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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras Thiago Oliveira Costa A REFERÊNCIA A RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM TEXTOS VEICULADOS NA MÍDIA JORNALÍSTICA BRASILEIRA ENTRE 2018 E 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva BELO HORIZONTE 2020

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS ......Niketche: uma história de poligamia. Companhia das Letras, 2004, p. 13) 6 RESUMO O presente trabalho apresenta um estudo sobre a

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Thiago Oliveira Costa

A REFERÊNCIA A RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM TEXTOS

VEICULADOS NA MÍDIA JORNALÍSTICA BRASILEIRA ENTRE 2018

E 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva

BELO HORIZONTE

2020

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Thiago Oliveira Costa

A REFERÊNCIA A RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM TEXTOS

VEICULADOS NA MÍDIA JORNALÍSTICA BRASILEIRA ENTRE 2018

E 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do titulo de mestre em linguística.

Professora orientadora: Dra. Sandra Maria

Silva Cavalcante

Área de concentração: Linguística e Língua

Portuguesa

Linha de Pesquisa: Linguagem e enunciação:

interações sociais e práticas discursivas

Belo Horizonte

2020

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Costa, Thiago Oliveira

C837r A referência a religiões de matriz africana em textos veiculados na mídia

jornalística brasileira entre 2018 e 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva

/ Thiago Oliveira Costa. Belo Horizonte, 2020.

159 f. : il.

Orientadora: Sandra Maria Silva Cavalcante

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras

1. Cultos afro-brasileiros. 2. Referência (Linguística). 3. Liberdade religiosa.

4. Candomblé. 5. Religiões - Relações. 6. Metáfora. 7. Jornalismo - Linguagem -

Brasil. 8. Umbanda. 9. Comunicação - Aspectos religiosos I. Cavalcante, Sandra

Maria Silva. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de

Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 800.855

Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999

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Thiago Oliveira Costa

A REFERÊNCIA A RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM TEXTOS

VEICULADOS NA MÍDIA JORNALÍSTICA BRASILEIRA ENTRE 2018

E 2019: um estudo de natureza sociodiscursiva

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Linguísticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do titulo de mestre em linguística. Área de concentração: Linguística e Língua Portuguesa

Profa. Dra. Sandra Maria Silva Cavalcante (Orientadora) - PUC Minas

Profa. Dra. Juliana Alves Assis – PUC Minas

Profa. Dra. Flávia Affonso Mayer - UFPB

Prof. Dr. Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães – PUC Minas (Suplente)

Belo Horizonte, 10 de julho de 2020.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todo o corpo de professores que compõem o Programa de Pós-

Graduação em Letras e seu colegiado, pela compreensão, disponibilidade,

flexibilidade, auxílio, paciência e conhecimentos compartilhados durante o percurso

do mestrado.

Agradeço à PUC MINAS pela concessão da bolsa de estudo assistencial que me

possibilitou realizar o meu sonho de fazer um mestrado, complementando assim

minha formação acadêmica, adquirindo conhecimento que será levado para toda

vida.

Agradeço à coordenadora do Curso de Letras da instituição onde eu me graduei,

Alba Valeria Niza Silva, pelo apoio e incentivo para que eu continuasse meus

estudos e fizesse o meu mestrado.

Agradeço à professora Sandra Maria Silva Cavalcante pela orientação, dedicação,

empenho, pela ajuda na realização da pesquisa e do meu conhecimento ao longo do

mestrado.

Sou profundamente grato à minha família pelo apoio em, especial à minha mãe, meu

irmão, ao meu pai e a minha cunhada.

Por fim, agradeço também a Deus, aos guias espirituais que sempre estiveram ao

meu lado me ajudando com muita paciência e dedicação.

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―Amor. Tão pequeno, esta palavra. Palavra bela, preciosa.

Sentimento forte e inacessível. Quatro letras apenas,

gerando todos os sentimentos do mundo. As mulheres

falam de amor. Os homens falam de amor. Amor que vai,

amor que vem, que foge, que se esconde, que se procura,

que se encontra, que se preza, que se despreza, que

causa ódios e se acende guerras sem fim. No amor, as

mulheres são um exercito derrotado, é preciso chorar.

Depor as armas e aceitar a solidão. Escrever poemas e

cantar ao vento para espantar as mágoas. O amor é fugaz

como a gota de água na palma da mão.‖

(CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia.

Companhia das Letras, 2004, p. 13)

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RESUMO

O presente trabalho apresenta um estudo sobre a maneira como religiões de matriz

africana são referenciadas em veículos representativos da mídia jornalística,

corporativa brasileira em um recorte temporal de dois anos. A pesquisa pode ser

compreendida, mais precisamente, em termos da busca de compreensão de

processos referenciais que constituem práticas discursivas que tematizam religiões

de matriz africana, especialmente a Umbanda e o Candomblé, em jornais de ampla

circulação na sociedade brasileira. A realização da presente pesquisa toma como

hipóteses que, em práticas discursivas de natureza jornalística que focalizam

religiões de matriz africana, essas são referenciadas com base estratégias

discursivo-enunciativas, tais como a metáfora, que conduzem o leitor a compreendê-

las como práticas religiosas associadas a atos de violência e de discriminação

social; a forma como essas religiões estão referenciadas e predicadas na mídia

jornalística contemporânea é reveladora do processo de opressão das práticas

religiosas dos negros africanos, desde o período colonial brasileiro. A pesquisa

estrutura-se a partir da descrição do percurso sociohistórico trilhado por essas

religiões no Brasil, da problematização de concepções teóricas que norteiam a

constituição do corpus e a análise dos dados, entre as quais, as concepções de

linguagem, língua, enunciação, discurso, texto, sobre a natureza do texto jornalístico

além das concepções adotadas para referenciação e metaforização. A análise das

reportagens veiculadas na mídia impressa brasileira contemporânea, nos anos de

2018 e 2019, que constituiu o corpus desta pesquisa, foi desenvolvida à luz dos

fundamentos teóricos que nos permite caracterizar e descrever a situação discursiva

em estudo em termos do processo de enunciação e, mais precisamente, de cenas

de enunciação. Os procedimentos para constituição e análise de dados foram

orientados por um estudo de natureza qualitativa, que pressupôs a seleção de 17

(dezessete) reportagens, veiculadas por jornais de circulação nos estados de Minas

Gerais, São Paulo e Bahia. Ao descrever processos sociodiscursivos, mais

precisamente enunciativos, instituídos no domínio jornalístico, em que as religiões

de matriz africana são tematizadas, na perspectiva teórica e metodológica que

adotamos, esperamos poder contribuir para novos estudos que evidenciem o modo

como essas religiões são socioculturalmente reconhecidas e valorizadas. Além

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disso, contribuir para estudos que visam explicitar o processo de constituição e de

reconhecimento da identidade cultural de tais religiões e de seus adeptos no meio

social onde estão inseridas.

Palavras-chave: Referenciação. Metaforização. Religiões afro-brasileiras.

Candomblé. Umbanda.

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ABSTRACT

This paper presents a study on the way in which religions of African origin are

referenced in vehicles that are representative of the Brazilian corporate journalistic

media in a two-year period. The research can be understood, more precisely, in

terms of the search for understanding referential processes that constitute discursive

practices that focus on religions of African origin, especially Umbanda and

Candomblé, in newspapers with wide circulation in Brazilian society. The realization

of this research takes as hypotheses that, in discursive practices of journalistic nature

that focus on religions of African origin, these are referenced based on discursive-

enunciative strategies, such as metaphor, that lead the reader to understand them as

associated religious practices acts of violence and social discrimination; the way in

which these religions are referenced and predicated in contemporary journalistic

media reveals the process of oppression of religious practices by black Africans,

since the Brazilian colonial period. The research is structured from the description of

the socio-historical path followed by these religions in Brazil, from the

problematization of theoretical concepts that guide the constitution of the corpus and

the analysis of data, among which, the conceptions of language, language,

enunciation, discourse , text, on the nature of the journalistic text in addition to the

concepts adopted for referencing and metaphorization. The analysis of the reports

published in the contemporary Brazilian print media, in the years 2018 and 2019,

which constituted the corpus of this research, was developed in the light of the

theoretical foundations that allow us to characterize and describe the discursive

situation under study in terms of the enunciation process and , more precisely, of

enunciation scenes. The procedures for constituting and analyzing data were guided

by a qualitative study, which presupposed the selection of 17 (seventeen) reports,

published by newspapers in the states of Minas Gerais, São Paulo and Bahia. When

describing sociodiscursive processes, more precisely enunciative, instituted in the

journalistic domain, in which African-based religions are themed, in the theoretical

and methodological perspective that we adopt, we hope to be able to contribute to

new studies that show how these religions are socioculturally recognized and valued

. In addition, to contribute to studies that aim to explain the process of constitution

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and recognition of the cultural identity of such religions and their adherents in the

social environment where they are inserted.

Keywords: Referencing. Metaphorization. Candomblé. Umbanda.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 10

2 FUNDAMENTOS SOCIOHISTÓRICOS: perspectiva histórica e social

da origem e evolução das religiões afro-brasileiras: Umbanda e

Candomblé ...............................................................................................

16

2.1 Processo de formação das religiões afro-brasileiras ............................... 16

2.2 As bases histórico-sociais da Umbanda .................................................. 23

2.3 As bases histórico-sociais do Candomblé ............................................... 32

2.4 Parâmetros legais para o direito à liberdade de crença e de culto .......... 39

3 FUNDAMENTOS SOCIODISCURSIVOS ................................................ 44

3.1 Concepção de Linguagem, Língua e Enunciação ................................... 44

3.2 Concepção de Discurso e de Texto ......................................................... 47

3.2.1 Como podemos definir texto? .................................................................. 50

3.2.2 A natureza do texto jornalístico ................................................................ 54

3.3 Sobre a Referenciação ............................................................................ 59

3.4 Sobre a Metaforização ............................................................................. 69

4 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS .................................................... 76

4.1 Procedimentos para a construção, seleção e documentação do corpus . 76

5 ANÁLISE DE DADOS .............................................................................. 81

5.1 A Umbanda e o Candomblé na cena jornalística brasileira ..................... 81

5.1.1 Estratégias discursivas comuns às cenas jornalísticas de 2018 e 2019 . 83

6 CONCLUSÃO .......................................................................................... 101

REFERÊNCIAS ........................................................................................ 105

APÊNDICE ............................................................................................... 109

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Capitulo 1

INTRODUÇÃO

Tendo contato desde criança com a Umbanda por conta dos meus avôs

maternos e duas tias que frequentavam terreiro de Umbanda na cidade onde eu

nasci, e, posteriormente, com a minha própria iniciação na Umbanda e no

Candomblé, no ano de 2005, e o convívio direto ou indireto com a intolerância

religiosa, inclusive dentro da própria família, todas essas experiências me levaram a

buscar uma compreensão mais crítica sobre o modo como as pessoas convivem

com as religiões de matriz africana, sobre como as mesmas são referenciadas e

predicadas, em espaços públicos, e os motivos que podem levar uma pessoa ou

grupo de pessoas a ter resistência em conviver com sujeitos que cultivavam crenças,

os valores e, consequentemente, os rituais de tais religiões.

Minha experiência pessoal na religião e nos movimentos sociais que

buscam acabar com a intolerância religiosa, associada à permanente formação

nesse campo, me levaram a integrar questões acadêmicas às questões religiosas

que permeiam minha vida pessoal e social há bastante tempo. Por isso, ainda na

graduação do curso de Letras, iniciei, no decorrer do Trabalho de Conclusão de

Curso, uma pesquisa que buscava identificar, no discurso social e religioso, como as

religiões afro-brasileiras eram apresentadas à sociedade, através do discurso

jornalístico e de lideranças religiosas. O meu convívio com parentes Umbandistas e

Candomblecistas, na minha prática religiosa e a não aceitação por parte de alguns

parentes e pessoas da sociedade com quem eu convivia, inclusive colegas de

faculdade, me levaram a estabelecer essa indissociável relação entre a minha

prática religiosa e a minha formação acadêmica.

Tendo em vista as experiências vividas no campo religioso, as noticias

relacionadas à discriminação, intolerância e preconceito com as religiões afro-

brasileiras e seus adeptos, instigou-me refletir, criticamente, e investigar, no âmbito

de um Programa de Pós-Graduação no campo dos Estudos Linguísticos, práticas

discursivas, de natureza jornalística, em que a Umbanda e o Candomblé são

referenciadas.

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Este trabalho justifica-se, portanto, pelo reconhecimento da necessidade

social do investimento em pesquisas que busquem compreender como se

estruturam práticas discursivas jornalísticas que, em território nacional, referenciam

religiões afro-brasileiras, mais precisamente, a Umbanda e o Candomblé.

Entre as religiões de matriz africana, a Umbanda e o Candomblé foram

escolhidas por serem as religiões com maior número de terreiros e adeptos na

região sudeste do Brasil. De acordo com o censo do IBGE (2016), cerca de 167.363

brasileiros se declaram adeptos do Candomblé, enquanto que 407.331

(quatrocentos e sete mil trezentas e trinta e uma) pessoas se declararam adeptos da

Umbanda. No mesmo ano, 588.797 (quinhentas e oitenta e oito mil setecentas e

noventa e sete) pessoas declararam ser adeptas tanto do Candomblé quanto a

Umbanda, enquanto que 14.103 (catorze mil cento e três) indivíduos são adeptos de

outras religiões afro-brasileiras. (IBGE, 2016).

Através do desenvolvimento desta pesquisa, que tem como corpus a ser

analisado textos jornalístico veiculados na mídia corporativa brasileira, em jornais de

grande circulação principalmente nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de

Janeiro, Bahia e Espírito Santo entre os anos de 2018 e 2019. A partir disso,

pretendemos verificar a plausibilidade da(s) seguinte(s) hipótese(s):

I. Em práticas discursivas de natureza jornalística que

focalizam religiões de matriz africana, mais precisamente a

Umbanda e o Candomblé, essas são referenciadas com base

estratégias discursivo-enunciativas, entre as quais a metáfora,

que conduzem o leitor a compreendê-las como práticas

religiosas associadas a atos de violência e da situação de

discriminação (intolerância) social;

II. A forma como essas religiões estão referenciadas e

predicadas na mídia jornalística contemporânea é reveladora

do processo de opressão das práticas religiosas dos negros

africanos, que teve início no período colonial brasileiro;

III. Por fim, que o processo de referenciação e de predicação

das religiões afro-brasileiras implicam o uso metafórico de um

repertório linguístico (lexical) comum ao campo semântico da

guerra, sendo a Umbanda e o Candomblé os principais alvos,

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envoltos em um contexto social que implica, historicamente, os

movimentos de ataque e defesa.

No âmbito da delimitação do problema em estudo e à luz do

anteriormente exposto, este trabalho assume como objetivo geral, analisar os

modos como as religiões de matriz africana são referenciadas em textos jornalísticos

vinculados na mídia corporativa brasileira, nos anos de 2018 e 2019. Para tal, foram

exploradas 17 reportagens, e a partir dai me foi possível definir também um caminho

para a realização da pesquisa, em termos de ações que buscam culminar no

cumprimento do objetivo geral.

Nesse sentido apresento como objetivos específicos:

a) compreender como se deu o processo de constituição da Umbanda e

do Candomblé enquanto religiões afro-brasileiras em uma perspectiva

histórica e social;

b) identificar o modo como a mídia corporativa brasileira referencia as

religiões afro-brasileiras no período proposto para a presente

pesquisa;

c) averiguar dentro do corpus selecionado, o modo como a Umbanda e o

Candomblé foram metaforizados;

d) definir os critérios para o processo de documentação, organização e

seleção do corpus e para a constituição dos dados de pesquisa e dos

procedimentos de análise dos mesmos;

e) verificar a plausibilidade das hipóteses de pesquisa.

Em termos metodológicos, este trabalho caracteriza-se como uma

pesquisa de natureza qualitativa, sendo desenvolvida primordialmente através de

analise documental. Da seleção de reportagens de jornais já mencionada

anteriormente, foram analisadas 17 (dezessete) reportagens veiculadas em jornais

de circulação na Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em busca de cumprir o objetivo maior da pesquisa, que é o de analisar os

meios pelos quais ou os modos como as religiões afro-brasileiras são referenciadas

no corpus em análise, utilizamos como procedimento de análise a identificação de

quais palavras ou expressões são mais comumente usadas para referir a e predicar

tais religiões.

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O presente trabalho está estruturado em quatro capítulos contados a

partir deste Capítulo 1, em que se apresenta esta introdução.

O capitulo 2, Fundamentos Sociohistóricos, define-se pela apresentação

de uma perspectiva histórica e social da origem e evolução das religiões afro-

brasileiras: Umbanda e Candomblé. Esse capítulo cumpre o objetivo de

apresentar o contexto sócio-histórico em que a Umbanda e o Candomblé surgiram e

se fixaram como religiões no Brasil, com ênfase na dinâmica de evolução dessas

religiões desde o período colonial até os dias atuais. Nesse capítulo, entre os

autores com os quais dialogamos, destacam-se: Enrique Dussel, Berkenbrock,

Oliveira, Prandi, Cumino, Barbosa Jr, Carneiro, Vaini, Brito.

O Capítulo 3, dedicado à apresentação dos Fundamentos

sociodiscursivos, cumpre o objetivo de definir os conceitos que deverão orientar o

processo de análise dos dados. Para essa definição, dialogamos com o trabalho de

autores que compreendem linguagem e seu funcionamento como prática social.

Entre esses autores, destacam-se Volochinov, Marcuschi, Koch, Travaglia. Além

disso, em uma perspectiva processual da atividade linguística, destacamos os

conceitos de Referenciação e Metaforização, em concordância com trabalhos

desenvolvidos por Koch, Koch e Bentes, Marcuschi, Bahktin, Volochinov, Van Dijk,

Gomis; Lakoff, Vereza e Cavalcante.

No quarto capítulo, dedicado à Metodologia, apresentamos ao leitor as

estratégias metodológicas adotadas para a investigação que se realiza no âmbito da

presente pesquisa. A opção pela análise de reportagens de jornais, apresentados

entre os fundamentos históricos, se justifica pela possibilidade de acesso a um

número maior de informações e dados oficiais recentes, o que nos permite um

alcance mais abrangente de práticas discursivas identificadas em situações reais em

que as religiões de matriz africanas são referenciadas, como forma de constituir os

dados documentais a serem analisados.

No capitulo 5, sob o título de Análise de dados, apresento uma análise

de dados constituídos no âmbito do corpus selecionado para investigação, a fim de

verificar a plausibilidade ou não das hipóteses levantadas para este estudo. Este

capítulo foi dividido em três tópicos, sendo o primeiro intitulado ―A Umbanda e o

Candomblé na cena jornalística brasileira‖, o segundo, a cena jornalística em que a

Umbanda e o Candomblé são referenciadas, no contexto dos veículos jornalísticos

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selecionados para estudo, no ano de 2018. Por fim, no terceiro tópico, uma análise

dos modos como as religiões de matriz africana são referenciadas no ano 2019.

Na conclusão, apresentamos ao leitor as considerações finais acerca da

pesquisa realizada e problematizamos questões que, no decorrer no trabalho, se

mostraram relevantes, abrindo possibilidades e a necessidade de pesquisas futuras.

E, finalmente, em anexo a este trabalho, estão as reportagens que definem o corpus

a partir do qual se constituem os dados que possibilitaram a realização desta

pesquisa.

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Capítulo 2

2 FUNDAMENTOS SOCIOHISTÓRICOS: perspectiva histórica e social da

origem e evolução das religiões afro-brasileiras: Umbanda e Candomblé

Neste capítulo, apresentaremos um panorama de como se deu o

processo de formação das religiões afro-brasileiras no Brasil, especialmente a

Umbanda e o Candomblé, quais fatores sociais e culturais contribuíram para a

formação destas duas novas religiões aqui no país, e como se estabeleceu o

convívio entre tais religiões e outras práticas religiosas, especialmente, as práticas

católicas já existentes. Buscaremos contextualizar, também, como o encontro de

culturas distintas como a cultura europeia, africana e indígena contribuiu para a

formação de tais religiões. O capítulo traz, ainda, disposições de ordem legal que

dizem respeito ao direto constitucional de liberdade religiosa e de culto que, em

princípio, devem reger a seguridade de direitos dos cidadãos que optam por cultivar

a sua fé em toda e qualquer religião, o que inclui, indiscutivelmente, aqueles que o

fazem no Candomblé e na Umbanda.

2.1 O processo de formação das religiões afro-brasileiras

Para falarmos do surgimento da Umbanda e do Candomblé no Brasil,

precisamos primeiramente retomar a formação histórica e social do país, que

proporcionou as condições necessárias para o surgimento de novas religiões,

reflexo do encontro de culturas distintas que se fundiram e deram origem a novas

concepções sociais e religiosas (JARDIM, 2017).

A colonização do Novo Mundo ―descoberto‖ pela Europa e a diáspora

africana fazem parte do processo de internacionalização que deu inicio à

modernidade. De acordo com Enrique Dussel (2007, p.52), a modernidade é fruto do

descobrimento, conquista, colonização e integração (subsunção) da Ameríndia, que

a partir do fim do século XV (1492), transformou a Europa em centro do mundo

diante de uma periferia crescente. Nesse sentido, os encontros entre as culturas

européias, africanas e indígenas foram permeados pelo domínio técnico dos

europeus que, associado à violência e à ideia de raça como fundamentos da relação

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entre colonizadores e colonizados, foram cruciais para subjugação dos ameríndios e

seus descendentes.

Para Dussel, ainda, a relação que se estabeleceu na África entre

africanos e europeus, a partir do século XV, trouxe como consequências a

institucionalização da escravidão enquanto uma das formas de controle do trabalho

da modernidade; o enriquecimento da Europa e estruturação da África como sua

periferia; a desestruturação das sociedades africanas; a diáspora africana; a

subalternização dos saberes africanos, e a ideia de que, com exceção da cultura

européia, todas as outras culturas são inferiores.

No Brasil, essa realidade se configurou, especialmente a partir do século

XVI, a partir do tráfico de homens e mulheres africanos em um fenômeno migratório

realizado através dos denominados Navios Negreiros. De acordo com Berkenbrock

(2007, p.76),

Estima-se que tenham sido trazidas ao Brasil mais de três milhões e seiscentos mil pessoas como escravos. Salvador na Bahia foi o porto por onde entrou a maioria dos escravos no Brasil, com cerca de um milhão e duzentos mil escravos, e o Rio de Janeiro foi o segundo porto que mais recebeu africanos escravizados.

Os mais de três milhões de africanos trazidos ao Brasil, no período do

tráfico escravocrata de povos africanos, podem ser separados em quatro períodos: o

Ciclo da Guiné que se iniciou na segunda metade do século XVI com africanos

provenientes da Nigéria, Gana Benin, Cabo Verde e Costa do Marfim, que

desembarcaram principalmente no nordeste brasileiro. O Ciclo da Angola e Congo

que ocorreu durante o século XVII, período em que foram trazidos escravos

provenientes de onde atualmente estão o Zaire, Camarões, Gabão e República

Central Africana. O Ciclo da Costa da Mina com escravos trazidos nos primeiros

quartos do século XVIII em regiões que hoje são conhecidas como Nigéria e Benin.

E por fim, o quarto ciclo que ocorreu por volta do final do século XVIII e durante

quase todo o século XIX. Este último foi um ciclo muito marcado pela repressão ao

comércio e tráfico de escravos pela Inglaterra que já havia abolido a escravidão em

suas colônias. Neste ciclo os escravos eram enviados do Golfo do Benin

(BERKENBROCK, 2007).

Segundo Berkenbrock, ainda, no que se refere ao Brasil, pode-se dividir

as culturas africanas que aqui chegaram em quatro grupos: sudaneses, formados

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pelos yorubas e daomeanos; islâmicos, formados pelos Peuhls, Mandingas e

Haussás; os Bantos de Angola e Congo e Bantos da Contra Costa, vindos de

Moçambique.

Para Oliveira (2008, p.52), calcula-se que os bantos tenham sido o maior

número de africanos trazidos ao Brasil como escravos. Por isso, pode-se observar

uma presença determinante da cultura banto na formação da cultura brasileira. Isso

ocorre, tanto em manifestações estéticas musicais que decorrem ou são

influenciadas por essa cultura como o samba, o mambo e a rumba, quanto no

aspecto religioso através de rituais como a macumba e o vodu.

A cultura banto também influenciou em elementos filosóficos constituídos

das religiões que dela sofrem influência, entre essas, destacam-se o culto aos

mortos, o culto à natureza e o dogma da reencarnação. Em religiões como a

Umbanda, pode-se observar a influência desta cultura em aspectos como a música,

a dança, o transe, o uso de plantas (ornamentais, aromáticas, medicinais), pedras,

símbolos de cores, pemba, pó que se assemelha ao pó de giz e que é utilizado em

rituais tanto na Umbanda quanto no Candomblé para limpezas espirituais, para

cerimônias de iniciação do Candomblé ou para se riscar pontos de guias espirituais,

pontos riscados, que são uma grafia sagrada que se refere à diagramas desenhados

a mão como ângulos, retas, flechas, símbolos representativos, desenhos

geométricos, pontos cardeais etc representando a assinatura do guia espiritual. Os

sudaneses englobaram o segundo maior grupo de africanos escravizados no Brasil,

originários da África Ocidental e viviam em regiões que hoje são conhecidos por

Nigéria Benin (antiga Daomé) e Togo.

Os Bantos compreendiam suas divindades da seguinte maneira:

Nzambi Mpunguera era considerado a autoridade universal,

deus maior que todos os outros deuses e criador do universo, a ele

não se oferecia culto, uma vez que por conta da sua grandeza não

necessitava de culto;

Nzambi eram as divindades com autoridade regional ou

territorial que eram cultuados em altares, santuários ou pequenas

casas. Nos altares rendiam-se oferendas com frutas, legumes e

flores. Acreditava-se que os Nzambi viviam em lugares específicos

como riachos, cachoeiras, montanhas. Além das divindades

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territoriais, existiam os antepassados, que eram todos dignos de

culto. O cuidado com os antepassados é uma característica

marcante da religiosidade banto (VAGNER GONÇALVES, 2005).

Oliveira (2008) afirma ainda que, na visão dos bantos, a batalha entre o

bem e o mal gerava um sistema ético. O mal se reduzia a atos particulares de cunho

individual, ou seja, era a má intenção de um individuo, ou o interesse particular que

se sobrepunha ao interesse comunitário, considerando que a comunidade para os

africanos era de extrema importância. Não havia para eles uma entidade

especificamente má, pois se acreditava que isso estaria na intenção dos vivos.

As religiões afro-brasileiras herdaram também a crença na existência de

espíritos, que são considerados forças ou seres intermediários entre o ser supremo

e os humanos, e não são considerados nem do bem nem do mal. A intenção das

pessoas que entram em contato com os espíritos é que define a questão do bem ou

do mal. Existem espíritos que foram criados como tais e nunca tiveram uma vida

terrena, enquanto outros espíritos que tiveram uma vida na Terra.

Já no universo sagrado dos povos iorubás, identificam-se os orixás,

deuses subordinados a um Ser Supremo, Olodumare. Segundo a tradição religiosa e

cultural ioruba esse Ser Supremo teria incumbido cada orixá de criar e governar o

mundo e reger, cada qual, um aspecto da natureza, além de determinadas

dimensões da existência humana e da vida social. Na mitologia africana, essas

divindades são seres ambíguos, à semelhança dos seres humanos, dotados de

poder e capazes do bem, mas também falíveis e dominados por paixões, pois estes

sofrem, amam, odeiam, disputam o governo uns com os outros. De acordo com essa

cultura, dos orixás descendem os seres humanos, e cada pessoa porta em si as

características do orixá que lhe deu origem (PRANDI, 2001, p.18-24 apud BORGES,

BETARELLO e DIVINO, 2015).

De acordo com Prandi (2001, p.49), para os antigos Iorubás, os homens habitavam a Terra, o Aiê, e os orixás, o Orum. Muitos laços e obrigações ligam os dois mundos. Os homens alimentam continuamente os orixás, dividindo com eles sua comida e bebida, os vestem, adornam e cuidam de sua diversão, e em troca dessas oferendas, os orixás protegem, ajudam e dão identidade aos seus descendentes humanos.

Segundo Silva (2005, p. 65), durante o período colonial, os cultos bantos

eram majoritários, e as formas de repressão a esses cultos eram fortes. Já no século

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XIX, período em que a urbanização ganha forma no Brasil, a repressão aos cultos

africanos diminui consideravelmente, e, nesse período, os cultos sudaneses acabam

predominando.

A religiosidade africana praticada pelos africanos escravizados no Brasil

era designada como batuques ou calundus, sendo que o culto africano presente nas

cidades até o fim do século XVI era o calundu, que era uma mistura de danças,

cantos, músicas, possessões, oráculos e magia. Pode-se descrever os calundus

como um momento religioso em que ocorriam ritos como lavagens de cabeças com

ervas que facilitavam o contato com os mortos, performances ritmadas como as

danças dos deuses, usando vestimentas ou instrumentos atribuídos especificamente

a um deus do panteão africano. A partir do final do século XIX, no entanto, pode-se

perceber que elementos kardecistas, como a ideia de karma e de evolução espiritual

ganham espaço no calundu. Como são considerados elementos da natureza, as

divindades cultuadas no calundu deveriam ser, de acordo com a cosmologia

africana, cultuados com elementos que representavam a natureza, como a água, as

pedras, o ferro (VAGNER GONÇALVES, 2005).

Com relação à influencia da cultura iorubá no contexto das religiões afro-

brasileiras pode-se reconhecer uma espécie de diplomacia na organização cultural

religiosa dos terreiros de Umbanda e de Candomblé, uma vez que além de

agruparem em um único templo as divindades cultuadas separadamente até então,

nas regiões africanas, os iorubás incorporaram ao panteão de divindades, orixás

como Nanã, Obaluaê e Oxumarê, considerada a tríade de orixás daomeanos ou

nigerianos, além de reservarem espaço para entidades de ascendência congolesa e

ameríndia como os caboclos, pretos velhos e exus, na maioria das vezes agrupados

sob o nome genérico de ‗eguns‘ (espíritos dos mortos) (OLIVEIRA, 2008, p.61).

Embora a prática de magia e o transe, características comuns aos ritos

africanos, fossem fortemente reprimidas pelas autoridades eclesiásticas durante o

período colonial, mais precisamente entre os séculos XVI e primeira metade do

século XIX, por considerá-las práticas diabólicas, as danças, cânticos e rezas eram

toleradas nos terreiros das fazendas aos domingos e feriados santos. A tolerância à

festas dos escravos se explica pelo fato de tais manifestações serem vistas pelos

senhores como algo folclórico, ou porque os negros, disfarçadamente, justificavam-

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se dizendo que se tratava de uma homenagem aos santos católicos feitas em sua

língua natal juntamente com as danças de suas terras em África.

Outro motivo para a permissão dos ―batuques‖, nome dado

genericamente à manifestações africanas no Brasil, era a manutenção das tradições

africanas, evitando com isso que as rivalidades entre os escravos provenientes de

grupos étnicos inimigos fossem esquecidas, visando com isso, impedir a criação de

vínculo entre as diferentes etnias, para que não se unissem e assim se voltassem

contra os senhores (SILVA, 1994, p. 34).

Na literatura dedicada às origens e características das religiões de matriz

africana é possível constatar que a história do povoamento no Brasil colonial se

confunde com a própria história de implementação do catolicismo no país por

intermédio do colonizador, e que disso se configura a dificuldade de inserção de

outros credos no Brasil Católico ao longo dos séculos de ocupação. Durante a maior

parte do período colonial brasileiro esteve ativo no país o Tribunal do Santo Oficio da

Inquisição, estabelecido em Portugal em 1536, e em pleno funcionamento na

metrópole até 1821 (ANGELIN, 2011).

Ainda de acordo com Angelin (2011), a Inquisição enviou visitações ao

Brasil a partir de 1591 e delegou poder aos bispos locais. O Brasil teria vivenciado o

uso da força e da violência na propagação da Santa Inquisição ocorrida na Europa,

em atos que representavam o elevado temor da Igreja em perder o seu domínio e

poder hegemônico. Nos dois séculos e meio de ação da Inquisição no Brasil, cerca

de 25 mil pessoas foram processadas por várias acusações e 1.500 foram

condenadas à morte.

A separação social entre brancos, negros e índios durante o período

colonial não significou que as tradições culturais desses três povos se

manifestassem pelo país impermeáveis uma às outras. O que se pode verificar no

universo religioso brasileiro durante o este período é que as religiões presentes no

país acabaram por romper seus limites e se traduziram mutuamente, dando origem

às novas formas de religiosidade, mistas, afro-brasileiras (DUSSEL, 2007).

De acordo com Reis (2004, p.223), do emaranhado de tradições africanas

sincretizadas entre si e com as práticas cristãs e indígenas, desenvolveram-se no

Brasil novas expressões religiosas portadoras de um forte legado das tradições orais

africanas, que enfrentaram e ainda enfrentam os desafios de manter suas raízes em

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um novo cenário cultural. Dentre essas novas expressões religiosas, podemos

destacar o Candomblé na Bahia, o Xangô em Pernambuco, o Tambor de Mina no

Maranhão, o Batuque no Rio Grande do Sul, a Macumba no Rio de Janeiro, o

Catimbó no norte do país.

Para Sanchis (2008, p. 82 - 83), o sincretismo não pode ser entendido

como o produto final de uma ação social, reduzido a uma dupla pertença ou a uma

mistura de elementos, mesmo se reorganizados. Entendo-o como um processo,

polimorfo e cujos efeitos são os mais variados, que consiste na percepção - ou a

construção – coletiva de homologias de relações entre o universo próprio ao grupo e

aquele do ―outro‖ com quem o grupo está em contato: uma percepção que

desencadeia transformações na auto-imagem do grupo, seja para reforçar seja para

reduzir os paralelismos que foram detectados.

Em segundo lugar, não se trata de pensar o Brasil como um permanente desdobrar de sincretismos. Se parece lógico que esse tipo de covivência tenha chegado, na longa duração, a criar um habitus, uma ―tendência‖, parece claro também que esse habitus não iria fazer a história sozinho. Ele se confrontará e se articulará com outros habitus, inclusive com o seu oposto, aquele da peremptória afirmação identitária, da racionalização. Já naquele primeiro momento, o das ―santidades‖ sincréticas, também estavam ali os jesuítas, a inquisição, os princípios de organização do Estado. No entanto, mesmo se não monopolizadora da história, a estrutura sincrética – no sentido em que ―estrutura‖ foi caracterizada acima - nunca se tornou ausente do processo histórico da religião no Brasil. Continua-se falando dela hoje a propósito das religiões afro-brasileiras, das religiões orientais; paradoxo, até de certas igrejas neo-pentecostais. (SANCHIS, 2008, p. 83).

Com o fim do império e o inicio da república no Brasil, no início do século

XX, podemos destacar a ocorrência de importantes transformações nas religiões

afro-brasileiras. Entre outros fatores, o interesse de pesquisadores e artistas trouxe-

lhes uma notoriedade maior, o que permitiu que as religiões saíssem dos espaços

restritos dos terreiros para uma ascensão no espaço religioso brasileiro. O resultado

disso foi a presença crescente de adeptos de classe média e de origem não africana

nos terreiros, que antes reproduziam um ambiente familiar e, por isso, mais

reduzido. Dessa forma, as religiões de matriz africana vão se transformando em

religiões de caráter universal, ou seja, estas deixam de ser religiões de negros,

excluídos socialmente, analfabetos, de classe baixa, moradores das periferias das

cidades, e passam a ser religiões frequentadas por pessoas de todas as classes

sociais, de pessoas brancas, negras, mestiças, com nível superior completo.

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Diante do cenário até aqui desenhado, passemos, na próxima seção, a

uma reflexão sobre as bases histórico-sociais e culturais do nascimento da

Umbanda como religião de matriz-africana no Brasil.

2.2 As bases histórico-sociais da Umbanda

A Macumba, no inicio do século XX, era um ritual muito parecido com o

culto dos bantos, no qual se invocavam os espíritos dos antepassados tribais. Os

orixás ainda não haviam sido introduzidos no ritual, sendo introduzidos somente

conforme o Candomblé foi crescendo e ganhando maior prestígio. Porém, a inclusas

desses não alterou a centralidade cultural da invocação dos ancestrais, ou seja, a

característica principal da macumba era o culto em torno dos espíritos familiares –

caboclos, pretos velhos e exus (OLIVEIRA, 2008). O pesquisador ressalta que, o

termo macumba viria de mcumba, que seria o plural de cumba, significando reunião

de jongueiros. O vocabulário é de origem banto.

Para Cumino (2015), o caráter pejorativo do termo macumba veio

claramente por ser um ritual de origem africana, associada à ―magia de negros‖ e,

mais tarde, à magia negra. Conforme a palavra macumba vai se tornando pejorativa,

passa a ser um problema para os umbandistas que querem separar-se de conceitos

negativos em sua religião.

Segundo Cruz (2010, p. 46), a Macumba é um termo genérico

amplamente utilizado, no país, para referenciar todas as religiões afro-brasileiras.

Esse termo é geralmente empregado por religiosos, de maneira irônica e jocosa,

como forma de indicar o reconhecimento de um estigma que recai sobre essas

atividades religiosas. Para a pesquisadora, no uso do termo macumba, há sempre o

reconhecimento de que este representa o pólo da religião visto como impuro e

sujeito a estigma, com oposição a outras práticas religiosas situadas no pólo legítimo

e vistas como puras e genuínas.

Grosso modo, a Macumba pode ser compreendida como um culto que

antecede a Umbanda, um ritual mais primitivo, que, assim como a Umbanda, faz uso

de elementos da cabula, do Candomblé, das tradições indígenas e do catolicismo

popular, com uma diferença, essa não possui o suporte de uma organização e

doutrina que integrasse esses elementos de forma mais unificada, pois na Umbanda

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os terreiros apesar de, seguirem uma mesma doutrina religiosa cada terreiro têm seu

próprio modo de funcionamento pois diferentemente do catolicismo em que há uma

liderança religiosa que unifica e sistematiza o funcionamento de todas as igrejas, na

Umbanda não há esse sistema de funcionamento, cada zelador ou zeladora conduz

o seu terreiro do modo que achar mais conveniente.

A Umbanda nasce a partir do encontro da Macumba com o espiritismo

kardecista, ou seja, nessa medida, na perspectiva sociocultural, do encontro das

camadas mais pobres com a classe média da população do Rio de Janeiro. O

Kardecismo foi a última religião a se inserir na Macumba, lhe trazendo a estrutura e

a doutrina necessária para lhe conferir a legitimação enquanto religião no ambiente

urbano (CUMINO, 2015).

De acordo com pesquisas sobre a origem das religiões de matriz africana

no Brasil, a Umbanda foi uma religião oficialmente fundada em 16 de novembro de

1908 na Rua Floriano Peixoto, número 30, bairro Neves, em São Gonçalo no Rio de

Janeiro, quando o médium Zélio Fernandino de Moraes, na época com apenas 17

anos, e baseado nos evangelhos cristãos, na prática da caridade e atendimento

gratuito a quem precisasse, abriu sua casa para atender a população sem distinção

de cor, classe social, credo religioso (CARNEIRO, 2014, p. 66-68).

De acordo com Cumino (2015, p. 33), a expansão dos terreiros de

Umbanda se iniciou na década de 1930, não só no Rio de Janeiro, mas também em

São Paulo. Era comum, também nessa época, observar nas portarias dos órgãos

públicos responsáveis pela moralidade e segurança pública a citação à Macumba e

ao Candomblé como alvo de proibições. Nesse período de repressão policial, muitos

pais e mães de santo foram enquadrados como réus e seus objetos utilizados nos

cultos foram apreendidos. Para conseguir autorização que permitisse o

funcionamento de um terreiro, era preciso obter uma licença especial fornecida pela

policia, além de ser necessário ficar submetido a várias arbitrariedades policiais.

A Umbanda é uma religião monoteísta. Aqueles que a cultuam acreditam

em um Deus único, onipotente e não representável, que corresponderia a Zambi do

povo Banto e Olorum dos Iorubás. Assim como para os cultos afros, em que a

divindade não entra em contato com a realidade humana, Deus, na Umbanda

também fica fora do universo, e são os orixás e seus exércitos (das sete linhas e

falanges) que atuam junto aos humanos.

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O termo Umbanda também era conhecido até o século XIX pela palavra

―mbanda‖ que é oriundo da língua quimbundo de Angola, significando ―magia‖, ―arte

de curar‖, ―o culto pelo qual o sacerdote curava‖ ou ainda ―o Além, onde moram os

espíritos‖. Há a suposição também de que a palavra Umbanda venha de uma língua

adâmica cujo significado séria ―conjunto das leis divinas‖ ou ―Deus ao nosso lado‖

(BARBOSA JR., 2016).

Ao contrário do Candomblé, na Umbanda, os orixás não incorporam nos

humanos, estes foram substituídos pelos espíritos que vêm de Aruanda (lugar

habitado por espíritos trabalhadores do bem e da caridade) para se manifestarem.

Na Umbanda, cada ―linha‖, sendo que a ―linha‖ é compreendida como uma legião de

espíritos que têm a mesma denominação, como os pretos velhos, e que estão sob o

comando ou regência de um mesmo orixá, é composta de sete legiões, dirigidas por

sete orixás principais que não incorporam no corpo dos adeptos. As linhas da

Umbanda são a Linha de Oxalá; Iemanjá; Xangô; Ogum; Oxossi; Linha das

Crianças, e linha dos Pretos Velhos (CARNEIRO, 2014).

De acordo com Cumino (2015), a Umbanda não possui um livro sagrado

ou uma hierarquia local ou internacional como as religiões cristãs, sendo que cada

terreiro de Umbanda realiza os cultos à sua maneira. Porém, há uma estrutura

interna nos terreiros que costumam seguir o mesmo padrão em todo território

brasileiro. A hierarquia é dividida em zelador (pai ou mãe de santo), mãe/pai

pequeno, médiuns de incorporação, médiuns em desenvolvimento, cambones e

ogãs. O terreiro, geralmente, é dividido em dois espaços físicos: o da corrente e o da

assistência. Todas as pessoas que trabalham na casa se vestem de branco durante

o culto e são chamados de médiuns ou membros da corrente, podendo, em alguns

terreiros, serem chamados de Iaô. Todos os outros, que devem ficar sentados

aguardando sua consulta, são chamados de assistência.

O sacerdote, também chamado de pai de santo ou mãe de santo, ou

ainda de zelador, é responsável por cuidar de todo o funcionamento do culto e da

casa, especialmente no cuidado espiritual dos demais membros do terreiro. É ele

quem delimita as regras da casa, o horário e dia da semana que ocorrerá o culto e

todas as questões pertinentes ao funcionamento do terreiro. A mãe pequena ou pai

pequeno é aquela pessoa que responde pelo terreiro na falta do zelador, e é a

segunda pessoa mais importante no terreiro de Umbanda. Os médiuns de

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incorporação são aqueles que trabalham dando passe e consultas para as pessoas

na assistência, e os médiuns em desenvolvimento são aquelas pessoas que

começaram há pouco tempo no terreiro e estão ainda se desenvolvendo para

posteriormente poderem dar passes e consultas. Os cambones são os médiuns que

não incorporam entidades, mas trabalham ajudando na organização do terreiro,

guiando os consulentes até os médiuns de incorporação, anotam as recomendações

dos guias e servem aos guias os materiais solicitados para a realização dos

trabalhos. E por fim, os ogãs são os responsáveis por tocar os atabaques e cantar

os pontos ou cantigas durante os trabalhos no terreiro (BARBOSA JR, 2016, p. 145-

146).

Os ogãs tanto na Umbanda quanto no Candomblé são as pessoas

responsáveis por tocar os atabaques, também conhecidos como tambores, que é

um dos instrumentos utilizados para se invocar os orixás e os guias espirituais que

vão trabalhar no terreiro realizando os atendimentos. Os ogãs são pessoas que não

incorporam nem orixás e nem entidades, pois precisam permanecer fora de transe

para que os atabaques não parem de ser tocados. No Candomblé, o ato de tocar o

atabaque é destinado exclusivamente aos homens, enquanto que na Umbanda não

há distinção, tanto homens quanto mulheres podem ser ogãs, com a exceção de que

as mulheres durante o período menstrual não tocam os atabaques, realizando nesse

período outras atividades dentro do terreiro. Já os cambones, que é palavra de

origem bantu derivada da palavra Kambondo, em kimbundo, é a pessoa responsável

por assessorar o guia espiritual durante as consultas e também ao médium,

ajudando-o a arrumar seu ponto de trabalho e providenciando os apetrechos e

ferramentas que o guia espiritual geralmente necessita. O termo cambone costuma

ser mais utilizado nos terreiros de Umbanda, e é uma função que também pode ser

desempenhada tanto por homens quanto por mulheres, que assim como os ogãs

devem ser pessoas que não entram em transe para incorporar guias espirituais

durante os trabalhos no terreiro.

Na Umbanda cultuam-se, na maioria dos terreiros, apenas nove orixás.

Na cultura brasileira, estabelecendo uma estreita relação com a tradição religiosa

católica, estabeleceu-se, para cada um dos orixás, uma relação sincrética com

Jesus Cristo, sua mãe e alguns santos. Nesse sentido, Oxalá seria o primeiro orixá

criado por Deus e responsável pela criação da Terra, especialmente os seres

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humanos, e é considerado o pai de todos os orixás e seres humanos, sendo

sincretizado com Jesus. Iemanjá é a orixá das águas salgadas, ou seja, dos mares e

oceanos, e é considerada a mãe de todos os orixás, sendo esta a orixá da

maternidade, sendo sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes. Oxum é a

orixá das águas doces, ou seja, dos rios e cachoeiras, do ouro, do amor e da

fertilidade, sendo sincretizada com Nossa Senhora da Conceição ou Nossa Senhora

Aparecida. Iansã é a orixá dos ventos, das tempestades e dos mortos, e é

considerada uma orixá guerreira, sendo sincretizada com Santa Barbara. Xangô é o

orixá das pedreiras, dos trovões do fogo, da justiça e da sabedoria, sendo

sincretizado com São João Batista, São Pedro ou São Jerônimo. Ogum, por sua vez,

é o orixá das guerras, das lutas, das batalhas, das estradas, da abertura de

caminhos, do ferro, do aço, da descoberta, da tecnologia, e foi sincretizado com são

Jorge. Oxossi é o orixá das matas, da caça e da colheita, da fartura, da abundância

e da sabedoria, sincretizado com São Sebastião. Nanã é a orixá das águas paradas

e escuras, lagos e lagoas, pântanos, lodos, poços, lama e do barro, sendo a orixá

mulher mais velha sincretizada com Santa Ana. E, por fim, Obaluaê/Omulu sendo

considerado o orixá da vida e da morte, da saúde e da doença, dos hospitais,

guardião do cemitério e o orixá da cura, sincretizado com São Lazaro ou São roque

(BARBOSA JR, 2016, 50 - 58).

A Umbanda pode ser caracterizada como um agregado de terreiros que

não formam um conjunto unitário. Não há, como na Igreja Católica, um centro bem

estabelecido que hierarquize e vincula todos os agentes religiosos. Cada pai de

santo é senhor no seu terreiro, não havendo nenhuma autoridade superior, por ele

reconhecida, a exceção do seu próprio orixá. Há, portanto, uma multiplicidade de

terreiros autônomos, embora estejam unidos pela mesma crença, havendo também

um esforço permanente por parte dos lideres umbandistas no sentido de promover

uma unidade tanto doutrinária quanto organizacional (CRUZ, 2010, p. 47).

Vaini (2008, p.101) afirma que a Umbanda impõe ao iniciado na religião o

aprendizado de uma séria de conhecimentos e grandes responsabilidades, mas a

forma como esses conhecimentos são passados dos mais velhos, pais e mães de

santo ou os filhos de santo com mais tempo de religião, aos recém iniciados pode

variar de um terreiro para outro. Esses conhecimentos podem ser adquiridos tanto

através da transmissão oral dos saberes, além de adquiri-los por meio da

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observação e da convivência com os mais velhos de religião, como também pode

ocorrer de em alguns terreiros a transmissão do conhecimento através da escrita,

usando-se para isso apostilas elaboradas pelo próprio zelador ou zeladora.

De acordo com Vaini (2008, p. 101-102), ainda, o uso da escrita na

Umbanda não consiste em um constituinte identitário da religião, mas sim como uma

espécie de projeto de um setor intelectualizado e com familiaridade com a escrita

para criar uma identidade letrada para a religião. Nesse sentido, o pesquisador se

refere a uma religião desenvolvida por uma classe de médiuns intelectualizados,

buscando inserir a religião em uma espécie de prática mística moderna, que tem

como base o texto escrito. Segundo Vanini, também, o esforço para inserir a palavra

escrita na Umbanda, visa alcançar o objetivo de construir uma estratégia autorizada

de disseminação doutrinária. Ou seja, revela-se como busca de desenvolver e

divulgar uma teologia e uma exegese umbandista através da palavra escrita.

De acordo com o trabalho desenvolvido por Pinheiro (2009, p. 5), é

possível afirmar que o que levou os intelectuais umbandistas a produzir livros e criar

uma cultura tradicionalmente escrita, publicando codificações doutrinárias, manuais

de condução dos trabalhos, catecismos, foi a busca por aceitação e legitimação

social, visando superar os estigmas sociais que vêm marcando a Umbanda desde a

sua origem, tais como a marginalização da religião e acusações de transgressão,

ignorância e atraso social e cultural.

Sobre essa questão, de acordo com Brito (2013), apesar das oposições, a

produção escrita continua presente na Umbanda, dividindo espaço com a oralidade,

criando inclusive uma imprensa umbandista, com boletins e periódicos destinados a

registrar informações, eventos, notícias e discussões referentes à religião. Não

podemos nos esquecer também da divulgação através das mídias digitais, como

páginas em redes sociais exclusivas de umbandistas que divulgam os mais diversos

ensinamentos referentes à religião. Esses não deixam de ser um registro escrito

atual e praticamente instantâneo acessível a todos os adeptos ou não da religião.

Contudo, é importante destacar que a chegada da escrita, na religião, não

substituiu a oralidade, pois mesmo em culturas escritas, a oralidade ainda ocupa

uma parcela considerável da comunicação cotidiana. Considerando isso, podemos

afirmar que as novas formas de comunicação somam-se às anteriores e não as

substituem (BRITO, 2013, p. 494).

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Como uma das formas de se explicar ou justificar acontecimentos do

mundo ao seu redor, as sociedades de tradição oral utilizam-se do uso dos mitos,

fábulas e histórias. Com as religiões afro-brasileiras não seria diferente. Em

consonância com Queiroz (2013, p. 499), podemos afirmar que os mitos são formas

de explicar a realidade, sendo os mesmos uma forma de narrativa que se perde no

tempo e representam um importante meio de reprodução, preservação e legitimação

dos saberes e costumes de um povo, e que é na e pela prática da oralidade que

essas narrativas se originam e se propagam.

O pesquisador afirma, ainda, que, nos diversos cultos africanos e afro-

brasileiros, os mitos justificam os papéis e atributos dados às divindades e que,

através deles, são explicados fatos do dia-a-dia e legitimados rituais. Isso ocorre e é

marcado de diferentes maneiras, em diferentes aspectos da religiosidade

umbandista: no modo de se iniciar um integrante da religião, passando pelos

oráculos e sacrifícios, pelas coreografias das danças sagradas, pelas cores e

objetos usados nos rituais. Nos terreiros brasileiros, tudo decorre dos mitos

herdados dos cultos originários da África.

A história dos orixás, por exemplo, é contada através de uma diversidade

de mitos que trazem narrativas de tempos primordiais, que se referem ao surgimento

do mundo, do homem e dos próprios orixás. Estes mitos devem ser aprendidos

pelos pais e mães de santo, pois é com base neles que se desenvolve todo o corpo

doutrinário das religiões de matriz africana (QUEIROZ, 2013, p. 507).

Conforme Oliveira (2008), como uma religião nova, podemos considerar

que os valores fundamentais da Umbanda são ancestrais, com base em cultos afros,

nativos, kardecistas, católicos, ainda, um pouco de cultos orientais, como o budismo

e hinduísmo. A religião resgata esses valores ancestrais, e renovam suas

interpretações, ressignificando seus símbolos, que, sincreticamente, em uma

concreta experiência de hibridismo cultural se acomodam e assumem uma

identidade nova e única.

Nesse sentido, como buscamos explicar nesta seção, a Umbanda se

consolidou como religião agregando em si fundamentos de matriz africana ao

realizar o culto aos orixás e sua complexidade cultural, e culto aos pretos velhos e

caboclos que vieram substituir o culto os antepassados; além de agregar em si

fundamentos indígenas com a sabedoria ancestral indígena em seus aspectos

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culturais, espirituais, medicinais e ecológicos, além do culto aos caboclos. Do

Kardecismo, a Umbanda agregou os trabalhos de cura, os passes e as doutrinas

que se assemelham aos realizados no Kardecismo, além do culto aos médicos

espirituais; das religiões orientais a Umbanda sincretizou os estudos, compreensão

e aplicação de conceitos como chakras e outros, além do culto da Linha do Oriente e

Linha Cigana (OLIVEIRA, 2008, p. 60).

Os chakras segundo a cultura hindu são centros de absorção,

exteriorização e administração das energias do corpo e do espírito, o que os hindus

descrevem como duplo etéreo. É considerado que os chakras têm entre as suas

funções a absorção de energias do ambiente onde se encontra o individuo. Outra

função dos chakras seria a administração e processamento das energias

absorvidas, pois o corpo está em constante troca de energia com o ambiente ao seu

redor. A cultura hindu considera que o ser humano possui sete chakras espalhados

pelo corpo. A Linha Cigana é uma das mais recentes na Umbanda, sendo

incorporada a religião possivelmente na década de 1980, podendo ser considerado

como um grupo de espíritos ligados ao povo cigano que povoou principalmente o

Brasil e que por sintonia com a religião foram trabalhar como guias espirituais nos

terreiros de Umbanda. Há também o uso do baralho cigano principalmente na

Umbanda, onde se usa o mesmo tipo de baralho usado pelos ciganos para

consultas espirituais de diversas finalidades. Já na Linha do Oriente, por sua vez, há

sete falanges que são compostas em sua maioria por entidades de origem oriental.

Essas falanges são compostas por espíritos de pessoas que viveram em países

orientais como Índia, Japão, países árabes, Mongólia, dentre outros (OLIVEIRA,

2008).

Um fator importante que devemos salientar neste trabalho é o estigma

construído em relação às religiões de matriz africana, que permeiam as mesmas

desde o período colonial até os dias atuais. De acordo com Goffman (2004, p. 5), o

termo estigma surgiu ainda na Grécia antiga, quando ―os gregos, que tinham

bastante conhecimento de recurso visuais, criaram o termo estigma para se

referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de

extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.‖ Os sinais

eram feitos com cortes ou fogo para avisar que a pessoa marcada era um escravo,

um criminoso, traidor ou ainda uma pessoa ritualmente marcada que deveria ser

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evitada. Já na Era Cristã, o termo estigma passou a ter dois níveis: o primeiro nível

referia-se a sinas corporais da graça divina que tomavam a forma de flores em

erupção sobre a pele; o segundo referia-se a sinais corporais de distúrbio físico.

Ainda de acordo com o pesquisador, atualmente, o termo estigma será

usado em referencia a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso

para isso é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que

estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem. Podemos mencionar

três tipos de estigmas nitidamente diferentes entre si. O primeiro diz respeito às

abominações do corpo, ou seja, as várias deformidades físicas. Em segundo as

culpa de caráter individual, percebidos como vontade fraca paixões tirânicas ou não

naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, distúrbio mental, prisão, vício,

alcoolismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. E

finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser

transmitidos através de linguagem e contaminar por igual todos os membros de uma

família.

Para Goffman (2004, p. 8), por definição, acreditamos que alguém com

um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos

de discriminações, através das quais efetivamente reduzimos suas chances de vida.

Construímos uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo

que ela representa. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado,

bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e

representação. O que se sabe é que os membros de uma categoria de um estigma

particular tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos membros derivam

todos da mesma categoria. A ideia de estigma foi tratada aqui para elucidar acerca

do estigma social que foi construído em torno das religiões de matriz africana e seus

adeptos, considerando que os mesmo são categorizados e recategorizados dentro

de estigmas sociais desde o período colonial, o que trouxe conflitos religiosos, uma

não aceitação social, e uma tentativa constante de associar tais religiões e seus

adeptos a termos muitas vezes pejorativos. O estigma social que permeia as

religiões de matriz africana e seus adeptos se arrasta desde o período colonial e

início da república.

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Tendo apresentado esse breve percurso histórico sobre o nascimento da

Umbanda como religião de matriz africana no Brasil, na próxima seção, passemos a

uma reflexão sobre as bases históricas, sociais e culturais do Candomblé.

2.3 As bases histórico-sociais do Candomblé

A palavra Candomblé consta como uma modificação fonética de

―Candonbé‖, que é um tipo de atabaque usado pelos africanos angolanos; ou ainda

como uma derivação de ―Candonbidé‖, que significa ―ato de louvar, pedir por alguém

ou por alguma coisa‖ (BARBOSA JR, 2016).

O Candomblé herdou das crenças africanas a ideia de que a religião diz

mais respeito à sociedade do que ao indivíduo. Todas as esferas da vida, mesmo a

pública, são abarcadas pela religião, não havendo separação entre o sagrado e o

profano. Há também a crença em uma existência após a morte e culto aos mortos,

mas a crença na vida após a morte não significa necessariamente o alcance da

felicidade (BRITO, 2013).

De acordo com os estudos realizados por Brito (2013, p. 488), o

Candomblé herdou das crenças africanas, também, a fé em um ser supremo, que

pode ser caracterizado de muitas formas, conforme a sociedade e a região. Em

muitas sociedades, cultos lhe são dirigidos, em outras não. Em algumas sociedades,

o ser supremo está próximo ao ser humano, já em outras está distante; da mesma

forma que em alguns locais este ser é responsável direto pela criação do mundo,

enquanto em outros locais o ser supremo teria atribuído a criação aos orixás.

Brito (2013, p. 488-489), esclarece, ainda que, no Candomblé, o ser

supremo é chamado pelos iorubás de Olodumarê, pelos Jejes de Mayu e Lissa, já

pelos bantos, de Zambi. O Candomblé se fundamenta no culto aos deuses (orixás,

inquices, voduns) que são oriundos das quatro forças da natureza: água, ar, fogo e

terra. Sendo estes provenientes dessas forças, os deuses são forças energéticas e

não possuem corpo material. A manifestação dessas forças se dá através do corpo

dos adeptos do Candomblé. Cada ser humano possui também a essência de uma

dessas forças da natureza, portanto, a manifestação do orixá/Inquice no adepto

nada mais é do que a manifestação daquilo que já reside no ser humano.

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De acordo com os conhecimentos estabelecidos e ensinados no

Candomblé, o universo possui dois níveis existenciais, o Orum (mundo espiritual) e o

Ayê (mundo material), sendo que o Orum é a morada dos deuses e dos espíritos, já

o Ayê é a morada dos humanos e todos os seres vivos, e é onde a manifestação dos

deuses se dá através da incorporação.

O Candomblé se expressa nos terreiros ou roças onde se cultuam os

orixás/inquices. O chefe maior do terreiro de Candomblé é o Babalorixá ou Ialorixá

nos terreiros de nação Ketu, ou Tateto/Mameto nos terreiros de Nação Angola. Para

os adeptos do Candomblé, os lideres religiosos são detentores de uma força

sobrenatural chamada Axé. Essa é a força ou princípio propulsor do universo, ou

seja, é ela quem movimenta o universo. É no terreiro que o orixá/inquice pode ser

chamado e assim estabelecer um relacionamento com as pessoas que buscam

ajuda (SILVA, 2005).

No Candomblé, a forma de se cultuar os orixás (seus nomes, cores,

preferências alimentares, louvações, cantos, danças e música) foi distinguida pelos

africanos segundo modelos de ritos chamados nação, numa alusão significativa de

que os terreiros possuíam também uma identidade grupal (étnica) como nos reinos

africanos, além de tentarem reproduzir os padrões africanos de culto (SILVA, 2005).

Os principais ritos do Candomblé são o rito Jeje-Nagô que abrange quatro

nações tendo como ponto de apoio cultural os sudaneses. As nações Jeje são Jeje-

fon e Jeje-marrin, e as nações nagôs são o Keto e o Ijexá. Nesses ritos, são

cultuados os orixás (nação keto), voduns (Jeje-fon, Jeje-marrin e Ijexá), os erês

(espíritos infantis) e caboclos (espíritos indigenas). Na nação keto onde os orixás

são cultuados o culto aos caboclos e o sincretismo com os santos católicos estão

sendo eliminados, assim como os atabaques são percutidos com pequenas varas

chamadas de aguidavis, enquanto nas demais nações os atabaques são percutidos

com as mãos. Já na nação Angola, os orixás cultuados são denominados como

Inquices, sendo que, cada orixá cultuado na nação Keto tem um correspondente

Inquice na nação Angola (SILVA, 2005).

Segundo Silva (2005, p. 31), na nação Angola que se apóia no rito banto

se cultua os inquices, os vunges (espíritos infantis) e os caboclos. Os atabaques são

percutidos com as mãos. Pode-se dizer que o Candomblé de nação angola é o mais

popular no Brasil, em virtude dos bantos terem sido a maioria dos escravos africanos

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desembarcados em solo brasileiro. No final do século XIX, o Candomblé Angola,

sempre aberto às influências do catolicismo e das religiões indígenas, recebeu nome

de Cabula no Espírito Santo, Macumba no Rio de Janeiro e Candomblé de Caboclo

na Bahia.

De acordo com Brito (2013, p. 495), assim como as demais religiões afro-

brasileiras, o Candomblé não possui um texto sagrado, como registro escrito e

canonizado como base fundamental e universal do saber religioso. Ao longo da

história das religiões de matriz africana, observou-se um esforço por preservar a

oralidade como forma de transmissão dos saberes, conservando assim as raízes

africanas. O autor ressalta, porém, que houve nos terreiros, desde longa data, a

manutenção de arquivos e fotografias, notas pessoais e manuscritos para uso

particular e interno do terreiro.

Brito (2013) afirma, ainda, que, para o Candomblé, o registro escrito

ocasiona um aprendizado descontextualizado, que separa o conhecimento da

experiência, e na religião é preconizado à aquisição do saber através das

experiências vividas no terreiro. Por isso, são considerados inadequados os

registros escritos para se passar os ensinamentos da religião para os adeptos. Outro

fator para a rejeição do uso da escrita é o fato de que estes possibilitam uma livre

circulação das informações que acabam por violar os limites que são caros a

religião, o qual os candomblecistas chamam de segredo ou fundamentos religiosos

que são acessíveis apenas aos iniciados, sendo também que quanto mais tempo de

iniciado na religião maior a quantidade de fundamentos adquiridos.

Sobre a questão, segundo Castillo (2010, p. 41), há terreiros que fazem

uso da escrita de modo restrito a determinadas situações, como a escrita de cartas

com pedidos às divindades, em inscrições na porta do terreiro com o nome dado ao

terreiro e avisos. Há também situações em que, nas festas de confirmação das

pessoas iniciadas para algum cargo no terreiro, usam-se faixas com a indicação do

seu posto naquele terreiro e o nome do orixá ao qual é consagrado.

De acordo com Brito (2013, p. 488), por sua vez, a tradição oral é um

complexo sistema semiótico em que não somente a fala serve à comunicação, mas

também os sons da natureza e dos instrumentos musicais, o ritmo da dança, as

expressões corporais, até mesmo o silêncio, os símbolos, as cores, os saberes,

todos esses elementos devem ser compreendidos no âmbito da comunicação. Para

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o pesquisador, a tradição oral é um processo dinâmico, no qual a experiência vivida

é organizada e reorganizada por meio da palavra e do jogo simbólico, que por sua

vez, orientam o comportamento, reflete os costumes, o modo de pensar.

Em culturas em que há tradição oral e escrita, a oralidade também

cumpre papel importante. Isso pode ser observado em diferentes tradições

religiosas. Podemos observar nesse sentido que, pela palavra, o deus hebraico criou

o mundo. Alem disso, pela palavra, o deus egípcio Ptá produz e dirige todos os

deuses, homens e demais criaturas vivas.

É possível perceber, portanto, que é pela palavra oral que diferentes

tradições africanas reconhecem e atribuem uma origem divina à sua realidade física.

Nessas tradições, a palavra produz vibração e movimento, vida e ação; a palavra

pode criar ou destruir por meio de sua força energética, sobrenatural. Desse modo, a

palavra oral é portadora do axé que, para os africanos e afro-brasileiros, é a força

vital, é também a força que cura, que restaura o equilíbrio e, por conta disso, é o

agente ativo da magia africana e afro-brasileira (QUEIROZ, 2013, p. 506).

A formação do Candomblé no Brasil se deu principalmente a partir da

segunda metade do século XIX, e foi na Bahia do século XIX que ficou estabelecido

o modelo básico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a

tradição, o Ilê Iya Nassô – a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecido como

Candomblé do Engenho Velho ou Casa Branca – teria sido o primeiro a celebrar

diferentes deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria

alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a consolidação de novas

identidades africanas em terras brasileiras. Na segunda metade do século XIX,

abundam evidências sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos

ritualmente misturados no candomblé. Com o correr dos anos, observa-se um

processo de nacionalização das bases religiosas, mesmo se a liderança ainda

continuava predominantemente africana. (PRANDI, 2001)

Diferente da África onde eram cultuados mais de 400 orixás, aqui no

Brasil esse número caiu basicamente para 16 orixás cultuados nos terreiros de

Candomblé. Em África, acreditava-se que forças sobrenaturais impessoais, espíritos,

ou entidades estavam presentes ou corporificados em objetos e forças da natureza.

Tementes dos perigos da natureza que punham em risco constante a vida humana,

perigos que eles não podiam controlar, esses antigos africanos ofereciam sacrifícios

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para aplacar a fúria dessas forças, doando sua própria comida como tributo que

selava um pacto de submissão e proteção e que sedimentam as relações de

lealdade e filiação entre os homens e os espíritos da natureza. Muitos desses

espíritos da natureza passaram a ser cultuados como divindades, mais tarde

designados orixás, detentores do poder de governar aspectos do mundo natural,

como o trovão, o raio e a fertilidade da terra, enquanto outros foram cultuados como

guardiões de montanhas, cursos d'água, árvores e florestas. Cada rio, assim, tinha

seu espírito próprio, com o qual se confundia, construindo-se em suas margens os

locais de adoração, nada mais que o sítio onde eram deixadas as oferendas.

(PRANDI, 2001).

Na ritualística do Candomblé são utilizados alguns instrumentos, que

auxiliam nas funções do dia a dia do terreiro. O Balafon tem forma de trapézio e um

som melódico, ativo e excitante, o Balafon é confeccionado em barras de madeira

que produzem notas quando tocadas. As barras são dispostas paralelamente e sob

ele coloca-se cabaças de vários tamanhos para criar um sistema de amplificação do

som. As barras são feitas de uma madeira dura chamada gouene-yori. Os fios que

seguram as barras são feitos de pele de cabra ou cervo, que é mais resistente. O

Balafon é tocado em cerimônias festivas em homenagem aos orixás, acompanhado

de outros instrumentos. O Cawbell é de origem africana e de nome original ―gã‖,

recebeu o nome de cowbell dado pelos americanos. O Cowbell também é usado no

Candomblé como instrumento de marcação. O cowbell bate-se com uma baqueta na

extremidade fechada e na extremidade aberta. (PRANDI, 2001).

O pesquisador nos informa que, o Xequerê tem sua origem na África há

séculos, como um chocalho ou tambor. Eles são feitos com uma cabaça coberta por

um trançado de pedras feitas de argila ou miçanga, permitindo que o instrumento

tenha um som único. Alguns Xequerês têm um orifício na parte superior para que

possa produzir o som baixo do tambor. O agogô é um instrumento musical que foi

desenvolvido na África, e possivelmente feito pelas tribos Bantu após a sua

migração para a África Ocidental. Ele é usado na música nigeriana yorubá, mas

suas origens também mostram que o agogô com sinos duplo ou único feito de

bronze, também teve uma finalidade prática. O Agogô, tocado para marcar o

Candomblé, também de tradição Alaketo, chama-se Gan. E por fim, mas não menos

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importante, há o atabaque, instrumento utilizado em todas as ocasiões do

Candomblé.

O atabaque é feito em madeira e aros de ferro que sustentam o couro.

Nos terreiros de Candomblé, os três atabaques utilizados são chamados de "rum",

"rumpi" e "le". O rum, o maior de todos, possui o registro grave; o do meio, rumpi,

tem o registro médio; o lé, o menor, possui o registro agudo. O trio de atabaques

executa, ao longo do xirê, uma série de toques que devem estar de acordo com os

orixás que vão sendo evocados em cada momento da festa. Para auxiliar os

tambores, utiliza-se um agogô; em algumas casas tocam-se também cabaças e

afoxés. Em relação ao toque do atabaque, há certa diferença entre a Umbanda e o

Candomblé. Na Umbanda, tanto homens quanto mulheres podem receber o cargo

de ogãs e, portanto, tocarem os atabaques durante as cerimônias religiosas,

considerando que as mulheres durante o período menstrual devem se abster dessa

função. Enquanto que no Candomblé, a função de ogã é dada somente aos homens.

As festas de candomblé, quando são realizadas as celebrações públicas de canto e dança, as chamadas cerimônias de barracão, durante as quais os orixás se manifestam por meio do transe ritual, são precedidas de uma série de ritos propiciatórios, que envolvem sacrifício de animais, preparo das carnes para o posterior banquete comunitário, fazimento das comidas rituais oferecidas aos orixás que estão sendo celebrados, cuidado com os membros da comunidade que estão recolhidos na clausura para o cumprimento de obrigações iniciáticas, preparação da festa pública e finalmente a realização da festa propriamente dita, ou seja, o chamado toque. Preparar o toque inclui cuidar das roupas, algumas costuradas especialmente para aquele dia, que devem ser lavadas, engomadas e passadas a ferro (é sempre uma enormidade de roupas para engomar e passar!); pôr em ordem os adereços, que devem ser limpos e polidos; preparar as comidas que serão servidas a todos os presentes e providenciar as bebidas; decorar o barracão, colhendo-se para isso as folhas e flores apropriadas. (PRANDI, 2001).

Num terreiro de Candomblé é costume dos adeptos participarem dos

preparativos dos rituais religiosos. Todos comem no terreiro, ali se banham e se

vestem. Às vezes, dorme-se no terreiro noites seguidas, e durante a matança, os

orixás são consultados por meio do jogo oracular para se saber se estão satisfeitos

com as oferendas, e podem pedir mais. De repente, então, é preciso parar tudo e

sair para providenciar mais um cabrito, mais galinhas, mais frutas, ou seja, lá o que

for. Em qualquer dos momentos, orixás podem ser manifestar e será preciso cantar

para eles, se não dançar com eles. Os orixás em transe podem, inclusive, impor

alterações no ritual. (PRANDI, 2001).

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O corpo, na ótica do candomblé, extrapola a simples condição física ou estética, pois é o principal elemento de ligação entre o homem e o sagrado, visto como a morada de orixá e a porta de comunicação entre os homens e as divindades. O corpo precisa estar saudável, equilibrado, protegido, ―fechado‖. para que possibilite condições favoráveis para realizações de rituais litúrgicos, além do próprio equilíbrio da comunidade, já que o corpo, na cosmovisão dos praticantes de candomblé, é também um local propício para a transmissão de axé, energia vital. O aspecto central que merece ser destacado é que colaborar com alguém do grupo traz também o significado subjacente de retribuição pela atenção recebida anteriormente ou pelos préstimos em algum ritual já realizado. Nas relações desenvolvidas em um Terreiro não cabe a cobrança monetária por um auxílio, porém o ―pagamento‖ deve ser revertido em ajuda no caso de necessidade premente de algum membro ou em alguma atividade relacionada com aqueles que já prestaram apoio em outras ocasiões, seja dentro ou fora do Terreiro. (MANDARINO e GOMBERG, 2013).

É importante ressaltar que para os adeptos tanto da Umbanda quanto do

Candomblé, o terreiro é muito mais do que um local de culto e/ou prática religiosa, o

espaço destinado ao culto aos orixás é uma extensão da própria casa e da família

do adepto, e é um espaço onde todos se ajudam mutuamente, não só no que diz

respeito às práticas religiosas, mas na vida cotidiana de todos os frequentadores do

terreiro. Os adeptos buscam se ajudar no âmbito espiritual/religioso, financeiro,

amoroso, social, pois para o umbandista ou candomblecista, assim como era para

os africanos antes da vinda deles para o Brasil, o social e tão ou até mais importante

que o individual, e se o coletivo não está em ordem, não está indo bem, o individual

também não poderá se desenvolver.

Diante do exposto nas seções 2.2 e 2.3, podemos perceber, em síntese,

que há aspectos que aproximam e distanciam as origens e a evolução da Umbanda

e do Candomblé, como religiões de matriz africana no Brasil. Entre os aspectos

comuns, destacamos: o culto aos mortos, o culto à natureza, a crença na

reencarnação. O uso da pemba é algo característico tanto na Umbanda quanto no

Candomblé, tanto para fins de limpeza espiritual como para riscar pontos dos guias

espirituais. As duas religiões herdaram dos povos africanos o culto aos orixás,

mesmo que haja distinção no culto aos mesmos, como por exemplo, ao contrário do

Candomblé, na Umbanda, os orixás não incorporam nos humanos, estes foram

substituídos pelos espíritos que vêm de Aruanda. As duas religiões são monoteístas

e não possuem um livro sagrado, sendo religiões de tradição majoritariamente oral,

além de não possuírem uma hierarquia local ou internacional como as religiões

cristãs, sendo que cada terreiro realiza os cultos à sua maneira. A Umbanda e o

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Candomblé herdaram das crenças africanas a ideia de que a religião diz mais

respeito à sociedade do que ao indivíduo. Todas as esferas da vida, mesmo a

pública, são abarcadas pela religião, não havendo separação entre o sagrado e o

profano.

Como forma de pavimentar o percurso a ser trilhado em busca de cumprir

o objetivo geral desta pesquisa, passemos, agora, a uma apresentação de

elementos que fundamentam os parâmetros legais de direito à liberdade de crença

de culto religioso no Brasil.

2.4 Parâmetros legais para o direito à liberdade de crença e de culto

No que diz respeito às questões legais envolvendo as práticas religiosas

no Brasil, devemos observar os documentos apresentados a seguir, em uma ordem

relativamente cronológica.

De acordo com o Relatório sobre Intolerância Religiosa do Ministério dos

Direitos Humanos (2018), em Pernambuco, na década de 1930, durante o governo

de Agamenon Magalhães, os templos das religiões de matriz africana, que na época

eram chamados de Catimbós, Xangôs, Macumba, Baixa Magia, foram fortemente

perseguidos pela policia civil, por meio do DOPS, Delegacia de Ordem Política e

Social.

O Código Civil Brasileiro vigente, naquele momento, era o estabelecido

pelo decreto de 11 de outubro de 1890, que criou mecanismos reguladores de

combate a feitiços, por meio dos artigos 156, 157 e 158 que se referem

respectivamente à prática ilegal da medicina; ao estabelecimento da prática do

Espiritismo como crime, bem como à prática da magia, da cartomancia, do uso de

talismãs e a subjugação a credulidade pública; e a proibição da prática do

curandeirismo. É importante destacar que, à época, havia uma distinção entre o

―alto‖ espiritismo e o ―baixo‖ espiritismo.

Naquele contexto, os templos espíritas kardecistas, também chamados de

Espiritismo Científico, tinham permissão para realizar suas atividades, obtendo

tratamento diferenciado dos terreiros de Umbanda e Candomblé, o que levou a

perseguição das religiões de matriz africana, seus templos e objetos de cultos,

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chegando ao ponto de os adeptos dessas religiões serem presos e achincalhados

pela imprensa local.

O Código Penal Brasileiro (1940), em seu artigo 208, estabelece a pena

de detenção de um mês a um ano, ou multa, àquele que ―escarnecer de alguém

publicamente, por motivo de crença ou função religiosa‖ ou ―vilipendiar publicamente

ato ou objeto de culto religioso‖. O mesmo Código Penal, em seu artigo 140,

estabelece que aquele que pratica o crime de injúria mediante a utilização de

elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa

idosa ou portadora de deficiência será punido com a pena de reclusão de um a três

anos e multa

No âmbito da Organização das Nações Unidas, o artigo 2 da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções de 1981 assegura que ―1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicções por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares. 2. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções toda distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais. (MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS, 2018).

No Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), em seu

artigo 20, pode-se encontrar a seguinte declaração sobre Direitos Humanos: ―1. Será

proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra. 2. Será proibida por lei

qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à

discriminação, à hostilidade ou à violência.‖

Fica claro, diante do artigo em destaque que, nesse antigo e importante

pacto internacional, do qual o Brasil é signatário, o direito à fé e ao culto religioso se

inscreve com base no reconhecimento da possibilidade de ações, na vida social, que

signifiquem apologia ao ódio religioso e que dessa, por sua vez, pode culminar em

atos de discriminação, hostilidade e violência. Podemos inferir, a partir da leitura

desse estatuto legal internacional, que a liberdade religiosa pode ser atacada por

formas de violência psicológica, não necessariamente física.

Ainda no cenário internacional, em termos de parâmetros que

fundamentam o combate universal à intolerância e discriminação religiosa,

encontramos, no âmbito da Organização das Nações Unidas, a Declaração sobre a

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Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na

Religião ou nas Convicções (1981), em seu artigo 2, assegura que:

―1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicção por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares; 2. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções toda distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais. (BRASIL, 2018).

Voltando ao cenário brasileiro, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei

12.288/2010) dispõe, em seu artigo 24, inciso VIII, que o direito à liberdade de

consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana

compreende ―a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em

face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em

quaisquer outros locais‖.

Importante no cenário da presente pesquisa esclarecer a diferença entre

intolerância religiosa e racismo religioso. De acordo com Nascimento (2016, p. 1),

―Normalmente nos referimos aos ataques contra o candomblé e a umbanda como uma das manifestações da intolerância religiosa. Entretanto, entendemos que o nome não consegue descrever com precisão o fenômeno. Os ataques são expressões tenazes de uma das manifestações do racismo, que persegue as heranças religiosas que têm influências do povo negro, trazido à força para o nosso país. Por essa razão, algumas pessoas têm se referido às perseguições como racismo religioso. Essa modalidade específica do racismo engloba práticas violentas que vão da demonização das crenças religiosas de umbandistas e candomblecistas, passando por ofensas morais a esses religiosos, chegando a violências físicas e, em alguns casos, à morte de pessoas que, nos terreiros, praticam sua crença‖.

A Revista Calundus, que é publicada pelo Grupo de Estudos sobre

Religiões Afro-brasileiras, da Universidade de Brasília (UnB) lançou um número

temático acerca do racismo religioso, mas apontando a convivência desse com os

termos intolerância e discriminação religiosa, na apresentação do dossiê temático

(CALUNDU, 2018). A Revista nos trás que o racismo religioso contra religiões afro-

brasileiras é um processo facilmente percebido por duas vias. A primeira, quando

são observados ataques diretos a praticantes de religiões como Umbanda,

Candomblé e Tambor de Mina, dentre outras, que vêem seus terreiros serem

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incendiados, suas/seus integrantes apedrejadas/os em vias públicas, etc. Esses atos

estão diretamente ligados ao ódio contra essas religiões, que se diferenciam em

práticas e crenças da matriz religiosa mais popular do Brasil. A segunda via em que

o racismo religioso comumente se apresenta contra religiões afro-brasileiras está

relacionada, justamente, com o fato de que essas religiões estão associadas com

uma matriz geográfica africana, com uma racialidade negra. Não são todas as

religiões não hegemônicas aquelas que vêem adeptas e adeptos serem

violentadas/os. [...] Não são todas que são satanizadas e atacadas como práticas de

magia para o mal – não coincidentemente chamada de magia negra. Pelo contrário,

isso ocorre exclusivamente contra a afrorreligiosidade e suas manifestações em solo

brasileiro. ―O ódio não é, portanto, contra religiosidades discrepantes, mas contra

religiões afro-orientadas‖. (CALUNDU, 2018, p. 2).

Em síntese, frente ao exposto no decorrer do presente capítulo,

esperamos ter tornado claro como o contexto social e cultural do Brasil colonial e

republicano possibilitaram o surgimento de religiões afro-brasileiras, Umbanda e

Candomblé, e como o entrelaçamento das culturas européias, africanas e indígenas

possibilitaram esse novo movimento religioso e cultural no país. Além disso, como a

Umbanda e o Candomblé se fixaram como religiões em um país culturalmente plural,

porém, resistente com relação a expressão das crenças religiosas provindas da

África, vindas para cá com os povos africanos escravizados. Com base nesse

percurso argumentativo, pretendemos apresentarão leitor deste relatório de

pesquisa alguns marcos, de natureza sócio-histórica e cultural, que sinalizam onde e

quando se iniciou o processo de repressão e de intolerância ao movimento afro-

brasileiro e indígena de instituição de suas práticas religiosas, que contrariavam

normas e valores impostos ao Brasil colônia, por uma Europa cultural conservadora

e socialmente branca, cristã, patriarcal, escravista.

Nesse sentido, buscamos apresentar o surgimento da Umbanda e do

Candomblé como religiões que nascem e se moldam ao contexto social e cultural do

Brasil, em uma sociedade marcadamente heterogênea que foi se formando no

decorrer do período colonial e republicano. Buscamos explicitar argumentos

baseados em pesquisas que nos permitem compreender o processo de aceitação ou

de repressão a esses dois movimentos religiosos e de que forma as mesmas

resistiram de forma a conseguir manter sua história, suas tradições, seus valores e

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crenças no Brasil do século XXI. E, nesse sentido, os estatutos legais que garantem

a essas religiões e seus praticantes o direito à liberdade de crença e de culto.

No próximo capitulo, apresentaremos os fundamentos de natureza

sóciodiscursiva que orientam este trabalho de pesquisa. Nesse capítulo,

apresentaremos as noções de linguagem, de língua, de enunciação, de discurso e

de texto, que fundamentam o a pesquisa. Além disso, as concepções de textos

jornalísticos, de processo de Referenciação e de Metaforização com as quais

trabalhamos no processo de constituição e de análise de dados.

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Capitulo 3

FUNDAMENTOS SOCIODISCURSIVOS

3.1 Concepção de Linguagem, Língua e Enunciação

No capítulo anterior, foram contextualizados os processos sociais e

históricos nos quais as religiões afro-brasileiras Umbanda e Candomblé se

desenvolveram no Brasil e como o encontro de diferentes culturas, européia,

africana e indígena, proporcionou o contexto para que essas religiões surgissem e

se fixassem no país.

Em função do objeto de estudo desta pesquisa, neste momento,

passamos a apresentar as concepções teóricas que orientam o nosso trabalho.

Entre essas, a concepção de linguagem, língua e enunciação; de discurso e de

texto, mais precisamente, de um gênero do discurso jornalístico, a notícia. Além

disso, apresentamos as concepções teóricas com que trabalhamos para analisar o

processo de referenciação e de metaforização no contexto da pesquisa.

Ao propor a realização de uma pesquisa que se estrutura na busca de

compreender como se dá o processo de Referenciação das religiões de matriz

africana, Candomblé e Umbanda, na mídia jornalística brasileira, consideramos

importante explicitar que reconhecemos, de acordo com Bakhtin, que a vida humana

e, portanto, a linguagem são marcadas pelo princípio do dialogismo.

Como afirma CAVALCANTE (2009, p. 33), para Bakhtin, a linguagem e o

pensamento, a consciência, do homem estruturam-se de forma, necessariamente,

dialógica, ou seja, intersubjetivamente.

Nesse sentido, Bakhtin(1979) defende que:

Natureza dialógica da consciência, natureza dialógica da própria vida humana. A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo, o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal.As imagens reificadas (coisificadas, objetificadas) para a vida e para a palavra são profundamente inadequadas. O modelo reificado de mundo é substituído pelo modelo dialógico. Cada pensamento e cada vida se fundem no diálogo inconclusível. É igualmente

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inadmissível a reificação da palavra: sua natureza é também dialógica. (BAKHTIN, 1979, p. 348).

Nessa perspectiva, a linguagem humana, estruturada de maneira

dialógica, intersubjetiva, se realiza, concretamente, pelo ato de enunciação. Esse ato

implica a interação de interlocutores que se instituem em contextos ou situações

socioculturais concretas de uso da língua.

Como afirma Cavalcante (2009, p. 29), essas diferentes situações de uso

da língua, no processo de enunciação, ativam — de maneira mais ou menos

explícita — diferentes papéis e valores sociais que os interlocutores instituem e

representam no ato de encenação discursiva. Nos termos da pesquisadora, esses

valores estão indiciados na palavra em cena, que sempre se dirige a um interlocutor

e que sempre variará no e de acordo com o jogo enunciativo estabelecido pelos

interlocutores.

Segundo Cavalcante, ainda, a luz de Bakhtin, qualquer que seja o jogo

enunciativo — seja aquele flagrado em um discurso familiar íntimo e ordinário, seja

aquele forjado em um complexo texto jornalístico ou fantasioso texto ficcional, a

dimensão social identificada e estabelecida pelos interlocutores ali instituídos indicia

um horizonte ético e estético do momento histórico em que se instituem esses

interlocutores.

Essa concepção de linguagem e de uso da língua é coerente com os

objetivos desta pesquisa. A eleger o discurso jornalístico como o lugar em que as

religiões de matriz africana são referenciadas é importante considerar que, nesse

domínio de discursivo, a linguagem se realiza como prática social.

O trabalho desenvolvido pelo círculo bakhtiniano, no início do século XX,

parte do principio de que a língua é sistema de signos cuja existência está

estreitamente ligada às necessidades humanas de comunicação e de interação

social. Nessa medida, é um sistema que revela diferentes aspectos e dimensões da

vida social, entre essas, a dimensão ideológica.

Para Bakhtin (1992), ―a palavra é o signo ideológico por excelência, pois,

produto da interação social, ela se caracteriza pela plurivalência ou polissemia de

sentidos. Por isso, a língua é o lugar privilegiado para a manifestação da ―ideologia‖.

Consequentemente, não pode ser encarada como um sistema de natureza abstrata,

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mas como o lugar em que a ideologia se manifesta concretamente, no qual o valor

ideológico se torna objetivamente materializado. Nas palavras de Bakhtin

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sobra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de suma importância. No entanto, por mais elementar e evidente que ele possa parecer, o estudo das ideologias ainda não tirou todas as consequências que dele decorrem. (Bakhtin, 1992, p. 19).

Para o pensador russo, ainda, a palavra, signo ideológico por excelência,

se realiza, concretamente, no âmbito da enunciação. Segundo CAVALCANTE

(2009, p. 30), em Bakhtin, a enunciação implica a interação de interlocutores que se

instituem em contextos ou situações socioculturais concretas de uso da linguagem.

A pesquisadora afirma, ainda, que essas diferentes situações linguageiras ativam —

de maneira mais ou menos explícita — diferentes papéis e valores sociais que os

interlocutores instituem e representam no ato de encenação discursiva.

Nessa perspectiva, concordando com Cavalcante, podemos afirmar que

qualquer que seja o jogo enunciativo — seja aquele flagrado em um discurso familiar

íntimo e ordinário, seja aquele forjado em textos de natureza jornalística, em

reportagens/notícias, como as que constituem o corpus desta pesquisa, a dimensão

social identificada e estabelecida pelos interlocutores que ali se manifestam deixa

marcas de vozes e posicionamentos sociais, éticos, morais desses interlocutores e

de fatos que determinam o momento histórico em que esses textos são produzidos.

Ao reconhecer a enunciação como lugar em que a palavra, ―signo

ideológico por excelência‖, se realiza, Bahktin/Volochinov afirma que

Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor. E la é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no sentido figurado. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de

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exprimir-nos urbi et orbi, é claro que vemos ―a cidade e o mundo‖ através do prisma do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, é preciso supor, além disso, um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito. (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 112).

Na perspectiva bakhtiniana, a interação verbal, instaurada pelos seres

humanos, através do ato de enunciação, só ocorre entre um ―eu‖ e um ―outro‖ (inter-

locutores) socialmente organizados, socialmente constituídos. E essa relação pode

ser concretamente identificada na materialidade textual. E isso pode ser percebido

com base em respostas que podemos dar para uma pergunta simples: “quem fala

para quem, sobre o quê e como no texto em análise?”

Na contemporaneidade, encontramos, no trabalho do pesquisador francês

Dominique Maingueneau, elementos que também nos permitem reconhecer uma

estreita e indissociável relação entre linguagem, língua e enunciação.

3.2 Concepção de Discurso e de Gêneros do Discurso

Para Maingueneau (2013, p. 57 - 58), o discurso pode igualmente

designar qualquer uso restrito da língua, como por exemplo, o discurso político, o

discurso dos jovens, discurso administrativo. Nesse emprego, a discurso pode ser

ambíguo, pois pode se referir tanto o sistema que permite produzir um conjunto de

textos, bem como o conjunto de textos produzidos. O pesquisador ainda afirma que,

a noção de discurso é muito utilizada por ser ―o sistema de uma modificação em

nossa maneira de conceber a linguagem.‖

O discurso é uma organização situada para além da frase, pois o mesmo

está submetido a regras de organização vigentes em um grupo social determinado,

como as regras que governam uma narrativa, um diálogo, uma argumentação. O

discurso também é orientado, mas não somente porque é concebido em uma função

de uma perspectiva assumida pelo locutor, mas também pode se desenvolve no

tempo de maneira linear. O discurso se constrói em função de uma finalidade bem

determinada, devendo dirigir-se para algum lugar. Porém, este pode mudar de

curso, tomar sua direção inicial, mudar de direção. A linearidade do discurso pode

ser manifesta em um jogo de antecipações, quando usa-se termos como ―veremos

que‖, ―voltaremos ao assunto ...‖, ou de retomadas do que já foi dito. O discurso

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pode ser compreendido também como uma forma de ação sobre o outro, pois toda

enunciação constitui um ato que visa modificar uma situação. O discurso é sempre

contextualizado, pois o mesmo enunciado dito em dois locais diferentes corresponde

a dois discursos distintos. Além disso, o discurso contribui para definir o contexto,

podendo modificá-lo no curso da enunciação. (MAINGUENEAU, 2013, p. 59 - 60).

Para o pesquisador, a atividade verbal é uma inter-atividade entre dois parceiros, cuja marca nos enunciados encontra-se no binômio EU – VOCÊ da troca verbal. Toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é, de fato, marcada por uma interatividade constituída, é uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe sempre a presença de uma outra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relação à qual constrói seu próprio discurso. Nessa perspectiva, a conversa não é considerada como o discurso por excelência, mas somente como uma das formas de manifestação da interação essencial do discurso. (MAINGUENEAU, 2013, P. 60 - 61).

Para Maingueneau (2013, p. 58), ―falar é uma forma de ação sobre o

outro e não apenas uma representação do mundo. Toda enunciação constitui um ato

que visa modificar uma situação.‖ Segundo o pesquisador, a comunicação não é um

processo linear, há inicialmente uma necessidade de se exprimir por parte do

enunciador que, a seguir, constrói ou escolhe a concepção de um sentido, depois

vem a escolha de um suporte e de um gênero para se comunicar, posteriormente,

constrói o texto ou a redação e a seguir, busca um modo de difundir o seu discurso,

finalmente, o hipotético encontro com um destinatário.

Na perspectiva adotada por Maingueneau, o enunciado é a marca verbal

do acontecimento que é a enunciação. Pode-se empregar o termo enunciado para

designar uma sequência verbal que forma uma unidade de comunicação completa

no âmbito de um determinado gênero de discurso, como exemplo a isso nós temos

os boletins meteorológicos, um romance, um artigo de jornal. Há enunciados curtos,

como os provérbios e os grafites, e os enunciados longos, como é o caso das

tragédias e as conferências. Já o texto emprega-se com um valor mais preciso,

quando se trata de apreender o enunciado como um todo, como constituindo uma

totalidade coerente. (MAINGUENEAU, 2013, p. 63 – 64).

O discurso só é um discurso porque remete a um sujeito, um EU, que se

coloca como fonte de referencias pessoais, temporais, espaciais, e ainda, em

particular, que é responsável pelo que está dizendo. O discurso só adquire sentido

no interior de um universo de outros discursos, lugar onde deve traçar seu caminho.

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Para que o ouvinte possa interpretar qualquer discurso é necessário relacioná-lo a

outros discursos, outros enunciados que são comentados, citados. O simples fato de

classificar um discurso dentro de um gênero implica relacioná-lo ao conjunto

ilimitado dos demais discursos do mesmo gênero. (MAINGUENEAU, 2013, p. 62).

Para o pesquisador, todo texto pertence a um gênero do discurso. Os

locutores têm uma infinidade de termos para categorizar a imensa variedade dos

textos produzidos em uma sociedade, como conversa, jornal, romance, soneto,

narrativa, seminário, panfleto, relatório, mito. Essas categorias correspondem às

necessidades da vida cotidiana e o analista não pode ignorá-las. (MAINGUENEAU,

2013, p. 65).

Alguns rótulos como revista, entrevista de seleção profissional, talk show,

determinam o que habitualmente entendemos por gêneros do discurso, ou seja, são

dispositivos comunicacionais que só aparecem quando certas condições sócio-

hisóricas estão presentes. As tipologias dos gêneros do discurso se contrapõem às

tipologias conunicacionais por seu caráter historicamente variável. Os gêneros do

discurso pertencem a diversos tipos de discurso associados a vastos setores de

atividade social. (MAINGUENEAU, 2013, p. 67).

A noção tradicional de gênero foi inicialmente elaborada no âmbito de uma poética, de uma reflexão sobre a literatura. Só recentemente ela se estendeu a todos os tipos de produções verbais. Todo gênero de discurso visa a um certo tipo de modificação da situação da qual participa. Essa finalidade se define ao responder à questão implícita: ―Estamos aqui para dizer ou fazer o quê?‖ Começar uma conversa tem por objetivo manter laços sociais. A determinação correta dessa finalidade é indispensável para que o destinatário possa ter um comportamento adequado ao gênero de discurso utilizado. (MAINGUENEAU, 2013, p. 71 - 72).

Nos diferentes gêneros do discurso, já se determina de quem parte e a

quem se dirige a fala. Da mesma forma, todo gênero de discurso implica um certo

lugar e um certo momento, não se tratando de coerções externas, mas de algo

constitutivo. As noções de momento ou de lugar de enunciação exigidas por um

gênero de discurso não são evidentes. Já à temporalidade de um gênero do

discurso implica vários eixos: o primeiro eixo é a periodicidade, um curso, uma

missa, um telejornal são periódicos; uma duração de encadeamento, pois certos

gêneros implicam mesmo a possibilidade de várias durações, como no caso de um

jornal cotidiano que distingue pelo menos duas durações de leitura de um artigo, o

levantamento dos elementos destacados em negrito e em maiúsculo, seguido de

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uma verdadeira leitura do texto. O terceiro eixo é a continuidade nesse

encadeamento, e o quarto eixo é a duração de validade presumida, como exemplo

desse eixo, podemos destacar uma revista que é valida por uma semana, o jornal

por um dia, já um texto religioso como a Bíblia ou o Alcorão propõe-se a ser lido por

tempo indeterminado. (MAINGUENEAU, 2013, p. 73 - 74).

A noção de gênero é com frequência utilizada de modo pouco rigoroso par designar uma classe de textos qualquer. Para evitar problemas de compreensão, é melhor reservar o termo ―gênero de discurso‖ para as atividades verbais assentadas em dispositivos de comunicação cujas características foram por nós apontadas: papéis dos interlocutores, mídium, momento etc. Evitaremos, desse modo, falar de ―gênero de discurso‖ quando se tratar de categorias fabricadas pelos analistas para designar

famílias de gêneros de discurso. (MAINGUENEAU, 2013, p. 77 - 78).

De acordo com Maingueneau (2013, p. 78 - 79), para caracterizar os

gêneros de discurso, costuma-se recorrer a metáforas tomadas de empréstimo

essencialmente do domínio jurídico (contrato), lúdico (jogo) e teatral (papel). Quando

referirmos ao gênero de discurso como contrato, significa afirmar que ele é

fundamentalmente cooperativo e regido por normas, pois todo gênero de discurso

exige daqueles que dele participam aceitem um certo numero de regras e as

sanções previstas para quem as transgredir. Já no que se refere ao papel, refere-se

dizer que cada gênero de discurso implica os parceiros sob a ótica de uma condição

determinada e não de todas as suas determinações possíveis. Já falar de jogo é, de

alguma forma, cruzar as metáforas do contrato com as do teatro, enfatizando

simultaneamente as regras implicadas na participação em um gênero de discurso e

sua dimensão teatral. Como no jogo, um gênero implica um certo número de regras

preestabelecidas mutuamente conhecidas e cuja transgressão põe um participante

―fora do jogo‖.

3.2.1 Como podemos definir texto?

De acordo com Marcuschi (2008, p. 72), por sua vez, ―o texto é um evento

comunicativo em que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas‖, ou seja,

podemos entender por texto a construção que é dada a partir da interação entre um

sujeito e seus interlocutores em uma dada situação comunicativa. Como o

pesquisador, compreendemos o texto não como algo pronto, mas sim como um

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evento que depende dos interlocutores que o processam, pois o sentido dado ao

texto muda de acordo com aqueles aos quais esse se propõe, seus destinatários, e

o contexto no qual os mesmos se encontram.

O texto é visto como um sistema de conexões entre vários elementos, tais como: sons, palavras, enunciados, significações, participações, contextos, discursos, ações. O texto é construído numa orientação de multissistemas, ou seja, envolve tanto aspectos linguísticos quanto não linguísticos no seu processamento e o texto se torna em geral multimodal; o texto é um evento interativo e vai além de um simples artefato, sendo também um processo numa coprodução; o texto compõe-se de elementos que são multifuncionais sob vários aspectos, tais como: um som, uma palavra, uma significação, uma instrução e deve ser processado com esta multifuncionalidade. (MARCUSCHI, 2008, p. 80).

Quando nos dedicamos à compreensão e análise de textos produzidos na

modalidade escrita e, mais precisamente, para o domínio jornalístico, objetivo desta

pesquisa, nos vemos diante da necessidade de refletir sobre os fatores que

constituem esse tipo de texto.

Os fatores constitutivos do texto não podem servir como regra para se

adequar à produção da escrita nem tampouco como princípios de boa formação

textual. De acordo Marcuschi, há sete fatores da textualidade ou constituintes do

processo de produção de sentido textual. Para os fins desta pesquisa, esses

merecem atenção: a coesão, a coerência, a intencionalidade, a aceitabilidade, a

situacionalidade, a informatividade e a intertextualidade (MARCUSCHI, 2008).

Marcuschi (2008, p.104) afirma que, particularmente, ―o conceito de

coesão textual está relacionado a todos os processos que asseguram uma

sequencialização linguística entre os elementos que ocorrem na superfície textual‖.

Para o pesquisador, a coesão se organiza através de dois mecanismos, sendo a

coesão referencial a que diz respeito aos elementos linguísticos, os quais

estabelecem uma relação entre a superfície do texto e o universo textual; e a coesão

sequencial, a que marca uma sequência para o texto ou estabelece uma relação

coerente com as partes integrantes do texto.

Os demais fatores que constituem a textualidade são, assim, definidos por

Marcuschi (2008), ―a coerência estabelece uma relação de sentido entre os

enunciados, em geral de maneira global e não localizada‖. A intencionalidade trata-

se do princípio que marca a intenção com que o produtor do texto realiza o mesmo.

A intencionalidade relaciona-se diretamente com a aceitabilidade, que diz respeito

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com as reações dos destinatários do texto mediante determinados textos, situações,

intenções e posicionamentos. Já a situacionalidade é o fator que diz respeito à

relação entre o texto e o seu contexto, à ancoragem do texto em um determinado

ambiente, fator social e cultural.

O pesquisador complementa o seu quadro de definições afirmando que, a

intertextualidade diz respeitos ao texto e à retomada de um texto já conhecido pelo

locutor, sendo que o uso deste texto já conhecido pode se dar através da citação ou

da alusão. Para Marcuschi (2008, p.132) ―a intertextualidade é um princípio

constitutivo que trata o texto como uma comunhão de discursos e não como algo

isolado‖. Ainda de acordo com o pesquisador, ―a aceitabilidade, enquanto critério de

textualidade, parece ligar- se às noções pragmáticas e ter uma estreita interação

com a intencionalidade [...]‖. e a ―informatividade diz respeito ao grau de expectativa

ou falta de expectativa, de conhecimento ou desconhecimento e mesmo incerteza

do texto oferecido‖.

De maneira convergente, Koch (2014, p. 30), apresenta argumentos que

permitem complementar a concepção de texto proposta por Marcuschi. Segundo a

estudiosa

[...] para que uma manifestação linguística constitua um texto, é necessário que haja a intenção do produtor de apresentá-la – e a dos parceiros de aceitá-la como tal -, em uma situação de comunicação determinada. Pode, inclusive, acontecer que, em certas circunstâncias, se afrouxe ou elimine deliberadamente a coesão e/ ou coerência semântica do texto com o objetivo de produzir efeitos específicos. Aliás, nunca é demais lembrar que a coerência não constitui uma propriedade ou qualidade do texto em si: um texto é coerente para alguém, em dada situação de comunicação específica. [...]. Este alguém, para construir a coerência, deverá levar em conta não só os elementos linguísticos que compõem o texto, mas também seu conhecimento enciclopédico, conhecimentos e imagens mútuas, crenças, convicções, atitudes, pressuposições, intenções explícitas ou veladas, situação comunicativa imediata, contexto sociocultural e assim por diante.

Ainda para a pesquisadora, o sentido do texto não se encontra nele, o

sentido de um texto é construído a partir do texto. Pode-se afirmar que o texto é uma

(re)construção do mundo e não uma simples refração ou reflexo dele.

Koch e Travaglia (2015, p. 47 - 48), acrescentam, de maneira mais

precisa, um ponto importante a ser analisado quando tratamos da definição (e,

portanto, compreensão) de um texto, que é a coesão referencial. Essa se caracteriza

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por quando dois ou mais pontos da superfície textual remetem a um mesmo

referente.

A coesão referencial é utilizada nos textos para fazer menção a termos

anteriormente mencionados, não perdendo, assim, a linearidade do texto. Essa é

caracterizada em termos da retomada de sentidos dentro do próprio texto por meio a

apresentação de referentes. Nessa perspectiva, Koch (2004, p.31) particulariza:

―chamo, pois, de coesão referencial aquela em que um componente da superfície do

texto faz remissão a outro(s) elemento(s) nela presentes ou inferíveis a partir do

universo textual‖. De acordo com essa definição, a coesão referencial pode ser

anafórica ou catafórica.

A coerência referencial anafórica faz referência a um signo já expresso e

a coerência referencial catafórica a um signo que ainda não foi exposto no texto.

Existem três tipos de referencias catafóricas, que são as de ordem pessoal quando

se utiliza no texto pronomes pessoais e possessivos; as catafóricas demonstrativas

quando são utilizados pronomes demonstrativos e advérbios de lugar; e as

catafóricas comparativas, que ocorrem por via indireta, através de similares (KOCH

e TRAVAGLIA, 2015).

Assim como Marcuschi, Koch (2004) também focaliza alguns fatores de

textualização, tais como: a coerência; a coesão; a substituição, que consiste na

colocação de um item no lugar de outro; a conjunção que está ligada à

sequencialização textual e pode estabelecer relações como a de causalidade, de

temporalidade, de consequência, manifestadas, linguisticamente, na forma de

orações subordinadas e/ou coordenadas. Há, também, o uso da elisão, que consiste

em omitir um item lexical, um sintagma, uma oração ou todo um enunciado,

facilmente recuperável pelo contexto; além da intertextualidade; intencionalidade;

situacionalidade que consistem na adequação da manifestação linguística a uma

situação comunicativa do texto e são fatores relacionados ao contexto, ou seja, uma

forma de relacionar o evento textual à situação comunicativa.

É preciso, ao construir um texto, verificar o que é adequado àquela situação específica: grau de formalidade, variedade dialetal, tratamento a ser dado ao tema, etc. O lugar e o momento da comunicação, bem como as imagens recíprocas que os interlocutores fazem uns dos outros, os papéis que desempenham, seus pontos de vista, o objetivo da comunicação, enfim, todos os dados situacionais vão influir tanto na produção do texto, como na sua compreensão. (KOCH, 2015, p. 85).

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Koch (2015, p. 88) afirma, ainda, que a informatividade ―determinará a

seleção e o arranjo das alternativas de distribuição da informação no texto de modo

que o receptor possa calcular-lhe o sentido com maior ou menor facilidade‖. A

pesquisadora acrescenta que a aceitabilidade é inerente ao leitor do texto que, com

maior ou menos nível de consciência, avalia o nível de coerência e de coesão que o

texto apresenta, o que poderá levar o leitor a aceitar os argumentos apresentados e

articulados no texto produzido ou não.

3.2.2 A natureza do texto jornalístico

Os textos produzidos no domínio jornalístico estruturam-se com base em

objetivos comunicativos bastante específicos. Entre esses, o objetivo de informar

fatos considerados relevantes a comunidade sóciodiscursiva. No ato de produzir

textos jornalísticos, mais especialmente reportagens, notícias, o jornalista enquadra

a atenção do leitor, situando-o, inicialmente, acerca dos fatos, em tese, ocorridos.

Isso se dá através de recursos semiótico-discursivos como as manchetes ou títulos

da reportagem, que se apresentam ao leitor, geralmente, com tipos e tamanho de

letras que se destacam e através de uma breve síntese do assunto tratado.

Segundo Maingueneau, a mídia, em suas três modalidades básicas (oral,

impressa e eletrônica), implica uma forma específica de textualidade que

corresponde ―à maneira como as modalidades de percepção são estimuladas‖,

embora isso não seja suficientemente preciso. Em consonância com o analista do

discurso,

podemos compreender a oralidade conversacional como sendo a primeira forma de textualidade. A textualidade controlada (oral ou escrita) seria a segunda forma de textualidade. Já a textualidade escrita se manifesta de maneira ―linear‖: a maioria dos textos impressos, mas eles também são ―tabulares‖, outra maneira, por ser uma espécie de imagem submetida esta às normas tipográficas. Nesta última, o discurso é subordinado à imagem, sendo o texto uma imagem dentro de um espaço preestabelecido: a página de uma revista, pôster, etc. Há ainda um terceiro tipo de textualidade para esse estudioso, que é a textualidade de ―navegação na internet‖, implicando uma nova maneira de ler, com ―a possibilidade de passar instantaneamente de uma ―página‖ para outra em espaço aberto.‖ (MAINGUENEAU, 2010, p. 137).

Para Gomis (1991, p. 174), por sua vez, o texto jornalístico é a forma

operativa de construção do jornalismo. Ele contém, na sua essência, aspectos que a

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singularizam em relação a outros conteúdos que circulam socialmente: a) traz

cotidianamente a público determinadas ocorrências selecionadas no mundo social

com base em critérios classificatórios (valores/notícias) e operacionais (internos à

organização jornalística ou relacionados ao processo interacional que o jornalista

mantém com as fontes de informação); b) investe sentidos específicos a essas

ocorrências selecionadas, utilizando-se, para isso, de linguagens e conteúdos de

uso comum em uma coletividade; c) auxilia na construção de uma definição

(imagem) pública destas ocorrências.

Referindo-se ao campo do jornalismo e ao fazer desse campo, o texto

jornalístico, o pesquisador considera, ainda, que ambos funcionam como

construtores de um sentido de proximidade entre atores e processos sociais, que é

uma forma de manifestar um sentido de pertencimento a uma coletividade

(proximidade física ou de identidade cultural) e um sentido de orientação

(instrumental), oferecendo recursos para o indivíduo se locomover em ambientes e

situações para os quais se exige uma competência avaliativa e procedimental,

principalmente a respeito de questões públicas.

Uma das qualidades mais primordiais deste conteúdo noticioso é o de possuir ―atualidade‖. A noção de atualidade no jornalismo se estabelece como um dos primeiros demarcadores das especificidades do conteúdo jornalístico, funcionando como modo de reconhecimento dos eventos como jornalísticos, seja pelo jornalista como pelo ‗leitor‘. Falar de ―atualidade jornalística‖ parece dar a conhecer algo que possui um sentido de imediaticidade para uma coletividade, uma percepção temporal marcada por uma presentificação das coisas, isoladas em acontecimentos noticiosos. Park já havia percebido que um repórter só se interessa pelo passado e pelo futuro na medida em que estes projetam luz sobre o real e o presente. (GOMIS, 1991).

Para o pesquisador, um primeiro complicador presente no texto

jornalístico é que este não se restringe somente à dimensão temporal. Ao se

pretender afirmar que um determinado fato possui ‗atualidade jornalística‘, não está

se referindo apenas à temporalidade em que ele ocorreu. Um conteúdo é atual no

jornalismo também porque apresenta um sentido de relevância pública, ou seja,

compõe aquele leque selecionado de conteúdos que são reconhecidos pelos

indivíduos como indispensáveis para participarem da vida social – as notícias falam

de fatos que irão interferir no curso cotidiano da vida e de cujo conhecimento o

indivíduo não pode (em tese) prescindir. Nesse sentido, não podemos nos esquecer

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de que o texto jornalístico é uma prática de mediação social. Ao realizar essa

mediação, o jornalista atua como mediador tanto na apresentação dos fatos

narrados para uma coletividade quanto em sua interpretação, uma vez que

estabelece relações específicas entre atores, temas, situações e contextos diversos

na construção do texto noticioso.

O jornalismo é um campo de atividade social que pode e deve ser

investigado. As ações realizadas nesse campo se apresentam, na vida social, como

uma instituição que seria capaz de (re)produzir realidades de um modo particular ou

pelo menos de contribuir para que a construção de conteúdos discursivos públicos

(ou, mais especificamente, de narrativas, de relatos sobre situações, temas ou

questões públicos) se faça(m) em determinados moldes e não em outros (GOMIS,

1991, p. 134). Para o pesquisador, o texto jornalístico produz sentidos sobre o

mundo social, em interação com significados, em alguma medida, previamente

existentes nele.

É com base nesta perspectiva que Gomis (1991, p. 30) utiliza a expressão

―realidade pública‖ para afirmar a existência de um vínculo entre as notícias e o

conhecimento que as pessoas têm do mundo. Para isso, o autor caracteriza a

atividade jornalística como ―um papel socialmente legitimado para produzir

construções da realidade publicamente relevantes‖. A execução deste papel é

inevitavelmente limitada, reduzida pelos próprios critérios classificatórios

(valores/notícias) e operacionais (relativos às imposições organizacionais ou às

relações com fontes de informação) inerentes à instituição jornalística. Para o

pesquisador, o jornalista não promoveria, através do seu trabalho, uma construção

da realidade, mas a de um mundo possível, um mundo ao qual o jornalista tem

acesso e é passível de ser reconstruído pelo discurso jornalístico. Nesse contexto, a

notícia seria uma ―representação social da realidade cotidiana, produzida

institucionalmente, que se manifesta na construção de um mundo possível‖.

Lustosa (1996, p. 113), por sua vez, defende a tese de que ―a notícia é

um produto simbólico destinado ao consumo em massa e, por isso, é feita para todo

mundo a partir de uma técnica de produção capaz de ser absorvida por todos.‖ E

para alcançar esse objetivo, o pesquisador esclarece que a noticia busca, no que

tange à forma, uma padronização, como também uma diversidade de conteúdo.

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Assim compreendida, a notícia jornalística, atualizada de maneira

convencional, padrão, pode ser escrita e, portanto, reconhecida com base em uma

superestrutura, relativamente estável. Essa superestrutura pode ser, didaticamente,

encontrada no trabalho desenvolvido por Van Dijk (2004).

Superestrutura do texto jornalístico

Fonte: VAN DIJK (2004, p. 85)

De acordo com Van Dijk (2004), a noticia jornalística está estruturada em

dois movimentos discursivos: o sumário e o relato da notícia. No sumário estão a

manchete e o lead da noticia, que juntamente com o antetítulo, o subtítulo, as fotos e

a legenda, resumem o tópico principal a ser tratado na notícia. Já o relato da notícia

irá desdobrar-se em episódio e comentários, ou seja, os fatos reportados e suas

interpretações. Na perspectiva proposta por Van Dijk, o evento principal é o fato

noticiado, enquanto o background diz respeito às partes do texto que fornecerão os

contextos sociais, políticos ou as historias gerais ou ainda as consequências desse

evento noticiado. A categoria circunstância é formada pelos eventos prévios, que

podem ser as causas ou as condições diretas que levaram ao evento principal. Já os

comentários contêm conclusões, expectativas, especulações e outras informações,

em geral comentários tecidos pelo próprio jornalista responsável pela matéria. Como

dissemos, este é um modelo que deve ser reconhecido como padrão. O próprio

pesquisador reconhece que é difícil encontrar, na prática, a realização de todas

essas categorias em uma mesma matéria jornalística. Ainda de acordo com Van

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Dijk, somente a manchete e os eventos principais são, frequentemente, encontrados

nos jornais. Sendo essa uma forma de caracterizar o texto, de imediato, como

representativo de uma notícia jornalística.

Para Maingueneau (2013, p. 165 - 166) o texto é uma instância de

discurso que se caracteriza por uma mudança constante de plano de enunciação.

Essa instabilidade é uma característica constitutiva do texto jornalístico. O redator de

uma notícia jornalística, ao invés de assumir uma posição, diretamente, diante dos

fatos que noticia, prefere (ou é obrigado a) enunciar um conjunto de vozes da quais

ele se distancia ou com as quais ele é solidário, de forma mais ou menos discreta.

Segundo Maingueneau, ainda, uma vez que o texto excede o universo da língua, em

sua produção, somos obrigados a levar em conta o estatuto atribuído pela cultura na

qual ele circula.

A partir da segunda metade do século XX, os teóricos passaram a se dedicar à sistematização dos gêneros jornalísticos. A maioria deles se ocupou com classificações por categorias. E, embora haja divergência nos critérios de classificação, a maioria dos autores enquadra a notícia, a reportagem e a entrevista como jornalismo informativo. Dentre os textos jornalísticos, a notícia é a mais corriqueira, a mais conhecida e veiculada pelos meios de comunicação. Sob a perspectiva de apenas informar, de transmitir a verdade ao leitor, a notícia aparenta ser um texto neutro, livre de opiniões e, por não fazer análise profunda dos fatos, parece apenas mostrá-los como aconteceram. Entretanto, é importante lembrar que a notícia não é o fato, mas o relato do mesmo, portanto, numa leitura mais aprofundada, iremos perceber a ideologia que reflete e refrata a realidade por ela veiculada e que procura se ocultar sob um texto coberto de consensos e de supostas verdades. Enquanto gênero jornalístico, a notícia é um tipo relativamente estável, com uma estrutura definida, podendo variar conforme a mídia, mas que, em geral, segue os padrões internacionais, com manchete, lide, sublide e corpo textual. (VAN DIJK, 2004, p. 123).

Van Dijk faz uma análise da estrutura da notícia para além do nível

sentencial. Para ele, o notícia possui uma estrutura de relevância que indica ao leitor

qual informação é mais importante no texto. Ele também observa que "as formas

estruturais e os sentidos globais não são arbitrários, mas o resultado de hábitos

sociais e profissionais do jornalista". O pesquisador critica a análise estrutural pura

que não relaciona a estrutura aos "contextos cognitivos e socioculturais da produção

e recepção de notícias e propõe que a análise da estrutura da notícia especifique as

condições sociais (institucionais, profissionais) ou funções sociocognitivas, na

comunicação mediada de massas. (VAN DIJK, 2004, p. 125).

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O pesquisador complementa dizendo que, a reportagem é um texto mais

extenso, resultante de uma investigação mais detalhada dos fatos, apresentando as

informações em maior profundidade. "Reportagem é o relato do acontecimento

importante, feito pelo jornalista que tenha estado no local em que o fato ocorreu ou

tenha apurado as informações relativas a ele. É o produto essencial da atividade

jornalística." No mesmo manual, notícia é definida como "puro registro dos fatos

importantes que merecem estar no jornal. Sem comentários, juízos de valor ou

interpretação". Além das definições em nada esclarecerem as diferenças entre os

gêneros, o conceito de notícia está repleto de carga ideológica, pois, o mesmo texto

que nega os juízos de valor já está carregado deles quando afirma que há fatos

importantes que "merecem" estar no jornal. Logo, há outros, sob o seu ponto de

vista que são irrelevantes e não possuem a "graça" de figurar como notícia. (VAN

DIJK, 2004, p. 128).

Com o intuito de diferenciar a reportagem da notícia, Lage busca caracterizar a reportagem, sob vários aspectos: i) de acordo com a linguagem, a reportagem possui estilo menos rígido que a notícia, possibilitando ao repórter o uso da primeira pessoa, bem como fazer, além do levantamento de dados, interpretação dos fatos; ii) sob o ponto de vista da produção, a reportagem leva em consideração a "oportunidade jornalística" (o fato gerador de interesse) ; iii) a necessidade de pautas que incluam o fato gerador de interesse, a natureza da matéria e o contexto. Para Lage, é o fato gerador que torna a reportagem um gênero independente.

Consideradas as concepções de linguagem, língua, enunciação, discurso,

texto e mais precisamente de texto jornalístico, que orientam a realização desta

pesquisa, apresentaremos a seguir uma seção dedicada ao conceito de

Referenciação, processo que pretendemos investigar, de maneira mais precisa, nos

dados constituídos para esta pesquisa.

3.3 Sobre a Referenciação

Para os objetivos previstos para esta pesquisa faz-se necessário

caracterizar o que compreendemos o processo de referenciação. Para isso,

consideramos importante retomar o conceito de enunciação. Como vimos

anteriormente, através do processo de enunciação, o sujeito faz referência a um

dado estado de coisas, a alguém ou a algo (um referente) sobre o que deseja

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compartilhar atenção com um interlocutor. Do ato de enunciação decorre a

construção de enunciados.

De acordo com Volochinov (2017, p. 200), o enunciado se forma entre

dois indivíduos que são socialmente organizados e, na ausência do interlocutor, o

mesmo é substituído pela imagem do representante médio do grupo social ao qual o

falante faz parte. Nessa perspectiva, a palavra dita é direcionada para o interlocutor,

ou para quem é esse interlocutor, considerando se este é integrante ou não do

mesmo grupo social do interlocutor, ou se ele se encontra em uma posição inferior

ou superior em relação a este interlocutor. Nesse cenário deve-se considerar, ainda,

se o interlocutor tem, ou não, laços sociais mais estreitos com o locutor.

Para Volochinov (2017, p 203), no mundo interior de todo sujeito falante

existe um auditório social estável e é nesse ambiente que se formam os seus

argumentos ou movimentos interiores, bem como suas avaliações. ―Quanto mais

culto for o individuo, mais o seu auditório se aproximará do auditório médio da

criação ideológica‖.

Nessa perspectiva, a palavra é considerada um ato bilateral, pois é

determinada tanto por aquele de quem ela precede quanto para quem essa palavra

é dita. A palavra como signo é tomada de empréstimo pelo falante de sua rede

social de signos que estão disponíveis. O contexto social mais próximo do falante é

que determinará quem serão os possíveis ouvintes do enunciado (VOLOCHINOV,

2017, p. 207).

Complementando o sentido dado à palavra por Volochinov, optamos por

retomar argumentos apresentados por Ducrot (1984, p. 418 - 437). Segundo o

pesquisador francês, a palavra constantemente pressupõe algo em relação ao

mundo exterior que é dotado de uma realidade própria, independente da realidade

discursiva, e com o qual a palavra necessita colocar-se constantemente em

confronto para significar. Nessa perspectiva, a palavra, por si só, não contém força

geradora de significado, O que garante essa força são o discurso e o contexto em

que a mesma se encontra. Segundo Ducrot, a palavra não é o mundo referido ou os

objetos nele contidos, mas sim uma forma encontrada pelo homem para representar

o mundo. Da mesma forma, o referente não é a realidade propriamente dita, mas

sim a realidade a qual a ato de referenciar tenciona descrever ou transformar, ou

seja, o referente é uma realidade do discurso.

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Assim compreendidos, o ato de enunciação, o enunciado, a palavra,

podemos reconhecer com Marcuschi que, na vida social, o sujeito não é apenas um

sujeito enunciativo, pois nas interações sociais, ao enunciar, o sujeito instaura ou

constrói o mundo que o cerca. Podemos afirmar, nesse sentido, que o ato de

enunciação, ao incluir a ação humana de referir, é um ato criativo, que se realiza no

contexto de ações linguísticas sócio-historicamente situadas e que as produções

discursivas funcionam, também, como um contexto relevante para novas produções

discursivas (MARCUSCHI, 2004, p. 274)

Além disso, é importante observar que o sujeito do discurso produz

sentido ou significação para (ou a partir de) um enunciado não apenas no momento

de interação. A produção de sentido(s) é construída através de um processo de

interação intersubjetiva que se realiza, simultaneamente, na dimensão social, ou

seja, esse é um processo criativo a partir do qual os indivíduos adquirem maior ou

menos nível de consciência sobre o que estão falando e sobre de que maneira estão

construindo seus referentes (MARCUSCHI, 2004, p. 278).

Sobre diferentes concepções do processo de Referenciação, no campo

dos Estudos da Linguagem, de acordo com Koch, Morato e Bentes (2019, p. 11),

para uns, a referenciação é concebida no interior de um modelo de correspondência entre as palavras do discurso e os objetos do mundo, de modo que a validade das palavras é avaliada em um quadro vericondicional; já para outro, a referência é resultado de um processo dinâmico e, sobretudo, intersubjetivo, que é estabelecido no quadro das interações que ocorrem entre locutores, e é suscetível de se transformar no curso dos desenvolvimentos discursivos, de acordos e desacordos.

Nesta pesquisa, assumimos a segunda concepção, ou seja, no processo

de Referenciação, a referência é resultado de uma dinâmica intersubjetiva de

interações entre interlocutores e essa pode sofrer transformações, em termos de

acordos e desacordos argumentativos, no desenvolvimento do discurso.

Para as pesquisadoras, ainda, as escolhas formais na atividade

referencial depende das escolhas formais que podem ser concebidas como reflexos

das propriedades do referente, ou como manifestação de estados mentais. Para

fundamentar o seu argumento, as pesquisadoras destacam um trabalho de

Marcuschi, que afirma:

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De certo modo, as esquematizações nos processos discursivos são co-construções, o que nos faz crer que as compreensões nunca são atividades unilaterais e sim colaborativas. Filliettaz (1996, p.41 apud MARCUSCHI, 2004, p. 276) sugere que a melhor forma de tratar a referenciação no discurso é a forma interacionista em que o processo cognitivo tem uma dimensão social considerável. E a mente não fica circunscrita a uma espécie de deposito de representações mentais retratadas em um léxico em que as palavras operam como simples rótulos. (MARCUSCHI, 2004, p. 278).

Koch (2019, p. 33-34) afirma que a construção discursiva no mundo, feita

por meio da linguagem, não consiste em um simples processo de elaboração de

informações, mas em um processo de construção ou reconstrução do próprio real.

Nessa perspectiva, os objetos do discurso não se confundem com a realidade

extralinguística, mas reconstroem-na no próprio processo de interação, ou seja, a

realidade é construída, mantida e alterada não apenas como o mundo é nomeado,

mas pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele. Interpretamos e

construímos nossos mundos na interação com o entorno físico, social e cultura. A

pesquisadora elucida que a referenciação não privilegia a relação entre as palavras

e as coisas, mas a relação intersubjetiva e social no seio da qual versões do mundo

são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades

práticas e às ações em curso dos enunciadores.

No interior dessas operações de referenciação, os interlocutores elaboram objetos de discurso, entidades que não são concebidas como expressões referenciais em relação espetacular com objetos do mundo ou com sua representação cognitiva, mas entidades que são interativamente e discursivamente produzidas pelos participantes no fio de sua enunciação. O objeto de discurso não remete a uma verbalização de um objeto autônomo e externo às práticas linguageiras; ele não é um referente que teria sido codificado linguisticamente. (KOCH, 2019, p. 34).

Nesta pesquisa, a referenciação é considerada, portanto, uma atividade

discursiva. E é assim caracterizada pelo fato de operar sobre o material linguístico

que os interlocutores têm à sua disposição no ato da interação verbal. Isso é

realizado a partir de escolhas significativas para representar estados de coisas, com

vistas à concretização de uma proposta de sentido. Por isso, a interpretação de uma

expressão referencial anafórica, nominal ou pronominal, consiste não simplesmente

em localizar um segmento linguístico no texto ou um objeto especifico no mundo,

mas, sim, algum tipo de informação anteriormente alocada na memória discursiva

dos sujeitos da interação (KOCH, 2019, p. 35)

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Koch (2019) ressalta, também, que o emprego de uma descrição nominal,

com a função de categorizar ou recategorizar um referente, sempre implicará na

escolha entre uma multiplicidade de formas de categorização do referente, sendo

que esta escolha sempre será feita, em cada contexto, segundo a proposta de

sentido do produtor do texto. Para a pesquisadora, não é difícil constatar que o

emprego de expressões nominais anafóricas opera a recategorização dos objetos de

discurso, ou seja, de forma que tais objetos, ao longo do texto, serão reconstruídos

de determinada forma, o que atenderá aos propósitos comunicativos do falante.

Nesse processo de recategorização, muitas vezes feita por termos metafóricos, a

seleção do núcleo da forma nominal, bem como seus modificadores, desempenha

papel crucial.

Na construção do referente, há o emprego de anáforas. Dentre essas

anáforas, há as anáforas associativas. Através dessas anáforas, é possível (aos

interlocutores) selecionar convenientemente termos pertencentes a um mesmo

campo lexical, de modo a permitir, por meronímia, a (co)construção dos referentes.

Ao discutir aspectos cognitivos do processo de referenciação, Koch

(2019) caracteriza três estratégias de constituição de referência que se ancoram na

memória discursiva. A primeira estratégia é a de construção ou ativação pela qual

um objeto textual, até então não mencionado, é introduzido, passando a preencher

um nódulo na rede conceitual do modelo de mundo textual. Esse nódulo é o que a

autora chama de ―endereço‖ cognitivo ou locação. A segunda estratégia é a da

reconstrução ou reativação. Através dessa estratégia, um nódulo já presente na

memória discursiva é reintroduzido na memória operacional, por meio de uma forma

referencial, de modo que o objeto de discurso permaneça saliente. E, por último, a

estratégia de desfocalização ou desativação, que ocorre quando um novo objeto de

discurso é introduzido, passando a ocupar a posição focal. Contudo, o objeto

retirado do foco enunciativo continua em estado de ativação parcial, podendo voltar

à posição focal a qualquer momento (KOCH, 2019, p. 128).

A pesquisadora ainda argumenta que é muito complexa qualquer

descrição que se tente dos aspectos cognitivos que envolvem a referenciação,

quando se toma por base o uso da linguagem como ação e não como produto. Toda

entidade referida é empregada sob pressuposição de que, de algum modo, se

tornará acessível na interação. Os tipos de suposição que o falante julga estarem

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representadas na mente do interlocutor interferem diretamente nas escolhas dos

processos referenciais que são considerados mais adequados a cada momento da

enunciação e nos diferentes modos de expressá-los.

Segundo a pesquisadora, considerando que há infinitas condições a

serem satisfeitas no processo de referenciação para que esse seja realizado com

sucesso, isso demandaria grande quantidade de tempo. A referenciação, no entanto,

é realizada em um tempo finito e curto, por isso, os interlocutores examinam apenas

algumas delas, na dependência do seu desejo de precisão (KOCH, 2019, p. 176).

Para a pesquisadora, o falante tem tempo limitado para planejar e revisar o que diz,

situação a qual não está subordinado o produtor de um texto escrito. Além disso, o

ouvinte deve processar cognitivamente os enunciados ao mesmo tempo em que

eles são proferidos, o que requer um tipo de sincronização que não é encontrado na

leitura. E, por fim, o ouvinte participa ativamente do jogo enunciativo, pois o falante

ajusta o que enuncia com base no que o ouvinte diz e faz. Por isso, o produtor do

texto escrito deve monitorar antecipadamente as possíveis reações do leitor,

fornecendo-lhe as pistas necessárias para o entendimento. Isso,no entanto, trata-se

apenas de uma aposta, já que não se pode ter certeza de que as escolhas feitas não

provocarão qualquer incidente interpretativo.

Par Koch (2019, p. 266), os objetos de discurso não preexistem à

atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, mas são produtos desta

atividade. Assim sendo, a atividade de referenciação é o resultado de um processo

dinâmico e intersubjetivo que se estabelece no quadro das interações no curso dos

desenvolvimentos discursivos, dos acordos e dos desacordos. A pesquisadora

afirma, ainda que a referenciação é uma atividade discursiva que revela a

instabilidade entre as palavras e as coisas, evidenciando que os modelos de mundo

não são estáticos. Assim sendo, a variedade de estratégias de referenciação no

discurso depende mais da pragmática da enunciação do que da semântica dos

objetos. A realidade se transforma em referente discursivo por meio da percepção

ou da interpretação humana. Sendo assim, a atividade de construção da

referenciação é uma reelaboração dos dados sensoriais para fins de apreensão e

compreensão.

Para Marcuschi (2001 apud Koch, 2019, p. 266), por sua vez, ―a atividade

de referenciação nas interações face-a-face supõe o partilhamento de

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conhecimentos entre os seus participantes, como cultura, crenças, língua, contextos

situacionais.‖ Nessa perspectiva, as práticas referenciais manifestadas nas

interações constituem o principal objeto de análise. Tais práticas não se restringem

às práticas da linguagem, pois abrangem também as práticas gestuais, movimentos

no espaço, orientação do olhar. Assim sendo, os referentes não são preexistentes a

prática linguística, eles são instaurados na realidade e no desenrolar da atividade

referencial, pela maneira como esta é reconhecidamente organizada.

Os enunciados são produzidos ou completados colaborativamente, assim

como os objetos de discurso referenciados podem ser enriquecidos ou construídos

de forma coletiva por diferentes locutores. Ainda para a Koch, os conhecimentos

socialmente compartilhados e sua construção ou reconstrução discursiva são

importantes para a coconstrução da referência entre interlocutores e para os

encadeamentos discursivos. Desse modo, os interlocutores podem formular uma

representação cognitiva socialmente compartilhada da realidade (KOCH, 2019).

Como pretendemos ter deixado claro ao leitor, nesta pesquisa,

assumimos a concepção de processo de Referenciação proposto por Koch, em

diálogo com argumentos apresentados por Marcuschi. De acordo com a

pesquisadora, ―a referenciação é um importante lugar de observação e de

identificação de um dispositivo geral que explore as restrições e as potencialidades

linguísticas para desenhar uma representação cognitiva socialmente compartilhada

da realidade‖ (KOCH, 2019, p. 294).

Os processos referenciais são tratados, dessa forma como constitutivos

de práticas simbólicas dos sujeitos em sociedade. Ainda para ambos os

pesquisadores, embora a questão da referenciação tenha sido historicamente

concebida como um problema de representação do mundo em termos de verdade e

correspondência, essa deve ser deslocada para um tratamento que privilegie a

relação intersubjetiva e social, na qual versões do mundo são publicamente

elaboradas e avaliadas pelos sujeitos enunciadores.

Por essa razão, os pesquisadores passam a utilizar o termo referenciação

para tratar da referência como um processo realizado no discurso, resultante não de

uma ontologia dada, mas de práticas simbólicas complexas, que são responsáveis

por produzir a ilusão de um mundo objetivo.

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De acordo com os argumentos apresentados até aqui, a maneira como

podemos entender a referenciação por uma concepção não representacional

reintroduz uma pluralidade de atores situados que discretizam e dão sentido à língua

e ao mundo.

Desse modo, tratar a referenciação em uma perspectiva interacionista e

discursiva pressupõe uma concepção de língua que não se esgota no código, nem

implica uma correspondência direta com o mundo, como se a língua refletisse a

realidade (KOCH, 2019, p. 320 - 321). A referência, nessa perspectiva, é um

processo realizado no discurso. Essa postura teórica possibilita um olhar atento para

a progressão dos referentes no texto. É nessa progressão referencial, que diz

respeito à introdução, à preservação, à continuidade e à retomada dos referentes,

que esses se encadeiam para o desenvolvimento do tópico e a construção da

coerência e da coesão.

Segundo Koch, ainda, o encadeamento dos referentes para o

processamento textual é feito por diferentes estratégias de referenciação, nominais e

pronominais, que variam de acordo com a relação estabelecida entre o que é

referido e o referente. Esta relação pode se dar tanto de forma prospectiva, pela

catáfora, quanto retrospectiva, pela anáfora. Entre essas estratégias, pode-se

destacar as expressões nominais, que são formas linguísticas minimamente

constituídas de um determinante, seguido de um nome, que operam uma seleção

entre as diversas propriedades do referente.

Ao analisar um discurso, Koch (2005, p. 26) elucida que podemos

trabalhar com a hipótese do sentido ser produzido a partir de condições

historicamente determinadas, é preciso determinar com clareza como a

determinação de fatos se dá na globalidade dos discursos sociais que são

concebidos.

Para se chegar a esse ponto, primeiramente, é necessário assumir que

nenhum discurso é necessariamente individual, haverá marcas que são

provenientes de representações disseminadas pelo coletivo. O discurso, no entanto,

não é somente um produto social, pois sempre haverá, no mesmo, marcas ou traços

que o caracterizam como um produtor de condições específicas e individuais de

produção.

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O emprego de uma descrição nominal, com função de categorizar ou de recategorizar referentes, implica sempre uma escolha entre uma multiplicidade de formas de categorizar o referente, escolha esta que será feita, em cada contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do texto. (KOCH, 2005, p. 35)

A forma como o sujeito se refere a algo ou alguém, bem como os

processos de remissão textual realizada através da referenciação, constitui escolhas

do sujeito em função do que este quer dizer. O modo como o sujeito emprega a

descrição nominal para categorizar ou recategorizar o referente implica sempre em

uma multiplicidade de formas na qual o sujeito pode categorizar esse referente. Essa

escolha será feita em cada contexto, considerando o sentido que o sujeito quer dar

ao enunciado referindo-se a alguém ou a alguma situação de determinada forma.

―toda entidade referida é empregada sob a perspectiva de que de algum modo se tornará acessível na interação. Os tipos de suposição que o falante julga estarem representadas na mente do interlocutor interferem diretamente nas escolhas dos processos referenciais que são consideradas mais adequadas a cada momento da enunciação e nos diferentes modos de

expressa-los.‖ (KOCK, 2005, p. 35).

―A atividade de referenciação é o resultado de um processo dinâmico e

intersubjetivo que se estabelece no quadro das interações entre locutores e é

suscetível a transformações no curso dos desenvolvimentos discursivos‖

(MONDANA e DUBOIS, 2003 apud BENTES e RIO, 2019, p. 266). Ainda para as

autoras ―os conhecimentos socialmente partilhados e sua (re) construção discursiva

são importantes para a construção da referencia entre interlocutores e para os

encadeamentos discursivos‖ (KOCH, 2019, p. 267).

Koch (2005, p. 26) afirma que, se ao analisar um discurso, pretende-se

trabalhar com a hipótese de que o sentido seja produzido a partir de condições

historicamente determinadas, é preciso determinar com clareza como a

determinação de fatos se dá na globalidade dos discursos sociais que são

concebidos.

Para se chegar a esse ponto, primeiramente é necessário assumir que

nenhum discurso é necessariamente individual, haverá marcas que são

provenientes de representações disseminadas pelo coletivo.

A pesquisadora ainda complementa dizendo que, ao categorizar ou

recategorizar um referente, sempre há uma escolha entre uma multiplicidade de

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categorizações, ou escolhas lexicais, que será feita de acordo com o contexto e com

a proposta de sentido que se quer atingir.

Nas reportagens coletadas para compor o corpus do presente trabalho,

podemos encontrar um exemplo de categorização das religiões de matriz africana na

reportagem publicada no dia vinte e oito de maio de 2019 pelo jornal Estadão,

quando membros de um terreiro situado em Alagoinhas – BA afirmam que um grupo

de evangélicos se referiu ao terreiro como ―casa de satanás‖. Dentre a multiplicidade

de categorias a serem utilizadas, o grupo que se referiu ao terreiro de tal forma

escolheu uma categoria determinada, possivelmente levados por questões

construídas historicamente, mas não esquecendo também da ideologia religiosa que

levou a escolha de tal referente.

Para ilustrarmos esses argumentos, no âmbito desta pesquisa, podemos

afirmar que, quando nos deparamos com uma situação discursiva, cotidiana,

referenciada em notícias de jornal, em que um sujeito do discurso refere-se a uma

divindade afro-brasileira ou a um adepto da Umbanda ou do Candomblé como um

―demônio‖ ou ―filho do demônio‖, essa categorização não foi uma escolha individual.

Esse processo, o de escolha lexical implicada no ato de referenciar e categorizar

linguisticamente, é uma escolha coletiva assumida em um determinado contexto

sócio historicamente construído. O uso social dessa forma de predicar esses objetos

do discurso (Umbanda, Candomblé) é o que leva um individuo a, com maior ou

menor nível de consciência, em um amplo universo lexical possível, escolher uma

dada categoria para se referir a um determinado individuo, religião ou divindade.

Como excerto para verificarmos o que foi dito no parágrafo acima,

podemos tomar como exemplo o fato relatado na reportagem do dia 16 de agosto de

2018, vinculada ao jornal Correio, onde o babalaô Ivanir dos Santos deu entrada

com uma representação criminal junto ao Ministério Público do Estado do Rio de

Janeiro, pedindo a instauração de ação penal para apurar responsabilidades criminal

de integrantes da Igreja Ministério Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói. O

grupo é acusado pelos umbandistas de formação de quadrilha, perturbação de culto

e intolerância religiosa. De acordo com o relato de Ivanir, os integrantes de um

terreiro de Umbanda realizavam um culto religioso em um cemitério na cidade de

Niterói, quando foram abordados por um grupo de evangélicos, que interrompeu o

culto aos gritos com as seguintes referenciações: ―macumbeiros, capeta,

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macumbeiros têm que morrer‖;‖ tá amarrado em nome de Jesus‖; ―tem que expulsar

porque é demônio; e ―queima eles Satanás‖.

Sobre o fato de que o processo de categorização, especialmente aquele

implicado na criação de atributos que geram como consequência a criação de

estereótipos e estigmas sociais, Goffman (1891, p. 11) afirma que

―a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Então, quando um estranho lhe é apresentado o coloca dentro de uma dessas categorias socialmente construídas, uma ‗identidade social‘, perpetuando o conceito de ‗estereótipos‘, e estigmatizando um grupo no qual sua categoria for depreciativa, estabelecendo apenas uma linguagem de relação, e não de atributos individuais.‖

Sobre isso, podemos concordar com Marcuschi (2007, p. 139 - 140) que a

referenciação é um processo complexo que precisa ser analisado na atividade sócio-

interacionista. A depender do ponto de vista que, como interlocutores, adotamos,

vamos construir os seres e os objetos do mundo discursivo de uma ou de outra

forma. O mundo de nossos discursos é sócio-cognitivamente estruturado.

Assim sendo, a referenciação é um processo mais etnográfico (ligado ao

processo sócio-interativo) do que semântico e epistemológico. Como afirma o

linguista, ao investigar esse processo, não podemos confiar apenas nas

características estruturais da interação nem nas propriedades comunicativas da

língua, nem nos contextos físicos (imediatos) da produção da interação, mas

devemos estar atentos para o que os faltantes fazem com tudo isso (MARCUSCHI,

2007, p. 117 - 119).

3.4 Sobre a Metaforização

Para que alcancemos os objetivos propostos para o presente trabalho, de

forma a verificar a plausibilidade das hipóteses desta pesquisa, apresentaremos,

neste momento, fundamentos que orientam a concepção de metáfora com a qual

trabalhamos.

Uma vez que adotamos uma perspectiva processual e sócio-

interacionalmente contextualizada para investigar o processo de Referenciação, em

que Candomblé e Umbanda são tomados como objetos de discurso em textos de

natureza jornalística, buscaremos construir uma perspectiva também processual

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para investigar a metáfora, o processo de metaforização, que esses textos colocam

em cena. Para isso, serão considerados argumentos apresentados por Antonio

Cândido (1996), Lakoff e Johnson (2002) e Solange Vereza (2010).

Segundo o crítico literário brasileiro Antonio Candido (1996, p. 23), a

produção estética, em especial a literária, é um lugar natural de manifestação da

metáfora. E essa se aproxima, no texto poético, com a construção de imagens

mentais. Para o pesquisador, tanto na imagem como na metáfora ocorre o mesmo

fenômeno fundamental, a criação de sentido pela comparação, explícita ou implícita,

de conhecimentos que são evocados a partir do uso de dois termos. A metáfora,

nessa perspectiva, se baseia na analogia, ou seja, na possibilidade de

estabelecermos uma semelhança mental sentidos que já atribuímos, que

conhecemos, para termos que referenciam estados de coisas no mundo (objetos,

lugares, ações, ideias, estados, emoções). Assim sendo, a metáfora permite ao ser

humano construir uma relação subjetiva entre estados de coisas diferentes e, dessa

forma, abstrair os elementos particulares de cada um para, assim, salientar o

elemento geral, que assegura a correlação possível. No caso dos textos poéticos, a

que se dedica especialmente o crítico na obra em questão, isso é facilitado pela

natureza semântica das palavras, que permite a construção de novos significados de

acordo com o contexto em que essas são empregadas.

Para Candido (1996, p. 25), a linguagem humana se estrutura com base

em metáforas e o uso das línguas é atravessado por metáforas, usadas e criadas,

inconscientemente, e, à medida que socialmente reiteradas, passam a ser

incorporadas ao patrimônio lexical e cultural de um povo. O crítico afirma, ainda, que

a intenção o sujeito que produz uma metáfora no cotidiano é o traço diferencial entre

a metáfora literária (com finalidade estética) e a metáfora comum. A metáfora direta,

comum, nasce da necessidade que os sujeitos de linguagem possuem de enriquecer

a linguagem cotidiana, de suprir-lhe possíveis deficiências, baseando-se na

associação de ideias por suas semelhanças.

A metáfora é um fenômeno que é objeto de estudo desde a Antiguidade

Clássica. O processo de conceituação, definição e compreensão desse fenômeno,

que ainda está longe de ser um consenso, permeia as áreas mais distintas da

atividade linguística. Aristóteles foi um dos primeiros autores a tratar da metáfora,

após o mesmo, o assunto já foi tratado por filósofos como Hobbes, Locke, Kant,

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Rousseau e Neitzsche. Ao longo dos séculos, desde Aristóteles, podemos identificar

diversas teorias que buscam compreender a metáfora e, a partir do século XX, os

estudos realizados com esse objetivo passam a ser fortemente estruturados em uma

perspectiva interdisciplinar e com recortes e objetivos bem diversificados

(CAVALCANTE, FERREIRA e GUALDA, 2016, p. 7).

Compreender que os estudos contemporâneos da metáfora decorrem de

uma longa tradição significa reconhecer o percurso trilhado para que esse objeto de

estudo adquirisse um status cognitivo. Nesse paradigma de estudo, que investiga a

relação entre linguagem e cognição, a metáfora deixa de ser compreendida como

uma figura de linguagem e passa a ser estudada como um fenômeno de natureza

conceptual. E isso significa, também, reconhecer que os seres humanos

compartilham entre si um sistema conceptual, a partir do qual emergem as

manifestações simbólicas e culturais, de natureza diversa, entre essas as

manifestações linguísticas (CAVALCANTE, 2002).

O nosso sistema conceptual é metafórico por natureza, ou seja, os

processos do pensamento são, em grande parte, metafóricos, ―a metáfora está

infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem verbal, mas também no

pensamento e na ação humana‖ (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 45).

Segundo Vereza, uma das mais importantes estudiosas brasileiras da

Teoria da Metáfora Conceptual (Lakoff e Johnson, 1980), isso pode ser confirmado

no cotidiano das interações sociais. É muito comum na linguagem cotidiana as

pessoas dizerem que estão ―falando metaforicamente‖ ou dizerem que estão

―falando literalmente‖, de acordo com o que foi dito e a real intenção do falante. Por

trás desse uso constante e cotidiano do conceito de metáfora e de linguagem

―literal‖, há uma visão do processo metafórico como o uso de um termo ou

expressão que é usado no lugar de outro termo mais objetivo, que seria a

―expressão real‖ ou verdadeira. A função dessa expressão usada no lugar de outra

expressão, mesmo dentro do senso comum, pode ser a de esclarecer, ilustrar ou de

certo modo ―fugir do assunto‖ ou ainda ―esconder a ignorância sobre algo‖

(VEREZA, 2010, p.12).

Há um consenso entre os pesquisadores e estudiosos de língua, revelado

em manuais didáticos para a Educação Básica no Brasil e fundamentado em uma

dada perspectiva teórica, de que a metáfora representa uma transferência de

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sentido entre um termo A para um termo B. Sobre esse consenso, Vereza (2010,p.

13) explica que:

Etimologicamente, o termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá através da junção de dois elementos que a compõem, meta que significa ―sobre‖ e pherein que quer dizer ―transporte‖. Nesse sentido, metáfora surge enquanto sinônimo de ―transporte‖, ―mudança‖, ―transferência‖, e em sentido mais específico, ―transporte de sentido próprio em sentido figurado‖. A metáfora implica necessariamente um desvio do sentido literal da palavra para seu sentido livre; uma transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, cujo sentido originalmente não lhe pertencia. (VEREZA, 2010, p. 13).

Como é possível notar, nessa perspectiva, baseada em uma visão

tradicional, a metáfora é compreendida como uma figura de linguagem. De acordo

com essa visão, o locus da metáfora é a linguagem. O que quer dizer que esta não

teria um papel central no processo de produção de sentidos. De acordo com essa

perspectiva, na visão da pesquisadora, o sentido real da palavra seria distorcido ao

se usar um termo ou palavra no lugar de outra, construindo, nesse processo,

conotações próprias do conceito que foi ―emprestado‖, e que interfere diretamente

no sentido daquilo que se quer referir. A consequência mais direta dessa

compreensão é que a metáfora é vista apenas como um recurso supérfluo,

dispensável, da linguagem (VEREZA, 2010, p. 14).

A pesquisadora afirma, ainda, que a visão reducionista que se tem acerca

da metáfora, reconhecendo-a, ainda hoje, apenas como uma ―figura de linguagem‖,

uma estratégia discursiva, linguística, meramente ornamental, sem qualquer efeito

cognitivo, é resultado de uma interpretação reducionista à qual a retórica foi

submetida.

Para Vereza (2010, p. 15), mais do que isso, a metáfora é um fenômeno

do pensamento. E é importante ressaltar que o pensamento, para os teóricos da

metáfora e de outros fenômenos linguísticos, que estudam a relação entre

linguagem e cognição, não se restringe à ―linguagem não falada‖, ou àquilo que

poderia ser descrito como o correspondente mental da linguagem, manifestada

linguisticamente, que é verbalizada. A metáfora do e no pensamento é aquela que

surge na cognição humana e que é também parte importante constitutiva, em termos

processuais, da própria cognição, do aparato sensório-perceptual e conceptual

humano.

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A metáfora do pensamento pode ser considerada ―um processo por meio

do qual experiências são elaboradas cognitivamente, a partir de outras já existentes

no nível conceptual (VEREZA, 2010, p. 16).‖ Haveria, assim, uma superposição de

experiências já incorporadas linguisticamente pelo indivíduo que é determinada a

uma outra experiência a ser mapeada pelo pensamento e pela língua.

Para a pesquisadora, a metáfora faz parte de um inconsciente cognitivo

coletivo, que mantém uma relação estreita com a cultura e com a língua. A relação

da metáfora com a cultura pode ser compreendida a partir da forma como o sujeito

vê parte da experiência vivida, geralmente a mais abstrata, pela lente de outra

experiência ou situação mais concreta.

A pesquisadora explica que as metáforas são fundamentalmente

conceptuais por não estarem somente na base da expressão linguística, mas

também na base da experiência. O indivíduo atribui sentido ao mundo pela interação

que ele experencia entre a sua corporeidade, a sua mente corporificada, os nichos

culturais nos quais vive e interage socialmente.

De acordo com a Teoria das Metáforas Conceptuais de Lakoff e Johnson

(1980), ―nós compreendemos o mundo por meio das metáforas.‖ Isso se deve ao

fato de que experiências como, por exemplo, tempo, estado, quantidade, além de

conceitos emocionais como amor e raiva, são compreendidos metaforicamente. Por

isso, a metáfora, em sua materialidade linguística e em outras formas de

manifestação (desenho, pintura, fotografia, cinema) é de grande importância para

compreendermos o mundo, a cultura e até nós mesmos.

Lakoff e Johnson (1980) apontam três condições das metáforas conceptuais: primeiro, a sistematicidade das correspondências linguísticas; segundo, o uso da metáfora que governa o raciocínio e o comportamento nela baseado; e por último, o entendimento de uma experiência em termos de outra, advindo das correspondências convencionais. (VEREZA, 2010, p. 30).

Vereza afirma, ainda, que, de acordo com Lakoff e Johnson (1980), as

metáforas podem variar em sua complexidade ou em seu grau de elaboração de um

individuo para outro, podendo ou não ser imediatamente ativadas na compreensão

da linguagem metafórica. Além disso, podem ser reconstruídas de maneiras

distintas, nas mais variadas situações quando estas se constituem como uma

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propriedade emergente das interações do individuo com o mundo (VEREZA, 2010,

p. 30 - 31)

De acordo com a Teoria da Metáfora Conceptual, doravante TMC,

existem três tipos de metáforas conceptuais, as metáforas estruturais, as metáforas

orientacionais e as metáforas ontológicas.

As metáforas estruturais são caracterizadas pelo fato que nós podemos

usar um conceito estrutural e claramente delimitado para, através deste, estruturar

outro conceito e, somando-se a isso, há ainda a possibilidade de orientar conceitos,

referimo-nos a eles ou qualificá-los.

As metáforas orientacionais ―são aquelas que organizam todo um sistema

de conceitos em relação a outro sistema de conceitos e têm a ver com a orientação

espacial.‖ Este tipo de metáfora mobiliza esquemas imagéticos e são organizadas a

partir de oposições espaciais como para cima e para baixo, dentro e fora, frente e

trás (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 134).

Segundo Lakoff e Johnson (2002, p. 60), as orientações metafóricas não

são arbitrarias, pois estas são construídas tomando como base nossa experiência

física e cultural. Uma das metáforas conceptuais orientacionais identificadas pelos

pesquisadores como muito produtiva culturalmente é STATUS SUPERIOR É PARA

CIMA, STATUS INFERIORÉ PARA BAIXO. Alguns exemplos desse tipo de metáfora

são: ―Ela tem uma posição superior‖; ―Ele está no topo de sua carreira‖; ―Ele tem

poucas chances de ascensão social‖ ou ―Ele baixou de status‖ (LAKOFF e

JONHSON, 2002, p. 63)

Já as metáforas ontológicas decorrem das nossas experiências com as

substâncias e objetos físicos, de modo que possamos nos referir, categorizar,

agrupar, quantificar e raciocinar sobre essas experiências. Essas metáforas são

utilizadas de modo que possamos apreender o mundo, para que possamos impor

limites artificiais aos fenômenos físicos, tornando-os entidades demarcadas por uma

superfície (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 76). Os pesquisadores complementam

dizendo que, muitas expressões que nós utilizamos, sem que percebamos, no nosso

dia a dia são metáforas ontológicas ou orientacionais, pois constantemente

quantificamos ou nos referimos a objetos.

Os pesquisadores afirmam que, no processo de construção e de

compreensão de metáforas, o falante e o ouvinte entendem um tipo de coisa ou

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vivenciam uma experiência em detrimento de outra de diferente tipo. Isso significa

que, para compreender as metáforas, são necessárias as próprias experiências que

são, ao mesmo tempo, de natureza pessoal e social. Os estudiosos apontam um

exemplo que permite esclarecer melhor essa tese. Na metáfora conceptual,

argumento é guerra. Nessa metáfora, a forma como se fala o argumento, bem como

a forma pela qual se persuade alguém e os próprios argumentos utilizados podem

ser compreendidos em termos de conhecimentos que, culturalmente, construímos

para o domínio da guerra (estratégia de combate, vitória, derrota, violência, morte).

O presente capítulo teve por finalidade apresentar os fundamentos

teóricos que orientam a realização desta pesquisa. Assim sendo, foi dedicado à

apresentação de conceitos teóricos que serão retomados no processo de análise

dos dados que constituem a pesquisa.

No próximo capítulo, serão apresentados os fundamentos metodológicos

adotados na presente pesquisa. Entre esses, serão descritos os processos de

composição, seleção, de documentação do corpus e os critérios adotados para a

constituição dos dados para análise.

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Capitulo 4

4 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS

Na sociedade ―pós-moderna‖, caracterizada como era da informatização e

da tecnologia, pode-se identificar uma quantidade considerável de publicações em

jornais impressos ou digitais, programas de TV e rádio, sites e blogs na internet,

acerca de casos de violência física, moral, institucional e/ou psicológica contra

adeptos das religiões de matriz africana, seus locais de culto e bem como tudo o que

está diretamente ou indiretamente relacionada às mesmas.

Assim compreendida, podemos afirmar, por princípio, que o contexto

social, cultural e institucional bem como as relações de poder e ideologia permeiam

práticas discursivas no âmbito midiático. Isso pode ser observado no ato de reportar

e de informar fatos e situações sociais os mais diversos e em determinadas

realidades sociais, como naquela em que se inscreve esta pesquisa.

Este trabalho de pesquisa se estrutura em termos de uma investigação e

análise de natureza discursivo interpretativa. Através dessa abordagem

pretendemos aprofundar, em termos de análise, a problematização da presente

pesquisa e a retomada de elementos que compõem os pressupostos teóricos

apresentados nos Capítulos 2 e 3, dedicados à apresentação dos fundamentos

sociohistóricos e sociodiscursivos, respectivamente.

Neste capítulo, apresentaremos os fundamentos metodológicos que nos

orienta na realização da pesquisa.

4.1 Procedimentos adotados para a constituição do corpus

Na presente pesquisa, ao tratarmos da análise de textos jornalísticos,

reconhecendo-os como construções sócio-históricas, consideramos que esses não

se restringem a textos caracterizados por uma estrutura composto de palavras ou

por marcas e traços de estilo de um jornalista que assume a autoria do texto.

Para a constituição do corpus a ser analisado nesta pesquisa, partimos do

princípio de que o texto jornalístico é um lugar privilegiado para a identificação de

vozes sociais construídas e perpetuadas sociohistoricamente. Assim sendo,

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privilegiamos o trabalho de identificação e de seleção de reportagens de jornais de

circulação nacional ou estadual em que estivessem implicadas situações sociais que

envolvesse na prática religiosa da Umbanda e do Candomblé. Nesse sentido,

realizamos um levantamento de reportagens em que, preferencialmente, estivessem

vinculadas a práticas enunciativas que, de algum modo, predicassem ou se

referissem às religiões e aos seus praticantes.

Como visto no capítulo dedicado aos fundamentos sociohistóricos, dentre

as religiões de matriz africana presentes no Brasil, a Umbanda e o Candomblé,

foram escolhidas por se constituírem as religiões com maior quantidade de adeptos

e terreiros do Brasil, especialmente na região sudeste.

No processo de constituição dos dados apresentados para análise, foram

coletadas reportagens de jornais de grande circulação para constituição do corpus

da pesquisa.

A seleção dos textos jornalísticos a serem analisados se deu a partir do

processo de identificação, online, de um vasto volume de material, produzido e

veiculado na mídia corporativa, mais especificamente em jornais de grande

circulação, inicialmente entre os anos de 2014 e 2019.

Do volume de publicações encontradas no período especificado,

coletamos notícias publicadas, mais especificamente, nos jornais O Globo,

Estadão, O Tempo, Jornal Extra, Folha de São Paulo, A tarde, e El País Brasil,

Jornal Correio da Bahia e Folha de Minas Gerais e no portal de notícias G1.

Para efeito de composição geral do corpus, que constituiu a fase

preliminar da pesquisa, foram reunidas notícias publicadas, mais precisamente, de

setembro de 2014 a agosto de 2019, totalizando 53 (cinquenta e três) reportagens.

Esse conjunto revelou-se caracterizado com a seguinte configuração, em termos do

número de reportagens e estado por veículo de comunicação:

15 (quinze) reportagens identificadas no jornal O Globo (RJ);

3 (três) no jornal Extra (RJ);

5 (cinco) no portal de notícias G1 (RJ);

10 (dez) do jornal Estadão (SP);

1 (uma) no jornal Folha de São Paulo (SP);

1 (uma) no jornal A Tarde (SP);

13 (treze) no jornal O Tempo (MG);

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3 (três) reportagens do jornal Estado de Minas Gerais (MG);

1 (uma) no jornal El País Brasil (Brasília);

1 (uma) reportagem do Jornal Correio da Bahia (BA).

Os textos foram coletadas, exclusivamente, através da versão online dos

respectivos jornais. Para essa coleta, foram utilizadas as palavras-chave ―Umbanda‖,

―Candomblé‖, ―terreiro‖, ―religião‖, ―religiões afro-brasileiras‖, ―religiões de matriz

africana‖, ―religiosidade‖, ―intolerância religiosa‖, ―preconceito religioso‖, ―orixás‖.

Todas as reportagens encontradas, no site oficial de cada jornal, foram lidas e, como

critério, selecionadas somente as que tratavam de algum fato relacionado

diretamente à Umbanda e ao Candomblé e seus adeptos.

No conjunto, as notícias selecionadas, preliminarmente, relatam

ocorrências de agressões de diversos tipos contra adeptos do Candomblé e da

Umbanda, invasão, depredação e destruição parcial ou total de terreiros, imagens e

objetos sagrados para os adeptos dessas religiões. Esclarecemos que, apesar de

assim caracterizadas, não estabelecemos como critério coletar notícias que

reportassem somente práticas sociais intolerantes em relação às religiões já citadas.

Os casos de intolerância relatados ocorreram em todo o Brasil, envolvendo cidadãos

de diferentes idades e diferentes gêneros (homem e mulher). Além disso, como

buscaremos explicitar, capítulo de análise, os sujeitos acusados de serem os

agressores são referenciados e predicados como integrantes de diferentes

denominações religiosas, diferentes cidades do país, idades distintas. Esse

elemento, constitutivo do corpus, nos permite identificar e reconhecer uma

pluralidade de ideias e de perspectivas, em termos predicativos, de categorização,

do objetivo de discurso referenciado, em estudo: Umbanda e o Candomblé.

Das 53 reportagens selecionadas, em um primeiro momento, 9 (nove)

foram excluídas, após uma leitura atenta. Isso se deu por se tratarem de textos em

―réplica‖, ou seja, que focalizavam um mesmo caso já relatado em outra reportagem,

de outro jornal, e sem acréscimo de informações.

Tendo realizado uma leitura minuciosa do conjunto de textos jornalístico

selecionados, em busca de promover uma reestruturação do corpus, dos 53 textos

que o constituíram, previamente, em um segundo momento, foram selecionados 17

(dezessete) para o processo de análise, priorizando dois jornais de grande

circulação nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia, a saber:

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O Globo, Jornal Extra, Estadão, Folha de São Paulo, A Tarde, O Tempo, Jornal

Estado de Minas Gerais, El País Brasil e Jornal Correio da Bahia.

Os jornais dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais

foram selecionados pelo fato de as duas religiões (Umbanda e Candomblé)

possuírem maior número de adeptos e de terreiros na região sudeste do Brasil. O

jornal da Bahia, por se tratar do estado em que as religiões referenciadas possuem

forte e reconhecida influência na matriz e dinâmica sociocultural desse estado.

Os textos jornalísticos definidos para análise foram selecionados por

serem representativos de jornais de circulação diária ou semanal, com alcance de

um público amplo, seja em sua versão impressa ou digital. Para definição das

reportagens a serem selecionadas, tanto preliminarmente (53 textos) quanto no

segundo momento (17 textos), os critérios foram simples e objetivos.

No processo de constituição do corpus, não houve predileção na escolha

de um jornalista, em particular, que tenha escrito/assinado a reportagem, nem de

identificação à priori da pessoa ou instituição que cometeu algum ato infracional ou

intolerante em relação às respectivas religiões afro-brasileiras. Além disso, os textos

em questão não aparecem, necessariamente, como matéria de destaque no dia da

publicação.

O critério utilizado como fator de inclusão da reportagem no corpus, além

da busca temática, foi o do recorte temporal. Na fase preliminar, a data de

publicação da reportagem observou o critério dos últimos cinco anos.

A metodologia de análise dos dados constituintes da pesquisa se deu

pela análise dos dados coletados nas reportagens de forma a identificar a dinâmica

do processo de Referenciação em que a Umbanda e o Candomblé são objetos de

discurso referenciados e categorizados (predicados), ou seja, de forma a descrever

os diferentes modos de se referir, de nomear Umbanda, Candomblé, seus adeptos,

divindades e objetos ligados a tais religiões.

Por meio da sistematização dos dados constituídos para a pesquisa,

acreditamos ser possível sugerir compreensão acerca do modo como a sociedade,

ainda nos dias atuais, se referem às religiões afro-brasileiras, com ecos da forma

como historicamente essas religiões foram criadas e sobreviveram no país. Através

da análise do processe de Referenciação dessas religiões na mídia jornalística

corporativa, pretendemos contribuir para a compreensão de como o processo

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histórico de construção de tais religiões no território brasileiro leva a esse ―modo‖ de

se referir às mesmas e, como proposto na hipótese desta pesquisa, como isso se dá

na forma de metáforas que estruturam o modo como as religiões (seus adeptos, seu

espaço sagrado, os terreiros suas divindades) são compreendidas socialmente. E,

dessa forma, tentar contribuir para uma discussão sobre como esse modo de

referenciar e de predicar pode interferir na relação inter-religiosa ou das religiões

com a sociedade civil, obtendo como resultado o processo de estigmatização não só

das religiões de matriz africana como de seus adeptos.

As matérias selecionadas para análise, em geral, tratam de casos de

agressão física contra adeptos de religiões de matriz africana; de agressões verbais

e patrimoniais, que ocorrem quando há invasão e destruição parcial ou total do

terreiro e/ou objetos sagrados por questões religiosas. Entre os textos jornalísticos

selecionados, porém, não há unicamente matérias relacionadas à agressão às duas

religiões, há também relatos de comissões realizadas entre líderes de diferentes

segmentos religiosos que se reúnem na tentativa de diminuir ou acabar com as

divergências religiosas existente, há movimentos em prol da igualdade religiosa,

dentre outros assuntos relacionados à extinção de práticas de coibição de qualquer

culto religioso.

Há, nas matérias publicadas, também, a referência a fato ocorrido contra

adeptos ou templos de religião africana; os fins pelos quais ocorreram as agressões;

se houve envolvimento ou não do poder público através da polícia, Ministério

Público, ou envolvimento de alguma ONG relacionada com a defesa do direito a

liberdade religiosa. Como pretendemos descrever, é possível encontrar, no conjunto

dos textos selecionados, destaque de frases direcionadas aos umbandistas ou

candomblecistas, indicando o modo social de se referir a tais pessoas ou à crença

religiosa à qual os mesmos pertencem, de maneira ofensiva, pejorativa.

No próximo capítulo, passaremos à análise dos dados constituídos a

partir do corpus da pesquisa. A apresentação e análise dos dados serão realizadas

em uma seção, que foi intitulada Estratégias discursivas comuns às cenas

jornalísticas de 2018 e 2019.

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Capitulo 5

ANÁLISE DE DADOS

5.1 A Umbanda e o Candomblé na cena jornalística brasileira

No decorrer do trabalho foram apresentadas as perspectivas históricas e

sociais do ―surgimento‖ da Umbanda e do Candomblé como religiões brasileiras.

Além disso, os fundamentos teóricos que optamos assumir para o processo de

análise dos dados da pesquisa. Isso inclui as concepções de linguagem, língua,

enunciação, discurso, texto, uma discussão acerca do caracteriza, no domínio do

discurso jornalístico, uma notícia, e as teorias do processo de referenciação e de

metaforização que adotamos.

Esse quadro teórico servirá como base para compreensão que

apresentaremos a seguir a partir do que identificamos nas reportagens selecionadas

como corpus para análise do presente trabalho. No capítulo anterior,foram

apresentados os fundamentos metodológicos, a fim de contextualizar como se deu a

seleção, coleta e escolha dos dados a serem analisados na presente pesquisa.

O cerne deste trabalho recai sobre práticas referenciais e metafóricas no

processo discursivo acerca da Umbanda e do Candomblé na atualidade, na

sociedade brasileira, mais precisamente como estas religiões são referidas no

domínio discursivo jornalístico, produzido na mídia corporativa, empresarial,

nacional. Nesse contexto discursivo, pretendemos investigar como os jornais

preconizam ou apresentam, em seu discurso, a Umbanda e o Candomblé, e, nessa

medida, como essas religiões estão referenciadas na cena jornalística brasileira nos

anos de 2018 e 2019.

Antes de apresentarmos argumentos que objetivam delinear a forma

como a Umbanda e o Candomblé formam a cena jornalística brasileira nos dois anos

que antecederam este relatório de pesquisa, iremos analisar duas notícias que

compões o corpus da mesma, uma de 2018 e outra de 2019. Esta análise tem por

objetivo descrever o processo de Referenciação e de Metaforização que constitui os

textos jornalísticos em questão.

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Em uma reportagem publicada no dia 16 de novembro de 2018 há o

relato de intolerância religiosa por parte de um zelador umbandista, o mesmo relata

que os integrantes de seu terreiro estavam realizando uma cerimônia religiosa em

um cemitério da cidade de Niterói, quando o grupo foi interrompido por evangélicos

que gritavam: ―macumbeiros, capeta, macumbeiros têm que morrer‖; ―tá amarrado

em nome de Jesus‖; ―tem que expulsar porque é demônio‖; e ―Queima eles

Satanás‖. Nessa reportagem, podemos perceber a referenciação a religião de matriz

africana com uso de predicações como capeta, demônio, macumbeiro. A associação

feita entre as religiões afro-brasileiras e entidades ou seres associados ao mal é

notável, ou mesmo o uso do termo ―macumbeiro‖ para se referir aos adeptos da

Umbanda ou do Candomblé tornou-se algo corriqueiro, tendo o termo ganhado novo

significado no meio social que desconhece o verdadeiro sentido da palavra

―macumba‖. Pode-se verificar a luta ou guerra entre o bem, representado pelos

evangélicos e suas crenças e o mal, que está representado pelos umbandistas e a

necessidade de se exterminar o mal do mundo, e pode-se fazer isso exterminando

as religiões de matriz africana, que seriam um dos meios de ação do mal na terra.

Em uma reportagem publicada no dia 28, de maio de 2019, membros de

um terreiro de Candomblé localizado em Alagoinha – BA relatam terem sido vitimas

de intolerância religiosa por parte de um grupo de evangélicos, que gritavam

"Satanás vai morrer" e "Vamos invocar Jesus para fechar a casa de Satanás", além

de bater com uma bíblia na porta do terreiro. De acordo com o caso relatado, o

processo referencial nos possibilita verificar uma associação da religião afro-

brasileira com Satanás e o terreiro como sendo a casa de Satanás, ou seja, a casa

do mal, de coisas ruins. Podemos verificar uma referencia pejorativa em relação ao

Candomblé como religião e ao terreiro propriamente dito enquanto local onde o mal

habita, portanto que deve ser destruído. Nesse caso podemos ver uma metáfora

implícita, que seria representada pela luta do bem, no caso representado pelos

evangélicos e suas crenças, contra o mal, representado pelo Candomblé, seus

adeptos e seu local de culto, que precisam ser reconhecido, subjugado e destruído

para que o bem possa prevalecer, o bem estando representado pela verdade

estabelecida nas igrejas evangélicas. Pode-se perceber que os integrantes da igreja

evangélica tomam a sua verdade e a sua palavra como verdade universal e

pretende instaurar no mundo essa verdade.

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5.1.1 Estratégias discursivas comuns às cenas jornalísticas de 2018 e 2019

O cerne desse trabalho recai sobre as práticas discursivas, referenciais e

metafóricas acerca das religiões afro-brasileiras, mais especificamente a Umbanda e

o Candomblé no contexto jornalístico brasileiro. Neste momento, buscaremos

formular em linhas gerais estratégias discursivas comuns às cenas jornalísticas que

referenciam a Umbanda e o Candomblé nos anos de 2018 e de

Para isso, selecionamos, do ano de 2018, 8 (oito) reportagens que

noticiam situações envolvendo a Umbanda, o Candomblé, seus adeptos e/ou outros

elementos ligados diretamente a essas religiões. Dessas reportagens, serão

apresentados excertos, com a finalidade de ilustrar os argumentos que sustentam a

análise 2019.

Uma análise do conjunto das notícias publicadas em 2018 e 2019 nos

permite observar alguns pontos em comuns na forma como as religiões são

referenciadas. O primeiro ponto em comum é o fato de ser verificável a presença da

expressão ―intolerância religiosa‖ em todos os jornalísticos. O que pode-se verificar

nas reportagens coletadas foi a constante repetição de termos como vítimas,

intolerância, combate. Tal expressão pode ser identificada em diferentes momentos

(partes) do texto. Em alguns deles, na manchete, no título ou subtítulo, da notícia,

como pode ser comprovado, ilustrativamente, nas figuras 1 e 2, em destaque a

seguir:

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Figura 1

(Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/umbandistas-pedem-ao-mp-abertura-de-acao-

penal-contra-evangelicos-por-intolerancia-23239517.htmlÚltimo acesso em 1 de junho de 2020.)

Como é possível observar, de maneira ilustrativa, a seguir, a mesma

estratégia se repete em manchetes de notícias do ano de 2019.

Figura 2

(Disponível em:https://oglobo.globo.com/sociedade/mpf-reune-babalao-pastores-evangelicos-para-

discutir-combate-intolerancia-religiosa-23795458Último acesso em 1 de junho de 2020.)

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O objetivo comunicativo dessa estratégia discursiva, certamente, é o de

chamar a atenção do leitor para algum fato a ser narrado no texto que se segue.

Quando isso ocorre, já no título, há uma repetição constante da palavra intolerância

no decorrer do percurso argumentativo. Essa repetição ocorre sempre que o

jornalista quer evidenciar um ato praticado por um sujeito social (um cidadão

agressivo) a outro sujeito social (vítima da agressão), reconhecido socialmente como

membro da Umbanda ou Candomblé, ou a algum terreiro.

Na reportagem publicada pelo jornal Extra no dia 16 de novembro de

2018, a palavra ―intolerância‖ já aparece logo na manchete da reportagem para que

possa chamar a atenção do leitor para o fato ocorrido ―Umbandistas pedem ao MP

abertura de ação penal contra evangélicos por intolerância‖. Podemos perceber isso em

algumas passagens da reportagem: ―O babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da

Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, deu entrada com uma

representação criminal junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

(MPRJ) pedindo a instauração de ação penal para apurar responsabilidades criminal

de integrantes da Igreja Ministério Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói. O

grupo é acusado pelos umbandistas de formação de quadrilha, perturbação de culto

e intolerância religiosa. [...]Na página da igreja no Facebook há várias mensagens

de repúdio contra a ação dos evengélicos. ―Intolerância é o que vocês pregam, não

tem um pingo de amor ao próximo, e respeito com as demais religiões‖, postou uma

internauta. ―Péssimo! Intolerância religiosa é CRIME, espero que saibam disso!

Difundem o verdadeiro significado do evangélico e afastam pessoas da sua própria

religião por serem ignorantes‖, escreveu outra.‖

Outro elemento a ser observado, apesar da diferença de tempo de

publicação entre os textos, é o fato de a fotografia, publicada em primeiro plano em

ambos, representar em o diálogo entre sujeitos sociais que, em tese, buscam

enfrentar as dificuldades relativas à atitude social de intolerância religiosas. Em

ambas, aparecem, em primeiro plano, lideranças das religiões de matriz africana e

representantes do Ministério Público. Entre a manchete e a imagem parece se

estabelecer uma contraposição argumentativa: de um lado, sendo a manchete

constituída de orações curtas, chamativas e apelativas para o que o jornalista

pretende transmitir ao leitor do jornal. Verifica-se que já nas manchetes há o uso

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insistente do termo intolerância religiosa, ou algum termo que dê ideia de vítimas,

combate, agressão.

No processo de estruturação discursiva do conjunto de notícias, em

análise, é possível observar também a constante utilização de termos ou expressões

como ―perturbação de culto‖, ―crime‖, ―discriminação religiosa‖, ―ataque‖, ―invasão‖,

―preconceito‖, ―violação à liberdade religiosa‖, entre outros. Na constituição da

reportagem, podemos notar que quando há o emprego de uma foto para ilustrar o

fato narrado, sempre há foto de um adepto da Umbanda ou Candomblé, ou um

terreiro destruído, um sacerdote de uma dessas duas religiões como centro da

imagem, para que seja claro a quem a reportagem se refere.

Na reportagem publicada no dia 18 de agosto de 2019 pelo jornal

Estadão, podemos verificar ainda no titulo da mesma os seguintes dizeres: ―Polícia

prende ‗Bonde de Jesus‘ que ataca terreiros de Umbanda e Candomblé‖. Excertos

como esse que foi destacado no titulo da reportagem são muito comuns nas

reportagens encontradas que relatam algum fato relacionado às religiões afro-

brasileiras. Ainda no primeiro parágrafo da mesma reportagem podemos identificar a

expressão intolerância religiosa e novamente ataque: ―Os registros de intolerância

religiosa são comuns Brasil afora, mas no Rio têm uma característica particular:

passaram a envolver traficantes e evangélicos. Após ataques a terreiros de

umbanda e candomblé na Baixada Fluminense. [...] ‗Qualquer ataque com

contornos de destruição do sagrado tem caráter de racismo religioso‘, diz a

defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualdade racial da Defensoria

Pública. "À violência que já existe contra essas religiões - que têm uma série de

direitos negados -, se soma agora a do varejo de drogas. Mas a violência contra

elas é permanente desde a época colonial." Por isso, para Livia, a solução passa por

diferentes esferas.‖

Uma estratégia comum aos textos de natureza jornalística, o discurso

reportado, é utilizada de forma regular e particular no conjunto de textos analisados.

Os jornalistas responsáveis pelas matérias optam por, no decorrer dos relatos,

criarem uma alternância entre o fato narrado e argumentações de ordem legal. Isso

ocorre na forma de menção à alguma lei, estatuto ou artigo da constituição federal

que garante liberdade religiosa, liberdade de culto, ou que reforça o fato ocorrido

como sendo um ato de discriminação, racismo ou intolerância religiosa.

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Na reportagem citada anteriormente que foi publicada pelo jornal Extra no

dia 16 de novembro de 2018, são citadas duas leis que amparam a parte queixosa

de intolerância. Na referida reportagem, no penúltimo parágrafo podemos encontrar

a seguinte colocação: ―Na denúncia, os umbandistas argumentam que a lei

orgânica do município de Niterói prevê que nos cemitérios públicos da cidade são

permitidas todas as confissões religiosas, bem como as práticas dos seus ritos. Além

disso, a Lei 3.089 de 26 de junho de 2014 declara a umbanda como patrimônio

imaterial daquele município.‖ Outro exemplo que pode ser citado ainda sobre as

representações legais de igualdade e liberdade religiosa está na reportagem

publicada pelo jornal Estadão no dia 08 de dezembro de 2018, que foi intitulada

―Liberdade religiosa, direito ameaçado‖, onde no decorrer da reportagem o jornalista

cita a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que garante o direito a liberdade

religiosa. Na referida reportagem podemos verificar as seguintes colocações: ―O

artigo 18 da Declaração da ONU estabelece que “toda pessoa tem direito à

liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de

mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença,

pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente,

em público ou em particular”. No Brasil, a Constituição de 1988 consolidou a

liberdade de crença e de culto nos artigos 5.º e 19, e na Lei n.º 7.716, de 1989,

que configura como crime a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou

nacionalidade.‖

Ao analisar o conjunto de reportagens, podemos observar o que Koch

ressalta ao dizer que o emprego de uma descrição nominal, com a função de

categorizar ou recategorizar um referente, sempre implicará na escolha entre uma

multiplicidade de formas de categorização do referente, sendo que esta escolha

sempre será feita, em cada contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do

texto. Na análise do corpus, observamos que, em uma gama de possibilidades de

categorização,para se referir às religiões afro-brasileiras, a escolha da categoria

usada para realizar a referenciação se dará de acordo com o que o enunciador em

questão (o jornalista, um entrevistado, a autoridade legal) pretende construir como

sentido. Dessa forma, é possível afirmar que, na construção do sentido, precisamos

considerar o contexto de produção e o público que se deseja atingir, ao usar

determinada categoria em ver de outra.

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Segundo Koch, não é difícil constatar que o emprego de expressões

nominais anafóricas opera a recategorização dos objetos de discurso, ou seja, de

forma que tais objetos, ao longo do texto, serão reconstruídos de determinada

forma, o que atenderá aos propósitos comunicativos do falante.

Para ilustrar esse argumento, podemos identificar, na reportagem

publicada no dia 16 de novembro de 2018, uma associação legal dos atos

praticados pela igreja Ministério Redenção como formação de quadrilha. Para

construir essa predicação, a matéria cita a Lei Orgânica Municipal do Rio de Janeiro

para evidenciar que o ato dos membros da igreja é crime. Na referida reportagem,

há menção a falas dos membros da igreja mencionada, em que os mesmos se

referem aos membros de um terreiro de Umbanda como ―Macumbeiros, capeta,

macumbeiros têm que morrer, tá amarrado em nome de Jesus‖. Esses excertos

podem ilustrar a colocação de Koch com relação ao emprego de expressões

nominais anafóricas que são usadas para categorizar ou recategorizar os objetos do

discurso.

O objeto do discurso na referida situação é a Umbanda e o Candomblé,

onde uma igreja evangélica se refere às mesmas como ―macumbeiros, capeta

(fazendo alusão ao mal que as religiões provavelmente representam ao mundo).

Esses são expressões nominais usadas constantemente quando alguns grupos

religiosos se referem às religiões de matriz africana, seus adeptos e seus locais de

culto.

No conjunto dos textos analisados, a repetição de expressões que

categorizam (referenciam e predicam) os atos narrados pelos jornalistas, além do

uso da expressão intolerância religiosa, que ocorre nas oito reportagens publicadas

em 2018, também se dá pela menção a órgãos de proteção e combate à prática de

intolerância religiosa e o uso de estatísticas para dar maior credibilidade ao que já foi

evidenciado anteriormente. Isso pode se comprovado na reportagem publicada em

19 de novembro, em que o jornal evidencia que houve o aumento de 17,5% no ano

de 2018 na notificação de denúncias de agressão contra adeptos das religiões de

matriz africana.

O uso de expressões anafóricas para se referir as religiões afro-brasileiras

ou a repetição constante da expressão intolerância religiosa podem ser verificadas

nos próprios títulos das reportagens. Em relação aos dados referentes ao aumento

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de denuncias de agressão contra adeptos da Umbanda e do Candomblé ou de

invasão de terreiros pode ser verificados na reportagem publicada no dia 05 de

junho de 2019, em que no decorrer da reportagem são mostrados dados referentes

a denuncias. Pode-se verificar na mesma os seguintes dados: ―Entre 2011 e 2017,

as denúncias de discriminação por motivo religioso no Brasil cresceram de 15 para

537. Os dados mais recentes do Disque 100 totalizam apenas o primeiro semestre

de 2018, quando foram registradas 210 denúncias. Quase 60% dos casos de

intolerância religiosa contra adeptos de religiões de matriz africana foram registrados

no Rio de Janeiro (117), São Paulo (95), Bahia (56) e Minas Gerais (51). No entanto,

de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, onde está

localizado o terreiro de Claudia, 6.324 boletins de ocorrência com casos de

intolerância religiosa foram registrados no estado nos dois últimos anos. [...]Segundo

dados do Disque 100 acessados pela Gênero e Número e pelo DataLabe, 59% do

total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram referentes a religiões como

a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas; 11% a espíritas; 8% a

católicos; e 2% a ateus.‖ Abaixo podemos ver um gráfico apresentado pela referida

reportagem:

Outro ponto a ser observado é o fato de os adeptos da Umbanda e do

Candomblé serem sempre referidos como vítimas nos casos narrados. Tal fato

parece ocorrer por dois motivos. Primeiramente, porque os adeptos dessas religiões,

na vida social, historicamente, continuam sendo alvo de atos de vandalismo contra

os terreiros, o seu território sagrado, suas casas, seu patrimônio físico (suas vestes)

e imaterial (seus rituais). Em segundo lugar, por serem vítimas da falta de

compromisso e atitude do estado em relação aos seus direitos institucionais. Isso

pode ser observado uma vez que, no conjunto dos textos analisados, identificamos o

relato de que a policia foi chamada a algum local de agressão ou invasão e a

mesma não compareceu, ou quando não há uma tomada de atitude real e eficaz

para se prevenir ou acabar com os atos de ―intolerância religiosa‖.

Alguns exemplos do que foi dito anteriormente podem ser verificados

primeiro nos títulos das reportagens: ―Umbandistas pedem ao MP abertura de ação

penal contra evangélicos por intolerância”, “Aumenta número de denúncias de

discriminação contra adeptos de religiões de matriz africana em 2018 no país”,

“Feliciano diz que ataque a menina do candomblé é 'barbaridade'‖. Os adeptos da

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Umbanda e do Candomblé, bem como os terreiros esculturas, estatuas presentes

em locais públicos são sempre relatados como vítimas de ataques, perseguição,

violência, injuria religiosa.

Um fato comum, associado ao contexto social descrito pelas reportagens,

é a falta de preparo da polícia militar e civil para lidar com casos de violência contra

templos religiosos ou adeptos de qualquer religião, além da falta de um registro

específico nos boletins de ocorrência para crimes cometidos contra instituições

religiosas. Esse fato, identificado no conjunto dos textos analisados, nos permite

concluir que, ao se reportar formas de violência de que são vítimas adeptos e

lideranças da Umbanda e do Candomblé, esses são referenciados como sujeitos

sociais que não encontram, nas autoridades policiais, a garantia dos seus direitos.

Na reportagem intitulada ―O problema da heterogeneidade dos dados‖,

que foi publicada no dia 10 de fevereiro de 2018, logo no início da reportagem há a

seguinte colocação: ―Os estados brasileiros não possuem uma base estatística

consolidada e uniforme sobre boletins de ocorrências (BOs) envolvendo casos de

intolerância religiosa no país‖. Um pouco mais a frente temos: ―A sistematização das

informações sobre intolerância religiosa é heterogênea nos estados, sendo que

nenhuma base de dados disponibilizada revela a religião da vítima e, apenas em

alguns casos, como no Distrito Federal e na Bahia, trazem dados de gênero e raça

dos denunciantes.‖ A mesma reportagem revela que ―Durante o atendimento às

vítimas, casos mais delicados demandam agentes de segurança pública com algum

tipo de treinamento para lidar melhor com a situação. O deputado Átila Nunes cita o

caso de um babalorixá que teve sua casa invadida e depredada, e que, depois de

muito esperar para concluir o registro, viu o agente se recusando a entrar no terreiro

para fazer a perícia da cena do crime.”

Neste sentido, vale lembrar Ducrot (1984, p. 418 - 437). Para o

pesquisador, no processamento discursivo, o referente não é a realidade

propriamente dita, mas sim a realidade a qual a ato de referenciar tenciona

descrever ou transformar, ou seja, o referente é uma realidade do discurso. O

referente utilizado no discurso oral ou escrito para dizer algo da Umbanda ou do

Candomblé não nos dirá da realidade em si, mas sim do que o produtor do discurso

pretende transformar ou tencionar. Assim sendo, devemos destacara que, na análise

que realizamos do corpus constituído para a pesquisa, a realidade apresentada nos

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fatos relatados é fruto de um ponto de vista, ou seja, está vinculada ao que o

jornalista nos apresenta. Dito de outra maneira, no discurso jornalístico, há um

recorte da realidade em os fatos apresentados estão associados ao que o jornalista

quis apresentar ao escrever a reportagem, não havendo, muitas vezes, possibilidade

de todas as partes envolvidas nos fatos relatados apresentarem a sua versão para o

ocorrido. O jornalista expõe aquilo que lhe é mais conveniente e o faz para

convencer o leitor do que ele ou o jornal quer instituir como verídico.

Vários artigos da constituição federal, assim como a Declaração Universal

dos Direitos Humanos, Leis Estaduais estão citados, no conjunto das notícias

analisadas, para esclarecer ou evidenciar como questões legais e jurídicas podem

punir atos contra religiões, seus templos ou praticantes. Pode-se observar, de

acordo com os relatos realizados nas reportagens, por diferentes enunciadores, a

associação dos cultos afro-brasileiros com ―demônios‖. Entre os textos analisados,

em reportagem publicada no dia 17 de junho de 2018, é possível identificar a fala de

um enunciador, referenciado como agressor, que interpela adeptos da Umbanda e

do Candomblé de maneira agressiva, desrespeitosa, violenta.

Em uma reportagem publicada pelo jornal Estadão no dia 17 de junho de

2018, intitulada ―Feliciano diz que ataque a menina do candomblé é

'barbaridade'”, relata o fato de uma menina que foi apedrejada na cabeça após sair

de um terreiro de Candomblé vestida com trajes típicos da religião: ―A menina, de 11

anos, caminhava pela Avenida Meriti, acompanhada por sete pessoas que haviam

saído de um evento religioso, quando dois homens que estavam em um ponto de

ônibus do outro lado da rua, com Bíblias sob os braços, começaram a insultá-los.

Segundo a avó, os agressores gritaram "Sai, demônio, vão queimar no inferno,

macumbeiros" e lançaram a pedra, que bateu em um poste antes de atingir a

menina. Ela desmaiou. Os criminosos fugiram em um ônibus. [...]Embora logo após

o ataque houvesse decidido não sair mais às ruas com roupas brancas e o torso

(turbante) característico dos candomblecistas, a estudante mudou de ideia, ao ser

incentivada a continuar se vestindo dessa forma.Nesta terça, ela foi ao IML trajada

com vestes religiosas, acompanhada pela avó, a mãe de santo Katia Marinho, de 53

anos, e pela mãe, que é evangélica”

Outro exemplo é o que foi publicado na reportagem intitulada ―Fé

desrespeitada: A dificuldade no combate à intolerância religiosa‖, publicada no dia

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16 de novembro de 2018, onde há o seguinte relato: ―Durante anos, os sábados de

Marco Antônio Pinho Xavier, presidente do Movimento Umbanda do Amanhã (Muda)

e liderança à frente da Tenda Espírita Caboclo Flexeiro, em Santíssimo, no Rio,

foram repletos de agressões. Nos dias de celebração, ele encontrava as janelas e

altares do terreiro quebrados e as portas sujas de óleo e sal. Também era xingado

pelos ocupantes do segundo andar do imóvel apenas por professar sua fé. [...] No

feriado de finados, no último dia 2, muitas pessoas prestavam suas homenagens

aos mortos em todo país. Em Niterói, adeptos de religiões de matriz africana foram

impedidos de fazer um culto aos seus ancestrais por um grupo de evangélicos, sob

gritos de “Capetas! Macumbeiros têm que morrer. Na confusão, que aconteceu no

Cemitério Maruí Grande, o umbandista Allan Souza, que incorporava uma divindade,

teria sido agredido a tapas na cabeça.‖

Outro aspecto comum aos textos jornalísticos analisados é que, no ato de

reportar os fatos, na forma de notícia, raramente, a voz é dada àqueles que

supostamente agrediram algum adepto da Umbanda ou do Candomblé, ou alguém

que invadiu algum terreiro. Na grande maior parte dos textos, a voz identificada ou é

a do jornalista responsável pela matéria publicada ou a de algum umbandista,

candomblecista ou em alguns poucos casos algum representante de órgãos públicos

como a policia militar e civil, advogados ou representantes do Ministério Público.

Há sempre nas reportagens a voz do jornalista que relata os fatos

ocorridos, em algumas circunstancias pode-se perceber também a voz de algum

representante legal como um policial, político, representante do Ministério Público ou

de alguma prefeitura, comissão relacionada aos direitos humanos ou de combate a

intolerância religiosa, e quando há entrevista com alguma das partes envolvidas no

caso relatado na reportagem, sempre quem aparece é o agredido e não o agressor,

mesmo que para dar alguma explicação ou confirmação se realmente algo.

Uma exceção a essa regra está em uma reportagem, publicada em 09 de

julho de 2018, em que é possível identificar a menção de uma reunião de líderes

religiosos, promovida pelo Ministério Público Federal com a finalidade de discutir a

intolerância religiosa e a violência contra terreiros. Na referida matéria, o jornalista

destaca que uma pastora de uma igreja evangélica diz que, ainda, há muito ódio

contra as religiões de matriz africana e que ela já está pregando em sua igreja

mensagens de respeitos e tolerância. Na mesma matéria, é possível identificar a voz

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reportada de um pastor de outra igreja evangélica que teve a oportunidade de falar

da importância de traçar estratégias de enfrentamento à violência contra a Umbanda

e o Candomblé. A reportagem citada se encontra com o titulo ―MPF reúne babalaô

e pastores evangélicos para discutir combate à intolerância religiosa.‖, e inicia-

se com o seguinte relato: ―O Ministério Público Federal (MPF) sediou nesta terça-

feira um encontro inédito entre pastores evangélicos, promovido pela Comissão de

Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e organizado pelo babalaô Ivair dos

Santos. A reunião ocorreu na sede do órgão, no Centro do Rio. A perspectiva é que

a reunião seja um ponto de partida para traçar estratégias que inibam episódios de

violência. O crescimento expressivo de ataques contra terreiros por parte do tráfico

de drogas, especialmente na Baixada Fluminense, tem chamado a atenção do

MPF.‖

No mais, não é possível se ter acesso a outras versões dos fatos

relatados, muito menos foi dado o direito de resposta a qualquer pessoa ou

instituição que não fosse o próprio jornalista redator da matéria publicada, a possível

vítima ou algum órgão publico envolvidos nas investigações de agressão ou

violência a terreiros ou adeptos das religiões de matriz africana.

A partir deste momento, exploraremos as reportagens publicadas no ano

de 2019, veiculadas nos jornais citados anteriormente. Foram selecionadas 10 (dez)

reportagens, publicadas no referido ano. A partir da análise desse conjunto de

textos, serão descritos pontos comuns ao processo de estruturação discursiva das

mesmas.

Não muito diferente do que foi possível perceber na cena jornalística do

ano de 2018, nas reportagens publicadas em 2019, também houve uma intensa

repetição de termos como intolerância, discriminação, preconceito, racismo religioso,

ataque, dentre outros termos utilizados insistentemente. Salvo a exceção duas

reportagens. A primeira, publicada em 11 de fevereiro, trata do tombamento de

terreiros presentes na cidade de São Paulo e de que foram tombadas como

patrimônio cultural pelo Conselho de Defesa Histórico, Arqueológico, Artístico e

Turístico. Além disso, do fato de que, na cidade de São Bernardo do Campo, houve

a criação do Santuário Nacional da Umbanda, que foi apelidado de Meca

Umbandista. A segunda reportagem, publicada em 28 de março, trata de um projeto

de lei que foi votado no Supremo Tribunal Federal tratando da descriminalização do

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sacrifício de animais pelas religiões de matriz africana. A exceção destas duas

reportagens, que não trazem casos de agressão ou intolerância, todas as demais

tematizam a violência contras as religiões de matriz africana.

Nas demais matérias veiculadas nos jornais, podemos observar, muito

frequentemente, expressões linguísticas (nos termos de Koch, objetos de discurso)

tais como ―intolerância religiosa‖, ―discriminação‖, ―racismo religioso‖, ―direitos

negados‖, ―ataques contra terreiros‖, para referenciar as religiões de matriz africana

e atos relacionados às mesmas.

Um aspecto diferente, a ser observado nos conjunto dos textos diz

respeito às metáforas utilizadas para descrever situações enfrentadas por adeptos

das religiões. Entre essas, em notícia publicada em 18 de agosto, a respeito do

―Bonde de Jesus‖, grupo formado por traficantes convertidos, ainda dentro de

presídios e que, ao saírem dos mesmos, ao fim do cumprimento de suas penas,

voltam as suas casas para, além do tráfico de drogas, assumirem a disputa territorial

com os sacerdotes responsáveis por terreiros, dos quais, geralmente, são expulsos

e ameaçados. Na notícia, identificamos uma comparação entre a ação dos

traficantes e atos terroristas do estado islâmico no Oriente Médio, e o

fundamentalismo religioso que impera em tais ações.

Figura 4

Disponível em:

https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2019/08/18/interna_nacional,1078089/po

licia-prende-bonde-de-jesus-que-atacava-terreiros-de-umbanda-e-can.shtml

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Nessa reportagem podemos identificar o seguinte relato: ―Segundo a

polícia, o mandante é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, do Terceiro

Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus, vertente inédita da

intolerância religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200 terreiros sob

ameaça. Os casos são investigados pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de

Intolerância (Decradi), criada em 2018. Investigações apontam que a peculiar

relação entre religiosos e criminosos aconteceu depois que a cúpula do TCP foi

convertida por uma igreja neopentecostal. Há informações, ainda não confirmadas,

de que Peixão teria sido ordenado pastor. Trata-se de uma característica específica

dessa facção, não sendo reproduzida nem pelos demais grupos de traficantes nem

por milicianos.‖ Na reportagem podemos verificar que o comandante de uma facção

criminosa no Rio de Janeiro que se converteu a uma igreja neopentecostal começou

a invadir terreiros, ameaçar os adeptos que frequentam esses terreiros que ficam na

área comandada pela facção criminosa.

E outras notícias, há o uso de expressões como ―Terreiros na mira‖, para

referenciar a violência contra os espaços sagrados das religiões de matriz africana.

Através dessa metáfora, é possível (re)criar a imagem de que essas religiões, como

historicamente ocorre, estão envolvidas em uma guerra. Nessa guerra, os terreiros e

seus frequentadores são os alvos daqueles que disputam território ou que praticam

o que os jornais, insistentemente, definem como intolerância religiosa. No decorrer

das reportagens usa-se muitos termos como invasão, violência, discriminação.

Como forma de verificarmos isso, podemos ler o subtítulo da reportagem que trás o

seguinte: ―Casos de intolerância contra religiões de matriz africana, maioria nos

registros do Disque 100, expõem disputas territoriais, escalada de violência

comandada pelo tráfico e racismo; falta de uniformidade nos dados evidencia

negligência de um Estado nada laico.” Logo no inicio da reportagem, há o seguinte

relato: ―o mais grave, segundo a ialorixá, foi o ingresso nos roncós (quartos

específicos para recolhimento dos filhos de santo), onde os agressores quebraram

louças, pertences e mexeram em objetos sagrados. ―Quando você percebe que foi

roubada, a sensação de violência é muito forte. Mas quando percebe o desrespeito

a uma casa de axé, é desolador‖, ela define. Claudia chamou a polícia diversas

vezes, mas nenhum agente compareceu ao local. Ela nunca conseguiu fazer o

boletim de ocorrência.‖

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Em uma análise das notícias, no conjunto, podemos inferir que os

jornalistas, mesmo que indiretamente, responsabilizam parcialmente o estado por tal

situação. Essa inferência pode ser construída quando identificamos, nos textos,

afirmações que destacam que o estado não é de fato laico, uma vez que não

defende o direito constitucional da liberdade religiosa, e que, muitas vezes, é

negligente com os agressores.

Para comprovar a colocação feita anteriormente, podemos retomar a

reportagem intitulada ―Fé desrespeitada: a dificuldade no combate à intolerância

religiosa.‖ No decorrer da reportagem podemos verificar o seguinte excerto: ―Além

da subnotificação, o combate à intolerância religiosa tem um problema estrutural:

muitas das denúncias que são feitas ao Ministério dos Direitos Humanos acabam

não sendo apuradas porque não se registra de onde a vítima está falando. Em 2015,

63% das queixas recebidas não identificavam o local de origem. Esse percentual

vem caindo ano a ano, mas ainda estava em 30% no primeiro semestre de 2018.‖

Outro exemplo pode ser verificado na reportagem ―Terreiros na mira‖, quando a

Ialorixá Claudia Rosa relata que seu terreiro na Zona Leste de São Paulo foi

invadido, ―Ela nunca conseguiu fazer o boletim de ocorrência. Seu caso, portanto,

sequer entra na alarmante estatística que mostra que a maioria dos casos de

intolerância religiosa registrados pelo governo federal diz respeito a religiões de

matriz africana‖.

Nas notícias que compõem a cena jornalística de 2019, reportando

situações em que estão implicadas religiões de matriz africana, encontramos, com

muita frequência, dados estatísticos. Essa estratégia é utilizada para garantir

credibilidade ao que foi enunciado. Entre esses dados, destacam-se o aumento nos

registros de casos de intolerância religiosa através do número Disque 100. De

acordo com a matéria publicada em 05 de junho, por exemplo. Quase 60% dos

casos de intolerância religiosa ocorrem nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro,

Minas Gerais e Bahia. Há, de acordo com a mesma reportagem, uma perseguição

sistemática, e atitudes de racismo e intolerância contra a Umbanda e o Candomblé.

Os seguintes gráficos foram retirados de uma das reportagens que

compõem o corpus do presente relatório, reportagens que traz ao leitor dados

estatísticos levantados a partir de denuncias no Disque 100 sobre intolerância

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religiosa no Brasil. A reportagem foi publicada no dia 05 de junho de 2019, sob o

titulo de ―Terreiros na mira‖ já citada anteriormente.

Figura 5

Figura 6

Outro fator que pode ser verificado nas reportagens da presente pesquisa

é que o que predomina, nas notícias analisadas, são as vozes dos jornalistas ou de

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umbandistas e candomblecistas. Pode-se verificar isso na reportagem publicada

pelo jornal Extra no dia 16 de junho de 2018 sob o titulo ―Umbandistas pedem ao MP

abertura de ação penal contra evangélicos por intolerância‖, onde já no primeiro parágrafo

verifica-se a seguinte colocação: “O babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da

Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, deu entrada com uma

representação criminal junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

(MPRJ) pedindo a instauração de ação penal para apurar responsabilidades criminal

de integrantes da Igreja Ministério Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói.”;

ainda na mesma reportagem há uma fala do babalaô: “—Não podemos permitir que

nossa crenças ultrapassem o direito religioso do outro. A fé, o modo de culto, ou de

expressar a religiosidade. A intolerância, a falta de alteridade e humanidade com

outro, que crê e é diferente, são os grandes entraves para a construção de uma

sociedade plural onde o respeito e a tolerância possam prevalecer.” Isso se repete

nas demais reportagens, onde o que se verifica são as vozes do jornalista

responsável pela reportagem e/ou a voz do umbandista ou candomblecista. Salve

exceção a reportagem do dia 17 de junho de 2018, onde Feliciano faz uma

declaração sobre uma garota apedrejada ao sair de um terreiro de Candomblé

vestida trajes típicos da religião, porém, nesse caso especificamente, Marcos

Feliciano faz sua declaração como deputado e não como líder religioso.

Quando identificamos a voz de alguém que não seja membro de uma

religião de matriz africana, quase sempre,essa voz tem a função de qualificar a

religião, de maneira negativa,pejorativa. Isso ocorre, por exemplo, na matéria

publicada no dia 10 de abril de 2019, quando é relatado o caso de um homem que

comparece ao local onde foi inaugurado uma estatua em homenagem a Ialorixá,

mãe Stella de Oxossi, e, referindo-se à homenagem a Ialorixá, cria um cenário

metafórico em que Deus puniria os praticantes das religiões de matriz africana e

seus adeptos. Nesta reportagem há um trecho da fala do referido homem que insulta

a estatua feita em homenagem a Ialorixá. Em sua declaração o rapaz diz o seguinte:

"Deus está irado, queridos. Eu estava buscando a presença de Deus e eu consegui

sentir a ira de Deus. Deus estava dizendo: 'Eu vou balançar a cidade de Salvador.

Eu vou balançar, aleluia, as lideranças de Salvador. Eu vou sacudir as lideranças de

Salvador"; "Queridos, a ira de Deus está sobre a terra. Deus está esperando

mudança e transformação do seu povo. Deus está procurando o povo unido. É

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tempo da igreja se unir. Enquanto a briga, a contenta, a divisão entra no meio da

igreja, o diabo, o reino das trevas, acha espaço para isso aí", afirma, apontando para

as esculturas.‖ Porém, deve se ressaltar que a reportagem ao expor a fala do rapaz

não está de fato dando voz ao mesmo, e sim usando o que foi dito para exemplificar

o modo como as religiões de matriz africana são referenciadas no país, pois o jornal

não procurou o rapaz responsável pela colocação para dar seu depoimento ou

esclarecer a declaração dada sobre a suposta ira de Deus com relação a

inauguração da estatua.

Nos textos, de 2019, analisados, os ataques aos terreiros são novamente

comparados aos atos terroristas realizados pelos fundamentalistas presentes no

oriente médio. Encontramos, nas notícias, o uso de referentes como ―terrorismo

religioso‖ para designar os atos realizados contra os terreiros, além da

responsabilidade que é atribuída ao estado quando há referencia ao fato de que a

subnotificação é regra, ou a inércia da policia que, muitas vezes, é chamada aos

locais de ataque e por vezes não comparecem, ou se comparecem registram os

fatos ocorridos como briga de vizinhos, ou preconceito, o que pode entrar nas

estatísticas de preconceito racial, ou preconceito de gênero.

A reportagem intitulada ―Ataque de terreiro é terrorismo‖, podemos

verificar a comparação o que acontece a Umbanda e o Candomblé no Brasil aos

ataques terroristas que acontecem no Oriente Médio ou em alguns locais do mundo

relacionados a grupos como a All Qaeda. Logo no inicio da reportagem, o jornalista

trás o seguinte excerto: ―Foi o historiador Luiz Antonio Simas que, após a destruição

do terreiro de candomblé no Parque Paulista, em Duque de Caxias, no início do

mês, cobrou numa rede social outra denominação para os ataques aos cultos de

matriz africana. No lugar de intolerância, terrorismo religioso. A frequência e a

intensidade dos episódios, que misturam intimidação, ameaça, dano ao patrimônio,

destruição de elementos sagrados, agressão física e até tentativa de homicídio,

justificariam a ênfase.... O que se vê na Baixada é terror.‖ A reportagem refere-se

principalmente aos atos de ―intolerância religiosa‖ ocorridos contra as religiões de

matriz africana na Baixada Fluminense, local de grande concentração de casos de

invasão, depredação de terreiros e adeptos de tais religiões.

Finalmente, de maneira a reconhecer que todas as estratégias discursivas

descritas nesta seção são previsíveis e próprias do domínio jornalístico, podemos

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nos remeter a Gomis (1991, p. 174). Segundo o pesquisador, o texto jornalístico

auxilia na construção de uma definição (imagem) pública dos sujeitos, das

instituições e das situações sociais descritas. O jornalismo, nesse sentido, é uma

instituição capaz de construir a realidade de um modo particular e, nessa medida,

decontribuir para a construção de conteúdos e de cenários públicos. Ou seja, na

construção de uma matéria para um jornal, o jornalista busca informações a respeito

de determinado caso, determinada situação, e traz ao leitor recortes dessa realidade

para a construção de uma realidade própria, que pode ou não se vincular ao

ocorrido. A construção da realidade, no meio jornalístico é subjetivo e intencional

para dar visibilidade ou credibilidade ao que o jornalista pretende instituir como

verdade.

Quando o textos jornalístico diz respeito a contextos e situações, como as

descritas nesta seção, que parecem repetir uma história de profunda violência contra

a Umbanda e o Candomblé, é preciso pensar sobre os modos como essas religiões,

suas práticas, seus templos, seus adeptos, são apresentados, são referenciados e

metaforizados em notícias de jornais.

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6 CONCLUSÃO

Neste trabalho, foi defendido a dissertação de que, em uma perspectiva

enunciativa e sócio discursiva, o processo referencial e metafórico exerce um papel

importante na construção da identidade enunciativa em uma sociedade. Os

processos de referenciação e de metaforização funcionam como uma espécie de

foco interpretativo para que pesquisadores e profissionais de diferentes áreas

possam assumir o papel de compreender, pensar e sistematizar aspectos

relacionados diretamente às religiões de matriz africana, pensando tais religiões e o

processo enunciativo que envolve as mesmas, tanto em uma perspectiva histórica e

socialmente construídas.

No capitulo 2, discutimos quais foram as perspectivas históricas e sociais

que possibilitaram a construção das religiões afro-brasileiras, especialmente a

Umbanda e o Candomblé, por estas serem o interesse maior dentro do presente

trabalho entre as religiões de matriz africana presentes no Brasil, discutimos também

como ocorreu o inicio da Umbanda enquanto religião e o que possibilitou sua

concretização enquanto religião tipicamente brasileira; quais foram os processos

históricos que culminaram no surgimento do Candomblé; e por fim os documentos

legais que legitimam o direito de todo cidadão escolher e praticar sua religião e

religiosidade sem restrições, sem ser alvo de ofensas, ou qualquer tipo de oposição

que ponha sua integridade em risco.

No capitulo 3, apresentamos os conceitos de língua, texto, texto

jornalístico, referencia e metáfora. No desenrolar deste capitulo, podemos

compreender que o processo de referenciação, além de ser um processo

cognitivamente construído, é um aspecto complexo da linguagem que toma esta

como ação e não como produto do ser. E como nos lembra Marcuschi, a atividade

de referenciação pressupõe o compartilhamento de conhecimentos históricos,

lingüísticos, culturais, os contextos situacionais e as crenças envolvidas na mesma,

bem como o fato da referenciação ser uma prática simbólica. Pudemos compreender

também que a linguagem é cheia de metáforas, usadas e criadas inconscientemente

e que são incorporadas ao patrimônio lexical e cultural de um povo. A metáfora

direta nasce da necessidade de suprir deficiência da linguagem cotidiana, baseando-

se na associação de ideias por suas semelhanças. De acordo com Lakoff e Johnson

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(1980), ―nós compreendemos o mundo por meio das metáforas‖. O capitulo nos trás

também o fato que os textos jornalísticos são capazes de produzir realidade de um

modo particular ou pelo menos de contribuir para que esta construção de conteúdos

públicos se faça em determinados moldes e não em outros, o que nos leva a

considerar que noticias publicadas em jornais podem contribuir para que a realidade

seja direcionada para onde o jornalista queira construí-la, trazendo o leitor para

compreender a realidade da forma como o texto jornalístico pretende direcionar esta

realidade, o que o leitor deve acreditar, ou como o leitor deve evidenciar os fatos.

No capitulo 4, sendo de interesse deste trabalho investigar os processos

de referenciação e metaforização nos textos jornalísticos acerca das religiões de

matriz africana, a partir dos textos que foram publicados na mídia jornalística

brasileira nos anos de 2018 e 2019, foram apresentadas a natureza, as estratégias e

os procedimentos de coleta de material para constituição do corpus deste pesquisa.

O trabalho foi constituído a partir de reportagens publicadas nos referidos anos, e

vinculadas a grandes veículos de comunicação impressa nos estados da Bahia,

Minas Gerais e São Paulo.

No capitulo 5, dedicado à análise dos dados, que foram definidos a partir

das 18 reportagens selecionadas para compor o corpus deste trabalho, sendo

dividido na cena de 2018 e na cena de 2019, consideramos ser possível

compreender como ocorreu o processo referencial e metafórico na constituição dos

enunciados vinculados aos jornais no que diz respeito a Umbanda e o Candomblé. A

partir do que foi analisado nas reportagens selecionadas e analisadas, podemos

compreender que o processo referencial e metafórico se constitui de forma

semelhante nos anos de 2018 e 2019, sem grandes alterações lingüísticas ou

enunciativas.

De modo a proporcionar ao leitor a possibilidade de ter acesso ao material

que serviu de base para a constituição do corpus deste trabalho, as reportagens

coletadas e analisadas estão apresentadas no Apêndice, ao final do trabalho.

Através desse acesso, esperamos tornar mais claro e objetivo o modo operante dos

jornalistas e consequentemente dos jornais que foram salientados na pesquisa.

O processo de análise, nos possibilitou verificar que a cena enunciativa

que foi construída nas reportagens vinculadas aos jornais foi construída de forma a

dar voz prioritariamente ao jornalista, deixando muitas vezes os próprios adeptos

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das religiões de matriz africana e os seus próprios processos enunciativos em

segundo plano, realizando um recorte muito delimitado da realidade para

constituição do que seria predicado nas reportagens, e consequentemente no que

seria dirigido ao leitor.

Considerando os objetivos pretendidos por este trabalho, focalizamos os

processos referenciais e metafóricos acerca das religiões de matriz africana

vinculadas nos jornais de grande circulação, prioritariamente como tais religiões

estão predicadas em tais meios de comunicação. Como nos lembra Gomis (1991,

p.134), ―o jornalismo é investigado como uma instituição que seria capaz de produzir

realidade de um modo particular ou pelo menos de contribuir para que esta

construção de conteúdos públicos seja feita de um modo e não de outro.‖ E ainda

para o pesquisador, o texto jornalístico produz sentidos sobre o mundo, em

interação com os significados previamente existentes nele. E ainda complementa

dizendo que, o modo como se constitui a matéria de um jornal auxilia na construção

de uma definição imagem pública destas ocorrências Os apontamentos feitos pelo

pesquisados acerca dos textos jornalísticos podem nos levar a compreender que o

modo como o jornalista expõe os fatos narrados é propositalmente constituído para

conduzir o leitor a formar uma determinada imagem, um determinado conceito, ou

determinada conclusão acerca dos fatos constituídos.

A partir disso, podemos verificar que a forma como um texto jornalístico

apresenta os fatos narrados são direcionados para a construção de uma imagem

social acerca de determinado fato social, construindo coletivamente uma ideia ou um

padrão de interpretar determinados fatos cotidianos. Nos textos analisados no

corpus deste trabalho, podemos verificar que muitos referentes são apresentados

acerca da Umbanda e do Candomblé, assim como muitos referentes são utilizados

para nomear, classificar, delimitar ou especificar os adeptos de tais religiões, alguns

destes referentes são: Vítimas, Macumbeiros, Capeta, Diabo, dentre outros.

Demasiadamente a palavra ―INTOLERÂNCIA‖ foi repetida em todas as reportagens

analisadas, além de alusões a discriminação, preconceito, racismo religioso,

invasão, ataques. Podemos verificar que todos os referentes estão vinculados ao

crime e a guerra de uma determinada classe social (em sua grande maioria,

evangélicos ou traficantes evangelizados nas penitenciarias) ―contra‖ os adeptos das

religiões de matriz africana.

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A analise efetuada neste trabalho pareceu legitimar a ideia que os textos

jornalísticos construíram uma identidade de combate, ou uma espécie de guerra

santa instituída entre grupos religiosos que querem constituir seu espaço na

sociedade, os adeptos da Umbanda e do Candomblé, em detrimento ao grupo

religioso que quer impedir essa instituição de tais religiões. Pode ser verificado que a

legitimação dos fatos ocorridos envolvendo as religiões de matriz africana enquanto

intolerância religiosa foi insistentemente fixada pela mídia jornalística, que ao

construir os fatos narrados para o público leitor se negou a dar voz ou direito de

resposta aos supostos agressores.

A partir das analises realizadas neste trabalho e das hipóteses

inicialmente levantadas, podemos concluir que uma das hipóteses preconizadas se

fez mais evidente na constituição dos fatos analisados, o fato de que ―o processo de

referenciação e predicação das religiões afro-brasileiras implicam um repertório

linguístico-lexical do campo semântico da guerra, sendo a Umbanda e o Candomblé

os principais alvos, envoltos em um contexto de ataque versus defesa.‖ Pois, a partir

do que foi concebido nas matérias vinculadas ao trabalho, o que mais se faz

presente é um repertório lexical/semântico de guerra, onde as religiões afro-

brasileiras sendo os principais alvos de ataques, estão constantemente envoltos de

um contexto social de ataque e defesa.

Em síntese, o que nos fica no decorrer do trabalho é: no que tange o

processo referencial e metafórico acerca da Umbanda e do Candomblé, estes são

processos historicamente construídos ou pertencem a um presente socialmente

constituído a partir de uma apresentação midiática que faz um recorte da realidade

para apresentar ao leitor com o intuito de direcioná-lo a construção de uma

determinada intenção.

Podemos pressupor a partir das analises constituídas nesta pesquisa que,

os processos referenciais e metafóricos, nos permite constituir uma realidade de

ataque ao campo religioso, ou uma guerra, isso quando nos restringimos a visão

enunciativa apresentada pela mídia brasileira. A expectativa construída durante a

pesquisa, e nos resultados apresentados, pesando as limitações apresentadas, é

que este trabalho possa contribuir para futuras discussões e análises em diversos

campos científicos além da lingüística, e que isso possa possibilitar maiores avanços

no campo lingüístico, religioso, midiático, filosófico e científico.

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APÊNDICE

Reportagens de 2018

Reportagem 1: Jornal Extra

Umbandistas pedem ao MP abertura de ação penal contra

evangélicos por intolerância

16/11/18

O babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à

Intolerância Religiosa, deu entrada com uma representação criminal junto ao

Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) pedindo a instauração de

ação penal para apurar responsabilidades criminal de integrantes da Igreja Ministério

Redenção, no bairro do Barreto, em Niterói. O grupo é acusado pelos umbandistas

de formação de quadrilha, perturbação de culto e intolerância religiosa.

No dia 2 de novembro, integrantes da Tenda de Umbanda Ogum Megê

faziam um culto religioso no Cemitério de Maruí Grande, no bairro de Barreto, em

Niterói, quando foram abordados por 30 evangélicos. O grupo que estava

uniformizado interrompeu o culto aos gritos de ―macumbeiros, capeta, macumbeiros

têm que morrer‖; tá amarrado em nome de Jesus‖; ―tem que expulsar porque é

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demónio; e ―Queima eles Satanás‖. Um deles desferiu um tapa na cabeça do

dirigente umbandista Allan Hansen Rosa de Souza.

Segundo a denúncia feita ao MPRJ, durante encontro na última quarta-

feira com o procurador-geral de Justiça interino, Ricardo Ribeiro Martins, a ação teria

durado cerca de 30 minutos e foi assistida por 20 pessoas, além as vítimas. A

sessão de humilhações e constrangimentos só foi interrompida após os umbandistas

terem acionados guardas municipais.

—Não podemos permitir que nossa crenças ultrapassem o direito

religioso do outro. A fé, o modo de culto, ou de expressar a religiosidade. A

intolerância, a falta de alteridade e humanidade com outro, que crê e é diferente, são

os grandes entraves para a construção de uma sociedade plural onde o respeito e a

tolerância possam prevalecer — afirmou Ivanir dos Santos.

Segundo o babalaô, o procurador-geral de Justiça, Ricardo Ribeiro

Martins, se comprometeu em agilizar e dar atenção para a investigação, e informou

que iria encaminhar o caso para 6ª Procuradoria de Investigação Penal de Niterói da

2ª Central de Inquéritos.

Na denúncia, os umbandistas argumentam que a lei orgânica do

município de Niterói prevê que nos cemitérios públicos da cidade são permitidas

todas as confissões religiosas, bem como as práticas dos seus ritos. Além disso, a

Lei 3.089 de 26 de junho de 2014 declara a umbanda como patrimônio imaterial

daquele município.

Na página da igreja no Facebook há várias mensagens de repúdio contra

a ação dos evengélicos. ―Intolerância é o que vocês pregam, não tem um pingo de

amor ao próximo, e respeito com as demais religiões‖, postou uma internauta.

―Péssimo! Intolerância religiosa é CRIME, espero que saibam disso! Difundem o

verdadeiro significado do evangélico e afastam pessoas da sua própria religião por

serem ignorantes‖, escreveu outra.

Disponível em: (https://www.geledes.org.br/umbandistas-pedem-ao-mp-abertura-de-

acao-penal-contra-evangelicos-por-intolerancia/)

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Reportagem 2: Folha de São Paulo

Aumenta número de denúncias de discriminação contra

adeptos de religiões de matriz africana em 2018 no país

Ministério registrou 71 denúncias de janeiro a junho; pai de santo e a secretária de

Promoção de Igualdade Racial dizem que intolerância acontece por religiões serem

associadas a negros.

19/11/2018

O número de denúncias de discriminação religiosa contra adeptos de

religiões de matriz africana no Brasil feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento

24 horas do Ministério de Direitos Humanos, aumentou 7,5% em 2018. Foram 71

denúncias do tipo feitas de janeiro a junho deste ano, contra 66 no mesmo período

de 2017. Já as denúncias feitas por discriminação contra todas as religiões caíram

de 255 para 210, queda de 17% no mesmo período.

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Nesta terça-feira (20) é celebrado o Dia da Consciência Negra. Em todo o ano 2017,

foram 145 denúncias de discriminação religiosa em todo o país. São Paulo teve 29

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denúncias por meio do canal. O estado só fica atrás do Rio de Janeiro, com 34

denúncias. Nem todos os casos são denunciados pelo telefone do ministério.

O jornal ouviu adeptos de religiões afro que sofreram violência, e nenhum deles

conhecia o canal.

Ao mesmo tempo em que crescem as denúncias de violência, as religiões

afro-brasileiras registraram crescimento de 43,8% no número de adeptos em São

Paulo, de acordo com o estudo ―Diversidade Étnico-racial e Pluralismo Religioso no

Município de São Paulo‖, publicado em dezembro de 2016.

Ao todo, 50.794 pessoas declararam ser de umbanda, 18.058 do

candomblé e 854 de outras religiosidades afro-brasileiras. A soma representa 0,6%

das 48 religiões ou convicções filosóficas declaradas. ―Muitos de seus fiéis preferem

não se identificar publicamente por receio de discriminação religiosa‖, diz o estudo.

Invasão e destruição

A casa de candomblé Ilê Asé Ojú Oyá, localizada em Guaianases, bairro

da Zona Leste da capital, foi atacada em março deste ano. Paula Torrecilha Ty Ayrá,

31 anos, conta que o local foi invadido, teve objetos furtados e quebrados.

"Quando chegamos, encontramos tudo revirado, todos nossos objetos

sagrados no chão, espalhados, coisas vandalizadas, quebradas. Na cozinha

jogaram todos nossos alimentos no chão. Muita coisa foi roubada", disse.

"Em um primeiro momento, ficamos bem fragilizados, com medo de que

acontecesse novamente e nos tornasse vítimas de violência física, além da violência

psicológica que um caso desses submete não só os integrantes da casa, mas toda a

comunidade. Mexer com um acaba abalando o todo", conta Paula.

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Segundo ela, a casa é formada majoritariamente por mulheres lésbicas,

bissexuais, trans negras e periféricas. "Somos todas de luta. Esse ataque, que

queria nos fragilizar, nos destruir, só serviu para nos unir e fortalecer. Descobrimos

juntas um meio de restabelecer nosso Asé que foi profanado, reerguer tudo que foi

levado e destruído."

Para Alexandre Cumino, sacerdote de Umbanda e diretor da Associação

Umbandista e Espiritualista do Estado de São Paulo (Aueesp), a intolerância

religiosa é advinda do preconceito em relação ao negro, à cultura do negro e à

religião do negro.

"Boa parte dos casos [de violência] está relacionada a segmentos

religiosos que têm uma discriminação e um preconceito na sua pregação doutrinária

e identificam o Deus do outro como o diabo", explica ele. Cumino é autor do livro

"Exu não é o diabo", que desmistifica a ideia de que o orixá Exu é o representante

do mal e por isso deve ser combatido.

"Há pessoas de outras religiões que acreditam que nosso orixá o Exu é o diabo. Quando se

identifica o nosso orixá como o diabo e o diabo como o responsável por todos os males,

então na cabeça torpe e infame do ignorante, se acabar com a minha religião, vai acabar

com o diabo"

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Segundo Cumino, que é bacharel em ciências da religião, não existe

diabo na umbanda e no candomblé. Essas religiões não 'culpam' o diabo pelo mal ou

por seus erros.

"Diabo é principalmente uma criação judaico-cristã e mais

especificamente católica. O Lúcifer é bem católico mesmo, ele não existe no

judaísmo. Você tem lá o Satã ou o Shaitan, que é uma figura muito específica no

Velho Testamento. No livro de Jó, Satã senta ao lado de Deus e eles estão

conversando o que vão fazer com Jó. Então esse Satã judeu que é um opositor, ele

não é nem de perto esse grande diabão que construíram e muito menos os Exus, os

orixás, ou as entidades de umbanda ou de candomblé, religiões que não

reconhecem nenhum diabo. Quando a gente [adeptos da religião] faz uma coisa

errada é a gente mesmo [que fez]".

A yalorixá (mãe de santo) Gabriela Beck, 39 anos, do Centro Cultural Eyin

Osun, na Vila Industrial, extremo Leste de São Paulo, conta que a confusão entre o

orixá Exu com Satanás já lhe rendeu ameaças com faca.

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"Temos um vizinho que cresceu comigo no bairro e agora é evangélico.

Ele acredita que o Satanás está instalado na minha casa. É desesperador. O

problema dele é a casa de candomblé, onde também moro com meu pai. Ele nos

ameaça com faca, nos ofende. Eu acho que em grande parte porque meu pai é

idoso eu sou mulher. Eu tenho medo dele fazer alguma coisa, colocar fogo na minha

casa, matar meu pai", diz ela.

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Reportagem 3: Folha de São Paulo

O problema da heterogeneidade dos dados

10/02/2018

Os estados brasileiros não possuem uma base estatística consolidada e

uniforme sobre boletins de ocorrências (BOs) envolvendo casos de intolerância

religiosa no país. A Gênero e Número e o DataLabe solicitaram via Lei de Acesso à

Informação (LAI) os dados de boletins com motivação por intolerância religiosa de

2017 e 2018 a todos os 26 estados do país e ao Distrito Federal.

A sistematização das informações sobre intolerância religiosa é

heterogênea nos estados, sendo que nenhuma base de dados disponibilizada revela

a religião da vítima e, apenas em alguns casos, como no Distrito Federal e na Bahia,

trazem dados de gênero e raça dos denunciantes. De todos os estados, apenas 11

enviaram os dados solicitados pela Gênero e Número e o DataLabe.

O Maranhão enviou números de período diferente ao solicitado e

Amazonas e Paraíba disponibilizaram apenas os dados referentes às capitais.

Outros estados como Minas Gerais, Tocantins e Rio Grande do Norte responderam

à solicitação informando que não tinham esses dados discriminados. Já Rio Grande

do Sul, Paraná, Santa Catarina, Acre, Sergipe, Pernambuco, Amapá e Roraima não

responderam a solicitação.

Em São Paulo, estado onde a primeira Delegacia de Crimes Raciais e

Delitos de Intolerância do país foi fundada, em 2006, foram 6.324 BOs nos dois

últimos anos: 3.070 em 2017 e 3.254 no ano passado, um aumento de 6%. Já o Rio

de Janeiro — estado com maior número de casos desde 2011, segundo o Disque

100 do governo federal — reportou apenas 56 ocorrências classificadas como

―impedimento ao culto‖ entre 2017 e 2018. A Bahia (terceira no ranking do Disque

100) trouxe ainda menos casos: foram somente 11 boletins de ocorrência por

motivação de intolerância religiosa, sendo 10 associados a vítimas pardas ou pretas

e um associado a vítima branca. O Distrito Federal reportou 42 BOs entre 2017 e

2018, sendo que no último ano, 64% foram registrados em maio ou novembro.

Delegacias especializadas

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O Rio de Janeiro, por exemplo, não tem registros estatísticos específicos

para os casos de intolerância religiosa. Em abril deste ano, foi sancionada uma

leique cria o subtítulo ―intolerância religiosa‖ nos registros de ocorrência da Polícia

Civil do estado e dispõe sobre a produção e divulgação de dados estatísticos pelo

Instituto de Segurança Pública (ISP).

Sem essa diferenciação, na maioria dos casos, os registros acabam

entrando no sistema apenas como ―preconceito‖, que podem se misturar a outras

esferas, como o preconceito racial. Segundo Átila Nunes, deputado federal pelo

MDB envolvido na criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância

(Decradi) no Rio, inaugurada em dezembro de 2018, é preciso dar atenção especial

aos dados, principalmente para basear a criação de políticas públicas. ―A falta de

uma sistematização desses dados é hoje uma lacuna muito séria. Há muitos meios

para chegar a eles, mas ninguém ainda consegue dar um número exato de quantos

casos de intolerância religiosa temos no nosso estado.‖

No entanto, a falta de sistematização não significa falta de dados. Gilbert

Stivanello, delegado da Decradi do Rio, explica que em todo boletim de ocorrência

há um espaço onde é possível denunciar a motivação dos ataques. O desafio está

em sistematizar o fluxo de informações. Dados do Instituto de Segurança

Pública que compilam casos de ―Injúria por preconceito‖ e ―Preconceito de cor e

raça‖ entre 2015 e 2019 incluem religião como um dos motivos, que incluem ainda

raça, cor, etnia e origem. Apenas os casos de ―ultraje a culto e impedimento ou

perturbação a ele relativo‖ se referem especificamente a religião e, segundo o

relatório, desde janeiro de 2015 até março de 2019, o estado do Rio teve uma média

de dois ataques por dia.

O Instituto de Segurança Pública informou que vai começar a produzir e

sistematizar os dados de intolerância religiosa quando a Polícia Civil fizer o repasse

dos números. No momento, segundo o Instituto, a polícia está adaptando o sistema.

Durante o atendimento às vítimas, casos mais delicados demandam

agentes de segurança pública com algum tipo de treinamento para lidar melhor com

a situação. O deputado Átila Nunes cita o caso de um babalorixá que teve sua casa

invadida e depredada, e que, depois de muito esperar para concluir o registro, viu o

agente se recusando a entrar no terreiro para fazer a perícia da cena do crime.

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Um dos fundadores da Decradi, Átila reitera a necessidade das

delegacias especializadas. Além de lidar com intolerância religiosa, a Decradi

combate casos de xenofobia, LGBTfobia e crimes que envolvam discurso de ódio.

Apesar de ter sido criada no final do ano passado, o projeto de lei é de 2008 e só foi

sancionado em 2011. ―Foram mais de sete anos para tirar do papel. Diversos

secretários de segurança entendiam que havia outras prioridades‖, relembra o

parlamentar.

Para o delegado Stivanello, a delegacia é importante por dar conta de

casos mais graves, como o de Paula Sperling, vencedora da edição deste ano do

Big Brother Brasil, da TV Globo, indiciada por dar declarações preconceituosas

sobre religiões de matriz africana durante o programa. ―Ao longo do BBB,

recebemos inúmeras denúncias. O caso dela foi classificado como injúria, porque

envolvia a ofensa e a honra de uma pessoa, e foi levado à Justiça‖. Vencedora do

programa e ré no processo, Paula recebeu 1,5 milhão de reais.

Ainda segundo ele, em outros casos, a Decradi serve também como fonte

de informação. Apesar da equipe enxuta, todos os policiais foram treinados para

lidar melhor com casos de intolerância e preconceito, inclusive na internet. ―Além de

treinamentos e cursos preparatórios de investigação, também fizemos programas de

sensibilização. Temos uma parceria muito estreita com a Secretaria de Direitos

Humanos do estado‖, explica.

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Reportagem 4: O Globo

Imagens de orixás são quebradas em terreiro de

candomblé de Niterói

Polícia investiga o caso registrado como intolerância religiosa

29/07/2018

RIO - Foram depredadas imagens de orixás pertencentes a um centro de

candomblé localizado no bairro Fonseca, em Niterói. O caso, registrado na 78ª DP

como crime de intolerância religiosa, ocorreu no terreiro Ile Axé Oya Onira — que em

iorubá significa Casa de Iansã — de Tânia Rodrigues, conhecida como Mãe Tânia

de Oya. A religiosa foi informada do ato de vandalismo na manhã de sábado por um

amigo que passava em frente ao local e percebeu os cacos espalhados no chão.

Cinco imagens foram destruídas e apenas uma foi poupada, a que

simboliza a figura de Iemanjá. Não houve invasão do local, pois todas as estatuetas

estavam expostas no muro do lado de fora do terreiro e, de acordo com Tânia, a

perícia não constatou sinais de tentativa de arrombamento na propriedade.

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Há cerca de 20 anos no comando da casa religiosa, foi a primeira vez que

a proprietária do terreiro se deparou com tal situação:

— Nunca recebi ameaça alguma. Essa casa foi herança de meus pais e a

vizinhança a frequenta. Nós não fazemos encontros muito tarde para não incomodar

ninguém. Em frente já funcionou uma igreja evangélica e sempre tivemos uma boa

convivência, inclusive — explica Tânia que não tem suspeitos do crime. — Eu não

sei se foi uma ou mais pessoas, não faço ideia de quem seja a responsabilidade,

porque nunca ninguém demonstrou estar incomodado com a presença do terreiro.

Só quero ficar em paz exercendo minha fé.

O subsecretário da Coordenadoria de Defesa dos Direitos Difusos e

Enfrentamento à Intolerância Religiosa de Niterói (Codir), Gilmar Hughes, afirma que

o órgão acompanhou a abertura do boletim de ocorrência do caso e entrou em

contato com o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa do estado (Ceplir) para

prestar apoio à vítima. Hughes lembrou que, desde 2011, Candomblé e Umbanda

são patrimônios cultuais e imateriais de Niterói.

A Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e

Idosos (SEDHMI) emitiu nota afirmando que está oferecendo assistência jurídica e

psicossocial a Tânia e que sua equipe marcará um atendimento presencial com ela

durante a semana.

No estado do Rio foi registrado um aumento de mais de 56% no número

de casos de intolerância religiosa na comparação do primeiro trimestre de 2017 e o

mesmo período deste ano. Denúncias de intolerância religiosa, racismo, xenofobia e

outros tipos de preconceito podem ser feitas pelo Disque Combate ao Preconceito

no telefone: (21) 2334-9551. O crime de intolerância religiosa tem pena de um até

cinco anos de detenção e multa.

Disponível em: (https://oglobo.globo.com/rio/imagens-de-orixas-sao-quebradas-em-

terreiro-de-candomble-de-niteroi-22930591)

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Reportagem 5: Jornal Estadão

Liberdade religiosa, direito ameaçado

Cerca de 300 milhões de cristãos são perseguidos e o mundo continua a ignorá-los

08/12/2018

No próximo dia 10 de dezembro comemora-se o 70. aniversário da

Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas.

Essa ―carta magna‖ dos direitos humanos foi elaborada, aprovada e proclamada

depois que a humanidade passou, em menos de 50 anos, por duas terríveis guerras

mundiais, que promoveram a barbárie, fizeram um número enorme de vítimas e

espalharam dor, ferida e destruição em meio mundo.

A Declaração de 1948 representou uma conquista da humanidade e a

expressão da vontade comum de vida civilizada e respeitosa, sem imposição de

soluções violentas a ninguém, quer nas relações sociais, quer nas internacionais.

Decorridos 70 anos, vale a pena perguntar se esses direitos humanos fundamentais

foram integralmente respeitados por todos os países e produziram os efeitos

desejados pela assembleia das Nações Unidas que os promulgou.

Lamentavelmente, a resposta é negativa; nem mesmo foi a Declaração assinada de

forma unânime pelos países representados na ONU.

É preciso reconhecer, porém, que a Declaração de 1948 marcou um

progresso enorme no reconhecimento universal da dignidade da pessoa humana e

na afirmação e defesa dos seus direitos fundamentais. Mesmo não sendo

integralmente respeitados, os artigos da Declaração são a referência comum para a

legislação particular dos povos. Não é possível agir em contraste com os artigos da

Declaração sem que isso tenha consequências. Os países-membros da ONU e as

organizações internacionais reconhecidas como legítimas têm o dever de zelar para

que os direitos humanos afirmados pela Declaração sejam devidamente respeitados.

A leitura atenta dos 30 artigos da Declaração da ONU leva a concluir que

os direitos humanos fundamentais ainda estão ameaçados, com frequência. Mais

ainda: a violação dos citados direitos universais nem sempre suscita a reação

esperada da parte dos governantes dos povos. Tem-se a impressão de que o

discurso sobre os direitos humanos, em certas circunstâncias, é silenciado ou

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amenizado em vista de manobras políticas e da busca de vantagens utilitaristas. Os

direitos humanos acabam, não raramente, sacrificados na mesa das negociações

políticas e econômicas, ou em nome do politicamente correto.

Um desses direitos humanos fundamentais ameaçados é o direito à

liberdade religiosa. O artigo 18 da Declaração da ONU estabelece que ―toda pessoa

tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a

liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião

ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou

coletivamente, em público ou em particular‖. No Brasil, a Constituição de 1988

consolidou a liberdade de crença e de culto nos artigos 5.º e 19, e na Lei n.º 7.716,

de 1989, que configura como crime a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou

nacionalidade.

No dia 22 de novembro passado, a Fundação Pontifícia Aid to the Church

in Need – Ajuda à Igreja que Sofre (ACN) –, que monitora a situação da liberdade

religiosa no mundo, publicou seu relatório anual e constatou que a discriminação e

mesmo a perseguição religiosa aberta ainda são tristes e frequentes realidades no

mundo, que até se agravaram nos anos mais recentes. Preocupa a informação de

que nada menos que 61% da população mundial vive em países onde a liberdade

religiosa não é respeitada. Isso corresponde a quase 4 bilhões de pessoas! Um em

cada cinco países registra graves violações à liberdade religiosa e em 21 países há

perseguição religiosa declarada! Os continentes onde se registram os maiores

problemas nesse sentido são a Ásia e a África.

De todos os grupos religiosos, os cristãos são os que mais sofrem

discriminação, restrição à liberdade de religião e até perseguição aberta. No mundo

há cerca de 300 milhões de cristãos perseguidos ou sem plena liberdade religiosa e

isso significa que, de cada sete cristãos, um vive sem liberdade religiosa. A

imprensa e as mídias sociais do Ocidente divulgaram, por vezes, episódios de

violência e discriminação religiosa contra cristãos durante as guerras no Iraque e na

Síria, os ataques contra templos e grupos de cristãos no Egito, no Paquistão, na

Nigéria, na Índia, no Congo e no Afeganistão. Geralmente, porém, as graves

violações contra a liberdade religiosa não recebem a atenção devida na opinião

pública. O mundo continua a ignorar os cristãos perseguidos.

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Fatos de discriminação e intolerância religiosa, bem como ações de

vilipêndio contra templos e símbolos religiosos cristãos e não cristãos, se verificam

também em países democráticos do Ocidente, tal como no Brasil, não recebendo

sempre a devida desaprovação pública. Mesmo certo discurso equivocado sobre a

―laicidade do Estado‖, como se este devesse ser oficialmente antirreligioso, em vez

de ser arreligioso e de assegurar a todos a liberdade religiosa, pode ser expressão

de discriminação religiosa. O direito à liberdade religiosa não deve ser considerado

secundário, ou uma espécie de ―primo pobre‖ entre os direitos humanos. O direito a

ter religião, ou de não a ter, de a expressar e professar livremente, está

estreitamente relacionado com as demais liberdades que decorrem da dignidade

humana, como a liberdade de consciência e de pensamento, de opinião e

manifestação.

Não é sem motivo que muitas guerras entre povos e conflitos sociais, ao

longo da História, tenham estado mesclados com questões religiosas: ou pela

pretensão de impor uma religião à força, usando mecanismos da estrutura do

Estado para isso; ou porque se reivindicava a liberdade religiosa onde ela não

existia, sendo discriminados nos seus direitos os cidadãos não alinhados com certa

religião ―oficial‖.

Onde não há respeito pela liberdade religiosa não há paz.

Disponível em: (https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,liberdade-religiosa-

direito-ameacado,70002637785)

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Reportagem 6: O Globo

Terreiro é alvo de vandalismo em Nova Iguaçu

Nos últimos dois anos, pelo menos oito casas de candomblé foram depredadas na

Baixada Fluminense

08/05/2018

RIO - Um terreiro de candomblé foi invadido e vandalizado na madrugada

desta terça-feira no bairro de Cabuçu, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O

Centro Espírita Caboclo Pena Branca, que pertence ao sacerdote Sergio Malafaia

D'Ogum, foi depredado e teve alguns compartimentos incendiados. O Corpo de

Bombeiros foi acionado às 2h35 e conseguiu conter o avanço das chamas. O caso

foi registrado na 56ª DP (Comendador Soares).

De acordo com Malafaia, os vândalos quebraram peças e assentamentos

sagrados antes de incendiarem os cômodos. Nas paredes do centro, foram feitas

pichações com insultos. "Fora macumbeiros, aqui não é lugar de macumba", diz um

trecho da mensagem escrita.

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— O centro tinha sofrido um pequeno furto, uma vez, há cinco anos, mas

fora isso nunca houve qualquer problema. O que aconteceu hoje foi intolerância

mesmo. Tacaram fogo em tudo e ainda deixaram um recado escrito na parede. Não

sou o primeiro e não serei o último, mas me causou um desconforto muito grande,

porque mexeu no nosso sagrado. Acabou com o terreiro — lamenta Malafaia.

Nos últimos dois anos, pelo menos oito terreiros foram depredados em

Nova Iguaçu. Os bairros com o maior número de atos de vandalismo foram Cabuçu

e Parque Flora.

Disponível em: (https://oglobo.globo.com/rio/terreiro-alvo-de-vandalismo-em-nova-

iguacu-22663967)

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Reportagem 7: Estadão

Feliciano diz que ataque a menina do candomblé é

'barbaridade'

Deputado pediu prisão dos agressores; 'se forem (evangélicos), cadeia para eles.

Religião não é escudo contra o crime', afirmou

17/06/2018

O deputado federal Marco Feliciano (PSC) disse nesta quarta-feira, 17,

que os dois suspeitos de ferir com pedra uma menina que saía de um culto de

candomblé, no Rio, quando encontrados, serão enquadrados no mesmo artigo do

Código Penal usado pelo parlamentar para processar os organizadores da Parada

Gay. Na semana passada, o pastor evangélico criticou a crucificação de uma

transexual durante o evento, publicou mensagens de repúdio e prometeu processar

os envolvidos.

Feliciano condenou o ataque à menina que, segundo testemunhas, pode

ser de autoria de evangélicos. "Nunca antes ouvi falar de tal acontecimento partindo

de evangélicos. Existem loucos em todos os lugares. Se forem (evangélicos), cadeia

para eles. Religião não é escudo contra o crime", afirmou o deputado.

O pastor disse que a ação foi uma "barbaridade" e prometeu

pronunciamento sobre o assunto no plenário da Câmara dos Deputados. Segundo o

deputado, sua equipe jurídica busca mecanismos para apurar o caso junto à polícia.

"Fiquei chocado. Qualquer tipo de intolerância deve ser extirpado da nossa nação.

Lamentável", disse.

Quando atendeu o telefonema do Estado, por volta das 15h30 desta

quarta-feira, o deputado disse que não teve conhecimento sobre o ataque e afirmou

que ficou sabendo da notícia naquela ligação. "Quando aconteceu isso?", quis

saber. Ao ser informado, respondeu: "Meu Deus, que barbaridade. É uma

discriminação. Não pode ter nenhum tipo de discriminação, principalmente religiosa.

Loucura isso. Pegaram os culpados?".

Meia hora antes de conversar com o Estado, entretanto, havia sido

postado em uma de suas redes sociais a notícia de um portal gospel com o título

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'Menina leva pedrada na saída de culto de candomblé'. Feliciano argumentou que

um correspondente, e não ele, tinha publicado o link no seu perfil.

IML. A menina apedrejada na cabeça enquanto caminhava vestida com

trajes típicos do candomblé, no último domingo, no Rio de Janeiro, realizou nesta

quarta-feira, 17, exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML).

Embora logo após o ataque houvesse decidido não sair mais às ruas com

roupas brancas e o torso (turbante) característico dos candomblecistas, a estudante

mudou de ideia, ao ser incentivada a continuar se vestindo dessa forma.Nesta terça,

ela foi ao IML trajada com vestes religiosas, acompanhada pela avó, a mãe de santo

Katia Marinho, de 53 anos, e pela mãe, que é evangélica.

Após o exame, a menina foi à Assembleia Legislativa, a convite da

Comissão de Direitos Humanos, e acompanhou a sessão. Em discursos, vários

deputados - incluindo os da bancada evangélica - condenaram a agressão à adepta

do candomblé. O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) lançou moção de

repúdio aos agressores, que ficará à disposição dos deputados dispostos a assiná-

la. Em 18 de agosto, a Assembleia promoverá audiência pública, agendada antes da

agressão, para discutir a intolerância religiosa no Rio de Janeiro.

O caso. A menina, de 11 anos, caminhava pela Avenida Meriti,

acompanhada por sete pessoas que haviam saído de um evento religioso, quando

dois homens que estavam em um ponto de ônibus do outro lado da rua, com Bíblias

sob os braços, começaram a insultá-los.

Segundo a avó, os agressores gritaram "Sai, demônio, vão queimar no

inferno, macumbeiros" e lançaram a pedra, que bateu em um poste antes de atingir

a menina. Ela desmaiou. Os criminosos fugiram em um ônibus. A 38ª Delegacia de

Polícia (Irajá), que investiga o caso, tenta localizar o ônibus para examinar as

imagens da câmera interna, na tentativa de identificar os agressores.

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Reportagem 8: O Globo

MPF reúne babalaô e pastores evangélicos para discutir

combate à intolerância religiosa

Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, organizou

conversa inédita em meio ao aumento da violência contra templos de matriz africana

09/07/2018

RIO — O Ministério Público Federal (MPF) sediou nesta terça-feira um

encontro inédito entre pastores evangélicos, promovido pela Comissão de Combate

à Intolerância Religiosa (CCIR) e organizado pelo babalaô Ivair dos Santos. A

reunião ocorreu na sede do órgão, no Centro do Rio.

A perspectiva é que a reunião seja um ponto de partida para traçar

estratégias que inibam episódios de violência. O crescimento expressivo de ataques

contra terreiros por parte do tráfico de drogas, especialmente na Baixada

Fluminense, tem chamado a atenção do MPF.

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Segundo a CCIR, 20 denúncias foram registradas São Gonçalo desde o

início do ano. Em Duque de Caxias, foram 15 templos fechados à força. Em São

João de Meriti e Belford Roxo, foram dez em cada.

Os dados podem estar subnotificados, já que muitas lideranças temem

que queixas levem a retaliações. Muitos atos violentos são fruto de ações de

criminosos evangélicos ligados ao tráfico. Para Ivanir dos Santos, o diálogo

representa um grande passo.

— Uma parcela está nessa conversa está desde 2008, quando fizemos a

primeira caminhada contra a intolerância religiosa. A novidade é chamarmos para

discutir uma estratégia de combate à intolerância a partir da perspectiva deles. Fico

muito feliz que aceitaram — afirma o babalaó. — A gravidade dos ataques que estão

acontecendo macula a imagem dos evangélicos. A grande maioria não é assim,

essa reunião quer mostrar isso.

No próximo domingo, a CCIR organizará a primeira caminhada contra a

intolerância na Baixada Fluminense, de olho nas estatísticas. A marcha ocorrerá em

Nova Iguaçu. O babalaô defende que o evento seja mais um chamado para a

conversa:

— É importante que ocorra na Baixada. Queremos apenas respeito e

chamar as pessoas que querem dialogar. Isso é fundamental para a sociedade

brasileira em um momento que há muito ódio.

Anfitrião do encontro, que contou com representantes pentecostais e

tradicionais, como igrejas batistas, luteranas e anglicanas, o MPF tem tido

protagonismo na denúncia dos casos de intolerância na figura do procurador Julio

José Araújo Jr.

Em maio, o governador Wilson Witzel foi intimado pelo órgão a interferir

nos episódios de violência. Ele, filiado ao Partido Social Cristão (PSC), se reuniu em

junho com a CCIR e Araújo, que aguardam um segundo encontro para discutir

políticas que solucionem o problema. Araújo acredita que a instituição pode

colaborar ativamente no processo.

— A intenção é abrir as portas da instituição para garantir que esse

diálogo inter-religioso contribua para esse combate à intolerância religiosa. Da

mesma forma que há papel importante das instituições em combater práticas ilícitas

e cobrar políticas públicas, é importante interagir com os diversos segmentos da

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sociedade para que eles se manifestem e se unam e se articulam em torno de um

pacto contra a intolerância religiosa — avalia o procurador, que atua na Baixada

Fluminense. Pastores convidados para o encontro saudaram a iniciativa.

— Nós, ministros religiosos, às vezes não temos noção do poder que a

gente tem sobre a multidão, que nos ouve de forma muito confiante. Se nós tivermos

na nossa liderança a mentalidade de que precisamos respeitar o outro independente

da sua cor, do seu credo, se dermos nossos exemplos e sentarmos à mesa como

em um encontro desse, já estamos pregando uma mensagem de respeito e

tolerância — aponta Neil Barreto, pastor da Igreja Batista Betânia, de Sulacap, Zona

Oeste do Rio. Luismarina Campos Garcia, pastora e representante do Conselho de

Igrejas Cristãs do Estado do Rio, espera para que estratégias sejam definidas.

— Eu acho que é muito importante falar com pastores e pastoras para

que a gente trace estratégias de enfrentamento nesse quadro de violência religiosa.

Precisamos encontrar pessoas que trabalham a partir de uma perspectiva de

respeito e carinho da outra religião — diz Lusmarina. — Acho que é importante esse

encontro e que o MPF seja um sujeito desse evento, porque daí traz essa dimensão

pública, da participação estatal, no processo, e compromete o estado com o

combate à intolerância religiosa.

Disponível em: (https://oglobo.globo.com/sociedade/mpf-reune-babalao-pastores-

evangelicos-para-discutir-combate-intolerancia-religiosa-23795458)

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Reportagem 9: O Globo

Fé desrespeitada: A dificuldade no combate à intolerância

religiosa

De janeiro a junho deste ano, o Disque 100 recebeu 210 queixas do tipo. O número

é 18% menor do que o do mesmo período do ano passado. A queda, no entanto,

parece apontar para um sinal de subnotificação dos casos

16/11/2018

RIO - Durante anos, os sábados de Marco Antônio Pinho Xavier,

presidente do Movimento Umbanda do Amanhã (Muda) e liderança à frente da

Tenda Espírita Caboclo Flexeiro, em Santíssimo, no Rio, foram repletos de

agressões. Nos dias de celebração, ele encontrava as janelas e altares do terreiro

quebrados e as portas sujas de óleo e sal. Também era xingado pelos ocupantes do

segundo andar do imóvel apenas por professar sua fé. Os anos de intolerância

foram revertidos em inúmeros boletins de ocorrência que, segundo ele, nunca

viraram processos.

Mesmo com a criação de datas especiais — hoje, 16 de novembro, é

celebrado o Dia Internacional da Tolerância, instituído pela Organização das Nações

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Unidas em 1996 — o respeito ainda parece realidade distante para os adeptos de

religiões de matriz africana.

A história de Xavier é contada no documentário ―Toda pessoa tem o

direito‖, feito pela equipe de videojornalismo do GLOBO. O filme, que faz parte de

uma série de reportagens sobre os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, traz relatos de pessoas que tiveram seus direitos violados de alguma

forma:

— Gostaria que as autoridades respeitassem a laicidade do estado. Que

dessem importância a isso e garantissem aos cidadãos os direitos assegurados pela

Constituição. Se começarem a nos respeitar dessa forma, a gente consegue chegar

a algum lugar.

Os relatos de violência feitos pelo líder religioso não são exceção. De

janeiro a junho deste ano, o Disque 100 — canal do Ministério dos Direitos Humanos

que centraliza as denúncias de discriminação religiosa — recebeu 210 queixas do

tipo, mais de uma por dia. O número é 18% menor do que o do mesmo período do

ano passado, quando houve 255 denúncias motivadas por discriminação religiosa. A

queda, no entanto, parece apontar mais motivos para preocupação do que para

celebração: ela seria um sinal de subnotificação dos casos.

— Desde que começamos a sistematizar esses dados, em 2011, vimos

um aumento do número de casos, com pico em 2016 — afirma Thiago Garcia,

coordenador da Assessoria de Diversidade Religiosa do Ministério dos Direitos

Humanos. — Em 2017 e até agora em 2018, houve queda. Mas os especialistas do

nosso Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa dizem que não houve

redução da intolerância no Brasil, então acreditamos que haja subnotificação. Tudo

leva a crer que ela está aumentando.

Entre os motivos para a menor quantidade de relatos nos últimos 18

meses, Garcia lista o pouco conhecimento que a população tem do Disque 100 e o

enfraquecimento das redes estaduais de coleta de denúncias, também acessadas

pelo ministério.

O babalaô Ivanir dos Santos, representante da Comissão de Combate à

Intolerância Religiosa do Rio, tampouco tem dúvida de que o problema está em

ascensão.

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— É inegável que a intolerância religiosa tem aumentado. Temos um

problema da sensação de impunidade. Esses grupos são encorajados por acharem

que nada vai acontecer— afirma Santos, que é doutor em História pela UFRJ.

Além da subnotificação, o combate à intolerância religiosa tem um

problema estrutural: muitas das denúncias que são feitas ao Ministério dos Direitos

Humanos acabam não sendo apuradas porque não se registra de onde a vítima está

falando. Em 2015, 63% das queixas recebidas não identificavam o local de origem.

Esse percentual vem caindo ano a ano, mas ainda estava em 30% no primeiro

semestre de 2018.

— É uma falha no atendimento. Esse dado é essencial para nós, para

conseguirmos encaminhar de forma satisfatória a denúncia — afirma Garcia. — Uma

vez recebida, a queixa é enviada aos estados, alguns dos quais (como Rio e SP) já

têm delegacias específicas para tratar de intolerância religiosa.

‘O que a Justiça fez?’

No feriado de finados, no último dia 2, muitas pessoas prestavam suas

homenagens aos mortos em todo país. Em Niterói, adeptos de religiões de matriz

africana foram impedidos de fazer um culto aos seus ancestrais por um grupo de

evangélicos, sob gritos de ―Capetas! Macumbeiros têm que morrer‖.

Na confusão, que aconteceu no Cemitério Maruí Grande, o umbandista

Allan Souza, que incorporava uma divindade, teria sido agredido a tapas na cabeça.

O episódio motivou Ivanir dos Santos a pedir a instauração de uma ação penal para

apurar os fatos. Anteontem o babalaô participou de uma audiência com o

procurador-geral de Justiça do Rio, Ricardo Ribeiro Martins.

— A sociedade civil tem que se articular para dar uma resposta e

provocar os órgãos de Estado, o Ministério Público e os tribunais — diz Santos.

Quem já sofreu ataques por conta de sua religião, como Xavier, diz que a

burocracia e o descaso das autoridades reforçam o desânimo das vítimas para

registrar oficialmente seus casos:

— Talvez as pessoas estejam desistindo de fazer registros, porque eu fiz

muitos e o que a Justiça fez? Para que registrar se é preciso ficar cinco ou seis

horas na delegacia para nada? Não há respaldo nenhum. Eu me sinto um cidadão

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brasileiro desvalorizado, vivendo em um país que não preza pelos meus direitos. Eu

me sinto envergonhado.

Disponível em: (https://oglobo.globo.com/sociedade/fe-desrespeitada-dificuldade-no-

combate-intolerancia-religiosa-23238010)

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Reportagens 2019

Reportagem 10: Jornal: Estadão

SP: Condephaat tomba cinco terreiros de religiões de matriz

africana

11/2/2019

O tombamento de cinco casas de religiões de matriz africana da capital e

da região metropolitana de São Paulo foi aprovado em reunião no dia 28 de janeiro.

A decisão foi tomada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,

Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Também foi determinado o registro

do Santuário Nacional da Umbanda, de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista,

como patrimônio cultural imaterial do Estado.

O estudo de tombamento foi aberto no ano passado após a criação do

grupo do trabalho "Territórios Tradicionais de Matriz Africana Tombados de SP", que

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reuniu lideranças religiosas e representantes do Estado e do Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Os pedidos de tombamento foram originalmente abertos entre 2013 e

2017, mas, no ano passado, reunidos em um processo único. A decisão recai

especialmente em relação ao perímetro formado pelo lote, incluindo a localização do

barracão e das árvores consagradas, por exemplo.

Os espaços tombados são: Terreiro de Candomblé Santa Bárbara, de

Brasilândia, na zona norte da capital paulista; Casa de Culto Dambala Kuere-Rho

Bessein, de Santo André, no ABC Paulista; Centro Cultural Ilê Afro-brasileiro Odé

Loreci, de Embu das Artes, na região metropolitana; Templo de Culto Sagrado Tatá

Pércio do Battistini Ilê Alákétu Asé Ayrá e Centro Cultural Ilê Olá Omi Asé Opo

Araka, ambos de São Bernardo do Campo, no ABC.

O Terreiro de Candomblé Santa Bárbara é considerado o primeiro da

cidade de São Paulo, sendo datado dos anos 60, quando foi fundado por Julita Lima

da Silva, a Mãe Manaundê.

Já a Casa de Culto Dambala Kuere-Rho Bessein está instalada em Santo

André há mais de 30 anos. O espaço tem origem no grupo étnico Ewe/Fon,

originário do Benin, na África, sendo um dos pouco com tal característica no País.

De 1996, o Centro Cultural Ilê Olá Omi Asé Opo Araka é um dos terreiros

de candomblé mais conhecidos do Estado, atraindo até mesmo autoridades

políticas. O Centro Cultura Odé Lorecy, por sua vez, é referência por reunir um

acervo com roupas, insígnias, esculturas, máscaras e outros itens ligados a

divindades do panteão africano.

Já o Santuário Nacional da Umbanda faz parte da Reserva Ecológica da

Serra do Mar, em que terreno de 645 mil metros quadrados em meio à mata nativa.

Em seu site, a instituição se autodenomina de "Meca da umbanda". Antes dos locais

citados, apenas o Terreiro Aché Ilé Obá havia sido tombado pelo Condephaat, em

1990. Ele fica localizado no Jabaquara, na região sul da capital paulista.

Lindoia

Na mesma reunião, o Condephaat também aprovou a abertura do estudo

de tombamento da ponte Sebastião Edward Pinto da Cunha, de Lindoia, no interior

paulista. Com a decisão, alterações na estrutura somente podem ser feitas com

anuência do conselho.

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Reportagem 11: O Globo

STF decide que sacrifício de animais em cultos religiosos é

constitucional

A autorização foi acrescentada no Código Estadual de Proteção aos animais, que

veda agressão e crueldade

28/03/2019

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 28, que é

constitucional a lei que permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religião de

matriz africana. Os ministros analisaram o tema através de uma lei estadual do Rio

Grande do Sul que deixou expresso que é possível o sacrifício animal nessas

situações. A autorização foi acrescentada no Código Estadual de Proteção aos

animais, que veda agressão e crueldade.

O julgamento tinha sido iniciado em agosto do ano passado, com os votos

do relator, ministro Marco Aurélio Mello, e do ministro Edson Fachin, cuja posição

formou a maioria no julgamento desta quinta-feira. As divergências foram pontuais.

Por exemplo, para Marco Aurélio, o sacrifício de animais seria aceitável caso a carne

fosse direcionada ao consumo humano - observação que ficou vencida no plenário.

Por outro lado, por unanimidade, os ministros entenderam que a lei do Rio

Grande do Sul que permite o sacrifício em ritual religioso é constitucional. A tese

fixada ao fim do julgamento foi de que é "constitucional a lei de proteção animal que,

a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em

cultos de religião de matriz africana".

"Queria deixar claro no pronunciamento do resultado que todos os votos

foram no sentido de admitir nos ritos religiosos o sacrifício de animais. A corte

entendeu que a lei do Rio Grande do Sul que permite o sacrifício em rituais

religiosos é constitucional", observou o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, ao

pronunciar o resultado, que foi comemorado pelos praticantes das religiões de matriz

africana que assistiam o julgamento do plenário.

A maioria dos ministros destacou que a lei gaúcha não errou ao ter feito

uma designação especial as religiões de matriz africana, uma vez que a menção se

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dá em um contexto de especial proteção às religiões de culturas que historicamente

foram estigmatizadas. "Penso que a razão é que as religiões de matriz africana são

as que têm sido historicamente vítimas de intolerância, discriminação e preconceito.

Não penso que seja tratamento privilegiado", observou o ministro Luís Roberto

Barroso.

Primeiro a votar nesta quinta-feira - uma vez que foi responsável pelo

pedido de vista que interrompeu o julgamento em agosto -, o ministro Alexandre de

Moraes ressaltou que a oferenda dos alimentos, inclusive com a sacralização dos

animais, "faz parte indispensável da ritualística das religiões de matriz africana".

"Impedir a sacralização seria manifestar claramente a interferência na

liberdade religiosa", considerou.

"Não se trata de sacrifício ou de sacralização para fins de entretenimento,

mas sim para fins exercício de um direito fundamental que é a liberdade religiosa.

Não existe tratamento cruel desses animais. Pelo contrário. A sacralização deve ser

conduzida sem o sofrimento inútil do animal", disse Barroso. "Me parece evidente

que quando se trata do sacrifício de animais nesses cultos afros isso faz parte da

liturgia, e portanto, está constitucionalmente protegido", afirmou o ministro Ricardo

Lewandowski.

Caso

O caso chegou ao Supremo através de um recurso do Ministério Público gaúcho,

contra a previsão adicionada no código estadual. A decisão do plenário da Corte

afeta apenas a lei do Rio Grande do Sul, mas expõe o entendimento dos ministros

do STF, última palavra do Judiciário brasileiro, sobre o tema. Na ação apresentada

em 2006, o MP estadual destacava que a previsão adicionada pela lei é

desnecessária, já que a liberdade de religião é constitucionalmente garantida.

Quando o julgamento foi iniciado no ano passado, em nome do governo

estadual, o procurador do Rio Grande do Sul Thiago Holanda Gonzalez afirmou que

a lei não traz nenhum prejuízo ao caráter laico do Estado. "A liberdade de culto

dessas religiões decorre da Constituição. Mas a lei não é inócua. Ela retira o

constrangimento às religiões de origem africana. O Rio Grande do Sul nunca

permitiu a crueldade (com animais)", afirmou.

Representante da União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil,

o advogado Hédio Silva Júnior criticou a ação do Ministério Público estadual à

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época. "Parece que a vida de galinha de macumba vale mais do que a vida de

milhares de jovens negros. É assim que coisa de preto é tratada no Brasil. A vida de

preto não tem relevância nenhuma. A vida de preto não causa comoção social, não

move instituições jurídicas. Mas a galinha da religião de preto, ah, essa vida tem que

ser radicalmente protegida", questionou na tribuna do Supremo.

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Reportagem 12: Estado de Minas

Polícia prende ‘Bonde de Jesus’ que atacava terreiros de

umbanda e candomblé

A nova face da intolerância religiosa é traficante e evangélico

18/8/2019

Os registros de intolerância religiosa são comuns Brasil afora, mas no

Rio têm uma característica particular: passaram a envolver traficantes e

evangélicos. Após ataques a terreiros de umbanda e candomblé na Baixada

Fluminense, a polícia identificou o mandante e, na semana passada, prendeu oito

traficantes acusados de integrar seu grupo, o chamado Bonde de Jesus.

Segundo a polícia, o mandante é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o

Peixão, do Terceiro Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus,

vertente inédita da intolerância religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200

terreiros sob ameaça. Os casos são investigados pela Delegacia de Crimes Raciais

e Delitos de Intolerância (Decradi), criada em 2018.

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Investigações apontam que a peculiar relação entre religiosos e

criminosos aconteceu depois que a cúpula do TCP foi convertida por uma igreja

neopentecostal. Há informações, ainda não confirmadas, de que Peixão teria sido

ordenado pastor. Trata-se de uma característica específica dessa facção, não sendo

reproduzida nem pelos demais grupos de traficantes nem por milicianos.

"A situação de intolerância sempre existiu, mas tivemos uma piora quando

indivíduos ligados à cúpula de uma facção resolveram se converter", afirma o

delegado da Decradi, Gilbert Stivanello. "Eles distorcem a doutrina religiosa e

agridem outras religiões, sobretudo as de matriz africana." As principais lideranças

evangélicas do Rio condenam os ataques. Conversão. Um dos primeiros a se

converter foi Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, há cerca de

quatro anos. Ele era o chefe do tráfico no Morro do Dendê, Ilha do Governador, até

ser morto pela polícia em junho. Outros, como Peixão, se converteram depois.

"Alguns deles se converteram dentro do presídio", diz Stivanello. "Eles

viveram uma experiência distorcida da conversão, se tornando ‘bandido de Jesus‘,

como se isso fosse um ato de fé. Se pararmos para pensar, não é muito diferente do

terrorismo islâmico. É difícil mesmo entender a lógica", afirma.

Coordenadora do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro

Brasileira, Célia Gonçalves Souza diz que o problema da intolerância é nacional,

mas que, de fato, vem ganhando contornos específicos no Rio, sobretudo pela

penetração de evangélicos no sistema carcerário. "No Rio, esse problema é muito

escancarado e o narcopentecostalismo só tende a crescer. E passa pela questão

das penitenciárias, onde há uma entrada muito grande dos neopentecostais."

Na Baixada Fluminense, traficantes passaram a ditar regras dos terreiros,

como horários das cerimônias e uso de fogos de artifício e fogueiras. Eles também

proíbem as pessoas de andarem com roupas brancas ou de santo nas ruas. As

invasões a terreiros são cada vez mais frequentes, com destruição de oferendas e

imagens sagradas.

Há uma semana, o terreiro Ilê Axé de Bate Folha, em Duque de Caxias,

foi invadido por traficantes - no 10, caso da região. Eles quebraram todas as

imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo, que está fora do

Estado, na casa de parentes.

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"O ataque aconteceu num sábado de casa cheia. Eles entraram com

violência, mandando todo mundo sair e quebrando tudo", contou uma testemunha.

"O terreiro está fechado. Tiramos tudo de lá e não aconselhamos ninguém a voltar."

Segundo a mesma testemunha, outros religiosos fecharam os terreiros e se

mudaram.

"Qualquer ataque com contornos de destruição do sagrado tem caráter de

racismo religioso", diz a defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualdade

racial da Defensoria Pública. "À violência que já existe contra essas religiões - que

têm uma série de direitos negados -, se soma agora a do varejo de drogas. Mas a

violência contra elas é permanente desde a época colonial." Por isso, para Livia, a

solução passa por diferentes esferas.

Alerta. A gravidade da situação fez com que, em julho, fosse realizada

uma reunião com membros da umbanda e do candomblé, lideranças evangélicas, e

representantes da Polícia Civil, do Ministério Público e da Defensoria Pública.

O pastor Marcos Amaral, da Comissão Contra a Intolerância Religiosa,

destaca que a denominação "evangélicos" abrange um segmento grande de

religiosos, com posicionamentos diferenciados. Já o pastor Neil Barreto, da Igreja

Batista Betânia, afirma que "a intolerância é o ápice da ignorância". "E a única

solução para a ignorância que produz intolerância é a educação. Precisamos de

uma campanha de educação e conscientização em todas as comunidades de fé."

1. perguntas para Ivanir dos Santos, Babalaô

O babalaô Ivanir dos Santos recebeu no mês passado, em Washington, o

Prêmio Internacional de Liberdade Religiosa entregue pelo Departamento de Estado

dos Estados Unidos. Santos é coordenador da Comissão de Combate à Intolerância

Religiosa e organizador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que é

realizada há 12 anos, em Copacabana, no Rio.

2. Como foi receber esse prêmio internacional em um momento em que

aumentam os ataques a terreiros, em especial no Rio?

Esse prêmio, na verdade, vem reconhecer e legitimar a luta pela causa da

liberdade religiosa, contra o racismo, de respeito aos direitos humanos. Estamos

passando por um momento muito difícil. E não tem como pensar em intolerância

sem pensar em racismo e preconceito contra grupos minoritários.

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3. As religiões de matriz africana sempre foram alvo de preconceito. O que

mudou agora?

Sim, secularmente, elas sempre foram perseguidas: na Colônia e no

Império, pela Igreja Católica; na República, pelo Estado; e nos últimos 30 anos, por

grupos neopentecostais e, mais recentemente, por traficantes evangelizados. São

traficantes que se dizem evangélicos.

4. Existe uma vertente racista nesse preconceito?

Sim. No Brasil temos um preconceito disseminado na sociedade, virou um

comportamento social baseado, fundamentalmente, no racismo. As tradições de

origem africana sofrem preconceito. O mesmo pensamento se reflete também no

samba, na capoeira, na congada. Manifestações culturais de identidade africana são

frequentemente relacionadas ao demônio.

Disponível em:

https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2019/08/18/interna_nacional,1078089/policia-

prende-bonde-de-jesus-que-atacava-terreiros-de-umbanda-e-can.shtml

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Reportagem 13: Folha de São Paulo

"Traficantes de Jesus": polícia e MPF miram intolerância

religiosa do Rio”

15/6/2019

A Polícia Civil e o MPF (Ministério Público Federal) se articulam para

interromper ataques reiterados de quadrilhas de traficantes contra terreiros de

religiões de matriz africana localizados em comunidades na Baixada Fluminense e

em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Na última quinta-feira

(13), homens de quatro delegacias deflagraram uma operação para reprimir

criminosos que expulsaram um pai de santo em uma favela de Nova Iguaçu, na

baixada. O MPF pediu informações a 120 grupos religiosos que atuam nas prisões

com autorização da Seap (Secretaria de Administração Penitenciária).

A ação policial ocorreu na comunidade do Buraco do Boi e contou com a

participação da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância),

DCOD (Delegacia de Combate às Drogas), Desarme (Delegacia Especializada em

Armas, Munições e Explosivos) e da 58ª DP (Posse, em Nova Iguaçu). Os agentes

foram a 22 endereços para levantar informações sobre as ações de intolerância

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religiosa por parte da quadrilha. Também havia a expectativa de cumprir mandados

de prisão contra traficantes, mas ninguém foi preso.

De acordo com fontes ouvidas, a Polícia Civil investiga a denúncia de que

os autores dos ataques são traficantes do TCP (Terceiro Comando Puro)

convertidos por algumas igrejas evangélicas nas prisões do Rio. Quando esses

criminosos deixam o cárcere e voltam para o crime, passam a perseguir sacerdotes

e praticantes do candomblé, umbanda e outras religiões de matriz africana. Diante

do aumento no número de denúncias, o comando da Polícia Civil teria ordenado

uma ação para responder aos ataques.

Mais de 120 terreiros ameaçados, diz deputado.

Segundo o deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ), presidente da

Comissão de Combate às Discriminações da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio),

embora já existam relatos desse tipo há vários anos, as ações se intensificaram

muito nos últimos meses. "Agora está completamente fora de controle. São mais de

120 terreiros afetados na Baixada e em São Gonçalo. Criminosos estavam dando 48

horas para dezenas de pais e mães de santo saírem das comunidades deixando

tudo para trás", denuncia.

Minc cobra a responsabilização de lideranças religiosas que

eventualmente estejam estimulando os ataques de traficantes. "Não é crime a igreja

estar dentro da prisão, nem alguém se converter. Mas precisamos saber quem são

os traficantes que estão ordenando esses ataques e quem os converteu. Eles saem

da prisão com um duplo boné: de assassino traficante e de fundamentalista

religioso. Quem converte essas pessoas obviamente sabe o que estão fazendo e é

corresponsável por isso", afirma.

O MPF tem um inquérito civil em curso sobre a intolerância religiosa na

Baixada Fluminense. Embora trate de temas diversos --que vão desde isenção fiscal

para templos de matriz africana até questões relativas a educação--, o procurador da

República Julio José Araujo Junior, responsável pela investigação, diz que a questão

de segurança pública acabou se mostrando urgente. Diante disso, ele tem atuado

para articular uma reação das polícias Civil e Militar aos ataques. "Temos que

entender se há algum estímulo a esse ódio religioso", diz o procurador.

"Temos feito essa articulação. A Decradi é uma delegacia pequena e com

pouco efetivo para lidar com a questão. E isso não está no horizonte das demais

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delegacias. Nós apontamos essa questão e a necessidade de que isso seja mais

bem compreendido. Há essa história de traficantes de Jesus, mas até que ponto isso

procede?", contextualiza. "Por isso estamos fazendo todo o esforço para que se

entenda que isso não será tolerado", afirma o procurador.

"Estou abrindo diálogo com os batalhões. Eu me reuni com o Batalhão de

Duque de Caxias nesta quinta-feira e me surpreendi que eles nem sabiam dessa

história [de ataques a terreiros na cidade]." O procurador pediu informações para

120 grupos religiosos que atuam dentro das prisões do Rio com a evangelização de

detentos. Embora haja representantes da Igreja Católica na lista, ela engloba

principalmente igrejas evangélicas.

"Percebemos claramente que há um predomínio muito grande de igrejas

evangélicas. Isso não é um mal em si, mas esperamos que isso não seja um

privilégio, ou que haja algum constrangimento às religiões de matriz africana", diz.

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Reportagem 14: Folha de São Paulo

TERREIROS NA MIRA

Casos de intolerância contra religiões de matriz africana, maioria nos registros do

Disque 100, expõem disputas territoriais, escalada de violência comandada pelo

tráfico e racismo; falta de uniformidade nos dados evidencia negligência de um

Estado nada laico

05/06/2019

Há um ano, o terreiro Asé Ojú Oyá, da ialorixá (mãe de santo) Claudia

Rosa, na Zona Leste de São Paulo, foi invadido. Durante a madrugada, pessoas

entraram no local e roubaram utensílios domésticos e eletroeletrônicos. Mas o mais

grave, segundo a ialorixá, foi o ingresso nos roncós (quartos específicos para

recolhimento dos filhos de santo), onde os agressores quebraram louças, pertences

e mexeram em objetos sagrados. ―Quando você percebe que foi roubada, a

sensação de violência é muito forte. Mas quando percebe o desrespeito a uma casa

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de axé, é desolador‖, ela define. Claudia chamou a polícia diversas vezes, mas

nenhum agente compareceu ao local.

Ela nunca conseguiu fazer o boletim de ocorrência. Seu caso, portanto,

sequer entra na alarmante estatística que mostra que a maioria dos casos de

intolerância religiosa registrados pelo governo federal diz respeito a religiões de

matriz africana. Segundo dados do Disque 100 acessados pela Gênero e Número e

pelo DataLabe, 59% do total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram

referentes a religiões como a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas;

11% a espíritas; 8% a católicos; e 2% a ateus. O Disque 100 é um canal para

denúncias de violação de direitos humanos, criado em 2011 pela então Secretaria

de Direitos Humanos da Presidência da República.

Entre 2011 e 2017, as denúncias de discriminação por motivo religioso no

Brasil cresceram de 15 para 537. Os dados mais recentes do Disque 100 totalizam

apenas o primeiro semestre de 2018, quando foram registradas 210 denúncias.

Quase 60% dos casos de intolerância religiosa contra adeptos de religiões de matriz

africana foram registrados no Rio de Janeiro (117), São Paulo (95), Bahia (56) e

Minas Gerais (51). No entanto, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de

São Paulo, onde está localizado o terreiro de Claudia, 6.324 boletins de ocorrência

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com casos de intolerância religiosa foram registrados no estado nos dois últimos

anos.

A imensa discrepância entre informações federais e estaduais mostra a

total falta de uniformidade entre os dados no país, que não ajuda na elaboração de

políticas públicas a respeito. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos

Humanos, atual responsável pelo Disque 100, não respondeu às perguntas da

reportagem sobre suas ações para combater os ataques contra religiões de matriz

africana, e tampouco comentou os números levantados pela Gênero e Número e

pelo DataLabe.

As estatísticas que baseiam esta reportagem são vivenciadas com medo

e apreensão por muitos praticantes dessas religiões e se refletem com frequência no

noticiário de várias regiões do país. Na cidade de Nova Iguaçu (RJ), o terreiro de

candomblé de Ogunzinho foi invadido no Dia das Mães deste ano. Segundo

testemunhas, homens armados de fuzis arrombaram a porta lateral do imóvel e

fizeram um churrasco no local para comemorar a data. Esta é a terceira vez que o

terreiro, existente há 15 anos, é atacado. Em Camaçari (BA), o terreiro Ilê Axé Ojisé

Olodumare foi invadido em janeiro deste ano, e o pai de santo da casa agredido com

uma coronhada no rosto. Em Ceilândia (DF), o terreiro Axé Ode Iboalama foi

invadido por homens armados com foice e facão no dia 10 de maio. Segundo os

relatos, no momento da invasão os homens disseram que o espaço não era lugar de

―macumbeiros‖.

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―As religiões de matriz africana enfrentam uma perseguição sistemática. A

intolerância religiosa não vem de hoje. O que muda é o cenário e os personagens,

mas a discriminação e a perseguição à cultura africana sempre aconteceram, muitas

vezes de maneira institucional‖, destaca Rodney de Oxóssi, antropólogo, doutorando

em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo e babalorixá (pai de santo) do terreiro

Obá Ketu Axé Omi.

Para Ivanir dos Santos, babalaô (sacerdote relacionado ao jogo de búzios) e

pós-doutorando em História Comparada, o Brasil é racista e as instituições foram

construídas de forma racista e intolerante com relação às religiões de matriz

africana. ―As ações de intolerância religiosa, racismo e preconceito estão

relacionadas ao interesse dos homens, a partir do seu lugar de poder e dominação.

A intolerância religiosa é uma questão mais política do que espiritual‖, pontua.

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Reportagem 15: O Globo

Homem critica esculturas de Mãe Stella e Oxóssi em vídeo

e MP apura denúncia de intolerância religiosa: 'Deus está

irado’

Vídeo foi postado em rede social na terça-feira, mesmo dia da inauguração, em

Salvador, da obra que homenageia memória da mãe de santo, mulher, sacerdotisa e

conhecedora dos cultos e tradições do candomblé.

10/04/2019

O Ministério Público da Bahia (MP-BA) informou, nesta quarta-feira (10)

que instaurou um procedimento para apurar denúncias de intolerância religiosa

contra um homem que aparece em um vídeo criticando a instalação, em Salvador,

de esculturas do orixá Oxóssi e de Mãe Stella, uma das principais ialorixás do país,

que morreu em dezembro de 2018. As esculturas, instaladas no início da Avenida

Mãe Stella de Oxóssi, via que liga a Av. Paralela à orla do bairro de Stella Maris,

foram inauguradas na terça-feira (9). A obra, do escultor Tatti Moreno, é uma

homenagem à memória da mãe de santo, mulher, escritora, sacerdotisa e

conhecedora dos cultos e tradições do candomblé.

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O vídeo foi postado no Facebook, na terça-feira, por um homem que se

apresenta como "Diogo Nöbre" — em outras postagens na mesma rede social, ele

aparece pregando em igrejas evangélicas e dentro de coletivos. Na gravação, feita

no local onde foram instaladas as esculturas, o homem, que informa ser morador de

Salvador, lê trechos da bíblia e diz que Deus ficou "irado" com a inauguração obra.

Até o meio da tarde desta quarta, o vídeo já contabilizada 36 mil visualizações.

"Deus está irado, queridos. Eu estava buscando a presença de Deus e

eu consegui sentir a ira de Deus. Deus estava dizendo: 'Eu vou balançar a cidade de

Salvador. Eu vou balançar, aleluia, as lideranças de Salvador. Eu vou sacudir as

lideranças de Salvador'", afirma o rapaz, no vídeo. "Queridos, a ira de Deus está

sobre a terra. Deus está esperando mudança e transformação do seu povo. Deus

está procurando o povo unido. É tempo da igreja se unir. Enquanto a briga, a

contenta, a divisão entra no meio da igreja, o diabo, o reino das trevas, acha espaço

para isso aí", afirma, apontando para as esculturas.

Várias pessoas comentaram no post e acusaram o homem de

intolerância religiosa. "É crime", escreveu um internauta. "Sou evangélica, e ainda

bem que não me enquadro ao perfil de 'crentes' como esse. Aprendi desde criança a

respeitar todas as religiões. Tenho amigos católicos, do candomblé e quem não crer

em nada. E ainda assim amo cada um deles", comentou outro.

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Reportagem 16: Folha de São Paulo

Ataque a terreiros é terrorismo

Não é de hoje que casas de umbanda e candomblé sofrem perseguição

19/07/2019

Foi o historiador Luiz Antonio Simas que, após a destruição do terreiro de

candomblé no Parque Paulista, em Duque de Caxias, no início do mês, cobrou numa

rede social outra denominação para os ataques aos cultos de matriz africana. No

lugar de intolerância, terrorismo religioso. A frequência e a intensidade dos

episódios, que misturam intimidação, ameaça, dano ao patrimônio, destruição de

elementos sagrados, agressão física e até tentativa de homicídio, justificariam a

ênfase. Neste ano, que mal passou da metade, a Comissão Contra a Intolerância

Religiosa já recebeu 200 denúncias de algum tipo de violência, mais que o dobro do

total (92) de 2018. A Baixada Fluminense, Nova Iguaçu e Caxias à frente, concentra

35% dos casos.

Não é de hoje que casas de umbanda e candomblé sofrem perseguição

no país. No Brasil Colônia, a Igreja Católica impunha a africanos e indígenas

escravizados a conversão. Violência. A República criminalizou rituais e espaços, a

ponto de ainda hoje objetos sagrados permanecerem sequestrados em repartições

policiais. Mais violência.

A legislação evoluiu para garantir a liberdade de credo e punir o racismo

religioso. Mas nas últimas décadas, testemunhou-se o recrudescimento da

brutalidade, pregada primeiro por líderes de denominações cristãs neopentecostais;

hoje, por grupos criminosos que, para dominar territórios, violam templos, proíbem

trajes e rituais, expulsam sacerdotes e filhos de santo. A revista ―Gênero e Número‖,

em levantamento recente, observou, de 2011 para 2017, salto de 15 para 537

denúncias de intolerância religiosa ao serviço Disque 100 do governo federal. Seis

em cada dez relatos tinham como alvo a fé afro-brasileira.

No ano passado, o Ministério Público Federal divulgou o estudo ―Estado

Laico e Combate à Violência Religiosa‖, em que confirma e analisa a espiral de

ataques, em particular no Rio de Janeiro. Foi contundente em afirmar que o Brasil

―não coíbe, impede e não pune de maneira proporcional, adequada e eficaz

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indivíduos e grupos que, de forma sistemática, ao longo do tempo, vêm restringindo,

anulando e suprimindo o livre exercício dos direitos de consciência, crença, culto e

liturgia de minorias afro-brasileiras‖.

O procurador Jaime Mitropoulos, que assina o estudo, já usou o conceito

de terrorismo para classificar a escalada de violência contra terreiros por grupos

armados da Baixada Fluminense, em particular. ―Criminosos usam a religião como

pretexto para intimidar, amedrontar e ameaçar a integralidade física e a vida de

pessoas. Há viabilidade de enquadrar como terrorismo, se o tipo penal for

enquadrado adequadamente‖, sublinha.

Aí mora o problema. A subnotificação é regra; nem todos os casos

chegam às delegacias. Quando há registro de ocorrência, falta conhecimento tanto

das vítimas quanto das equipes policiais para listar os tipos de crime. Assim,

intolerância transforma-se no guarda-chuva a abrigar de racismo religioso a tentativa

de homicídio. ―Há indícios de que assassinatos ou tentativas por crime de ódio

religioso tenham sido tipificados como motivação diversa, assim como discriminação

pode aparecer como briga de vizinhos‖, completa o procurador.

O Brasil tem desde 2016 uma Lei Antiterrorismo (13.260) em vigor. O

artigo 2º engloba a violência cometida por um ou mais indivíduos contra pessoa,

patrimônio ou paz pública por xenofobia, discriminação ou preconceito por cor, raça,

etnia e religião. A tipificação transferiria à Polícia Federal a investigação dos casos.

Renato Galeno, professor de Relações Internacionais do Ibmec, diz que a definição

de terrorismo é tema que mobiliza e divide a comunidade global desde os ataques

aos EUA no 11 de setembro de 2001. ―Há um temor acertado de não se permitir

abusos de governos contra minorias‖, explica.

Mas em diferentes países com legislação antiterror — entre eles, EUA,

Canadá, UE, Colômbia, Austrália — algumas premissas se encaixam na

perseguição às religiões afro-brasileiras no Estado do Rio. Em mais da metade dos

textos há referências a ação violenta, objetivo político de dominação e/ou intenção

de provocar medo na população em geral ou em nichos específicos. O que se vê na

Baixada é terror.

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Reportagem 17: O Globo

Membros de terreiro de candomblé na BA denunciam

intolerância religiosa após ato de grupo: 'Casa de Satanás‘

Situação ocorreu no município de Alagoinhas, a cerca de 180 km de Salvador. Caso

é investigado pela Polícia Civil e está sendo acompanhado pelo MP e por Centro de

Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa.

28/05/2019

Membros do terreiro de candomblé Ilê Asé Oyá L‘adê Inan, localizado no

município de Alagoinhas, a cerca de 180 km de Salvador, denunciaram à polícia

terem sido alvos de intolerância religiosa após um grupo realizar um ato em frente

ao local gritando frases como "Satanás vai morrer" e "Vamos invocar Jesus para

fechar a casa de Satanás", além de bater com uma bíblia na porta do terreiro.

Segundo a denúncia, o caso ocorreu na noite de segunda-feira (28), por

volta das 23h30, e o ato teria sido praticado por evangélicos. Um dos membros do

terreiro, o terapeuta holístico e orientador candomblecista Ed Silva, fez um relato

sobre o ocorrido no Instagram e ainda postou um vídeo do momento em que o grupo

estava realizando o ato em frente ao terreiro.

"Acabamos de sofrer um ataque de Intolerância Religiosa em nosso Ilê

Axé. Evangélicos na comunidade do Ferro Aço, Santa Terezinha, aqui em

Alagoinhas - Bahia, por volta das 23:30h, hoje conhecido com Praça do Céu,

atacaram nossa casa com palavras como "Satanás irá cair" e várias palavras de

ordem direcionadas diretamente ao Candomblé", destacou Ed.

Conforme o relato, a yalorixá do terreiro, Mãe Rosa de Oyá, de quem ele

é afilhado, estava no local no momento do ocorrido. Ele disse que o vídeo que

mostra o momento do ataque foi feito por vizinhos do terreiro.

"Nossa Yalorixá, Mãe Rosa de Oyá, é uma pessoa honrada e sempre foi

respeitada em toda a comunidade até o dia de hoje, porém é hipertensa e com mais

de 60 anos de idade e presenciou em sua porta agressões que já limaram e estão

limando pessoas e templos. Todas as medidas cabíveis estão sendo tomadas e não

descansaremos até que os responsáveis recebam as devidas punições", afirmou Ed.

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Em outro vídeo postado por ele na rede social, Ed aparece ao lado de

Mãe Rosa de Oyá, que fala sobre o caso. "Foi horrível, muito ruim. Fiquei nervosa,

estou nervosa. Não tenho condições. Minhas pernas tremem até agora. Não tenho

condições de falar nada, mas foi horrível", destacou a Yalorixá.

Os membros do terreiro informaram que já registraram a ocorrência na

Polícia Civil e também já procuraram o Centro de Referência de Combate ao

Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Secretaria de Promoção de

Igualdade Racial do Estado (Sepromi) e o Ministério Público do Estado (MP-BA).

A delegacia de Alagoinhas informou que recebeu a denúncia na tarde

desta terça-feira (28) e que está ouvindo a yalorixá, Mãe Rosa de Oyá e os demais

membros do terreiro para que possam falar sobre o ocorrido. A Secretaria Estadual

de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) informou, por meio de nota, que foi

acionada sobre o ato de intolerância religiosa praticado contra o Ilê Axé Oyá Ladê

Inan e que, através do Centro de Referência Nelson Mandela, equipamento mantido

pela secretaria, está acompanhando o caso desde as primeiras horas desta terça-

feira (28).

O órgão destacou que foram dadas orientações acerca da necessidade

de registro na delegacia mais próxima para a produção de boletim de ocorrência. A

Sepromi disse, ainda, que estão sendo acionados, em paralelo, os órgãos que

compõem a Rede Estadual de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa,

instância que inclui Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça, para

tratativas específicas sobre o caso, na tentativa de elaboração de estratégias para a

mediação do conflito.

Ainda conforme o órgão, o Centro Nelson Mandela colocou à disposição o

serviço de orientação jurídica e acompanhamento do caso, desde que foi notificado

pela comunidade religiosa. O Ministério Público da Bahia informou que o caso já

está sendo acompanhando pela promotoria de Alagoinhas e que vai ser instaurado

procedimento pra apurar o ocorrido.

Em 2019, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à

Intolerância Religiosa Nelson Mandela já registrou 19 casos de intolerância religiosa

na Bahia. Em 2018, foram contabilizados 47 casos.

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Programa de Pós-graduação em Letras

ATA DA 473ª. DEFESA DE DISSERTAÇÃO

CANDIDATO(A): THIAGO OLIVEIRA COSTA

Realizou-se no dia 10 de julho de dois mil e vinte, às 9h, por videoconferência, a

473ª. defesa de dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras,

da Área de Linguística e Língua Portuguesa, intitulada ―A referência a religiões de

matriz africana em textos veiculados na mídia jornalística brasileira entre 2018 e

2019: um estudo de natureza sociodiscursiva‖ e apresentada por THIAGO

OLIVEIRA COSTA.

A Banca Examinadora foi composta pelas seguintes professoras:

Profª Drª Flávia Affonso Mayer (UFPB)

Prof. Dr. Edward Neves M. de Barros Guimarães (Depto. Ciências da Religião –

PUC Minas) Profª Drª Juliana Alves Assis (PUC Minas)

Profª Drª Sandra Maria Silva Cavalcante (Orientadora/PUC Minas). Após realizada a

arguição, a Banca decidiu considerar o(a) candidato(a):

( X ) APROVADO(A) ( ) REPROVADO(A)

Sugestões da Banca Examinadora para a versão final do texto, caso existam:

o(a) candidato(a) terá 60 dias corridos para entregar o texto final da dissertação com

as sugestões apontadas). A banca destaca a relevância do objeto e recomenda que,

na versão final, sejam contempladas as sugestões apresentadas na arguição.

―Esta ata não vale como certificado. A emissão do diploma está condicionada à

entrega da dissertação/tese devidamente corrigida nos termos do Regulamento

Específico do Programa.‖

Belo Horizonte, 10 de julho de 2020.

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p/Profª Drª Flávia Affonso Mayer (UFPB)

p/Prof. Dr. Edward Neves M. de Barros Guimarães (Depto. Ciências da Religião –

PUC Minas)

p/Profª Drª Juliana Alves Assis (PUC Minas)

Profª Drª Sandra Maria Silva Cavalcante (Orientadora/PUC Minas).