direito à produção regular da moradia,

observados apenas critérios mínimos e não ideais. As leis não podem ser inflexíveis

ainda que pretendam equalizar a produção habitacional impedindo a existência de

moradias de muito baixo padrão. Não devem as leis impedir que expressiva parcela da

população consiga construir, dentro das suas possibilidades e dentro da lei, o tipo de

abrigo que seja ocasionalmente suficiente para a família.

Agir inteiramente de acordo com a lei é inviável para enorme

contingente de famílias. E aquilo que para elas é possível construir está sempre

37 A propósito, ver a lição de Martins, 2006 - Os resultados do conjunto de levantamentos e de projetos realizados permitem assumir que o procedimento adotado para a elaboração de projetos de recuperação ambiental deve partir de uma análise da defasagem entre legislação existente e situação verificada. É necessário que se elabore projeto urbanístico de qualidade, mas dentro das condições reais e com possibilidade de algum tipo de adequação, senão à letra da lei, ao espírito da lei e aos seus princípios fundamentais. E a mesma advertência faz Fernandes (1998): Da mesma forma que a discussão sobre o direito urbanístico tem de se dar no contexto da sua relação com as práticas concretas de gestão urbana, não há mais como ignorar que legalidade e ilegalidade são duas faces do mesmo processo de produção do espaço urbano. E ainda o mesmo autor: (...)a promoção da reforma urbana depende em parte da promoção de uma reforma jurídica ampla, sobretudo no que se refere à regulação dos direitos de propriedade imobiliária e do processo mais amplo de desenvolvimento urbano, planejamento e gestão. (...) a promoção da reforma jurídica é vista por organizações nacionais e internacionais como uma das principais condições para a mudança do padrão excludente do desenvolvimento urbano nos países em desenvolvimento e em transição e para a efetiva confrontação da ilegalidade urbana. Em especial, é fundamental que se reconheça que, em alguns casos, como o do Brasil, nos quais a ilegalidade urbana deixou de ser a exceção e passou a ser a regra, ela é estrutural e estruturante dos processos de produção da cidade e precisa ser enfrentada enquanto tal, requerendo a formulação de diretrizes e estratégias específicas no contexto mais amplo do planejamento urbano e da gestão urbana e não meramente por meio de políticas sociais e/ou urbanísticas isoladas e marginais.

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desconforme com as regras urbanísticas que exigem demais. As leis exigem padrões

mínimos que o cidadão médio brasileiro não pode atender.

Seria necessário reconhecer essa realidade e regular diferenciadamente, atendendo-se às mais variadas dissemelhanças. Agir com justiça

na regulação, consiste em dar a cada um o que é seu, tratando-se diferentemente os

desiguais. Parece claro que não convém estabelecer para todo e qualquer tipo de

fonte de agravos ambientais o mesmo nível de restrições. A situação de uma

ocupação para fins de moradia é bem diversa da situação de uma empresa que, tendo

possibilidade de produzir de forma limpa, resolve produzir poluindo ou que, tendo

possibilidade de instalar-se em outro local, resolve postar-se na beira de um

manancial.

A avaliação dessas situações, portanto, é justo que se faça com rigor

em relação à empresa e com alguma tolerância quando se trate de moradia. Ou

mesmo que se dê a ambas as situações um tratamento igualmente rigoroso. O que se

vê, no entanto, é grande complacência com empresas e severidade com moradias.

Ninguém nasce ou cresce desejando, como ideal de qualidade de vida,

morar à beira de um córrego poluído, conviver com animais de toda sorte e viver

exposto a riscos.

Uma família que, à míngua de outra possibilidade, não vê alternativa

senão fixar sua moradia à margem de um córrego, em condições precaríssimas,

correndo riscos à própria vida e à saúde, age em situação de necessidade que precisa

ser levada em conta na avaliação moral ou legal desta conduta.

Expressiva parte da sociedade não tem olhos para os dramas pessoais,

o desespero, as dificuldades enormes enfrentadas pelas tantas e tantas famílias

expulsas para os rincões mais distantes dos centros urbanos, para aquilo que essa

mesma sociedade considera “o lugar deles”.

Seja nas academias com seus estudos e pesquisas; seja nas

instituições públicas por sua atividade profissional que torna impositivo o contato

pessoal com quem vive aquelas dificuldades; ou ainda nas organizações privadas da

sociedade civil imbuídas de espírito de solidariedade voluntária; há sempre alguém

buscando compreender as razões que levam esses membros da sociedade a essas

situações extremas de indignidade e buscando encontrar para essas pessoas e para a

natureza, que sofre agressões, caminhos de consenso que atendam o mais possível a

todas as necessidades manifestadas.

É preciso, ainda, no propósito da ação preventiva, dificultar a

periferização dos grandes centros por meio da utilização de todos os instrumentos

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viáveis e ainda investir prioritariamente em habitação de perfil popular de modo a

diminuir o déficit e produzir equalização social.

Outra possibilidade é a utilização de instrumentos que permitam cobrar

do investidor imobiliário uma contra-prestação social e ambiental pela autorização para

realização de seu empreendimento.

Parece igualmente importante deixar de fixar objetivamente faixas de

preservação de APP, com aplicabilidade para todo o território nacional,

indistintamente, assim como parece importante tratar de forma diversa uma APP situada em área rural de uma APP situada em área urbana.

A diversidade das situações desaconselha a padronização. A regulação

precisa existir mas ela precisa considerar as muitas diversidades e:

• quando se trata de APP em área rural, o regramento pode ser federal ou regional, conferindo preferência à questão ambiental

• quando a APP esteja em área urbana, o regramento precisa se dar sobretudo localmente, com critérios locais, conferindo maior proeminência à questão social.

Este conjunto de medidas parece ser uma fórmula, uma receita,

minimamente adequada para melhorar a qualidade de vida urbana nos grandes

centros. São propostas de soluções já suficientemente discutidas e amadurecidas que

parecem viáveis para problemas de há muito diagnosticados.

De lege ferenda podemos fixar alguns critérios conciliadores para os

casos de regularização fundiária em áreas de APP que poderiam ser assim resumidos:

• a moradia ou o assentamento causa severo desgaste ambiental insolúvel e

está em área de risco insuperável, encontre-se ou não em área de APP, indica-se a remoção da moradia ou do assentamento com alternativa de

reassentamento preferencialmente nas proximidades; prevalência do princípio

da proteção à vida ou à integridade física dos moradores, com alternativa para

a moradia.

• a moradia ou o assentamento causa severo desgaste ambiental insolúvel, não

havendo situação de risco (ou sendo o risco removível), encontre-se ou não em área de APP indica-se a remoção da moradia ou do assentamento com

alternativa de reassentamento preferencialmente nas proximidades;

prevalência do princípio da proteção ambiental, com alternativa para a moradia.

• A moradia ou o assentamento não apresenta problemas ambientais (ou em

que os problemas ambientais são contornáveis) mas está em área de risco

insuperável, encontre-se ou não em área de APP, indica-se a remoção da

moradia ou do assentamento com alternativa de reassentamento

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preferencialmente nas proximidades; prevalência do princípio da proteção à

vida ou à integridade física dos moradores, com alternativa para a moradia.

• A moradia ou o assentamento não apresenta problemas ambientais (ou os tem,

mas eles são contornáveis) e não está em área de risco (ou está em área em

que o risco é superável), encontre-se ou não em área de APP, indica-se a

mantença dos moradores em suas moradias ou no assentamento. Prevalência

do princípio da proteção do direito à moradia.

• Assim que houver notícia da existência de um assentamento habitacional

informal se consolidando que, no todo ou em parte esteja em área de APP ou

em suas proximidades, a regularização fundiária precisa ser feita como

prioridade da administração pública para evitar-se a agressão ao ambiente que

a ocupação da área de APP terminará inevitavelmente provocando. A remoção

de riscos e as soluções urbanísticas e ambientais com pouca ou nenhuma

remoção de moradias se farão, com a intervenção prioritária, muito mais

facilmente e com menor ônus. Prevalência do princípio da prevenção.

Fazer esses dois interesses dialogar, sem sacrificar um em favor de

outro, é o grande desafio proposto a quem tem a grave função de operar a

regularização dessas áreas consolidadas de moradia em locais ambientalmente

sensíveis. É preciso entender que tanto os moradores de assentamentos irregulares

quanto o ambiente são sujeitos de direito.

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A P Ê N D I C E S

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APÊNDICE I – LINHA DO TEMPO

DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

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APÊNDICE II – QUADRO-RESUMO DE

UNIDADES AMBIENTAIS (LOCAIS ESPECIALMENTE

PROTEGIDOS)