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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA NÚCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS LETÍCIA GONÇALVES SAID O MITO DE ULISSES COMO METÁFORA DO PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO MASCULINO NO MODELO JUNGUIANO MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA SÃO PAULO 2019

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP … · 2019. 9. 26. · Também podemos observar estas figuras na poesia, religião e mitologia. Jung (2011 [1939]) explica

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Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP … · 2019. 9. 26. · Também podemos observar estas figuras na poesia, religião e mitologia. Jung (2011 [1939]) explica

PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO ndash PUC-SPPROGRAMA DE ESTUDOS POacuteS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA

NUacuteCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS

LETIacuteCIA GONCcedilALVES SAID

O MITO DE ULISSES COMO METAacuteFORA DO PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeOMASCULINO NO MODELO JUNGUIANO

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA

SAtildeO PAULO2019

PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO ndash PUC-SPPROGRAMA DE ESTUDOS POacuteS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA

NUacuteCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS

LETIacuteCIA GONCcedilALVES SAID

O MITO DE ULISSES COMO METAacuteFORA DO PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeOMASCULINO NO MODELO JUNGUIANO

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA

Projeto da Dissertaccedilatildeo de Mestradoapresentada agrave Banca de Qualificaccedilatildeo comoexigecircncia parcial para defesa no Programa deEstudos Poacutes-Graduados em PsicologiaCliacutenica da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo ndash PUC-SP sob a orientaccedilatildeo doProf Dr Durval Luiz de Faria

SAtildeO PAULO2019

_______________________________________Profo Dr Durval Luiz de Faria

_______________________________________Profa Dra Paula Guimaratildees

______________________________________Profa Dra Maria Teresa Nappi Moreno

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip

Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo

Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho

Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida

Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador

Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees

Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos

RESUMO

A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento

Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo

ABSTRACT

Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling

Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO8

2 OBJETIVOS14

21 OBJETIVO GERAL14

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14

3 MEacuteTODO15

4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19

41 EM JUNG19

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21

43 OUTROS AUTORES22

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95

631 O MITO DE POSIacuteDON95

632 O MITO DE ATENAacute97

633 O MITO DE HERMES99

7 A VIDA DE ULISSES103

71 ORIGEM103

72 TROIA107

73 RETORNO A IacuteTACA113

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124

82 ENCONTRO COM POLIFEMO126

83 ENCONTRO COM A CIRCE127

84 DESCIDA AO HADES128

85 ENCONTRO COM CALIPSO130

86 OS FEAacuteCIOS131

87 IacuteTACA133

88 DISCUSSAtildeO135

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137

REFEREcircNCIAS145

APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149

Its My LifeBon Jovi (2000)

This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed

I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice

When I shout it out loud

(Refratildeo)Its my life

Its now or neverI aint gonna live forever

I just want to live while Im alive(Its my life)

My heart is like an open highwayLike Frankie said

I did it my wayI just wanna live while Im alive

Its my life

This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down

Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky

Got to make your owns breaks (Refratildeo)

Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1

1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)

8

1 INTRODUCcedilAtildeO

Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)

Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras

aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi

um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos

estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo

de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute

um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da

psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova

singularidade

O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia

permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e

os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus

pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles

siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este

fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era

composto por uma camada pessoal e outra coletiva

O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por

tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou

esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as

formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma

imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute

compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as

experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um

lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa

conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor

Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo

9

(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)

Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia

Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011

[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as

fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de

consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam

isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na

consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel

O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os

conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O

processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung

(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para

compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute

que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no

inconsciente novamente

Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da

vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos

atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos

aprofundaremos neste periacuteodo da vida

Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes

de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa

sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual

ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente

estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito

ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel

O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o

equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a

atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas

a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida

estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia

agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise

psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente

10

Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens

inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como

sintomas psicopatoloacutegicos e

Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)

O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta

conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para

ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo

como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao

utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a

consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta

forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e

obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia

Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante

significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica

que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo

atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a

qualidade de vida

Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia

que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva

do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento

e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais

expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo

que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis

Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem

recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz

sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela

11

narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois

dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste

conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito

Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da

forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem

arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por

isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a

psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas

que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a

Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para

casa apoacutes a guerra de Troia

Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio

sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta

tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a

provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar

situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo

De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais

influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas

passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por

meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a

passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor

de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura

dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses

Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem

um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual

surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade

Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama

Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um

aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia

Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras

seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria

transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)

2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome

12

Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original

esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes

lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto

particular

A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo

entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se

concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as

pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero

relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo

como protagonistas pelo menos como coadjuvantes

Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa

cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-

junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo

conforme descrito por Jung

Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem

ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por

meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com

Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de

sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo

A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo

do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que

Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre

qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma

essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter

arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)

A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos

ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos

permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo

uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e

perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo

Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5

anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos

deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me

13

levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos

preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio

chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano

Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela

forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se

restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito

vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem

cursos ministrados por analistas ali formados

Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro

capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a

anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos

do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as

principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a

importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e

psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia

Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua

morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da

psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de

Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-

junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados

em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo

apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um

resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia

14

2 OBJETIVOS

21 OBJETIVO GERAL

Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO

Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos

15

3 MEacuteTODO

Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito

de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano

Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica

neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)

Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram

mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia

Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga

(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a

psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico

Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a

pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo

de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos

junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)

Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram

consultadas para este trabalho

No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR

odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea

NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam

relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou

Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram

relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de

Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)

Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus

OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram

encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros

eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros

ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo

de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos

16

interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as

pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)

A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND

individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology

resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo

porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como

embasamento teoacuterico

Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope

AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra

de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da

personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente

trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam

disponiacuteveis

A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer

no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam

relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo

De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND

(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em

nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema

que natildeo acrescentava ao nosso tema

Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer

quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente

nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise

Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo

geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me

surpreendeu bastante

As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora

as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos

portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de

individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em

encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de

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entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia

fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria

Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O

feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese

de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes

Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do

relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no

presente trabalho

A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a

maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise

das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi

consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo

da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino

em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes

Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante

abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se

transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e

mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no

acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso

todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei

que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo

Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho

uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo

direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares

sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi

(2015a e 2015b)

O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do

poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas

tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um

resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do

trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da

metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei

que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu

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nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e

portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a

Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que

eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema

(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no

momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que

eu considero podemos ver metaforizados no mito)

Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses

que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada

Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de

outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise

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4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA

41 EM JUNG

A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de

estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua

produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da

psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago

este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria

Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da

Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar

sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais

frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica

No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma

minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa

sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da

amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas

Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para

fazer a amplificaccedilatildeo

Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o

segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma

viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a

C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei

Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a

respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente

apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])

utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute

de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas

queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que

cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele

reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua

anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona

novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de

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sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito

do nosso heroacutei

No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e

interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido

produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito

brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para

poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011

[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que

menciona o consumo de sangue de bodes

No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses

de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou

didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce

Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas

em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum

comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu

No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e

inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos

mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele

explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo

subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses

faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias

De acordo com Jung

O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)

O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute

presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro

(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que

estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que

este monstro habite as aacuteguas dos oceanos

A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os

compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG

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2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio

de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam

vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e

filoacutesofos

O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se

preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para

o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de

forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca

os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos

relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011

[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca

em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma

forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores

confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])

apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem

que os sonhos satildeo significativos

No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente

Para ele

O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)

Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a

peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que

improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu

significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado

psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS

Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para

estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e

a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de

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planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima

do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)

Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma

descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da

perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de

complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto

as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse

tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e

que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso

para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham

caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade

Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte

ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia

analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso

e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise

da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua

eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo

famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o

motivo de seu sucesso

43 OUTROS AUTORES

Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a

morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do

poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma

definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel

pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc

Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria

se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta

tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga

(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por

meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por

exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou

quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo

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pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA

2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do

pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope

De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido

considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos

informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a

morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes

provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento

O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que

aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses

desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da

fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no

Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida

(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido

antes de morrer

Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento

uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria

o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o

heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes

vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens

morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)

Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)

destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e

nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder

a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e

Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a

fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para

natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos

deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu

turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar

3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres

mueren una uacutenica vezrdquo

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em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o

heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo

Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o

morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande

habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por

parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o

motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o

fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo

muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma

expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria

morrer e encontrar o destino

Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia

grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem

relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do

prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera

que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa

accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo

Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela

decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem

Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade

Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do

intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo

divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina

na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida

(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar

liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz

de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do

paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o

sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e

atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central

uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do

domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude

e portanto felicidade

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Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma

deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um

comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o

sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio

o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado

com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo

incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores

Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a

fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se

por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo

capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo

essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de

sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes

responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas

o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino

E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como

a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de

Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia

das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos

Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito

traacutegico grego

Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a

Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue

escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de

que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu

ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses

Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia

disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece

acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com

todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu

muito suporte de Atenaacute

Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na

vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute

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que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da

ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses

Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta

atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que

poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia

ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso

antes dele) mas insistiu em arriscar

Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um

mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a

caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo

inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno

extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou

exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu

palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute

momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa

Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela

realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o

marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem

construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o

quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante

acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido

A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)

Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua

hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria

sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra

especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na

realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por

Homero o mito de Er nem teria sido criado

27

O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas

ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute

passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a

escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e

satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo

sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo

(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos

deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como

uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as

afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os

mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta

com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas

Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela

existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar

Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira

como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo

teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel

porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter

nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse

um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida

virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei

considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua

grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem

de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser

ardiloso caso necessaacuterio

Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do

diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades

a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas

diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar

a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve

nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era

respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais

mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que

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preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e

ter influecircncia entre os mortos

Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e

Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que

inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens

Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora

desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria

aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da

qual Aquiles gozava agora morto

Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da

inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve

oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a

opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no

modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera

que a Odisseia

(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)

Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida

de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na

Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que

se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na

verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a

obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas

envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que

diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto

Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses

morreria velho rico e cercado de seu povo

5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama

6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas

29

Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a

Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade

de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na

epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele

mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa

Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais

conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua

identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se

chama Ningueacutem

Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute

estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o

nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor

Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado

de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno

de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio

Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)

Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na

Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a

respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No

entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente

sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se

emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas

andanccedilas

Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua

identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou

seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do

heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo

existe mais que natildeo vive mais

Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e

comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou

30

seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo

que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado

intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez

que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe

o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em

que recupera sua identidade e sua histoacuteria

Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA

partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em

que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando

da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68

grifo do autor)

Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este

momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa

cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre

a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar

bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar

para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo

31

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO

Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)

Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir

brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a

consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos

autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o

centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute

composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui

ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de

apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e

mulheres

Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo

compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de

si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por

uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos

ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos

processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da

observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e

opiniotildees de uma pessoa)

O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui

funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de

capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando

um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose

provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)

Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente

tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um

instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da

personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o

indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase

inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece

32

Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do

segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir

a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como

(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)

Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um

afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo

Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas

dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo

possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de

forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute

povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos

dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e

considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique

Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas

perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque

a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o

indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de

constelaccedilatildeo do complexo

Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor

demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o

primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por

natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu

do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um

ego para ter consciecircncia deles

Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo

relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e

mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos

Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de

modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou

33

grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia

O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim

mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees

sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma

Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e

eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade

entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute

sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode

considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que

remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam

frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees

por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o

Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira

autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea

Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na

organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram

quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de

Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com

a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se

as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que

Jung denominou processo de individuaccedilatildeo

A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas

(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de

uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se

estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque

assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios

situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois

voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os

sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador

poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em

seus conteuacutedos oniacutericos

Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens

arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos

34

fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia

tal como a entendemos De fato para Jung

(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)

Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto

de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os

processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute

capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos

uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo

significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia

os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito

entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este

movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo

que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e

inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador

Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila

entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como

depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da

morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e

elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na

imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que

comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta

eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a

depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua

independecircncia

35

Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por

meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o

qual natildeo haacute uma foacutermula

Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por

meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que

depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que

este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um

esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem

Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)

Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos

definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades

somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo

com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que

haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo

mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo

De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende

de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a

funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito

de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso

depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo

Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que

menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a

nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo

quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo

inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas

caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma

funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua

espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre

entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011

36

[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na

condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior

(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)

O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma

espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer

que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer

sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer

sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que

o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender

as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que

estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que

natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter

causado nenhum resultado

Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca

complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos

acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando

chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute

uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um

grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila

O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez

que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e

significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum

cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se

de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela

psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por

exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando

Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a

separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um

caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques

de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba

37

exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave

separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para

seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam

ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute

buscando

Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a

reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo

doloroso de integraccedilatildeo de opostos

Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas

polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de

sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer

forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos

cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta

maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades

conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)

Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico

que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o

indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o

define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a

individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em

sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se

distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo

devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo

uacutenica de qualidades universais

Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade

dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir

ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo

egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a

autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu

ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo

tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo

7 O Self eacute o si-mesmo

38

depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do

ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado

Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da

necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a

apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em

vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro

que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo

se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer

Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self

que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos

estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente

buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p

216)

Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme

transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma

natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio

de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos

recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num

trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da

persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher

Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem

a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma

imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele

desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto

Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do

indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente

agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao

indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma

vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que

o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O

fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha

consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica

sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as

39

pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo

que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se

desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu

papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias

obsessivas

A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que

significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da

persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a

individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a

persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute

um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o

individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa

doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e

coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para

que a alma possa se desenvolver

Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)

Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos

arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor

ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na

consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta

que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante

a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)

Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em

noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este

estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto

nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a

ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein

explica que isso acontece porque no meio da vida

40

() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)

Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar

entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita

pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo

necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos

podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na

adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-

idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar

outra transformaccedilatildeo

Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos

nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as

pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um

significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social

O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico

o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute

justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos

nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas

acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como

sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem

uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo

a seu respeito

Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos

psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for

desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que

natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua

consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial

Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque

nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos

nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas

e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo

41

configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a

experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas

Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a

individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar

de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da

vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo

determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o

lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se

esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta

tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo

a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam

contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida

Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que

tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase

anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem

da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e

perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da

persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos

separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se

diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma

desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento

para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica

Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja

um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora

seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado

por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se

libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar

livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar

o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento

Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da

nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a

reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as

mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva

42

relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos

confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela

definitivamente

Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do

que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que

engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos

nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido

ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a

estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra

A autora explica que

A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)

Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no

meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que

fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora

estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo

podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos

Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo

necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo

temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo

reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que

vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro

relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra

apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em

uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim

vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem

negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado

43

Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente

para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por

Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self

que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self

possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos

proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas

que ele ainda precisa cumprir

Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem

os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo

e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-

se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem

antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos

estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de

individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas

singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa

finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas

condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na

polaridade divina

Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego

dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave

proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como

inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a

autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da

personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da

proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos

psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem

fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012

p 56)

Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma

simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato

Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma

experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se

fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os

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iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os

impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a

sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando

orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar

aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-

se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes

Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo

simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da

nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o

que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um

aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo

de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos

sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu

respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los

Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos

nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo

interna

Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja

atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo

por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de

forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar

com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila

de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que

tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos

levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees

Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer

esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se

separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem

em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes

reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo

e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o

que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus

45

Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o

resultado da transiccedilatildeo do meio da vida

Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos

dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente

com anima e animus Sobre a anima Jung explica que

A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)

O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da

persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o

exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a

anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias

entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode

ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre

nossa vida exterior

De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a

anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino

relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)

A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma

representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos

germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os

homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que

pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada

homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na

forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo

O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da

mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A

influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista

sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os

outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa

da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a

autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a

46

se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso

ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima

como uma forccedila interior

Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em

termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do

homem quando ele

(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)

O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de

individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que

o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo

se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo

inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self

Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem

subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do

mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro

Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura

equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem

a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus

como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum

dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos

atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles

Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)

O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora

opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute

que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta

47

como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo

inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos

guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos

razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung

(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de

preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado

Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von

Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui

aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa

coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a

anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON

FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo

perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente

revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos

sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino

um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute

simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute

representando um aspecto mais coletivo do que pessoal

Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus

estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca

satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam

Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas

prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo

Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos

aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que

constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo

desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento

da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo

projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes

Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos

integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia

Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o

inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute

48

bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma

postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim

esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes

A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando

sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias

inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer

objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do

inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de

consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente

percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila

da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia

por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias

A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung

(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e

se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam

os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo

transcendente

O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a

pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de

maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os

conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se

diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade

Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas

necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros

provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia

consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel

para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente

com o que eacute

Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute

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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)

Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute

preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de

permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu

consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute

consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter

demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo

Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e

nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a

conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e

que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando

nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para

expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para

reconhecer sua forccedila superior

A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011

[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o

eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim

Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa

extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a

individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a

consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos

inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute

somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos

com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir

um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior

Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica

uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se

esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a

infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo

revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente

o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter

sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma

50

forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser

um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo

exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar

nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que

acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que

essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo

A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam

a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos

internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)

diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo

vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor

A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for

perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses

casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a

apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como

uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais

comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma

mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego

Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um

sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro

delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um

significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais

imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais

superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos

atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ

2008b p219)

A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da

consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma

inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber

sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de

fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e

entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem

ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba

51

crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o

exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as

cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela

este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com

o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece

mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto

a ajudaacute-lo

Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este

momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a

magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito

difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa

sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada

servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte

efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com

humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso

E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e

extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma

ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos

voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais

A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e

longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com

eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico

representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores

como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio

guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica

do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus

grego Hermes

A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou

uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao

mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo

podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como

uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de

renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual

52

Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um

jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando

natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo

como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute

onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta

caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que

envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa

segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita

soluccedilotildees criativas para seus conflitos

A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo

sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar

que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o

autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a

presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma

situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida

Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam

escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo

de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a

experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a

experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e

permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as

pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito

semelhante agrave dos sonhos

O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente

territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de

Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e

assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade

suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de

alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e

capacidades

Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no

limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes

8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica

53

mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os

acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois

estamos emocionalmente muito sensiacuteveis

Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no

inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos

fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego

o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar

ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora

do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o

autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de

Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia

Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo

relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque

especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees

mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos

do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala

Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute

orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca

poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus

instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses

siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela

Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)

A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas

culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da

criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do

ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego

se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior

54

Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como

bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais

relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma

aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de

alguma forma

Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do

self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b

p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua

riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute

comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma

representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito

De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de

um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que

justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela

explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como

um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma

totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as

manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo

espaccedilo-tempo conhecido por noacutes

Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung

que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e

externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute

encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de

pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma

coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de

sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo

entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos

sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de

individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o

indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as

coincidecircncias significativas

Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida

seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso

55

mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso

significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que

desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu

processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida

Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do

inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos

positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute

especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as

pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como

exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles

que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com

a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar

grande perigo para o ego

A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo

podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue

funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees

Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil

Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e

um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta

obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros

querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para

conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar

eventualmente

Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das

pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos

provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social

Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo

indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com

determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade

eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos

Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees

com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos

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de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo

sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou

No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois

haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou

social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto

social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles

se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de

duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um

aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre

aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o

que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com

as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a

respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E

uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas

projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma

interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas

Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se

encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para

Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado

transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de

interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo

Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta

mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou

natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e

de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de

partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da

maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos

partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos

estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece

O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado

a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por

estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa

justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre

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as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode

levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por

pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo

de Hermes no coletivo

Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia

a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos

formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os

outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo

compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas

que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o

processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por

meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em

que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados

pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees

negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao

nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social

Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres

motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e

seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos

o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o

processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua

individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo

de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo

contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma

muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se

tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora

utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso

desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna

simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)

Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que

A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para

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o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)

Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio

da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo

extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs

fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que

costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem

da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais

seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute

sua atitude psicoloacutegica

Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e

encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute

consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma

consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em

fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por

sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave

negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes

Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em

objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo

eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser

considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)

considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a

experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a

respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos

planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de

antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser

sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si

Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou

mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a

diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem

cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico

59

passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e

atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo

Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal

um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se

restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida

dada sua dimensatildeo sincrocircnica

O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se

associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o

fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao

limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees

do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste

caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz

essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a

conturbaccedilatildeo desta fase da vida

Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao

tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o

tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao

seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia

cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a

vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica

que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no

meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep

separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria

identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees

experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se

confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o

esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele

ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta

Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela

tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo

conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia

Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por

Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O

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autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e

conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite

que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem

possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo

liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se

descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar

relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem

menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado

energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma

ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos

reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)

Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade

se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade

de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta

com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida

Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo

de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo

constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo

faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele

mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas

defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve

demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e

impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo

liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente

Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se

torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o

futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade

valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra

livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve

mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a

situaccedilatildeo

61

A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)

Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um

comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a

regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais

intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein

(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da

vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem

tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na

infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a

qualquer um de noacutesrdquo

Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo

psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma

etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece

uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a

identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma

reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma

Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este

processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto

fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra

dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em

padrotildees antigos e sem sentido

Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de

transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos

dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram

reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente

liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais

de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave

nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos

pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo

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Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio

das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas

em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter

conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os

outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e

assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos

coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo

de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a

autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com

aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de

tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas

dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em

siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e

o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo

A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com

siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na

imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas

experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar

consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar

do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia

liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente

Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por

Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e

de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta

circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com

outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da

anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser

cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a

ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante

dos ganhos psiacutequicos posteriores

Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo

preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao

mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta

63

forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado

de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao

entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida

durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo

do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A

constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por

completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que

ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um

elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o

lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do

dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)

Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo

dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila

constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo

do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente

psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase

liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja

eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute

encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar

mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e

estabilidade

Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a

presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus

sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo

estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa

vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos

espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros

eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no

meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto

executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de

escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes

Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente

vista como estaacutevel e tradicional

64

(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)

Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que

prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute

exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da

vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o

autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se

mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai

depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo

que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico

Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos

inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em

qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma

experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso

queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo

liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para

a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em

nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um

resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO

O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento

entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as

dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses

com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a

inuacutemeros pretendentes

Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de

se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de

desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em

outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia

se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da

aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos

65

cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da

personalidade dos filhos

Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como

instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que

tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as

necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento

Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do

outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por

outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos

independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta

realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz

particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal

Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme

afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que

lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca

poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos

que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que

Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)

Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual

motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo

complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar

bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar

a vida do casal

O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias

estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios

de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo

caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente

dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento

66

Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por

Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente

nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de

elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande

ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e

conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais

satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo

Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento

constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa

individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem

continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus

potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o

casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo

natildeo eacute o uacutenico

Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre

simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus

sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo

o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos

arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos

juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas

que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos

inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos

cocircnjuges

Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o

fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou

seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro

ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca

desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este

desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo

desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece

ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma

uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute

67

proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na

alteridade que seria o principal sentido do casamento

Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a

necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima

da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a

humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que

Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)

O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da

personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)

afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma

criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva

quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial

criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o

siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e

pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de

confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior

Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o

casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento

aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder

uma sombra consideraacutevel

Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute

tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute

uma caracteriacutestica humana

Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas

histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o

final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris

enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno

de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua

vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte

anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios

68

pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses

voltaria para casa ou natildeo

Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um

triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto

De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato

de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo

Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida

dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se

compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la

transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES

2014 p 59)

Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro

mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a

possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira

eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo

em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro

Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao

nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz

Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)

Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a

ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer

uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso

Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica

constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera

improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da

pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o

tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros

As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si

mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer

em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas

69

Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela

traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos

arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees

De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento

tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois

expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado

e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma

pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a

essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo

oacutebvios nem tatildeo imediatos

A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que

Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)

Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes

de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode

proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum

que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se

conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as

eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo

de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus

complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de

honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os

parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas

continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento

Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se

responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis

caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o

indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu

redor traindo ou sendo traiacutedo

70

Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-

se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro

entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu

perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo

A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)

A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber

que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)

destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute

possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser

fiel a si mesmo

De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando

simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa

estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu

animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a

autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor

Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na

separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc

da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se

tentar obter um relacionamento psicoloacutegico

De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o

indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo

pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por

meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e

possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem

relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros

71

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao

mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)

Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais

importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito

apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e

em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente

Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os

mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas

Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo

que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os

temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar

fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e

culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos

perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja

como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico

costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees

livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)

Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores

entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de

humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p

15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas

Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos

entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes

Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens

mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a

mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder

simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje

mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa

cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo

ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias

transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas

72

passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma

estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas

Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da

associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no

quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do

caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original

utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung

como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)

Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do

conceito de inconsciente coletivo

() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)

De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento

ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira

e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida

Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no

inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar

se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a

maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo

psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente

conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas

ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma

expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo

de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada

para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o

estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica

Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um

deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que

um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de

vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus

73

relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades

vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as

possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos

pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para

aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam

Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos

trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz

sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso

siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo

precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou

transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o

mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final

Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro

podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados

Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como

ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de

nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material

analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a

respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta

forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever

futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e

LIMA 2006 p 56)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico

conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers

os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o

paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto

sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso

nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores

consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa

74

se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves

estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao

estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias

divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo

arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela

harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)

Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o

heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente

humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos

adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim

porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que

podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que

escolhemos ser a partir de entatildeo

De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo

da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem

seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute

passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a

cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash

simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra

Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que

A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)

Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas

figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel

perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se

estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas

entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da

nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades

fragmentaacuterias

75

Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou

demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua

capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas

atitudes

Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de

um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a

dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a

nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou

energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por

isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se

soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas

psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que

tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)

Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se

manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a

doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se

soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram

reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento

A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta

precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado

com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar

impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si

mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo

sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um

arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire

caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender

fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade

da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso

Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos

leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles

influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo

temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo

conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein

76

(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos

sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo

liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e

atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que

vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram

rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que

foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo

Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da

psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as

religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida

Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus

mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma

vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus

das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na

alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas

no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute

relacionado a ele

Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de

acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade

sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes

das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves

acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de

tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da

personalidade

Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem

confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus

costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e

misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico

O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia

hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a

ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua

afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de

estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir

77

Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de

Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de

adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute

ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa

ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente

ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do

indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado

O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado

com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar

habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e

qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus

irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades

chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo

caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)

Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)

Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute

por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees

Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para

concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso

quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar

com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e

para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental

de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo

O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso

e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as

reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica

do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos

inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor

forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante

disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode

78

curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da

psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma

Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do

deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-

idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute

eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise

Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de

Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma

experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social

pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando

transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e

ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita

pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de

que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas

sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel

natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em

periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia

O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar

psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um

de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein

(2007) a presenccedila de Hermes

(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)

Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o

que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer

comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente

existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para

abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus

Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos

sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria

79

experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em

cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma

experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura

Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca

examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento

psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de

socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da

mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou

acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que

respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa

atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles

atraveacutes de mitos

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do

analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa

julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o

analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas

Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova

postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos

satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute

que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo

Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos

que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram

inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua

essecircncia decifrada

No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando

os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas

origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por

exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias

seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o

autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em

diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos

80

Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a

mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por

meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela

depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de

comunicaccedilatildeo com o inconsciente

Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute

fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto

historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e

mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia

claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia

ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do

heroacutei

Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)

O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a

compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela

tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas

impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees

simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de

que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo

principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia

egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo

consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que

o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa

de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa

simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade

9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror

81

Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do

heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a

morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito

pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a

determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia

do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado

momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito

o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da

consciecircncia do homem

Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus

respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-

idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter

ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem

sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo

muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco

branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)

Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto

nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta

sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente

alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus

papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As

imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo

com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as

imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o

quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como

uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10

Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque

pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua

personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de

negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo

10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki

82

constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel

sim encontrar qualidades na sombra

De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung

chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para

atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate

entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como

dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma

por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro

livre do desejo do retorno ao mundo da matildee

O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro

tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e

a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e

demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas

Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado

negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No

entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a

forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que

considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute

prevaleceraacute se integrar a sombra

Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos

procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia

pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas

condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo

arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O

que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego

precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo

conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente

Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei

sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade

desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas

e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente

profundo para poder realizar atos criativos

83

O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de

consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os

egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se

desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade

Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave

consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes

a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que

podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-

sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais

derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo

sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos

sonhos como monstros

Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa

consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto

para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica

que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma

fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees

Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos

igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por

meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados

nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso

de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a

consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como

aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica

humana pode haver essa confusatildeo

O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio

do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de

totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o

relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do

heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas

aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute

problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai

ser uacutetil para si mesmo e para seu meio

84

Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio

eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em

contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte

simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade

temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito

solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro

ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de

totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)

O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais

complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a

passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase

da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo

se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera

conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de

forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos

Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice

clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente

da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo

eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila

possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia

O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias

subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da

mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a

psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam

rituais de iniciaccedilatildeo

Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de

iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso

precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao

contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute

ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para

morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a

11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais

85

finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de

induzir um renascimento simboacutelico

O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a

periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer

doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou

restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio

mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia

Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever

que

A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)

O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do

homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os

conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos

siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo

pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie

de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como

renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom

espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a

anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses

siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute

mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho

sozinho

Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em

nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o

autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que

apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado

psiacutequico permanece o mesmo

86

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA

Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo

aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as

caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto

post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute

relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram

oferecidos aos deuses e aos heroacuteis

Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser

comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou

comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais

diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que

independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem

intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a

medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e

apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as

caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado

sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas

morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino

faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter

sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta

que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de

Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como

modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma

vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso

Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos

disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real

eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute

mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por

dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como

periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto

devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento

daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou

87

num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa

ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores

Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem

ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o

triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras

bem estabelecidos

No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra

(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido

na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades

superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte

da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do

lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter

passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se

destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se

destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe

permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras

dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei

recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte

traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo

(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este

modelo

Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando

honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir

realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o

centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas

seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)

que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante

ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico

ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de

lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da

poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro

Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem

do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por

88

sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com

nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a

semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram

contato entre si

Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de

que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem

na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a

imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor

tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha

(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam

responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia

divina do heroacutei

Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram

poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de

modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem

estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis

tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem

para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados

tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p

25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar

a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao

Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo

O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um

sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou

de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter

facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute

cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de

modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo

A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis

Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o

nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral

e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas

primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por

89

etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo

profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado

Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome

consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto

denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome

Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia

Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome

conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui

energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por

isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo

Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que

estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos

(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo

(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o

ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os

humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino

(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada

vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou

masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando

cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o

Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar

sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos

para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se

dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a

procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem

do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino

Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo

masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por

meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos

mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo

como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do

travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como

uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir

90

para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute

Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia

De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos

motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a

totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo

escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz

alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado

Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a

partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o

heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua

esposa no mito Brandatildeo ressalta que

Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)

O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na

mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica

para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio

cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido

injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias

Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual

popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero

para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se

referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem

qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis

dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do

heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees

depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles

De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava

presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de

91

manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer

sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo

Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo

Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)

O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante

vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram

travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de

diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam

em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta

enquanto os demais homens morrem no anonimato

A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser

considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas

disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a

morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma

das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham

participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e

agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para

as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis

Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor

das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o

ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido

construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele

incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja

reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca

Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com

jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute

assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis

mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um

numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se

submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou

92

para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado

Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de

Ulisses

A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos

ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos

poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em

homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que

estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos

notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada

jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo

de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de

um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em

morte

Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem

estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que

pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma

geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns

heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de

outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um

apecircndice

O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em

conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser

orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou

Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas

heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por

exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os

males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas

podiam tratar ateacute a loucura

O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros

motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou

famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles

ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser

curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel

93

Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar

com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto

para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os

fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de

preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus

concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos

Misteacuterios

Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como

superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos

como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos

O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui

inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe

permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer

tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi

mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de

benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido

Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia

jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um

heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de

Ulisses tambeacutem eacute mencionada

Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a

cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)

como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o

defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem

apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em

outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um

castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo

Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito

relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma

exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda

estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante

da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos

representando o dom da visatildeo interior

94

O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis

conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito

comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um

apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como

adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo

sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por

vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de

familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um

destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do

templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute

caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei

Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste

numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o

uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou

num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros

morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves

vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem

saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia

matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita

Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois

eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As

reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando

durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de

seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que

(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)

Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a

proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o

95

uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem

as energias que alimenta o cosmo

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA

Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes

os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de

Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero

relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder

relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei

631 O MITO DE POSIacuteDON

Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus

derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel

pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente

Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas

geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas

secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de

que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente

Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas

fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas

elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees

Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu

trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a

autora

este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)

Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais

deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo

soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de

96

Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo

deus

Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a

aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao

construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos

desestruturantes

Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que

difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e

portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila

Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon

atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que

emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)

Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas

extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por

exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope

Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos

Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma

Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)

Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte

anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros

97

dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao

expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por

exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro

com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu

enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal

Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro

e agrave proacutepria anima

632 O MITO DE ATENAacute

Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual

Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem

ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar

no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute

estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a

filha

E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o

combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute

eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender

essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram

aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte

para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade

racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)

A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer

pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o

estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como

seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a

possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se

apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a

reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute

passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e

poderoso

Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas

no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute

companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos

98

descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do

espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)

Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de

incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as

coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser

entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)

A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada

em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um

complexo que a deusa elaborou e integrou

Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)

Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se

confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam

ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo

admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo

mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento

Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados

em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A

fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas

provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de

Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado

Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino

Segundo Ribeiro

(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)

99

A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute

profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a

ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada

ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais

633 O MITO DE HERMES

Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)

De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu

chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar

entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade

pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos

deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado

guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles

que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute

atribuiacutedo a Hermes

Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por

Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo

Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus

cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele

havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora

Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este

fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma

necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo

(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um

deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo

Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de

Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele

precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle

100

Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e

astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer

O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois

novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo

Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica

ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra

respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos

Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com

o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora

considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do

instintual para o sagrado

Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes

encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista

(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo

superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num

instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente

Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem

nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo

voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade

Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma

e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute

ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser

colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os

irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus

no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a

partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o

privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o

segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)

Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as

qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)

nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de

presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser

o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom

101

do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado

demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se

apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma

tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta

Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos

pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira

ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia

Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e

informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de

firmar contratosrdquo

Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso

com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute

concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e

mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes

recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas

A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos

como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash

seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a

androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)

Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio

de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes

se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do

movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar

motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens

importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi

fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a

terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia

da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso

nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado

por um casal na Terra como menina escondido de Hera

A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de

destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa

descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem

102

conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute

E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno

de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)

retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o

aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica

Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a

flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira

103

7 A VIDA DE ULISSES

O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)

Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)

Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma

versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram

juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente

coerente

71 ORIGEM

Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como

acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e

Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de

Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que

Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte

Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto

pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade

supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-

rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha

Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de

sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que

enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se

sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que

Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu

negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha

Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse

nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram

surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas

de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-

lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto

o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez

104

Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de

Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era

apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois

pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que

Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era

pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para

comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita

derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila

Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele

ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)

O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a

sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando

para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente

De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de

Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre

os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia

mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo

coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-

ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si

lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)

Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando

Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal

colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo

teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita

gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na

105

Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras

histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis

Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia

de grande temporal

Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)

Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa

Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a

Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos

necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de

Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que

teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-

nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e

Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do

momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria

sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei

Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de

Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito

astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova

botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o

proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou

Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado

agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo

desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel

Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu

106

sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo

nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)

Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e

comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia

na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada

que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do

que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco

acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele

fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia

Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do

rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute

Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis

trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual

mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope

Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras

provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder

espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do

poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas

apoacutes conquistar estes dois feitos

Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade

Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os

pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela

Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe

proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem

era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma

Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da

ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele

simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope

Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este

tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia

do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em

12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela

107

recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio

concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer

forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando

forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a

longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a

fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e

sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)

Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo

corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope

praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o

traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu

apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope

teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde

passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes

descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma

Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de

Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca

adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)

72 TROIA

Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de

Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta

sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o

iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e

Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado

entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim

que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu

Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses

compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo

assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre

os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem

planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a

108

humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de

Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos

Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados

tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma

nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam

igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena

de Troia e outras desgraccedilas

Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia

entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos

homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida

novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava

Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado

Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a

crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o

conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o

bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por

pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida

sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito

Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este

priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de

mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera

ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite

ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de

Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de

conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz

por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu

lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia

Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o

costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo

tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que

os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a

corte natildeo precisava ser feita pessoalmente

109

Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente

de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem

enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que

Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar

com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra

que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais

pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar

a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com

Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o

emblema da fidelidade para todos os tempos

De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez

anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal

real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando

Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia

Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se

aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13

e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-

lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a

participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena

Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto

a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de

Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra

e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa

A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos

para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para

Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se

recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam

que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte

de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de

acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em

Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre

as filhas do rei sob o nome de Pirra

13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor

110

Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas

femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu

entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem

levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas

conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi

quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a

Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu

Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta

uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia

Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em

Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os

ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon

pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que

Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia

sua primogecircnita

Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau

aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo

que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto

Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria

filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas

Menelau o impediu

Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao

acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes

Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois

irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo

instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses

Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris

Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua

astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura

de Teacutelefo ferido por Aquiles

De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios

lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por

111

Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos

Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como

atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon

ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os

aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes

helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que

mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a

Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem

em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes

por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos

poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau

mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez

poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos

natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria

matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor

Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando

astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia

Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de

acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas

como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes

Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra

Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois

de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a

cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes

entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar

os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma

profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio

Escamandro

O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia

isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo

(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o

primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de

Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc

112

Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)

matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover

ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus

Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-

se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma

estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram

inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte

de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada

por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da

guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a

vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu

ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que

perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a

resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax

enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se

tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que

tinha feito envergonhado Aacutejax se matou

Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia

Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e

Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a

Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute

dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e

convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se

agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem

sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax

jaacute havia se suicidado

Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de

Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a

vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o

regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses

ndash devido ao seu machucado fedorento

113

Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e

destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash

mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de

guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada

Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez

anos de guerra Entre eles estava Ulisses

73 RETORNO A IacuteTACA

Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de

partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas

Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu

esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande

borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o

heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o

sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho

delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando

alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os

barcos e fugir

Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo

Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar

pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os

habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a

flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e

fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los

de volta para o navio e ir embora daquele lugar

Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos

ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa

ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos

seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa

caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela

morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada

Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se

mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo

114

que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-

lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho

Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que

Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum

ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando

bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-

los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena

para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga

dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco

Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se

demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a

alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma

vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por

sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo

apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que

ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu

ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse

responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara

Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)

Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito

daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto

e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida

com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu

chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que

fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e

sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho

Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a

ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem

115

passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na

partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos

rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que

deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o

odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos

Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando

Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus

companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que

contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora

foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que

estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de

uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo

De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo

que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana

vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes

canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu

enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras

contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se

encontrava mais distante

O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia

tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens

sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-

los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe

transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara

no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em

vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros

Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu

diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como

escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como

antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa

bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em

porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a

espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo

116

de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de

volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo

com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono

e Nausiacutetoo

Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas

natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa

seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja

sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a

fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em

Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o

restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida

A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor

Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)

Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve

estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe

sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como

passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo

consumir o rebanho de Heacutelio

O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne

humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto

irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim

de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os

ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso

deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer

Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas

para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e

117

ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma

enorme faccedilanha para um mortal

Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros

precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais

raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo

escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que

navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens

Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros

remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a

passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como

viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de

Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram

as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os

homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um

raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara

do banquete

Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes

Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou

apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta

vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando

se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou

laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e

seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela

o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave

ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua

ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem

que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo

(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como

filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela

pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei

voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente

Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual

118

ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a

proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara

seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada

destruindo-a

Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco

destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe

emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que

depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu

e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde

Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia

O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas

companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora

estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu

ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois

o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram

bastante hospitaleiros com o heroacutei

Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o

aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo

de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele

contasse um pouco mais de si

Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)

Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes

sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram

ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com

presentes o barco que levaria Odisseu

Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao

chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente

escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo

responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num

rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga

119

Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de

Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua

ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter

reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que

morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de

Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa

estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto

ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)

Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e

Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os

cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia

se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema

satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de

Peneacutelope

De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou

afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai

ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio

prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma

Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em

Esparta

Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos

anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a

presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos

os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam

chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao

longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a

agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo

os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por

se tornar amante deles

Para Brandatildeo

Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela

120

desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)

Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope

resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo

assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de

dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os

pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da

escolha de outras formas

Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo

quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu

seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses

tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao

mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi

encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles

imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope

Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de

fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora

bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe

faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo

dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que

havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes

de Peneacutelope

Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-

los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu

o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das

saudades que ela sentia do marido

A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses

e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para

banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna

de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees

Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo

Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou

inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que

121

apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o

armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos

doze machados

Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar

sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida

Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo

O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os

pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute

por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o

mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os

alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei

se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim

comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima

Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze

foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a

desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque

maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa

Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade

conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele

mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou

Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)

Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande

maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma

que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com

os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente

Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para

Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da

velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz

respeito agrave fidelidade de Peneacutelope

122

Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para

sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer

um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute

ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez

sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho

Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se

apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria

nascido Poliportes

O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses

apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por

Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na

Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo

de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que

fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-

los

Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria

encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria

ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei

teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade

avanccedilada

A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de

um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a

identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a

devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores

mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia

feito a quem havia matado

Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para

a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo

fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein

(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo

123

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO

Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)

Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por

Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves

transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e

do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos

da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise

do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel

compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro

do modelo junguiano

Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do

heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em

rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo

determinante na Guerra de Troia

Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva

teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a

individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute

estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse

lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do

nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que

Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu

retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando

precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez

anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo

Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora

entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente

que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema

comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso

124

Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os

desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de

ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da

dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia

cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de

individuaccedilatildeo

Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de

acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante

frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de

aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante

Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de

Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir

regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto

de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para

chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de

Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando

por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa

Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de

Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo

(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa

tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute

interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando

sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que

[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)

A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa

viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem

uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este

processo

125

O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em

casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a

individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma

ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e

irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se

compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo

unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o

casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise

Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria

que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o

autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos

isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de

tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo

para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado

chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao

longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as

caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem

representadas pelas figuras dos companheiros

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA

Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que

deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles

por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e

suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente

o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de

Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa

exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho

e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz

(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo

quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e

instabilidade futura

A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos

Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando

126

apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para

embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens

natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um

contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram

durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute

identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial

podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees

de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a

individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de

seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos

sombrios jaacute estaacute comeccedilando

Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado

novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta

para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do

processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto

(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila

Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de

evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos

inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir

82 ENCONTRO COM POLIFEMO

O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de

Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior

da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de

escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar

Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua

identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos

um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o

orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico

Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus

dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de

sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda

afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer

127

Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo

intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo

pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se

analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e

no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro

(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e

inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo

Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de

Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo

praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena

Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que

desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros

conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada

por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas

impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como

momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)

seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso

retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com

Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa

oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um

aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior

Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria

pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos

sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se

manifestar impedindo a continuidade da viagem

Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem

a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase

chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei

adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem

tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de

volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos

deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que

Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono

128

Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os

barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash

o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade

enfrentada

83 ENCONTRO COM A CIRCE

Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que

Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que

desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei

pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu

recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem

sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das

instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses

recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm

filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar

Tireacutesias eacute Circe quem o orienta

Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self

Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de

Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura

do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o

autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se

aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes

Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute

ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem

estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de

uma nova orientaccedilatildeo espiritual

Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de

Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem

da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira

ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um

complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter

demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva

129

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por

feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse

aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por

Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de

Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e

negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao

relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da

anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras

Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de

guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e

inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que

fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute

84 DESCIDA AO HADES

No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas

incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se

aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que

ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus

caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo

para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon

depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando

consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar

Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem

Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho

diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que

simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se

com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha

consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte

simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A

morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o

autoconhecimento

Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de

individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado

130

por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao

movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante

esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens

novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute

pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda

precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do

Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de

morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar

para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas

tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o

remo numa terra onde natildeo se conhece o mar

Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade

traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila

seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso

Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que

se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a

matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto

desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato

podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso

como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste

trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como

fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta

sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer

cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de

Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme

Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses

diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro

O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a

ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute

escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo

sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-

lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte

131

Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho

Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do

navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro

aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com

seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos

entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim

consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem

necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade

do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se

arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o

rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda

luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o

Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco

compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de

seus companheiros

85 ENCONTRO COM CALIPSO

Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha

de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus

companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a

viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam

presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam

Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens

ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e

percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a

mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala

mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do

banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a

vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na

embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos

novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar

seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar

depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei

132

dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode

representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta

esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que

ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho

Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem

tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia

segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis

um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a

figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que

vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que

passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia

Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que

a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando

que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no

caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui

representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos

supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego

natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos

Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por

ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie

Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso

concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa

passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash

assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade

Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso

quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer

prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando

ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de

individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou

esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada

por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente

porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la

133

86 OS FEAacuteCIOS

Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento

Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila

um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino

interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua

armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua

relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas

Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo

por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com

Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus

aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo

levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado

novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer

de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se

desidentificando com a persona

Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois

ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima

integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e

desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia

conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que

Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia

pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash

filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com

humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso

rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a

fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a

primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se

manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho

para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para

guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu

processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do

heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para

confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que

134

foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar

ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se

joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros

com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante

o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra

de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc

chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que

ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo

pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde

educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe

fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes

Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que

satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua

funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu

nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios

presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros

presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais

em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do

Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a

transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas

87 IacuteTACA

Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme

os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute

significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo

prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute

mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua

funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos

inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego

Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela

confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era

Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua

verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente

135

pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao

ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria

morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua

aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua

alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio

repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que

certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute

a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo

mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de

Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar

Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos

pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser

forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e

da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa

amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo

se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope

Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute

simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto

impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses

conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais

arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o

ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos

se vecirc sendo interrogado por ela

Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os

pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que

Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela

exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou

uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve

percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas

um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze

machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de

sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo

verso do poema ela decreta a paz

136

Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal

Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei

de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria

sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender

por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar

outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina

ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver

88 DISCUSSAtildeO

Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de

individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos

que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes

da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas

diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo

do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras

siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute

instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que

observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a

peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia

onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa

peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa

viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo

Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida

ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito

geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como

Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam

diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar

a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e

segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

masculino

Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o

heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo

unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos

137

em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a

ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre

permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que

diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato

com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher

cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias

Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo

pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o

casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o

indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las

no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do

casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na

Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de

estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito

da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do

seu primeiro filho

Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua

famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da

Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele

mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida

ao plano dele

Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente

do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto

como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai

de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria

um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser

raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto

notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de

Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-

o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem

Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo

de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente

disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a

138

filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar

sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de

Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro

tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa

no futuro

Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a

Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela

comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia

Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia

pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa

inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do

heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio

perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi

principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu

pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs

a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito

de seu futuro

14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela

139

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos

entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma

como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do

heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina

Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes

domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi

essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia

profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a

disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver

originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades

Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio

da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e

poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa

questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho

sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este

processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e

agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade

Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a

manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo

Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora

impotildee seu reconhecimento

Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um

indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes

pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua

anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode

invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])

descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a

desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios

a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento

da funccedilatildeo inferior

140

O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de

individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas

Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em

outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade

propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo

estagnados

O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia

analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos

caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat

(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas

individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais

comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em

filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis

Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o

mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro

momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois

seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e

Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung

(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a

esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)

Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua

cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz

(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma

mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos

demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do

processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza

Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como

siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de

individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei

representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham

seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria

pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam

o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da

141

ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei

integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de

Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento

Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self

representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis

como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo

entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As

personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias

Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da

anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados

de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com

Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco

Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede

que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas

expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina

Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o

adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre

quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua

jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses

e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma

embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a

sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando

estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em

Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio

com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele

precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia

Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de

suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves

provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente

o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo

conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina

haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados

142

De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo

dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo

seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma

questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo

de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de

casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo

de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os

pretendentes e defender o seu casamento

Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca

como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de

sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que

Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas

ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de

outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia

comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos

chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma

transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo

Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])

quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima

geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas

opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como

expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem

examinadas em trabalhos futuros

143

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147

APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA

Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto

realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no

momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador

decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia

ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero

(2013)

Canto I

A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de

Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca

Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o

poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua

morte

Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam

morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido

chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido

Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses

eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon

Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros

quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia

comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por

Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra

esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto

assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado

pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee

Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus

que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava

sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado

seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou

Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu

Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a

expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope

148

Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que

seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas

natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco

revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com

todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de

seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca

clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser

assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma

natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai

Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os

pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos

conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter

notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco

com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto

para partir em busca do pai

Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de

Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo

pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses

porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco

interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela

ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros

haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos

seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude

Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco

Canto II

Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele

sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute

Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles

homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus

e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um

dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras

e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o

coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a

149

artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente

assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No

entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os

pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano

alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha

constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai

dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por

meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os

pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu

que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os

pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso

achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os

punissem do modo que considerassem justo

Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave

esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e

se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de

medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que

Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses

propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos

pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos

apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que

aquilo jaacute estava acontecendo

Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois

sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope

fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados

Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a

Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que

seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria

sua matildee casar-se novamente

Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua

casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia

de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente

respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu

150

retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia

se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo

de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem

frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que

a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que

ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os

pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha

com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para

acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que

seguiria viagem com eles

Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um

deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los

Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como

Odisseu

Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua

viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para

abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua

viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou

doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o

plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a

garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se

Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o

melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a

provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de

modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo

proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os

tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute

Canto III

O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar

encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a

primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se

diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto

quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de

151

Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem

uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o

ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com

seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece

Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham

Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma

vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para

pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em

Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito

sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre

Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas

hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso

imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em

Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon

enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor

e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que

Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a

Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos

pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele

Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos

pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma

que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo

dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que

aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz

que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros

obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que

chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado

por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que

natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida

perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar

o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau

para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a

viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de

152

Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os

companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a

cavalo e ser escoltado por filhos

Canto IV

Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus

companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a

respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou

que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe

causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de

notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso

Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar

Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o

agrave prova

Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem

eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau

concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor

confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute

justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a

chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que

nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de

Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que

pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem

sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena

Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de

colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e

o sofrimento e logo todos dormiram

No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua

viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez

narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia

explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a

ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para

que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas

recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar

153

preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera

lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto

Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a

viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular

um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo

descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope

lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que

Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e

Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma

terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a

culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se

comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute

Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir

com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a

Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam

no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno

Canto V

Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu

lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a

ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute

se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que

natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o

regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco

Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o

avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca

Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava

tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que

estava na praia chorando como de costume

Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora

enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no

momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora

conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida

154

imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram

crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal

Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua

ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia

perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a

imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma

vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe

proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria

como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo

A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o

fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa

Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela

tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento

favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a

vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los

Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e

se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando

nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de

Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela

disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente

recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas

provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de

tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum

sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua

jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No

quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel

conforme prometera

Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos

Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de

terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios

enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente

de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez

com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer

155

ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele

ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia

Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar

a morte

Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera

honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e

pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a

abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria

chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria

abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a

jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou

de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar

com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua

a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que

ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo

de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez

com que ele dormisse para descansar

Canto VI

Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios

Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha

de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus

irmatildeos no rio

Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar

roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas

lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas

tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as

servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou

uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez

com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia

Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo

ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas

com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando

apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele

156

narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para

chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes

dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se

vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila

fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em

seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso

Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios

Canto VII

Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que

assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de

Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha

Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao

terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com

Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa

cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu

lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos

deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que

na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por

diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu

agradeceu eloquentemente

Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que

ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira

aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre

causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de

Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da

deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada

Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua

jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu

Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa

Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe

contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na

manhatilde seguinte

157

Canto VIII

Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso

Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o

repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para

serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens

terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo

saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila

de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a

escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim

Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos

gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante

um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si

os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas

Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem

Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos

esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o

impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de

Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica

Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e

mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da

marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu

orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando

que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os

imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos

estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou

a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores

danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o

espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado

Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes

para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e

o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela

quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu

158

prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela

como se ela fosse uma divindade

Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por

cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia

Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que

permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda

de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio

corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu

chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e

sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus

barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa

Canto IX

Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era

conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia

nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a

deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa

Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que

nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades

lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram

proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e

levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus

companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais

numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones

haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada

barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes

por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma

tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se

tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento

Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em

terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza

Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo

vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos

Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para

159

investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do

loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali

sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco

para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se

plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem

natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras

Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de

homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras

para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha

dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde

notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns

companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram

hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens

esperassem no barco

De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um

pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui

que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze

bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de

vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro

com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles

entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem

pelos queijos

A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os

deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e

cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes

seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo

tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os

homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando

ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope

trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e

seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que

eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto

sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os

160

deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O

Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do

que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco

deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus

barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles

homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute

e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e

devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele

ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de

Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme

pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu

na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la

Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de

mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o

escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando

mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe

vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe

revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe

mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que

se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade

devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar

sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a

seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar

fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por

algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu

pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o

Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram

enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar

os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com

uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que

ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes

vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez

161

que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio

de Zeus e foram embora

Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos

estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir

Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo

que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a

fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu

porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga

de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma

forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal

Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna

quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam

um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma

vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos

Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus

companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute

havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou

para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder

corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou

de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas

imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele

baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida

Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em

casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um

regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho

Posiacutedon ouviu a prece do filho

Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o

restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus

sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os

alegrava terem escapado agrave morte

162

Canto X

Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos

enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a

respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e

em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para

Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento

responsaacutevel por levar os homens de volta

Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia

eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e

enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando

da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros

resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo

escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca

levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e

perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas

Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses

abominavam

Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo

chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram

pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para

investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que

descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e

de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se

depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo

chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de

Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram

depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido

com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos

barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os

Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso

Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a

remar fugindo

163

Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu

seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de

Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros

que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de

Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os

homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo

os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O

primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os

demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem

desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens

adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da

proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas

de modo que eles conservassem a inteligecircncia

Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os

companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que

Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de

ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu

que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho

para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no

iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu

tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos

como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria

livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu

comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe

lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca

ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele

natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem

disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais

nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva

mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem

Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe

ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante

dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela

164

adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que

Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que

criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus

aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse

solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram

ao magniacutefico leito

Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado

pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o

daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia

sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em

porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho

Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma

humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo

foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se

comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois

voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco

para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram

imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em

animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim

como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou

decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo

Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou

com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca

Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se

reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne

abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de

Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o

tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi

suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia

prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa

contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes

de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para

consultar o adivinho Tireacutesias

165

Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da

deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal

empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do

vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio

Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali

Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam

o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava

ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e

Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e

mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e

invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu

palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas

a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais

esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um

carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na

direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu

deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e

orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez

teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe

revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca

Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a

respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a

natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute

Canto XI

O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano

aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do

rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram

as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo

as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois

farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor

novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais

esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces

Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu

166

As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos

solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de

sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus

companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando

aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu

glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse

Tireacutesias

A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara

sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens

tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome

de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave

ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu

prometeu atender aos desejos de Elpenor

Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que

ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo

deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que

apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar

despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar

do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade

Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele

esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno

muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho

Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que

conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando

chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de

Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu

regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens

saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse

escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito

tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria

tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu

conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por

meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir

167

ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com

um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar

um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e

sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu

morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes

ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o

reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee

chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades

Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho

Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu

que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que

ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde

que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai

Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que

Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do

filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo

triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do

glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um

grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu

usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua

identidade e ascendecircncia

Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os

deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu

que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem

e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que

apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em

torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de

Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo

pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte

Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante

de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que

Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este

oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por

168

causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o

marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal

destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem

bom e ambos ficariam felizes com seu regresso

Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e

de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso

Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias

esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu

acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles

que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora

exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a

proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo

pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho

Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas

ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora

satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-

se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele

quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo

ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos

deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de

Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e

sem responder voltou ao Eacuterebo

Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres

devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo

de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a

aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso

rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia

com que o rochedo rolasse montanha abaixo

Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com

Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses

apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou

com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se

encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a

169

de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave

ajuda de Hermes e Atenaacute

Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de

Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus

companheiros comeccedilou a remar para longe dali

Canto XII

Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde

sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-

los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas

mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou

para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os

homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes

indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades

comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas

sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de

se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar

os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de

modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos

haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu

deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes

atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo

que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em

decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia

uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava

terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente

longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de

dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam

para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria

uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem

os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor

opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o

monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo

170

Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por

Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez

Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda

assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse

perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens

conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio

Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave

Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave

Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o

barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria

chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho

Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados

pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos

companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam

se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde

que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus

companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando

continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se

puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo

que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia

mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe

soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e

soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias

Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme

Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a

continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os

homens obedeceram

Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a

respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do

navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das

recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave

proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e

ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado

171

estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a

vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros

temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham

os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior

experiecircncia da viagem inteira

Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do

deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o

que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e

da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para

longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo

permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a

tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que

seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que

encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas

por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia

comeram e dormiram

Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles

tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas

vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os

homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse

nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens

tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de

orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar

suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso

Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais

triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as

vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A

tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o

barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o

por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez

que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia

Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo

para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse

172

atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente

Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre

a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora

Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde

demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os

couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos

Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as

melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando

Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou

a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na

cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco

projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou

a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No

entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e

por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e

Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a

quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e

seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu

passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de

Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu

Canto XIII

Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes

ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para

conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos

presentes

Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos

roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a

casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo

Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir

Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse

aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca

Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo

que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto

173

conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo

assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele

enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo

inteligente quanto os deuses

Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram

na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido

na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara

graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia

Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees

afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era

respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon

se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que

este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com

facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu

havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar

e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o

castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito

No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios

no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas

Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o

numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia

cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez

O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute

havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar

os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de

touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo

Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria

terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que

tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos

pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a

lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou

de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele

174

se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras

dos aqueus

O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se

dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia

Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e

repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria

terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais

persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e

astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que

naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os

problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar

calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido

Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que

ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que

nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o

sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios

quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu

pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo

Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou

que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem

na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto

queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que

Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa

por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava

guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo

Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode

reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave

cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma

gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos

apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute

trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente

desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo

promessas de casamento que natildeo queria cumprir

175

Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu

palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa

Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse

durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em

Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que

acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria

irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a

primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente

bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu

sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia

a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai

Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse

sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo

era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu

natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade

Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes

estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este

plano estava fadado ao fracasso

Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho

mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de

Telecircmaco

Canto XIV

Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim

de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do

porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o

forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito

sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo

Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e

bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles

deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo

conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do

rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma

176

quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens

juntos

Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava

vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo

tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo

entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos

em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-

lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca

se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta

Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama

para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que

quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em

seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava

a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se

deparar com a fidelidade do porqueiro

Canto XV

Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para

Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na

empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa

Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se

casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o

consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo

que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando

mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes

de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que

chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim

de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com

Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e

depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria

Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros

homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho

para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e

quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou

177

dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram

extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de

Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram

dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro

Canto XVI

Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos

cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu

terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo

porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de

Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido

Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao

rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a

refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo

ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira

Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o

priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para

defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em

condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o

velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho

Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com

os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo

Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela

situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia

chegado satildeo e salvo

Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher

fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua

verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim

aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto

Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia

se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu

Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e

perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco

poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem

178

apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de

Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar

Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou

que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora

sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu

perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho

dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre

ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um

empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute

e Zeus como aliados

Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria

retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo

mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu

deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um

de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito

da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir

quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis

Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada

de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido

um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter

dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que

espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles

retornou

Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam

cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se

concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que

eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato

de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram

agrave casa de Odisseu

Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez

que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-

se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses

e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco

179

prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele

mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus

aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse

Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho

mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse

Canto XVII

Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo

para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que

chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope

emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-

vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um

forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos

Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem

Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu

Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha

da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta

de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a

Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas

louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse

verdadeiro

Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho

encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores

cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando

Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei

de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu

caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que

seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam

um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de

Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou

se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou

com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida

Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez

180

Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se

aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao

mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se

aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de

descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se

aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente

Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na

cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda

praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco

Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava

sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo

que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado

Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo

dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o

mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha

estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a

ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes

O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila

no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele

e Odisseu haviam sofrido muito juntos

Canto XVIII

Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou

de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando

e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se

com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos

estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para

jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade

Telecircmaco incentivou a refrega

Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes

surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente

Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes

estes o cumprimentaram divertidos

181

Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos

pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao

filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho

e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas

Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza

havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e

Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens

Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela

caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a

aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se

aproximaram e Peneacutelope acordou

A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se

dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes

maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco

elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo

comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse

retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem

quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um

segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira

como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo

dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa

porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem

presentes seduzia-os ainda mais

Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os

presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los

poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse

escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali

permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu

iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e

mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa

Canto XIX

Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou

o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia

182

e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto

enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam

estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se

puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir

dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias

dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu

maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes

As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e

bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava

importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia

Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito

se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso

ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em

seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a

fim de que pudesse interrogaacute-lo

Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta

iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso

mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo

muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que

aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar

de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma

mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim

que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de

modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum

pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do

quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da

artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora

precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava

infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia

do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo

lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu

que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a

183

tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para

natildeo revelar sua verdadeira identidade

O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu

recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras

riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-

lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e

que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele

depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem

banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha

Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento

Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a

lembrava muito de Odisseu

No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a

cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar

Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo

Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que

tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho

de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope

entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a

forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles

Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e

retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria

com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado

incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo

que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu

arco

Canto XX

Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em

como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a

aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela

preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela

para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce

sonho se apossasse de Odisseu

184

Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa

proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um

homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus

pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu

Zeus mandou trovotildees

Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem

uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e

perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu

respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem

aqueles homens abusados

Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as

cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo

que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve

de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro

Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do

cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo

afirmou que Odisseu logo retornaria

Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo

uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na

direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo

interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram

Canto XXI

Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos

pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde

estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se

dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se

casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar

com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o

porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem

cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem

distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da

declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e

incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas

185

O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo

conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem

sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo

Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os

seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele

voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua

identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que

dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se

emocionaram ao reconhecer o amo

Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos

pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe

o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo

cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para

garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes

Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e

lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por

sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte

oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a

disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento

Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o

arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo

reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o

arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa

forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir

Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para

entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus

aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa

com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou

Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para

todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a

sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos

e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se

186

alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo

disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas

Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os

pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua

distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar

suas armas

Canto XXII

Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo

apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha

Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e

escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de

morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem

estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali

para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem

se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens

Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma

forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda

aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora

o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar

formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu

respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria

vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a

lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas

nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por

Odisseu

Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido

nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo

de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo

para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos

pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro

homens estavam devidamente protegidos para a luta

Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum

Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu

187

escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um

dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar

ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio

estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a

fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e

assim Melacircntio saiu para buscaacute-las

Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se

armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma

serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem

admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito

Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para

buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que

Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna

A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio

contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo

proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros

querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas

ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr

fim na refrega

Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que

Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis

comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que

ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes

Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio

doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as

trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu

ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio

Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais

dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto

Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia

que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria

avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu

rei

188

Canto XXIII

Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em

casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que

Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que

Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber

como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia

natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos

corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele

soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia

finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora

proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso

Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope

foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por

algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope

poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter

certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de

Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes

que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse

preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a

respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope

finalmente havia se casado novamente

Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a

maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu

legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia

seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse

mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que

entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para

que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo

podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma

oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu

que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou

o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar

189

Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar

no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de

acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de

Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a

um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos

demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu

morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de

sua famiacutelia

O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois

continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta

de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia

passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas

riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes

Canto XXIV

Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se

lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se

depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon

Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o

que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo

tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e

contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela

tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes

descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e

do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que

levaria agrave desgraccedila dos pretendentes

Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a

prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai

na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele

estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem

era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu

e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho

e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e

disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-

190

se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa

abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes

exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz

na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai

quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a

casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido

por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se

juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu

reverenciaram-no

Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se

juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos

Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou

a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta

Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou

algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes

estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso

Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver

a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco

logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes

fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos

pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A

fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que

Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre

eles

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 OBJETIVOS
    • 21 OBJETIVO GERAL
    • 22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
      • 3 MEacuteTODO
      • 4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
        • 41 EM JUNG
        • 42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
        • 43 OUTROS AUTORES
          • 5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
            • 51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
              • 6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
                • 63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
                  • 631 O MITO DE POSIacuteDON
                  • 632 O MITO DE ATENAacute
                  • 633 O MITO DE HERMES
                      • 7 A VIDA DE ULISSES
                        • 71 ORIGEM
                        • 72 TROIA
                        • 73 RETORNO A IacuteTACA
                          • 8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
                            • 81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
                            • 82 ENCONTRO COM POLIFEMO
                            • 83 ENCONTRO COM A CIRCE
                            • 84 DESCIDA AO HADES
                            • 85 ENCONTRO COM CALIPSO
                            • 86 OS FEAacuteCIOS
                            • 87 IacuteTACA
                            • 88 DISCUSSAtildeO
                              • 9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                • REFEREcircNCIAS
                                • APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
Page 2: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP … · 2019. 9. 26. · Também podemos observar estas figuras na poesia, religião e mitologia. Jung (2011 [1939]) explica

PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO ndash PUC-SPPROGRAMA DE ESTUDOS POacuteS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA

NUacuteCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS

LETIacuteCIA GONCcedilALVES SAID

O MITO DE ULISSES COMO METAacuteFORA DO PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeOMASCULINO NO MODELO JUNGUIANO

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA

Projeto da Dissertaccedilatildeo de Mestradoapresentada agrave Banca de Qualificaccedilatildeo comoexigecircncia parcial para defesa no Programa deEstudos Poacutes-Graduados em PsicologiaCliacutenica da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo ndash PUC-SP sob a orientaccedilatildeo doProf Dr Durval Luiz de Faria

SAtildeO PAULO2019

_______________________________________Profo Dr Durval Luiz de Faria

_______________________________________Profa Dra Paula Guimaratildees

______________________________________Profa Dra Maria Teresa Nappi Moreno

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip

Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo

Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho

Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida

Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador

Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees

Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos

RESUMO

A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento

Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo

ABSTRACT

Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling

Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO8

2 OBJETIVOS14

21 OBJETIVO GERAL14

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14

3 MEacuteTODO15

4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19

41 EM JUNG19

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21

43 OUTROS AUTORES22

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95

631 O MITO DE POSIacuteDON95

632 O MITO DE ATENAacute97

633 O MITO DE HERMES99

7 A VIDA DE ULISSES103

71 ORIGEM103

72 TROIA107

73 RETORNO A IacuteTACA113

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124

82 ENCONTRO COM POLIFEMO126

83 ENCONTRO COM A CIRCE127

84 DESCIDA AO HADES128

85 ENCONTRO COM CALIPSO130

86 OS FEAacuteCIOS131

87 IacuteTACA133

88 DISCUSSAtildeO135

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137

REFEREcircNCIAS145

APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149

Its My LifeBon Jovi (2000)

This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed

I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice

When I shout it out loud

(Refratildeo)Its my life

Its now or neverI aint gonna live forever

I just want to live while Im alive(Its my life)

My heart is like an open highwayLike Frankie said

I did it my wayI just wanna live while Im alive

Its my life

This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down

Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky

Got to make your owns breaks (Refratildeo)

Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1

1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)

8

1 INTRODUCcedilAtildeO

Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)

Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras

aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi

um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos

estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo

de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute

um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da

psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova

singularidade

O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia

permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e

os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus

pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles

siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este

fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era

composto por uma camada pessoal e outra coletiva

O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por

tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou

esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as

formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma

imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute

compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as

experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um

lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa

conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor

Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo

9

(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)

Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia

Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011

[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as

fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de

consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam

isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na

consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel

O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os

conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O

processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung

(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para

compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute

que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no

inconsciente novamente

Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da

vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos

atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos

aprofundaremos neste periacuteodo da vida

Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes

de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa

sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual

ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente

estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito

ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel

O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o

equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a

atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas

a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida

estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia

agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise

psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente

10

Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens

inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como

sintomas psicopatoloacutegicos e

Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)

O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta

conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para

ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo

como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao

utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a

consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta

forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e

obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia

Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante

significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica

que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo

atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a

qualidade de vida

Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia

que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva

do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento

e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais

expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo

que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis

Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem

recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz

sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela

11

narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois

dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste

conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito

Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da

forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem

arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por

isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a

psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas

que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a

Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para

casa apoacutes a guerra de Troia

Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio

sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta

tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a

provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar

situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo

De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais

influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas

passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por

meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a

passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor

de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura

dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses

Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem

um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual

surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade

Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama

Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um

aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia

Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras

seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria

transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)

2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome

12

Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original

esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes

lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto

particular

A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo

entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se

concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as

pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero

relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo

como protagonistas pelo menos como coadjuvantes

Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa

cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-

junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo

conforme descrito por Jung

Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem

ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por

meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com

Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de

sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo

A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo

do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que

Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre

qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma

essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter

arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)

A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos

ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos

permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo

uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e

perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo

Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5

anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos

deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me

13

levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos

preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio

chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano

Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela

forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se

restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito

vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem

cursos ministrados por analistas ali formados

Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro

capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a

anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos

do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as

principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a

importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e

psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia

Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua

morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da

psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de

Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-

junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados

em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo

apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um

resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia

14

2 OBJETIVOS

21 OBJETIVO GERAL

Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO

Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos

15

3 MEacuteTODO

Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito

de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano

Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica

neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)

Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram

mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia

Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga

(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a

psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico

Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a

pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo

de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos

junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)

Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram

consultadas para este trabalho

No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR

odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea

NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam

relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou

Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram

relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de

Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)

Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus

OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram

encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros

eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros

ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo

de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos

16

interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as

pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)

A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND

individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology

resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo

porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como

embasamento teoacuterico

Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope

AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra

de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da

personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente

trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam

disponiacuteveis

A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer

no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam

relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo

De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND

(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em

nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema

que natildeo acrescentava ao nosso tema

Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer

quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente

nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise

Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo

geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me

surpreendeu bastante

As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora

as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos

portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de

individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em

encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de

17

entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia

fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria

Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O

feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese

de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes

Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do

relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no

presente trabalho

A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a

maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise

das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi

consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo

da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino

em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes

Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante

abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se

transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e

mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no

acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso

todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei

que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo

Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho

uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo

direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares

sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi

(2015a e 2015b)

O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do

poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas

tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um

resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do

trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da

metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei

que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu

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nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e

portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a

Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que

eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema

(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no

momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que

eu considero podemos ver metaforizados no mito)

Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses

que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada

Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de

outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise

19

4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA

41 EM JUNG

A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de

estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua

produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da

psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago

este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria

Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da

Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar

sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais

frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica

No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma

minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa

sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da

amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas

Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para

fazer a amplificaccedilatildeo

Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o

segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma

viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a

C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei

Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a

respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente

apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])

utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute

de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas

queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que

cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele

reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua

anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona

novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de

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sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito

do nosso heroacutei

No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e

interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido

produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito

brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para

poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011

[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que

menciona o consumo de sangue de bodes

No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses

de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou

didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce

Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas

em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum

comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu

No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e

inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos

mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele

explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo

subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses

faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias

De acordo com Jung

O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)

O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute

presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro

(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que

estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que

este monstro habite as aacuteguas dos oceanos

A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os

compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG

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2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio

de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam

vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e

filoacutesofos

O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se

preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para

o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de

forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca

os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos

relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011

[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca

em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma

forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores

confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])

apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem

que os sonhos satildeo significativos

No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente

Para ele

O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)

Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a

peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que

improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu

significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado

psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS

Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para

estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e

a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de

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planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima

do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)

Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma

descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da

perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de

complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto

as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse

tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e

que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso

para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham

caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade

Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte

ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia

analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso

e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise

da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua

eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo

famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o

motivo de seu sucesso

43 OUTROS AUTORES

Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a

morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do

poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma

definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel

pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc

Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria

se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta

tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga

(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por

meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por

exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou

quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo

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pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA

2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do

pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope

De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido

considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos

informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a

morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes

provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento

O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que

aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses

desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da

fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no

Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida

(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido

antes de morrer

Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento

uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria

o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o

heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes

vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens

morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)

Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)

destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e

nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder

a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e

Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a

fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para

natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos

deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu

turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar

3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres

mueren una uacutenica vezrdquo

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em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o

heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo

Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o

morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande

habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por

parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o

motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o

fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo

muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma

expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria

morrer e encontrar o destino

Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia

grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem

relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do

prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera

que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa

accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo

Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela

decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem

Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade

Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do

intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo

divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina

na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida

(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar

liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz

de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do

paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o

sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e

atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central

uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do

domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude

e portanto felicidade

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Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma

deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um

comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o

sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio

o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado

com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo

incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores

Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a

fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se

por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo

capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo

essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de

sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes

responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas

o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino

E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como

a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de

Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia

das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos

Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito

traacutegico grego

Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a

Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue

escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de

que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu

ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses

Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia

disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece

acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com

todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu

muito suporte de Atenaacute

Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na

vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute

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que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da

ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses

Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta

atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que

poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia

ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso

antes dele) mas insistiu em arriscar

Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um

mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a

caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo

inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno

extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou

exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu

palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute

momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa

Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela

realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o

marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem

construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o

quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante

acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido

A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)

Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua

hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria

sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra

especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na

realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por

Homero o mito de Er nem teria sido criado

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O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas

ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute

passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a

escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e

satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo

sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo

(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos

deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como

uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as

afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os

mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta

com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas

Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela

existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar

Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira

como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo

teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel

porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter

nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse

um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida

virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei

considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua

grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem

de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser

ardiloso caso necessaacuterio

Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do

diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades

a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas

diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar

a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve

nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era

respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais

mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que

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preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e

ter influecircncia entre os mortos

Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e

Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que

inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens

Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora

desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria

aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da

qual Aquiles gozava agora morto

Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da

inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve

oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a

opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no

modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera

que a Odisseia

(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)

Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida

de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na

Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que

se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na

verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a

obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas

envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que

diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto

Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses

morreria velho rico e cercado de seu povo

5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama

6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas

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Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a

Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade

de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na

epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele

mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa

Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais

conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua

identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se

chama Ningueacutem

Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute

estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o

nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor

Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado

de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno

de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio

Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)

Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na

Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a

respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No

entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente

sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se

emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas

andanccedilas

Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua

identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou

seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do

heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo

existe mais que natildeo vive mais

Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e

comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou

30

seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo

que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado

intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez

que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe

o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em

que recupera sua identidade e sua histoacuteria

Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA

partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em

que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando

da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68

grifo do autor)

Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este

momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa

cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre

a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar

bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar

para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo

31

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO

Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)

Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir

brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a

consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos

autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o

centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute

composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui

ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de

apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e

mulheres

Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo

compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de

si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por

uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos

ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos

processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da

observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e

opiniotildees de uma pessoa)

O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui

funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de

capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando

um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose

provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)

Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente

tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um

instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da

personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o

indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase

inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece

32

Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do

segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir

a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como

(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)

Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um

afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo

Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas

dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo

possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de

forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute

povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos

dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e

considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique

Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas

perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque

a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o

indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de

constelaccedilatildeo do complexo

Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor

demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o

primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por

natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu

do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um

ego para ter consciecircncia deles

Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo

relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e

mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos

Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de

modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou

33

grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia

O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim

mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees

sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma

Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e

eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade

entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute

sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode

considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que

remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam

frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees

por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o

Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira

autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea

Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na

organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram

quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de

Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com

a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se

as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que

Jung denominou processo de individuaccedilatildeo

A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas

(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de

uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se

estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque

assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios

situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois

voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os

sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador

poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em

seus conteuacutedos oniacutericos

Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens

arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos

34

fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia

tal como a entendemos De fato para Jung

(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)

Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto

de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os

processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute

capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos

uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo

significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia

os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito

entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este

movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo

que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e

inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador

Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila

entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como

depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da

morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e

elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na

imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que

comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta

eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a

depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua

independecircncia

35

Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por

meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o

qual natildeo haacute uma foacutermula

Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por

meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que

depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que

este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um

esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem

Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)

Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos

definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades

somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo

com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que

haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo

mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo

De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende

de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a

funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito

de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso

depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo

Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que

menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a

nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo

quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo

inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas

caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma

funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua

espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre

entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011

36

[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na

condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior

(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)

O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma

espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer

que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer

sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer

sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que

o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender

as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que

estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que

natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter

causado nenhum resultado

Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca

complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos

acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando

chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute

uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um

grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila

O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez

que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e

significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum

cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se

de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela

psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por

exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando

Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a

separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um

caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques

de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba

37

exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave

separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para

seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam

ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute

buscando

Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a

reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo

doloroso de integraccedilatildeo de opostos

Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas

polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de

sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer

forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos

cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta

maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades

conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)

Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico

que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o

indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o

define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a

individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em

sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se

distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo

devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo

uacutenica de qualidades universais

Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade

dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir

ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo

egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a

autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu

ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo

tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo

7 O Self eacute o si-mesmo

38

depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do

ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado

Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da

necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a

apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em

vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro

que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo

se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer

Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self

que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos

estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente

buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p

216)

Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme

transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma

natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio

de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos

recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num

trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da

persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher

Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem

a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma

imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele

desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto

Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do

indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente

agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao

indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma

vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que

o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O

fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha

consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica

sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as

39

pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo

que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se

desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu

papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias

obsessivas

A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que

significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da

persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a

individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a

persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute

um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o

individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa

doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e

coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para

que a alma possa se desenvolver

Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)

Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos

arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor

ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na

consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta

que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante

a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)

Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em

noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este

estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto

nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a

ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein

explica que isso acontece porque no meio da vida

40

() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)

Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar

entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita

pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo

necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos

podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na

adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-

idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar

outra transformaccedilatildeo

Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos

nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as

pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um

significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social

O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico

o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute

justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos

nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas

acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como

sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem

uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo

a seu respeito

Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos

psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for

desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que

natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua

consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial

Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque

nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos

nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas

e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo

41

configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a

experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas

Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a

individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar

de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da

vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo

determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o

lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se

esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta

tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo

a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam

contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida

Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que

tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase

anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem

da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e

perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da

persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos

separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se

diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma

desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento

para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica

Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja

um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora

seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado

por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se

libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar

livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar

o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento

Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da

nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a

reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as

mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva

42

relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos

confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela

definitivamente

Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do

que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que

engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos

nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido

ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a

estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra

A autora explica que

A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)

Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no

meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que

fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora

estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo

podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos

Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo

necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo

temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo

reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que

vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro

relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra

apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em

uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim

vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem

negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado

43

Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente

para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por

Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self

que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self

possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos

proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas

que ele ainda precisa cumprir

Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem

os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo

e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-

se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem

antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos

estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de

individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas

singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa

finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas

condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na

polaridade divina

Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego

dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave

proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como

inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a

autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da

personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da

proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos

psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem

fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012

p 56)

Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma

simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato

Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma

experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se

fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os

44

iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os

impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a

sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando

orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar

aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-

se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes

Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo

simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da

nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o

que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um

aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo

de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos

sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu

respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los

Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos

nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo

interna

Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja

atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo

por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de

forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar

com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila

de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que

tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos

levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees

Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer

esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se

separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem

em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes

reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo

e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o

que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus

45

Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o

resultado da transiccedilatildeo do meio da vida

Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos

dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente

com anima e animus Sobre a anima Jung explica que

A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)

O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da

persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o

exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a

anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias

entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode

ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre

nossa vida exterior

De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a

anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino

relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)

A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma

representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos

germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os

homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que

pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada

homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na

forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo

O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da

mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A

influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista

sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os

outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa

da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a

autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a

46

se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso

ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima

como uma forccedila interior

Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em

termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do

homem quando ele

(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)

O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de

individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que

o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo

se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo

inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self

Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem

subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do

mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro

Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura

equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem

a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus

como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum

dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos

atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles

Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)

O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora

opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute

que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta

47

como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo

inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos

guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos

razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung

(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de

preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado

Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von

Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui

aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa

coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a

anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON

FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo

perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente

revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos

sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino

um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute

simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute

representando um aspecto mais coletivo do que pessoal

Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus

estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca

satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam

Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas

prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo

Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos

aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que

constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo

desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento

da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo

projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes

Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos

integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia

Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o

inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute

48

bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma

postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim

esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes

A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando

sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias

inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer

objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do

inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de

consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente

percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila

da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia

por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias

A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung

(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e

se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam

os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo

transcendente

O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a

pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de

maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os

conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se

diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade

Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas

necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros

provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia

consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel

para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente

com o que eacute

Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute

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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)

Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute

preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de

permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu

consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute

consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter

demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo

Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e

nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a

conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e

que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando

nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para

expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para

reconhecer sua forccedila superior

A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011

[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o

eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim

Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa

extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a

individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a

consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos

inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute

somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos

com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir

um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior

Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica

uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se

esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a

infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo

revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente

o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter

sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma

50

forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser

um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo

exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar

nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que

acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que

essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo

A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam

a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos

internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)

diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo

vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor

A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for

perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses

casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a

apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como

uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais

comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma

mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego

Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um

sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro

delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um

significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais

imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais

superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos

atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ

2008b p219)

A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da

consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma

inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber

sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de

fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e

entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem

ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba

51

crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o

exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as

cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela

este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com

o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece

mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto

a ajudaacute-lo

Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este

momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a

magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito

difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa

sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada

servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte

efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com

humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso

E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e

extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma

ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos

voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais

A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e

longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com

eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico

representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores

como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio

guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica

do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus

grego Hermes

A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou

uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao

mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo

podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como

uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de

renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual

52

Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um

jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando

natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo

como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute

onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta

caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que

envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa

segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita

soluccedilotildees criativas para seus conflitos

A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo

sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar

que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o

autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a

presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma

situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida

Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam

escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo

de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a

experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a

experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e

permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as

pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito

semelhante agrave dos sonhos

O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente

territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de

Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e

assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade

suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de

alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e

capacidades

Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no

limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes

8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica

53

mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os

acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois

estamos emocionalmente muito sensiacuteveis

Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no

inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos

fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego

o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar

ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora

do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o

autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de

Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia

Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo

relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque

especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees

mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos

do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala

Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute

orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca

poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus

instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses

siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela

Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)

A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas

culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da

criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do

ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego

se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior

54

Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como

bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais

relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma

aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de

alguma forma

Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do

self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b

p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua

riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute

comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma

representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito

De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de

um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que

justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela

explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como

um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma

totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as

manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo

espaccedilo-tempo conhecido por noacutes

Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung

que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e

externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute

encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de

pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma

coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de

sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo

entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos

sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de

individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o

indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as

coincidecircncias significativas

Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida

seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso

55

mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso

significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que

desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu

processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida

Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do

inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos

positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute

especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as

pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como

exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles

que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com

a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar

grande perigo para o ego

A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo

podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue

funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees

Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil

Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e

um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta

obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros

querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para

conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar

eventualmente

Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das

pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos

provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social

Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo

indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com

determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade

eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos

Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees

com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos

56

de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo

sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou

No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois

haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou

social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto

social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles

se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de

duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um

aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre

aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o

que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com

as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a

respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E

uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas

projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma

interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas

Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se

encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para

Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado

transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de

interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo

Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta

mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou

natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e

de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de

partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da

maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos

partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos

estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece

O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado

a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por

estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa

justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre

57

as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode

levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por

pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo

de Hermes no coletivo

Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia

a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos

formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os

outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo

compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas

que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o

processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por

meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em

que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados

pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees

negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao

nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social

Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres

motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e

seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos

o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o

processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua

individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo

de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo

contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma

muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se

tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora

utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso

desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna

simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)

Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que

A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para

58

o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)

Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio

da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo

extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs

fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que

costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem

da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais

seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute

sua atitude psicoloacutegica

Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e

encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute

consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma

consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em

fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por

sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave

negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes

Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em

objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo

eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser

considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)

considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a

experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a

respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos

planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de

antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser

sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si

Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou

mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a

diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem

cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico

59

passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e

atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo

Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal

um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se

restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida

dada sua dimensatildeo sincrocircnica

O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se

associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o

fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao

limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees

do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste

caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz

essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a

conturbaccedilatildeo desta fase da vida

Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao

tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o

tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao

seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia

cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a

vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica

que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no

meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep

separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria

identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees

experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se

confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o

esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele

ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta

Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela

tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo

conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia

Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por

Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O

60

autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e

conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite

que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem

possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo

liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se

descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar

relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem

menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado

energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma

ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos

reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)

Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade

se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade

de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta

com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida

Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo

de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo

constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo

faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele

mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas

defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve

demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e

impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo

liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente

Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se

torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o

futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade

valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra

livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve

mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a

situaccedilatildeo

61

A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)

Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um

comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a

regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais

intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein

(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da

vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem

tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na

infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a

qualquer um de noacutesrdquo

Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo

psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma

etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece

uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a

identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma

reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma

Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este

processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto

fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra

dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em

padrotildees antigos e sem sentido

Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de

transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos

dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram

reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente

liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais

de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave

nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos

pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo

62

Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio

das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas

em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter

conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os

outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e

assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos

coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo

de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a

autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com

aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de

tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas

dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em

siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e

o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo

A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com

siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na

imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas

experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar

consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar

do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia

liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente

Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por

Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e

de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta

circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com

outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da

anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser

cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a

ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante

dos ganhos psiacutequicos posteriores

Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo

preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao

mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta

63

forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado

de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao

entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida

durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo

do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A

constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por

completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que

ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um

elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o

lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do

dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)

Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo

dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila

constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo

do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente

psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase

liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja

eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute

encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar

mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e

estabilidade

Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a

presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus

sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo

estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa

vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos

espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros

eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no

meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto

executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de

escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes

Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente

vista como estaacutevel e tradicional

64

(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)

Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que

prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute

exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da

vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o

autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se

mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai

depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo

que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico

Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos

inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em

qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma

experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso

queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo

liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para

a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em

nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um

resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO

O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento

entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as

dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses

com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a

inuacutemeros pretendentes

Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de

se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de

desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em

outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia

se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da

aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos

65

cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da

personalidade dos filhos

Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como

instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que

tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as

necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento

Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do

outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por

outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos

independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta

realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz

particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal

Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme

afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que

lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca

poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos

que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que

Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)

Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual

motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo

complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar

bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar

a vida do casal

O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias

estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios

de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo

caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente

dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento

66

Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por

Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente

nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de

elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande

ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e

conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais

satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo

Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento

constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa

individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem

continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus

potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o

casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo

natildeo eacute o uacutenico

Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre

simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus

sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo

o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos

arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos

juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas

que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos

inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos

cocircnjuges

Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o

fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou

seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro

ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca

desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este

desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo

desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece

ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma

uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute

67

proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na

alteridade que seria o principal sentido do casamento

Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a

necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima

da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a

humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que

Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)

O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da

personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)

afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma

criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva

quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial

criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o

siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e

pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de

confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior

Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o

casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento

aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder

uma sombra consideraacutevel

Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute

tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute

uma caracteriacutestica humana

Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas

histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o

final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris

enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno

de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua

vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte

anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios

68

pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses

voltaria para casa ou natildeo

Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um

triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto

De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato

de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo

Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida

dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se

compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la

transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES

2014 p 59)

Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro

mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a

possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira

eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo

em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro

Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao

nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz

Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)

Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a

ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer

uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso

Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica

constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera

improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da

pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o

tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros

As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si

mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer

em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas

69

Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela

traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos

arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees

De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento

tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois

expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado

e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma

pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a

essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo

oacutebvios nem tatildeo imediatos

A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que

Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)

Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes

de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode

proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum

que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se

conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as

eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo

de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus

complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de

honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os

parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas

continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento

Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se

responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis

caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o

indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu

redor traindo ou sendo traiacutedo

70

Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-

se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro

entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu

perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo

A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)

A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber

que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)

destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute

possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser

fiel a si mesmo

De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando

simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa

estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu

animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a

autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor

Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na

separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc

da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se

tentar obter um relacionamento psicoloacutegico

De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o

indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo

pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por

meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e

possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem

relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros

71

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao

mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)

Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais

importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito

apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e

em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente

Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os

mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas

Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo

que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os

temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar

fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e

culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos

perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja

como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico

costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees

livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)

Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores

entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de

humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p

15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas

Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos

entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes

Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens

mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a

mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder

simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje

mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa

cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo

ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias

transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas

72

passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma

estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas

Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da

associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no

quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do

caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original

utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung

como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)

Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do

conceito de inconsciente coletivo

() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)

De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento

ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira

e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida

Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no

inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar

se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a

maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo

psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente

conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas

ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma

expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo

de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada

para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o

estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica

Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um

deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que

um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de

vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus

73

relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades

vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as

possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos

pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para

aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam

Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos

trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz

sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso

siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo

precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou

transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o

mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final

Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro

podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados

Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como

ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de

nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material

analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a

respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta

forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever

futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e

LIMA 2006 p 56)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico

conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers

os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o

paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto

sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso

nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores

consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa

74

se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves

estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao

estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias

divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo

arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela

harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)

Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o

heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente

humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos

adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim

porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que

podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que

escolhemos ser a partir de entatildeo

De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo

da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem

seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute

passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a

cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash

simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra

Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que

A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)

Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas

figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel

perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se

estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas

entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da

nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades

fragmentaacuterias

75

Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou

demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua

capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas

atitudes

Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de

um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a

dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a

nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou

energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por

isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se

soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas

psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que

tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)

Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se

manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a

doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se

soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram

reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento

A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta

precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado

com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar

impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si

mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo

sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um

arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire

caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender

fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade

da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso

Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos

leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles

influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo

temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo

conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein

76

(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos

sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo

liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e

atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que

vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram

rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que

foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo

Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da

psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as

religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida

Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus

mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma

vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus

das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na

alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas

no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute

relacionado a ele

Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de

acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade

sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes

das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves

acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de

tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da

personalidade

Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem

confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus

costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e

misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico

O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia

hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a

ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua

afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de

estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir

77

Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de

Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de

adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute

ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa

ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente

ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do

indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado

O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado

com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar

habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e

qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus

irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades

chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo

caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)

Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)

Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute

por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees

Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para

concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso

quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar

com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e

para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental

de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo

O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso

e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as

reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica

do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos

inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor

forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante

disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode

78

curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da

psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma

Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do

deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-

idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute

eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise

Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de

Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma

experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social

pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando

transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e

ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita

pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de

que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas

sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel

natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em

periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia

O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar

psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um

de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein

(2007) a presenccedila de Hermes

(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)

Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o

que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer

comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente

existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para

abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus

Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos

sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria

79

experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em

cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma

experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura

Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca

examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento

psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de

socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da

mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou

acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que

respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa

atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles

atraveacutes de mitos

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do

analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa

julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o

analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas

Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova

postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos

satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute

que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo

Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos

que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram

inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua

essecircncia decifrada

No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando

os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas

origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por

exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias

seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o

autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em

diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos

80

Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a

mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por

meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela

depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de

comunicaccedilatildeo com o inconsciente

Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute

fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto

historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e

mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia

claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia

ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do

heroacutei

Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)

O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a

compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela

tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas

impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees

simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de

que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo

principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia

egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo

consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que

o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa

de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa

simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade

9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror

81

Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do

heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a

morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito

pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a

determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia

do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado

momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito

o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da

consciecircncia do homem

Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus

respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-

idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter

ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem

sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo

muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco

branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)

Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto

nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta

sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente

alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus

papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As

imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo

com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as

imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o

quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como

uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10

Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque

pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua

personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de

negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo

10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki

82

constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel

sim encontrar qualidades na sombra

De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung

chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para

atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate

entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como

dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma

por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro

livre do desejo do retorno ao mundo da matildee

O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro

tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e

a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e

demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas

Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado

negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No

entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a

forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que

considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute

prevaleceraacute se integrar a sombra

Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos

procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia

pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas

condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo

arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O

que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego

precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo

conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente

Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei

sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade

desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas

e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente

profundo para poder realizar atos criativos

83

O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de

consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os

egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se

desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade

Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave

consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes

a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que

podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-

sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais

derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo

sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos

sonhos como monstros

Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa

consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto

para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica

que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma

fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees

Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos

igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por

meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados

nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso

de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a

consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como

aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica

humana pode haver essa confusatildeo

O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio

do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de

totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o

relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do

heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas

aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute

problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai

ser uacutetil para si mesmo e para seu meio

84

Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio

eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em

contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte

simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade

temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito

solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro

ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de

totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)

O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais

complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a

passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase

da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo

se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera

conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de

forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos

Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice

clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente

da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo

eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila

possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia

O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias

subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da

mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a

psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam

rituais de iniciaccedilatildeo

Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de

iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso

precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao

contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute

ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para

morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a

11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais

85

finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de

induzir um renascimento simboacutelico

O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a

periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer

doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou

restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio

mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia

Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever

que

A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)

O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do

homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os

conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos

siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo

pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie

de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como

renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom

espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a

anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses

siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute

mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho

sozinho

Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em

nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o

autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que

apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado

psiacutequico permanece o mesmo

86

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA

Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo

aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as

caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto

post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute

relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram

oferecidos aos deuses e aos heroacuteis

Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser

comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou

comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais

diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que

independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem

intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a

medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e

apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as

caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado

sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas

morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino

faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter

sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta

que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de

Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como

modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma

vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso

Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos

disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real

eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute

mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por

dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como

periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto

devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento

daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou

87

num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa

ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores

Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem

ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o

triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras

bem estabelecidos

No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra

(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido

na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades

superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte

da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do

lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter

passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se

destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se

destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe

permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras

dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei

recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte

traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo

(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este

modelo

Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando

honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir

realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o

centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas

seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)

que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante

ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico

ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de

lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da

poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro

Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem

do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por

88

sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com

nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a

semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram

contato entre si

Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de

que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem

na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a

imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor

tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha

(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam

responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia

divina do heroacutei

Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram

poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de

modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem

estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis

tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem

para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados

tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p

25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar

a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao

Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo

O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um

sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou

de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter

facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute

cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de

modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo

A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis

Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o

nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral

e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas

primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por

89

etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo

profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado

Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome

consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto

denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome

Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia

Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome

conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui

energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por

isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo

Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que

estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos

(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo

(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o

ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os

humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino

(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada

vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou

masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando

cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o

Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar

sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos

para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se

dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a

procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem

do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino

Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo

masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por

meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos

mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo

como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do

travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como

uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir

90

para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute

Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia

De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos

motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a

totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo

escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz

alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado

Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a

partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o

heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua

esposa no mito Brandatildeo ressalta que

Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)

O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na

mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica

para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio

cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido

injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias

Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual

popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero

para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se

referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem

qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis

dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do

heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees

depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles

De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava

presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de

91

manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer

sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo

Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo

Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)

O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante

vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram

travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de

diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam

em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta

enquanto os demais homens morrem no anonimato

A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser

considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas

disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a

morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma

das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham

participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e

agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para

as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis

Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor

das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o

ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido

construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele

incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja

reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca

Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com

jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute

assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis

mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um

numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se

submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou

92

para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado

Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de

Ulisses

A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos

ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos

poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em

homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que

estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos

notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada

jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo

de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de

um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em

morte

Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem

estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que

pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma

geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns

heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de

outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um

apecircndice

O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em

conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser

orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou

Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas

heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por

exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os

males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas

podiam tratar ateacute a loucura

O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros

motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou

famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles

ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser

curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel

93

Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar

com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto

para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os

fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de

preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus

concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos

Misteacuterios

Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como

superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos

como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos

O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui

inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe

permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer

tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi

mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de

benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido

Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia

jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um

heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de

Ulisses tambeacutem eacute mencionada

Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a

cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)

como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o

defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem

apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em

outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um

castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo

Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito

relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma

exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda

estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante

da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos

representando o dom da visatildeo interior

94

O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis

conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito

comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um

apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como

adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo

sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por

vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de

familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um

destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do

templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute

caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei

Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste

numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o

uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou

num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros

morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves

vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem

saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia

matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita

Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois

eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As

reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando

durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de

seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que

(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)

Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a

proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o

95

uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem

as energias que alimenta o cosmo

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA

Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes

os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de

Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero

relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder

relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei

631 O MITO DE POSIacuteDON

Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus

derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel

pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente

Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas

geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas

secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de

que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente

Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas

fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas

elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees

Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu

trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a

autora

este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)

Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais

deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo

soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de

96

Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo

deus

Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a

aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao

construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos

desestruturantes

Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que

difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e

portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila

Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon

atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que

emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)

Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas

extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por

exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope

Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos

Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma

Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)

Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte

anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros

97

dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao

expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por

exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro

com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu

enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal

Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro

e agrave proacutepria anima

632 O MITO DE ATENAacute

Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual

Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem

ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar

no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute

estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a

filha

E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o

combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute

eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender

essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram

aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte

para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade

racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)

A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer

pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o

estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como

seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a

possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se

apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a

reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute

passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e

poderoso

Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas

no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute

companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos

98

descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do

espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)

Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de

incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as

coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser

entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)

A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada

em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um

complexo que a deusa elaborou e integrou

Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)

Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se

confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam

ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo

admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo

mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento

Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados

em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A

fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas

provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de

Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado

Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino

Segundo Ribeiro

(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)

99

A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute

profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a

ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada

ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais

633 O MITO DE HERMES

Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)

De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu

chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar

entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade

pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos

deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado

guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles

que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute

atribuiacutedo a Hermes

Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por

Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo

Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus

cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele

havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora

Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este

fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma

necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo

(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um

deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo

Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de

Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele

precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle

100

Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e

astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer

O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois

novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo

Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica

ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra

respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos

Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com

o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora

considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do

instintual para o sagrado

Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes

encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista

(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo

superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num

instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente

Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem

nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo

voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade

Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma

e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute

ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser

colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os

irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus

no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a

partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o

privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o

segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)

Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as

qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)

nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de

presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser

o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom

101

do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado

demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se

apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma

tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta

Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos

pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira

ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia

Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e

informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de

firmar contratosrdquo

Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso

com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute

concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e

mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes

recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas

A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos

como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash

seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a

androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)

Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio

de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes

se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do

movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar

motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens

importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi

fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a

terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia

da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso

nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado

por um casal na Terra como menina escondido de Hera

A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de

destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa

descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem

102

conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute

E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno

de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)

retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o

aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica

Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a

flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira

103

7 A VIDA DE ULISSES

O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)

Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)

Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma

versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram

juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente

coerente

71 ORIGEM

Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como

acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e

Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de

Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que

Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte

Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto

pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade

supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-

rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha

Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de

sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que

enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se

sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que

Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu

negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha

Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse

nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram

surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas

de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-

lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto

o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez

104

Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de

Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era

apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois

pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que

Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era

pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para

comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita

derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila

Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele

ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)

O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a

sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando

para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente

De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de

Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre

os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia

mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo

coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-

ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si

lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)

Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando

Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal

colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo

teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita

gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na

105

Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras

histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis

Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia

de grande temporal

Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)

Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa

Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a

Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos

necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de

Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que

teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-

nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e

Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do

momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria

sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei

Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de

Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito

astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova

botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o

proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou

Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado

agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo

desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel

Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu

106

sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo

nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)

Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e

comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia

na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada

que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do

que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco

acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele

fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia

Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do

rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute

Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis

trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual

mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope

Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras

provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder

espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do

poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas

apoacutes conquistar estes dois feitos

Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade

Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os

pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela

Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe

proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem

era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma

Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da

ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele

simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope

Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este

tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia

do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em

12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela

107

recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio

concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer

forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando

forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a

longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a

fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e

sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)

Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo

corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope

praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o

traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu

apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope

teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde

passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes

descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma

Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de

Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca

adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)

72 TROIA

Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de

Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta

sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o

iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e

Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado

entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim

que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu

Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses

compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo

assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre

os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem

planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a

108

humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de

Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos

Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados

tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma

nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam

igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena

de Troia e outras desgraccedilas

Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia

entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos

homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida

novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava

Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado

Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a

crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o

conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o

bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por

pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida

sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito

Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este

priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de

mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera

ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite

ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de

Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de

conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz

por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu

lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia

Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o

costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo

tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que

os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a

corte natildeo precisava ser feita pessoalmente

109

Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente

de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem

enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que

Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar

com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra

que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais

pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar

a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com

Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o

emblema da fidelidade para todos os tempos

De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez

anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal

real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando

Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia

Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se

aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13

e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-

lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a

participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena

Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto

a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de

Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra

e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa

A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos

para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para

Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se

recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam

que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte

de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de

acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em

Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre

as filhas do rei sob o nome de Pirra

13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor

110

Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas

femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu

entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem

levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas

conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi

quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a

Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu

Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta

uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia

Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em

Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os

ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon

pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que

Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia

sua primogecircnita

Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau

aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo

que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto

Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria

filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas

Menelau o impediu

Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao

acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes

Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois

irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo

instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses

Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris

Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua

astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura

de Teacutelefo ferido por Aquiles

De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios

lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por

111

Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos

Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como

atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon

ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os

aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes

helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que

mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a

Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem

em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes

por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos

poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau

mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez

poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos

natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria

matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor

Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando

astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia

Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de

acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas

como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes

Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra

Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois

de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a

cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes

entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar

os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma

profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio

Escamandro

O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia

isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo

(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o

primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de

Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc

112

Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)

matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover

ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus

Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-

se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma

estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram

inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte

de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada

por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da

guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a

vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu

ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que

perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a

resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax

enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se

tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que

tinha feito envergonhado Aacutejax se matou

Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia

Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e

Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a

Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute

dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e

convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se

agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem

sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax

jaacute havia se suicidado

Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de

Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a

vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o

regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses

ndash devido ao seu machucado fedorento

113

Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e

destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash

mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de

guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada

Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez

anos de guerra Entre eles estava Ulisses

73 RETORNO A IacuteTACA

Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de

partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas

Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu

esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande

borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o

heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o

sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho

delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando

alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os

barcos e fugir

Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo

Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar

pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os

habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a

flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e

fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los

de volta para o navio e ir embora daquele lugar

Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos

ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa

ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos

seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa

caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela

morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada

Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se

mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo

114

que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-

lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho

Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que

Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum

ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando

bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-

los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena

para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga

dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco

Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se

demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a

alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma

vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por

sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo

apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que

ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu

ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse

responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara

Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)

Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito

daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto

e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida

com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu

chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que

fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e

sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho

Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a

ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem

115

passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na

partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos

rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que

deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o

odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos

Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando

Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus

companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que

contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora

foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que

estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de

uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo

De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo

que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana

vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes

canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu

enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras

contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se

encontrava mais distante

O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia

tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens

sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-

los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe

transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara

no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em

vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros

Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu

diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como

escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como

antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa

bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em

porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a

espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo

116

de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de

volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo

com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono

e Nausiacutetoo

Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas

natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa

seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja

sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a

fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em

Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o

restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida

A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor

Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)

Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve

estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe

sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como

passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo

consumir o rebanho de Heacutelio

O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne

humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto

irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim

de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os

ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso

deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer

Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas

para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e

117

ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma

enorme faccedilanha para um mortal

Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros

precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais

raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo

escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que

navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens

Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros

remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a

passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como

viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de

Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram

as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os

homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um

raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara

do banquete

Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes

Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou

apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta

vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando

se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou

laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e

seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela

o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave

ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua

ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem

que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo

(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como

filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela

pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei

voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente

Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual

118

ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a

proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara

seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada

destruindo-a

Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco

destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe

emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que

depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu

e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde

Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia

O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas

companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora

estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu

ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois

o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram

bastante hospitaleiros com o heroacutei

Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o

aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo

de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele

contasse um pouco mais de si

Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)

Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes

sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram

ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com

presentes o barco que levaria Odisseu

Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao

chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente

escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo

responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num

rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga

119

Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de

Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua

ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter

reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que

morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de

Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa

estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto

ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)

Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e

Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os

cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia

se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema

satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de

Peneacutelope

De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou

afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai

ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio

prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma

Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em

Esparta

Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos

anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a

presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos

os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam

chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao

longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a

agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo

os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por

se tornar amante deles

Para Brandatildeo

Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela

120

desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)

Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope

resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo

assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de

dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os

pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da

escolha de outras formas

Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo

quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu

seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses

tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao

mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi

encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles

imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope

Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de

fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora

bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe

faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo

dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que

havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes

de Peneacutelope

Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-

los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu

o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das

saudades que ela sentia do marido

A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses

e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para

banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna

de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees

Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo

Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou

inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que

121

apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o

armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos

doze machados

Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar

sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida

Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo

O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os

pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute

por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o

mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os

alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei

se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim

comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima

Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze

foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a

desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque

maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa

Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade

conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele

mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou

Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)

Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande

maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma

que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com

os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente

Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para

Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da

velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz

respeito agrave fidelidade de Peneacutelope

122

Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para

sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer

um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute

ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez

sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho

Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se

apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria

nascido Poliportes

O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses

apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por

Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na

Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo

de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que

fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-

los

Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria

encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria

ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei

teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade

avanccedilada

A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de

um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a

identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a

devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores

mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia

feito a quem havia matado

Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para

a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo

fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein

(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo

123

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO

Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)

Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por

Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves

transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e

do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos

da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise

do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel

compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro

do modelo junguiano

Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do

heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em

rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo

determinante na Guerra de Troia

Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva

teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a

individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute

estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse

lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do

nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que

Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu

retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando

precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez

anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo

Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora

entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente

que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema

comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso

124

Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os

desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de

ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da

dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia

cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de

individuaccedilatildeo

Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de

acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante

frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de

aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante

Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de

Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir

regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto

de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para

chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de

Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando

por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa

Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de

Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo

(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa

tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute

interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando

sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que

[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)

A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa

viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem

uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este

processo

125

O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em

casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a

individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma

ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e

irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se

compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo

unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o

casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise

Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria

que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o

autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos

isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de

tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo

para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado

chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao

longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as

caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem

representadas pelas figuras dos companheiros

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA

Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que

deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles

por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e

suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente

o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de

Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa

exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho

e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz

(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo

quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e

instabilidade futura

A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos

Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando

126

apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para

embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens

natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um

contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram

durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute

identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial

podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees

de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a

individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de

seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos

sombrios jaacute estaacute comeccedilando

Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado

novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta

para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do

processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto

(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila

Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de

evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos

inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir

82 ENCONTRO COM POLIFEMO

O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de

Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior

da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de

escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar

Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua

identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos

um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o

orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico

Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus

dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de

sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda

afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer

127

Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo

intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo

pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se

analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e

no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro

(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e

inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo

Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de

Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo

praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena

Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que

desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros

conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada

por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas

impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como

momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)

seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso

retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com

Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa

oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um

aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior

Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria

pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos

sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se

manifestar impedindo a continuidade da viagem

Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem

a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase

chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei

adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem

tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de

volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos

deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que

Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono

128

Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os

barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash

o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade

enfrentada

83 ENCONTRO COM A CIRCE

Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que

Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que

desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei

pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu

recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem

sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das

instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses

recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm

filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar

Tireacutesias eacute Circe quem o orienta

Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self

Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de

Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura

do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o

autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se

aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes

Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute

ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem

estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de

uma nova orientaccedilatildeo espiritual

Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de

Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem

da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira

ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um

complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter

demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva

129

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por

feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse

aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por

Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de

Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e

negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao

relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da

anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras

Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de

guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e

inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que

fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute

84 DESCIDA AO HADES

No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas

incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se

aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que

ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus

caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo

para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon

depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando

consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar

Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem

Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho

diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que

simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se

com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha

consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte

simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A

morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o

autoconhecimento

Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de

individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado

130

por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao

movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante

esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens

novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute

pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda

precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do

Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de

morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar

para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas

tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o

remo numa terra onde natildeo se conhece o mar

Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade

traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila

seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso

Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que

se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a

matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto

desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato

podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso

como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste

trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como

fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta

sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer

cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de

Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme

Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses

diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro

O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a

ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute

escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo

sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-

lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte

131

Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho

Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do

navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro

aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com

seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos

entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim

consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem

necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade

do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se

arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o

rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda

luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o

Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco

compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de

seus companheiros

85 ENCONTRO COM CALIPSO

Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha

de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus

companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a

viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam

presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam

Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens

ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e

percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a

mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala

mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do

banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a

vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na

embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos

novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar

seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar

depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei

132

dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode

representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta

esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que

ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho

Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem

tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia

segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis

um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a

figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que

vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que

passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia

Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que

a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando

que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no

caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui

representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos

supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego

natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos

Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por

ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie

Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso

concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa

passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash

assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade

Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso

quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer

prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando

ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de

individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou

esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada

por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente

porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la

133

86 OS FEAacuteCIOS

Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento

Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila

um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino

interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua

armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua

relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas

Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo

por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com

Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus

aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo

levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado

novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer

de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se

desidentificando com a persona

Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois

ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima

integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e

desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia

conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que

Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia

pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash

filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com

humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso

rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a

fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a

primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se

manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho

para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para

guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu

processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do

heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para

confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que

134

foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar

ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se

joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros

com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante

o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra

de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc

chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que

ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo

pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde

educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe

fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes

Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que

satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua

funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu

nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios

presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros

presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais

em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do

Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a

transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas

87 IacuteTACA

Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme

os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute

significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo

prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute

mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua

funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos

inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego

Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela

confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era

Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua

verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente

135

pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao

ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria

morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua

aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua

alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio

repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que

certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute

a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo

mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de

Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar

Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos

pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser

forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e

da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa

amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo

se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope

Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute

simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto

impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses

conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais

arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o

ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos

se vecirc sendo interrogado por ela

Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os

pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que

Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela

exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou

uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve

percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas

um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze

machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de

sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo

verso do poema ela decreta a paz

136

Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal

Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei

de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria

sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender

por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar

outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina

ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver

88 DISCUSSAtildeO

Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de

individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos

que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes

da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas

diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo

do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras

siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute

instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que

observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a

peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia

onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa

peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa

viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo

Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida

ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito

geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como

Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam

diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar

a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e

segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

masculino

Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o

heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo

unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos

137

em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a

ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre

permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que

diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato

com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher

cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias

Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo

pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o

casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o

indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las

no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do

casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na

Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de

estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito

da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do

seu primeiro filho

Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua

famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da

Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele

mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida

ao plano dele

Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente

do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto

como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai

de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria

um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser

raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto

notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de

Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-

o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem

Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo

de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente

disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a

138

filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar

sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de

Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro

tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa

no futuro

Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a

Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela

comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia

Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia

pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa

inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do

heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio

perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi

principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu

pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs

a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito

de seu futuro

14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela

139

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos

entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma

como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do

heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina

Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes

domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi

essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia

profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a

disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver

originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades

Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio

da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e

poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa

questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho

sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este

processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e

agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade

Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a

manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo

Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora

impotildee seu reconhecimento

Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um

indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes

pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua

anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode

invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])

descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a

desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios

a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento

da funccedilatildeo inferior

140

O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de

individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas

Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em

outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade

propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo

estagnados

O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia

analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos

caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat

(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas

individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais

comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em

filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis

Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o

mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro

momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois

seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e

Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung

(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a

esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)

Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua

cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz

(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma

mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos

demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do

processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza

Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como

siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de

individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei

representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham

seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria

pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam

o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da

141

ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei

integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de

Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento

Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self

representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis

como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo

entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As

personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias

Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da

anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados

de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com

Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco

Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede

que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas

expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina

Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o

adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre

quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua

jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses

e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma

embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a

sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando

estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em

Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio

com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele

precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia

Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de

suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves

provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente

o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo

conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina

haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados

142

De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo

dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo

seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma

questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo

de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de

casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo

de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os

pretendentes e defender o seu casamento

Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca

como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de

sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que

Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas

ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de

outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia

comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos

chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma

transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo

Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])

quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima

geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas

opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como

expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem

examinadas em trabalhos futuros

143

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147

APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA

Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto

realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no

momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador

decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia

ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero

(2013)

Canto I

A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de

Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca

Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o

poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua

morte

Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam

morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido

chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido

Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses

eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon

Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros

quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia

comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por

Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra

esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto

assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado

pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee

Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus

que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava

sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado

seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou

Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu

Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a

expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope

148

Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que

seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas

natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco

revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com

todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de

seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca

clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser

assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma

natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai

Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os

pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos

conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter

notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco

com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto

para partir em busca do pai

Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de

Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo

pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses

porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco

interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela

ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros

haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos

seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude

Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco

Canto II

Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele

sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute

Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles

homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus

e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um

dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras

e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o

coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a

149

artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente

assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No

entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os

pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano

alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha

constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai

dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por

meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os

pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu

que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os

pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso

achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os

punissem do modo que considerassem justo

Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave

esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e

se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de

medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que

Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses

propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos

pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos

apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que

aquilo jaacute estava acontecendo

Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois

sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope

fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados

Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a

Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que

seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria

sua matildee casar-se novamente

Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua

casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia

de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente

respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu

150

retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia

se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo

de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem

frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que

a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que

ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os

pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha

com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para

acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que

seguiria viagem com eles

Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um

deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los

Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como

Odisseu

Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua

viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para

abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua

viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou

doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o

plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a

garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se

Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o

melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a

provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de

modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo

proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os

tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute

Canto III

O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar

encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a

primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se

diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto

quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de

151

Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem

uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o

ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com

seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece

Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham

Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma

vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para

pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em

Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito

sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre

Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas

hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso

imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em

Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon

enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor

e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que

Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a

Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos

pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele

Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos

pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma

que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo

dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que

aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz

que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros

obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que

chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado

por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que

natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida

perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar

o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau

para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a

viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de

152

Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os

companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a

cavalo e ser escoltado por filhos

Canto IV

Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus

companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a

respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou

que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe

causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de

notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso

Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar

Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o

agrave prova

Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem

eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau

concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor

confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute

justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a

chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que

nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de

Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que

pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem

sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena

Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de

colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e

o sofrimento e logo todos dormiram

No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua

viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez

narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia

explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a

ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para

que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas

recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar

153

preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera

lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto

Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a

viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular

um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo

descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope

lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que

Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e

Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma

terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a

culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se

comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute

Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir

com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a

Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam

no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno

Canto V

Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu

lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a

ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute

se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que

natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o

regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco

Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o

avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca

Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava

tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que

estava na praia chorando como de costume

Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora

enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no

momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora

conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida

154

imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram

crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal

Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua

ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia

perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a

imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma

vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe

proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria

como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo

A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o

fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa

Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela

tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento

favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a

vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los

Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e

se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando

nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de

Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela

disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente

recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas

provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de

tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum

sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua

jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No

quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel

conforme prometera

Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos

Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de

terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios

enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente

de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez

com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer

155

ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele

ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia

Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar

a morte

Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera

honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e

pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a

abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria

chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria

abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a

jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou

de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar

com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua

a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que

ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo

de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez

com que ele dormisse para descansar

Canto VI

Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios

Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha

de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus

irmatildeos no rio

Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar

roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas

lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas

tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as

servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou

uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez

com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia

Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo

ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas

com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando

apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele

156

narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para

chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes

dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se

vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila

fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em

seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso

Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios

Canto VII

Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que

assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de

Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha

Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao

terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com

Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa

cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu

lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos

deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que

na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por

diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu

agradeceu eloquentemente

Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que

ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira

aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre

causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de

Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da

deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada

Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua

jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu

Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa

Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe

contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na

manhatilde seguinte

157

Canto VIII

Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso

Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o

repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para

serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens

terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo

saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila

de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a

escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim

Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos

gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante

um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si

os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas

Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem

Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos

esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o

impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de

Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica

Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e

mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da

marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu

orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando

que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os

imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos

estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou

a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores

danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o

espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado

Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes

para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e

o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela

quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu

158

prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela

como se ela fosse uma divindade

Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por

cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia

Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que

permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda

de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio

corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu

chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e

sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus

barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa

Canto IX

Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era

conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia

nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a

deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa

Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que

nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades

lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram

proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e

levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus

companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais

numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones

haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada

barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes

por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma

tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se

tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento

Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em

terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza

Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo

vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos

Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para

159

investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do

loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali

sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco

para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se

plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem

natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras

Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de

homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras

para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha

dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde

notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns

companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram

hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens

esperassem no barco

De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um

pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui

que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze

bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de

vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro

com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles

entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem

pelos queijos

A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os

deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e

cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes

seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo

tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os

homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando

ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope

trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e

seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que

eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto

sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os

160

deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O

Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do

que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco

deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus

barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles

homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute

e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e

devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele

ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de

Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme

pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu

na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la

Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de

mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o

escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando

mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe

vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe

revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe

mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que

se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade

devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar

sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a

seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar

fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por

algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu

pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o

Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram

enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar

os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com

uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que

ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes

vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez

161

que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio

de Zeus e foram embora

Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos

estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir

Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo

que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a

fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu

porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga

de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma

forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal

Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna

quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam

um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma

vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos

Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus

companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute

havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou

para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder

corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou

de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas

imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele

baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida

Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em

casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um

regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho

Posiacutedon ouviu a prece do filho

Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o

restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus

sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os

alegrava terem escapado agrave morte

162

Canto X

Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos

enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a

respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e

em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para

Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento

responsaacutevel por levar os homens de volta

Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia

eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e

enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando

da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros

resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo

escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca

levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e

perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas

Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses

abominavam

Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo

chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram

pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para

investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que

descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e

de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se

depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo

chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de

Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram

depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido

com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos

barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os

Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso

Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a

remar fugindo

163

Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu

seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de

Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros

que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de

Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os

homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo

os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O

primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os

demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem

desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens

adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da

proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas

de modo que eles conservassem a inteligecircncia

Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os

companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que

Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de

ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu

que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho

para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no

iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu

tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos

como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria

livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu

comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe

lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca

ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele

natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem

disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais

nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva

mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem

Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe

ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante

dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela

164

adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que

Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que

criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus

aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse

solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram

ao magniacutefico leito

Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado

pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o

daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia

sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em

porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho

Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma

humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo

foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se

comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois

voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco

para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram

imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em

animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim

como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou

decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo

Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou

com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca

Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se

reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne

abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de

Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o

tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi

suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia

prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa

contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes

de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para

consultar o adivinho Tireacutesias

165

Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da

deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal

empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do

vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio

Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali

Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam

o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava

ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e

Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e

mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e

invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu

palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas

a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais

esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um

carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na

direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu

deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e

orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez

teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe

revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca

Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a

respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a

natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute

Canto XI

O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano

aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do

rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram

as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo

as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois

farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor

novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais

esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces

Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu

166

As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos

solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de

sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus

companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando

aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu

glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse

Tireacutesias

A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara

sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens

tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome

de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave

ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu

prometeu atender aos desejos de Elpenor

Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que

ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo

deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que

apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar

despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar

do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade

Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele

esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno

muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho

Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que

conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando

chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de

Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu

regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens

saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse

escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito

tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria

tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu

conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por

meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir

167

ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com

um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar

um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e

sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu

morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes

ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o

reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee

chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades

Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho

Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu

que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que

ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde

que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai

Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que

Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do

filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo

triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do

glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um

grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu

usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua

identidade e ascendecircncia

Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os

deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu

que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem

e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que

apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em

torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de

Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo

pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte

Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante

de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que

Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este

oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por

168

causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o

marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal

destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem

bom e ambos ficariam felizes com seu regresso

Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e

de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso

Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias

esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu

acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles

que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora

exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a

proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo

pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho

Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas

ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora

satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-

se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele

quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo

ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos

deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de

Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e

sem responder voltou ao Eacuterebo

Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres

devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo

de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a

aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso

rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia

com que o rochedo rolasse montanha abaixo

Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com

Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses

apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou

com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se

encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a

169

de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave

ajuda de Hermes e Atenaacute

Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de

Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus

companheiros comeccedilou a remar para longe dali

Canto XII

Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde

sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-

los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas

mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou

para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os

homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes

indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades

comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas

sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de

se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar

os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de

modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos

haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu

deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes

atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo

que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em

decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia

uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava

terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente

longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de

dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam

para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria

uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem

os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor

opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o

monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo

170

Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por

Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez

Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda

assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse

perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens

conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio

Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave

Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave

Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o

barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria

chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho

Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados

pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos

companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam

se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde

que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus

companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando

continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se

puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo

que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia

mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe

soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e

soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias

Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme

Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a

continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os

homens obedeceram

Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a

respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do

navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das

recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave

proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e

ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado

171

estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a

vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros

temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham

os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior

experiecircncia da viagem inteira

Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do

deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o

que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e

da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para

longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo

permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a

tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que

seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que

encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas

por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia

comeram e dormiram

Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles

tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas

vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os

homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse

nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens

tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de

orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar

suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso

Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais

triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as

vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A

tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o

barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o

por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez

que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia

Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo

para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse

172

atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente

Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre

a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora

Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde

demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os

couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos

Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as

melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando

Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou

a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na

cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco

projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou

a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No

entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e

por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e

Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a

quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e

seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu

passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de

Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu

Canto XIII

Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes

ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para

conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos

presentes

Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos

roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a

casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo

Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir

Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse

aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca

Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo

que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto

173

conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo

assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele

enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo

inteligente quanto os deuses

Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram

na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido

na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara

graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia

Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees

afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era

respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon

se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que

este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com

facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu

havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar

e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o

castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito

No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios

no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas

Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o

numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia

cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez

O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute

havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar

os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de

touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo

Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria

terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que

tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos

pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a

lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou

de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele

174

se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras

dos aqueus

O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se

dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia

Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e

repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria

terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais

persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e

astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que

naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os

problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar

calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido

Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que

ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que

nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o

sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios

quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu

pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo

Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou

que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem

na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto

queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que

Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa

por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava

guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo

Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode

reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave

cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma

gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos

apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute

trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente

desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo

promessas de casamento que natildeo queria cumprir

175

Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu

palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa

Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse

durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em

Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que

acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria

irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a

primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente

bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu

sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia

a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai

Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse

sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo

era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu

natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade

Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes

estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este

plano estava fadado ao fracasso

Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho

mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de

Telecircmaco

Canto XIV

Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim

de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do

porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o

forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito

sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo

Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e

bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles

deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo

conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do

rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma

176

quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens

juntos

Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava

vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo

tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo

entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos

em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-

lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca

se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta

Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama

para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que

quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em

seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava

a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se

deparar com a fidelidade do porqueiro

Canto XV

Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para

Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na

empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa

Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se

casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o

consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo

que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando

mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes

de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que

chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim

de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com

Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e

depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria

Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros

homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho

para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e

quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou

177

dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram

extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de

Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram

dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro

Canto XVI

Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos

cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu

terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo

porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de

Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido

Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao

rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a

refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo

ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira

Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o

priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para

defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em

condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o

velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho

Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com

os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo

Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela

situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia

chegado satildeo e salvo

Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher

fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua

verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim

aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto

Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia

se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu

Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e

perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco

poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem

178

apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de

Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar

Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou

que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora

sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu

perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho

dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre

ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um

empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute

e Zeus como aliados

Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria

retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo

mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu

deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um

de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito

da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir

quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis

Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada

de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido

um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter

dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que

espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles

retornou

Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam

cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se

concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que

eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato

de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram

agrave casa de Odisseu

Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez

que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-

se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses

e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco

179

prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele

mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus

aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse

Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho

mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse

Canto XVII

Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo

para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que

chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope

emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-

vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um

forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos

Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem

Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu

Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha

da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta

de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a

Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas

louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse

verdadeiro

Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho

encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores

cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando

Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei

de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu

caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que

seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam

um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de

Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou

se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou

com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida

Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez

180

Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se

aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao

mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se

aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de

descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se

aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente

Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na

cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda

praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco

Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava

sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo

que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado

Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo

dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o

mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha

estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a

ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes

O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila

no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele

e Odisseu haviam sofrido muito juntos

Canto XVIII

Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou

de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando

e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se

com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos

estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para

jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade

Telecircmaco incentivou a refrega

Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes

surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente

Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes

estes o cumprimentaram divertidos

181

Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos

pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao

filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho

e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas

Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza

havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e

Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens

Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela

caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a

aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se

aproximaram e Peneacutelope acordou

A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se

dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes

maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco

elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo

comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse

retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem

quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um

segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira

como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo

dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa

porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem

presentes seduzia-os ainda mais

Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os

presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los

poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse

escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali

permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu

iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e

mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa

Canto XIX

Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou

o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia

182

e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto

enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam

estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se

puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir

dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias

dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu

maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes

As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e

bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava

importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia

Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito

se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso

ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em

seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a

fim de que pudesse interrogaacute-lo

Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta

iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso

mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo

muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que

aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar

de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma

mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim

que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de

modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum

pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do

quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da

artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora

precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava

infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia

do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo

lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu

que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a

183

tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para

natildeo revelar sua verdadeira identidade

O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu

recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras

riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-

lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e

que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele

depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem

banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha

Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento

Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a

lembrava muito de Odisseu

No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a

cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar

Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo

Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que

tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho

de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope

entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a

forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles

Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e

retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria

com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado

incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo

que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu

arco

Canto XX

Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em

como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a

aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela

preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela

para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce

sonho se apossasse de Odisseu

184

Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa

proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um

homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus

pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu

Zeus mandou trovotildees

Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem

uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e

perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu

respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem

aqueles homens abusados

Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as

cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo

que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve

de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro

Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do

cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo

afirmou que Odisseu logo retornaria

Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo

uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na

direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo

interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram

Canto XXI

Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos

pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde

estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se

dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se

casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar

com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o

porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem

cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem

distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da

declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e

incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas

185

O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo

conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem

sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo

Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os

seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele

voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua

identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que

dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se

emocionaram ao reconhecer o amo

Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos

pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe

o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo

cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para

garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes

Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e

lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por

sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte

oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a

disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento

Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o

arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo

reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o

arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa

forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir

Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para

entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus

aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa

com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou

Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para

todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a

sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos

e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se

186

alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo

disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas

Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os

pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua

distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar

suas armas

Canto XXII

Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo

apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha

Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e

escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de

morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem

estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali

para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem

se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens

Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma

forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda

aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora

o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar

formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu

respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria

vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a

lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas

nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por

Odisseu

Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido

nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo

de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo

para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos

pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro

homens estavam devidamente protegidos para a luta

Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum

Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu

187

escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um

dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar

ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio

estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a

fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e

assim Melacircntio saiu para buscaacute-las

Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se

armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma

serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem

admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito

Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para

buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que

Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna

A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio

contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo

proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros

querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas

ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr

fim na refrega

Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que

Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis

comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que

ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes

Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio

doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as

trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu

ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio

Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais

dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto

Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia

que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria

avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu

rei

188

Canto XXIII

Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em

casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que

Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que

Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber

como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia

natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos

corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele

soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia

finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora

proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso

Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope

foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por

algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope

poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter

certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de

Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes

que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse

preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a

respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope

finalmente havia se casado novamente

Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a

maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu

legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia

seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse

mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que

entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para

que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo

podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma

oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu

que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou

o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar

189

Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar

no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de

acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de

Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a

um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos

demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu

morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de

sua famiacutelia

O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois

continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta

de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia

passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas

riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes

Canto XXIV

Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se

lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se

depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon

Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o

que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo

tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e

contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela

tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes

descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e

do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que

levaria agrave desgraccedila dos pretendentes

Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a

prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai

na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele

estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem

era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu

e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho

e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e

disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-

190

se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa

abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes

exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz

na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai

quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a

casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido

por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se

juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu

reverenciaram-no

Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se

juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos

Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou

a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta

Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou

algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes

estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso

Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver

a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco

logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes

fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos

pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A

fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que

Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre

eles

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 OBJETIVOS
    • 21 OBJETIVO GERAL
    • 22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
      • 3 MEacuteTODO
      • 4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
        • 41 EM JUNG
        • 42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
        • 43 OUTROS AUTORES
          • 5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
            • 51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
              • 6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
                • 63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
                  • 631 O MITO DE POSIacuteDON
                  • 632 O MITO DE ATENAacute
                  • 633 O MITO DE HERMES
                      • 7 A VIDA DE ULISSES
                        • 71 ORIGEM
                        • 72 TROIA
                        • 73 RETORNO A IacuteTACA
                          • 8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
                            • 81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
                            • 82 ENCONTRO COM POLIFEMO
                            • 83 ENCONTRO COM A CIRCE
                            • 84 DESCIDA AO HADES
                            • 85 ENCONTRO COM CALIPSO
                            • 86 OS FEAacuteCIOS
                            • 87 IacuteTACA
                            • 88 DISCUSSAtildeO
                              • 9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                • REFEREcircNCIAS
                                • APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP … · 2019. 9. 26. · Também podemos observar estas figuras na poesia, religião e mitologia. Jung (2011 [1939]) explica

_______________________________________Profo Dr Durval Luiz de Faria

_______________________________________Profa Dra Paula Guimaratildees

______________________________________Profa Dra Maria Teresa Nappi Moreno

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip

Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo

Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho

Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida

Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador

Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees

Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos

RESUMO

A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento

Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo

ABSTRACT

Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling

Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO8

2 OBJETIVOS14

21 OBJETIVO GERAL14

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14

3 MEacuteTODO15

4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19

41 EM JUNG19

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21

43 OUTROS AUTORES22

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95

631 O MITO DE POSIacuteDON95

632 O MITO DE ATENAacute97

633 O MITO DE HERMES99

7 A VIDA DE ULISSES103

71 ORIGEM103

72 TROIA107

73 RETORNO A IacuteTACA113

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124

82 ENCONTRO COM POLIFEMO126

83 ENCONTRO COM A CIRCE127

84 DESCIDA AO HADES128

85 ENCONTRO COM CALIPSO130

86 OS FEAacuteCIOS131

87 IacuteTACA133

88 DISCUSSAtildeO135

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137

REFEREcircNCIAS145

APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149

Its My LifeBon Jovi (2000)

This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed

I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice

When I shout it out loud

(Refratildeo)Its my life

Its now or neverI aint gonna live forever

I just want to live while Im alive(Its my life)

My heart is like an open highwayLike Frankie said

I did it my wayI just wanna live while Im alive

Its my life

This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down

Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky

Got to make your owns breaks (Refratildeo)

Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1

1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)

8

1 INTRODUCcedilAtildeO

Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)

Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras

aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi

um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos

estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo

de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute

um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da

psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova

singularidade

O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia

permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e

os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus

pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles

siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este

fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era

composto por uma camada pessoal e outra coletiva

O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por

tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou

esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as

formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma

imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute

compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as

experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um

lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa

conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor

Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo

9

(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)

Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia

Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011

[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as

fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de

consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam

isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na

consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel

O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os

conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O

processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung

(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para

compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute

que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no

inconsciente novamente

Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da

vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos

atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos

aprofundaremos neste periacuteodo da vida

Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes

de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa

sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual

ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente

estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito

ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel

O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o

equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a

atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas

a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida

estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia

agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise

psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente

10

Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens

inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como

sintomas psicopatoloacutegicos e

Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)

O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta

conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para

ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo

como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao

utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a

consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta

forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e

obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia

Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante

significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica

que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo

atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a

qualidade de vida

Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia

que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva

do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento

e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais

expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo

que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis

Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem

recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz

sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela

11

narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois

dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste

conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito

Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da

forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem

arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por

isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a

psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas

que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a

Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para

casa apoacutes a guerra de Troia

Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio

sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta

tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a

provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar

situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo

De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais

influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas

passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por

meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a

passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor

de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura

dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses

Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem

um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual

surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade

Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama

Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um

aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia

Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras

seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria

transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)

2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome

12

Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original

esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes

lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto

particular

A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo

entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se

concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as

pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero

relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo

como protagonistas pelo menos como coadjuvantes

Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa

cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-

junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo

conforme descrito por Jung

Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem

ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por

meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com

Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de

sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo

A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo

do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que

Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre

qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma

essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter

arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)

A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos

ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos

permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo

uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e

perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo

Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5

anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos

deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me

13

levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos

preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio

chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano

Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela

forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se

restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito

vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem

cursos ministrados por analistas ali formados

Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro

capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a

anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos

do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as

principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a

importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e

psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia

Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua

morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da

psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de

Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-

junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados

em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo

apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um

resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia

14

2 OBJETIVOS

21 OBJETIVO GERAL

Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO

Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos

15

3 MEacuteTODO

Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito

de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano

Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica

neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)

Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram

mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia

Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga

(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a

psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico

Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a

pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo

de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos

junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)

Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram

consultadas para este trabalho

No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR

odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea

NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam

relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou

Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram

relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de

Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)

Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus

OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram

encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros

eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros

ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo

de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos

16

interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as

pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)

A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND

individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology

resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo

porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como

embasamento teoacuterico

Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope

AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra

de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da

personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente

trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam

disponiacuteveis

A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer

no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam

relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo

De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND

(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em

nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema

que natildeo acrescentava ao nosso tema

Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer

quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente

nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise

Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo

geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me

surpreendeu bastante

As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora

as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos

portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de

individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em

encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de

17

entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia

fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria

Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O

feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese

de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes

Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do

relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no

presente trabalho

A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a

maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise

das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi

consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo

da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino

em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes

Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante

abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se

transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e

mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no

acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso

todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei

que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo

Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho

uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo

direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares

sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi

(2015a e 2015b)

O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do

poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas

tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um

resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do

trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da

metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei

que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu

18

nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e

portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a

Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que

eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema

(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no

momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que

eu considero podemos ver metaforizados no mito)

Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses

que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada

Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de

outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise

19

4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA

41 EM JUNG

A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de

estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua

produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da

psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago

este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria

Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da

Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar

sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais

frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica

No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma

minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa

sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da

amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas

Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para

fazer a amplificaccedilatildeo

Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o

segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma

viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a

C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei

Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a

respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente

apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])

utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute

de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas

queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que

cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele

reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua

anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona

novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de

20

sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito

do nosso heroacutei

No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e

interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido

produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito

brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para

poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011

[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que

menciona o consumo de sangue de bodes

No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses

de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou

didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce

Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas

em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum

comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu

No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e

inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos

mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele

explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo

subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses

faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias

De acordo com Jung

O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)

O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute

presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro

(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que

estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que

este monstro habite as aacuteguas dos oceanos

A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os

compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG

21

2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio

de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam

vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e

filoacutesofos

O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se

preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para

o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de

forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca

os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos

relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011

[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca

em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma

forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores

confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])

apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem

que os sonhos satildeo significativos

No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente

Para ele

O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)

Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a

peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que

improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu

significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado

psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS

Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para

estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e

a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de

22

planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima

do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)

Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma

descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da

perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de

complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto

as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse

tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e

que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso

para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham

caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade

Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte

ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia

analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso

e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise

da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua

eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo

famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o

motivo de seu sucesso

43 OUTROS AUTORES

Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a

morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do

poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma

definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel

pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc

Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria

se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta

tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga

(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por

meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por

exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou

quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo

23

pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA

2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do

pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope

De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido

considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos

informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a

morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes

provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento

O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que

aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses

desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da

fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no

Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida

(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido

antes de morrer

Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento

uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria

o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o

heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes

vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens

morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)

Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)

destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e

nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder

a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e

Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a

fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para

natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos

deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu

turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar

3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres

mueren una uacutenica vezrdquo

24

em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o

heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo

Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o

morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande

habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por

parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o

motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o

fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo

muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma

expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria

morrer e encontrar o destino

Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia

grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem

relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do

prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera

que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa

accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo

Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela

decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem

Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade

Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do

intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo

divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina

na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida

(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar

liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz

de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do

paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o

sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e

atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central

uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do

domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude

e portanto felicidade

25

Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma

deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um

comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o

sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio

o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado

com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo

incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores

Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a

fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se

por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo

capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo

essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de

sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes

responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas

o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino

E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como

a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de

Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia

das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos

Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito

traacutegico grego

Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a

Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue

escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de

que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu

ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses

Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia

disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece

acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com

todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu

muito suporte de Atenaacute

Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na

vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute

26

que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da

ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses

Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta

atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que

poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia

ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso

antes dele) mas insistiu em arriscar

Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um

mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a

caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo

inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno

extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou

exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu

palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute

momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa

Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela

realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o

marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem

construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o

quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante

acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido

A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)

Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua

hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria

sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra

especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na

realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por

Homero o mito de Er nem teria sido criado

27

O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas

ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute

passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a

escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e

satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo

sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo

(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos

deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como

uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as

afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os

mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta

com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas

Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela

existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar

Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira

como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo

teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel

porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter

nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse

um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida

virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei

considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua

grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem

de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser

ardiloso caso necessaacuterio

Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do

diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades

a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas

diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar

a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve

nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era

respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais

mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que

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preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e

ter influecircncia entre os mortos

Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e

Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que

inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens

Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora

desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria

aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da

qual Aquiles gozava agora morto

Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da

inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve

oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a

opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no

modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera

que a Odisseia

(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)

Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida

de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na

Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que

se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na

verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a

obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas

envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que

diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto

Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses

morreria velho rico e cercado de seu povo

5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama

6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas

29

Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a

Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade

de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na

epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele

mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa

Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais

conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua

identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se

chama Ningueacutem

Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute

estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o

nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor

Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado

de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno

de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio

Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)

Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na

Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a

respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No

entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente

sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se

emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas

andanccedilas

Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua

identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou

seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do

heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo

existe mais que natildeo vive mais

Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e

comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou

30

seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo

que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado

intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez

que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe

o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em

que recupera sua identidade e sua histoacuteria

Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA

partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em

que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando

da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68

grifo do autor)

Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este

momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa

cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre

a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar

bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar

para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo

31

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO

Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)

Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir

brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a

consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos

autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o

centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute

composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui

ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de

apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e

mulheres

Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo

compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de

si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por

uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos

ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos

processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da

observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e

opiniotildees de uma pessoa)

O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui

funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de

capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando

um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose

provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)

Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente

tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um

instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da

personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o

indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase

inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece

32

Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do

segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir

a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como

(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)

Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um

afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo

Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas

dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo

possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de

forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute

povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos

dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e

considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique

Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas

perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque

a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o

indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de

constelaccedilatildeo do complexo

Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor

demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o

primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por

natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu

do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um

ego para ter consciecircncia deles

Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo

relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e

mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos

Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de

modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou

33

grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia

O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim

mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees

sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma

Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e

eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade

entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute

sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode

considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que

remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam

frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees

por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o

Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira

autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea

Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na

organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram

quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de

Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com

a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se

as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que

Jung denominou processo de individuaccedilatildeo

A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas

(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de

uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se

estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque

assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios

situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois

voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os

sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador

poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em

seus conteuacutedos oniacutericos

Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens

arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos

34

fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia

tal como a entendemos De fato para Jung

(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)

Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto

de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os

processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute

capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos

uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo

significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia

os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito

entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este

movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo

que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e

inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador

Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila

entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como

depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da

morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e

elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na

imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que

comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta

eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a

depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua

independecircncia

35

Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por

meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o

qual natildeo haacute uma foacutermula

Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por

meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que

depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que

este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um

esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem

Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)

Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos

definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades

somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo

com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que

haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo

mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo

De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende

de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a

funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito

de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso

depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo

Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que

menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a

nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo

quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo

inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas

caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma

funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua

espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre

entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011

36

[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na

condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior

(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)

O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma

espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer

que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer

sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer

sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que

o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender

as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que

estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que

natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter

causado nenhum resultado

Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca

complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos

acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando

chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute

uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um

grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila

O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez

que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e

significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum

cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se

de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela

psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por

exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando

Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a

separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um

caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques

de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba

37

exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave

separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para

seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam

ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute

buscando

Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a

reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo

doloroso de integraccedilatildeo de opostos

Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas

polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de

sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer

forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos

cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta

maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades

conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)

Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico

que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o

indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o

define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a

individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em

sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se

distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo

devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo

uacutenica de qualidades universais

Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade

dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir

ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo

egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a

autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu

ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo

tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo

7 O Self eacute o si-mesmo

38

depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do

ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado

Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da

necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a

apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em

vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro

que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo

se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer

Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self

que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos

estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente

buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p

216)

Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme

transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma

natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio

de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos

recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num

trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da

persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher

Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem

a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma

imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele

desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto

Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do

indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente

agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao

indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma

vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que

o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O

fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha

consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica

sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as

39

pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo

que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se

desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu

papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias

obsessivas

A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que

significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da

persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a

individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a

persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute

um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o

individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa

doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e

coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para

que a alma possa se desenvolver

Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)

Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos

arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor

ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na

consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta

que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante

a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)

Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em

noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este

estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto

nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a

ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein

explica que isso acontece porque no meio da vida

40

() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)

Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar

entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita

pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo

necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos

podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na

adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-

idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar

outra transformaccedilatildeo

Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos

nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as

pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um

significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social

O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico

o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute

justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos

nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas

acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como

sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem

uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo

a seu respeito

Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos

psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for

desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que

natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua

consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial

Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque

nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos

nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas

e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo

41

configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a

experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas

Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a

individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar

de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da

vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo

determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o

lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se

esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta

tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo

a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam

contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida

Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que

tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase

anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem

da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e

perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da

persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos

separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se

diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma

desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento

para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica

Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja

um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora

seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado

por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se

libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar

livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar

o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento

Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da

nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a

reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as

mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva

42

relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos

confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela

definitivamente

Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do

que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que

engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos

nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido

ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a

estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra

A autora explica que

A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)

Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no

meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que

fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora

estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo

podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos

Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo

necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo

temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo

reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que

vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro

relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra

apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em

uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim

vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem

negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado

43

Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente

para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por

Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self

que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self

possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos

proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas

que ele ainda precisa cumprir

Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem

os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo

e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-

se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem

antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos

estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de

individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas

singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa

finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas

condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na

polaridade divina

Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego

dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave

proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como

inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a

autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da

personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da

proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos

psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem

fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012

p 56)

Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma

simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato

Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma

experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se

fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os

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iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os

impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a

sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando

orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar

aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-

se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes

Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo

simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da

nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o

que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um

aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo

de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos

sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu

respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los

Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos

nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo

interna

Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja

atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo

por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de

forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar

com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila

de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que

tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos

levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees

Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer

esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se

separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem

em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes

reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo

e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o

que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus

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Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o

resultado da transiccedilatildeo do meio da vida

Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos

dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente

com anima e animus Sobre a anima Jung explica que

A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)

O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da

persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o

exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a

anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias

entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode

ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre

nossa vida exterior

De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a

anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino

relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)

A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma

representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos

germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os

homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que

pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada

homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na

forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo

O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da

mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A

influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista

sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os

outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa

da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a

autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a

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se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso

ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima

como uma forccedila interior

Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em

termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do

homem quando ele

(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)

O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de

individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que

o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo

se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo

inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self

Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem

subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do

mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro

Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura

equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem

a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus

como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum

dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos

atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles

Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)

O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora

opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute

que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta

47

como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo

inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos

guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos

razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung

(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de

preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado

Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von

Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui

aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa

coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a

anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON

FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo

perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente

revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos

sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino

um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute

simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute

representando um aspecto mais coletivo do que pessoal

Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus

estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca

satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam

Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas

prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo

Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos

aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que

constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo

desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento

da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo

projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes

Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos

integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia

Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o

inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute

48

bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma

postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim

esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes

A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando

sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias

inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer

objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do

inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de

consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente

percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila

da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia

por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias

A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung

(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e

se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam

os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo

transcendente

O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a

pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de

maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os

conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se

diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade

Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas

necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros

provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia

consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel

para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente

com o que eacute

Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute

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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)

Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute

preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de

permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu

consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute

consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter

demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo

Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e

nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a

conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e

que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando

nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para

expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para

reconhecer sua forccedila superior

A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011

[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o

eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim

Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa

extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a

individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a

consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos

inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute

somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos

com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir

um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior

Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica

uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se

esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a

infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo

revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente

o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter

sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma

50

forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser

um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo

exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar

nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que

acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que

essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo

A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam

a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos

internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)

diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo

vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor

A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for

perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses

casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a

apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como

uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais

comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma

mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego

Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um

sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro

delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um

significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais

imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais

superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos

atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ

2008b p219)

A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da

consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma

inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber

sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de

fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e

entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem

ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba

51

crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o

exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as

cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela

este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com

o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece

mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto

a ajudaacute-lo

Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este

momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a

magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito

difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa

sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada

servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte

efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com

humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso

E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e

extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma

ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos

voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais

A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e

longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com

eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico

representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores

como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio

guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica

do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus

grego Hermes

A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou

uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao

mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo

podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como

uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de

renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual

52

Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um

jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando

natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo

como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute

onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta

caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que

envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa

segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita

soluccedilotildees criativas para seus conflitos

A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo

sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar

que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o

autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a

presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma

situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida

Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam

escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo

de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a

experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a

experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e

permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as

pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito

semelhante agrave dos sonhos

O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente

territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de

Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e

assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade

suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de

alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e

capacidades

Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no

limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes

8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica

53

mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os

acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois

estamos emocionalmente muito sensiacuteveis

Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no

inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos

fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego

o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar

ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora

do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o

autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de

Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia

Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo

relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque

especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees

mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos

do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala

Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute

orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca

poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus

instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses

siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela

Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)

A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas

culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da

criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do

ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego

se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior

54

Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como

bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais

relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma

aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de

alguma forma

Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do

self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b

p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua

riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute

comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma

representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito

De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de

um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que

justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela

explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como

um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma

totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as

manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo

espaccedilo-tempo conhecido por noacutes

Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung

que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e

externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute

encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de

pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma

coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de

sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo

entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos

sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de

individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o

indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as

coincidecircncias significativas

Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida

seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso

55

mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso

significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que

desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu

processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida

Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do

inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos

positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute

especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as

pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como

exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles

que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com

a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar

grande perigo para o ego

A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo

podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue

funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees

Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil

Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e

um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta

obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros

querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para

conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar

eventualmente

Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das

pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos

provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social

Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo

indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com

determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade

eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos

Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees

com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos

56

de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo

sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou

No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois

haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou

social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto

social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles

se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de

duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um

aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre

aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o

que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com

as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a

respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E

uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas

projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma

interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas

Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se

encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para

Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado

transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de

interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo

Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta

mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou

natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e

de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de

partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da

maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos

partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos

estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece

O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado

a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por

estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa

justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre

57

as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode

levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por

pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo

de Hermes no coletivo

Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia

a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos

formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os

outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo

compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas

que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o

processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por

meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em

que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados

pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees

negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao

nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social

Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres

motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e

seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos

o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o

processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua

individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo

de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo

contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma

muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se

tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora

utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso

desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna

simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)

Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que

A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para

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o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)

Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio

da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo

extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs

fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que

costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem

da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais

seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute

sua atitude psicoloacutegica

Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e

encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute

consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma

consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em

fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por

sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave

negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes

Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em

objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo

eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser

considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)

considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a

experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a

respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos

planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de

antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser

sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si

Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou

mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a

diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem

cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico

59

passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e

atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo

Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal

um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se

restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida

dada sua dimensatildeo sincrocircnica

O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se

associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o

fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao

limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees

do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste

caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz

essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a

conturbaccedilatildeo desta fase da vida

Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao

tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o

tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao

seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia

cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a

vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica

que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no

meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep

separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria

identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees

experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se

confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o

esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele

ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta

Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela

tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo

conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia

Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por

Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O

60

autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e

conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite

que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem

possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo

liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se

descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar

relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem

menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado

energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma

ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos

reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)

Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade

se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade

de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta

com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida

Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo

de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo

constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo

faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele

mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas

defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve

demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e

impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo

liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente

Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se

torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o

futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade

valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra

livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve

mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a

situaccedilatildeo

61

A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)

Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um

comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a

regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais

intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein

(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da

vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem

tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na

infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a

qualquer um de noacutesrdquo

Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo

psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma

etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece

uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a

identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma

reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma

Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este

processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto

fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra

dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em

padrotildees antigos e sem sentido

Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de

transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos

dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram

reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente

liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais

de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave

nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos

pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo

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Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio

das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas

em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter

conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os

outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e

assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos

coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo

de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a

autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com

aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de

tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas

dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em

siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e

o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo

A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com

siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na

imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas

experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar

consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar

do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia

liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente

Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por

Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e

de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta

circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com

outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da

anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser

cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a

ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante

dos ganhos psiacutequicos posteriores

Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo

preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao

mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta

63

forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado

de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao

entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida

durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo

do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A

constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por

completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que

ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um

elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o

lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do

dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)

Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo

dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila

constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo

do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente

psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase

liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja

eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute

encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar

mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e

estabilidade

Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a

presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus

sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo

estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa

vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos

espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros

eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no

meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto

executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de

escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes

Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente

vista como estaacutevel e tradicional

64

(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)

Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que

prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute

exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da

vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o

autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se

mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai

depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo

que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico

Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos

inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em

qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma

experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso

queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo

liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para

a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em

nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um

resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO

O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento

entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as

dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses

com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a

inuacutemeros pretendentes

Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de

se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de

desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em

outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia

se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da

aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos

65

cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da

personalidade dos filhos

Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como

instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que

tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as

necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento

Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do

outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por

outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos

independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta

realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz

particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal

Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme

afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que

lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca

poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos

que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que

Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)

Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual

motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo

complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar

bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar

a vida do casal

O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias

estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios

de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo

caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente

dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento

66

Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por

Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente

nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de

elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande

ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e

conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais

satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo

Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento

constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa

individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem

continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus

potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o

casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo

natildeo eacute o uacutenico

Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre

simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus

sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo

o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos

arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos

juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas

que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos

inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos

cocircnjuges

Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o

fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou

seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro

ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca

desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este

desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo

desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece

ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma

uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute

67

proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na

alteridade que seria o principal sentido do casamento

Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a

necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima

da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a

humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que

Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)

O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da

personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)

afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma

criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva

quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial

criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o

siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e

pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de

confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior

Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o

casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento

aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder

uma sombra consideraacutevel

Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute

tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute

uma caracteriacutestica humana

Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas

histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o

final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris

enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno

de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua

vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte

anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios

68

pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses

voltaria para casa ou natildeo

Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um

triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto

De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato

de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo

Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida

dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se

compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la

transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES

2014 p 59)

Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro

mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a

possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira

eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo

em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro

Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao

nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz

Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)

Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a

ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer

uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso

Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica

constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera

improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da

pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o

tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros

As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si

mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer

em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas

69

Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela

traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos

arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees

De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento

tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois

expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado

e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma

pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a

essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo

oacutebvios nem tatildeo imediatos

A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que

Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)

Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes

de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode

proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum

que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se

conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as

eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo

de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus

complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de

honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os

parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas

continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento

Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se

responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis

caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o

indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu

redor traindo ou sendo traiacutedo

70

Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-

se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro

entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu

perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo

A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)

A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber

que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)

destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute

possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser

fiel a si mesmo

De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando

simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa

estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu

animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a

autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor

Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na

separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc

da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se

tentar obter um relacionamento psicoloacutegico

De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o

indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo

pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por

meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e

possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem

relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros

71

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao

mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)

Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais

importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito

apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e

em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente

Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os

mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas

Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo

que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os

temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar

fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e

culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos

perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja

como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico

costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees

livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)

Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores

entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de

humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p

15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas

Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos

entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes

Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens

mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a

mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder

simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje

mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa

cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo

ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias

transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas

72

passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma

estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas

Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da

associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no

quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do

caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original

utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung

como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)

Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do

conceito de inconsciente coletivo

() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)

De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento

ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira

e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida

Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no

inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar

se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a

maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo

psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente

conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas

ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma

expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo

de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada

para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o

estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica

Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um

deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que

um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de

vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus

73

relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades

vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as

possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos

pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para

aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam

Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos

trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz

sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso

siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo

precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou

transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o

mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final

Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro

podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados

Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como

ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de

nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material

analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a

respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta

forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever

futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e

LIMA 2006 p 56)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico

conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers

os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o

paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto

sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso

nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores

consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa

74

se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves

estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao

estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias

divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo

arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela

harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)

Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o

heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente

humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos

adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim

porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que

podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que

escolhemos ser a partir de entatildeo

De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo

da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem

seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute

passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a

cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash

simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra

Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que

A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)

Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas

figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel

perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se

estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas

entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da

nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades

fragmentaacuterias

75

Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou

demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua

capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas

atitudes

Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de

um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a

dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a

nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou

energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por

isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se

soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas

psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que

tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)

Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se

manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a

doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se

soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram

reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento

A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta

precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado

com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar

impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si

mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo

sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um

arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire

caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender

fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade

da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso

Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos

leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles

influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo

temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo

conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein

76

(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos

sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo

liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e

atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que

vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram

rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que

foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo

Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da

psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as

religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida

Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus

mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma

vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus

das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na

alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas

no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute

relacionado a ele

Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de

acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade

sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes

das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves

acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de

tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da

personalidade

Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem

confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus

costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e

misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico

O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia

hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a

ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua

afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de

estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir

77

Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de

Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de

adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute

ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa

ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente

ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do

indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado

O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado

com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar

habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e

qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus

irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades

chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo

caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)

Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)

Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute

por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees

Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para

concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso

quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar

com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e

para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental

de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo

O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso

e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as

reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica

do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos

inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor

forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante

disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode

78

curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da

psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma

Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do

deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-

idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute

eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise

Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de

Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma

experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social

pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando

transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e

ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita

pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de

que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas

sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel

natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em

periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia

O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar

psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um

de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein

(2007) a presenccedila de Hermes

(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)

Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o

que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer

comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente

existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para

abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus

Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos

sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria

79

experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em

cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma

experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura

Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca

examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento

psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de

socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da

mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou

acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que

respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa

atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles

atraveacutes de mitos

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do

analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa

julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o

analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas

Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova

postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos

satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute

que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo

Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos

que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram

inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua

essecircncia decifrada

No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando

os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas

origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por

exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias

seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o

autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em

diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos

80

Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a

mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por

meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela

depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de

comunicaccedilatildeo com o inconsciente

Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute

fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto

historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e

mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia

claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia

ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do

heroacutei

Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)

O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a

compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela

tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas

impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees

simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de

que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo

principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia

egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo

consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que

o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa

de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa

simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade

9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror

81

Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do

heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a

morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito

pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a

determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia

do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado

momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito

o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da

consciecircncia do homem

Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus

respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-

idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter

ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem

sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo

muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco

branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)

Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto

nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta

sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente

alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus

papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As

imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo

com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as

imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o

quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como

uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10

Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque

pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua

personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de

negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo

10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki

82

constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel

sim encontrar qualidades na sombra

De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung

chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para

atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate

entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como

dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma

por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro

livre do desejo do retorno ao mundo da matildee

O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro

tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e

a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e

demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas

Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado

negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No

entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a

forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que

considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute

prevaleceraacute se integrar a sombra

Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos

procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia

pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas

condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo

arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O

que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego

precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo

conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente

Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei

sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade

desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas

e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente

profundo para poder realizar atos criativos

83

O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de

consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os

egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se

desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade

Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave

consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes

a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que

podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-

sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais

derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo

sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos

sonhos como monstros

Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa

consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto

para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica

que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma

fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees

Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos

igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por

meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados

nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso

de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a

consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como

aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica

humana pode haver essa confusatildeo

O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio

do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de

totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o

relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do

heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas

aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute

problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai

ser uacutetil para si mesmo e para seu meio

84

Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio

eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em

contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte

simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade

temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito

solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro

ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de

totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)

O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais

complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a

passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase

da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo

se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera

conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de

forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos

Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice

clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente

da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo

eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila

possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia

O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias

subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da

mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a

psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam

rituais de iniciaccedilatildeo

Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de

iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso

precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao

contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute

ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para

morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a

11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais

85

finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de

induzir um renascimento simboacutelico

O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a

periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer

doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou

restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio

mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia

Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever

que

A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)

O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do

homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os

conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos

siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo

pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie

de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como

renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom

espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a

anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses

siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute

mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho

sozinho

Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em

nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o

autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que

apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado

psiacutequico permanece o mesmo

86

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA

Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo

aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as

caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto

post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute

relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram

oferecidos aos deuses e aos heroacuteis

Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser

comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou

comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais

diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que

independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem

intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a

medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e

apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as

caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado

sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas

morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino

faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter

sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta

que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de

Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como

modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma

vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso

Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos

disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real

eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute

mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por

dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como

periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto

devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento

daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou

87

num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa

ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores

Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem

ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o

triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras

bem estabelecidos

No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra

(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido

na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades

superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte

da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do

lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter

passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se

destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se

destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe

permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras

dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei

recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte

traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo

(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este

modelo

Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando

honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir

realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o

centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas

seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)

que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante

ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico

ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de

lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da

poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro

Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem

do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por

88

sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com

nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a

semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram

contato entre si

Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de

que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem

na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a

imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor

tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha

(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam

responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia

divina do heroacutei

Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram

poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de

modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem

estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis

tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem

para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados

tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p

25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar

a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao

Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo

O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um

sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou

de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter

facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute

cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de

modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo

A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis

Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o

nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral

e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas

primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por

89

etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo

profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado

Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome

consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto

denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome

Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia

Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome

conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui

energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por

isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo

Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que

estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos

(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo

(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o

ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os

humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino

(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada

vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou

masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando

cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o

Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar

sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos

para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se

dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a

procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem

do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino

Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo

masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por

meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos

mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo

como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do

travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como

uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir

90

para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute

Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia

De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos

motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a

totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo

escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz

alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado

Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a

partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o

heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua

esposa no mito Brandatildeo ressalta que

Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)

O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na

mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica

para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio

cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido

injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias

Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual

popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero

para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se

referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem

qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis

dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do

heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees

depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles

De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava

presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de

91

manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer

sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo

Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo

Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)

O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante

vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram

travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de

diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam

em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta

enquanto os demais homens morrem no anonimato

A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser

considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas

disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a

morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma

das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham

participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e

agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para

as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis

Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor

das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o

ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido

construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele

incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja

reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca

Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com

jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute

assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis

mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um

numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se

submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou

92

para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado

Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de

Ulisses

A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos

ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos

poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em

homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que

estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos

notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada

jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo

de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de

um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em

morte

Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem

estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que

pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma

geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns

heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de

outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um

apecircndice

O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em

conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser

orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou

Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas

heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por

exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os

males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas

podiam tratar ateacute a loucura

O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros

motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou

famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles

ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser

curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel

93

Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar

com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto

para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os

fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de

preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus

concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos

Misteacuterios

Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como

superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos

como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos

O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui

inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe

permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer

tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi

mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de

benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido

Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia

jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um

heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de

Ulisses tambeacutem eacute mencionada

Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a

cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)

como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o

defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem

apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em

outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um

castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo

Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito

relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma

exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda

estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante

da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos

representando o dom da visatildeo interior

94

O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis

conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito

comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um

apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como

adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo

sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por

vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de

familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um

destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do

templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute

caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei

Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste

numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o

uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou

num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros

morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves

vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem

saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia

matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita

Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois

eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As

reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando

durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de

seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que

(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)

Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a

proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o

95

uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem

as energias que alimenta o cosmo

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA

Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes

os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de

Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero

relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder

relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei

631 O MITO DE POSIacuteDON

Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus

derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel

pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente

Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas

geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas

secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de

que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente

Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas

fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas

elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees

Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu

trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a

autora

este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)

Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais

deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo

soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de

96

Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo

deus

Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a

aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao

construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos

desestruturantes

Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que

difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e

portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila

Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon

atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que

emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)

Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas

extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por

exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope

Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos

Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma

Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)

Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte

anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros

97

dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao

expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por

exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro

com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu

enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal

Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro

e agrave proacutepria anima

632 O MITO DE ATENAacute

Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual

Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem

ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar

no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute

estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a

filha

E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o

combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute

eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender

essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram

aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte

para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade

racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)

A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer

pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o

estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como

seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a

possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se

apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a

reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute

passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e

poderoso

Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas

no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute

companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos

98

descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do

espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)

Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de

incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as

coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser

entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)

A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada

em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um

complexo que a deusa elaborou e integrou

Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)

Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se

confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam

ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo

admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo

mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento

Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados

em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A

fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas

provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de

Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado

Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino

Segundo Ribeiro

(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)

99

A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute

profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a

ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada

ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais

633 O MITO DE HERMES

Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)

De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu

chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar

entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade

pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos

deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado

guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles

que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute

atribuiacutedo a Hermes

Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por

Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo

Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus

cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele

havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora

Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este

fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma

necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo

(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um

deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo

Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de

Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele

precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle

100

Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e

astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer

O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois

novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo

Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica

ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra

respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos

Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com

o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora

considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do

instintual para o sagrado

Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes

encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista

(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo

superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num

instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente

Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem

nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo

voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade

Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma

e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute

ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser

colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os

irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus

no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a

partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o

privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o

segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)

Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as

qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)

nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de

presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser

o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom

101

do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado

demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se

apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma

tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta

Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos

pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira

ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia

Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e

informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de

firmar contratosrdquo

Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso

com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute

concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e

mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes

recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas

A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos

como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash

seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a

androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)

Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio

de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes

se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do

movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar

motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens

importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi

fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a

terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia

da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso

nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado

por um casal na Terra como menina escondido de Hera

A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de

destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa

descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem

102

conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute

E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno

de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)

retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o

aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica

Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a

flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira

103

7 A VIDA DE ULISSES

O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)

Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)

Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma

versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram

juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente

coerente

71 ORIGEM

Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como

acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e

Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de

Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que

Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte

Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto

pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade

supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-

rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha

Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de

sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que

enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se

sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que

Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu

negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha

Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse

nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram

surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas

de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-

lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto

o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez

104

Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de

Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era

apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois

pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que

Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era

pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para

comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita

derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila

Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele

ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)

O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a

sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando

para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente

De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de

Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre

os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia

mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo

coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-

ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si

lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)

Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando

Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal

colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo

teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita

gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na

105

Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras

histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis

Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia

de grande temporal

Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)

Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa

Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a

Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos

necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de

Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que

teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-

nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e

Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do

momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria

sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei

Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de

Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito

astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova

botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o

proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou

Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado

agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo

desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel

Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu

106

sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo

nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)

Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e

comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia

na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada

que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do

que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco

acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele

fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia

Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do

rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute

Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis

trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual

mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope

Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras

provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder

espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do

poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas

apoacutes conquistar estes dois feitos

Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade

Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os

pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela

Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe

proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem

era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma

Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da

ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele

simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope

Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este

tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia

do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em

12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela

107

recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio

concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer

forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando

forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a

longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a

fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e

sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)

Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo

corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope

praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o

traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu

apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope

teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde

passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes

descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma

Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de

Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca

adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)

72 TROIA

Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de

Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta

sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o

iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e

Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado

entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim

que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu

Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses

compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo

assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre

os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem

planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a

108

humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de

Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos

Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados

tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma

nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam

igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena

de Troia e outras desgraccedilas

Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia

entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos

homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida

novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava

Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado

Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a

crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o

conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o

bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por

pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida

sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito

Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este

priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de

mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera

ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite

ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de

Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de

conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz

por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu

lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia

Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o

costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo

tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que

os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a

corte natildeo precisava ser feita pessoalmente

109

Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente

de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem

enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que

Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar

com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra

que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais

pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar

a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com

Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o

emblema da fidelidade para todos os tempos

De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez

anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal

real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando

Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia

Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se

aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13

e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-

lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a

participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena

Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto

a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de

Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra

e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa

A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos

para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para

Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se

recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam

que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte

de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de

acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em

Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre

as filhas do rei sob o nome de Pirra

13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor

110

Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas

femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu

entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem

levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas

conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi

quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a

Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu

Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta

uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia

Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em

Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os

ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon

pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que

Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia

sua primogecircnita

Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau

aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo

que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto

Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria

filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas

Menelau o impediu

Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao

acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes

Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois

irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo

instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses

Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris

Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua

astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura

de Teacutelefo ferido por Aquiles

De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios

lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por

111

Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos

Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como

atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon

ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os

aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes

helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que

mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a

Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem

em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes

por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos

poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau

mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez

poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos

natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria

matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor

Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando

astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia

Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de

acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas

como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes

Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra

Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois

de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a

cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes

entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar

os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma

profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio

Escamandro

O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia

isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo

(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o

primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de

Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc

112

Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)

matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover

ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus

Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-

se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma

estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram

inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte

de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada

por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da

guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a

vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu

ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que

perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a

resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax

enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se

tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que

tinha feito envergonhado Aacutejax se matou

Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia

Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e

Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a

Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute

dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e

convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se

agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem

sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax

jaacute havia se suicidado

Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de

Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a

vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o

regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses

ndash devido ao seu machucado fedorento

113

Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e

destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash

mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de

guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada

Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez

anos de guerra Entre eles estava Ulisses

73 RETORNO A IacuteTACA

Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de

partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas

Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu

esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande

borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o

heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o

sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho

delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando

alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os

barcos e fugir

Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo

Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar

pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os

habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a

flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e

fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los

de volta para o navio e ir embora daquele lugar

Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos

ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa

ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos

seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa

caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela

morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada

Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se

mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo

114

que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-

lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho

Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que

Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum

ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando

bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-

los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena

para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga

dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco

Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se

demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a

alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma

vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por

sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo

apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que

ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu

ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse

responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara

Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)

Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito

daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto

e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida

com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu

chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que

fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e

sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho

Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a

ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem

115

passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na

partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos

rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que

deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o

odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos

Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando

Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus

companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que

contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora

foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que

estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de

uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo

De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo

que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana

vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes

canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu

enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras

contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se

encontrava mais distante

O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia

tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens

sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-

los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe

transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara

no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em

vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros

Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu

diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como

escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como

antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa

bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em

porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a

espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo

116

de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de

volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo

com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono

e Nausiacutetoo

Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas

natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa

seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja

sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a

fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em

Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o

restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida

A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor

Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)

Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve

estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe

sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como

passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo

consumir o rebanho de Heacutelio

O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne

humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto

irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim

de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os

ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso

deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer

Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas

para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e

117

ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma

enorme faccedilanha para um mortal

Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros

precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais

raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo

escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que

navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens

Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros

remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a

passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como

viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de

Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram

as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os

homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um

raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara

do banquete

Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes

Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou

apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta

vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando

se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou

laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e

seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela

o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave

ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua

ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem

que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo

(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como

filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela

pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei

voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente

Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual

118

ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a

proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara

seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada

destruindo-a

Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco

destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe

emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que

depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu

e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde

Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia

O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas

companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora

estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu

ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois

o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram

bastante hospitaleiros com o heroacutei

Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o

aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo

de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele

contasse um pouco mais de si

Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)

Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes

sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram

ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com

presentes o barco que levaria Odisseu

Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao

chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente

escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo

responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num

rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga

119

Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de

Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua

ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter

reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que

morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de

Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa

estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto

ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)

Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e

Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os

cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia

se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema

satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de

Peneacutelope

De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou

afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai

ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio

prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma

Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em

Esparta

Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos

anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a

presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos

os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam

chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao

longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a

agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo

os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por

se tornar amante deles

Para Brandatildeo

Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela

120

desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)

Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope

resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo

assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de

dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os

pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da

escolha de outras formas

Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo

quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu

seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses

tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao

mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi

encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles

imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope

Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de

fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora

bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe

faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo

dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que

havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes

de Peneacutelope

Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-

los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu

o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das

saudades que ela sentia do marido

A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses

e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para

banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna

de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees

Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo

Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou

inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que

121

apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o

armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos

doze machados

Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar

sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida

Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo

O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os

pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute

por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o

mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os

alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei

se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim

comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima

Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze

foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a

desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque

maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa

Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade

conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele

mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou

Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)

Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande

maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma

que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com

os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente

Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para

Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da

velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz

respeito agrave fidelidade de Peneacutelope

122

Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para

sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer

um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute

ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez

sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho

Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se

apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria

nascido Poliportes

O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses

apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por

Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na

Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo

de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que

fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-

los

Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria

encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria

ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei

teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade

avanccedilada

A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de

um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a

identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a

devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores

mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia

feito a quem havia matado

Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para

a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo

fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein

(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo

123

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO

Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)

Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por

Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves

transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e

do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos

da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise

do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel

compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro

do modelo junguiano

Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do

heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em

rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo

determinante na Guerra de Troia

Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva

teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a

individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute

estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse

lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do

nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que

Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu

retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando

precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez

anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo

Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora

entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente

que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema

comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso

124

Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os

desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de

ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da

dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia

cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de

individuaccedilatildeo

Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de

acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante

frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de

aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante

Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de

Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir

regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto

de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para

chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de

Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando

por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa

Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de

Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo

(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa

tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute

interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando

sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que

[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)

A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa

viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem

uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este

processo

125

O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em

casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a

individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma

ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e

irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se

compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo

unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o

casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise

Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria

que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o

autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos

isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de

tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo

para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado

chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao

longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as

caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem

representadas pelas figuras dos companheiros

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA

Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que

deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles

por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e

suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente

o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de

Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa

exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho

e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz

(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo

quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e

instabilidade futura

A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos

Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando

126

apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para

embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens

natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um

contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram

durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute

identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial

podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees

de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a

individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de

seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos

sombrios jaacute estaacute comeccedilando

Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado

novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta

para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do

processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto

(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila

Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de

evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos

inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir

82 ENCONTRO COM POLIFEMO

O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de

Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior

da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de

escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar

Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua

identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos

um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o

orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico

Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus

dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de

sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda

afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer

127

Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo

intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo

pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se

analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e

no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro

(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e

inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo

Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de

Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo

praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena

Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que

desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros

conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada

por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas

impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como

momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)

seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso

retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com

Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa

oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um

aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior

Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria

pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos

sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se

manifestar impedindo a continuidade da viagem

Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem

a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase

chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei

adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem

tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de

volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos

deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que

Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono

128

Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os

barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash

o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade

enfrentada

83 ENCONTRO COM A CIRCE

Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que

Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que

desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei

pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu

recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem

sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das

instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses

recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm

filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar

Tireacutesias eacute Circe quem o orienta

Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self

Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de

Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura

do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o

autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se

aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes

Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute

ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem

estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de

uma nova orientaccedilatildeo espiritual

Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de

Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem

da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira

ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um

complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter

demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva

129

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por

feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse

aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por

Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de

Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e

negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao

relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da

anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras

Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de

guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e

inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que

fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute

84 DESCIDA AO HADES

No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas

incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se

aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que

ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus

caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo

para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon

depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando

consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar

Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem

Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho

diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que

simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se

com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha

consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte

simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A

morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o

autoconhecimento

Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de

individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado

130

por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao

movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante

esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens

novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute

pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda

precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do

Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de

morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar

para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas

tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o

remo numa terra onde natildeo se conhece o mar

Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade

traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila

seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso

Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que

se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a

matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto

desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato

podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso

como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste

trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como

fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta

sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer

cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de

Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme

Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses

diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro

O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a

ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute

escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo

sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-

lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte

131

Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho

Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do

navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro

aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com

seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos

entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim

consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem

necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade

do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se

arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o

rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda

luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o

Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco

compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de

seus companheiros

85 ENCONTRO COM CALIPSO

Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha

de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus

companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a

viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam

presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam

Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens

ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e

percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a

mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala

mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do

banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a

vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na

embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos

novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar

seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar

depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei

132

dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode

representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta

esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que

ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho

Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem

tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia

segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis

um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a

figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que

vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que

passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia

Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que

a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando

que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no

caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui

representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos

supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego

natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos

Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por

ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie

Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso

concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa

passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash

assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade

Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso

quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer

prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando

ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de

individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou

esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada

por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente

porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la

133

86 OS FEAacuteCIOS

Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento

Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila

um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino

interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua

armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua

relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas

Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo

por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com

Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus

aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo

levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado

novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer

de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se

desidentificando com a persona

Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois

ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima

integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e

desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia

conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que

Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia

pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash

filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com

humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso

rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a

fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a

primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se

manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho

para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para

guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu

processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do

heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para

confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que

134

foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar

ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se

joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros

com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante

o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra

de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc

chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que

ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo

pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde

educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe

fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes

Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que

satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua

funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu

nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios

presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros

presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais

em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do

Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a

transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas

87 IacuteTACA

Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme

os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute

significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo

prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute

mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua

funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos

inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego

Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela

confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era

Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua

verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente

135

pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao

ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria

morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua

aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua

alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio

repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que

certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute

a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo

mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de

Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar

Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos

pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser

forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e

da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa

amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo

se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope

Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute

simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto

impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses

conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais

arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o

ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos

se vecirc sendo interrogado por ela

Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os

pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que

Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela

exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou

uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve

percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas

um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze

machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de

sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo

verso do poema ela decreta a paz

136

Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal

Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei

de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria

sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender

por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar

outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina

ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver

88 DISCUSSAtildeO

Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de

individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos

que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes

da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas

diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo

do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras

siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute

instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que

observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a

peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia

onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa

peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa

viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo

Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida

ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito

geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como

Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam

diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar

a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e

segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

masculino

Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o

heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo

unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos

137

em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a

ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre

permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que

diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato

com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher

cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias

Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo

pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o

casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o

indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las

no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do

casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na

Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de

estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito

da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do

seu primeiro filho

Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua

famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da

Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele

mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida

ao plano dele

Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente

do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto

como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai

de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria

um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser

raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto

notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de

Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-

o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem

Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo

de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente

disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a

138

filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar

sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de

Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro

tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa

no futuro

Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a

Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela

comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia

Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia

pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa

inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do

heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio

perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi

principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu

pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs

a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito

de seu futuro

14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela

139

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos

entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma

como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do

heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina

Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes

domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi

essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia

profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a

disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver

originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades

Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio

da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e

poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa

questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho

sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este

processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e

agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade

Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a

manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo

Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora

impotildee seu reconhecimento

Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um

indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes

pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua

anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode

invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])

descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a

desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios

a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento

da funccedilatildeo inferior

140

O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de

individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas

Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em

outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade

propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo

estagnados

O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia

analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos

caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat

(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas

individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais

comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em

filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis

Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o

mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro

momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois

seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e

Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung

(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a

esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)

Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua

cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz

(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma

mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos

demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do

processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza

Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como

siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de

individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei

representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham

seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria

pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam

o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da

141

ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei

integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de

Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento

Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self

representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis

como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo

entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As

personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias

Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da

anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados

de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com

Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco

Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede

que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas

expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina

Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o

adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre

quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua

jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses

e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma

embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a

sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando

estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em

Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio

com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele

precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia

Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de

suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves

provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente

o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo

conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina

haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados

142

De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo

dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo

seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma

questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo

de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de

casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo

de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os

pretendentes e defender o seu casamento

Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca

como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de

sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que

Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas

ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de

outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia

comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos

chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma

transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo

Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])

quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima

geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas

opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como

expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem

examinadas em trabalhos futuros

143

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ZUacuteNtildeIGA Pedro C Tapia La muerte em la Odisea de Homero Andamios Ciudad de Meacutexico v 14 n 33 p 23-44 eneroabril 2017 Disponiacutevel em httpwwwscieloorgmxpdfandav14n331870-0063-anda-14-33-00023pdf Acessoem 23 fev 2019

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APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA

Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto

realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no

momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador

decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia

ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero

(2013)

Canto I

A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de

Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca

Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o

poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua

morte

Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam

morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido

chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido

Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses

eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon

Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros

quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia

comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por

Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra

esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto

assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado

pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee

Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus

que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava

sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado

seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou

Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu

Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a

expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope

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Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que

seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas

natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco

revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com

todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de

seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca

clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser

assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma

natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai

Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os

pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos

conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter

notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco

com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto

para partir em busca do pai

Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de

Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo

pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses

porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco

interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela

ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros

haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos

seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude

Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco

Canto II

Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele

sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute

Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles

homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus

e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um

dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras

e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o

coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a

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artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente

assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No

entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os

pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano

alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha

constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai

dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por

meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os

pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu

que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os

pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso

achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os

punissem do modo que considerassem justo

Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave

esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e

se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de

medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que

Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses

propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos

pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos

apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que

aquilo jaacute estava acontecendo

Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois

sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope

fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados

Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a

Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que

seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria

sua matildee casar-se novamente

Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua

casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia

de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente

respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu

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retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia

se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo

de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem

frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que

a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que

ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os

pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha

com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para

acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que

seguiria viagem com eles

Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um

deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los

Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como

Odisseu

Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua

viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para

abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua

viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou

doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o

plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a

garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se

Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o

melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a

provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de

modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo

proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os

tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute

Canto III

O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar

encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a

primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se

diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto

quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de

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Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem

uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o

ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com

seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece

Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham

Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma

vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para

pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em

Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito

sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre

Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas

hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso

imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em

Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon

enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor

e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que

Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a

Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos

pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele

Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos

pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma

que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo

dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que

aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz

que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros

obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que

chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado

por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que

natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida

perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar

o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau

para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a

viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de

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Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os

companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a

cavalo e ser escoltado por filhos

Canto IV

Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus

companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a

respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou

que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe

causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de

notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso

Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar

Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o

agrave prova

Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem

eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau

concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor

confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute

justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a

chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que

nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de

Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que

pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem

sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena

Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de

colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e

o sofrimento e logo todos dormiram

No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua

viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez

narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia

explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a

ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para

que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas

recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar

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preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera

lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto

Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a

viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular

um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo

descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope

lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que

Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e

Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma

terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a

culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se

comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute

Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir

com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a

Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam

no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno

Canto V

Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu

lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a

ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute

se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que

natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o

regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco

Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o

avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca

Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava

tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que

estava na praia chorando como de costume

Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora

enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no

momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora

conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida

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imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram

crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal

Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua

ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia

perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a

imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma

vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe

proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria

como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo

A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o

fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa

Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela

tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento

favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a

vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los

Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e

se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando

nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de

Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela

disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente

recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas

provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de

tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum

sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua

jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No

quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel

conforme prometera

Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos

Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de

terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios

enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente

de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez

com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer

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ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele

ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia

Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar

a morte

Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera

honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e

pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a

abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria

chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria

abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a

jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou

de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar

com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua

a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que

ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo

de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez

com que ele dormisse para descansar

Canto VI

Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios

Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha

de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus

irmatildeos no rio

Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar

roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas

lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas

tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as

servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou

uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez

com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia

Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo

ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas

com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando

apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele

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narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para

chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes

dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se

vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila

fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em

seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso

Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios

Canto VII

Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que

assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de

Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha

Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao

terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com

Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa

cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu

lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos

deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que

na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por

diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu

agradeceu eloquentemente

Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que

ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira

aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre

causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de

Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da

deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada

Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua

jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu

Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa

Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe

contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na

manhatilde seguinte

157

Canto VIII

Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso

Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o

repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para

serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens

terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo

saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila

de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a

escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim

Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos

gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante

um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si

os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas

Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem

Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos

esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o

impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de

Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica

Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e

mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da

marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu

orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando

que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os

imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos

estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou

a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores

danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o

espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado

Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes

para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e

o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela

quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu

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prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela

como se ela fosse uma divindade

Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por

cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia

Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que

permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda

de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio

corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu

chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e

sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus

barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa

Canto IX

Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era

conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia

nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a

deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa

Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que

nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades

lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram

proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e

levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus

companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais

numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones

haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada

barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes

por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma

tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se

tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento

Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em

terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza

Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo

vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos

Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para

159

investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do

loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali

sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco

para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se

plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem

natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras

Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de

homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras

para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha

dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde

notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns

companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram

hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens

esperassem no barco

De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um

pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui

que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze

bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de

vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro

com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles

entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem

pelos queijos

A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os

deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e

cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes

seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo

tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os

homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando

ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope

trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e

seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que

eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto

sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os

160

deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O

Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do

que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco

deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus

barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles

homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute

e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e

devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele

ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de

Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme

pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu

na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la

Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de

mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o

escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando

mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe

vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe

revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe

mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que

se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade

devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar

sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a

seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar

fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por

algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu

pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o

Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram

enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar

os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com

uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que

ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes

vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez

161

que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio

de Zeus e foram embora

Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos

estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir

Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo

que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a

fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu

porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga

de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma

forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal

Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna

quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam

um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma

vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos

Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus

companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute

havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou

para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder

corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou

de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas

imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele

baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida

Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em

casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um

regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho

Posiacutedon ouviu a prece do filho

Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o

restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus

sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os

alegrava terem escapado agrave morte

162

Canto X

Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos

enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a

respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e

em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para

Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento

responsaacutevel por levar os homens de volta

Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia

eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e

enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando

da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros

resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo

escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca

levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e

perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas

Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses

abominavam

Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo

chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram

pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para

investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que

descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e

de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se

depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo

chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de

Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram

depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido

com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos

barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os

Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso

Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a

remar fugindo

163

Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu

seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de

Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros

que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de

Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os

homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo

os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O

primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os

demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem

desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens

adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da

proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas

de modo que eles conservassem a inteligecircncia

Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os

companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que

Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de

ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu

que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho

para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no

iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu

tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos

como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria

livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu

comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe

lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca

ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele

natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem

disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais

nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva

mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem

Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe

ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante

dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela

164

adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que

Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que

criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus

aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse

solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram

ao magniacutefico leito

Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado

pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o

daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia

sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em

porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho

Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma

humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo

foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se

comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois

voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco

para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram

imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em

animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim

como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou

decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo

Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou

com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca

Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se

reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne

abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de

Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o

tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi

suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia

prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa

contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes

de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para

consultar o adivinho Tireacutesias

165

Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da

deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal

empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do

vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio

Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali

Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam

o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava

ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e

Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e

mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e

invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu

palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas

a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais

esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um

carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na

direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu

deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e

orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez

teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe

revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca

Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a

respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a

natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute

Canto XI

O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano

aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do

rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram

as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo

as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois

farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor

novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais

esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces

Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu

166

As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos

solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de

sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus

companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando

aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu

glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse

Tireacutesias

A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara

sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens

tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome

de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave

ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu

prometeu atender aos desejos de Elpenor

Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que

ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo

deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que

apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar

despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar

do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade

Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele

esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno

muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho

Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que

conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando

chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de

Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu

regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens

saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse

escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito

tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria

tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu

conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por

meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir

167

ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com

um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar

um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e

sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu

morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes

ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o

reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee

chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades

Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho

Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu

que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que

ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde

que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai

Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que

Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do

filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo

triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do

glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um

grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu

usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua

identidade e ascendecircncia

Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os

deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu

que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem

e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que

apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em

torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de

Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo

pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte

Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante

de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que

Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este

oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por

168

causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o

marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal

destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem

bom e ambos ficariam felizes com seu regresso

Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e

de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso

Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias

esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu

acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles

que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora

exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a

proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo

pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho

Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas

ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora

satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-

se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele

quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo

ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos

deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de

Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e

sem responder voltou ao Eacuterebo

Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres

devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo

de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a

aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso

rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia

com que o rochedo rolasse montanha abaixo

Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com

Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses

apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou

com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se

encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a

169

de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave

ajuda de Hermes e Atenaacute

Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de

Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus

companheiros comeccedilou a remar para longe dali

Canto XII

Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde

sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-

los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas

mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou

para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os

homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes

indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades

comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas

sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de

se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar

os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de

modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos

haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu

deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes

atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo

que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em

decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia

uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava

terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente

longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de

dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam

para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria

uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem

os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor

opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o

monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo

170

Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por

Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez

Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda

assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse

perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens

conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio

Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave

Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave

Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o

barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria

chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho

Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados

pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos

companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam

se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde

que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus

companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando

continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se

puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo

que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia

mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe

soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e

soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias

Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme

Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a

continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os

homens obedeceram

Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a

respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do

navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das

recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave

proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e

ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado

171

estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a

vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros

temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham

os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior

experiecircncia da viagem inteira

Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do

deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o

que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e

da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para

longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo

permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a

tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que

seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que

encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas

por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia

comeram e dormiram

Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles

tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas

vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os

homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse

nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens

tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de

orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar

suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso

Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais

triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as

vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A

tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o

barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o

por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez

que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia

Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo

para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse

172

atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente

Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre

a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora

Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde

demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os

couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos

Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as

melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando

Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou

a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na

cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco

projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou

a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No

entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e

por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e

Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a

quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e

seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu

passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de

Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu

Canto XIII

Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes

ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para

conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos

presentes

Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos

roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a

casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo

Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir

Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse

aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca

Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo

que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto

173

conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo

assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele

enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo

inteligente quanto os deuses

Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram

na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido

na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara

graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia

Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees

afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era

respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon

se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que

este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com

facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu

havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar

e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o

castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito

No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios

no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas

Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o

numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia

cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez

O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute

havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar

os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de

touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo

Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria

terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que

tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos

pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a

lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou

de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele

174

se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras

dos aqueus

O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se

dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia

Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e

repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria

terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais

persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e

astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que

naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os

problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar

calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido

Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que

ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que

nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o

sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios

quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu

pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo

Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou

que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem

na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto

queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que

Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa

por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava

guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo

Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode

reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave

cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma

gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos

apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute

trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente

desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo

promessas de casamento que natildeo queria cumprir

175

Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu

palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa

Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse

durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em

Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que

acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria

irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a

primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente

bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu

sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia

a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai

Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse

sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo

era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu

natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade

Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes

estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este

plano estava fadado ao fracasso

Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho

mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de

Telecircmaco

Canto XIV

Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim

de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do

porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o

forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito

sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo

Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e

bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles

deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo

conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do

rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma

176

quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens

juntos

Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava

vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo

tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo

entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos

em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-

lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca

se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta

Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama

para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que

quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em

seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava

a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se

deparar com a fidelidade do porqueiro

Canto XV

Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para

Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na

empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa

Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se

casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o

consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo

que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando

mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes

de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que

chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim

de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com

Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e

depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria

Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros

homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho

para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e

quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou

177

dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram

extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de

Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram

dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro

Canto XVI

Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos

cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu

terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo

porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de

Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido

Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao

rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a

refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo

ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira

Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o

priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para

defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em

condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o

velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho

Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com

os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo

Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela

situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia

chegado satildeo e salvo

Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher

fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua

verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim

aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto

Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia

se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu

Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e

perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco

poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem

178

apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de

Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar

Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou

que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora

sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu

perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho

dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre

ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um

empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute

e Zeus como aliados

Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria

retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo

mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu

deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um

de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito

da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir

quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis

Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada

de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido

um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter

dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que

espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles

retornou

Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam

cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se

concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que

eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato

de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram

agrave casa de Odisseu

Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez

que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-

se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses

e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco

179

prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele

mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus

aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse

Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho

mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse

Canto XVII

Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo

para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que

chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope

emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-

vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um

forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos

Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem

Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu

Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha

da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta

de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a

Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas

louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse

verdadeiro

Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho

encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores

cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando

Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei

de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu

caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que

seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam

um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de

Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou

se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou

com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida

Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez

180

Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se

aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao

mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se

aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de

descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se

aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente

Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na

cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda

praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco

Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava

sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo

que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado

Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo

dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o

mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha

estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a

ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes

O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila

no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele

e Odisseu haviam sofrido muito juntos

Canto XVIII

Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou

de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando

e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se

com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos

estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para

jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade

Telecircmaco incentivou a refrega

Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes

surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente

Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes

estes o cumprimentaram divertidos

181

Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos

pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao

filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho

e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas

Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza

havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e

Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens

Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela

caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a

aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se

aproximaram e Peneacutelope acordou

A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se

dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes

maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco

elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo

comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse

retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem

quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um

segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira

como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo

dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa

porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem

presentes seduzia-os ainda mais

Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os

presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los

poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse

escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali

permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu

iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e

mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa

Canto XIX

Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou

o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia

182

e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto

enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam

estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se

puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir

dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias

dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu

maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes

As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e

bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava

importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia

Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito

se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso

ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em

seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a

fim de que pudesse interrogaacute-lo

Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta

iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso

mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo

muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que

aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar

de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma

mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim

que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de

modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum

pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do

quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da

artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora

precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava

infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia

do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo

lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu

que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a

183

tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para

natildeo revelar sua verdadeira identidade

O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu

recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras

riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-

lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e

que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele

depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem

banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha

Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento

Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a

lembrava muito de Odisseu

No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a

cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar

Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo

Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que

tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho

de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope

entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a

forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles

Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e

retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria

com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado

incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo

que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu

arco

Canto XX

Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em

como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a

aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela

preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela

para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce

sonho se apossasse de Odisseu

184

Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa

proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um

homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus

pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu

Zeus mandou trovotildees

Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem

uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e

perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu

respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem

aqueles homens abusados

Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as

cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo

que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve

de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro

Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do

cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo

afirmou que Odisseu logo retornaria

Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo

uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na

direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo

interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram

Canto XXI

Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos

pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde

estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se

dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se

casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar

com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o

porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem

cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem

distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da

declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e

incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas

185

O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo

conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem

sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo

Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os

seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele

voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua

identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que

dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se

emocionaram ao reconhecer o amo

Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos

pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe

o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo

cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para

garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes

Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e

lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por

sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte

oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a

disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento

Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o

arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo

reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o

arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa

forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir

Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para

entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus

aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa

com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou

Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para

todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a

sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos

e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se

186

alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo

disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas

Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os

pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua

distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar

suas armas

Canto XXII

Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo

apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha

Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e

escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de

morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem

estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali

para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem

se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens

Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma

forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda

aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora

o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar

formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu

respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria

vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a

lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas

nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por

Odisseu

Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido

nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo

de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo

para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos

pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro

homens estavam devidamente protegidos para a luta

Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum

Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu

187

escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um

dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar

ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio

estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a

fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e

assim Melacircntio saiu para buscaacute-las

Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se

armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma

serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem

admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito

Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para

buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que

Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna

A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio

contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo

proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros

querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas

ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr

fim na refrega

Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que

Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis

comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que

ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes

Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio

doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as

trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu

ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio

Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais

dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto

Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia

que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria

avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu

rei

188

Canto XXIII

Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em

casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que

Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que

Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber

como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia

natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos

corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele

soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia

finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora

proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso

Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope

foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por

algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope

poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter

certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de

Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes

que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse

preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a

respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope

finalmente havia se casado novamente

Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a

maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu

legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia

seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse

mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que

entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para

que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo

podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma

oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu

que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou

o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar

189

Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar

no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de

acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de

Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a

um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos

demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu

morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de

sua famiacutelia

O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois

continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta

de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia

passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas

riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes

Canto XXIV

Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se

lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se

depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon

Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o

que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo

tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e

contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela

tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes

descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e

do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que

levaria agrave desgraccedila dos pretendentes

Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a

prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai

na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele

estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem

era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu

e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho

e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e

disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-

190

se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa

abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes

exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz

na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai

quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a

casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido

por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se

juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu

reverenciaram-no

Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se

juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos

Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou

a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta

Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou

algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes

estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso

Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver

a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco

logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes

fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos

pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A

fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que

Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre

eles

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 OBJETIVOS
    • 21 OBJETIVO GERAL
    • 22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
      • 3 MEacuteTODO
      • 4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
        • 41 EM JUNG
        • 42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
        • 43 OUTROS AUTORES
          • 5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
            • 51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
              • 6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
                • 63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
                  • 631 O MITO DE POSIacuteDON
                  • 632 O MITO DE ATENAacute
                  • 633 O MITO DE HERMES
                      • 7 A VIDA DE ULISSES
                        • 71 ORIGEM
                        • 72 TROIA
                        • 73 RETORNO A IacuteTACA
                          • 8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
                            • 81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
                            • 82 ENCONTRO COM POLIFEMO
                            • 83 ENCONTRO COM A CIRCE
                            • 84 DESCIDA AO HADES
                            • 85 ENCONTRO COM CALIPSO
                            • 86 OS FEAacuteCIOS
                            • 87 IacuteTACA
                            • 88 DISCUSSAtildeO
                              • 9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                • REFEREcircNCIAS
                                • APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP … · 2019. 9. 26. · Também podemos observar estas figuras na poesia, religião e mitologia. Jung (2011 [1939]) explica

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip

Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo

Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho

Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida

Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador

Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees

Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos

RESUMO

A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento

Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo

ABSTRACT

Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling

Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO8

2 OBJETIVOS14

21 OBJETIVO GERAL14

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14

3 MEacuteTODO15

4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19

41 EM JUNG19

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21

43 OUTROS AUTORES22

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95

631 O MITO DE POSIacuteDON95

632 O MITO DE ATENAacute97

633 O MITO DE HERMES99

7 A VIDA DE ULISSES103

71 ORIGEM103

72 TROIA107

73 RETORNO A IacuteTACA113

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124

82 ENCONTRO COM POLIFEMO126

83 ENCONTRO COM A CIRCE127

84 DESCIDA AO HADES128

85 ENCONTRO COM CALIPSO130

86 OS FEAacuteCIOS131

87 IacuteTACA133

88 DISCUSSAtildeO135

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137

REFEREcircNCIAS145

APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149

Its My LifeBon Jovi (2000)

This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed

I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice

When I shout it out loud

(Refratildeo)Its my life

Its now or neverI aint gonna live forever

I just want to live while Im alive(Its my life)

My heart is like an open highwayLike Frankie said

I did it my wayI just wanna live while Im alive

Its my life

This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down

Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky

Got to make your owns breaks (Refratildeo)

Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1

1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)

8

1 INTRODUCcedilAtildeO

Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)

Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras

aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi

um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos

estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo

de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute

um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da

psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova

singularidade

O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia

permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e

os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus

pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles

siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este

fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era

composto por uma camada pessoal e outra coletiva

O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por

tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou

esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as

formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma

imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute

compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as

experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um

lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa

conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor

Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo

9

(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)

Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia

Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011

[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as

fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de

consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam

isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na

consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel

O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os

conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O

processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung

(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para

compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute

que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no

inconsciente novamente

Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da

vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos

atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos

aprofundaremos neste periacuteodo da vida

Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes

de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa

sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual

ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente

estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito

ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel

O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o

equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a

atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas

a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida

estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia

agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise

psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente

10

Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens

inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como

sintomas psicopatoloacutegicos e

Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)

O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta

conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para

ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo

como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao

utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a

consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta

forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e

obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia

Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante

significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica

que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo

atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a

qualidade de vida

Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia

que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva

do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento

e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais

expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo

que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis

Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem

recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz

sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela

11

narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois

dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste

conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito

Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da

forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem

arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por

isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a

psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas

que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a

Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para

casa apoacutes a guerra de Troia

Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio

sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta

tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a

provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar

situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo

De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais

influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas

passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por

meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a

passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor

de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura

dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses

Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem

um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual

surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade

Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama

Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um

aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia

Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras

seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria

transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)

2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome

12

Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original

esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes

lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto

particular

A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo

entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se

concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as

pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero

relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo

como protagonistas pelo menos como coadjuvantes

Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa

cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-

junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo

conforme descrito por Jung

Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem

ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por

meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com

Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de

sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo

A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo

do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que

Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre

qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma

essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter

arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)

A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos

ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos

permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo

uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e

perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo

Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5

anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos

deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me

13

levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos

preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio

chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano

Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela

forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se

restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito

vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem

cursos ministrados por analistas ali formados

Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro

capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a

anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos

do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as

principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a

importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e

psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia

Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua

morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da

psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de

Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-

junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados

em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo

apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um

resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia

14

2 OBJETIVOS

21 OBJETIVO GERAL

Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos

22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO

Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de

individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos

15

3 MEacuteTODO

Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito

de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano

Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica

neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)

Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram

mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia

Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga

(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a

psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico

Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a

pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo

de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos

junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)

Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram

consultadas para este trabalho

No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR

odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea

NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam

relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou

Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram

relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de

Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)

Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus

OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram

encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros

eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros

ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo

de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos

16

interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as

pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)

A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND

individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology

resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo

porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como

embasamento teoacuterico

Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope

AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra

de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da

personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente

trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam

disponiacuteveis

A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer

no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam

relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo

De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND

(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em

nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema

que natildeo acrescentava ao nosso tema

Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer

quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente

nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise

Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo

geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me

surpreendeu bastante

As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora

as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos

portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de

individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses

Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero

Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em

encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de

17

entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia

fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria

Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O

feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese

de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes

Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do

relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no

presente trabalho

A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a

maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise

das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi

consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo

da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino

em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes

Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante

abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se

transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e

mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no

acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso

todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei

que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo

Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho

uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo

direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares

sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi

(2015a e 2015b)

O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do

poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas

tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um

resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do

trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da

metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei

que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu

18

nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e

portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a

Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que

eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema

(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no

momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que

eu considero podemos ver metaforizados no mito)

Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses

que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada

Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de

outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise

19

4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA

41 EM JUNG

A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de

estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua

produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da

psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago

este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria

Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da

Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar

sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais

frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica

No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma

minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa

sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da

amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas

Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para

fazer a amplificaccedilatildeo

Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o

segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma

viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a

C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei

Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a

respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente

apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])

utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute

de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas

queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que

cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele

reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua

anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona

novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de

20

sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito

do nosso heroacutei

No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e

interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido

produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito

brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para

poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011

[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que

menciona o consumo de sangue de bodes

No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses

de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou

didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce

Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas

em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum

comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu

No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e

inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos

mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele

explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo

subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses

faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias

De acordo com Jung

O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)

O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute

presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro

(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que

estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que

este monstro habite as aacuteguas dos oceanos

A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os

compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG

21

2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio

de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam

vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e

filoacutesofos

O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se

preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para

o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de

forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca

os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos

relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011

[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca

em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma

forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores

confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])

apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem

que os sonhos satildeo significativos

No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente

Para ele

O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)

Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a

peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que

improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu

significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado

psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos

42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS

Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para

estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e

a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de

22

planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima

do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)

Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma

descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da

perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de

complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto

as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse

tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e

que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso

para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham

caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade

Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte

ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia

analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso

e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise

da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua

eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo

famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o

motivo de seu sucesso

43 OUTROS AUTORES

Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a

morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do

poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma

definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel

pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc

Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria

se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta

tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga

(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por

meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por

exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou

quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo

23

pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA

2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do

pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope

De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido

considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos

informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a

morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes

provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento

O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que

aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses

desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da

fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no

Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida

(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido

antes de morrer

Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento

uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria

o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o

heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes

vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens

morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)

Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)

destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e

nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder

a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e

Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a

fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para

natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos

deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu

turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar

3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres

mueren una uacutenica vezrdquo

24

em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o

heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo

Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o

morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande

habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por

parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o

motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o

fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo

muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma

expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria

morrer e encontrar o destino

Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia

grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem

relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do

prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera

que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa

accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo

Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela

decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem

Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade

Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do

intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo

divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina

na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida

(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar

liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz

de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do

paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o

sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e

atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central

uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do

domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude

e portanto felicidade

25

Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma

deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um

comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o

sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio

o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado

com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo

incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores

Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a

fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se

por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo

capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo

essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de

sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes

responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas

o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino

E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como

a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de

Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia

das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos

Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito

traacutegico grego

Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a

Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue

escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de

que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu

ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses

Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia

disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece

acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com

todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu

muito suporte de Atenaacute

Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na

vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute

26

que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da

ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses

Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta

atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que

poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia

ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso

antes dele) mas insistiu em arriscar

Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um

mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a

caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo

inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno

extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou

exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu

palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute

momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa

Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela

realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o

marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem

construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o

quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante

acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido

A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)

Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua

hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria

sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra

especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na

realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por

Homero o mito de Er nem teria sido criado

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O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas

ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute

passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a

escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e

satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo

sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo

(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos

deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como

uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as

afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os

mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta

com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas

Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela

existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar

Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira

como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo

teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel

porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter

nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse

um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida

virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei

considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua

grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem

de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser

ardiloso caso necessaacuterio

Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do

diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades

a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas

diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar

a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve

nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era

respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais

mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que

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preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e

ter influecircncia entre os mortos

Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e

Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que

inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens

Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora

desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria

aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da

qual Aquiles gozava agora morto

Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da

inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve

oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a

opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no

modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera

que a Odisseia

(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)

Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida

de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na

Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que

se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na

verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a

obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas

envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que

diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto

Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses

morreria velho rico e cercado de seu povo

5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama

6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas

29

Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a

Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade

de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na

epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele

mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa

Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais

conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua

identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se

chama Ningueacutem

Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute

estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o

nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor

Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado

de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno

de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio

Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)

Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na

Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a

respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No

entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente

sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se

emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas

andanccedilas

Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua

identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou

seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do

heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo

existe mais que natildeo vive mais

Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e

comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou

30

seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo

que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado

intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez

que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe

o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em

que recupera sua identidade e sua histoacuteria

Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA

partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em

que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando

da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68

grifo do autor)

Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este

momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa

cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre

a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar

bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar

para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo

31

5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO

Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)

Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir

brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a

consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos

autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o

centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute

composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui

ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de

apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e

mulheres

Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo

compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de

si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por

uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos

ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos

processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da

observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e

opiniotildees de uma pessoa)

O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui

funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de

capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando

um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose

provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)

Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente

tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um

instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da

personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o

indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase

inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece

32

Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do

segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir

a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como

(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)

Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um

afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo

Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas

dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo

possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de

forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute

povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos

dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e

considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique

Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas

perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque

a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o

indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de

constelaccedilatildeo do complexo

Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor

demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o

primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por

natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu

do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um

ego para ter consciecircncia deles

Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo

relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e

mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos

Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de

modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou

33

grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia

O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim

mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees

sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma

Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e

eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade

entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute

sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode

considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que

remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam

frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees

por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o

Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira

autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea

Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na

organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram

quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de

Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com

a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se

as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que

Jung denominou processo de individuaccedilatildeo

A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas

(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de

uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se

estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque

assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios

situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois

voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os

sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador

poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em

seus conteuacutedos oniacutericos

Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens

arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos

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fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia

tal como a entendemos De fato para Jung

(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)

Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto

de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os

processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute

capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos

uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo

significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia

os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011

[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito

entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este

movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo

que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e

inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador

Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila

entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como

depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da

morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e

elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na

imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que

comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta

eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a

depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua

independecircncia

35

Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por

meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o

qual natildeo haacute uma foacutermula

Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por

meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que

depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que

este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um

esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem

Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)

Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos

definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades

somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo

com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que

haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo

mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo

De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende

de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a

funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito

de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso

depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo

Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que

menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a

nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo

quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo

inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas

caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma

funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua

espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre

entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011

36

[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na

condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior

(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)

O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma

espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer

que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer

sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer

sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que

o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender

as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que

estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que

natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter

causado nenhum resultado

Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca

complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos

acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando

chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute

uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um

grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila

O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez

que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e

significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum

cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se

de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela

psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por

exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando

Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a

separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um

caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques

de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba

37

exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave

separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para

seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam

ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute

buscando

Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a

reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo

doloroso de integraccedilatildeo de opostos

Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas

polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de

sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer

forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos

cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta

maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades

conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)

Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico

que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o

indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o

define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a

individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em

sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se

distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo

devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo

uacutenica de qualidades universais

Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade

dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir

ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo

egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a

autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu

ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo

tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo

7 O Self eacute o si-mesmo

38

depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do

ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado

Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da

necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a

apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em

vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro

que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo

se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer

Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self

que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos

estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente

buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p

216)

Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme

transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma

natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio

de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos

recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num

trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da

persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher

Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem

a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma

imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele

desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto

Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do

indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente

agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao

indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma

vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que

o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O

fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha

consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica

sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as

39

pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo

que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se

desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu

papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias

obsessivas

A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que

significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da

persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a

individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a

persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute

um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o

individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa

doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e

coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para

que a alma possa se desenvolver

Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)

Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos

arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor

ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na

consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta

que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante

a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)

Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em

noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este

estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto

nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a

ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein

explica que isso acontece porque no meio da vida

40

() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)

Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar

entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita

pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo

necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos

podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na

adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-

idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar

outra transformaccedilatildeo

Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos

nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as

pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um

significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social

O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico

o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute

justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos

nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas

acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como

sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem

uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo

a seu respeito

Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos

psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for

desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que

natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua

consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial

Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque

nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos

nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas

e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo

41

configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a

experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas

Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a

individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar

de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da

vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo

determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o

lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se

esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta

tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo

a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam

contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida

Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que

tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase

anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem

da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e

perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da

persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos

separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se

diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma

desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento

para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica

Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja

um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora

seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado

por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se

libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar

livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar

o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento

Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da

nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a

reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as

mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva

42

relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos

confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela

definitivamente

Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do

que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que

engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos

nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido

ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a

estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra

A autora explica que

A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)

Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no

meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que

fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora

estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo

podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos

Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo

necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo

temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo

reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que

vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro

relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra

apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em

uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim

vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem

negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado

43

Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente

para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por

Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self

que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self

possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos

proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas

que ele ainda precisa cumprir

Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem

os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo

e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-

se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem

antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos

estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de

individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas

singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa

finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas

condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na

polaridade divina

Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego

dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave

proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como

inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a

autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da

personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da

proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos

psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem

fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012

p 56)

Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma

simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato

Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma

experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se

fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os

44

iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os

impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a

sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando

orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar

aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-

se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes

Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo

simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da

nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o

que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um

aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo

de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos

sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu

respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los

Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos

nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo

interna

Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja

atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo

por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de

forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar

com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila

de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que

tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos

levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees

Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer

esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se

separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem

em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes

reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo

e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o

que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus

45

Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o

resultado da transiccedilatildeo do meio da vida

Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos

dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente

com anima e animus Sobre a anima Jung explica que

A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)

O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da

persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o

exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a

anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias

entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode

ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre

nossa vida exterior

De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a

anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino

relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)

A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma

representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos

germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os

homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que

pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada

homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na

forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo

O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da

mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A

influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista

sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os

outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa

da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a

autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a

46

se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso

ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima

como uma forccedila interior

Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em

termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do

homem quando ele

(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)

O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de

individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que

o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo

se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo

inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self

Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem

subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do

mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro

Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura

equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem

a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus

como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum

dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos

atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles

Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)

O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora

opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute

que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta

47

como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo

inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos

guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos

razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung

(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de

preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado

Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von

Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui

aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa

coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a

anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON

FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo

perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente

revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos

sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino

um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute

simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute

representando um aspecto mais coletivo do que pessoal

Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus

estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca

satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam

Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas

prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo

Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos

aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que

constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo

desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento

da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo

projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes

Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos

integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia

Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o

inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute

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bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma

postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim

esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes

A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando

sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias

inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer

objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do

inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de

consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente

percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila

da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia

por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias

A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung

(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e

se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam

os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo

transcendente

O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a

pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de

maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os

conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se

diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade

Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas

necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros

provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia

consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel

para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente

com o que eacute

Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute

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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)

Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute

preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de

permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu

consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute

consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter

demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo

Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e

nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a

conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e

que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando

nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para

expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para

reconhecer sua forccedila superior

A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011

[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o

eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim

Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa

extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a

individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a

consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos

inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute

somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos

com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir

um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior

Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica

uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se

esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a

infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo

revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente

o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter

sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma

50

forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser

um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo

exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar

nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que

acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que

essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo

A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam

a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos

internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)

diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo

vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor

A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for

perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses

casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a

apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como

uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais

comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma

mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego

Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um

sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro

delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um

significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais

imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais

superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos

atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ

2008b p219)

A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da

consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma

inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber

sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de

fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e

entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem

ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba

51

crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o

exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as

cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela

este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com

o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece

mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto

a ajudaacute-lo

Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este

momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a

magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito

difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa

sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada

servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte

efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com

humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso

E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e

extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma

ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos

voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais

A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e

longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com

eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico

representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores

como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio

guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica

do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus

grego Hermes

A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou

uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao

mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo

podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como

uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de

renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual

52

Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um

jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando

natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo

como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute

onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta

caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que

envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa

segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita

soluccedilotildees criativas para seus conflitos

A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo

sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar

que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o

autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a

presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma

situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida

Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam

escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo

de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a

experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a

experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e

permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as

pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito

semelhante agrave dos sonhos

O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente

territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de

Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e

assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade

suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de

alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e

capacidades

Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no

limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes

8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica

53

mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os

acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois

estamos emocionalmente muito sensiacuteveis

Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no

inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos

fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego

o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar

ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora

do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o

autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de

Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia

Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo

relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque

especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees

mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos

do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala

Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute

orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca

poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus

instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses

siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela

Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)

A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas

culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da

criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do

ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego

se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior

54

Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como

bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais

relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma

aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de

alguma forma

Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do

self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b

p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua

riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute

comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma

representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito

De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de

um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que

justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela

explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como

um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma

totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as

manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo

espaccedilo-tempo conhecido por noacutes

Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung

que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e

externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute

encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de

pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma

coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de

sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo

entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos

sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de

individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o

indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as

coincidecircncias significativas

Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida

seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso

55

mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso

significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que

desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu

processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida

Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do

inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos

positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute

especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as

pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como

exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles

que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com

a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar

grande perigo para o ego

A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo

podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue

funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees

Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil

Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e

um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta

obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros

querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para

conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar

eventualmente

Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das

pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos

provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social

Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo

indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com

determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade

eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos

Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees

com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos

56

de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo

sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou

No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois

haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou

social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto

social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles

se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de

duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um

aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre

aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o

que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com

as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a

respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E

uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas

projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma

interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas

Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se

encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para

Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado

transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de

interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo

Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta

mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou

natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e

de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de

partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da

maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos

partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos

estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece

O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado

a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por

estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa

justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre

57

as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode

levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por

pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo

de Hermes no coletivo

Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia

a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos

formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os

outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo

compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas

que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o

processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por

meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em

que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados

pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees

negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao

nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social

Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres

motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e

seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos

o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o

processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua

individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo

de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo

contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma

muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se

tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora

utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso

desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna

simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)

Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que

A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para

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o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)

Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio

da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo

extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs

fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que

costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem

da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais

seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute

sua atitude psicoloacutegica

Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e

encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute

consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma

consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em

fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por

sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave

negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes

Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em

objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo

eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser

considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)

considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a

experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a

respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos

planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de

antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser

sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si

Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou

mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a

diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem

cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico

59

passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e

atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo

Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal

um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se

restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida

dada sua dimensatildeo sincrocircnica

O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se

associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o

fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao

limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees

do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste

caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz

essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a

conturbaccedilatildeo desta fase da vida

Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao

tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o

tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao

seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia

cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a

vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica

que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no

meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep

separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria

identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees

experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se

confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o

esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele

ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta

Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela

tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo

conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia

Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por

Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O

60

autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e

conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite

que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem

possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo

liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se

descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar

relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem

menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado

energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma

ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos

reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)

Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade

se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade

de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta

com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida

Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo

de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo

constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo

faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele

mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas

defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve

demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e

impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo

liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente

Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se

torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o

futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade

valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra

livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve

mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a

situaccedilatildeo

61

A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)

Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um

comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a

regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais

intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein

(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da

vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem

tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na

infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a

qualquer um de noacutesrdquo

Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo

psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma

etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece

uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a

identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma

reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma

Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este

processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto

fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra

dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em

padrotildees antigos e sem sentido

Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de

transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos

dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram

reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente

liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais

de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave

nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos

pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo

62

Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio

das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas

em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter

conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os

outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e

assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos

coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo

de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a

autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com

aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de

tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas

dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em

siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e

o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo

A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com

siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na

imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas

experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar

consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar

do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia

liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente

Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por

Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e

de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta

circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com

outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da

anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser

cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a

ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante

dos ganhos psiacutequicos posteriores

Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo

preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao

mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta

63

forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado

de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao

entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida

durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo

do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A

constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por

completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que

ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um

elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o

lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do

dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)

Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo

dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila

constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo

do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente

psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase

liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja

eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute

encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar

mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e

estabilidade

Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a

presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus

sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo

estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa

vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos

espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros

eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no

meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto

executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de

escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes

Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente

vista como estaacutevel e tradicional

64

(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)

Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que

prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute

exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da

vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o

autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se

mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai

depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo

que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico

Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos

inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em

qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma

experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso

queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo

liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para

a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em

nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um

resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida

51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO

O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento

entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as

dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses

com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a

inuacutemeros pretendentes

Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de

se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de

desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em

outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia

se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da

aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos

65

cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da

personalidade dos filhos

Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como

instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que

tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as

necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento

Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do

outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por

outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos

independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta

realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz

particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal

Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme

afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que

lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca

poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos

que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que

Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)

Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual

motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo

complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar

bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar

a vida do casal

O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias

estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios

de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo

caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente

dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento

66

Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por

Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente

nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de

elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande

ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e

conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais

satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo

Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento

constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa

individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem

continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus

potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o

casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo

natildeo eacute o uacutenico

Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre

simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus

sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo

o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos

arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos

juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas

que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos

inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos

cocircnjuges

Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o

fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou

seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro

ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca

desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este

desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo

desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece

ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma

uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute

67

proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na

alteridade que seria o principal sentido do casamento

Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a

necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima

da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a

humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que

Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)

O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da

personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)

afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma

criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva

quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial

criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o

siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e

pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de

confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior

Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o

casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento

aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder

uma sombra consideraacutevel

Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute

tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute

uma caracteriacutestica humana

Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas

histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o

final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris

enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno

de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua

vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte

anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios

68

pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses

voltaria para casa ou natildeo

Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um

triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto

De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato

de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo

Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida

dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se

compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la

transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES

2014 p 59)

Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro

mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a

possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira

eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo

em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro

Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao

nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz

Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)

Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a

ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer

uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso

Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica

constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera

improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da

pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o

tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros

As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si

mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer

em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas

69

Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela

traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos

arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees

De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento

tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois

expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado

e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma

pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a

essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo

oacutebvios nem tatildeo imediatos

A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que

Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)

Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes

de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode

proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum

que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se

conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as

eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo

de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus

complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de

honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os

parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas

continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento

Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se

responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis

caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o

indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu

redor traindo ou sendo traiacutedo

70

Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-

se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro

entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu

perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo

A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)

A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber

que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)

destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute

possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser

fiel a si mesmo

De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando

simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa

estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu

animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a

autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor

Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na

separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc

da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se

tentar obter um relacionamento psicoloacutegico

De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o

indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo

pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por

meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e

possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem

relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros

71

6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao

mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)

Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais

importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito

apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e

em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente

Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os

mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas

Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo

que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os

temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar

fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e

culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos

perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja

como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico

costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees

livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)

Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores

entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de

humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p

15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas

Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos

entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes

Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens

mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a

mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder

simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje

mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa

cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo

ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias

transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas

72

passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma

estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas

Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da

associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no

quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do

caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original

utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung

como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)

Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do

conceito de inconsciente coletivo

() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)

De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento

ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira

e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida

Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no

inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar

se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a

maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo

psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente

conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas

ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma

expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo

de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada

para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o

estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica

Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um

deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que

um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de

vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus

73

relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades

vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as

possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos

pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para

aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam

Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos

trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz

sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso

siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo

precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou

transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o

mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final

Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro

podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados

Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como

ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de

nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material

analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a

respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta

forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever

futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e

LIMA 2006 p 56)

Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico

conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers

os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o

paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto

sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso

nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores

consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa

74

se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves

estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao

estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias

divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo

arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela

harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)

Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o

heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente

humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos

adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim

porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que

podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que

escolhemos ser a partir de entatildeo

De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo

da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem

seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute

passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a

cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash

simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra

Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que

A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)

Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas

figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel

perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se

estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas

entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da

nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades

fragmentaacuterias

75

Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou

demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua

capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas

atitudes

Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de

um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a

dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a

nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou

energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por

isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se

soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas

psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que

tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)

Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se

manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a

doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se

soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram

reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento

A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta

precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado

com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar

impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si

mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo

sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um

arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire

caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender

fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade

da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso

Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos

leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles

influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo

temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo

conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein

76

(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos

sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo

liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e

atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que

vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram

rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que

foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo

Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da

psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as

religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida

Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus

mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma

vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus

das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na

alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas

no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute

relacionado a ele

Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de

acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade

sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes

das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves

acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de

tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da

personalidade

Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem

confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus

costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e

misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico

O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia

hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a

ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua

afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de

estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir

77

Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de

Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de

adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute

ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa

ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente

ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do

indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado

O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado

com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar

habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e

qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus

irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades

chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo

caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)

Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)

Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute

por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees

Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para

concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso

quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar

com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e

para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental

de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo

O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso

e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as

reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica

do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos

inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor

forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante

disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode

78

curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da

psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma

Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do

deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-

idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute

eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise

Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de

Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma

experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social

pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando

transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e

ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita

pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de

que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas

sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel

natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em

periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia

O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar

psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um

de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein

(2007) a presenccedila de Hermes

(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)

Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o

que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer

comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente

existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para

abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus

Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos

sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria

79

experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em

cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma

experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura

Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca

examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento

psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de

socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da

mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou

acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que

respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa

atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles

atraveacutes de mitos

61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA

Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do

analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa

julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o

analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas

Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova

postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos

satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute

que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo

Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos

que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram

inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua

essecircncia decifrada

No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando

os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas

origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por

exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias

seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o

autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em

diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos

80

Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a

mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por

meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela

depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de

comunicaccedilatildeo com o inconsciente

Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute

fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto

historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e

mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia

claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia

ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do

heroacutei

Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)

O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a

compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela

tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas

impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees

simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de

que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo

principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia

egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo

consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que

o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa

de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa

simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade

9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror

81

Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do

heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a

morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito

pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a

determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia

do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado

momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito

o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da

consciecircncia do homem

Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus

respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-

idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter

ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem

sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo

muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco

branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)

Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto

nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta

sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente

alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus

papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As

imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo

com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as

imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o

quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como

uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10

Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque

pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua

personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de

negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo

10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki

82

constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel

sim encontrar qualidades na sombra

De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung

chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para

atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate

entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como

dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma

por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro

livre do desejo do retorno ao mundo da matildee

O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro

tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e

a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e

demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas

Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado

negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No

entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a

forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que

considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute

prevaleceraacute se integrar a sombra

Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos

procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia

pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas

condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo

arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O

que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego

precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo

conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente

Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei

sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade

desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas

e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente

profundo para poder realizar atos criativos

83

O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de

consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os

egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se

desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade

Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave

consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes

a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que

podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-

sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais

derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo

sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos

sonhos como monstros

Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa

consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto

para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica

que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma

fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees

Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos

igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por

meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados

nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso

de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a

consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como

aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica

humana pode haver essa confusatildeo

O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio

do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de

totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o

relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do

heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas

aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute

problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai

ser uacutetil para si mesmo e para seu meio

84

Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio

eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em

contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte

simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade

temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito

solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro

ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de

totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)

O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais

complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a

passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase

da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo

se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera

conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de

forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos

Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice

clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente

da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo

eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila

possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia

O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias

subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da

mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a

psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam

rituais de iniciaccedilatildeo

Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de

iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso

precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao

contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute

ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para

morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a

11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais

85

finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de

induzir um renascimento simboacutelico

O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a

periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer

doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou

restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio

mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia

Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever

que

A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)

O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do

homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os

conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos

siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo

pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie

de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como

renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom

espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a

anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses

siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute

mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho

sozinho

Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em

nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o

autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que

apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado

psiacutequico permanece o mesmo

86

62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA

Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo

aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as

caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto

post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute

relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram

oferecidos aos deuses e aos heroacuteis

Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser

comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou

comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais

diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que

independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem

intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a

medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e

apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as

caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado

sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas

morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino

faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter

sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta

que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de

Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como

modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma

vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso

Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos

disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real

eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute

mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por

dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como

periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto

devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento

daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou

87

num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa

ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores

Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem

ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o

triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras

bem estabelecidos

No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra

(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido

na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades

superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte

da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do

lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter

passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se

destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se

destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe

permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras

dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei

recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte

traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo

(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este

modelo

Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando

honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir

realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o

centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas

seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)

que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante

ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico

ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de

lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da

poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro

Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem

do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por

88

sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com

nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a

semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram

contato entre si

Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de

que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem

na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a

imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor

tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha

(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam

responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia

divina do heroacutei

Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram

poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de

modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem

estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis

tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem

para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados

tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p

25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar

a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao

Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo

O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um

sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou

de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter

facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute

cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de

modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo

A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis

Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o

nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral

e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas

primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por

89

etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo

profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado

Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome

consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto

denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome

Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia

Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome

conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui

energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por

isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo

Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que

estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos

(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo

(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o

ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os

humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino

(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada

vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou

masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando

cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o

Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar

sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos

para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se

dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a

procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem

do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino

Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo

masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por

meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos

mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo

como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do

travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como

uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir

90

para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute

Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia

De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos

motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a

totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo

escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz

alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado

Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a

partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o

heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua

esposa no mito Brandatildeo ressalta que

Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)

O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na

mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica

para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio

cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido

injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias

Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual

popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero

para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se

referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem

qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis

dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do

heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees

depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles

De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava

presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de

91

manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer

sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo

Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo

Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)

O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante

vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram

travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de

diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam

em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta

enquanto os demais homens morrem no anonimato

A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser

considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas

disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a

morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma

das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham

participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e

agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para

as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis

Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor

das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o

ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido

construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele

incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja

reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca

Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com

jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute

assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis

mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um

numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se

submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou

92

para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado

Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de

Ulisses

A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos

ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos

poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em

homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que

estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos

notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada

jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo

de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de

um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em

morte

Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem

estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que

pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma

geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns

heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de

outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um

apecircndice

O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em

conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser

orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou

Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas

heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por

exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os

males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas

podiam tratar ateacute a loucura

O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros

motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou

famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles

ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser

curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel

93

Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar

com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto

para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os

fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de

preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus

concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos

Misteacuterios

Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como

superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos

como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos

O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui

inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe

permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer

tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi

mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de

benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido

Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia

jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um

heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de

Ulisses tambeacutem eacute mencionada

Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a

cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)

como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o

defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem

apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em

outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um

castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo

Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito

relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma

exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda

estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante

da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos

representando o dom da visatildeo interior

94

O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis

conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito

comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um

apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como

adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo

sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por

vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de

familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um

destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do

templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute

caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei

Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste

numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o

uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou

num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros

morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves

vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem

saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia

matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita

Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois

eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As

reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando

durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de

seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que

(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)

Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a

proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o

95

uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem

as energias que alimenta o cosmo

63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA

Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes

os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de

Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero

relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder

relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei

631 O MITO DE POSIacuteDON

Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus

derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel

pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente

Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas

geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas

secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de

que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente

Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas

fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas

elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees

Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu

trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a

autora

este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)

Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais

deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo

soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de

96

Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo

deus

Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a

aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao

construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos

desestruturantes

Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que

difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e

portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila

Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon

atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que

emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)

Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas

extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por

exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope

Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos

Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma

Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)

Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte

anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros

97

dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao

expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por

exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro

com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu

enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal

Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro

e agrave proacutepria anima

632 O MITO DE ATENAacute

Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual

Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem

ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar

no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute

estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a

filha

E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o

combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute

eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender

essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram

aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte

para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade

racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)

A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer

pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o

estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como

seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a

possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se

apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a

reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute

passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e

poderoso

Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas

no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute

companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos

98

descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do

espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)

Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de

incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as

coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser

entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)

A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada

em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um

complexo que a deusa elaborou e integrou

Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)

Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se

confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam

ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo

admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo

mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento

Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados

em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A

fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas

provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de

Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado

Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino

Segundo Ribeiro

(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)

99

A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute

profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a

ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada

ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais

633 O MITO DE HERMES

Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)

De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu

chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar

entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade

pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos

deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado

guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles

que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute

atribuiacutedo a Hermes

Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por

Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo

Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus

cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele

havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora

Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este

fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma

necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo

(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um

deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo

Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de

Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele

precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle

100

Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e

astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer

O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois

novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo

Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica

ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra

respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos

Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com

o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora

considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do

instintual para o sagrado

Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes

encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista

(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo

superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num

instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente

Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem

nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo

voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade

Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma

e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute

ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser

colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os

irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus

no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a

partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o

privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o

segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)

Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as

qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)

nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de

presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser

o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom

101

do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado

demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se

apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma

tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta

Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos

pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira

ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia

Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e

informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de

firmar contratosrdquo

Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso

com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute

concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e

mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes

recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas

A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos

como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash

seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a

androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)

Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio

de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes

se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do

movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar

motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens

importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi

fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a

terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia

da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso

nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado

por um casal na Terra como menina escondido de Hera

A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de

destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa

descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem

102

conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute

E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno

de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)

retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o

aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica

Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a

flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira

103

7 A VIDA DE ULISSES

O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)

Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)

Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma

versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram

juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente

coerente

71 ORIGEM

Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como

acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e

Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de

Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que

Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte

Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto

pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade

supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-

rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha

Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de

sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que

enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se

sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que

Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu

negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha

Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse

nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram

surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas

de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-

lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto

o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez

104

Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de

Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era

apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois

pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que

Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era

pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para

comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita

derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila

Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele

ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)

O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a

sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando

para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente

De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de

Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre

os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia

mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo

coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-

ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si

lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)

Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando

Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal

colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo

teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita

gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na

105

Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras

histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis

Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia

de grande temporal

Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)

Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa

Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a

Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos

necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de

Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que

teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-

nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e

Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do

momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria

sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei

Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de

Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito

astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova

botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o

proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou

Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado

agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo

desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel

Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu

106

sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo

nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)

Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e

comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia

na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada

que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do

que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco

acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele

fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia

Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do

rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute

Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis

trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual

mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope

Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras

provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder

espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do

poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas

apoacutes conquistar estes dois feitos

Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade

Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os

pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela

Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe

proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem

era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma

Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da

ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele

simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope

Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este

tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia

do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em

12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela

107

recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio

concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer

forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando

forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a

longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a

fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e

sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)

Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo

corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope

praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o

traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu

apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope

teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde

passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes

descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma

Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de

Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca

adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)

72 TROIA

Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de

Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta

sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o

iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e

Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado

entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim

que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu

Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses

compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo

assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre

os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem

planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a

108

humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de

Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos

Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados

tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma

nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam

igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena

de Troia e outras desgraccedilas

Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia

entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos

homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida

novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava

Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado

Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a

crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o

conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o

bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por

pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida

sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito

Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este

priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de

mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera

ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite

ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de

Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de

conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz

por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu

lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia

Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o

costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo

tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que

os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a

corte natildeo precisava ser feita pessoalmente

109

Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente

de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem

enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que

Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar

com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra

que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais

pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar

a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com

Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o

emblema da fidelidade para todos os tempos

De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez

anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal

real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando

Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia

Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se

aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13

e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-

lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a

participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena

Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto

a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de

Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra

e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa

A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos

para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para

Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se

recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam

que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte

de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de

acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em

Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre

as filhas do rei sob o nome de Pirra

13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor

110

Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas

femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu

entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem

levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas

conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi

quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a

Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu

Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta

uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia

Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em

Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os

ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon

pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que

Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia

sua primogecircnita

Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau

aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo

que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto

Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria

filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas

Menelau o impediu

Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao

acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes

Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois

irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo

instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses

Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris

Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua

astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura

de Teacutelefo ferido por Aquiles

De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios

lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por

111

Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos

Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como

atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon

ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os

aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes

helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que

mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a

Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem

em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes

por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos

poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau

mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez

poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos

natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria

matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor

Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando

astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia

Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de

acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas

como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes

Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra

Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois

de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a

cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes

entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar

os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma

profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio

Escamandro

O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia

isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo

(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o

primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de

Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc

112

Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)

matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover

ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus

Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-

se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma

estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram

inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte

de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada

por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da

guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a

vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu

ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que

perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a

resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax

enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se

tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que

tinha feito envergonhado Aacutejax se matou

Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia

Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e

Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a

Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute

dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e

convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se

agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem

sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax

jaacute havia se suicidado

Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de

Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a

vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o

regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses

ndash devido ao seu machucado fedorento

113

Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e

destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash

mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de

guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada

Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez

anos de guerra Entre eles estava Ulisses

73 RETORNO A IacuteTACA

Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de

partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas

Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu

esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande

borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o

heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o

sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho

delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando

alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os

barcos e fugir

Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo

Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar

pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os

habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a

flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e

fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los

de volta para o navio e ir embora daquele lugar

Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos

ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa

ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos

seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa

caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela

morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada

Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se

mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo

114

que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-

lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho

Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que

Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum

ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando

bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-

los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena

para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga

dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco

Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se

demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a

alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma

vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por

sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo

apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que

ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu

ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse

responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara

Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)

Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito

daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto

e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida

com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu

chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que

fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e

sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho

Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a

ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem

115

passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na

partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos

rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que

deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o

odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos

Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando

Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus

companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que

contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora

foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que

estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de

uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo

De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo

que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana

vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes

canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu

enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras

contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se

encontrava mais distante

O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia

tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens

sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-

los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe

transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara

no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em

vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros

Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu

diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como

escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como

antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa

bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em

porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a

espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo

116

de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de

volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo

com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono

e Nausiacutetoo

Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas

natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa

seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja

sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a

fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em

Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o

restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida

A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor

Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)

Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve

estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe

sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como

passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo

consumir o rebanho de Heacutelio

O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne

humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto

irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim

de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os

ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso

deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer

Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas

para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e

117

ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma

enorme faccedilanha para um mortal

Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros

precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais

raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo

escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que

navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens

Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros

remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a

passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como

viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de

Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram

as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os

homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um

raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara

do banquete

Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes

Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou

apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta

vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando

se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou

laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e

seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela

o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave

ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua

ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem

que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo

(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como

filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo

A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela

pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei

voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente

Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual

118

ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a

proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara

seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada

destruindo-a

Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco

destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe

emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que

depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu

e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde

Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia

O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas

companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora

estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu

ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois

o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram

bastante hospitaleiros com o heroacutei

Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o

aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo

de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele

contasse um pouco mais de si

Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)

Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes

sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram

ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com

presentes o barco que levaria Odisseu

Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao

chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente

escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo

responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num

rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga

119

Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de

Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua

ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter

reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que

morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de

Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa

estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto

ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)

Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e

Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os

cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia

se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema

satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de

Peneacutelope

De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou

afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai

ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio

prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma

Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em

Esparta

Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos

anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a

presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos

os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam

chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao

longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a

agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo

os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por

se tornar amante deles

Para Brandatildeo

Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela

120

desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)

Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope

resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo

assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de

dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os

pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da

escolha de outras formas

Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo

quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu

seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses

tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao

mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi

encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles

imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope

Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de

fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora

bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe

faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo

dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que

havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes

de Peneacutelope

Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-

los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu

o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das

saudades que ela sentia do marido

A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses

e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para

banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna

de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees

Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo

Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou

inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que

121

apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o

armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos

doze machados

Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar

sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida

Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo

O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os

pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute

por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o

mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os

alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei

se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim

comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima

Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze

foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a

desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque

maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa

Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade

conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele

mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou

Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)

Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande

maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma

que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com

os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente

Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para

Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da

velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz

respeito agrave fidelidade de Peneacutelope

122

Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para

sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer

um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute

ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez

sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho

Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se

apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria

nascido Poliportes

O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses

apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por

Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na

Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo

de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que

fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-

los

Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria

encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria

ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei

teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade

avanccedilada

A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de

um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a

identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a

devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores

mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia

feito a quem havia matado

Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para

a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo

fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein

(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo

123

8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO

Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)

Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por

Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves

transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e

do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos

da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise

do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel

compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro

do modelo junguiano

Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do

heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em

rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo

determinante na Guerra de Troia

Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva

teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a

individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute

estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse

lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do

nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com

Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que

Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu

retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando

precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez

anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo

Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora

entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente

que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema

comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso

124

Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os

desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de

ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da

dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia

cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de

individuaccedilatildeo

Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de

acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante

frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de

aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante

Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de

Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir

regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto

de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para

chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de

Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando

por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa

Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de

Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo

(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa

tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute

interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando

sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que

[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)

A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa

viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem

uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este

processo

125

O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em

casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a

individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma

ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e

irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se

compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo

unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o

casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise

Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria

que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o

autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos

isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de

tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo

para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado

chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao

longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as

caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem

representadas pelas figuras dos companheiros

81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA

Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que

deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles

por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e

suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente

o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de

Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa

exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho

e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz

(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo

quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e

instabilidade futura

A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos

Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando

126

apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para

embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens

natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um

contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram

durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute

identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial

podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees

de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a

individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de

seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos

sombrios jaacute estaacute comeccedilando

Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado

novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta

para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do

processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto

(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila

Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de

evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos

inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir

82 ENCONTRO COM POLIFEMO

O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de

Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior

da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de

escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar

Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua

identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos

um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o

orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico

Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus

dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de

sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda

afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer

127

Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo

intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo

pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se

analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e

no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro

(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e

inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo

Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de

Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo

praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena

Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que

desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros

conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada

por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas

impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como

momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)

seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso

retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com

Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa

oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um

aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior

Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria

pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos

sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se

manifestar impedindo a continuidade da viagem

Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem

a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase

chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei

adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem

tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de

volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos

deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que

Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono

128

Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os

barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash

o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade

enfrentada

83 ENCONTRO COM A CIRCE

Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que

Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que

desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei

pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu

recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem

sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das

instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses

recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm

filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar

Tireacutesias eacute Circe quem o orienta

Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self

Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de

Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura

do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o

autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se

aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes

Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute

ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem

estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de

uma nova orientaccedilatildeo espiritual

Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de

Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem

da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira

ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um

complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter

demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva

129

Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por

feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse

aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por

Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de

Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e

negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao

relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da

anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras

Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de

guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e

inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que

fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute

84 DESCIDA AO HADES

No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas

incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se

aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que

ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus

caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo

para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon

depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando

consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar

Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem

Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho

diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que

simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se

com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha

consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte

simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A

morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o

autoconhecimento

Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de

individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado

130

por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao

movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante

esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens

novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute

pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda

precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do

Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de

morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar

para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas

tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o

remo numa terra onde natildeo se conhece o mar

Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade

traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila

seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso

Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma

No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que

se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a

matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto

desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato

podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso

como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste

trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como

fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta

sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer

cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de

Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme

Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses

diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro

O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a

ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute

escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo

sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-

lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte

131

Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho

Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do

navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro

aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com

seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos

entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim

consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem

necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade

do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se

arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o

rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda

luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o

Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco

compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de

seus companheiros

85 ENCONTRO COM CALIPSO

Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha

de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus

companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a

viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam

presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam

Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens

ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e

percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a

mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala

mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do

banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a

vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na

embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos

novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar

seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar

depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei

132

dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode

representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta

esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que

ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho

Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem

tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia

segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis

um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a

figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que

vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que

passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia

Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que

a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando

que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no

caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui

representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos

supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego

natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos

Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por

ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie

Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso

concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa

passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash

assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade

Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso

quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer

prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando

ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de

individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou

esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada

por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente

porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la

133

86 OS FEAacuteCIOS

Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento

Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila

um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino

interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua

armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua

relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas

Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo

por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com

Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus

aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo

levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado

novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer

de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se

desidentificando com a persona

Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois

ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima

integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e

desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia

conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que

Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia

pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash

filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com

humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso

rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a

fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a

primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se

manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho

para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para

guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu

processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do

heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para

confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que

134

foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar

ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se

joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros

com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante

o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra

de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc

chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que

ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo

pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde

educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe

fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes

Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que

satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua

funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu

nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios

presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros

presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais

em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do

Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a

transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas

87 IacuteTACA

Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme

os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute

significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo

prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute

mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua

funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos

inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego

Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela

confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era

Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua

verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente

135

pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao

ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria

morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua

aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua

alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio

repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que

certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute

a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo

mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de

Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar

Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos

pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser

forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e

da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa

amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo

se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope

Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute

simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto

impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses

conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais

arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o

ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos

se vecirc sendo interrogado por ela

Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os

pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que

Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela

exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou

uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve

percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas

um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze

machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de

sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo

verso do poema ela decreta a paz

136

Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal

Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei

de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria

sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender

por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar

outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina

ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver

88 DISCUSSAtildeO

Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de

individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos

que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes

da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas

diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo

do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras

siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute

instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que

observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a

peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia

onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa

peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa

viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo

Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida

ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito

geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como

Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam

diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar

a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e

segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo

masculino

Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o

heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo

unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos

137

em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a

ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre

permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que

diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato

com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher

cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias

Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo

pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o

casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o

indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las

no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do

casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na

Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de

estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito

da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do

seu primeiro filho

Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua

famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da

Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele

mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida

ao plano dele

Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente

do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto

como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai

de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria

um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser

raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto

notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de

Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-

o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem

Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo

de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente

disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a

138

filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar

sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de

Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro

tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa

no futuro

Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a

Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela

comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia

Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia

pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa

inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do

heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio

perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi

principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu

pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs

a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito

de seu futuro

14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela

139

9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos

entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma

como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do

heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina

Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes

domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi

essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia

profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a

disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver

originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades

Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio

da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e

poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa

questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho

sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este

processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e

agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade

Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a

manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo

Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora

impotildee seu reconhecimento

Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um

indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes

pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua

anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode

invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])

descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a

desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios

a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento

da funccedilatildeo inferior

140

O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de

individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas

Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em

outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade

propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo

estagnados

O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia

analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos

caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat

(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas

individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais

comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em

filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis

Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o

mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro

momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois

seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e

Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung

(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a

esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)

Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua

cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz

(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma

mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos

demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do

processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza

Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como

siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de

individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei

representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham

seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria

pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam

o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da

141

ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei

integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de

Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento

Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self

representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis

como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo

entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As

personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias

Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da

anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados

de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com

Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco

Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede

que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas

expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina

Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o

adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre

quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua

jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses

e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma

embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a

sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando

estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em

Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio

com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele

precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia

Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de

suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves

provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente

o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo

conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina

haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados

142

De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo

dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo

seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma

questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo

de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de

casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo

de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os

pretendentes e defender o seu casamento

Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca

como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de

sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que

Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas

ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de

outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia

comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos

chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma

transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo

Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])

quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima

geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas

opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como

expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem

examinadas em trabalhos futuros

143

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APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA

Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto

realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no

momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador

decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia

ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero

(2013)

Canto I

A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de

Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca

Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o

poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua

morte

Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam

morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido

chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido

Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses

eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon

Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros

quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia

comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por

Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra

esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto

assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado

pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee

Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus

que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava

sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado

seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou

Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu

Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a

expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope

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Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que

seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas

natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco

revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com

todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de

seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca

clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser

assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma

natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai

Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os

pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos

conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter

notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco

com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto

para partir em busca do pai

Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de

Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo

pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses

porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco

interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela

ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros

haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos

seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude

Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco

Canto II

Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele

sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute

Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles

homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus

e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um

dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras

e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o

coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a

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artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente

assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No

entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os

pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano

alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha

constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai

dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por

meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os

pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu

que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os

pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso

achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os

punissem do modo que considerassem justo

Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave

esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e

se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de

medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que

Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses

propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos

pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos

apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que

aquilo jaacute estava acontecendo

Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois

sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope

fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados

Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a

Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que

seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria

sua matildee casar-se novamente

Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua

casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia

de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente

respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu

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retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia

se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo

de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem

frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que

a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que

ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os

pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha

com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para

acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que

seguiria viagem com eles

Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um

deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los

Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como

Odisseu

Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua

viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para

abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua

viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou

doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o

plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a

garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se

Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o

melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a

provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de

modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo

proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os

tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute

Canto III

O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar

encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a

primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se

diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto

quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de

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Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem

uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o

ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com

seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece

Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham

Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma

vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para

pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em

Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito

sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre

Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas

hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso

imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em

Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon

enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor

e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que

Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a

Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos

pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele

Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos

pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma

que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo

dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que

aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz

que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros

obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que

chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado

por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que

natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida

perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar

o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau

para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a

viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de

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Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os

companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a

cavalo e ser escoltado por filhos

Canto IV

Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus

companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a

respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou

que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe

causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de

notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso

Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar

Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o

agrave prova

Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem

eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau

concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor

confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute

justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a

chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que

nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de

Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que

pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem

sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena

Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de

colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e

o sofrimento e logo todos dormiram

No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua

viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez

narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia

explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a

ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para

que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas

recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar

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preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera

lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto

Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a

viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular

um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo

descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope

lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que

Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e

Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma

terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a

culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se

comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute

Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir

com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a

Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam

no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno

Canto V

Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu

lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a

ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute

se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que

natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o

regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco

Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o

avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca

Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava

tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que

estava na praia chorando como de costume

Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora

enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no

momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora

conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida

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imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram

crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal

Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua

ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia

perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a

imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma

vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe

proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria

como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo

A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o

fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa

Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela

tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento

favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a

vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los

Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e

se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando

nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de

Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela

disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente

recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas

provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de

tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum

sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua

jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No

quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel

conforme prometera

Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos

Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de

terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios

enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente

de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez

com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer

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ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele

ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia

Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar

a morte

Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera

honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e

pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a

abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria

chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria

abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a

jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou

de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar

com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua

a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que

ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo

de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez

com que ele dormisse para descansar

Canto VI

Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios

Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha

de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus

irmatildeos no rio

Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar

roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas

lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas

tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as

servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou

uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez

com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia

Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo

ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas

com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando

apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele

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narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para

chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes

dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se

vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila

fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em

seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso

Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios

Canto VII

Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que

assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de

Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha

Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao

terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com

Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa

cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu

lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos

deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que

na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por

diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu

agradeceu eloquentemente

Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que

ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira

aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre

causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de

Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da

deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada

Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua

jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu

Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa

Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe

contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na

manhatilde seguinte

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Canto VIII

Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso

Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o

repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para

serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens

terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo

saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila

de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a

escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim

Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos

gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante

um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si

os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas

Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem

Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos

esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o

impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de

Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica

Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e

mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da

marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu

orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando

que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os

imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos

estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou

a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores

danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o

espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado

Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes

para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e

o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela

quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu

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prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela

como se ela fosse uma divindade

Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por

cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia

Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que

permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda

de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio

corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu

chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e

sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus

barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa

Canto IX

Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era

conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia

nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a

deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa

Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que

nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades

lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram

proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e

levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus

companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais

numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones

haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada

barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes

por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma

tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se

tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento

Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em

terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza

Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo

vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos

Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para

159

investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do

loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali

sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco

para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se

plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem

natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras

Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de

homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras

para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha

dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde

notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns

companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram

hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens

esperassem no barco

De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um

pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui

que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze

bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de

vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro

com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles

entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem

pelos queijos

A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os

deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e

cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes

seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo

tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os

homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando

ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope

trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e

seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que

eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto

sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os

160

deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O

Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do

que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco

deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus

barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles

homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute

e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e

devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele

ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de

Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme

pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu

na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la

Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de

mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o

escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando

mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe

vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe

revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe

mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que

se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade

devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar

sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a

seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar

fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por

algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu

pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o

Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram

enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar

os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com

uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que

ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes

vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez

161

que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio

de Zeus e foram embora

Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos

estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir

Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo

que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a

fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu

porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga

de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma

forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal

Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna

quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam

um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma

vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o

pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos

Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus

companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute

havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou

para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder

corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou

de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas

imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele

baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida

Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em

casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um

regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho

Posiacutedon ouviu a prece do filho

Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o

restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus

sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os

alegrava terem escapado agrave morte

162

Canto X

Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos

enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a

respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e

em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para

Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento

responsaacutevel por levar os homens de volta

Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia

eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e

enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando

da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros

resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo

escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca

levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e

perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas

Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses

abominavam

Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo

chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram

pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para

investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que

descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e

de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se

depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo

chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de

Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram

depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido

com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos

barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os

Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso

Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a

remar fugindo

163

Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu

seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de

Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros

que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de

Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os

homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo

os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O

primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os

demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem

desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens

adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da

proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas

de modo que eles conservassem a inteligecircncia

Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os

companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que

Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de

ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu

que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho

para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no

iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu

tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos

como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria

livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu

comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe

lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca

ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele

natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem

disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais

nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva

mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem

Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe

ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante

dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela

164

adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que

Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que

criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus

aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse

solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram

ao magniacutefico leito

Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado

pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o

daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia

sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em

porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho

Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma

humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo

foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se

comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois

voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco

para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram

imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em

animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim

como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou

decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo

Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou

com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca

Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se

reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne

abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de

Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o

tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi

suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia

prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa

contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes

de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para

consultar o adivinho Tireacutesias

165

Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da

deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal

empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do

vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio

Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali

Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam

o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava

ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e

Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e

mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e

invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu

palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas

a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais

esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um

carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na

direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu

deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e

orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez

teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe

revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca

Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a

respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a

natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute

Canto XI

O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano

aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do

rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram

as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo

as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois

farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor

novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais

esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces

Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu

166

As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos

solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de

sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus

companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando

aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu

glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse

Tireacutesias

A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara

sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens

tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome

de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave

ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu

prometeu atender aos desejos de Elpenor

Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que

ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo

deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que

apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar

despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar

do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade

Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele

esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno

muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho

Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que

conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando

chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de

Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu

regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens

saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse

escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito

tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria

tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu

conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por

meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir

167

ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com

um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar

um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e

sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu

morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes

ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o

reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee

chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades

Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho

Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu

que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que

ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde

que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai

Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que

Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do

filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo

triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do

glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um

grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu

usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua

identidade e ascendecircncia

Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os

deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu

que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem

e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que

apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em

torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de

Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo

pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte

Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante

de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que

Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este

oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por

168

causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o

marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal

destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem

bom e ambos ficariam felizes com seu regresso

Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e

de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso

Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias

esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu

acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles

que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora

exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a

proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo

pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho

Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas

ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora

satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-

se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele

quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo

ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos

deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de

Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e

sem responder voltou ao Eacuterebo

Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres

devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo

de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a

aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso

rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia

com que o rochedo rolasse montanha abaixo

Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com

Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses

apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou

com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se

encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a

169

de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave

ajuda de Hermes e Atenaacute

Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de

Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus

companheiros comeccedilou a remar para longe dali

Canto XII

Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde

sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-

los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas

mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou

para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os

homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes

indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades

comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas

sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de

se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar

os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de

modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos

haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu

deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes

atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo

que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em

decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia

uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava

terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente

longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de

dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam

para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria

uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem

os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor

opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o

monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo

170

Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por

Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez

Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda

assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse

perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens

conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio

Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave

Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave

Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o

barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria

chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho

Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados

pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos

companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam

se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde

que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus

companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando

continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se

puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo

que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia

mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe

soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e

soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias

Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme

Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a

continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os

homens obedeceram

Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a

respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do

navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das

recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave

proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e

ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado

171

estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a

vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros

temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham

os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior

experiecircncia da viagem inteira

Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do

deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o

que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e

da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para

longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo

permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a

tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que

seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que

encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas

por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia

comeram e dormiram

Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles

tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas

vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os

homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse

nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens

tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de

orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar

suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso

Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais

triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as

vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A

tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o

barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o

por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez

que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia

Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo

para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse

172

atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente

Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre

a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora

Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde

demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os

couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos

Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as

melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando

Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou

a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na

cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco

projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou

a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No

entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e

por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e

Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a

quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e

seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu

passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de

Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu

Canto XIII

Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes

ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para

conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos

presentes

Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos

roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a

casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo

Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir

Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse

aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca

Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo

que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto

173

conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo

assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele

enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo

inteligente quanto os deuses

Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram

na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido

na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara

graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia

Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees

afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era

respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon

se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que

este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com

facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu

havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar

e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o

castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito

No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios

no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas

Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o

numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia

cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez

O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute

havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar

os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de

touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo

Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria

terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que

tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos

pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a

lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou

de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele

174

se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras

dos aqueus

O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se

dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia

Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e

repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria

terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais

persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e

astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que

naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os

problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar

calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido

Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que

ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que

nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o

sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios

quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu

pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo

Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou

que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem

na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto

queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que

Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa

por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava

guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo

Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode

reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave

cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma

gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos

apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute

trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente

desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo

promessas de casamento que natildeo queria cumprir

175

Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu

palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa

Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse

durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em

Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que

acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria

irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a

primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente

bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu

sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia

a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai

Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse

sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo

era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu

natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade

Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes

estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este

plano estava fadado ao fracasso

Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho

mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de

Telecircmaco

Canto XIV

Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim

de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do

porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o

forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito

sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo

Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e

bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles

deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo

conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do

rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma

176

quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens

juntos

Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava

vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo

tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo

entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos

em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-

lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca

se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta

Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama

para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que

quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em

seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava

a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se

deparar com a fidelidade do porqueiro

Canto XV

Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para

Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na

empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa

Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se

casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o

consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo

que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando

mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes

de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que

chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim

de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com

Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e

depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria

Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros

homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho

para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e

quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou

177

dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram

extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de

Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram

dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro

Canto XVI

Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos

cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu

terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo

porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de

Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido

Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao

rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a

refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo

ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira

Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o

priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para

defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em

condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o

velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho

Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com

os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo

Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela

situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia

chegado satildeo e salvo

Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher

fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua

verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim

aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto

Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia

se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu

Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e

perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco

poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem

178

apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de

Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar

Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou

que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora

sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu

perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho

dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre

ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um

empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute

e Zeus como aliados

Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria

retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo

mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu

deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um

de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito

da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir

quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis

Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada

de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido

um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter

dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que

espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles

retornou

Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam

cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se

concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que

eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato

de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram

agrave casa de Odisseu

Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez

que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-

se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses

e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco

179

prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele

mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus

aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse

Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho

mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse

Canto XVII

Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo

para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que

chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope

emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-

vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um

forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos

Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem

Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu

Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha

da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta

de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a

Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas

louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse

verdadeiro

Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho

encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores

cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando

Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei

de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu

caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que

seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam

um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de

Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou

se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou

com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida

Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez

180

Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se

aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao

mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se

aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de

descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se

aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente

Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na

cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda

praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco

Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava

sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo

que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado

Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo

dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o

mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha

estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a

ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes

O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila

no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele

e Odisseu haviam sofrido muito juntos

Canto XVIII

Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou

de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando

e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se

com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos

estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para

jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade

Telecircmaco incentivou a refrega

Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes

surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente

Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes

estes o cumprimentaram divertidos

181

Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos

pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao

filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho

e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas

Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza

havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e

Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens

Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela

caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a

aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se

aproximaram e Peneacutelope acordou

A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se

dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes

maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco

elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo

comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse

retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem

quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um

segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira

como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo

dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa

porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem

presentes seduzia-os ainda mais

Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os

presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los

poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse

escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali

permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu

iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e

mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa

Canto XIX

Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou

o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia

182

e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto

enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam

estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se

puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir

dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias

dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu

maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes

As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e

bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava

importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia

Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito

se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso

ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em

seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a

fim de que pudesse interrogaacute-lo

Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta

iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso

mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo

muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que

aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar

de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma

mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim

que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de

modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum

pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do

quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da

artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora

precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava

infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia

do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo

lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu

que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a

183

tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para

natildeo revelar sua verdadeira identidade

O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu

recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras

riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-

lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e

que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele

depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem

banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha

Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento

Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a

lembrava muito de Odisseu

No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a

cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar

Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo

Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que

tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho

de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope

entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a

forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles

Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e

retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria

com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado

incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo

que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu

arco

Canto XX

Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em

como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a

aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela

preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela

para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce

sonho se apossasse de Odisseu

184

Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa

proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um

homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus

pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu

Zeus mandou trovotildees

Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem

uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e

perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu

respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem

aqueles homens abusados

Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as

cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo

que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve

de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro

Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do

cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo

afirmou que Odisseu logo retornaria

Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo

uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na

direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo

interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram

Canto XXI

Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos

pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde

estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se

dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se

casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar

com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o

porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem

cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem

distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da

declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e

incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas

185

O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo

conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem

sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo

Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os

seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele

voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua

identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que

dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se

emocionaram ao reconhecer o amo

Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos

pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe

o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo

cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para

garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes

Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e

lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por

sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte

oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a

disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento

Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o

arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo

reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o

arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa

forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir

Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para

entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus

aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa

com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou

Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para

todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a

sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos

e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se

186

alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo

disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas

Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os

pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua

distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar

suas armas

Canto XXII

Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo

apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha

Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e

escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de

morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem

estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali

para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem

se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens

Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma

forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda

aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora

o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar

formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu

respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria

vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a

lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas

nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por

Odisseu

Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido

nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo

de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo

para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos

pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro

homens estavam devidamente protegidos para a luta

Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum

Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu

187

escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um

dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar

ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio

estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a

fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e

assim Melacircntio saiu para buscaacute-las

Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se

armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma

serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem

admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito

Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para

buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que

Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna

A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio

contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo

proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros

querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas

ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr

fim na refrega

Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que

Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis

comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que

ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes

Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio

doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as

trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu

ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio

Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais

dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto

Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia

que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria

avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu

rei

188

Canto XXIII

Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em

casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que

Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que

Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber

como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia

natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos

corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele

soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia

finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora

proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso

Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope

foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por

algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope

poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter

certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de

Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes

que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse

preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a

respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope

finalmente havia se casado novamente

Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a

maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu

legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia

seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse

mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que

entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para

que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo

podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma

oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu

que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou

o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar

189

Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar

no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de

acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de

Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a

um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos

demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu

morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de

sua famiacutelia

O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois

continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta

de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia

passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas

riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes

Canto XXIV

Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se

lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se

depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon

Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o

que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo

tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e

contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela

tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes

descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e

do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que

levaria agrave desgraccedila dos pretendentes

Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a

prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai

na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele

estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem

era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu

e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho

e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e

disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-

190

se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa

abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes

exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz

na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai

quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a

casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido

por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se

juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu

reverenciaram-no

Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se

juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos

Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou

a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta

Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou

algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes

estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso

Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver

a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco

logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes

fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos

pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A

fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que

Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre

eles

  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
  • 2 OBJETIVOS
    • 21 OBJETIVO GERAL
    • 22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
      • 3 MEacuteTODO
      • 4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
        • 41 EM JUNG
        • 42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
        • 43 OUTROS AUTORES
          • 5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
            • 51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
              • 6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
                • 62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
                • 63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
                  • 631 O MITO DE POSIacuteDON
                  • 632 O MITO DE ATENAacute
                  • 633 O MITO DE HERMES
                      • 7 A VIDA DE ULISSES
                        • 71 ORIGEM
                        • 72 TROIA
                        • 73 RETORNO A IacuteTACA
                          • 8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
                            • 81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
                            • 82 ENCONTRO COM POLIFEMO
                            • 83 ENCONTRO COM A CIRCE
                            • 84 DESCIDA AO HADES
                            • 85 ENCONTRO COM CALIPSO
                            • 86 OS FEAacuteCIOS
                            • 87 IacuteTACA
                            • 88 DISCUSSAtildeO
                              • 9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                • REFEREcircNCIAS
                                • APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
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