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PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO ndash PUC-SPPROGRAMA DE ESTUDOS POacuteS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA
NUacuteCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS
LETIacuteCIA GONCcedilALVES SAID
O MITO DE ULISSES COMO METAacuteFORA DO PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeOMASCULINO NO MODELO JUNGUIANO
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA
SAtildeO PAULO2019
PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO ndash PUC-SPPROGRAMA DE ESTUDOS POacuteS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA
NUacuteCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS
LETIacuteCIA GONCcedilALVES SAID
O MITO DE ULISSES COMO METAacuteFORA DO PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeOMASCULINO NO MODELO JUNGUIANO
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA
Projeto da Dissertaccedilatildeo de Mestradoapresentada agrave Banca de Qualificaccedilatildeo comoexigecircncia parcial para defesa no Programa deEstudos Poacutes-Graduados em PsicologiaCliacutenica da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo ndash PUC-SP sob a orientaccedilatildeo doProf Dr Durval Luiz de Faria
SAtildeO PAULO2019
_______________________________________Profo Dr Durval Luiz de Faria
_______________________________________Profa Dra Paula Guimaratildees
______________________________________Profa Dra Maria Teresa Nappi Moreno
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip
Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo
Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho
Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida
Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador
Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees
Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos
RESUMO
A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento
Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo
ABSTRACT
Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling
Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO8
2 OBJETIVOS14
21 OBJETIVO GERAL14
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14
3 MEacuteTODO15
4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19
41 EM JUNG19
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21
43 OUTROS AUTORES22
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79
62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95
631 O MITO DE POSIacuteDON95
632 O MITO DE ATENAacute97
633 O MITO DE HERMES99
7 A VIDA DE ULISSES103
71 ORIGEM103
72 TROIA107
73 RETORNO A IacuteTACA113
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124
82 ENCONTRO COM POLIFEMO126
83 ENCONTRO COM A CIRCE127
84 DESCIDA AO HADES128
85 ENCONTRO COM CALIPSO130
86 OS FEAacuteCIOS131
87 IacuteTACA133
88 DISCUSSAtildeO135
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137
REFEREcircNCIAS145
APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149
Its My LifeBon Jovi (2000)
This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed
I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice
When I shout it out loud
(Refratildeo)Its my life
Its now or neverI aint gonna live forever
I just want to live while Im alive(Its my life)
My heart is like an open highwayLike Frankie said
I did it my wayI just wanna live while Im alive
Its my life
This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down
Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky
Got to make your owns breaks (Refratildeo)
Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1
1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)
8
1 INTRODUCcedilAtildeO
Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)
Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras
aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi
um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos
estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo
de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute
um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da
psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova
singularidade
O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia
permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e
os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus
pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles
siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este
fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era
composto por uma camada pessoal e outra coletiva
O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por
tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou
esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as
formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma
imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute
compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as
experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um
lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa
conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor
Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo
9
(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)
Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia
Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011
[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as
fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de
consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam
isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na
consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel
O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os
conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O
processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung
(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para
compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute
que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no
inconsciente novamente
Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da
vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos
atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos
aprofundaremos neste periacuteodo da vida
Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes
de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa
sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual
ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente
estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito
ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel
O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o
equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a
atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas
a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida
estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia
agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise
psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente
10
Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens
inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como
sintomas psicopatoloacutegicos e
Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)
O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta
conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para
ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo
como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao
utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a
consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta
forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e
obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia
Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante
significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica
que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo
atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a
qualidade de vida
Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia
que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva
do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento
e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais
expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo
que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis
Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem
recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz
sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela
11
narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois
dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste
conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito
Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da
forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem
arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por
isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a
psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas
que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a
Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para
casa apoacutes a guerra de Troia
Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio
sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta
tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a
provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar
situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo
De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais
influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas
passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por
meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a
passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor
de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura
dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses
Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem
um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual
surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade
Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama
Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um
aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia
Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras
seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria
transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)
2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome
12
Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original
esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes
lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto
particular
A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo
entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se
concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as
pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero
relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo
como protagonistas pelo menos como coadjuvantes
Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa
cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-
junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo
conforme descrito por Jung
Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem
ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por
meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com
Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de
sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo
A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo
do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que
Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre
qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma
essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter
arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)
A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos
ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos
permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo
uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e
perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo
Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5
anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos
deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me
13
levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos
preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio
chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano
Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela
forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se
restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito
vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem
cursos ministrados por analistas ali formados
Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro
capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a
anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos
do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as
principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a
importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e
psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia
Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua
morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da
psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de
Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-
junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados
em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo
apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um
resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia
14
2 OBJETIVOS
21 OBJETIVO GERAL
Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos
15
3 MEacuteTODO
Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito
de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano
Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica
neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)
Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram
mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia
Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga
(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a
psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico
Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a
pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo
de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos
junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)
Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram
consultadas para este trabalho
No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR
odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea
NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam
relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou
Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram
relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de
Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)
Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus
OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram
encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros
eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros
ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo
de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos
16
interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as
pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)
A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND
individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology
resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo
porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como
embasamento teoacuterico
Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope
AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra
de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da
personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente
trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam
disponiacuteveis
A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer
no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam
relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo
De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND
(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em
nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema
que natildeo acrescentava ao nosso tema
Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer
quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente
nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise
Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo
geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me
surpreendeu bastante
As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora
as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos
portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de
individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em
encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de
17
entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia
fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria
Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O
feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese
de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes
Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do
relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no
presente trabalho
A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a
maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise
das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi
consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo
da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino
em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes
Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante
abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se
transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e
mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no
acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso
todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei
que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo
Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho
uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo
direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares
sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi
(2015a e 2015b)
O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do
poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas
tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um
resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do
trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da
metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei
que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu
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nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e
portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a
Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que
eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema
(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no
momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que
eu considero podemos ver metaforizados no mito)
Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses
que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada
Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de
outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise
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4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
41 EM JUNG
A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de
estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua
produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da
psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago
este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria
Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da
Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar
sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais
frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica
No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma
minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa
sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da
amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas
Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para
fazer a amplificaccedilatildeo
Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o
segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma
viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a
C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei
Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a
respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente
apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])
utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute
de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas
queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que
cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele
reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua
anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona
novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de
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sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito
do nosso heroacutei
No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e
interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido
produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito
brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para
poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011
[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que
menciona o consumo de sangue de bodes
No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses
de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou
didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce
Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas
em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum
comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu
No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e
inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos
mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele
explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo
subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses
faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias
De acordo com Jung
O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)
O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute
presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro
(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que
estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que
este monstro habite as aacuteguas dos oceanos
A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os
compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG
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2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio
de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam
vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e
filoacutesofos
O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se
preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para
o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de
forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca
os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos
relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011
[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca
em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma
forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores
confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])
apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem
que os sonhos satildeo significativos
No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente
Para ele
O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)
Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a
peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que
improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu
significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado
psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para
estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e
a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de
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planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima
do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)
Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma
descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da
perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de
complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto
as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse
tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e
que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso
para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham
caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade
Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte
ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia
analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso
e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise
da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua
eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo
famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o
motivo de seu sucesso
43 OUTROS AUTORES
Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a
morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do
poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma
definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel
pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc
Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria
se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta
tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga
(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por
meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por
exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou
quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo
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pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA
2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do
pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope
De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido
considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos
informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a
morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes
provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento
O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que
aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses
desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da
fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no
Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida
(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido
antes de morrer
Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento
uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria
o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o
heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes
vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens
morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)
Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)
destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e
nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder
a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e
Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a
fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para
natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos
deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu
turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar
3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres
mueren una uacutenica vezrdquo
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em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o
heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo
Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o
morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande
habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por
parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o
motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o
fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo
muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma
expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria
morrer e encontrar o destino
Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia
grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem
relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do
prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera
que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa
accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo
Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela
decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem
Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade
Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do
intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo
divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina
na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida
(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar
liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz
de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do
paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o
sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e
atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central
uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do
domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude
e portanto felicidade
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Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma
deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um
comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o
sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio
o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado
com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo
incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores
Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a
fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se
por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo
capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo
essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de
sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes
responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas
o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino
E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como
a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de
Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia
das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos
Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito
traacutegico grego
Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a
Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue
escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de
que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu
ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses
Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia
disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece
acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com
todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu
muito suporte de Atenaacute
Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na
vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute
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que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da
ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses
Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta
atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que
poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia
ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso
antes dele) mas insistiu em arriscar
Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um
mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a
caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo
inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno
extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou
exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu
palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute
momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa
Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela
realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o
marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem
construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o
quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante
acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido
A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)
Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua
hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria
sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra
especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na
realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por
Homero o mito de Er nem teria sido criado
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O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas
ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute
passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a
escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e
satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo
sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo
(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos
deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como
uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as
afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os
mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta
com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas
Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela
existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar
Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira
como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo
teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel
porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter
nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse
um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida
virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei
considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua
grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem
de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser
ardiloso caso necessaacuterio
Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do
diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades
a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas
diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar
a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve
nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era
respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais
mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que
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preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e
ter influecircncia entre os mortos
Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e
Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que
inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens
Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora
desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria
aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da
qual Aquiles gozava agora morto
Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da
inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve
oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a
opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no
modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera
que a Odisseia
(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)
Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida
de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na
Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que
se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na
verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a
obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas
envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que
diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto
Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses
morreria velho rico e cercado de seu povo
5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama
6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas
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Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a
Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade
de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na
epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele
mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa
Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais
conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua
identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se
chama Ningueacutem
Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute
estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o
nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor
Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado
de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno
de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio
Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)
Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na
Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a
respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No
entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente
sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se
emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas
andanccedilas
Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua
identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou
seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do
heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo
existe mais que natildeo vive mais
Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e
comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou
30
seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo
que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado
intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez
que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe
o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em
que recupera sua identidade e sua histoacuteria
Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA
partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em
que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando
da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68
grifo do autor)
Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este
momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa
cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre
a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar
bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar
para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo
31
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)
Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir
brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a
consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos
autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o
centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute
composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui
ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de
apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e
mulheres
Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo
compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de
si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por
uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos
ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos
processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da
observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e
opiniotildees de uma pessoa)
O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui
funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de
capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando
um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose
provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)
Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente
tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um
instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da
personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o
indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase
inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece
32
Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do
segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir
a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como
(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)
Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um
afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo
Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas
dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo
possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de
forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute
povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos
dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e
considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique
Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas
perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque
a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o
indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de
constelaccedilatildeo do complexo
Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor
demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o
primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por
natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu
do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um
ego para ter consciecircncia deles
Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo
relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e
mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos
Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de
modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou
33
grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia
O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim
mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees
sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma
Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e
eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade
entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute
sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode
considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que
remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam
frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees
por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o
Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira
autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea
Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na
organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram
quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de
Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com
a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se
as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que
Jung denominou processo de individuaccedilatildeo
A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas
(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de
uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se
estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque
assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios
situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois
voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os
sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador
poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em
seus conteuacutedos oniacutericos
Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens
arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos
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fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia
tal como a entendemos De fato para Jung
(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)
Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto
de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os
processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute
capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos
uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo
significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia
os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito
entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este
movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo
que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e
inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador
Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila
entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como
depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da
morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e
elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na
imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que
comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta
eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a
depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua
independecircncia
35
Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por
meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o
qual natildeo haacute uma foacutermula
Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por
meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que
depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que
este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um
esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem
Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)
Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos
definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades
somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo
com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que
haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo
mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo
De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende
de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a
funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito
de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso
depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo
Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que
menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a
nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo
quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo
inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas
caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma
funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua
espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre
entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011
36
[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na
condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior
(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)
O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma
espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer
que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer
sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer
sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que
o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender
as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que
estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que
natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter
causado nenhum resultado
Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca
complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos
acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando
chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute
uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um
grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila
O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez
que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e
significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum
cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se
de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela
psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por
exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando
Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a
separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um
caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques
de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba
37
exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave
separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para
seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam
ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute
buscando
Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a
reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo
doloroso de integraccedilatildeo de opostos
Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas
polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de
sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer
forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos
cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta
maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades
conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)
Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico
que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o
indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o
define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a
individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em
sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se
distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo
devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo
uacutenica de qualidades universais
Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade
dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir
ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo
egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a
autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu
ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo
tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo
7 O Self eacute o si-mesmo
38
depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do
ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado
Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da
necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a
apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em
vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro
que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo
se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer
Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self
que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos
estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente
buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p
216)
Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme
transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma
natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio
de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos
recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num
trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da
persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher
Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem
a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma
imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele
desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto
Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do
indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente
agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao
indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma
vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que
o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O
fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha
consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica
sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as
39
pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo
que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se
desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu
papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias
obsessivas
A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que
significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da
persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a
individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a
persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute
um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o
individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa
doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e
coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para
que a alma possa se desenvolver
Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)
Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos
arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor
ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na
consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta
que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante
a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)
Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em
noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este
estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto
nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a
ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein
explica que isso acontece porque no meio da vida
40
() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)
Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar
entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita
pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo
necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos
podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na
adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-
idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar
outra transformaccedilatildeo
Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos
nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as
pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um
significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social
O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico
o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute
justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos
nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas
acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como
sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem
uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo
a seu respeito
Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos
psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for
desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que
natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua
consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial
Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque
nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos
nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas
e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo
41
configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a
experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas
Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a
individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar
de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da
vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo
determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o
lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se
esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta
tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo
a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam
contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida
Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que
tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase
anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem
da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e
perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da
persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos
separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se
diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma
desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento
para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica
Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja
um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora
seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado
por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se
libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar
livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar
o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento
Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da
nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a
reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as
mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva
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relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos
confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela
definitivamente
Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do
que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que
engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos
nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido
ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a
estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra
A autora explica que
A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)
Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no
meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que
fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora
estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo
podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos
Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo
necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo
temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo
reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que
vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro
relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra
apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em
uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim
vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem
negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado
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Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente
para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por
Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self
que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self
possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos
proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas
que ele ainda precisa cumprir
Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem
os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo
e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-
se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem
antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos
estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de
individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas
singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa
finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas
condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na
polaridade divina
Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego
dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave
proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como
inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a
autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da
personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da
proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos
psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem
fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012
p 56)
Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma
simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato
Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma
experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se
fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os
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iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os
impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a
sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando
orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar
aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-
se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes
Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo
simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da
nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o
que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um
aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo
de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos
sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu
respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los
Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos
nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo
interna
Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja
atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo
por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de
forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar
com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila
de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que
tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos
levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees
Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer
esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se
separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem
em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes
reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo
e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o
que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus
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Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o
resultado da transiccedilatildeo do meio da vida
Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos
dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente
com anima e animus Sobre a anima Jung explica que
A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)
O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da
persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o
exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a
anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias
entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode
ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre
nossa vida exterior
De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a
anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino
relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)
A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma
representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos
germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os
homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que
pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada
homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na
forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo
O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da
mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A
influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista
sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os
outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa
da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a
autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a
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se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso
ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima
como uma forccedila interior
Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em
termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do
homem quando ele
(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)
O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de
individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que
o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo
se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo
inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self
Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem
subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do
mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro
Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura
equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem
a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus
como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum
dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos
atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles
Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)
O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora
opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute
que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta
47
como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo
inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos
guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos
razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung
(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de
preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado
Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von
Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui
aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa
coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a
anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON
FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo
perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente
revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos
sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino
um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute
simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute
representando um aspecto mais coletivo do que pessoal
Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus
estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca
satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam
Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas
prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo
Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos
aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que
constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo
desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento
da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo
projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes
Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos
integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia
Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o
inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute
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bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma
postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim
esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes
A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando
sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias
inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer
objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do
inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de
consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente
percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila
da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia
por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias
A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung
(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e
se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam
os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo
transcendente
O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a
pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de
maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os
conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se
diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade
Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas
necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros
provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia
consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel
para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente
com o que eacute
Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute
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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)
Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute
preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de
permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu
consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute
consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter
demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo
Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e
nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a
conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e
que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando
nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para
expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para
reconhecer sua forccedila superior
A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011
[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o
eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim
Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa
extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a
individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a
consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos
inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute
somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos
com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir
um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior
Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica
uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se
esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a
infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo
revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente
o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter
sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma
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forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser
um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo
exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar
nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que
acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que
essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo
A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam
a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos
internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)
diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo
vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor
A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for
perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses
casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a
apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como
uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais
comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma
mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego
Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um
sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro
delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um
significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais
imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais
superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos
atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ
2008b p219)
A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da
consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma
inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber
sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de
fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e
entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem
ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba
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crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o
exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as
cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela
este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com
o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece
mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto
a ajudaacute-lo
Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este
momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a
magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito
difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa
sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada
servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte
efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com
humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso
E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e
extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma
ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos
voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais
A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e
longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com
eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico
representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores
como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio
guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica
do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus
grego Hermes
A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou
uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao
mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo
podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como
uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de
renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual
52
Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um
jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando
natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo
como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute
onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta
caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que
envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa
segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita
soluccedilotildees criativas para seus conflitos
A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo
sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar
que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o
autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a
presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma
situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida
Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam
escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo
de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a
experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a
experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e
permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as
pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito
semelhante agrave dos sonhos
O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente
territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de
Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e
assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade
suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de
alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e
capacidades
Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no
limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes
8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica
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mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os
acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois
estamos emocionalmente muito sensiacuteveis
Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no
inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos
fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego
o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar
ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora
do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o
autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de
Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia
Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo
relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque
especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees
mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos
do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala
Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute
orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca
poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus
instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses
siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela
Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)
A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas
culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da
criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do
ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego
se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior
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Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como
bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais
relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma
aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de
alguma forma
Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do
self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b
p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua
riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute
comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma
representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito
De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de
um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que
justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela
explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como
um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma
totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as
manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo
espaccedilo-tempo conhecido por noacutes
Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung
que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e
externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute
encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de
pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma
coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de
sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo
entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos
sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de
individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o
indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as
coincidecircncias significativas
Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida
seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso
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mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso
significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que
desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu
processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida
Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do
inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos
positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute
especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as
pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como
exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles
que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com
a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar
grande perigo para o ego
A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo
podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue
funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees
Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil
Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e
um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta
obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros
querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para
conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar
eventualmente
Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das
pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos
provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social
Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo
indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com
determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade
eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos
Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees
com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos
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de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo
sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou
No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois
haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou
social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto
social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles
se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de
duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um
aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre
aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o
que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com
as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a
respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E
uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas
projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma
interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas
Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se
encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para
Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado
transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de
interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo
Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta
mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou
natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e
de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de
partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da
maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos
partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos
estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece
O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado
a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por
estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa
justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre
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as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode
levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por
pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo
de Hermes no coletivo
Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia
a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos
formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os
outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo
compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas
que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o
processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por
meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em
que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados
pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees
negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao
nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social
Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres
motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e
seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos
o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o
processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua
individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo
de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo
contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma
muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se
tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora
utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso
desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna
simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)
Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que
A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para
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o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)
Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio
da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo
extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs
fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que
costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem
da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais
seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute
sua atitude psicoloacutegica
Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e
encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute
consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma
consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em
fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por
sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave
negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes
Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em
objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo
eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser
considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)
considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a
experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a
respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos
planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de
antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser
sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si
Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou
mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a
diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem
cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico
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passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e
atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo
Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal
um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se
restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida
dada sua dimensatildeo sincrocircnica
O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se
associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o
fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao
limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees
do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste
caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz
essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a
conturbaccedilatildeo desta fase da vida
Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao
tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o
tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao
seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia
cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a
vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica
que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no
meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep
separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria
identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees
experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se
confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o
esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele
ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta
Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela
tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo
conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia
Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por
Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O
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autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e
conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite
que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem
possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo
liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se
descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar
relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem
menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado
energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma
ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos
reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)
Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade
se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade
de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta
com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida
Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo
de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo
constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo
faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele
mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas
defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve
demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e
impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo
liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente
Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se
torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o
futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade
valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra
livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve
mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a
situaccedilatildeo
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A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)
Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um
comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a
regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais
intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein
(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da
vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem
tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na
infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a
qualquer um de noacutesrdquo
Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo
psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma
etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece
uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a
identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma
reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma
Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este
processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto
fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra
dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em
padrotildees antigos e sem sentido
Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de
transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos
dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram
reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente
liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais
de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave
nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos
pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo
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Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio
das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas
em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter
conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os
outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e
assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos
coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo
de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a
autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com
aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de
tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas
dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em
siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e
o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo
A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com
siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na
imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas
experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar
consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar
do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia
liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente
Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por
Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e
de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta
circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com
outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da
anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser
cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a
ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante
dos ganhos psiacutequicos posteriores
Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo
preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao
mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta
63
forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado
de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao
entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida
durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo
do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A
constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por
completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que
ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um
elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o
lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do
dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)
Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo
dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila
constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo
do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente
psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase
liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja
eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute
encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar
mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e
estabilidade
Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a
presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus
sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo
estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa
vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos
espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros
eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no
meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto
executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de
escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes
Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente
vista como estaacutevel e tradicional
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(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)
Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que
prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute
exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da
vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o
autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se
mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai
depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo
que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico
Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos
inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em
qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma
experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso
queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo
liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para
a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em
nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um
resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento
entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as
dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses
com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a
inuacutemeros pretendentes
Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de
se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de
desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em
outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia
se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da
aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos
65
cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da
personalidade dos filhos
Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como
instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que
tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as
necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento
Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do
outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por
outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos
independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta
realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz
particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal
Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme
afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que
lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca
poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos
que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que
Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)
Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual
motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo
complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar
bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar
a vida do casal
O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias
estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios
de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo
caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente
dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento
66
Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por
Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente
nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de
elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande
ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e
conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais
satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo
Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento
constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa
individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem
continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus
potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o
casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo
natildeo eacute o uacutenico
Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre
simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus
sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo
o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos
arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos
juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas
que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos
inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos
cocircnjuges
Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o
fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou
seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro
ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca
desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este
desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo
desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece
ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma
uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute
67
proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na
alteridade que seria o principal sentido do casamento
Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a
necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima
da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a
humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que
Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)
O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da
personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)
afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma
criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva
quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial
criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o
siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e
pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de
confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior
Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o
casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento
aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder
uma sombra consideraacutevel
Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute
tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute
uma caracteriacutestica humana
Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas
histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o
final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris
enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno
de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua
vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte
anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios
68
pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses
voltaria para casa ou natildeo
Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um
triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto
De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato
de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo
Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida
dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se
compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la
transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES
2014 p 59)
Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro
mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a
possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira
eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo
em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro
Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao
nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz
Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)
Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a
ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer
uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso
Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica
constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera
improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da
pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o
tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros
As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si
mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer
em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas
69
Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela
traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos
arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees
De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento
tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois
expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado
e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma
pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a
essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo
oacutebvios nem tatildeo imediatos
A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que
Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)
Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes
de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode
proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum
que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se
conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as
eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo
de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus
complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de
honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os
parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas
continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento
Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se
responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis
caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o
indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu
redor traindo ou sendo traiacutedo
70
Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-
se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro
entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu
perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo
A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)
A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber
que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)
destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute
possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser
fiel a si mesmo
De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando
simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa
estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu
animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a
autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor
Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na
separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc
da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se
tentar obter um relacionamento psicoloacutegico
De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o
indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo
pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por
meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e
possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem
relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros
71
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao
mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)
Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais
importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito
apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e
em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente
Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os
mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas
Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo
que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os
temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar
fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e
culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos
perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja
como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico
costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees
livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)
Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores
entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de
humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p
15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas
Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos
entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes
Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens
mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a
mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder
simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje
mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa
cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo
ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias
transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas
72
passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma
estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas
Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da
associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no
quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do
caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original
utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung
como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)
Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do
conceito de inconsciente coletivo
() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)
De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento
ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira
e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida
Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no
inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar
se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a
maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo
psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente
conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas
ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma
expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo
de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada
para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o
estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica
Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um
deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que
um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de
vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus
73
relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades
vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as
possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos
pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para
aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam
Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos
trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz
sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso
siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo
precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou
transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o
mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final
Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro
podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados
Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como
ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de
nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material
analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a
respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta
forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever
futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e
LIMA 2006 p 56)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico
conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers
os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o
paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto
sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso
nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores
consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa
74
se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves
estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao
estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias
divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo
arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela
harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)
Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o
heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente
humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos
adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim
porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que
podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que
escolhemos ser a partir de entatildeo
De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo
da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem
seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute
passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a
cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash
simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra
Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que
A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)
Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas
figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel
perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se
estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas
entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da
nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades
fragmentaacuterias
75
Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou
demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua
capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas
atitudes
Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de
um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a
dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a
nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou
energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por
isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se
soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas
psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que
tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)
Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se
manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a
doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se
soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram
reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento
A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta
precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado
com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar
impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si
mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo
sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um
arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire
caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender
fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade
da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso
Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos
leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles
influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo
temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo
conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein
76
(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos
sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo
liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e
atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que
vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram
rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que
foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo
Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da
psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as
religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida
Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus
mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma
vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus
das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na
alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas
no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute
relacionado a ele
Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de
acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade
sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes
das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves
acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de
tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da
personalidade
Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem
confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus
costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e
misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico
O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia
hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a
ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua
afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de
estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir
77
Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de
Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de
adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute
ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa
ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente
ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do
indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado
O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado
com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar
habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e
qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus
irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades
chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo
caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)
Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)
Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute
por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees
Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para
concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso
quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar
com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e
para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental
de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo
O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso
e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as
reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica
do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos
inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor
forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante
disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode
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curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da
psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma
Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do
deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-
idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute
eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise
Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de
Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma
experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social
pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando
transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e
ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita
pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de
que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas
sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel
natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em
periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia
O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar
psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um
de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein
(2007) a presenccedila de Hermes
(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)
Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o
que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer
comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente
existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para
abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus
Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos
sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria
79
experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em
cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma
experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura
Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca
examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento
psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de
socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da
mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou
acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que
respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa
atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles
atraveacutes de mitos
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do
analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa
julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o
analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas
Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova
postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos
satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute
que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo
Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos
que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram
inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua
essecircncia decifrada
No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando
os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas
origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por
exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias
seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o
autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em
diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos
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Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a
mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por
meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela
depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de
comunicaccedilatildeo com o inconsciente
Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute
fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto
historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e
mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia
claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia
ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do
heroacutei
Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)
O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a
compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela
tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas
impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees
simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de
que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo
principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia
egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo
consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que
o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa
de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa
simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade
9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror
81
Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do
heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a
morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito
pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a
determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia
do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado
momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito
o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da
consciecircncia do homem
Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus
respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-
idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter
ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem
sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo
muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco
branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)
Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto
nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta
sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente
alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus
papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As
imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo
com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as
imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o
quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como
uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10
Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque
pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua
personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de
negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo
10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki
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constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel
sim encontrar qualidades na sombra
De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung
chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para
atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate
entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como
dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma
por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro
livre do desejo do retorno ao mundo da matildee
O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro
tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e
a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e
demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas
Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado
negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No
entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a
forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que
considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute
prevaleceraacute se integrar a sombra
Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos
procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia
pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas
condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo
arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O
que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego
precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo
conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente
Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei
sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade
desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas
e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente
profundo para poder realizar atos criativos
83
O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de
consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os
egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se
desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade
Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave
consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes
a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que
podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-
sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais
derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo
sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos
sonhos como monstros
Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa
consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto
para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica
que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma
fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees
Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos
igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por
meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados
nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso
de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a
consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como
aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica
humana pode haver essa confusatildeo
O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio
do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de
totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o
relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do
heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas
aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute
problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai
ser uacutetil para si mesmo e para seu meio
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Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio
eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em
contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte
simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade
temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito
solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro
ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de
totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)
O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais
complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a
passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase
da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo
se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera
conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de
forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos
Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice
clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente
da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo
eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila
possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia
O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias
subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da
mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a
psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam
rituais de iniciaccedilatildeo
Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de
iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso
precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao
contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute
ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para
morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a
11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais
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finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de
induzir um renascimento simboacutelico
O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a
periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer
doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou
restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio
mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia
Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever
que
A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)
O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do
homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os
conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos
siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo
pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie
de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como
renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom
espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a
anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses
siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute
mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho
sozinho
Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em
nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o
autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que
apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado
psiacutequico permanece o mesmo
86
62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo
aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as
caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto
post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute
relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram
oferecidos aos deuses e aos heroacuteis
Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser
comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou
comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais
diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que
independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem
intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a
medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e
apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as
caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado
sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas
morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino
faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter
sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta
que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de
Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como
modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma
vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso
Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos
disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real
eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute
mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por
dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como
periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto
devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento
daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou
87
num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa
ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores
Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem
ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o
triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras
bem estabelecidos
No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra
(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido
na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades
superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte
da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do
lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter
passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se
destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se
destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe
permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras
dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei
recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte
traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo
(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este
modelo
Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando
honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir
realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o
centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas
seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)
que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante
ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico
ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de
lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da
poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro
Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem
do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por
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sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com
nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a
semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram
contato entre si
Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de
que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem
na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a
imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor
tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha
(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam
responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia
divina do heroacutei
Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram
poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de
modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem
estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis
tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem
para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados
tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p
25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar
a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao
Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo
O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um
sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou
de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter
facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute
cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de
modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo
A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis
Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o
nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral
e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas
primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por
89
etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo
profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado
Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome
consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto
denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome
Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia
Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome
conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui
energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por
isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo
Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que
estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos
(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo
(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o
ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os
humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino
(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada
vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou
masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando
cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o
Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar
sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos
para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se
dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a
procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem
do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino
Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo
masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por
meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos
mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo
como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do
travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como
uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir
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para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute
Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia
De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos
motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a
totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo
escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz
alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado
Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a
partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o
heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua
esposa no mito Brandatildeo ressalta que
Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)
O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na
mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica
para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio
cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido
injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias
Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual
popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero
para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se
referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem
qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis
dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do
heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees
depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles
De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava
presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de
91
manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer
sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo
Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo
Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)
O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante
vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram
travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de
diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam
em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta
enquanto os demais homens morrem no anonimato
A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser
considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas
disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a
morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma
das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham
participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e
agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para
as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis
Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor
das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o
ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido
construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele
incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja
reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca
Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com
jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute
assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis
mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um
numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se
submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou
92
para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado
Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de
Ulisses
A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos
ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos
poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em
homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que
estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos
notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada
jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo
de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de
um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em
morte
Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem
estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que
pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma
geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns
heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de
outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um
apecircndice
O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em
conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser
orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou
Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas
heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por
exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os
males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas
podiam tratar ateacute a loucura
O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros
motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou
famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles
ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser
curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel
93
Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar
com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto
para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os
fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de
preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus
concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos
Misteacuterios
Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como
superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos
como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos
O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui
inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe
permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer
tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi
mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de
benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido
Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia
jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um
heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de
Ulisses tambeacutem eacute mencionada
Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a
cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)
como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o
defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem
apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em
outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um
castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo
Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito
relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma
exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda
estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante
da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos
representando o dom da visatildeo interior
94
O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis
conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito
comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um
apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como
adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo
sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por
vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de
familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um
destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do
templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute
caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei
Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste
numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o
uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou
num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros
morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves
vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem
saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia
matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita
Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois
eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As
reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando
durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de
seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que
(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)
Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a
proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o
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uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem
as energias que alimenta o cosmo
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes
os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de
Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero
relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder
relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei
631 O MITO DE POSIacuteDON
Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus
derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel
pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente
Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas
geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas
secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de
que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente
Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas
fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas
elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees
Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu
trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a
autora
este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)
Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais
deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo
soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de
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Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo
deus
Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a
aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao
construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos
desestruturantes
Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que
difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e
portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila
Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon
atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que
emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)
Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas
extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por
exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope
Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos
Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma
Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)
Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte
anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros
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dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao
expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por
exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro
com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu
enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal
Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro
e agrave proacutepria anima
632 O MITO DE ATENAacute
Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual
Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem
ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar
no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute
estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a
filha
E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o
combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute
eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender
essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram
aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte
para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade
racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)
A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer
pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o
estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como
seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a
possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se
apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a
reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute
passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e
poderoso
Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas
no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute
companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos
98
descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do
espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)
Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de
incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as
coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser
entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)
A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada
em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um
complexo que a deusa elaborou e integrou
Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)
Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se
confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam
ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo
admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo
mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento
Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados
em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A
fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas
provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de
Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado
Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino
Segundo Ribeiro
(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)
99
A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute
profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a
ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada
ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais
633 O MITO DE HERMES
Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)
De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu
chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar
entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade
pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos
deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado
guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles
que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute
atribuiacutedo a Hermes
Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por
Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo
Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus
cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele
havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora
Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este
fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma
necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo
(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um
deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo
Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de
Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele
precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle
100
Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e
astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer
O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois
novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo
Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica
ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra
respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos
Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com
o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora
considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do
instintual para o sagrado
Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes
encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista
(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo
superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num
instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente
Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem
nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo
voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade
Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma
e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute
ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser
colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os
irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus
no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a
partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o
privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o
segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)
Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as
qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)
nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de
presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser
o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom
101
do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado
demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se
apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma
tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta
Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos
pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira
ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia
Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e
informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de
firmar contratosrdquo
Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso
com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute
concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e
mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes
recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas
A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos
como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash
seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a
androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)
Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio
de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes
se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do
movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar
motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens
importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi
fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a
terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia
da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso
nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado
por um casal na Terra como menina escondido de Hera
A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de
destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa
descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem
102
conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute
E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno
de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)
retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o
aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica
Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a
flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira
103
7 A VIDA DE ULISSES
O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)
Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)
Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma
versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram
juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente
coerente
71 ORIGEM
Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como
acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e
Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de
Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que
Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte
Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto
pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade
supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-
rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha
Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de
sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que
enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se
sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que
Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu
negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha
Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse
nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram
surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas
de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-
lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto
o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez
104
Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de
Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era
apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois
pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que
Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era
pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para
comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita
derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila
Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele
ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)
O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a
sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando
para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente
De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de
Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre
os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia
mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo
coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-
ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si
lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)
Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando
Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal
colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo
teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita
gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na
105
Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras
histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis
Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia
de grande temporal
Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)
Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa
Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a
Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos
necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de
Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que
teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-
nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e
Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do
momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria
sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei
Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de
Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito
astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova
botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o
proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou
Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado
agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo
desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel
Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu
106
sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo
nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)
Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e
comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia
na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada
que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do
que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco
acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele
fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia
Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do
rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute
Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis
trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual
mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope
Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras
provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder
espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do
poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas
apoacutes conquistar estes dois feitos
Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade
Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os
pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela
Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe
proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem
era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma
Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da
ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele
simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope
Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este
tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia
do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em
12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela
107
recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio
concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer
forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando
forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a
longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a
fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e
sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)
Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo
corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope
praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o
traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu
apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope
teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde
passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes
descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma
Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de
Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca
adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)
72 TROIA
Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de
Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta
sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o
iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e
Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado
entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim
que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu
Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses
compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo
assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre
os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem
planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a
108
humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de
Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos
Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados
tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma
nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam
igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena
de Troia e outras desgraccedilas
Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia
entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos
homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida
novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava
Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado
Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a
crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o
conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o
bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por
pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida
sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito
Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este
priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de
mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera
ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite
ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de
Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de
conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz
por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu
lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia
Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o
costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo
tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que
os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a
corte natildeo precisava ser feita pessoalmente
109
Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente
de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem
enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que
Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar
com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra
que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais
pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar
a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com
Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o
emblema da fidelidade para todos os tempos
De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez
anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal
real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando
Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia
Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se
aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13
e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-
lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a
participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena
Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto
a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de
Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra
e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa
A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos
para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para
Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se
recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam
que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte
de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de
acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em
Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre
as filhas do rei sob o nome de Pirra
13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor
110
Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas
femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu
entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem
levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas
conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi
quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a
Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu
Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta
uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia
Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em
Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os
ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon
pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que
Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia
sua primogecircnita
Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau
aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo
que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto
Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria
filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas
Menelau o impediu
Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao
acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes
Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois
irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo
instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses
Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris
Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua
astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura
de Teacutelefo ferido por Aquiles
De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios
lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por
111
Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos
Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como
atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon
ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os
aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes
helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que
mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a
Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem
em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes
por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos
poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau
mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez
poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos
natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria
matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor
Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando
astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia
Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de
acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas
como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes
Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra
Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois
de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a
cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes
entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar
os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma
profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio
Escamandro
O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia
isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo
(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o
primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de
Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc
112
Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)
matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover
ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus
Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-
se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma
estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram
inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte
de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada
por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da
guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a
vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu
ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que
perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a
resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax
enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se
tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que
tinha feito envergonhado Aacutejax se matou
Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia
Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e
Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a
Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute
dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e
convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se
agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem
sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax
jaacute havia se suicidado
Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de
Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a
vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o
regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses
ndash devido ao seu machucado fedorento
113
Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e
destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash
mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de
guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada
Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez
anos de guerra Entre eles estava Ulisses
73 RETORNO A IacuteTACA
Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de
partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas
Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu
esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande
borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o
heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o
sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho
delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando
alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os
barcos e fugir
Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo
Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar
pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os
habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a
flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e
fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los
de volta para o navio e ir embora daquele lugar
Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos
ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa
ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos
seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa
caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela
morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada
Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se
mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo
114
que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-
lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho
Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que
Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum
ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando
bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-
los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena
para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga
dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco
Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se
demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a
alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma
vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por
sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo
apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que
ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu
ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse
responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara
Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)
Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito
daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto
e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida
com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu
chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que
fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e
sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho
Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a
ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem
115
passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na
partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos
rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que
deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o
odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos
Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando
Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus
companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que
contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora
foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que
estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de
uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo
De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo
que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana
vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes
canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu
enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras
contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se
encontrava mais distante
O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia
tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens
sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-
los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe
transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara
no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em
vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros
Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu
diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como
escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como
antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa
bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em
porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a
espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo
116
de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de
volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo
com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono
e Nausiacutetoo
Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas
natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa
seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja
sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a
fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em
Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o
restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida
A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor
Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)
Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve
estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe
sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como
passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo
consumir o rebanho de Heacutelio
O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne
humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto
irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim
de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os
ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso
deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer
Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas
para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e
117
ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma
enorme faccedilanha para um mortal
Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros
precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais
raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo
escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que
navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens
Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros
remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a
passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como
viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de
Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram
as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os
homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um
raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara
do banquete
Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes
Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou
apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta
vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando
se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou
laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e
seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela
o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave
ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua
ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem
que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo
(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como
filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela
pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei
voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente
Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual
118
ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a
proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara
seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada
destruindo-a
Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco
destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe
emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que
depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu
e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde
Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia
O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas
companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora
estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu
ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois
o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram
bastante hospitaleiros com o heroacutei
Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o
aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo
de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele
contasse um pouco mais de si
Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)
Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes
sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram
ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com
presentes o barco que levaria Odisseu
Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao
chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente
escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo
responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num
rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga
119
Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de
Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua
ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter
reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que
morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de
Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa
estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto
ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)
Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e
Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os
cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia
se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema
satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de
Peneacutelope
De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou
afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai
ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio
prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma
Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em
Esparta
Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos
anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a
presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos
os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam
chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao
longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a
agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo
os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por
se tornar amante deles
Para Brandatildeo
Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela
120
desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)
Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope
resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo
assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de
dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os
pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da
escolha de outras formas
Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo
quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu
seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses
tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao
mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi
encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles
imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope
Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de
fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora
bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe
faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo
dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que
havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes
de Peneacutelope
Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-
los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu
o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das
saudades que ela sentia do marido
A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses
e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para
banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna
de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees
Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo
Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou
inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que
121
apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o
armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos
doze machados
Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar
sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida
Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo
O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os
pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute
por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o
mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os
alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei
se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim
comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima
Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze
foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a
desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque
maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa
Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade
conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele
mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou
Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)
Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande
maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma
que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com
os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente
Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para
Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da
velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz
respeito agrave fidelidade de Peneacutelope
122
Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para
sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer
um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute
ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez
sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho
Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se
apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria
nascido Poliportes
O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses
apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por
Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na
Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo
de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que
fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-
los
Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria
encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria
ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei
teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade
avanccedilada
A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de
um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a
identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a
devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores
mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia
feito a quem havia matado
Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para
a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo
fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein
(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo
123
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)
Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por
Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves
transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e
do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos
da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise
do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel
compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro
do modelo junguiano
Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do
heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em
rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo
determinante na Guerra de Troia
Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva
teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a
individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute
estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse
lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do
nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que
Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu
retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando
precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez
anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo
Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora
entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente
que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema
comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso
124
Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os
desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de
ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da
dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia
cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de
individuaccedilatildeo
Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de
acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante
frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de
aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante
Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de
Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir
regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto
de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para
chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de
Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando
por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa
Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de
Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo
(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa
tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute
interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando
sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que
[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)
A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa
viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem
uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este
processo
125
O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em
casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a
individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma
ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e
irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se
compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo
unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o
casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise
Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria
que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o
autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos
isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de
tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo
para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado
chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao
longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as
caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem
representadas pelas figuras dos companheiros
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que
deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles
por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e
suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente
o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de
Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa
exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho
e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz
(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo
quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e
instabilidade futura
A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos
Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando
126
apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para
embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens
natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um
contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram
durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute
identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial
podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees
de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a
individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de
seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos
sombrios jaacute estaacute comeccedilando
Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado
novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta
para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do
processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto
(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila
Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de
evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos
inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir
82 ENCONTRO COM POLIFEMO
O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de
Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior
da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de
escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar
Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua
identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos
um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o
orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico
Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus
dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de
sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda
afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer
127
Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo
intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo
pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se
analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e
no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro
(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e
inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo
Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de
Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo
praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena
Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que
desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros
conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada
por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas
impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como
momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)
seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso
retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com
Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa
oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um
aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior
Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria
pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos
sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se
manifestar impedindo a continuidade da viagem
Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem
a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase
chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei
adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem
tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de
volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos
deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que
Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono
128
Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os
barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash
o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade
enfrentada
83 ENCONTRO COM A CIRCE
Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que
Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que
desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei
pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu
recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem
sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das
instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses
recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm
filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar
Tireacutesias eacute Circe quem o orienta
Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self
Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de
Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura
do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o
autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se
aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes
Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute
ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem
estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de
uma nova orientaccedilatildeo espiritual
Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de
Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem
da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira
ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um
complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter
demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva
129
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por
feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse
aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por
Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de
Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e
negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao
relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da
anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras
Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de
guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e
inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que
fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute
84 DESCIDA AO HADES
No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas
incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se
aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que
ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus
caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo
para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon
depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando
consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar
Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem
Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho
diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que
simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se
com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha
consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte
simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A
morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o
autoconhecimento
Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de
individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado
130
por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao
movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante
esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens
novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute
pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda
precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do
Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de
morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar
para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas
tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o
remo numa terra onde natildeo se conhece o mar
Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade
traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila
seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso
Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que
se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a
matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto
desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato
podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso
como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste
trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como
fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta
sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer
cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de
Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme
Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses
diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro
O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a
ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute
escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo
sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-
lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte
131
Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho
Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do
navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro
aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com
seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos
entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim
consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem
necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade
do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se
arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o
rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda
luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o
Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco
compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de
seus companheiros
85 ENCONTRO COM CALIPSO
Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha
de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus
companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a
viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam
presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam
Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens
ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e
percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a
mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala
mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do
banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a
vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na
embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos
novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar
seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar
depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei
132
dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode
representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta
esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que
ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho
Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem
tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia
segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis
um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a
figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que
vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que
passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia
Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que
a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando
que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no
caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui
representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos
supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego
natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos
Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por
ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie
Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso
concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa
passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash
assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade
Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso
quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer
prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando
ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de
individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou
esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada
por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente
porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la
133
86 OS FEAacuteCIOS
Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento
Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila
um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino
interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua
armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua
relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas
Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo
por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com
Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus
aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo
levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado
novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer
de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se
desidentificando com a persona
Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois
ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima
integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e
desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia
conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que
Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia
pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash
filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com
humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso
rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a
fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a
primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se
manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho
para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para
guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu
processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do
heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para
confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que
134
foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar
ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se
joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros
com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante
o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra
de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc
chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que
ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo
pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde
educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe
fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes
Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que
satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua
funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu
nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios
presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros
presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais
em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do
Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a
transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas
87 IacuteTACA
Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme
os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute
significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo
prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute
mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua
funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos
inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego
Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela
confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era
Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua
verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente
135
pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao
ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria
morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua
aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua
alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio
repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que
certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute
a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo
mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de
Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar
Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos
pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser
forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e
da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa
amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo
se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope
Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute
simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto
impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses
conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais
arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o
ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos
se vecirc sendo interrogado por ela
Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os
pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que
Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela
exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou
uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve
percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas
um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze
machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de
sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo
verso do poema ela decreta a paz
136
Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal
Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei
de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria
sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender
por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar
outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina
ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver
88 DISCUSSAtildeO
Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de
individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos
que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes
da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas
diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo
do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras
siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute
instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que
observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a
peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia
onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa
peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa
viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo
Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida
ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito
geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como
Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam
diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar
a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e
segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
masculino
Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o
heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo
unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos
137
em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a
ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre
permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que
diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato
com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher
cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias
Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo
pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o
casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o
indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las
no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do
casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na
Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de
estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito
da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do
seu primeiro filho
Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua
famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da
Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele
mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida
ao plano dele
Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente
do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto
como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai
de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria
um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser
raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto
notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de
Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-
o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem
Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo
de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente
disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a
138
filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar
sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de
Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro
tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa
no futuro
Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a
Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela
comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia
Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia
pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa
inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do
heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio
perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi
principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu
pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs
a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito
de seu futuro
14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela
139
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos
entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma
como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do
heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina
Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes
domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi
essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia
profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a
disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver
originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades
Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio
da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e
poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa
questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho
sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este
processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e
agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade
Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a
manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo
Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora
impotildee seu reconhecimento
Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um
indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes
pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua
anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode
invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])
descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a
desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios
a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento
da funccedilatildeo inferior
140
O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de
individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas
Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em
outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade
propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo
estagnados
O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia
analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos
caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat
(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas
individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais
comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em
filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis
Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o
mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro
momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois
seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e
Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung
(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a
esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)
Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua
cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz
(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma
mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos
demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do
processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza
Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como
siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de
individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei
representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham
seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria
pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam
o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da
141
ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei
integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de
Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento
Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self
representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis
como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo
entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As
personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias
Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da
anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados
de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com
Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco
Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede
que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas
expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina
Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o
adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre
quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua
jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses
e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma
embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a
sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando
estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em
Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio
com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele
precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia
Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de
suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves
provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente
o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo
conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina
haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados
142
De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo
dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo
seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma
questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo
de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de
casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo
de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os
pretendentes e defender o seu casamento
Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca
como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de
sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que
Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas
ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de
outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia
comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos
chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma
transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo
Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])
quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima
geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas
opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como
expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem
examinadas em trabalhos futuros
143
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APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto
realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no
momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador
decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia
ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero
(2013)
Canto I
A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de
Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca
Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o
poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua
morte
Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam
morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido
chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido
Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses
eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon
Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros
quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia
comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por
Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra
esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto
assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado
pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee
Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus
que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava
sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado
seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou
Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu
Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a
expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope
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Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que
seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas
natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco
revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com
todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de
seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca
clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser
assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma
natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai
Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os
pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos
conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter
notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco
com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto
para partir em busca do pai
Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de
Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo
pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses
porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco
interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela
ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros
haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos
seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude
Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco
Canto II
Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele
sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute
Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles
homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus
e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um
dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras
e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o
coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a
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artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente
assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No
entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os
pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano
alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha
constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai
dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por
meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os
pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu
que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os
pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso
achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os
punissem do modo que considerassem justo
Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave
esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e
se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de
medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que
Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses
propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos
pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos
apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que
aquilo jaacute estava acontecendo
Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois
sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope
fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados
Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a
Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que
seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria
sua matildee casar-se novamente
Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua
casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia
de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente
respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu
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retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia
se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo
de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem
frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que
a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que
ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os
pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha
com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para
acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que
seguiria viagem com eles
Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um
deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los
Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como
Odisseu
Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua
viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para
abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua
viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou
doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o
plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a
garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se
Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o
melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a
provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de
modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo
proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os
tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute
Canto III
O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar
encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a
primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se
diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto
quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de
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Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem
uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o
ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com
seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece
Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham
Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma
vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para
pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em
Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito
sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre
Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas
hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso
imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em
Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon
enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor
e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que
Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a
Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos
pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele
Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos
pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma
que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo
dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que
aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz
que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros
obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que
chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado
por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que
natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida
perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar
o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau
para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a
viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de
152
Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os
companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a
cavalo e ser escoltado por filhos
Canto IV
Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus
companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a
respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou
que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe
causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de
notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso
Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar
Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o
agrave prova
Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem
eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau
concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor
confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute
justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a
chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que
nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de
Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que
pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem
sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena
Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de
colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e
o sofrimento e logo todos dormiram
No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua
viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez
narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia
explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a
ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para
que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas
recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar
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preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera
lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto
Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a
viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular
um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo
descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope
lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que
Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e
Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma
terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a
culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se
comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute
Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir
com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a
Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam
no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno
Canto V
Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu
lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a
ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute
se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que
natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o
regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco
Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o
avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca
Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava
tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que
estava na praia chorando como de costume
Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora
enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no
momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora
conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida
154
imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram
crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal
Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua
ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia
perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a
imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma
vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe
proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria
como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo
A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o
fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa
Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela
tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento
favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a
vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los
Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e
se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando
nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de
Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela
disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente
recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas
provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de
tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum
sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua
jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No
quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel
conforme prometera
Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos
Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de
terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios
enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente
de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez
com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer
155
ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele
ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia
Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar
a morte
Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera
honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e
pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a
abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria
chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria
abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a
jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou
de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar
com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua
a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que
ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo
de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez
com que ele dormisse para descansar
Canto VI
Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios
Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha
de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus
irmatildeos no rio
Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar
roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas
lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas
tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as
servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou
uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez
com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia
Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo
ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas
com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando
apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele
156
narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para
chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes
dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se
vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila
fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em
seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso
Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios
Canto VII
Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que
assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de
Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha
Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao
terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com
Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa
cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu
lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos
deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que
na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por
diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu
agradeceu eloquentemente
Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que
ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira
aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre
causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de
Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da
deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada
Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua
jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu
Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa
Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe
contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na
manhatilde seguinte
157
Canto VIII
Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso
Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o
repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para
serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens
terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo
saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila
de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a
escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim
Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos
gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante
um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si
os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas
Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem
Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos
esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o
impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de
Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica
Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e
mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da
marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu
orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando
que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os
imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos
estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou
a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores
danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o
espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado
Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes
para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e
o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela
quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu
158
prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela
como se ela fosse uma divindade
Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por
cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia
Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que
permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda
de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio
corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu
chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e
sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus
barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa
Canto IX
Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era
conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia
nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a
deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa
Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que
nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades
lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram
proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e
levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus
companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais
numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones
haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada
barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes
por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma
tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se
tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento
Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em
terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza
Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo
vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos
Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para
159
investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do
loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali
sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco
para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se
plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem
natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras
Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de
homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras
para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha
dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde
notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns
companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram
hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens
esperassem no barco
De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um
pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui
que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze
bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de
vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro
com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles
entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem
pelos queijos
A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os
deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e
cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes
seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo
tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os
homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando
ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope
trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e
seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que
eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto
sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os
160
deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O
Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do
que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco
deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus
barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles
homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute
e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e
devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele
ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de
Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme
pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu
na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la
Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de
mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o
escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando
mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe
vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe
revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe
mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que
se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade
devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar
sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a
seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar
fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por
algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu
pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o
Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram
enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar
os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com
uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que
ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes
vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez
161
que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio
de Zeus e foram embora
Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos
estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir
Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo
que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a
fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu
porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga
de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma
forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal
Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna
quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam
um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma
vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos
Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus
companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute
havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou
para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder
corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou
de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas
imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele
baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida
Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em
casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um
regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho
Posiacutedon ouviu a prece do filho
Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o
restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus
sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os
alegrava terem escapado agrave morte
162
Canto X
Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos
enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a
respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e
em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para
Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento
responsaacutevel por levar os homens de volta
Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia
eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e
enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando
da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros
resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo
escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca
levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e
perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas
Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses
abominavam
Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo
chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram
pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para
investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que
descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e
de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se
depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo
chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de
Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram
depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido
com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos
barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os
Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso
Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a
remar fugindo
163
Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu
seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de
Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros
que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de
Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os
homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo
os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O
primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os
demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem
desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens
adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da
proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas
de modo que eles conservassem a inteligecircncia
Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os
companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que
Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de
ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu
que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho
para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no
iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu
tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos
como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria
livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu
comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe
lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca
ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele
natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem
disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais
nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva
mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem
Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe
ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante
dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela
164
adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que
Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que
criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus
aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse
solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram
ao magniacutefico leito
Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado
pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o
daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia
sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em
porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho
Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma
humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo
foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se
comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois
voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco
para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram
imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em
animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim
como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou
decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo
Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou
com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca
Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se
reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne
abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de
Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o
tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi
suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia
prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa
contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes
de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para
consultar o adivinho Tireacutesias
165
Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da
deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal
empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do
vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio
Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali
Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam
o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava
ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e
Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e
mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e
invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu
palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas
a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais
esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um
carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na
direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu
deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e
orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez
teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe
revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca
Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a
respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a
natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute
Canto XI
O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano
aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do
rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram
as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo
as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois
farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor
novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais
esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces
Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu
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As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos
solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de
sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus
companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando
aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu
glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse
Tireacutesias
A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara
sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens
tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome
de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave
ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu
prometeu atender aos desejos de Elpenor
Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que
ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo
deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que
apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar
despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar
do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade
Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele
esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno
muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho
Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que
conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando
chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de
Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu
regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens
saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse
escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito
tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria
tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu
conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por
meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir
167
ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com
um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar
um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e
sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu
morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes
ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o
reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee
chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades
Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho
Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu
que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que
ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde
que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai
Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que
Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do
filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo
triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do
glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um
grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu
usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua
identidade e ascendecircncia
Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os
deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu
que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem
e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que
apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em
torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de
Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo
pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte
Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante
de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que
Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este
oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por
168
causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o
marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal
destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem
bom e ambos ficariam felizes com seu regresso
Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e
de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso
Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias
esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu
acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles
que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora
exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a
proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo
pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho
Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas
ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora
satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-
se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele
quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo
ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos
deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de
Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e
sem responder voltou ao Eacuterebo
Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres
devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo
de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a
aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso
rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia
com que o rochedo rolasse montanha abaixo
Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com
Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses
apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou
com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se
encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a
169
de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave
ajuda de Hermes e Atenaacute
Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de
Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus
companheiros comeccedilou a remar para longe dali
Canto XII
Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde
sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-
los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas
mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou
para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os
homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes
indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades
comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas
sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de
se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar
os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de
modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos
haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu
deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes
atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo
que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em
decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia
uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava
terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente
longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de
dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam
para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria
uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem
os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor
opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o
monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo
170
Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por
Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez
Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda
assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse
perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens
conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio
Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave
Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave
Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o
barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria
chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho
Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados
pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos
companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam
se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde
que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus
companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando
continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se
puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo
que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia
mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe
soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e
soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias
Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme
Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a
continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os
homens obedeceram
Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a
respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do
navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das
recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave
proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e
ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado
171
estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a
vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros
temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham
os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior
experiecircncia da viagem inteira
Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do
deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o
que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e
da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para
longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo
permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a
tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que
seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que
encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas
por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia
comeram e dormiram
Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles
tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas
vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os
homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse
nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens
tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de
orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar
suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso
Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais
triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as
vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A
tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o
barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o
por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez
que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia
Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo
para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse
172
atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente
Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre
a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora
Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde
demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os
couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos
Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as
melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando
Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou
a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na
cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco
projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou
a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No
entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e
por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e
Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a
quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e
seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu
passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de
Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu
Canto XIII
Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes
ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para
conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos
presentes
Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos
roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a
casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo
Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir
Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse
aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca
Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo
que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto
173
conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo
assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele
enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo
inteligente quanto os deuses
Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram
na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido
na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara
graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia
Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees
afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era
respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon
se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que
este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com
facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu
havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar
e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o
castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito
No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios
no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas
Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o
numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia
cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez
O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute
havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar
os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de
touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo
Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria
terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que
tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos
pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a
lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou
de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele
174
se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras
dos aqueus
O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se
dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia
Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e
repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria
terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais
persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e
astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que
naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os
problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar
calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido
Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que
ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que
nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o
sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios
quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu
pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo
Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou
que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem
na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto
queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que
Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa
por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava
guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo
Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode
reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave
cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma
gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos
apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute
trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente
desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo
promessas de casamento que natildeo queria cumprir
175
Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu
palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa
Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse
durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em
Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que
acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria
irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a
primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente
bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu
sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia
a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai
Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse
sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo
era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu
natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade
Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes
estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este
plano estava fadado ao fracasso
Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho
mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de
Telecircmaco
Canto XIV
Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim
de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do
porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o
forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito
sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo
Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e
bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles
deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo
conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do
rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma
176
quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens
juntos
Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava
vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo
tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo
entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos
em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-
lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca
se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta
Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama
para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que
quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em
seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava
a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se
deparar com a fidelidade do porqueiro
Canto XV
Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para
Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na
empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa
Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se
casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o
consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo
que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando
mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes
de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que
chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim
de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com
Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e
depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria
Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros
homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho
para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e
quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou
177
dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram
extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de
Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram
dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro
Canto XVI
Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos
cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu
terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo
porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de
Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido
Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao
rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a
refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo
ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira
Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o
priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para
defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em
condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o
velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho
Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com
os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo
Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela
situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia
chegado satildeo e salvo
Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher
fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua
verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim
aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto
Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia
se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu
Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e
perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco
poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem
178
apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de
Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar
Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou
que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora
sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu
perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho
dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre
ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um
empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute
e Zeus como aliados
Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria
retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo
mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu
deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um
de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito
da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir
quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis
Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada
de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido
um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter
dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que
espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles
retornou
Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam
cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se
concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que
eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato
de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram
agrave casa de Odisseu
Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez
que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-
se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses
e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco
179
prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele
mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus
aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse
Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho
mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse
Canto XVII
Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo
para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que
chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope
emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-
vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um
forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos
Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem
Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu
Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha
da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta
de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a
Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas
louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse
verdadeiro
Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho
encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores
cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando
Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei
de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu
caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que
seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam
um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de
Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou
se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou
com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida
Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez
180
Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se
aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao
mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se
aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de
descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se
aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente
Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na
cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda
praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco
Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava
sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo
que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado
Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo
dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o
mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha
estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a
ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes
O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila
no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele
e Odisseu haviam sofrido muito juntos
Canto XVIII
Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou
de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando
e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se
com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos
estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para
jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade
Telecircmaco incentivou a refrega
Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes
surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente
Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes
estes o cumprimentaram divertidos
181
Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos
pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao
filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho
e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas
Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza
havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e
Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens
Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela
caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a
aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se
aproximaram e Peneacutelope acordou
A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se
dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes
maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco
elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo
comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse
retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem
quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um
segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira
como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo
dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa
porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem
presentes seduzia-os ainda mais
Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os
presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los
poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse
escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali
permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu
iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e
mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa
Canto XIX
Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou
o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia
182
e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto
enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam
estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se
puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir
dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias
dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu
maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes
As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e
bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava
importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia
Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito
se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso
ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em
seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a
fim de que pudesse interrogaacute-lo
Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta
iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso
mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo
muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que
aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar
de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma
mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim
que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de
modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum
pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do
quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da
artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora
precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava
infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia
do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo
lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu
que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a
183
tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para
natildeo revelar sua verdadeira identidade
O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu
recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras
riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-
lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e
que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele
depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem
banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha
Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento
Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a
lembrava muito de Odisseu
No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a
cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar
Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo
Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que
tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho
de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope
entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a
forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles
Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e
retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria
com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado
incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo
que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu
arco
Canto XX
Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em
como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a
aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela
preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela
para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce
sonho se apossasse de Odisseu
184
Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa
proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um
homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus
pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu
Zeus mandou trovotildees
Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem
uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e
perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu
respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem
aqueles homens abusados
Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as
cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo
que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve
de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro
Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do
cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo
afirmou que Odisseu logo retornaria
Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo
uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na
direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo
interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram
Canto XXI
Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos
pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde
estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se
dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se
casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar
com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o
porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem
cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem
distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da
declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e
incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas
185
O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo
conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem
sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo
Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os
seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele
voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua
identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que
dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se
emocionaram ao reconhecer o amo
Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos
pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe
o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo
cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para
garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes
Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e
lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por
sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte
oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a
disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento
Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o
arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo
reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o
arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa
forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir
Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para
entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus
aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa
com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou
Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para
todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a
sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos
e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se
186
alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo
disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas
Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os
pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua
distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar
suas armas
Canto XXII
Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo
apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha
Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e
escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de
morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem
estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali
para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem
se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens
Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma
forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda
aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora
o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar
formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu
respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria
vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a
lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas
nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por
Odisseu
Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido
nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo
de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo
para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos
pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro
homens estavam devidamente protegidos para a luta
Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum
Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu
187
escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um
dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar
ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio
estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a
fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e
assim Melacircntio saiu para buscaacute-las
Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se
armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma
serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem
admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito
Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para
buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que
Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna
A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio
contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo
proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros
querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas
ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr
fim na refrega
Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que
Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis
comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que
ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes
Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio
doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as
trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu
ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio
Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais
dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto
Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia
que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria
avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu
rei
188
Canto XXIII
Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em
casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que
Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que
Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber
como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia
natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos
corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele
soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia
finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora
proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso
Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope
foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por
algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope
poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter
certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de
Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes
que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse
preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a
respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope
finalmente havia se casado novamente
Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a
maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu
legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia
seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse
mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que
entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para
que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo
podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma
oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu
que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou
o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar
189
Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar
no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de
acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de
Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a
um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos
demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu
morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de
sua famiacutelia
O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois
continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta
de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia
passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas
riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes
Canto XXIV
Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se
lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se
depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon
Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o
que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo
tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e
contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela
tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes
descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e
do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que
levaria agrave desgraccedila dos pretendentes
Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a
prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai
na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele
estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem
era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu
e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho
e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e
disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-
190
se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa
abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes
exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz
na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai
quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a
casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido
por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se
juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu
reverenciaram-no
Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se
juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos
Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou
a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta
Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou
algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes
estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso
Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver
a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco
logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes
fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos
pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A
fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que
Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre
eles
PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DE SAtildeO PAULO ndash PUC-SPPROGRAMA DE ESTUDOS POacuteS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA
NUacuteCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS
LETIacuteCIA GONCcedilALVES SAID
O MITO DE ULISSES COMO METAacuteFORA DO PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeOMASCULINO NO MODELO JUNGUIANO
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLIacuteNICA
Projeto da Dissertaccedilatildeo de Mestradoapresentada agrave Banca de Qualificaccedilatildeo comoexigecircncia parcial para defesa no Programa deEstudos Poacutes-Graduados em PsicologiaCliacutenica da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica deSatildeo Paulo ndash PUC-SP sob a orientaccedilatildeo doProf Dr Durval Luiz de Faria
SAtildeO PAULO2019
_______________________________________Profo Dr Durval Luiz de Faria
_______________________________________Profa Dra Paula Guimaratildees
______________________________________Profa Dra Maria Teresa Nappi Moreno
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip
Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo
Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho
Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida
Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador
Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees
Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos
RESUMO
A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento
Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo
ABSTRACT
Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling
Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO8
2 OBJETIVOS14
21 OBJETIVO GERAL14
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14
3 MEacuteTODO15
4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19
41 EM JUNG19
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21
43 OUTROS AUTORES22
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79
62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95
631 O MITO DE POSIacuteDON95
632 O MITO DE ATENAacute97
633 O MITO DE HERMES99
7 A VIDA DE ULISSES103
71 ORIGEM103
72 TROIA107
73 RETORNO A IacuteTACA113
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124
82 ENCONTRO COM POLIFEMO126
83 ENCONTRO COM A CIRCE127
84 DESCIDA AO HADES128
85 ENCONTRO COM CALIPSO130
86 OS FEAacuteCIOS131
87 IacuteTACA133
88 DISCUSSAtildeO135
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137
REFEREcircNCIAS145
APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149
Its My LifeBon Jovi (2000)
This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed
I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice
When I shout it out loud
(Refratildeo)Its my life
Its now or neverI aint gonna live forever
I just want to live while Im alive(Its my life)
My heart is like an open highwayLike Frankie said
I did it my wayI just wanna live while Im alive
Its my life
This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down
Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky
Got to make your owns breaks (Refratildeo)
Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1
1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)
8
1 INTRODUCcedilAtildeO
Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)
Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras
aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi
um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos
estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo
de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute
um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da
psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova
singularidade
O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia
permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e
os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus
pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles
siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este
fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era
composto por uma camada pessoal e outra coletiva
O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por
tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou
esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as
formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma
imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute
compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as
experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um
lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa
conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor
Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo
9
(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)
Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia
Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011
[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as
fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de
consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam
isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na
consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel
O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os
conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O
processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung
(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para
compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute
que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no
inconsciente novamente
Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da
vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos
atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos
aprofundaremos neste periacuteodo da vida
Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes
de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa
sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual
ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente
estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito
ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel
O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o
equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a
atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas
a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida
estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia
agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise
psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente
10
Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens
inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como
sintomas psicopatoloacutegicos e
Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)
O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta
conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para
ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo
como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao
utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a
consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta
forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e
obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia
Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante
significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica
que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo
atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a
qualidade de vida
Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia
que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva
do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento
e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais
expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo
que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis
Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem
recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz
sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela
11
narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois
dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste
conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito
Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da
forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem
arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por
isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a
psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas
que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a
Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para
casa apoacutes a guerra de Troia
Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio
sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta
tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a
provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar
situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo
De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais
influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas
passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por
meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a
passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor
de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura
dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses
Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem
um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual
surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade
Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama
Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um
aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia
Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras
seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria
transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)
2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome
12
Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original
esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes
lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto
particular
A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo
entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se
concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as
pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero
relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo
como protagonistas pelo menos como coadjuvantes
Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa
cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-
junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo
conforme descrito por Jung
Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem
ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por
meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com
Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de
sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo
A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo
do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que
Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre
qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma
essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter
arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)
A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos
ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos
permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo
uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e
perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo
Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5
anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos
deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me
13
levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos
preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio
chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano
Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela
forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se
restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito
vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem
cursos ministrados por analistas ali formados
Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro
capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a
anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos
do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as
principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a
importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e
psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia
Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua
morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da
psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de
Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-
junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados
em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo
apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um
resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia
14
2 OBJETIVOS
21 OBJETIVO GERAL
Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos
15
3 MEacuteTODO
Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito
de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano
Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica
neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)
Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram
mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia
Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga
(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a
psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico
Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a
pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo
de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos
junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)
Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram
consultadas para este trabalho
No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR
odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea
NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam
relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou
Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram
relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de
Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)
Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus
OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram
encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros
eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros
ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo
de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos
16
interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as
pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)
A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND
individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology
resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo
porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como
embasamento teoacuterico
Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope
AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra
de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da
personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente
trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam
disponiacuteveis
A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer
no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam
relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo
De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND
(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em
nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema
que natildeo acrescentava ao nosso tema
Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer
quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente
nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise
Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo
geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me
surpreendeu bastante
As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora
as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos
portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de
individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em
encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de
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entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia
fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria
Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O
feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese
de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes
Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do
relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no
presente trabalho
A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a
maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise
das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi
consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo
da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino
em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes
Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante
abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se
transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e
mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no
acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso
todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei
que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo
Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho
uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo
direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares
sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi
(2015a e 2015b)
O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do
poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas
tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um
resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do
trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da
metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei
que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu
18
nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e
portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a
Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que
eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema
(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no
momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que
eu considero podemos ver metaforizados no mito)
Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses
que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada
Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de
outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise
19
4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
41 EM JUNG
A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de
estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua
produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da
psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago
este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria
Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da
Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar
sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais
frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica
No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma
minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa
sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da
amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas
Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para
fazer a amplificaccedilatildeo
Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o
segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma
viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a
C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei
Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a
respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente
apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])
utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute
de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas
queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que
cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele
reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua
anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona
novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de
20
sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito
do nosso heroacutei
No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e
interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido
produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito
brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para
poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011
[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que
menciona o consumo de sangue de bodes
No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses
de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou
didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce
Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas
em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum
comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu
No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e
inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos
mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele
explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo
subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses
faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias
De acordo com Jung
O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)
O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute
presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro
(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que
estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que
este monstro habite as aacuteguas dos oceanos
A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os
compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG
21
2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio
de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam
vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e
filoacutesofos
O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se
preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para
o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de
forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca
os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos
relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011
[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca
em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma
forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores
confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])
apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem
que os sonhos satildeo significativos
No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente
Para ele
O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)
Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a
peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que
improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu
significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado
psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para
estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e
a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de
22
planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima
do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)
Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma
descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da
perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de
complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto
as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse
tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e
que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso
para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham
caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade
Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte
ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia
analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso
e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise
da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua
eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo
famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o
motivo de seu sucesso
43 OUTROS AUTORES
Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a
morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do
poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma
definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel
pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc
Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria
se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta
tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga
(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por
meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por
exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou
quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo
23
pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA
2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do
pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope
De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido
considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos
informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a
morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes
provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento
O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que
aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses
desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da
fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no
Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida
(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido
antes de morrer
Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento
uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria
o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o
heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes
vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens
morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)
Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)
destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e
nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder
a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e
Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a
fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para
natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos
deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu
turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar
3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres
mueren una uacutenica vezrdquo
24
em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o
heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo
Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o
morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande
habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por
parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o
motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o
fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo
muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma
expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria
morrer e encontrar o destino
Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia
grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem
relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do
prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera
que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa
accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo
Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela
decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem
Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade
Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do
intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo
divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina
na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida
(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar
liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz
de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do
paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o
sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e
atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central
uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do
domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude
e portanto felicidade
25
Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma
deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um
comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o
sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio
o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado
com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo
incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores
Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a
fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se
por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo
capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo
essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de
sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes
responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas
o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino
E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como
a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de
Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia
das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos
Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito
traacutegico grego
Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a
Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue
escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de
que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu
ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses
Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia
disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece
acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com
todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu
muito suporte de Atenaacute
Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na
vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute
26
que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da
ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses
Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta
atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que
poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia
ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso
antes dele) mas insistiu em arriscar
Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um
mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a
caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo
inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno
extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou
exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu
palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute
momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa
Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela
realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o
marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem
construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o
quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante
acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido
A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)
Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua
hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria
sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra
especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na
realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por
Homero o mito de Er nem teria sido criado
27
O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas
ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute
passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a
escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e
satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo
sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo
(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos
deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como
uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as
afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os
mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta
com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas
Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela
existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar
Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira
como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo
teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel
porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter
nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse
um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida
virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei
considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua
grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem
de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser
ardiloso caso necessaacuterio
Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do
diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades
a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas
diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar
a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve
nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era
respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais
mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que
28
preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e
ter influecircncia entre os mortos
Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e
Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que
inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens
Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora
desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria
aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da
qual Aquiles gozava agora morto
Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da
inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve
oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a
opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no
modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera
que a Odisseia
(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)
Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida
de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na
Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que
se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na
verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a
obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas
envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que
diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto
Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses
morreria velho rico e cercado de seu povo
5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama
6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas
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Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a
Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade
de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na
epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele
mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa
Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais
conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua
identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se
chama Ningueacutem
Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute
estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o
nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor
Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado
de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno
de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio
Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)
Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na
Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a
respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No
entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente
sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se
emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas
andanccedilas
Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua
identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou
seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do
heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo
existe mais que natildeo vive mais
Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e
comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou
30
seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo
que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado
intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez
que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe
o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em
que recupera sua identidade e sua histoacuteria
Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA
partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em
que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando
da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68
grifo do autor)
Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este
momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa
cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre
a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar
bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar
para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo
31
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)
Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir
brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a
consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos
autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o
centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute
composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui
ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de
apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e
mulheres
Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo
compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de
si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por
uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos
ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos
processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da
observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e
opiniotildees de uma pessoa)
O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui
funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de
capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando
um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose
provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)
Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente
tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um
instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da
personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o
indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase
inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece
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Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do
segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir
a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como
(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)
Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um
afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo
Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas
dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo
possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de
forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute
povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos
dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e
considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique
Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas
perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque
a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o
indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de
constelaccedilatildeo do complexo
Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor
demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o
primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por
natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu
do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um
ego para ter consciecircncia deles
Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo
relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e
mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos
Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de
modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou
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grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia
O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim
mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees
sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma
Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e
eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade
entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute
sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode
considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que
remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam
frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees
por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o
Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira
autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea
Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na
organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram
quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de
Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com
a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se
as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que
Jung denominou processo de individuaccedilatildeo
A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas
(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de
uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se
estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque
assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios
situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois
voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os
sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador
poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em
seus conteuacutedos oniacutericos
Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens
arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos
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fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia
tal como a entendemos De fato para Jung
(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)
Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto
de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os
processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute
capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos
uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo
significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia
os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito
entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este
movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo
que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e
inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador
Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila
entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como
depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da
morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e
elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na
imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que
comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta
eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a
depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua
independecircncia
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Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por
meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o
qual natildeo haacute uma foacutermula
Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por
meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que
depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que
este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um
esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem
Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)
Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos
definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades
somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo
com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que
haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo
mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo
De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende
de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a
funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito
de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso
depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo
Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que
menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a
nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo
quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo
inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas
caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma
funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua
espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre
entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011
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[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na
condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior
(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)
O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma
espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer
que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer
sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer
sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que
o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender
as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que
estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que
natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter
causado nenhum resultado
Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca
complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos
acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando
chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute
uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um
grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila
O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez
que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e
significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum
cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se
de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela
psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por
exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando
Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a
separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um
caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques
de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba
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exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave
separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para
seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam
ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute
buscando
Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a
reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo
doloroso de integraccedilatildeo de opostos
Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas
polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de
sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer
forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos
cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta
maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades
conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)
Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico
que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o
indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o
define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a
individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em
sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se
distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo
devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo
uacutenica de qualidades universais
Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade
dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir
ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo
egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a
autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu
ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo
tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo
7 O Self eacute o si-mesmo
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depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do
ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado
Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da
necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a
apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em
vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro
que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo
se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer
Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self
que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos
estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente
buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p
216)
Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme
transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma
natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio
de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos
recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num
trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da
persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher
Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem
a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma
imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele
desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto
Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do
indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente
agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao
indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma
vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que
o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O
fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha
consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica
sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as
39
pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo
que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se
desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu
papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias
obsessivas
A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que
significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da
persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a
individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a
persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute
um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o
individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa
doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e
coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para
que a alma possa se desenvolver
Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)
Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos
arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor
ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na
consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta
que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante
a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)
Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em
noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este
estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto
nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a
ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein
explica que isso acontece porque no meio da vida
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() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)
Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar
entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita
pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo
necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos
podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na
adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-
idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar
outra transformaccedilatildeo
Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos
nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as
pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um
significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social
O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico
o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute
justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos
nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas
acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como
sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem
uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo
a seu respeito
Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos
psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for
desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que
natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua
consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial
Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque
nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos
nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas
e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo
41
configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a
experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas
Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a
individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar
de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da
vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo
determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o
lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se
esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta
tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo
a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam
contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida
Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que
tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase
anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem
da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e
perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da
persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos
separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se
diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma
desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento
para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica
Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja
um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora
seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado
por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se
libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar
livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar
o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento
Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da
nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a
reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as
mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva
42
relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos
confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela
definitivamente
Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do
que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que
engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos
nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido
ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a
estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra
A autora explica que
A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)
Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no
meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que
fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora
estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo
podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos
Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo
necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo
temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo
reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que
vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro
relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra
apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em
uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim
vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem
negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado
43
Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente
para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por
Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self
que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self
possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos
proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas
que ele ainda precisa cumprir
Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem
os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo
e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-
se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem
antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos
estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de
individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas
singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa
finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas
condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na
polaridade divina
Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego
dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave
proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como
inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a
autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da
personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da
proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos
psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem
fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012
p 56)
Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma
simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato
Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma
experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se
fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os
44
iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os
impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a
sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando
orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar
aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-
se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes
Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo
simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da
nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o
que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um
aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo
de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos
sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu
respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los
Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos
nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo
interna
Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja
atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo
por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de
forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar
com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila
de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que
tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos
levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees
Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer
esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se
separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem
em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes
reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo
e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o
que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus
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Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o
resultado da transiccedilatildeo do meio da vida
Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos
dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente
com anima e animus Sobre a anima Jung explica que
A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)
O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da
persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o
exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a
anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias
entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode
ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre
nossa vida exterior
De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a
anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino
relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)
A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma
representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos
germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os
homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que
pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada
homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na
forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo
O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da
mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A
influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista
sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os
outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa
da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a
autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a
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se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso
ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima
como uma forccedila interior
Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em
termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do
homem quando ele
(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)
O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de
individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que
o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo
se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo
inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self
Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem
subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do
mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro
Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura
equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem
a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus
como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum
dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos
atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles
Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)
O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora
opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute
que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta
47
como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo
inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos
guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos
razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung
(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de
preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado
Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von
Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui
aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa
coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a
anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON
FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo
perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente
revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos
sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino
um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute
simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute
representando um aspecto mais coletivo do que pessoal
Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus
estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca
satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam
Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas
prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo
Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos
aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que
constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo
desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento
da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo
projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes
Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos
integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia
Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o
inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute
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bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma
postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim
esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes
A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando
sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias
inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer
objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do
inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de
consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente
percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila
da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia
por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias
A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung
(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e
se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam
os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo
transcendente
O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a
pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de
maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os
conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se
diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade
Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas
necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros
provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia
consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel
para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente
com o que eacute
Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute
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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)
Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute
preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de
permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu
consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute
consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter
demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo
Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e
nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a
conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e
que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando
nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para
expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para
reconhecer sua forccedila superior
A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011
[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o
eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim
Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa
extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a
individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a
consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos
inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute
somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos
com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir
um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior
Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica
uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se
esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a
infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo
revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente
o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter
sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma
50
forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser
um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo
exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar
nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que
acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que
essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo
A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam
a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos
internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)
diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo
vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor
A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for
perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses
casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a
apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como
uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais
comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma
mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego
Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um
sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro
delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um
significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais
imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais
superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos
atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ
2008b p219)
A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da
consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma
inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber
sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de
fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e
entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem
ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba
51
crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o
exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as
cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela
este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com
o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece
mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto
a ajudaacute-lo
Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este
momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a
magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito
difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa
sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada
servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte
efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com
humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso
E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e
extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma
ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos
voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais
A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e
longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com
eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico
representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores
como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio
guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica
do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus
grego Hermes
A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou
uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao
mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo
podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como
uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de
renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual
52
Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um
jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando
natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo
como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute
onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta
caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que
envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa
segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita
soluccedilotildees criativas para seus conflitos
A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo
sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar
que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o
autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a
presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma
situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida
Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam
escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo
de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a
experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a
experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e
permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as
pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito
semelhante agrave dos sonhos
O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente
territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de
Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e
assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade
suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de
alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e
capacidades
Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no
limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes
8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica
53
mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os
acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois
estamos emocionalmente muito sensiacuteveis
Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no
inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos
fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego
o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar
ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora
do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o
autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de
Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia
Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo
relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque
especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees
mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos
do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala
Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute
orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca
poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus
instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses
siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela
Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)
A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas
culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da
criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do
ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego
se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior
54
Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como
bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais
relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma
aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de
alguma forma
Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do
self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b
p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua
riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute
comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma
representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito
De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de
um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que
justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela
explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como
um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma
totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as
manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo
espaccedilo-tempo conhecido por noacutes
Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung
que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e
externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute
encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de
pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma
coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de
sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo
entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos
sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de
individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o
indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as
coincidecircncias significativas
Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida
seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso
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mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso
significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que
desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu
processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida
Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do
inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos
positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute
especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as
pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como
exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles
que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com
a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar
grande perigo para o ego
A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo
podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue
funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees
Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil
Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e
um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta
obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros
querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para
conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar
eventualmente
Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das
pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos
provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social
Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo
indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com
determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade
eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos
Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees
com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos
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de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo
sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou
No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois
haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou
social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto
social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles
se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de
duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um
aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre
aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o
que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com
as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a
respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E
uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas
projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma
interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas
Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se
encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para
Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado
transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de
interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo
Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta
mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou
natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e
de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de
partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da
maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos
partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos
estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece
O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado
a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por
estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa
justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre
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as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode
levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por
pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo
de Hermes no coletivo
Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia
a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos
formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os
outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo
compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas
que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o
processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por
meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em
que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados
pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees
negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao
nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social
Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres
motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e
seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos
o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o
processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua
individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo
de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo
contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma
muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se
tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora
utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso
desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna
simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)
Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que
A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para
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o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)
Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio
da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo
extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs
fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que
costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem
da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais
seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute
sua atitude psicoloacutegica
Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e
encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute
consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma
consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em
fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por
sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave
negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes
Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em
objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo
eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser
considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)
considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a
experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a
respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos
planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de
antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser
sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si
Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou
mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a
diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem
cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico
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passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e
atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo
Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal
um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se
restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida
dada sua dimensatildeo sincrocircnica
O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se
associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o
fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao
limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees
do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste
caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz
essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a
conturbaccedilatildeo desta fase da vida
Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao
tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o
tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao
seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia
cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a
vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica
que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no
meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep
separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria
identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees
experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se
confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o
esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele
ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta
Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela
tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo
conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia
Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por
Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O
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autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e
conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite
que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem
possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo
liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se
descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar
relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem
menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado
energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma
ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos
reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)
Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade
se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade
de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta
com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida
Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo
de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo
constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo
faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele
mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas
defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve
demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e
impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo
liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente
Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se
torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o
futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade
valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra
livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve
mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a
situaccedilatildeo
61
A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)
Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um
comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a
regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais
intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein
(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da
vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem
tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na
infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a
qualquer um de noacutesrdquo
Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo
psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma
etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece
uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a
identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma
reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma
Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este
processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto
fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra
dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em
padrotildees antigos e sem sentido
Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de
transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos
dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram
reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente
liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais
de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave
nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos
pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo
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Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio
das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas
em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter
conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os
outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e
assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos
coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo
de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a
autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com
aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de
tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas
dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em
siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e
o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo
A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com
siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na
imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas
experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar
consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar
do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia
liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente
Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por
Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e
de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta
circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com
outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da
anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser
cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a
ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante
dos ganhos psiacutequicos posteriores
Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo
preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao
mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta
63
forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado
de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao
entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida
durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo
do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A
constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por
completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que
ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um
elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o
lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do
dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)
Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo
dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila
constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo
do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente
psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase
liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja
eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute
encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar
mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e
estabilidade
Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a
presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus
sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo
estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa
vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos
espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros
eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no
meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto
executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de
escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes
Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente
vista como estaacutevel e tradicional
64
(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)
Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que
prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute
exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da
vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o
autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se
mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai
depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo
que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico
Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos
inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em
qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma
experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso
queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo
liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para
a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em
nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um
resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento
entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as
dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses
com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a
inuacutemeros pretendentes
Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de
se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de
desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em
outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia
se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da
aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos
65
cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da
personalidade dos filhos
Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como
instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que
tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as
necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento
Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do
outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por
outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos
independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta
realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz
particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal
Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme
afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que
lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca
poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos
que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que
Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)
Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual
motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo
complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar
bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar
a vida do casal
O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias
estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios
de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo
caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente
dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento
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Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por
Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente
nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de
elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande
ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e
conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais
satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo
Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento
constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa
individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem
continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus
potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o
casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo
natildeo eacute o uacutenico
Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre
simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus
sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo
o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos
arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos
juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas
que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos
inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos
cocircnjuges
Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o
fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou
seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro
ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca
desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este
desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo
desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece
ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma
uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute
67
proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na
alteridade que seria o principal sentido do casamento
Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a
necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima
da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a
humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que
Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)
O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da
personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)
afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma
criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva
quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial
criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o
siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e
pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de
confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior
Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o
casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento
aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder
uma sombra consideraacutevel
Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute
tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute
uma caracteriacutestica humana
Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas
histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o
final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris
enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno
de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua
vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte
anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios
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pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses
voltaria para casa ou natildeo
Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um
triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto
De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato
de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo
Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida
dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se
compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la
transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES
2014 p 59)
Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro
mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a
possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira
eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo
em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro
Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao
nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz
Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)
Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a
ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer
uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso
Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica
constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera
improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da
pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o
tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros
As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si
mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer
em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas
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Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela
traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos
arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees
De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento
tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois
expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado
e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma
pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a
essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo
oacutebvios nem tatildeo imediatos
A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que
Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)
Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes
de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode
proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum
que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se
conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as
eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo
de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus
complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de
honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os
parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas
continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento
Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se
responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis
caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o
indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu
redor traindo ou sendo traiacutedo
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Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-
se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro
entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu
perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo
A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)
A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber
que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)
destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute
possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser
fiel a si mesmo
De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando
simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa
estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu
animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a
autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor
Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na
separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc
da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se
tentar obter um relacionamento psicoloacutegico
De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o
indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo
pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por
meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e
possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem
relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros
71
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao
mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)
Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais
importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito
apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e
em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente
Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os
mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas
Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo
que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os
temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar
fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e
culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos
perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja
como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico
costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees
livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)
Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores
entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de
humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p
15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas
Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos
entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes
Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens
mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a
mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder
simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje
mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa
cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo
ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias
transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas
72
passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma
estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas
Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da
associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no
quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do
caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original
utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung
como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)
Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do
conceito de inconsciente coletivo
() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)
De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento
ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira
e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida
Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no
inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar
se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a
maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo
psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente
conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas
ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma
expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo
de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada
para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o
estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica
Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um
deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que
um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de
vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus
73
relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades
vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as
possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos
pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para
aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam
Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos
trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz
sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso
siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo
precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou
transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o
mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final
Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro
podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados
Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como
ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de
nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material
analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a
respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta
forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever
futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e
LIMA 2006 p 56)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico
conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers
os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o
paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto
sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso
nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores
consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa
74
se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves
estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao
estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias
divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo
arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela
harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)
Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o
heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente
humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos
adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim
porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que
podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que
escolhemos ser a partir de entatildeo
De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo
da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem
seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute
passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a
cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash
simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra
Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que
A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)
Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas
figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel
perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se
estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas
entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da
nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades
fragmentaacuterias
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Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou
demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua
capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas
atitudes
Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de
um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a
dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a
nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou
energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por
isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se
soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas
psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que
tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)
Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se
manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a
doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se
soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram
reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento
A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta
precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado
com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar
impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si
mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo
sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um
arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire
caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender
fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade
da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso
Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos
leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles
influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo
temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo
conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein
76
(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos
sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo
liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e
atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que
vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram
rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que
foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo
Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da
psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as
religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida
Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus
mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma
vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus
das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na
alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas
no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute
relacionado a ele
Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de
acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade
sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes
das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves
acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de
tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da
personalidade
Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem
confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus
costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e
misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico
O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia
hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a
ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua
afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de
estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir
77
Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de
Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de
adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute
ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa
ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente
ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do
indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado
O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado
com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar
habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e
qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus
irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades
chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo
caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)
Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)
Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute
por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees
Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para
concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso
quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar
com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e
para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental
de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo
O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso
e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as
reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica
do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos
inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor
forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante
disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode
78
curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da
psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma
Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do
deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-
idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute
eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise
Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de
Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma
experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social
pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando
transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e
ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita
pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de
que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas
sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel
natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em
periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia
O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar
psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um
de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein
(2007) a presenccedila de Hermes
(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)
Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o
que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer
comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente
existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para
abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus
Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos
sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria
79
experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em
cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma
experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura
Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca
examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento
psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de
socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da
mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou
acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que
respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa
atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles
atraveacutes de mitos
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do
analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa
julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o
analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas
Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova
postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos
satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute
que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo
Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos
que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram
inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua
essecircncia decifrada
No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando
os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas
origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por
exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias
seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o
autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em
diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos
80
Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a
mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por
meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela
depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de
comunicaccedilatildeo com o inconsciente
Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute
fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto
historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e
mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia
claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia
ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do
heroacutei
Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)
O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a
compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela
tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas
impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees
simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de
que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo
principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia
egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo
consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que
o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa
de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa
simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade
9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror
81
Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do
heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a
morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito
pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a
determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia
do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado
momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito
o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da
consciecircncia do homem
Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus
respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-
idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter
ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem
sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo
muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco
branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)
Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto
nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta
sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente
alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus
papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As
imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo
com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as
imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o
quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como
uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10
Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque
pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua
personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de
negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo
10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki
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constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel
sim encontrar qualidades na sombra
De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung
chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para
atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate
entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como
dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma
por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro
livre do desejo do retorno ao mundo da matildee
O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro
tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e
a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e
demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas
Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado
negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No
entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a
forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que
considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute
prevaleceraacute se integrar a sombra
Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos
procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia
pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas
condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo
arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O
que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego
precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo
conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente
Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei
sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade
desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas
e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente
profundo para poder realizar atos criativos
83
O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de
consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os
egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se
desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade
Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave
consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes
a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que
podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-
sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais
derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo
sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos
sonhos como monstros
Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa
consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto
para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica
que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma
fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees
Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos
igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por
meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados
nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso
de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a
consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como
aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica
humana pode haver essa confusatildeo
O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio
do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de
totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o
relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do
heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas
aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute
problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai
ser uacutetil para si mesmo e para seu meio
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Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio
eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em
contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte
simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade
temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito
solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro
ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de
totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)
O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais
complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a
passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase
da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo
se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera
conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de
forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos
Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice
clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente
da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo
eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila
possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia
O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias
subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da
mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a
psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam
rituais de iniciaccedilatildeo
Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de
iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso
precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao
contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute
ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para
morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a
11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais
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finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de
induzir um renascimento simboacutelico
O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a
periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer
doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou
restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio
mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia
Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever
que
A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)
O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do
homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os
conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos
siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo
pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie
de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como
renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom
espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a
anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses
siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute
mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho
sozinho
Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em
nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o
autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que
apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado
psiacutequico permanece o mesmo
86
62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo
aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as
caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto
post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute
relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram
oferecidos aos deuses e aos heroacuteis
Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser
comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou
comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais
diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que
independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem
intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a
medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e
apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as
caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado
sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas
morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino
faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter
sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta
que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de
Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como
modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma
vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso
Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos
disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real
eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute
mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por
dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como
periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto
devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento
daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou
87
num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa
ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores
Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem
ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o
triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras
bem estabelecidos
No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra
(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido
na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades
superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte
da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do
lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter
passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se
destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se
destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe
permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras
dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei
recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte
traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo
(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este
modelo
Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando
honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir
realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o
centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas
seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)
que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante
ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico
ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de
lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da
poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro
Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem
do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por
88
sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com
nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a
semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram
contato entre si
Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de
que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem
na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a
imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor
tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha
(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam
responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia
divina do heroacutei
Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram
poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de
modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem
estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis
tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem
para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados
tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p
25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar
a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao
Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo
O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um
sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou
de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter
facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute
cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de
modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo
A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis
Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o
nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral
e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas
primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por
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etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo
profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado
Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome
consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto
denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome
Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia
Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome
conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui
energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por
isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo
Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que
estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos
(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo
(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o
ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os
humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino
(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada
vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou
masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando
cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o
Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar
sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos
para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se
dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a
procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem
do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino
Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo
masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por
meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos
mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo
como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do
travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como
uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir
90
para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute
Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia
De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos
motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a
totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo
escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz
alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado
Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a
partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o
heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua
esposa no mito Brandatildeo ressalta que
Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)
O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na
mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica
para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio
cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido
injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias
Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual
popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero
para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se
referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem
qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis
dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do
heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees
depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles
De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava
presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de
91
manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer
sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo
Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo
Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)
O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante
vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram
travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de
diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam
em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta
enquanto os demais homens morrem no anonimato
A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser
considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas
disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a
morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma
das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham
participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e
agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para
as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis
Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor
das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o
ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido
construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele
incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja
reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca
Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com
jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute
assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis
mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um
numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se
submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou
92
para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado
Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de
Ulisses
A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos
ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos
poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em
homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que
estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos
notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada
jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo
de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de
um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em
morte
Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem
estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que
pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma
geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns
heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de
outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um
apecircndice
O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em
conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser
orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou
Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas
heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por
exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os
males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas
podiam tratar ateacute a loucura
O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros
motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou
famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles
ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser
curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel
93
Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar
com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto
para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os
fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de
preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus
concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos
Misteacuterios
Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como
superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos
como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos
O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui
inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe
permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer
tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi
mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de
benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido
Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia
jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um
heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de
Ulisses tambeacutem eacute mencionada
Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a
cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)
como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o
defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem
apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em
outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um
castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo
Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito
relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma
exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda
estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante
da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos
representando o dom da visatildeo interior
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O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis
conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito
comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um
apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como
adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo
sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por
vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de
familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um
destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do
templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute
caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei
Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste
numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o
uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou
num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros
morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves
vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem
saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia
matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita
Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois
eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As
reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando
durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de
seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que
(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)
Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a
proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o
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uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem
as energias que alimenta o cosmo
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes
os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de
Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero
relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder
relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei
631 O MITO DE POSIacuteDON
Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus
derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel
pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente
Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas
geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas
secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de
que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente
Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas
fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas
elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees
Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu
trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a
autora
este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)
Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais
deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo
soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de
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Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo
deus
Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a
aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao
construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos
desestruturantes
Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que
difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e
portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila
Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon
atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que
emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)
Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas
extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por
exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope
Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos
Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma
Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)
Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte
anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros
97
dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao
expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por
exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro
com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu
enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal
Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro
e agrave proacutepria anima
632 O MITO DE ATENAacute
Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual
Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem
ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar
no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute
estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a
filha
E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o
combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute
eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender
essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram
aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte
para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade
racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)
A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer
pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o
estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como
seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a
possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se
apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a
reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute
passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e
poderoso
Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas
no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute
companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos
98
descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do
espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)
Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de
incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as
coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser
entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)
A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada
em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um
complexo que a deusa elaborou e integrou
Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)
Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se
confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam
ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo
admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo
mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento
Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados
em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A
fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas
provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de
Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado
Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino
Segundo Ribeiro
(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)
99
A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute
profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a
ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada
ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais
633 O MITO DE HERMES
Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)
De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu
chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar
entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade
pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos
deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado
guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles
que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute
atribuiacutedo a Hermes
Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por
Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo
Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus
cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele
havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora
Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este
fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma
necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo
(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um
deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo
Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de
Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele
precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle
100
Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e
astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer
O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois
novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo
Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica
ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra
respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos
Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com
o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora
considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do
instintual para o sagrado
Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes
encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista
(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo
superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num
instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente
Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem
nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo
voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade
Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma
e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute
ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser
colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os
irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus
no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a
partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o
privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o
segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)
Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as
qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)
nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de
presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser
o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom
101
do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado
demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se
apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma
tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta
Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos
pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira
ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia
Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e
informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de
firmar contratosrdquo
Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso
com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute
concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e
mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes
recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas
A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos
como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash
seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a
androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)
Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio
de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes
se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do
movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar
motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens
importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi
fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a
terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia
da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso
nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado
por um casal na Terra como menina escondido de Hera
A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de
destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa
descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem
102
conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute
E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno
de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)
retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o
aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica
Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a
flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira
103
7 A VIDA DE ULISSES
O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)
Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)
Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma
versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram
juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente
coerente
71 ORIGEM
Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como
acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e
Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de
Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que
Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte
Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto
pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade
supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-
rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha
Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de
sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que
enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se
sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que
Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu
negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha
Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse
nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram
surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas
de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-
lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto
o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez
104
Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de
Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era
apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois
pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que
Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era
pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para
comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita
derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila
Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele
ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)
O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a
sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando
para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente
De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de
Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre
os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia
mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo
coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-
ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si
lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)
Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando
Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal
colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo
teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita
gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na
105
Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras
histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis
Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia
de grande temporal
Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)
Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa
Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a
Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos
necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de
Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que
teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-
nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e
Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do
momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria
sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei
Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de
Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito
astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova
botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o
proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou
Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado
agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo
desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel
Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu
106
sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo
nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)
Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e
comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia
na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada
que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do
que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco
acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele
fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia
Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do
rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute
Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis
trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual
mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope
Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras
provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder
espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do
poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas
apoacutes conquistar estes dois feitos
Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade
Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os
pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela
Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe
proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem
era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma
Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da
ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele
simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope
Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este
tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia
do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em
12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela
107
recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio
concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer
forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando
forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a
longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a
fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e
sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)
Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo
corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope
praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o
traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu
apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope
teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde
passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes
descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma
Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de
Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca
adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)
72 TROIA
Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de
Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta
sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o
iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e
Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado
entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim
que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu
Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses
compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo
assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre
os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem
planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a
108
humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de
Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos
Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados
tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma
nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam
igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena
de Troia e outras desgraccedilas
Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia
entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos
homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida
novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava
Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado
Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a
crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o
conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o
bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por
pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida
sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito
Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este
priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de
mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera
ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite
ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de
Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de
conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz
por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu
lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia
Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o
costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo
tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que
os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a
corte natildeo precisava ser feita pessoalmente
109
Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente
de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem
enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que
Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar
com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra
que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais
pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar
a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com
Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o
emblema da fidelidade para todos os tempos
De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez
anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal
real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando
Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia
Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se
aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13
e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-
lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a
participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena
Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto
a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de
Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra
e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa
A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos
para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para
Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se
recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam
que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte
de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de
acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em
Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre
as filhas do rei sob o nome de Pirra
13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor
110
Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas
femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu
entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem
levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas
conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi
quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a
Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu
Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta
uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia
Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em
Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os
ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon
pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que
Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia
sua primogecircnita
Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau
aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo
que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto
Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria
filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas
Menelau o impediu
Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao
acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes
Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois
irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo
instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses
Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris
Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua
astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura
de Teacutelefo ferido por Aquiles
De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios
lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por
111
Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos
Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como
atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon
ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os
aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes
helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que
mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a
Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem
em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes
por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos
poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau
mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez
poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos
natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria
matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor
Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando
astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia
Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de
acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas
como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes
Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra
Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois
de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a
cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes
entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar
os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma
profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio
Escamandro
O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia
isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo
(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o
primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de
Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc
112
Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)
matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover
ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus
Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-
se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma
estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram
inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte
de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada
por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da
guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a
vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu
ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que
perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a
resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax
enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se
tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que
tinha feito envergonhado Aacutejax se matou
Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia
Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e
Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a
Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute
dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e
convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se
agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem
sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax
jaacute havia se suicidado
Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de
Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a
vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o
regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses
ndash devido ao seu machucado fedorento
113
Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e
destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash
mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de
guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada
Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez
anos de guerra Entre eles estava Ulisses
73 RETORNO A IacuteTACA
Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de
partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas
Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu
esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande
borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o
heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o
sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho
delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando
alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os
barcos e fugir
Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo
Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar
pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os
habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a
flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e
fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los
de volta para o navio e ir embora daquele lugar
Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos
ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa
ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos
seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa
caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela
morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada
Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se
mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo
114
que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-
lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho
Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que
Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum
ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando
bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-
los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena
para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga
dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco
Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se
demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a
alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma
vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por
sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo
apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que
ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu
ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse
responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara
Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)
Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito
daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto
e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida
com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu
chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que
fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e
sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho
Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a
ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem
115
passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na
partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos
rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que
deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o
odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos
Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando
Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus
companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que
contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora
foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que
estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de
uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo
De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo
que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana
vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes
canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu
enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras
contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se
encontrava mais distante
O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia
tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens
sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-
los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe
transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara
no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em
vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros
Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu
diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como
escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como
antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa
bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em
porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a
espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo
116
de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de
volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo
com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono
e Nausiacutetoo
Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas
natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa
seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja
sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a
fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em
Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o
restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida
A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor
Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)
Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve
estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe
sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como
passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo
consumir o rebanho de Heacutelio
O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne
humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto
irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim
de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os
ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso
deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer
Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas
para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e
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ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma
enorme faccedilanha para um mortal
Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros
precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais
raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo
escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que
navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens
Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros
remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a
passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como
viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de
Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram
as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os
homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um
raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara
do banquete
Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes
Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou
apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta
vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando
se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou
laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e
seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela
o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave
ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua
ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem
que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo
(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como
filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela
pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei
voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente
Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual
118
ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a
proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara
seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada
destruindo-a
Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco
destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe
emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que
depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu
e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde
Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia
O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas
companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora
estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu
ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois
o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram
bastante hospitaleiros com o heroacutei
Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o
aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo
de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele
contasse um pouco mais de si
Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)
Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes
sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram
ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com
presentes o barco que levaria Odisseu
Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao
chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente
escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo
responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num
rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga
119
Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de
Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua
ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter
reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que
morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de
Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa
estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto
ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)
Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e
Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os
cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia
se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema
satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de
Peneacutelope
De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou
afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai
ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio
prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma
Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em
Esparta
Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos
anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a
presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos
os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam
chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao
longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a
agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo
os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por
se tornar amante deles
Para Brandatildeo
Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela
120
desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)
Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope
resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo
assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de
dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os
pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da
escolha de outras formas
Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo
quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu
seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses
tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao
mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi
encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles
imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope
Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de
fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora
bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe
faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo
dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que
havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes
de Peneacutelope
Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-
los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu
o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das
saudades que ela sentia do marido
A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses
e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para
banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna
de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees
Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo
Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou
inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que
121
apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o
armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos
doze machados
Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar
sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida
Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo
O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os
pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute
por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o
mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os
alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei
se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim
comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima
Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze
foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a
desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque
maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa
Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade
conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele
mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou
Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)
Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande
maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma
que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com
os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente
Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para
Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da
velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz
respeito agrave fidelidade de Peneacutelope
122
Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para
sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer
um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute
ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez
sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho
Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se
apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria
nascido Poliportes
O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses
apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por
Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na
Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo
de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que
fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-
los
Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria
encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria
ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei
teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade
avanccedilada
A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de
um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a
identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a
devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores
mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia
feito a quem havia matado
Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para
a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo
fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein
(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo
123
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)
Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por
Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves
transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e
do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos
da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise
do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel
compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro
do modelo junguiano
Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do
heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em
rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo
determinante na Guerra de Troia
Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva
teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a
individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute
estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse
lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do
nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que
Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu
retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando
precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez
anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo
Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora
entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente
que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema
comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso
124
Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os
desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de
ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da
dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia
cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de
individuaccedilatildeo
Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de
acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante
frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de
aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante
Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de
Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir
regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto
de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para
chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de
Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando
por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa
Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de
Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo
(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa
tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute
interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando
sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que
[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)
A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa
viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem
uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este
processo
125
O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em
casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a
individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma
ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e
irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se
compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo
unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o
casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise
Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria
que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o
autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos
isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de
tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo
para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado
chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao
longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as
caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem
representadas pelas figuras dos companheiros
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que
deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles
por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e
suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente
o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de
Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa
exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho
e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz
(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo
quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e
instabilidade futura
A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos
Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando
126
apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para
embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens
natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um
contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram
durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute
identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial
podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees
de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a
individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de
seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos
sombrios jaacute estaacute comeccedilando
Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado
novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta
para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do
processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto
(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila
Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de
evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos
inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir
82 ENCONTRO COM POLIFEMO
O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de
Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior
da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de
escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar
Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua
identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos
um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o
orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico
Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus
dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de
sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda
afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer
127
Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo
intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo
pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se
analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e
no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro
(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e
inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo
Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de
Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo
praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena
Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que
desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros
conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada
por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas
impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como
momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)
seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso
retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com
Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa
oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um
aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior
Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria
pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos
sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se
manifestar impedindo a continuidade da viagem
Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem
a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase
chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei
adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem
tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de
volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos
deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que
Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono
128
Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os
barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash
o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade
enfrentada
83 ENCONTRO COM A CIRCE
Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que
Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que
desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei
pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu
recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem
sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das
instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses
recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm
filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar
Tireacutesias eacute Circe quem o orienta
Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self
Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de
Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura
do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o
autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se
aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes
Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute
ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem
estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de
uma nova orientaccedilatildeo espiritual
Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de
Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem
da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira
ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um
complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter
demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva
129
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por
feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse
aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por
Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de
Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e
negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao
relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da
anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras
Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de
guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e
inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que
fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute
84 DESCIDA AO HADES
No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas
incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se
aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que
ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus
caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo
para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon
depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando
consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar
Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem
Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho
diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que
simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se
com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha
consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte
simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A
morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o
autoconhecimento
Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de
individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado
130
por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao
movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante
esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens
novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute
pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda
precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do
Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de
morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar
para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas
tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o
remo numa terra onde natildeo se conhece o mar
Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade
traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila
seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso
Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que
se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a
matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto
desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato
podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso
como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste
trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como
fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta
sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer
cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de
Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme
Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses
diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro
O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a
ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute
escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo
sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-
lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte
131
Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho
Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do
navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro
aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com
seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos
entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim
consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem
necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade
do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se
arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o
rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda
luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o
Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco
compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de
seus companheiros
85 ENCONTRO COM CALIPSO
Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha
de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus
companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a
viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam
presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam
Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens
ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e
percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a
mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala
mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do
banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a
vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na
embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos
novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar
seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar
depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei
132
dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode
representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta
esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que
ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho
Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem
tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia
segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis
um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a
figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que
vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que
passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia
Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que
a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando
que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no
caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui
representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos
supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego
natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos
Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por
ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie
Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso
concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa
passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash
assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade
Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso
quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer
prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando
ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de
individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou
esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada
por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente
porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la
133
86 OS FEAacuteCIOS
Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento
Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila
um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino
interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua
armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua
relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas
Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo
por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com
Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus
aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo
levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado
novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer
de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se
desidentificando com a persona
Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois
ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima
integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e
desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia
conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que
Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia
pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash
filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com
humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso
rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a
fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a
primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se
manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho
para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para
guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu
processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do
heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para
confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que
134
foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar
ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se
joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros
com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante
o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra
de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc
chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que
ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo
pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde
educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe
fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes
Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que
satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua
funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu
nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios
presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros
presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais
em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do
Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a
transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas
87 IacuteTACA
Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme
os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute
significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo
prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute
mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua
funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos
inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego
Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela
confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era
Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua
verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente
135
pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao
ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria
morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua
aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua
alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio
repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que
certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute
a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo
mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de
Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar
Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos
pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser
forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e
da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa
amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo
se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope
Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute
simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto
impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses
conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais
arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o
ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos
se vecirc sendo interrogado por ela
Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os
pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que
Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela
exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou
uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve
percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas
um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze
machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de
sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo
verso do poema ela decreta a paz
136
Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal
Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei
de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria
sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender
por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar
outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina
ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver
88 DISCUSSAtildeO
Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de
individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos
que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes
da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas
diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo
do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras
siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute
instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que
observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a
peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia
onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa
peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa
viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo
Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida
ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito
geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como
Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam
diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar
a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e
segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
masculino
Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o
heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo
unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos
137
em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a
ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre
permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que
diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato
com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher
cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias
Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo
pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o
casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o
indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las
no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do
casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na
Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de
estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito
da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do
seu primeiro filho
Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua
famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da
Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele
mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida
ao plano dele
Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente
do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto
como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai
de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria
um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser
raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto
notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de
Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-
o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem
Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo
de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente
disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a
138
filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar
sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de
Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro
tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa
no futuro
Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a
Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela
comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia
Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia
pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa
inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do
heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio
perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi
principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu
pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs
a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito
de seu futuro
14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela
139
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos
entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma
como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do
heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina
Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes
domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi
essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia
profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a
disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver
originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades
Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio
da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e
poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa
questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho
sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este
processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e
agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade
Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a
manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo
Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora
impotildee seu reconhecimento
Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um
indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes
pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua
anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode
invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])
descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a
desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios
a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento
da funccedilatildeo inferior
140
O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de
individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas
Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em
outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade
propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo
estagnados
O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia
analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos
caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat
(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas
individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais
comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em
filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis
Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o
mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro
momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois
seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e
Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung
(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a
esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)
Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua
cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz
(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma
mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos
demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do
processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza
Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como
siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de
individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei
representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham
seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria
pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam
o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da
141
ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei
integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de
Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento
Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self
representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis
como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo
entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As
personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias
Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da
anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados
de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com
Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco
Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede
que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas
expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina
Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o
adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre
quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua
jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses
e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma
embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a
sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando
estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em
Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio
com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele
precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia
Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de
suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves
provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente
o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo
conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina
haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados
142
De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo
dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo
seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma
questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo
de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de
casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo
de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os
pretendentes e defender o seu casamento
Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca
como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de
sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que
Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas
ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de
outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia
comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos
chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma
transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo
Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])
quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima
geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas
opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como
expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem
examinadas em trabalhos futuros
143
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147
APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto
realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no
momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador
decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia
ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero
(2013)
Canto I
A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de
Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca
Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o
poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua
morte
Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam
morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido
chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido
Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses
eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon
Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros
quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia
comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por
Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra
esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto
assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado
pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee
Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus
que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava
sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado
seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou
Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu
Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a
expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope
148
Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que
seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas
natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco
revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com
todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de
seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca
clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser
assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma
natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai
Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os
pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos
conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter
notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco
com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto
para partir em busca do pai
Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de
Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo
pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses
porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco
interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela
ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros
haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos
seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude
Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco
Canto II
Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele
sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute
Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles
homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus
e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um
dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras
e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o
coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a
149
artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente
assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No
entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os
pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano
alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha
constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai
dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por
meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os
pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu
que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os
pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso
achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os
punissem do modo que considerassem justo
Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave
esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e
se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de
medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que
Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses
propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos
pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos
apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que
aquilo jaacute estava acontecendo
Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois
sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope
fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados
Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a
Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que
seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria
sua matildee casar-se novamente
Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua
casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia
de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente
respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu
150
retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia
se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo
de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem
frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que
a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que
ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os
pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha
com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para
acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que
seguiria viagem com eles
Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um
deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los
Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como
Odisseu
Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua
viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para
abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua
viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou
doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o
plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a
garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se
Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o
melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a
provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de
modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo
proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os
tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute
Canto III
O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar
encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a
primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se
diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto
quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de
151
Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem
uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o
ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com
seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece
Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham
Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma
vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para
pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em
Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito
sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre
Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas
hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso
imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em
Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon
enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor
e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que
Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a
Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos
pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele
Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos
pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma
que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo
dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que
aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz
que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros
obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que
chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado
por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que
natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida
perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar
o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau
para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a
viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de
152
Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os
companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a
cavalo e ser escoltado por filhos
Canto IV
Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus
companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a
respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou
que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe
causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de
notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso
Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar
Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o
agrave prova
Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem
eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau
concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor
confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute
justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a
chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que
nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de
Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que
pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem
sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena
Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de
colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e
o sofrimento e logo todos dormiram
No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua
viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez
narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia
explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a
ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para
que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas
recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar
153
preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera
lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto
Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a
viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular
um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo
descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope
lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que
Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e
Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma
terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a
culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se
comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute
Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir
com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a
Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam
no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno
Canto V
Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu
lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a
ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute
se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que
natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o
regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco
Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o
avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca
Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava
tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que
estava na praia chorando como de costume
Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora
enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no
momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora
conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida
154
imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram
crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal
Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua
ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia
perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a
imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma
vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe
proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria
como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo
A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o
fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa
Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela
tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento
favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a
vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los
Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e
se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando
nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de
Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela
disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente
recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas
provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de
tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum
sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua
jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No
quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel
conforme prometera
Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos
Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de
terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios
enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente
de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez
com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer
155
ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele
ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia
Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar
a morte
Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera
honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e
pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a
abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria
chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria
abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a
jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou
de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar
com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua
a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que
ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo
de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez
com que ele dormisse para descansar
Canto VI
Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios
Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha
de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus
irmatildeos no rio
Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar
roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas
lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas
tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as
servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou
uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez
com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia
Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo
ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas
com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando
apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele
156
narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para
chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes
dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se
vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila
fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em
seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso
Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios
Canto VII
Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que
assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de
Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha
Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao
terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com
Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa
cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu
lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos
deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que
na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por
diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu
agradeceu eloquentemente
Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que
ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira
aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre
causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de
Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da
deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada
Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua
jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu
Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa
Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe
contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na
manhatilde seguinte
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Canto VIII
Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso
Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o
repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para
serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens
terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo
saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila
de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a
escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim
Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos
gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante
um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si
os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas
Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem
Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos
esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o
impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de
Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica
Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e
mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da
marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu
orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando
que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os
imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos
estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou
a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores
danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o
espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado
Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes
para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e
o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela
quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu
158
prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela
como se ela fosse uma divindade
Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por
cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia
Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que
permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda
de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio
corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu
chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e
sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus
barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa
Canto IX
Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era
conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia
nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a
deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa
Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que
nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades
lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram
proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e
levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus
companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais
numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones
haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada
barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes
por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma
tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se
tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento
Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em
terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza
Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo
vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos
Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para
159
investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do
loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali
sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco
para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se
plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem
natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras
Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de
homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras
para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha
dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde
notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns
companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram
hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens
esperassem no barco
De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um
pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui
que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze
bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de
vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro
com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles
entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem
pelos queijos
A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os
deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e
cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes
seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo
tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os
homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando
ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope
trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e
seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que
eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto
sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os
160
deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O
Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do
que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco
deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus
barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles
homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute
e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e
devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele
ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de
Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme
pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu
na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la
Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de
mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o
escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando
mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe
vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe
revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe
mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que
se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade
devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar
sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a
seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar
fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por
algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu
pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o
Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram
enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar
os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com
uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que
ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes
vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez
161
que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio
de Zeus e foram embora
Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos
estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir
Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo
que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a
fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu
porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga
de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma
forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal
Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna
quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam
um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma
vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos
Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus
companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute
havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou
para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder
corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou
de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas
imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele
baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida
Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em
casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um
regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho
Posiacutedon ouviu a prece do filho
Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o
restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus
sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os
alegrava terem escapado agrave morte
162
Canto X
Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos
enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a
respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e
em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para
Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento
responsaacutevel por levar os homens de volta
Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia
eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e
enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando
da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros
resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo
escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca
levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e
perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas
Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses
abominavam
Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo
chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram
pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para
investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que
descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e
de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se
depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo
chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de
Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram
depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido
com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos
barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os
Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso
Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a
remar fugindo
163
Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu
seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de
Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros
que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de
Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os
homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo
os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O
primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os
demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem
desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens
adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da
proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas
de modo que eles conservassem a inteligecircncia
Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os
companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que
Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de
ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu
que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho
para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no
iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu
tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos
como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria
livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu
comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe
lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca
ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele
natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem
disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais
nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva
mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem
Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe
ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante
dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela
164
adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que
Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que
criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus
aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse
solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram
ao magniacutefico leito
Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado
pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o
daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia
sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em
porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho
Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma
humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo
foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se
comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois
voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco
para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram
imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em
animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim
como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou
decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo
Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou
com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca
Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se
reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne
abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de
Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o
tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi
suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia
prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa
contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes
de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para
consultar o adivinho Tireacutesias
165
Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da
deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal
empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do
vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio
Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali
Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam
o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava
ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e
Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e
mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e
invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu
palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas
a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais
esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um
carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na
direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu
deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e
orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez
teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe
revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca
Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a
respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a
natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute
Canto XI
O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano
aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do
rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram
as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo
as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois
farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor
novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais
esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces
Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu
166
As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos
solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de
sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus
companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando
aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu
glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse
Tireacutesias
A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara
sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens
tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome
de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave
ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu
prometeu atender aos desejos de Elpenor
Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que
ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo
deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que
apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar
despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar
do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade
Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele
esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno
muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho
Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que
conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando
chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de
Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu
regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens
saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse
escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito
tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria
tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu
conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por
meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir
167
ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com
um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar
um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e
sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu
morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes
ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o
reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee
chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades
Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho
Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu
que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que
ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde
que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai
Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que
Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do
filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo
triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do
glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um
grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu
usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua
identidade e ascendecircncia
Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os
deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu
que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem
e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que
apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em
torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de
Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo
pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte
Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante
de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que
Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este
oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por
168
causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o
marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal
destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem
bom e ambos ficariam felizes com seu regresso
Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e
de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso
Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias
esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu
acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles
que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora
exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a
proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo
pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho
Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas
ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora
satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-
se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele
quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo
ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos
deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de
Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e
sem responder voltou ao Eacuterebo
Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres
devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo
de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a
aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso
rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia
com que o rochedo rolasse montanha abaixo
Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com
Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses
apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou
com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se
encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a
169
de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave
ajuda de Hermes e Atenaacute
Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de
Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus
companheiros comeccedilou a remar para longe dali
Canto XII
Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde
sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-
los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas
mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou
para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os
homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes
indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades
comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas
sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de
se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar
os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de
modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos
haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu
deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes
atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo
que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em
decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia
uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava
terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente
longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de
dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam
para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria
uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem
os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor
opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o
monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo
170
Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por
Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez
Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda
assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse
perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens
conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio
Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave
Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave
Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o
barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria
chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho
Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados
pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos
companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam
se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde
que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus
companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando
continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se
puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo
que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia
mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe
soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e
soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias
Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme
Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a
continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os
homens obedeceram
Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a
respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do
navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das
recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave
proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e
ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado
171
estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a
vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros
temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham
os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior
experiecircncia da viagem inteira
Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do
deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o
que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e
da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para
longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo
permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a
tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que
seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que
encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas
por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia
comeram e dormiram
Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles
tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas
vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os
homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse
nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens
tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de
orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar
suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso
Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais
triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as
vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A
tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o
barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o
por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez
que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia
Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo
para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse
172
atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente
Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre
a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora
Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde
demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os
couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos
Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as
melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando
Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou
a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na
cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco
projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou
a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No
entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e
por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e
Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a
quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e
seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu
passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de
Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu
Canto XIII
Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes
ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para
conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos
presentes
Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos
roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a
casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo
Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir
Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse
aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca
Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo
que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto
173
conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo
assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele
enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo
inteligente quanto os deuses
Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram
na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido
na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara
graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia
Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees
afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era
respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon
se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que
este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com
facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu
havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar
e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o
castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito
No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios
no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas
Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o
numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia
cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez
O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute
havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar
os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de
touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo
Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria
terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que
tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos
pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a
lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou
de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele
174
se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras
dos aqueus
O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se
dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia
Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e
repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria
terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais
persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e
astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que
naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os
problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar
calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido
Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que
ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que
nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o
sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios
quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu
pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo
Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou
que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem
na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto
queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que
Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa
por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava
guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo
Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode
reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave
cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma
gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos
apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute
trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente
desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo
promessas de casamento que natildeo queria cumprir
175
Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu
palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa
Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse
durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em
Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que
acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria
irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a
primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente
bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu
sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia
a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai
Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse
sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo
era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu
natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade
Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes
estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este
plano estava fadado ao fracasso
Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho
mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de
Telecircmaco
Canto XIV
Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim
de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do
porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o
forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito
sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo
Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e
bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles
deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo
conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do
rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma
176
quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens
juntos
Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava
vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo
tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo
entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos
em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-
lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca
se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta
Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama
para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que
quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em
seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava
a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se
deparar com a fidelidade do porqueiro
Canto XV
Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para
Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na
empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa
Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se
casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o
consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo
que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando
mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes
de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que
chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim
de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com
Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e
depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria
Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros
homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho
para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e
quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou
177
dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram
extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de
Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram
dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro
Canto XVI
Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos
cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu
terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo
porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de
Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido
Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao
rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a
refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo
ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira
Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o
priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para
defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em
condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o
velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho
Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com
os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo
Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela
situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia
chegado satildeo e salvo
Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher
fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua
verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim
aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto
Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia
se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu
Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e
perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco
poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem
178
apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de
Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar
Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou
que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora
sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu
perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho
dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre
ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um
empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute
e Zeus como aliados
Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria
retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo
mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu
deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um
de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito
da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir
quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis
Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada
de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido
um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter
dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que
espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles
retornou
Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam
cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se
concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que
eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato
de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram
agrave casa de Odisseu
Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez
que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-
se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses
e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco
179
prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele
mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus
aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse
Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho
mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse
Canto XVII
Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo
para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que
chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope
emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-
vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um
forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos
Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem
Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu
Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha
da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta
de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a
Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas
louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse
verdadeiro
Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho
encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores
cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando
Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei
de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu
caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que
seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam
um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de
Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou
se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou
com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida
Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez
180
Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se
aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao
mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se
aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de
descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se
aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente
Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na
cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda
praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco
Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava
sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo
que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado
Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo
dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o
mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha
estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a
ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes
O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila
no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele
e Odisseu haviam sofrido muito juntos
Canto XVIII
Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou
de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando
e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se
com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos
estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para
jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade
Telecircmaco incentivou a refrega
Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes
surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente
Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes
estes o cumprimentaram divertidos
181
Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos
pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao
filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho
e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas
Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza
havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e
Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens
Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela
caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a
aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se
aproximaram e Peneacutelope acordou
A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se
dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes
maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco
elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo
comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse
retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem
quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um
segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira
como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo
dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa
porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem
presentes seduzia-os ainda mais
Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os
presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los
poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse
escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali
permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu
iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e
mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa
Canto XIX
Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou
o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia
182
e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto
enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam
estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se
puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir
dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias
dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu
maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes
As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e
bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava
importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia
Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito
se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso
ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em
seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a
fim de que pudesse interrogaacute-lo
Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta
iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso
mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo
muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que
aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar
de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma
mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim
que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de
modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum
pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do
quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da
artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora
precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava
infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia
do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo
lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu
que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a
183
tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para
natildeo revelar sua verdadeira identidade
O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu
recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras
riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-
lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e
que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele
depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem
banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha
Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento
Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a
lembrava muito de Odisseu
No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a
cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar
Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo
Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que
tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho
de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope
entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a
forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles
Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e
retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria
com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado
incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo
que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu
arco
Canto XX
Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em
como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a
aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela
preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela
para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce
sonho se apossasse de Odisseu
184
Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa
proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um
homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus
pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu
Zeus mandou trovotildees
Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem
uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e
perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu
respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem
aqueles homens abusados
Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as
cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo
que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve
de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro
Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do
cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo
afirmou que Odisseu logo retornaria
Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo
uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na
direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo
interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram
Canto XXI
Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos
pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde
estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se
dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se
casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar
com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o
porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem
cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem
distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da
declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e
incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas
185
O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo
conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem
sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo
Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os
seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele
voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua
identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que
dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se
emocionaram ao reconhecer o amo
Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos
pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe
o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo
cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para
garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes
Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e
lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por
sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte
oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a
disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento
Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o
arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo
reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o
arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa
forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir
Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para
entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus
aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa
com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou
Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para
todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a
sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos
e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se
186
alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo
disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas
Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os
pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua
distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar
suas armas
Canto XXII
Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo
apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha
Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e
escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de
morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem
estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali
para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem
se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens
Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma
forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda
aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora
o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar
formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu
respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria
vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a
lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas
nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por
Odisseu
Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido
nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo
de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo
para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos
pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro
homens estavam devidamente protegidos para a luta
Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum
Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu
187
escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um
dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar
ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio
estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a
fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e
assim Melacircntio saiu para buscaacute-las
Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se
armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma
serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem
admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito
Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para
buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que
Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna
A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio
contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo
proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros
querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas
ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr
fim na refrega
Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que
Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis
comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que
ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes
Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio
doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as
trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu
ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio
Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais
dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto
Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia
que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria
avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu
rei
188
Canto XXIII
Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em
casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que
Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que
Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber
como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia
natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos
corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele
soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia
finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora
proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso
Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope
foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por
algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope
poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter
certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de
Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes
que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse
preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a
respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope
finalmente havia se casado novamente
Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a
maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu
legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia
seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse
mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que
entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para
que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo
podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma
oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu
que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou
o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar
189
Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar
no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de
acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de
Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a
um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos
demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu
morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de
sua famiacutelia
O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois
continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta
de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia
passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas
riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes
Canto XXIV
Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se
lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se
depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon
Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o
que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo
tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e
contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela
tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes
descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e
do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que
levaria agrave desgraccedila dos pretendentes
Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a
prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai
na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele
estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem
era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu
e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho
e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e
disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-
190
se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa
abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes
exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz
na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai
quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a
casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido
por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se
juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu
reverenciaram-no
Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se
juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos
Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou
a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta
Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou
algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes
estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso
Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver
a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco
logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes
fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos
pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A
fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que
Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre
eles
_______________________________________Profo Dr Durval Luiz de Faria
_______________________________________Profa Dra Paula Guimaratildees
______________________________________Profa Dra Maria Teresa Nappi Moreno
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip
Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo
Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho
Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida
Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador
Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees
Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos
RESUMO
A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento
Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo
ABSTRACT
Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling
Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO8
2 OBJETIVOS14
21 OBJETIVO GERAL14
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14
3 MEacuteTODO15
4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19
41 EM JUNG19
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21
43 OUTROS AUTORES22
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79
62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95
631 O MITO DE POSIacuteDON95
632 O MITO DE ATENAacute97
633 O MITO DE HERMES99
7 A VIDA DE ULISSES103
71 ORIGEM103
72 TROIA107
73 RETORNO A IacuteTACA113
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124
82 ENCONTRO COM POLIFEMO126
83 ENCONTRO COM A CIRCE127
84 DESCIDA AO HADES128
85 ENCONTRO COM CALIPSO130
86 OS FEAacuteCIOS131
87 IacuteTACA133
88 DISCUSSAtildeO135
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137
REFEREcircNCIAS145
APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149
Its My LifeBon Jovi (2000)
This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed
I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice
When I shout it out loud
(Refratildeo)Its my life
Its now or neverI aint gonna live forever
I just want to live while Im alive(Its my life)
My heart is like an open highwayLike Frankie said
I did it my wayI just wanna live while Im alive
Its my life
This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down
Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky
Got to make your owns breaks (Refratildeo)
Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1
1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)
8
1 INTRODUCcedilAtildeO
Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)
Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras
aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi
um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos
estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo
de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute
um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da
psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova
singularidade
O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia
permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e
os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus
pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles
siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este
fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era
composto por uma camada pessoal e outra coletiva
O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por
tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou
esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as
formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma
imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute
compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as
experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um
lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa
conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor
Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo
9
(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)
Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia
Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011
[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as
fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de
consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam
isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na
consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel
O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os
conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O
processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung
(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para
compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute
que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no
inconsciente novamente
Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da
vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos
atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos
aprofundaremos neste periacuteodo da vida
Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes
de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa
sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual
ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente
estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito
ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel
O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o
equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a
atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas
a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida
estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia
agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise
psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente
10
Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens
inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como
sintomas psicopatoloacutegicos e
Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)
O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta
conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para
ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo
como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao
utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a
consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta
forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e
obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia
Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante
significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica
que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo
atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a
qualidade de vida
Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia
que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva
do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento
e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais
expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo
que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis
Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem
recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz
sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela
11
narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois
dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste
conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito
Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da
forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem
arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por
isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a
psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas
que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a
Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para
casa apoacutes a guerra de Troia
Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio
sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta
tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a
provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar
situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo
De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais
influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas
passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por
meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a
passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor
de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura
dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses
Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem
um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual
surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade
Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama
Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um
aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia
Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras
seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria
transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)
2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome
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Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original
esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes
lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto
particular
A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo
entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se
concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as
pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero
relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo
como protagonistas pelo menos como coadjuvantes
Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa
cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-
junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo
conforme descrito por Jung
Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem
ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por
meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com
Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de
sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo
A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo
do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que
Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre
qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma
essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter
arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)
A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos
ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos
permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo
uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e
perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo
Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5
anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos
deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me
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levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos
preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio
chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano
Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela
forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se
restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito
vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem
cursos ministrados por analistas ali formados
Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro
capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a
anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos
do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as
principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a
importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e
psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia
Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua
morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da
psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de
Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-
junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados
em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo
apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um
resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia
14
2 OBJETIVOS
21 OBJETIVO GERAL
Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos
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3 MEacuteTODO
Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito
de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano
Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica
neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)
Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram
mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia
Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga
(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a
psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico
Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a
pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo
de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos
junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)
Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram
consultadas para este trabalho
No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR
odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea
NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam
relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou
Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram
relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de
Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)
Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus
OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram
encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros
eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros
ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo
de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos
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interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as
pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)
A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND
individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology
resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo
porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como
embasamento teoacuterico
Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope
AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra
de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da
personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente
trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam
disponiacuteveis
A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer
no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam
relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo
De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND
(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em
nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema
que natildeo acrescentava ao nosso tema
Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer
quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente
nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise
Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo
geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me
surpreendeu bastante
As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora
as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos
portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de
individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em
encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de
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entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia
fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria
Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O
feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese
de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes
Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do
relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no
presente trabalho
A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a
maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise
das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi
consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo
da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino
em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes
Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante
abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se
transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e
mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no
acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso
todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei
que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo
Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho
uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo
direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares
sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi
(2015a e 2015b)
O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do
poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas
tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um
resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do
trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da
metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei
que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu
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nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e
portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a
Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que
eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema
(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no
momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que
eu considero podemos ver metaforizados no mito)
Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses
que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada
Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de
outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise
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4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
41 EM JUNG
A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de
estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua
produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da
psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago
este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria
Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da
Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar
sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais
frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica
No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma
minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa
sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da
amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas
Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para
fazer a amplificaccedilatildeo
Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o
segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma
viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a
C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei
Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a
respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente
apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])
utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute
de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas
queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que
cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele
reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua
anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona
novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de
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sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito
do nosso heroacutei
No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e
interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido
produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito
brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para
poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011
[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que
menciona o consumo de sangue de bodes
No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses
de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou
didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce
Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas
em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum
comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu
No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e
inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos
mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele
explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo
subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses
faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias
De acordo com Jung
O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)
O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute
presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro
(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que
estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que
este monstro habite as aacuteguas dos oceanos
A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os
compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG
21
2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio
de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam
vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e
filoacutesofos
O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se
preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para
o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de
forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca
os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos
relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011
[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca
em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma
forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores
confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])
apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem
que os sonhos satildeo significativos
No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente
Para ele
O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)
Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a
peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que
improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu
significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado
psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para
estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e
a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de
22
planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima
do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)
Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma
descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da
perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de
complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto
as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse
tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e
que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso
para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham
caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade
Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte
ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia
analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso
e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise
da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua
eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo
famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o
motivo de seu sucesso
43 OUTROS AUTORES
Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a
morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do
poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma
definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel
pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc
Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria
se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta
tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga
(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por
meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por
exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou
quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo
23
pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA
2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do
pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope
De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido
considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos
informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a
morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes
provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento
O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que
aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses
desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da
fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no
Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida
(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido
antes de morrer
Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento
uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria
o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o
heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes
vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens
morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)
Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)
destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e
nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder
a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e
Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a
fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para
natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos
deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu
turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar
3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres
mueren una uacutenica vezrdquo
24
em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o
heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo
Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o
morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande
habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por
parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o
motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o
fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo
muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma
expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria
morrer e encontrar o destino
Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia
grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem
relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do
prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera
que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa
accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo
Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela
decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem
Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade
Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do
intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo
divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina
na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida
(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar
liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz
de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do
paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o
sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e
atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central
uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do
domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude
e portanto felicidade
25
Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma
deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um
comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o
sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio
o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado
com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo
incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores
Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a
fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se
por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo
capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo
essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de
sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes
responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas
o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino
E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como
a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de
Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia
das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos
Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito
traacutegico grego
Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a
Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue
escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de
que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu
ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses
Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia
disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece
acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com
todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu
muito suporte de Atenaacute
Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na
vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute
26
que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da
ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses
Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta
atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que
poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia
ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso
antes dele) mas insistiu em arriscar
Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um
mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a
caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo
inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno
extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou
exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu
palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute
momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa
Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela
realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o
marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem
construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o
quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante
acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido
A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)
Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua
hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria
sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra
especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na
realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por
Homero o mito de Er nem teria sido criado
27
O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas
ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute
passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a
escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e
satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo
sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo
(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos
deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como
uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as
afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os
mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta
com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas
Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela
existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar
Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira
como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo
teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel
porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter
nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse
um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida
virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei
considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua
grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem
de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser
ardiloso caso necessaacuterio
Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do
diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades
a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas
diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar
a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve
nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era
respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais
mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que
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preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e
ter influecircncia entre os mortos
Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e
Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que
inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens
Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora
desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria
aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da
qual Aquiles gozava agora morto
Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da
inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve
oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a
opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no
modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera
que a Odisseia
(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)
Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida
de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na
Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que
se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na
verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a
obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas
envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que
diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto
Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses
morreria velho rico e cercado de seu povo
5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama
6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas
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Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a
Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade
de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na
epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele
mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa
Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais
conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua
identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se
chama Ningueacutem
Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute
estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o
nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor
Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado
de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno
de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio
Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)
Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na
Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a
respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No
entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente
sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se
emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas
andanccedilas
Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua
identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou
seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do
heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo
existe mais que natildeo vive mais
Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e
comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou
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seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo
que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado
intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez
que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe
o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em
que recupera sua identidade e sua histoacuteria
Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA
partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em
que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando
da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68
grifo do autor)
Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este
momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa
cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre
a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar
bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar
para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo
31
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)
Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir
brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a
consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos
autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o
centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute
composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui
ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de
apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e
mulheres
Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo
compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de
si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por
uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos
ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos
processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da
observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e
opiniotildees de uma pessoa)
O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui
funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de
capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando
um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose
provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)
Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente
tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um
instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da
personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o
indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase
inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece
32
Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do
segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir
a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como
(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)
Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um
afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo
Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas
dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo
possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de
forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute
povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos
dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e
considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique
Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas
perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque
a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o
indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de
constelaccedilatildeo do complexo
Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor
demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o
primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por
natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu
do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um
ego para ter consciecircncia deles
Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo
relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e
mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos
Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de
modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou
33
grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia
O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim
mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees
sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma
Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e
eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade
entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute
sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode
considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que
remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam
frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees
por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o
Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira
autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea
Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na
organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram
quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de
Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com
a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se
as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que
Jung denominou processo de individuaccedilatildeo
A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas
(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de
uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se
estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque
assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios
situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois
voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os
sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador
poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em
seus conteuacutedos oniacutericos
Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens
arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos
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fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia
tal como a entendemos De fato para Jung
(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)
Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto
de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os
processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute
capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos
uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo
significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia
os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito
entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este
movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo
que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e
inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador
Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila
entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como
depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da
morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e
elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na
imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que
comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta
eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a
depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua
independecircncia
35
Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por
meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o
qual natildeo haacute uma foacutermula
Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por
meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que
depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que
este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um
esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem
Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)
Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos
definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades
somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo
com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que
haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo
mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo
De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende
de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a
funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito
de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso
depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo
Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que
menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a
nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo
quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo
inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas
caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma
funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua
espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre
entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011
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[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na
condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior
(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)
O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma
espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer
que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer
sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer
sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que
o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender
as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que
estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que
natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter
causado nenhum resultado
Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca
complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos
acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando
chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute
uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um
grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila
O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez
que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e
significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum
cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se
de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela
psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por
exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando
Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a
separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um
caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques
de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba
37
exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave
separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para
seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam
ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute
buscando
Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a
reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo
doloroso de integraccedilatildeo de opostos
Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas
polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de
sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer
forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos
cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta
maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades
conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)
Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico
que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o
indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o
define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a
individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em
sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se
distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo
devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo
uacutenica de qualidades universais
Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade
dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir
ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo
egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a
autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu
ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo
tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo
7 O Self eacute o si-mesmo
38
depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do
ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado
Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da
necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a
apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em
vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro
que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo
se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer
Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self
que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos
estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente
buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p
216)
Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme
transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma
natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio
de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos
recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num
trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da
persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher
Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem
a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma
imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele
desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto
Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do
indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente
agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao
indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma
vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que
o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O
fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha
consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica
sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as
39
pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo
que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se
desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu
papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias
obsessivas
A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que
significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da
persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a
individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a
persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute
um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o
individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa
doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e
coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para
que a alma possa se desenvolver
Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)
Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos
arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor
ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na
consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta
que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante
a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)
Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em
noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este
estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto
nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a
ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein
explica que isso acontece porque no meio da vida
40
() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)
Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar
entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita
pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo
necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos
podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na
adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-
idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar
outra transformaccedilatildeo
Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos
nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as
pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um
significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social
O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico
o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute
justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos
nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas
acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como
sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem
uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo
a seu respeito
Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos
psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for
desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que
natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua
consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial
Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque
nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos
nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas
e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo
41
configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a
experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas
Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a
individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar
de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da
vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo
determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o
lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se
esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta
tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo
a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam
contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida
Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que
tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase
anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem
da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e
perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da
persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos
separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se
diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma
desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento
para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica
Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja
um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora
seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado
por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se
libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar
livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar
o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento
Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da
nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a
reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as
mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva
42
relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos
confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela
definitivamente
Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do
que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que
engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos
nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido
ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a
estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra
A autora explica que
A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)
Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no
meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que
fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora
estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo
podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos
Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo
necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo
temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo
reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que
vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro
relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra
apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em
uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim
vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem
negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado
43
Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente
para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por
Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self
que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self
possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos
proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas
que ele ainda precisa cumprir
Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem
os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo
e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-
se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem
antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos
estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de
individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas
singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa
finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas
condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na
polaridade divina
Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego
dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave
proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como
inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a
autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da
personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da
proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos
psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem
fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012
p 56)
Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma
simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato
Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma
experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se
fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os
44
iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os
impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a
sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando
orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar
aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-
se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes
Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo
simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da
nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o
que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um
aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo
de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos
sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu
respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los
Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos
nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo
interna
Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja
atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo
por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de
forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar
com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila
de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que
tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos
levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees
Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer
esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se
separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem
em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes
reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo
e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o
que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus
45
Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o
resultado da transiccedilatildeo do meio da vida
Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos
dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente
com anima e animus Sobre a anima Jung explica que
A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)
O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da
persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o
exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a
anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias
entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode
ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre
nossa vida exterior
De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a
anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino
relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)
A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma
representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos
germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os
homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que
pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada
homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na
forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo
O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da
mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A
influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista
sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os
outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa
da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a
autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a
46
se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso
ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima
como uma forccedila interior
Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em
termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do
homem quando ele
(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)
O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de
individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que
o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo
se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo
inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self
Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem
subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do
mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro
Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura
equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem
a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus
como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum
dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos
atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles
Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)
O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora
opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute
que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta
47
como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo
inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos
guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos
razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung
(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de
preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado
Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von
Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui
aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa
coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a
anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON
FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo
perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente
revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos
sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino
um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute
simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute
representando um aspecto mais coletivo do que pessoal
Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus
estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca
satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam
Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas
prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo
Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos
aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que
constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo
desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento
da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo
projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes
Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos
integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia
Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o
inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute
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bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma
postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim
esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes
A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando
sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias
inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer
objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do
inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de
consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente
percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila
da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia
por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias
A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung
(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e
se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam
os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo
transcendente
O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a
pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de
maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os
conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se
diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade
Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas
necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros
provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia
consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel
para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente
com o que eacute
Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute
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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)
Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute
preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de
permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu
consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute
consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter
demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo
Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e
nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a
conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e
que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando
nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para
expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para
reconhecer sua forccedila superior
A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011
[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o
eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim
Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa
extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a
individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a
consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos
inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute
somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos
com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir
um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior
Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica
uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se
esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a
infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo
revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente
o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter
sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma
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forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser
um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo
exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar
nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que
acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que
essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo
A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam
a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos
internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)
diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo
vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor
A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for
perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses
casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a
apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como
uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais
comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma
mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego
Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um
sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro
delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um
significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais
imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais
superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos
atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ
2008b p219)
A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da
consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma
inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber
sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de
fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e
entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem
ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba
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crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o
exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as
cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela
este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com
o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece
mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto
a ajudaacute-lo
Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este
momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a
magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito
difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa
sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada
servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte
efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com
humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso
E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e
extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma
ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos
voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais
A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e
longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com
eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico
representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores
como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio
guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica
do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus
grego Hermes
A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou
uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao
mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo
podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como
uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de
renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual
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Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um
jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando
natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo
como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute
onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta
caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que
envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa
segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita
soluccedilotildees criativas para seus conflitos
A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo
sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar
que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o
autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a
presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma
situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida
Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam
escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo
de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a
experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a
experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e
permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as
pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito
semelhante agrave dos sonhos
O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente
territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de
Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e
assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade
suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de
alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e
capacidades
Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no
limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes
8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica
53
mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os
acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois
estamos emocionalmente muito sensiacuteveis
Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no
inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos
fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego
o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar
ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora
do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o
autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de
Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia
Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo
relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque
especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees
mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos
do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala
Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute
orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca
poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus
instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses
siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela
Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)
A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas
culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da
criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do
ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego
se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior
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Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como
bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais
relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma
aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de
alguma forma
Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do
self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b
p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua
riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute
comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma
representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito
De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de
um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que
justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela
explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como
um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma
totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as
manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo
espaccedilo-tempo conhecido por noacutes
Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung
que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e
externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute
encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de
pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma
coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de
sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo
entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos
sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de
individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o
indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as
coincidecircncias significativas
Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida
seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso
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mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso
significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que
desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu
processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida
Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do
inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos
positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute
especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as
pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como
exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles
que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com
a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar
grande perigo para o ego
A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo
podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue
funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees
Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil
Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e
um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta
obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros
querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para
conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar
eventualmente
Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das
pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos
provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social
Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo
indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com
determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade
eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos
Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees
com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos
56
de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo
sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou
No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois
haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou
social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto
social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles
se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de
duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um
aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre
aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o
que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com
as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a
respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E
uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas
projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma
interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas
Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se
encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para
Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado
transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de
interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo
Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta
mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou
natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e
de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de
partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da
maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos
partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos
estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece
O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado
a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por
estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa
justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre
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as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode
levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por
pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo
de Hermes no coletivo
Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia
a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos
formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os
outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo
compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas
que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o
processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por
meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em
que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados
pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees
negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao
nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social
Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres
motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e
seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos
o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o
processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua
individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo
de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo
contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma
muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se
tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora
utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso
desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna
simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)
Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que
A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para
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o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)
Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio
da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo
extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs
fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que
costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem
da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais
seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute
sua atitude psicoloacutegica
Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e
encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute
consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma
consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em
fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por
sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave
negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes
Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em
objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo
eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser
considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)
considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a
experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a
respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos
planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de
antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser
sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si
Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou
mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a
diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem
cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico
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passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e
atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo
Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal
um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se
restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida
dada sua dimensatildeo sincrocircnica
O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se
associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o
fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao
limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees
do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste
caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz
essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a
conturbaccedilatildeo desta fase da vida
Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao
tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o
tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao
seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia
cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a
vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica
que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no
meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep
separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria
identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees
experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se
confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o
esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele
ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta
Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela
tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo
conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia
Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por
Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O
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autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e
conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite
que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem
possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo
liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se
descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar
relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem
menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado
energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma
ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos
reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)
Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade
se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade
de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta
com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida
Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo
de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo
constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo
faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele
mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas
defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve
demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e
impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo
liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente
Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se
torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o
futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade
valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra
livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve
mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a
situaccedilatildeo
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A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)
Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um
comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a
regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais
intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein
(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da
vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem
tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na
infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a
qualquer um de noacutesrdquo
Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo
psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma
etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece
uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a
identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma
reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma
Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este
processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto
fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra
dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em
padrotildees antigos e sem sentido
Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de
transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos
dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram
reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente
liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais
de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave
nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos
pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo
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Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio
das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas
em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter
conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os
outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e
assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos
coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo
de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a
autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com
aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de
tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas
dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em
siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e
o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo
A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com
siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na
imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas
experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar
consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar
do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia
liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente
Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por
Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e
de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta
circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com
outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da
anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser
cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a
ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante
dos ganhos psiacutequicos posteriores
Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo
preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao
mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta
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forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado
de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao
entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida
durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo
do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A
constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por
completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que
ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um
elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o
lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do
dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)
Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo
dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila
constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo
do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente
psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase
liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja
eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute
encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar
mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e
estabilidade
Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a
presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus
sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo
estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa
vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos
espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros
eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no
meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto
executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de
escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes
Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente
vista como estaacutevel e tradicional
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(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)
Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que
prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute
exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da
vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o
autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se
mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai
depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo
que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico
Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos
inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em
qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma
experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso
queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo
liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para
a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em
nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um
resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento
entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as
dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses
com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a
inuacutemeros pretendentes
Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de
se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de
desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em
outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia
se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da
aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos
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cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da
personalidade dos filhos
Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como
instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que
tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as
necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento
Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do
outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por
outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos
independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta
realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz
particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal
Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme
afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que
lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca
poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos
que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que
Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)
Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual
motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo
complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar
bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar
a vida do casal
O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias
estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios
de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo
caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente
dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento
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Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por
Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente
nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de
elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande
ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e
conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais
satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo
Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento
constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa
individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem
continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus
potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o
casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo
natildeo eacute o uacutenico
Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre
simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus
sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo
o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos
arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos
juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas
que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos
inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos
cocircnjuges
Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o
fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou
seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro
ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca
desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este
desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo
desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece
ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma
uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute
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proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na
alteridade que seria o principal sentido do casamento
Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a
necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima
da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a
humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que
Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)
O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da
personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)
afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma
criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva
quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial
criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o
siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e
pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de
confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior
Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o
casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento
aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder
uma sombra consideraacutevel
Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute
tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute
uma caracteriacutestica humana
Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas
histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o
final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris
enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno
de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua
vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte
anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios
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pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses
voltaria para casa ou natildeo
Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um
triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto
De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato
de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo
Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida
dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se
compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la
transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES
2014 p 59)
Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro
mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a
possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira
eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo
em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro
Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao
nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz
Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)
Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a
ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer
uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso
Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica
constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera
improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da
pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o
tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros
As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si
mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer
em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas
69
Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela
traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos
arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees
De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento
tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois
expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado
e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma
pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a
essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo
oacutebvios nem tatildeo imediatos
A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que
Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)
Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes
de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode
proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum
que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se
conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as
eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo
de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus
complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de
honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os
parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas
continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento
Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se
responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis
caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o
indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu
redor traindo ou sendo traiacutedo
70
Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-
se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro
entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu
perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo
A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)
A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber
que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)
destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute
possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser
fiel a si mesmo
De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando
simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa
estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu
animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a
autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor
Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na
separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc
da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se
tentar obter um relacionamento psicoloacutegico
De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o
indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo
pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por
meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e
possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem
relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros
71
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao
mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)
Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais
importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito
apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e
em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente
Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os
mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas
Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo
que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os
temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar
fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e
culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos
perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja
como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico
costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees
livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)
Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores
entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de
humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p
15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas
Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos
entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes
Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens
mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a
mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder
simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje
mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa
cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo
ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias
transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas
72
passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma
estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas
Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da
associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no
quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do
caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original
utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung
como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)
Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do
conceito de inconsciente coletivo
() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)
De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento
ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira
e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida
Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no
inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar
se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a
maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo
psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente
conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas
ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma
expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo
de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada
para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o
estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica
Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um
deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que
um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de
vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus
73
relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades
vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as
possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos
pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para
aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam
Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos
trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz
sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso
siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo
precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou
transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o
mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final
Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro
podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados
Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como
ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de
nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material
analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a
respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta
forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever
futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e
LIMA 2006 p 56)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico
conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers
os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o
paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto
sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso
nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores
consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa
74
se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves
estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao
estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias
divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo
arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela
harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)
Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o
heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente
humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos
adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim
porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que
podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que
escolhemos ser a partir de entatildeo
De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo
da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem
seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute
passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a
cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash
simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra
Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que
A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)
Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas
figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel
perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se
estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas
entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da
nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades
fragmentaacuterias
75
Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou
demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua
capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas
atitudes
Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de
um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a
dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a
nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou
energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por
isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se
soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas
psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que
tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)
Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se
manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a
doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se
soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram
reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento
A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta
precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado
com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar
impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si
mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo
sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um
arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire
caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender
fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade
da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso
Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos
leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles
influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo
temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo
conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein
76
(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos
sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo
liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e
atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que
vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram
rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que
foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo
Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da
psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as
religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida
Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus
mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma
vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus
das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na
alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas
no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute
relacionado a ele
Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de
acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade
sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes
das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves
acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de
tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da
personalidade
Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem
confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus
costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e
misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico
O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia
hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a
ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua
afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de
estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir
77
Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de
Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de
adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute
ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa
ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente
ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do
indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado
O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado
com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar
habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e
qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus
irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades
chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo
caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)
Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)
Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute
por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees
Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para
concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso
quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar
com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e
para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental
de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo
O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso
e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as
reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica
do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos
inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor
forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante
disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode
78
curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da
psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma
Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do
deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-
idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute
eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise
Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de
Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma
experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social
pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando
transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e
ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita
pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de
que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas
sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel
natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em
periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia
O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar
psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um
de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein
(2007) a presenccedila de Hermes
(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)
Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o
que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer
comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente
existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para
abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus
Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos
sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria
79
experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em
cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma
experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura
Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca
examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento
psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de
socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da
mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou
acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que
respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa
atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles
atraveacutes de mitos
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do
analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa
julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o
analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas
Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova
postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos
satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute
que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo
Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos
que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram
inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua
essecircncia decifrada
No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando
os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas
origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por
exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias
seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o
autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em
diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos
80
Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a
mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por
meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela
depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de
comunicaccedilatildeo com o inconsciente
Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute
fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto
historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e
mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia
claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia
ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do
heroacutei
Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)
O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a
compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela
tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas
impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees
simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de
que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo
principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia
egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo
consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que
o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa
de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa
simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade
9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror
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Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do
heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a
morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito
pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a
determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia
do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado
momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito
o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da
consciecircncia do homem
Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus
respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-
idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter
ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem
sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo
muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco
branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)
Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto
nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta
sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente
alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus
papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As
imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo
com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as
imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o
quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como
uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10
Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque
pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua
personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de
negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo
10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki
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constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel
sim encontrar qualidades na sombra
De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung
chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para
atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate
entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como
dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma
por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro
livre do desejo do retorno ao mundo da matildee
O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro
tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e
a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e
demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas
Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado
negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No
entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a
forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que
considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute
prevaleceraacute se integrar a sombra
Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos
procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia
pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas
condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo
arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O
que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego
precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo
conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente
Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei
sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade
desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas
e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente
profundo para poder realizar atos criativos
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O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de
consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os
egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se
desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade
Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave
consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes
a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que
podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-
sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais
derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo
sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos
sonhos como monstros
Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa
consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto
para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica
que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma
fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees
Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos
igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por
meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados
nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso
de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a
consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como
aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica
humana pode haver essa confusatildeo
O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio
do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de
totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o
relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do
heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas
aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute
problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai
ser uacutetil para si mesmo e para seu meio
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Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio
eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em
contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte
simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade
temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito
solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro
ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de
totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)
O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais
complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a
passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase
da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo
se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera
conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de
forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos
Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice
clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente
da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo
eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila
possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia
O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias
subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da
mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a
psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam
rituais de iniciaccedilatildeo
Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de
iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso
precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao
contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute
ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para
morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a
11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais
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finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de
induzir um renascimento simboacutelico
O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a
periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer
doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou
restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio
mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia
Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever
que
A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)
O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do
homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os
conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos
siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo
pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie
de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como
renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom
espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a
anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses
siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute
mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho
sozinho
Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em
nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o
autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que
apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado
psiacutequico permanece o mesmo
86
62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo
aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as
caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto
post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute
relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram
oferecidos aos deuses e aos heroacuteis
Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser
comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou
comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais
diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que
independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem
intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a
medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e
apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as
caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado
sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas
morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino
faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter
sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta
que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de
Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como
modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma
vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso
Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos
disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real
eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute
mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por
dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como
periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto
devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento
daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou
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num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa
ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores
Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem
ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o
triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras
bem estabelecidos
No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra
(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido
na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades
superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte
da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do
lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter
passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se
destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se
destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe
permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras
dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei
recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte
traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo
(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este
modelo
Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando
honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir
realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o
centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas
seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)
que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante
ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico
ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de
lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da
poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro
Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem
do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por
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sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com
nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a
semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram
contato entre si
Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de
que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem
na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a
imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor
tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha
(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam
responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia
divina do heroacutei
Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram
poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de
modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem
estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis
tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem
para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados
tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p
25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar
a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao
Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo
O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um
sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou
de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter
facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute
cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de
modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo
A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis
Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o
nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral
e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas
primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por
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etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo
profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado
Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome
consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto
denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome
Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia
Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome
conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui
energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por
isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo
Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que
estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos
(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo
(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o
ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os
humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino
(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada
vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou
masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando
cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o
Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar
sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos
para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se
dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a
procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem
do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino
Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo
masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por
meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos
mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo
como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do
travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como
uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir
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para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute
Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia
De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos
motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a
totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo
escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz
alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado
Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a
partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o
heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua
esposa no mito Brandatildeo ressalta que
Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)
O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na
mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica
para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio
cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido
injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias
Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual
popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero
para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se
referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem
qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis
dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do
heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees
depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles
De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava
presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de
91
manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer
sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo
Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo
Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)
O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante
vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram
travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de
diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam
em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta
enquanto os demais homens morrem no anonimato
A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser
considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas
disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a
morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma
das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham
participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e
agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para
as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis
Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor
das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o
ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido
construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele
incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja
reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca
Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com
jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute
assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis
mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um
numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se
submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou
92
para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado
Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de
Ulisses
A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos
ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos
poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em
homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que
estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos
notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada
jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo
de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de
um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em
morte
Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem
estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que
pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma
geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns
heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de
outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um
apecircndice
O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em
conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser
orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou
Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas
heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por
exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os
males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas
podiam tratar ateacute a loucura
O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros
motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou
famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles
ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser
curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel
93
Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar
com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto
para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os
fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de
preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus
concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos
Misteacuterios
Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como
superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos
como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos
O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui
inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe
permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer
tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi
mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de
benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido
Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia
jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um
heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de
Ulisses tambeacutem eacute mencionada
Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a
cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)
como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o
defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem
apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em
outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um
castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo
Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito
relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma
exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda
estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante
da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos
representando o dom da visatildeo interior
94
O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis
conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito
comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um
apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como
adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo
sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por
vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de
familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um
destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do
templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute
caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei
Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste
numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o
uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou
num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros
morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves
vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem
saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia
matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita
Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois
eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As
reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando
durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de
seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que
(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)
Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a
proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o
95
uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem
as energias que alimenta o cosmo
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes
os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de
Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero
relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder
relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei
631 O MITO DE POSIacuteDON
Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus
derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel
pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente
Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas
geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas
secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de
que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente
Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas
fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas
elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees
Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu
trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a
autora
este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)
Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais
deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo
soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de
96
Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo
deus
Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a
aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao
construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos
desestruturantes
Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que
difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e
portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila
Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon
atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que
emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)
Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas
extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por
exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope
Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos
Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma
Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)
Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte
anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros
97
dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao
expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por
exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro
com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu
enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal
Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro
e agrave proacutepria anima
632 O MITO DE ATENAacute
Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual
Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem
ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar
no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute
estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a
filha
E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o
combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute
eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender
essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram
aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte
para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade
racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)
A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer
pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o
estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como
seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a
possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se
apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a
reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute
passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e
poderoso
Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas
no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute
companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos
98
descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do
espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)
Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de
incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as
coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser
entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)
A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada
em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um
complexo que a deusa elaborou e integrou
Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)
Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se
confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam
ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo
admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo
mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento
Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados
em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A
fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas
provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de
Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado
Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino
Segundo Ribeiro
(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)
99
A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute
profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a
ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada
ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais
633 O MITO DE HERMES
Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)
De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu
chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar
entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade
pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos
deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado
guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles
que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute
atribuiacutedo a Hermes
Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por
Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo
Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus
cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele
havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora
Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este
fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma
necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo
(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um
deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo
Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de
Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele
precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle
100
Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e
astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer
O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois
novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo
Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica
ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra
respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos
Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com
o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora
considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do
instintual para o sagrado
Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes
encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista
(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo
superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num
instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente
Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem
nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo
voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade
Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma
e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute
ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser
colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os
irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus
no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a
partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o
privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o
segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)
Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as
qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)
nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de
presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser
o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom
101
do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado
demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se
apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma
tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta
Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos
pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira
ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia
Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e
informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de
firmar contratosrdquo
Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso
com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute
concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e
mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes
recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas
A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos
como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash
seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a
androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)
Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio
de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes
se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do
movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar
motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens
importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi
fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a
terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia
da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso
nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado
por um casal na Terra como menina escondido de Hera
A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de
destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa
descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem
102
conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute
E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno
de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)
retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o
aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica
Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a
flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira
103
7 A VIDA DE ULISSES
O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)
Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)
Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma
versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram
juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente
coerente
71 ORIGEM
Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como
acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e
Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de
Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que
Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte
Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto
pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade
supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-
rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha
Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de
sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que
enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se
sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que
Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu
negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha
Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse
nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram
surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas
de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-
lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto
o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez
104
Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de
Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era
apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois
pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que
Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era
pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para
comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita
derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila
Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele
ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)
O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a
sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando
para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente
De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de
Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre
os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia
mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo
coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-
ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si
lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)
Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando
Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal
colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo
teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita
gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na
105
Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras
histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis
Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia
de grande temporal
Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)
Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa
Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a
Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos
necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de
Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que
teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-
nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e
Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do
momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria
sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei
Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de
Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito
astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova
botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o
proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou
Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado
agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo
desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel
Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu
106
sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo
nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)
Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e
comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia
na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada
que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do
que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco
acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele
fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia
Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do
rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute
Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis
trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual
mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope
Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras
provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder
espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do
poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas
apoacutes conquistar estes dois feitos
Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade
Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os
pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela
Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe
proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem
era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma
Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da
ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele
simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope
Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este
tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia
do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em
12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela
107
recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio
concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer
forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando
forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a
longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a
fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e
sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)
Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo
corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope
praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o
traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu
apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope
teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde
passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes
descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma
Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de
Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca
adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)
72 TROIA
Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de
Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta
sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o
iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e
Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado
entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim
que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu
Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses
compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo
assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre
os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem
planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a
108
humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de
Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos
Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados
tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma
nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam
igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena
de Troia e outras desgraccedilas
Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia
entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos
homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida
novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava
Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado
Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a
crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o
conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o
bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por
pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida
sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito
Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este
priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de
mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera
ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite
ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de
Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de
conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz
por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu
lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia
Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o
costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo
tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que
os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a
corte natildeo precisava ser feita pessoalmente
109
Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente
de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem
enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que
Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar
com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra
que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais
pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar
a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com
Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o
emblema da fidelidade para todos os tempos
De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez
anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal
real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando
Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia
Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se
aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13
e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-
lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a
participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena
Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto
a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de
Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra
e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa
A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos
para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para
Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se
recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam
que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte
de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de
acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em
Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre
as filhas do rei sob o nome de Pirra
13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor
110
Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas
femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu
entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem
levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas
conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi
quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a
Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu
Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta
uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia
Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em
Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os
ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon
pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que
Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia
sua primogecircnita
Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau
aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo
que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto
Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria
filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas
Menelau o impediu
Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao
acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes
Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois
irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo
instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses
Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris
Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua
astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura
de Teacutelefo ferido por Aquiles
De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios
lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por
111
Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos
Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como
atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon
ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os
aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes
helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que
mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a
Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem
em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes
por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos
poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau
mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez
poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos
natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria
matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor
Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando
astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia
Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de
acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas
como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes
Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra
Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois
de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a
cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes
entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar
os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma
profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio
Escamandro
O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia
isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo
(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o
primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de
Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc
112
Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)
matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover
ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus
Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-
se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma
estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram
inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte
de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada
por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da
guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a
vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu
ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que
perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a
resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax
enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se
tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que
tinha feito envergonhado Aacutejax se matou
Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia
Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e
Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a
Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute
dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e
convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se
agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem
sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax
jaacute havia se suicidado
Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de
Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a
vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o
regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses
ndash devido ao seu machucado fedorento
113
Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e
destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash
mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de
guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada
Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez
anos de guerra Entre eles estava Ulisses
73 RETORNO A IacuteTACA
Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de
partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas
Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu
esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande
borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o
heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o
sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho
delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando
alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os
barcos e fugir
Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo
Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar
pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os
habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a
flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e
fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los
de volta para o navio e ir embora daquele lugar
Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos
ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa
ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos
seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa
caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela
morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada
Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se
mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo
114
que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-
lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho
Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que
Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum
ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando
bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-
los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena
para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga
dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco
Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se
demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a
alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma
vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por
sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo
apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que
ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu
ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse
responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara
Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)
Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito
daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto
e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida
com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu
chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que
fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e
sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho
Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a
ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem
115
passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na
partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos
rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que
deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o
odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos
Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando
Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus
companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que
contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora
foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que
estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de
uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo
De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo
que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana
vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes
canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu
enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras
contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se
encontrava mais distante
O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia
tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens
sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-
los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe
transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara
no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em
vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros
Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu
diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como
escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como
antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa
bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em
porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a
espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo
116
de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de
volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo
com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono
e Nausiacutetoo
Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas
natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa
seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja
sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a
fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em
Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o
restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida
A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor
Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)
Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve
estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe
sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como
passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo
consumir o rebanho de Heacutelio
O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne
humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto
irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim
de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os
ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso
deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer
Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas
para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e
117
ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma
enorme faccedilanha para um mortal
Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros
precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais
raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo
escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que
navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens
Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros
remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a
passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como
viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de
Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram
as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os
homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um
raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara
do banquete
Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes
Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou
apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta
vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando
se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou
laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e
seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela
o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave
ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua
ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem
que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo
(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como
filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela
pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei
voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente
Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual
118
ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a
proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara
seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada
destruindo-a
Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco
destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe
emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que
depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu
e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde
Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia
O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas
companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora
estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu
ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois
o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram
bastante hospitaleiros com o heroacutei
Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o
aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo
de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele
contasse um pouco mais de si
Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)
Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes
sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram
ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com
presentes o barco que levaria Odisseu
Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao
chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente
escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo
responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num
rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga
119
Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de
Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua
ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter
reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que
morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de
Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa
estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto
ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)
Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e
Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os
cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia
se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema
satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de
Peneacutelope
De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou
afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai
ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio
prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma
Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em
Esparta
Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos
anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a
presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos
os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam
chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao
longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a
agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo
os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por
se tornar amante deles
Para Brandatildeo
Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela
120
desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)
Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope
resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo
assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de
dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os
pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da
escolha de outras formas
Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo
quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu
seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses
tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao
mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi
encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles
imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope
Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de
fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora
bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe
faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo
dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que
havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes
de Peneacutelope
Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-
los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu
o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das
saudades que ela sentia do marido
A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses
e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para
banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna
de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees
Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo
Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou
inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que
121
apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o
armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos
doze machados
Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar
sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida
Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo
O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os
pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute
por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o
mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os
alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei
se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim
comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima
Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze
foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a
desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque
maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa
Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade
conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele
mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou
Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)
Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande
maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma
que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com
os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente
Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para
Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da
velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz
respeito agrave fidelidade de Peneacutelope
122
Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para
sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer
um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute
ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez
sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho
Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se
apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria
nascido Poliportes
O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses
apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por
Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na
Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo
de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que
fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-
los
Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria
encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria
ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei
teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade
avanccedilada
A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de
um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a
identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a
devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores
mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia
feito a quem havia matado
Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para
a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo
fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein
(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo
123
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)
Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por
Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves
transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e
do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos
da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise
do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel
compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro
do modelo junguiano
Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do
heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em
rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo
determinante na Guerra de Troia
Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva
teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a
individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute
estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse
lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do
nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que
Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu
retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando
precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez
anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo
Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora
entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente
que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema
comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso
124
Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os
desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de
ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da
dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia
cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de
individuaccedilatildeo
Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de
acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante
frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de
aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante
Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de
Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir
regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto
de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para
chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de
Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando
por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa
Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de
Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo
(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa
tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute
interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando
sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que
[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)
A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa
viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem
uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este
processo
125
O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em
casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a
individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma
ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e
irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se
compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo
unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o
casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise
Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria
que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o
autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos
isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de
tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo
para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado
chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao
longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as
caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem
representadas pelas figuras dos companheiros
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que
deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles
por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e
suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente
o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de
Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa
exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho
e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz
(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo
quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e
instabilidade futura
A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos
Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando
126
apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para
embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens
natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um
contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram
durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute
identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial
podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees
de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a
individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de
seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos
sombrios jaacute estaacute comeccedilando
Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado
novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta
para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do
processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto
(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila
Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de
evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos
inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir
82 ENCONTRO COM POLIFEMO
O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de
Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior
da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de
escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar
Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua
identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos
um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o
orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico
Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus
dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de
sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda
afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer
127
Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo
intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo
pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se
analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e
no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro
(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e
inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo
Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de
Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo
praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena
Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que
desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros
conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada
por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas
impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como
momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)
seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso
retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com
Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa
oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um
aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior
Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria
pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos
sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se
manifestar impedindo a continuidade da viagem
Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem
a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase
chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei
adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem
tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de
volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos
deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que
Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono
128
Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os
barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash
o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade
enfrentada
83 ENCONTRO COM A CIRCE
Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que
Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que
desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei
pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu
recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem
sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das
instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses
recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm
filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar
Tireacutesias eacute Circe quem o orienta
Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self
Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de
Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura
do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o
autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se
aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes
Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute
ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem
estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de
uma nova orientaccedilatildeo espiritual
Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de
Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem
da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira
ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um
complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter
demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva
129
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por
feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse
aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por
Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de
Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e
negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao
relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da
anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras
Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de
guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e
inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que
fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute
84 DESCIDA AO HADES
No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas
incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se
aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que
ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus
caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo
para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon
depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando
consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar
Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem
Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho
diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que
simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se
com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha
consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte
simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A
morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o
autoconhecimento
Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de
individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado
130
por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao
movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante
esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens
novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute
pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda
precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do
Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de
morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar
para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas
tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o
remo numa terra onde natildeo se conhece o mar
Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade
traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila
seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso
Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que
se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a
matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto
desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato
podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso
como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste
trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como
fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta
sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer
cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de
Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme
Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses
diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro
O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a
ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute
escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo
sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-
lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte
131
Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho
Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do
navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro
aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com
seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos
entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim
consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem
necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade
do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se
arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o
rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda
luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o
Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco
compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de
seus companheiros
85 ENCONTRO COM CALIPSO
Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha
de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus
companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a
viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam
presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam
Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens
ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e
percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a
mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala
mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do
banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a
vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na
embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos
novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar
seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar
depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei
132
dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode
representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta
esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que
ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho
Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem
tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia
segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis
um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a
figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que
vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que
passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia
Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que
a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando
que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no
caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui
representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos
supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego
natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos
Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por
ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie
Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso
concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa
passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash
assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade
Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso
quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer
prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando
ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de
individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou
esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada
por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente
porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la
133
86 OS FEAacuteCIOS
Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento
Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila
um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino
interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua
armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua
relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas
Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo
por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com
Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus
aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo
levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado
novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer
de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se
desidentificando com a persona
Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois
ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima
integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e
desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia
conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que
Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia
pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash
filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com
humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso
rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a
fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a
primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se
manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho
para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para
guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu
processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do
heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para
confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que
134
foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar
ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se
joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros
com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante
o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra
de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc
chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que
ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo
pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde
educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe
fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes
Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que
satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua
funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu
nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios
presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros
presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais
em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do
Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a
transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas
87 IacuteTACA
Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme
os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute
significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo
prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute
mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua
funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos
inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego
Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela
confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era
Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua
verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente
135
pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao
ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria
morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua
aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua
alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio
repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que
certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute
a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo
mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de
Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar
Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos
pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser
forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e
da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa
amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo
se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope
Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute
simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto
impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses
conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais
arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o
ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos
se vecirc sendo interrogado por ela
Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os
pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que
Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela
exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou
uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve
percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas
um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze
machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de
sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo
verso do poema ela decreta a paz
136
Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal
Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei
de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria
sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender
por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar
outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina
ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver
88 DISCUSSAtildeO
Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de
individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos
que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes
da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas
diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo
do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras
siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute
instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que
observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a
peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia
onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa
peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa
viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo
Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida
ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito
geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como
Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam
diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar
a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e
segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
masculino
Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o
heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo
unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos
137
em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a
ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre
permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que
diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato
com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher
cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias
Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo
pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o
casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o
indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las
no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do
casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na
Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de
estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito
da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do
seu primeiro filho
Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua
famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da
Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele
mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida
ao plano dele
Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente
do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto
como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai
de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria
um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser
raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto
notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de
Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-
o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem
Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo
de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente
disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a
138
filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar
sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de
Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro
tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa
no futuro
Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a
Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela
comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia
Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia
pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa
inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do
heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio
perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi
principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu
pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs
a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito
de seu futuro
14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela
139
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos
entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma
como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do
heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina
Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes
domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi
essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia
profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a
disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver
originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades
Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio
da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e
poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa
questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho
sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este
processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e
agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade
Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a
manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo
Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora
impotildee seu reconhecimento
Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um
indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes
pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua
anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode
invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])
descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a
desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios
a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento
da funccedilatildeo inferior
140
O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de
individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas
Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em
outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade
propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo
estagnados
O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia
analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos
caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat
(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas
individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais
comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em
filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis
Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o
mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro
momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois
seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e
Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung
(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a
esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)
Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua
cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz
(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma
mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos
demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do
processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza
Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como
siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de
individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei
representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham
seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria
pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam
o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da
141
ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei
integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de
Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento
Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self
representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis
como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo
entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As
personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias
Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da
anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados
de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com
Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco
Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede
que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas
expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina
Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o
adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre
quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua
jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses
e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma
embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a
sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando
estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em
Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio
com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele
precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia
Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de
suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves
provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente
o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo
conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina
haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados
142
De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo
dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo
seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma
questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo
de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de
casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo
de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os
pretendentes e defender o seu casamento
Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca
como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de
sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que
Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas
ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de
outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia
comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos
chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma
transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo
Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])
quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima
geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas
opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como
expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem
examinadas em trabalhos futuros
143
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147
APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto
realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no
momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador
decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia
ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero
(2013)
Canto I
A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de
Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca
Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o
poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua
morte
Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam
morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido
chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido
Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses
eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon
Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros
quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia
comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por
Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra
esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto
assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado
pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee
Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus
que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava
sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado
seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou
Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu
Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a
expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope
148
Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que
seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas
natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco
revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com
todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de
seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca
clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser
assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma
natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai
Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os
pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos
conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter
notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco
com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto
para partir em busca do pai
Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de
Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo
pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses
porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco
interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela
ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros
haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos
seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude
Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco
Canto II
Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele
sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute
Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles
homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus
e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um
dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras
e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o
coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a
149
artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente
assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No
entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os
pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano
alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha
constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai
dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por
meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os
pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu
que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os
pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso
achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os
punissem do modo que considerassem justo
Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave
esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e
se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de
medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que
Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses
propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos
pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos
apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que
aquilo jaacute estava acontecendo
Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois
sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope
fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados
Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a
Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que
seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria
sua matildee casar-se novamente
Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua
casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia
de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente
respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu
150
retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia
se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo
de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem
frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que
a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que
ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os
pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha
com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para
acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que
seguiria viagem com eles
Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um
deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los
Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como
Odisseu
Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua
viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para
abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua
viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou
doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o
plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a
garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se
Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o
melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a
provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de
modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo
proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os
tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute
Canto III
O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar
encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a
primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se
diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto
quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de
151
Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem
uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o
ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com
seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece
Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham
Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma
vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para
pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em
Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito
sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre
Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas
hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso
imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em
Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon
enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor
e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que
Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a
Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos
pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele
Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos
pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma
que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo
dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que
aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz
que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros
obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que
chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado
por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que
natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida
perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar
o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau
para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a
viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de
152
Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os
companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a
cavalo e ser escoltado por filhos
Canto IV
Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus
companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a
respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou
que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe
causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de
notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso
Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar
Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o
agrave prova
Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem
eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau
concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor
confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute
justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a
chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que
nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de
Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que
pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem
sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena
Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de
colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e
o sofrimento e logo todos dormiram
No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua
viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez
narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia
explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a
ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para
que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas
recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar
153
preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera
lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto
Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a
viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular
um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo
descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope
lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que
Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e
Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma
terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a
culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se
comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute
Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir
com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a
Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam
no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno
Canto V
Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu
lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a
ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute
se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que
natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o
regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco
Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o
avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca
Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava
tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que
estava na praia chorando como de costume
Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora
enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no
momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora
conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida
154
imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram
crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal
Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua
ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia
perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a
imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma
vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe
proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria
como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo
A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o
fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa
Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela
tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento
favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a
vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los
Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e
se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando
nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de
Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela
disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente
recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas
provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de
tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum
sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua
jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No
quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel
conforme prometera
Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos
Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de
terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios
enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente
de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez
com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer
155
ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele
ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia
Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar
a morte
Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera
honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e
pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a
abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria
chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria
abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a
jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou
de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar
com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua
a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que
ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo
de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez
com que ele dormisse para descansar
Canto VI
Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios
Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha
de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus
irmatildeos no rio
Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar
roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas
lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas
tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as
servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou
uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez
com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia
Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo
ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas
com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando
apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele
156
narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para
chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes
dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se
vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila
fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em
seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso
Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios
Canto VII
Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que
assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de
Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha
Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao
terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com
Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa
cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu
lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos
deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que
na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por
diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu
agradeceu eloquentemente
Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que
ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira
aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre
causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de
Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da
deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada
Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua
jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu
Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa
Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe
contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na
manhatilde seguinte
157
Canto VIII
Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso
Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o
repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para
serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens
terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo
saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila
de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a
escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim
Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos
gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante
um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si
os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas
Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem
Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos
esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o
impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de
Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica
Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e
mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da
marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu
orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando
que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os
imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos
estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou
a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores
danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o
espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado
Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes
para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e
o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela
quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu
158
prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela
como se ela fosse uma divindade
Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por
cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia
Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que
permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda
de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio
corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu
chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e
sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus
barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa
Canto IX
Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era
conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia
nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a
deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa
Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que
nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades
lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram
proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e
levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus
companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais
numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones
haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada
barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes
por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma
tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se
tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento
Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em
terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza
Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo
vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos
Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para
159
investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do
loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali
sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco
para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se
plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem
natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras
Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de
homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras
para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha
dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde
notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns
companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram
hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens
esperassem no barco
De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um
pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui
que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze
bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de
vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro
com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles
entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem
pelos queijos
A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os
deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e
cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes
seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo
tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os
homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando
ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope
trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e
seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que
eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto
sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os
160
deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O
Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do
que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco
deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus
barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles
homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute
e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e
devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele
ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de
Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme
pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu
na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la
Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de
mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o
escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando
mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe
vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe
revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe
mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que
se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade
devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar
sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a
seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar
fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por
algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu
pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o
Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram
enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar
os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com
uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que
ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes
vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez
161
que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio
de Zeus e foram embora
Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos
estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir
Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo
que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a
fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu
porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga
de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma
forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal
Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna
quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam
um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma
vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos
Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus
companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute
havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou
para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder
corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou
de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas
imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele
baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida
Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em
casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um
regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho
Posiacutedon ouviu a prece do filho
Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o
restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus
sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os
alegrava terem escapado agrave morte
162
Canto X
Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos
enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a
respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e
em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para
Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento
responsaacutevel por levar os homens de volta
Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia
eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e
enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando
da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros
resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo
escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca
levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e
perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas
Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses
abominavam
Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo
chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram
pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para
investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que
descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e
de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se
depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo
chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de
Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram
depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido
com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos
barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os
Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso
Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a
remar fugindo
163
Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu
seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de
Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros
que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de
Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os
homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo
os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O
primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os
demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem
desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens
adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da
proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas
de modo que eles conservassem a inteligecircncia
Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os
companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que
Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de
ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu
que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho
para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no
iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu
tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos
como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria
livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu
comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe
lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca
ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele
natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem
disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais
nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva
mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem
Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe
ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante
dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela
164
adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que
Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que
criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus
aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse
solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram
ao magniacutefico leito
Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado
pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o
daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia
sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em
porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho
Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma
humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo
foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se
comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois
voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco
para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram
imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em
animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim
como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou
decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo
Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou
com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca
Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se
reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne
abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de
Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o
tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi
suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia
prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa
contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes
de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para
consultar o adivinho Tireacutesias
165
Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da
deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal
empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do
vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio
Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali
Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam
o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava
ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e
Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e
mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e
invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu
palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas
a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais
esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um
carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na
direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu
deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e
orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez
teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe
revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca
Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a
respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a
natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute
Canto XI
O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano
aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do
rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram
as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo
as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois
farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor
novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais
esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces
Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu
166
As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos
solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de
sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus
companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando
aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu
glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse
Tireacutesias
A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara
sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens
tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome
de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave
ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu
prometeu atender aos desejos de Elpenor
Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que
ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo
deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que
apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar
despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar
do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade
Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele
esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno
muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho
Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que
conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando
chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de
Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu
regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens
saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse
escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito
tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria
tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu
conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por
meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir
167
ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com
um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar
um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e
sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu
morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes
ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o
reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee
chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades
Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho
Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu
que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que
ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde
que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai
Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que
Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do
filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo
triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do
glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um
grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu
usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua
identidade e ascendecircncia
Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os
deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu
que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem
e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que
apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em
torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de
Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo
pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte
Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante
de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que
Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este
oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por
168
causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o
marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal
destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem
bom e ambos ficariam felizes com seu regresso
Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e
de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso
Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias
esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu
acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles
que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora
exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a
proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo
pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho
Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas
ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora
satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-
se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele
quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo
ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos
deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de
Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e
sem responder voltou ao Eacuterebo
Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres
devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo
de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a
aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso
rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia
com que o rochedo rolasse montanha abaixo
Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com
Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses
apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou
com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se
encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a
169
de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave
ajuda de Hermes e Atenaacute
Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de
Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus
companheiros comeccedilou a remar para longe dali
Canto XII
Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde
sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-
los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas
mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou
para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os
homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes
indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades
comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas
sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de
se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar
os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de
modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos
haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu
deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes
atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo
que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em
decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia
uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava
terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente
longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de
dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam
para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria
uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem
os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor
opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o
monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo
170
Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por
Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez
Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda
assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse
perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens
conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio
Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave
Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave
Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o
barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria
chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho
Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados
pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos
companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam
se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde
que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus
companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando
continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se
puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo
que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia
mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe
soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e
soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias
Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme
Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a
continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os
homens obedeceram
Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a
respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do
navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das
recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave
proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e
ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado
171
estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a
vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros
temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham
os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior
experiecircncia da viagem inteira
Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do
deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o
que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e
da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para
longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo
permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a
tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que
seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que
encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas
por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia
comeram e dormiram
Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles
tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas
vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os
homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse
nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens
tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de
orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar
suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso
Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais
triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as
vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A
tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o
barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o
por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez
que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia
Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo
para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse
172
atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente
Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre
a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora
Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde
demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os
couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos
Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as
melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando
Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou
a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na
cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco
projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou
a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No
entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e
por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e
Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a
quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e
seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu
passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de
Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu
Canto XIII
Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes
ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para
conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos
presentes
Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos
roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a
casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo
Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir
Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse
aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca
Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo
que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto
173
conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo
assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele
enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo
inteligente quanto os deuses
Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram
na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido
na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara
graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia
Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees
afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era
respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon
se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que
este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com
facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu
havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar
e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o
castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito
No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios
no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas
Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o
numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia
cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez
O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute
havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar
os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de
touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo
Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria
terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que
tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos
pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a
lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou
de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele
174
se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras
dos aqueus
O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se
dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia
Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e
repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria
terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais
persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e
astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que
naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os
problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar
calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido
Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que
ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que
nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o
sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios
quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu
pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo
Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou
que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem
na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto
queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que
Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa
por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava
guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo
Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode
reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave
cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma
gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos
apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute
trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente
desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo
promessas de casamento que natildeo queria cumprir
175
Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu
palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa
Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse
durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em
Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que
acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria
irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a
primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente
bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu
sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia
a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai
Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse
sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo
era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu
natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade
Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes
estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este
plano estava fadado ao fracasso
Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho
mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de
Telecircmaco
Canto XIV
Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim
de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do
porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o
forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito
sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo
Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e
bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles
deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo
conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do
rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma
176
quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens
juntos
Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava
vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo
tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo
entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos
em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-
lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca
se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta
Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama
para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que
quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em
seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava
a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se
deparar com a fidelidade do porqueiro
Canto XV
Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para
Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na
empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa
Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se
casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o
consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo
que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando
mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes
de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que
chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim
de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com
Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e
depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria
Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros
homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho
para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e
quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou
177
dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram
extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de
Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram
dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro
Canto XVI
Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos
cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu
terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo
porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de
Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido
Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao
rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a
refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo
ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira
Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o
priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para
defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em
condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o
velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho
Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com
os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo
Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela
situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia
chegado satildeo e salvo
Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher
fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua
verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim
aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto
Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia
se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu
Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e
perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco
poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem
178
apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de
Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar
Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou
que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora
sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu
perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho
dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre
ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um
empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute
e Zeus como aliados
Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria
retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo
mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu
deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um
de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito
da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir
quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis
Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada
de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido
um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter
dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que
espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles
retornou
Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam
cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se
concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que
eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato
de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram
agrave casa de Odisseu
Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez
que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-
se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses
e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco
179
prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele
mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus
aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse
Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho
mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse
Canto XVII
Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo
para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que
chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope
emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-
vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um
forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos
Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem
Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu
Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha
da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta
de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a
Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas
louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse
verdadeiro
Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho
encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores
cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando
Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei
de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu
caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que
seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam
um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de
Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou
se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou
com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida
Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez
180
Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se
aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao
mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se
aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de
descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se
aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente
Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na
cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda
praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco
Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava
sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo
que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado
Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo
dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o
mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha
estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a
ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes
O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila
no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele
e Odisseu haviam sofrido muito juntos
Canto XVIII
Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou
de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando
e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se
com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos
estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para
jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade
Telecircmaco incentivou a refrega
Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes
surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente
Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes
estes o cumprimentaram divertidos
181
Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos
pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao
filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho
e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas
Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza
havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e
Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens
Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela
caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a
aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se
aproximaram e Peneacutelope acordou
A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se
dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes
maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco
elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo
comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse
retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem
quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um
segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira
como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo
dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa
porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem
presentes seduzia-os ainda mais
Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os
presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los
poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse
escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali
permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu
iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e
mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa
Canto XIX
Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou
o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia
182
e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto
enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam
estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se
puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir
dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias
dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu
maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes
As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e
bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava
importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia
Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito
se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso
ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em
seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a
fim de que pudesse interrogaacute-lo
Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta
iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso
mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo
muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que
aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar
de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma
mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim
que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de
modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum
pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do
quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da
artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora
precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava
infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia
do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo
lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu
que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a
183
tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para
natildeo revelar sua verdadeira identidade
O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu
recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras
riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-
lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e
que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele
depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem
banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha
Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento
Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a
lembrava muito de Odisseu
No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a
cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar
Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo
Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que
tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho
de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope
entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a
forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles
Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e
retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria
com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado
incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo
que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu
arco
Canto XX
Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em
como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a
aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela
preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela
para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce
sonho se apossasse de Odisseu
184
Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa
proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um
homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus
pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu
Zeus mandou trovotildees
Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem
uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e
perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu
respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem
aqueles homens abusados
Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as
cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo
que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve
de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro
Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do
cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo
afirmou que Odisseu logo retornaria
Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo
uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na
direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo
interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram
Canto XXI
Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos
pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde
estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se
dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se
casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar
com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o
porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem
cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem
distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da
declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e
incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas
185
O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo
conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem
sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo
Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os
seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele
voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua
identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que
dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se
emocionaram ao reconhecer o amo
Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos
pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe
o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo
cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para
garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes
Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e
lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por
sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte
oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a
disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento
Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o
arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo
reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o
arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa
forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir
Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para
entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus
aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa
com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou
Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para
todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a
sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos
e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se
186
alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo
disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas
Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os
pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua
distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar
suas armas
Canto XXII
Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo
apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha
Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e
escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de
morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem
estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali
para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem
se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens
Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma
forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda
aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora
o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar
formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu
respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria
vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a
lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas
nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por
Odisseu
Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido
nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo
de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo
para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos
pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro
homens estavam devidamente protegidos para a luta
Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum
Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu
187
escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um
dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar
ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio
estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a
fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e
assim Melacircntio saiu para buscaacute-las
Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se
armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma
serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem
admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito
Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para
buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que
Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna
A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio
contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo
proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros
querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas
ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr
fim na refrega
Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que
Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis
comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que
ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes
Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio
doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as
trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu
ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio
Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais
dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto
Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia
que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria
avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu
rei
188
Canto XXIII
Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em
casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que
Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que
Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber
como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia
natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos
corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele
soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia
finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora
proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso
Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope
foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por
algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope
poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter
certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de
Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes
que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse
preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a
respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope
finalmente havia se casado novamente
Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a
maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu
legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia
seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse
mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que
entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para
que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo
podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma
oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu
que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou
o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar
189
Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar
no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de
acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de
Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a
um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos
demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu
morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de
sua famiacutelia
O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois
continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta
de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia
passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas
riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes
Canto XXIV
Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se
lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se
depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon
Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o
que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo
tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e
contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela
tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes
descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e
do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que
levaria agrave desgraccedila dos pretendentes
Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a
prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai
na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele
estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem
era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu
e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho
e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e
disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-
190
se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa
abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes
exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz
na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai
quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a
casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido
por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se
juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu
reverenciaram-no
Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se
juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos
Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou
a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta
Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou
algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes
estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso
Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver
a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco
logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes
fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos
pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A
fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que
Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre
eles
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao meu marido Tarek pelo suporte intelectual e emocional que foiessencial Muito obrigada por toda a ajuda paciecircncia compreensatildeocompanheirismohellip
Agradeccedilo agraves risadas e demais momentos de distraccedilatildeo proporcionados pelasnossas coelhas e tartarugas Helena Peneacutelope Catherine e Vitoacuteria e pela gatinhareceacutem-chegada Magali As cinco tambeacutem foram vitais sem elas eu natildeo teria tido adescontraccedilatildeo necessaacuteria entre um periacuteodo e outro de estudo
Agradeccedilo agrave minha tia pelo apoio e incentivo constantes ao longo da realizaccedilatildeodesse trabalho
Agradeccedilo agraves amigas Pomposas que me distraiacuteram e suavizaram o esforccedilo doestudo sempre que precisei me lembrando de outras coisas que tambeacutem satildeoimportantes na vida
Agradeccedilo aos professores da PUC-SP por todo o conhecimento que metransmitiram desde a graduaccedilatildeo ateacute agora ndash em especial ao Profo Dr Durval Luizde Faria meu orientador
Agradeccedilo agraves professoras que integraram minha banca de Qualificaccedilatildeo ProfaDra Maria Teresa Nappi Moreno e Profa Dra Paula Guimaratildees pela atenccedilatildeodedicada e valiosas instruccedilotildees
Agradeccedilo agraves minhas professoras de mitologia da SBPA Sylvia Baptista e AnaCeacutelia Souza que me conduziram para o melhor caminho sem volta de todos
RESUMO
A Odisseia de Homero conta o difiacutecil retorno do heroacutei Odisseu para Iacutetaca apoacutes o fimda Guerra de Troia Este poema eacutepico escrito aproximadamente 2700 anos atraacutescontinua sendo ateacute hoje uma obra muito significativa como sinocircnimo de uma longa eperigosa jornada de um heroacutei com vaacuterias de suas passagens como a do Ciclope ado Cavalo de Troia e a do tear de Peneacutelope pertencendo agrave cultura miacutetica ocidentalPara a psicologia analiacutetica os mitos satildeo uma representaccedilatildeo simboacutelica dearqueacutetipos isto eacute o mito expressa conteuacutedos comuns a toda a humanidade Oobjetivo desta dissertaccedilatildeo eacute sugerir que a obra de Homero eacute uma metaacutefora doprocesso de individuaccedilatildeo proposto por Jung estabelecendo paralelos entre o mitode Odisseu e as diferentes fases deste processo Para atingir estes objetivos foifeita uma leitura simboacutelica do poema apoiando-se em Jung e outros autoresjunguianos no referencial teoacuterico Na anaacutelise estabelece-se que o iniacutecio da jornada ndashquando Odisseu se separa dos demais heroacuteis aqueus ndash pode marcar o iniacutecio doprocesso de individuaccedilatildeo as personagens femininas com quem o heroacutei se relacionapodem representar o encontro e discriminaccedilatildeo de aspectos da anima a ajuda deHermes e a descida do heroacutei ao Hades podem significar o encontro com o Self oscompanheiros de Odisseu o conflito com Posiacutedon e Polifemo podem corresponderao confronto e integraccedilatildeo da sombra e a sua chegada agrave Feaacutecia nu sozinho e sempertences pode representar a desidentificaccedilatildeo com a persona A partir destesparalelos discute-se que o longo processo de individuaccedilatildeo do heroacutei decorre dassuas proacuteprias escolhas conscientes e inconscientes e da sua necessidade deintegrar sua funccedilatildeo inferior o sentimento
Palavras-chave Odisseia de Homero mito de Ulisses processo de individuaccedilatildeo
ABSTRACT
Homerrsquos Odyssey tells the story of Odysseusrsquo troublesome journey back to Ithacafollowing the end of the Trojan War This epic poem written roughly 2700 years agocontinues to this day to be an extremely influential work as a synonymous for a longand dangerous herorsquos journey with several of its passages such as the Cyclops theTrojan Horse and Penelopersquos shroud now belonging to Western mythical cultureAccording to analytical psychology myths contain a archetypical symbols namelythey contain primordial symbols common to all humanity This thesisrsquo goal is tosuggest that Homerrsquos work is a metaphor of Jungrsquos individuation process drawingcomparisons between Odysseusrsquo myth and the different stages of this process Inorder to achieve this a symbolic reading of the poem was made using Jung andother jungian authors as theoretical background It is established that the beginningof the journey ndash when Odysseus is cut off from the rest of the Achean heroes ndash marksthe beginning of the individuation process his relationships with the opposite sexrepresent the confrontation with the anima the help he receives from Hermes and hisdescent to Hades signify the encounter with the Self Odysseusrsquo men his feud withPoseidon and Polyphemus correspond to the shadowrsquos integration and when hewashed up on the Phaecian cost naked alone and without any riches it representsthe breakdown of the persona From these parallels it is argued that the herorsquosextensive individuation process is a result of his own choices and a need to integratehis inferior psychological function the feeling
Keywords Homerrsquos Odyssey Ulyssesrsquo myth Individuation process
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO8
2 OBJETIVOS14
21 OBJETIVO GERAL14
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO14
3 MEacuteTODO15
4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA19
41 EM JUNG19
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS21
43 OUTROS AUTORES22
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO31
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO64
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA71
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA79
62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA86
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA95
631 O MITO DE POSIacuteDON95
632 O MITO DE ATENAacute97
633 O MITO DE HERMES99
7 A VIDA DE ULISSES103
71 ORIGEM103
72 TROIA107
73 RETORNO A IacuteTACA113
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO123
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA124
82 ENCONTRO COM POLIFEMO126
83 ENCONTRO COM A CIRCE127
84 DESCIDA AO HADES128
85 ENCONTRO COM CALIPSO130
86 OS FEAacuteCIOS131
87 IacuteTACA133
88 DISCUSSAtildeO135
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS137
REFEREcircNCIAS145
APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA149
Its My LifeBon Jovi (2000)
This aint a song for the broken-heartedNo silent prayer for faith-departed
I aint gonna be just a face in the crowdYoure gonna hear my voice
When I shout it out loud
(Refratildeo)Its my life
Its now or neverI aint gonna live forever
I just want to live while Im alive(Its my life)
My heart is like an open highwayLike Frankie said
I did it my wayI just wanna live while Im alive
Its my life
This is for the ones who stood their groundFor Tommy and Gina who never backed down
Tomorrows getting harder make no mistakeLuck aint even lucky
Got to make your owns breaks (Refratildeo)
Better stand tall when theyre calling you outDont bend dont break baby dont back down (Refratildeo 2x)1
1 Essa natildeo eacute uma muacutesica para os de coraccedilatildeo partido Natildeo eacute uma prece silenciosa para os que seforam Eu natildeo serei apenas um rosto na multidatildeo Minha voz seraacute ouvida Quando eu gritar bemalto Essa eacute a minha vida Eacute agora ou nunca Eu natildeo vou viver para sempre Eu soacute quer viverenquanto estou vivo (eacute minha vida) Meu coraccedilatildeo eacute como uma autoestrada Como Fankie disse Eu fiz do meu jeito Eu soacute quero viver enquanto estou vivo Eacute minha vida Isto eacute para aquelesque nunca cederam Para Tommy e Gina que nunca desistiram O futuro fica cada vez maisdifiacutecil natildeo se engane Nem mesmo a sorte estaacute com sorte Temos que criar nossas proacutepriasoportunidades (Refratildeo) Eacute melhor natildeo fraquejar quando estiverem te provocando Natildeo securve natildeo ceda querida natildeo recue (Refratildeo) x2 (Traduccedilatildeo nossa)
8
1 INTRODUCcedilAtildeO
Alcanccedilar a maturidade psicoloacutegica eacute uma tarefa individual e por isso cadavez mais difiacutecil hoje em dia quando a individualidade do homem estaacuteameaccedilada por um conformismo largamente difundido (VON FRANZ 2008bp 293)
Jung (2011 [1946]) sempre buscou relacionar a psicologia analiacutetica com outras
aacutereas de expressatildeo e conhecimento humanos e pode-se dizer que a mitologia foi
um dos principais campos estudados por ele De acordo com o autor os paralelos
estabelecidos entre os mitologemas e os arqueacutetipos proporcionaram amplo campo
de aplicaccedilatildeo para a psicologia profunda O processo de individuaccedilatildeo por sua vez eacute
um postulado fundamental para a teoria junguiana e descreve a tendecircncia da
psique de se autorregular e de integrar os opostos dando origem a uma nova
singularidade
O amplo conhecimento de Jung sobre mitologia religiatildeo arte e antropologia
permitiu que ele notasse semelhanccedilas entre os siacutembolos mitoloacutegicos e religiosos e
os siacutembolos que apareciam em sonhos desenhos e mesmo deliacuterios de seus
pacientes Muitas vezes no entanto ele natildeo conseguia encontrar a origem daqueles
siacutembolos tatildeo antigos nas vidas pessoais dos pacientes Apoacutes observar este
fenocircmeno inuacutemeras vezes Jung chegou agrave conclusatildeo de que o inconsciente era
composto por uma camada pessoal e outra coletiva
O inconsciente pessoal eacute diferente em cada indiviacuteduo pois eacute composto por
tudo que natildeo estaacute na consciecircncia naquele momento seja por defesa repressatildeo ou
esquecimento Jaacute o inconsciente coletivo eacute composto por arqueacutetipos que satildeo as
formas de apreensatildeo psiacutequica comuns a toda a humanidade O arqueacutetipo natildeo eacute uma
imagem ou ideia compartilhada por todos os homens e mulheres o que eacute
compartilhado eacute um molde psiacutequico digamos assim que seraacute colorido com as
experiecircncias vividas por cada um Como todo arqueacutetipo tem um lado positivo e um
lado negativo Jung considera que o crescimento psiacutequico envolve a pessoa
conseguir integrar estas duas polaridades do arqueacutetipo Para o autor
Individuaccedilatildeo significa tornar-se um ser uacutenico na medida em que porldquopersonalidaderdquo entendermos nossa singularidade mais iacutentima uacuteltima eincomparaacutevel significando tambeacutem que nos tornamos o nosso proacuteprio si-mesmo Podemos pois traduzir ldquoindividuaccedilatildeordquo como ldquotornar-se si-mesmordquo
9
(Verselbustung) ou ldquoo realizar-se do si-mesmordquo(Selbstverwirklichung)(JUNG 2011 [1928] p 63 sect 266 grifo do autor)
Em casos patoloacutegicos as imagens arquetiacutepicas invadem a consciecircncia
Tambeacutem podemos observar estas figuras na poesia religiatildeo e mitologia Jung (2011
[1939]) explica a relaccedilatildeo direta entre as imagens arquetiacutepicas e a mitologia as
fantasias e os sonhos aleacutem dos deliacuterios Mas essas imagens natildeo satildeo dotadas de
consciecircncia da forma como a entendemos de fato o autor considera que elas sejam
isentas de autorreflexatildeo e de conflitos motivo pelo qual sua presenccedila na
consciecircncia pode ser tatildeo desconfortaacutevel
O processo de individuaccedilatildeo requer que o indiviacuteduo se reconecte com os
conteuacutedos inconscientes caso contraacuterio teraacute a consciecircncia dominada por eles O
processo pode comeccedilar sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung
(2011 [1939]) esclarece que eacute preciso desenvolver alguma consciecircncia para
compreender as mudanccedilas que forem ocorrendo caso contraacuterio o processo teraacute
que ser extremamente intenso para causar resultados e natildeo se perder no
inconsciente novamente
Para Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo teria iniacutecio no meio da
vida Embora o meio da vida seja bastante discutido por autores poacutes-junguianos
atualmente eacute neste momento que Ulisses se encontra na Odisseia portanto nos
aprofundaremos neste periacuteodo da vida
Stein (2007) trata justamente de como a crise da meia-idade desperta em noacutes
de modo bastante repentino e inconveniente nossa loucura secreta abalando nossa
sauacutede mental como um todo pois se trata de uma verdadeira reviravolta agrave qual
ningueacutem estaacute imune No meio da vida qualquer ordem cuidadosamente
estabelecida eacute desorganizada e isso acontece porque a psique permanece muito
ativa e a vida adulta natildeo constitui um periacuteodo estaacutevel
O autor baseado em seu trabalho cliacutenico comenta que eacute justamente a crise (o
equivalente ao estado de emergecircncia psicoloacutegica) que costuma levar as pessoas a
atentarem para a proacutepria psique pois eacute a imersatildeo neste estado que leva as pessoas
a reconhecerem a transformaccedilatildeo que estaacute acontecendo Para ele quando a vida
estaacute se passando conforme o esperado as pessoas natildeo costumam dar importacircncia
agraves imagens que surgem nos sonhos por exemplo mas no meio de uma crise
psicoloacutegica qualquer imagem adquire uma proporccedilatildeo diferente
10
Aleacutem disso Stein (2007) defende o ponto de vista de que estas imagens
inconscientes arquetiacutepicas quando negligenciadas passam a se manifestar como
sintomas psicopatoloacutegicos e
Portanto que a ldquocurardquo para estes sintomas psicopatoloacutegicos inclui resolvereste estado de negligecircncia e isto significa descobrir qual arqueacutetipo (ldquodeusrdquo)que tem sido maltratado por noacutes e consequentemente ldquohonraacute-lordquo (hellip) osintoma deve nos levar ao arqueacutetipo que foi negligenciado ou ldquoreprimidordquo eagora estaacute insistindo em ser gratificado por meio da possessatildeo do egoDurante a experiecircncia liminar do meio da vida muitas vezes ocorre oaparecimento surpreendente de tais sintomas patoloacutegicos e seaprendermos a ler seu significado eles podem nos dizer o que foinegligenciado e reprimido pelas restriccedilotildees e necessidades determinadaspelo desenvolvimento anterior de um padratildeo dominante de organizaccedilatildeo dalibido cujo efeito eacute dividir a psique e excluir a expressatildeo de certas partesdela (STEIN 2007 p 78 grifo do autor)
O mesmo autor afirma que ao utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo o terapeuta
conseguiraacute perceber qual arqueacutetipo se encontra por traacutes dos sintomas e para
ajudar seu paciente pode deixar impliacutecito que aqueles sintomas estatildeo surgindo
como tentativas da psique de curar a si mesma de atingir a proacutepria totalidade Ao
utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute compreender qual unilateralidade a
consciecircncia estaacute tentando compensar ao agir desta maneira Como entender esta
forma de funcionar neste momento da vida Este tipo de intervenccedilatildeo no entanto e
obviamente requer que o terapeuta esteja familiarizado com a mitologia
Desta forma para Stein (2007) dizer que um arqueacutetipo estaacute presenteatuante
significa que seus efeitos estatildeo sendo sentidos na situaccedilatildeo O autor tambeacutem explica
que na praacutetica a amplificaccedilatildeo tem a funccedilatildeo de esclarecer a forma como o arqueacutetipo
atua na vida das pessoas a fim de orientaacute-las em seu dia a dia e promover a
qualidade de vida
Outra caracteriacutestica fundamental da amplificaccedilatildeo como meacutetodo de psicoterapia
que Stein (2007) destaca eacute que ela eacute totalmente baseada na experiecircncia subjetiva
do paciente parte-se de sonhos fantasias padrotildees de pensamento comportamento
e sentimento para atraveacutes deles comparaacute-los com padrotildees arquetiacutepicos mais
expliacutecitos e deixar mais claro para o indiviacuteduo a existecircncia e a atuaccedilatildeo do arqueacutetipo
que mesmo imperceptiacuteveis satildeo inegaacuteveis
Para Alvarenga e Lima (2006) quando nossos pensamentos ou sonhos trazem
recortes miacuteticos isto eacute quando indicam passagens das vidas dos deuses faz
sentido pensar que teratildeo o mesmo desfecho caso sigam o rumo indicado pela
11
narrativa Para os autores portanto conhecer os mitologemas eacute fundamental pois
dependemos deste conhecimento para garantir ou evitar finais traacutegicos e deste
conhecimento depende tambeacutem a elaboraccedilatildeo dos siacutembolos presentes no mito
Alvarenga (2010b) explica que qualquer personagem miacutetico independente da
forma que assuma (divina humana animal etc) representa uma imagem
arquetiacutepica interagindo com outras e dotada das proacuteprias funccedilotildees e finalidades Por
isso para ela os mitos descrevem muito bem o que pode acontecer quando a
psique eacute tomada por conteuacutedos sombrios por complexos por atitudes neuroacuteticas
que ameaccedilam o processo de individuaccedilatildeo E como exemplo a autora cita a
Odisseia que narra as dificuldades sofridas por Odisseu2 para conseguir voltar para
casa apoacutes a guerra de Troia
Para Alvarenga (2010b) a paixatildeo sempre carrega a necessidade da coniunctio
sem a qual a psique se desorganiza Para a autora a mitologia grega nos apresenta
tanto exemplos de quando a paixatildeo acontece de forma criativa quanto de modo a
provocar desarmonia de forma que o mito pode ser usado para ilustrar e amplificar
situaccedilotildees relacionadas a situaccedilotildees de paixatildeo
De acordo com Lourenccedilo (2011) a Odisseia de Homero foi o livro mais
influente depois da Biacuteblia na literatura Ocidental e isso porque vaacuterias de suas
passagens ficaram gravadas no repertoacuterio popular como a tomada de Troia por
meio do cavalo de madeira o confronto com o ciclope a passagem pelas sereias a
passagem por Cilas e Cariacutebdis o tear de Peneacutelope o encontro com Circe o amor
de Calipso No entanto para este autor o que faz o leitor prosseguir com a leitura
dos vinte e quatro cantos e doze mil versos do poema eacute seu heroacutei Ulisses
Para Jung (2011 [1928]) problemas filosoacuteficos morais e religiosos constituem
um tipo de relaccedilatildeo impessoal que requerem uma compensaccedilatildeo consciente na qual
surgem imagens coletivas de caraacuteter mitoloacutegico por causa de sua universalidade
Penso que Ulisses representa uma dessas imagens e isso justificaria sua fama
Homero a quem satildeo atribuiacutedas duas epopeias Iliacuteada e Odisseia teria sido um
aedo (quem cantava os feitos religiosos ou eacutepicos ao som da ciacutetara) na Greacutecia
Antiga Nada sabemos dele ao certo teria sido um homem ou mais de um As obras
seriam o resultado do trabalho de seus descendentes ndash a partir de uma histoacuteria
transmitida oralmente de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo (BRUNA 2013)
2 No decorrer deste trabalho usaremos tanto Ulisses quanto Odisseu para nos referirmos ao nossoheroacutei Odisseu eacute a forma grega enquanto Ulisses eacute a forma romana do nome
12
Uma coisa eacute certa a ediccedilatildeo mais antiga da qual se tem notiacutecia natildeo eacute a original
esta data do seacuteculo VI a C Outras ediccedilotildees apareceram depois em diferentes
lugares da Greacutecia e em diferentes eacutepocas tanto por iniciativa puacuteblica quanto
particular
A Odisseia eacute um dos mitos mais famosos dentre as epopeias tendo seu tiacutetulo
entrado para o vocabulaacuterio popular como sinocircnimo de algo muito difiacutecil de se
concluir Ulisses e Peneacutelope tambeacutem satildeo nomes conhecidos mesmo que as
pessoas natildeo saibam dizer exatamente de quem se tratam existe um nuacutemero
relativamente grande de seacuteries e filmes onde Ulisses e Peneacutelope aparecem senatildeo
como protagonistas pelo menos como coadjuvantes
Assim penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa
cultura quanto a relevacircncia da individuaccedilatildeo dentro das teorias junguiana e poacutes-
junguiana justificam a tentativa de compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo
conforme descrito por Jung
Aleacutem disso na Odisseia Ulisses passa por diversas situaccedilotildees que podem
ilustrar de maneira muito rica o processo de individuaccedilatildeo que Jung descreve ndash por
meio de seu embate com Posiacutedon de seu encontro com Circe com Calipso com
Nausiacutecaa da ajuda que recebe de Hermes e da proteccedilatildeo que recebe de Atenaacute de
sua descida ao Hades e de seu retorno para Peneacutelope por exemplo
A esse respeito Aufranc (1986) que interpretou a lenda do Rei Arthur partindo
do princiacutepio de que esta descrevia um processo de individuaccedilatildeo ressalta que
Na perspectiva junguiana sabemos que natildeo se propagam relatos sobre
qualquer acontecimento humano mas apenas daqueles que expressam uma
essecircncia humana que sempre volta a renascer ou seja que tecircm um caraacuteter
arquetiacutepico (AUFRANC 1986 p 127)
A autora nos lembra de que para Jung tanto as lendas quanto os mitos
ajudam os povos a elaborar seus complexos e portanto seus siacutembolos
permanecem vivos e presentes enquanto elas forem lembradas Lendas e mitos satildeo
uma forma de fazer nossa consciecircncia unilateral ser tomada pela emoccedilatildeo e
perceber o que o ego ainda precisa enfrentar ao longo da individuaccedilatildeo
Meu interesse por mitologia grega comeccedilou muito cedo mais ou menos aos 5
anos de idade quando minha matildee disse que meu nome significa alegria dos
deuses Desde entatildeo vaacuterios sinais foram aparecendo em minha vida sempre me
13
levando de volta agrave mitologia por exemplo quando crianccedila um dos meus desenhos
preferidos era a animaccedilatildeo Heacutercules da Disney aos 13 anos fui morar num edifiacutecio
chamado Olympus e aos 18 mudei-me para a Rua Urano
Durante a graduaccedilatildeo ao estudar a abordagem junguiana me apaixonei pela
forma como Jung analisava a mitologia e destacava sua importacircncia que natildeo se
restringe agrave eacutepoca ou a lugares Desde o teacutermino da faculdade (2011) tenho feito
vaacuterios cursos de mitologia na Sociedade Brasileira de Psicologia Analiacutetica aleacutem
cursos ministrados por analistas ali formados
Este trabalho seraacute apresentado da seguinte maneira o segundo e o terceiro
capiacutetulos apresentaratildeo respectivamente os objetivos e o meacutetodo utilizado para a
anaacutelise do mito O capiacutetulo 4 traraacute a revisatildeo de literatura No capiacutetulo 5 trataremos
do processo de individuaccedilatildeo e de alguns temas a ele relacionados como as
principais mudanccedilas que ocorrem no o meio da vida a influecircncia da sociedade e a
importacircncia do o casamento No capiacutetulo 6 abordaremos a relaccedilatildeo entre mitologia e
psicologia analiacutetica e o heroacutei (tanto em relaccedilatildeo ao mito quanto em relaccedilatildeo agrave Greacutecia
Antiga) O capiacutetulo 7 apresentaraacute o mito de Ulisses desde seu nascimento ateacute sua
morte No capiacutetulo 8 faremos uma anaacutelise da Odisseia sob a perspectiva da
psicologia analiacutetica relacionando de forma metafoacuterica os episoacutedios da vida de
Ulisses com o processo de individuaccedilatildeo conforme Jung e alguns autores poacutes-
junguianos Alguns comentaacuterios presentes na anaacutelise tambeacutem estaratildeo respaldados
em autores de outras aacutereas como filosofia e literatura Finalmente seratildeo
apresentadas a discussatildeo e as consideraccedilotildees finais No apecircndice consta um
resumo dos vinte e quatro cantos da Odisseia
14
2 OBJETIVOS
21 OBJETIVO GERAL
Compreender o mito de Ulisses como uma metaacutefora do processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e autores junguianos
22 OBJETIVO ESPECIacuteFICO
Traccedilar paralelos entre aspectos do mito de Ulisses e o processo de
individuaccedilatildeo conforme descrito por Jung e junguianos
15
3 MEacuteTODO
Este eacute um trabalho de natureza teoacuterica com pesquisa bibliograacutefica sobre o mito
de Ulisses e o processo de individuaccedilatildeo junguiano
Os principais autores utilizados como referencial teoacuterico em psicologia analiacutetica
neste trabalho foram Jung (2011 [1928] 2011 [1939] e 2011 [1956]) Stein (2007)
Von Franz (2008b) e Alvarenga (2015) Kereacutenyi (2015b) e Brandatildeo (2011b) foram
mais utilizados como referencial em mitologia e a respeito dos costumes na Greacutecia
Antiga Hollis (2005) Von Franz (2008a) Alvarenga e Lima (2006) e Alvarenga
(2010a 2010b 2012) foram utilizados principalmente para explicar a relaccedilatildeo entre a
psicologia analiacutetica a mitologia e o trabalho cliacutenico
Os portais acadecircmicos virtuais consultados foram CAPES e SciELO e a
pesquisa foi feita a partir das seguintes palavras-chave mitologia grega processo
de individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso Artigos tambeacutem foram buscados em perioacutedicos
junguianos (a maioria encontrada foi utilizada) como Aufranc (1986) Jorge (2015)
Moreira (2015) e Palomo (2014) Teses e dissertaccedilotildees da PUC-SP tambeacutem foram
consultadas para este trabalho
No portal CAPES utilizando-se a palavra-chave odisseu OR ulisses OR
odisseia OR odysseus OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea
NOT lsquoJames Joycersquo foram encontrados 608 artigos No entanto muitos estavam
relacionados agrave sonda espacial Ulysses ou a outros textos com os tiacutetulos Odisseia ou
Ulysses Dentre os artigos referentes agrave obra de Homero poucos se mostraram
relevantes para este trabalho de modo que foram utilizadas as pesquisas de
Assunccedilatildeo (2003) Bocayuva (2015) e Zuacutentildeiga (2017)
Adotando-se as palavras-chave odisseu OR ulisses OR odisseia OR odysseus
OR ulysses OR odyssey OR odiseo OR ulises OR odisea no portal SciELO foram
encontrados 37 artigos Alguns relacionados ao personagem de James Joyce outros
eram sobre Ulysses Guimaratildees Ulysses Vianna ou Ulisses Pernambucano Outros
ainda empregavam a palavra Odisseia no sentido figurado (significando sucessatildeo
de eventos muito aacuterduos) Novamente a pesquisa resultou em poucos textos
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interessantes para nossa anaacutelise referentes agrave epopeia assim foram utilizadas as
pesquisas de Araripe Juacutenior (2014) e Rodrigues (2014)
A busca realizada no portal CAPES a partir das palavras-chave processo AND
individuaccedilatildeo OR Jung OR psicologia AND analiacutetica OR analytical AND psychology
resultou em 731 artigos Apesar disso nenhum foi selecionado para nosso estudo
porque natildeo pareciam complementar os raciociacutenios dos autores jaacute utilizados como
embasamento teoacuterico
Ainda no portal CAPES a pesquisa com base nas palavras-chave Peneacutelope
AND (Homero OR Homer) resultou em 25 artigos relacionados ao feminismo agrave obra
de Margaret Atwood ndash A Odisseia de Peneacutelope ndash ou agrave discussatildeo da fidelidade da
personagem de Homero Nenhum interessante aparentemente para o presente
trabalho Os textos que pareceram relevantes para nosso estudo natildeo estavam
disponiacuteveis
A utilizaccedilatildeo das mesmas palavras-chave Peneacutelope AND Homero OR Homer
no portal SciELO originou 6 artigos que como os anteriores natildeo estavam
relacionados de maneira nenhuma ao processo de individuaccedilatildeo
De volta ao portal CAPES a procura a partir das palavras-chave Circe AND
(Homero OR Homer) resultou em 3 artigos que novamente natildeo foram utilizados em
nosso trabalho os dois primeiros estavam indisponiacuteveis e o uacuteltimo era um poema
que natildeo acrescentava ao nosso tema
Basicamente as mesmas palavras-chave Circe AND Homero OR Homer
quando empregadas no portal SciELO redundaram em 7 artigos Infelizmente
nenhum pareceu significativo para nossa anaacutelise
Jaacute as palavras-chave (Calipso OR Calypso) AND (Homero OR Homer) natildeo
geraram resultados em nenhum dos dois portais ndash o que particularmente me
surpreendeu bastante
As teses e dissertaccedilotildees foram pesquisadas na biblioteca da PUC-SP Embora
as palavras-chaves utilizadas nesse caso tenham sido as mesmas empregadas nos
portais acadecircmicos virtuais ndash relembrando mitologia grega processo de
individuaccedilatildeo psicologia analiacutetica analytical psychology Jung Ulisses Ulysses
Ulises Odisseu Odysseus Odiseo Odisseia Odyssey Odisea Peneacutelope Homero
Homer Circe Calipso Calypso ndash desta vez eu estava mais interessada em
encontrar anaacutelises junguianas de livros (ou de textos ou de personagens) a fim de
17
entrar contato com a formalidade acadecircmica do tipo de pesquisa que pretendia
fazer e comeccedilar a estruturar melhor a minha proacutepria
Selecionei a dissertaccedilatildeo de Lilian Garcia de Paula defendida em 2013 O
feminino em Dom Casmurro uma leitura junguiana de seus personagens e a tese
de Fernanda Aprile Bilotta defendida em 2015 Vampiros de predadores a priacutencipes
Uma anaacutelise junguiana sobre as transformaccedilotildees do masculino a partir do
relacionamento amoroso ndash ambas foram consultadas mas natildeo utilizadas no
presente trabalho
A dissertaccedilatildeo sobre Dom Casmurro tinha como objetivo compreender a
maneira como o feminino eacute representado na obra machadiana por meio da anaacutelise
das dinacircmicas psiacutequicas dos personagens e da forma como se relacionam Resolvi
consideraacute-la porque imaginei que poderia auxiliar no planejamento e na estruturaccedilatildeo
da minha proacutepria pesquisa De fato durante a elaboraccedilatildeo do trabalho O feminino
em Dom Casmurro foi consultado inuacutemeras vezes
Na tese sobre os Vampiros a autora nos apresenta uma anaacutelise bastante
abrangente do siacutembolo do vampiro e da maneira como sua representaccedilatildeo veio se
transformando nos filmes ao longo das deacutecadas Embora filmes e livros (ou livros e
mitos no caso da Odisseia) natildeo sejam exatamente equivalentes continuamos no
acircmbito do simboacutelico da expressatildeo artiacutestica e da anaacutelise do siacutembolo Aleacutem disso
todos os filmes analisados satildeo adaptaccedilotildees de obras literaacuterias por tudo isso pensei
que essa pesquisa seria interessante para o meu estudo
Referente ao mito duas versotildees da Odisseia foram utilizadas neste trabalho
uma traduccedilatildeo do poema feita direta do grego (HOMERO 2011) e uma traduccedilatildeo
direta do grego adaptada em prosa (HOMERO 2013) Dados complementares
sobre a vida de Ulisses foram buscados em Brandatildeo (2011a e 2011b) e Kereacutenyi
(2015a e 2015b)
O procedimento de anaacutelise teve iniacutecio com a leitura dessas duas versotildees do
poema No entanto logo no iniacutecio desse estudo percebi a necessidade de algumas
tarefas que natildeo constavam no planejamento da pesquisa Foram elas elaborar um
resumo da epopeia Canto por Canto (apresentado no apecircndice ao final do
trabalho) pois deduzi que poderia auxiliar minha consulta durante a formulaccedilatildeo da
metaacutefora proposta buscar mais informaccedilotildees sobre a vida do protagonista (imaginei
que conhecer os acontecimentos mais relevantes da vida de Ulisses desde seu
18
nascimento ateacute sua morte seria proveitoso na compreensatildeo do processo dele e
portanto essencial para a anaacutelise) e por fim organizar cronologicamente a
Odisseia (uma vez que a obra natildeo eacute narrada em ordem) incluindo os episoacutedios que
eu acabara de conhecer sobre o heroacutei e que natildeo satildeo mencionados no poema
(cogitei que uma visatildeo panoracircmica do personagem seria muito conveniente no
momento de refletir sobre os possiacuteveis momentos do processo de individuaccedilatildeo que
eu considero podemos ver metaforizados no mito)
Concluiacutedas as tarefas imprevistas selecionei os episoacutedios da vida de Ulisses
que seriam analisados relacionando-os agrave pesquisa teoacuterica previamente realizada
Alguns artigos pesquisados nos portais virtuais inclusive de pesquisadores de
outras aacutereas como Manzoni (2018) tambeacutem foram proveitosos para a anaacutelise
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4 REVISAtildeO DE LITERATURA SOBRE ULISSES E MITOLOGIA
41 EM JUNG
A respeito das obras de arte Jung (2011 [1941]) concluiu que o objeto de
estudo da psicologia deveria ser o processo de criaccedilatildeo natildeo o autor nem sua
produccedilatildeo em si Isso porque as personagens de uma obra satildeo como tentativas da
psique de elaborar certos conteuacutedos e por isso satildeo uacuteteis para a individuaccedilatildeo Trago
este toacutepico porque a Odisseia de Homero eacute em primeiro lugar uma obra literaacuteria
Nas Obras Completas natildeo encontrei muito a respeito de Ulisses ou da
Odisseia Jung os utiliza mais para fazer o trabalho de amplificaccedilatildeo ao analisar
sonhos ou pinturas de pacientes por exemplo O autor aborda com muito mais
frequecircncia o arqueacutetipo do heroacutei e a relaccedilatildeo entre mitologia e psicologia analiacutetica
No volume 5 das Obras Completas Jung (2011 [1952]) estuda de forma
minuciosa os primeiros indiacutecios de esquizofrenia em Miss Muumlller Ele analisa
sintomas sonhos fantasias anotaccedilotildees e produccedilotildees artiacutesticas dela utilizando-se da
amplificaccedilatildeo para compreender o sentido da patologia e suas relaccedilotildees arquetiacutepicas
Tambeacutem ressalta a necessidade da utilizaccedilatildeo de farto material de comparaccedilatildeo para
fazer a amplificaccedilatildeo
Neste volume Ulisses de Homero eacute citado algumas vezes Ao analisar o
segundo poema produzido por Miss Muumlller numa madrugada insone durante uma
viagem Jung (2011 [1952]) utiliza a figura de um vaso (de aproximadamente 400 a
C) onde Ulisses aparece pintado mas natildeo tece nenhum comentaacuterio sobre o heroacutei
Para analisar a terceira e uacuteltima criaccedilatildeo de Miss Muumlller ndash que a propoacutesito eacute a
respeito de um heroacutei que morre de maneira draacutestica envenenado por uma serpente
apoacutes enfrentar diversos sofrimentos ao longo de sua vida ndash Jung (2011 [1952])
utiliza dentre outros materiais poemas de diversos autores Um desses poemas eacute
de autoria de Houmllderlin e Jung entende que faz menccedilatildeo ao afastamento de pessoas
queridas e agrave vida no inferno Neste momento do texto haacute uma nota de rodapeacute que
cita a viagem de Ulisses ao Hades mais precisamente o momento em que ele
reencontra a matildee e deseja abraccedilaacute-la mas natildeo consegue Mais adiante em sua
anaacutelise ainda tratando do sacrifiacutecio do heroacutei Jung (2011 [1952]) menciona
novamente a viagem de Ulisses ao mundo subterracircneo porque estaacute tratando de
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sacrifiacutecios envolvendo sangue de animais mas natildeo comenta mais nada a respeito
do nosso heroacutei
No volume 141 das Obras Completas Jung (2011 [1956]) apresenta e
interpreta um texto alquiacutemico que ele supotildee ser de autoria de um cleacuterigo e ter sido
produzido no seacuteculo XIII Neste volume eacute citada em nota de rodapeacute muito
brevemente a passagem da Odisseia onde Ulisses precisa sacrificar animais para
poder entrar no Hades e se comunicar com as almas que laacute habitam Jung (2011
[1956]) utiliza este trecho da epopeia para interpretar o texto alquiacutemico que
menciona o consumo de sangue de bodes
No volume 15 das Obras Completas consta um capiacutetulo inteiro sobre Ulisses
de James Joyce Trata-se de um ensaio literaacuterio sem pretensotildees cientiacuteficas ou
didaacuteticas onde Jung (2011 [1941]) tece comentaacuterios sobre o personagem de Joyce
Ao longo deste texto Ulisses de Homero eacute mencionado diversas vezes mas apenas
em comparaccedilatildeo ao Ulisses de Joyce Jung (2011 [1941]) natildeo chega a fazer nenhum
comentaacuterio mais aprofundado sobre Odisseu
No volume 181 das Obras Completas ao abordar os conceitos de arqueacutetipos e
inconsciente pessoal e coletivo Jung (2011 [1935]) menciona os motivos
mitoloacutegicos e cita o motivo do heroacutei como um dos mais conhecidos Entatildeo ele
explica que uma variaccedilatildeo desse mito eacute a kataacutebasis a viagem ao mundo
subterracircneo e utiliza a Odisseia como exemplo ao mencionar a viagem que Ulisses
faz ao Hades a fim de consultar o adivinho Tireacutesias
De acordo com Jung
O mito universal do heroacutei projeta a figura de um homem poderoso ou de umhomem-deus que combate todo mal personificaacutevel bem como toda espeacuteciede inimigos dragotildees cobras monstros e democircnios e livra seu povo dadestruiccedilatildeo e da morte (JUNG 2011 [1935] p 258 sect 548)
O autor afirma que em todas as culturas o tema do dragatildeo sempre estaacute
presente nas narrativas sobre o heroacutei e nesse caso podemos entender o monstro
(dragatildeo) mitoloacutegico como a ldquomatildee terriacutevelrdquo (JUNG 2011 [1935] p107 sect193) que
estaacute sempre pronta para devorar o filho Tambeacutem eacute muito comum na mitologia que
este monstro habite as aacuteguas dos oceanos
A respeito dos mitos Jung (2011 [1935]) explica que os siacutembolos que os
compotildeem ldquo(hellip) natildeo foram inventados mas que simplesmente aconteceramrdquo (JUNG
21
2011 [1935] p 267 sect 568) Tiveram origem numa eacutepoca bastante primitiva por meio
de contadores de histoacuterias que relatavam seus sonhos e de pessoas que davam
vazatildeo agrave proacutepria criatividade mais tarde foram complementados por poetas e
filoacutesofos
O autor tambeacutem esclarece que os contadores de histoacuterias primitivos nunca se
preocuparam com a origem do que imaginavam isso soacute se tornou uma questatildeo para
o intelecto do homem na Greacutecia Antiga que concluiu que os mitos narravam de
forma exagerada os feitos de reis da Antiguidade Desta forma jaacute naquela eacutepoca
os gregos natildeo tomavam seus mitos no sentido literal devido ao absurdo contido nos
relatos e ldquo(hellip) tentaram reduzi-lo a uma faacutebula de compreensatildeo geralrdquo (JUNG 2011
[1935] p 267 sect 568) O autor considera que atualmente (ou pelo menos na eacutepoca
em que ele desenvolveu o texto) os sonhos satildeo (ou eram) tratados da mesma
forma entendia-se que eram constituiacutedos por siacutembolos essencialmente inferiores
confusos e que partilhavam de um significado universal Para Jung (2011 [1935])
apenas as pessoas que se livraram das ilusotildees comuns conseguem reconhecem
que os sonhos satildeo significativos
No entanto Jung (2011 [1935]) entendia mitos e sonhos de maneira diferente
Para ele
O sonho eacute um fenocircmeno normal e natural que certamente eacute apenas aquiloque eacute e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteuacutedo eacutesimboacutelico natildeo soacute porque ele evidentemente possui um significado masporque aponta para vaacuterias direccedilotildees e deve significar algo que eacute inconscienteou que ao menos natildeo eacute consciente em todos os seus aspectos (JUNG2011 [1935] p 268 sect 569)
Em relaccedilatildeo aos mitos Jung (2011 [1945]) entende que eles possuem a
peculiaridade de conceber e expressar os episoacutedios mais incriacuteveis ainda que
improvaacuteveis e ressalta que nada podemos afirmar com certeza sobre seu
significado aleacutem de que eles manifestam de maneira figurada metafoacuterica o estado
psiacutequico da mesma forma que os deliacuterios dos doentes e os sonhos
42 EM AUTORES JUNGUIANOS E POacuteS-JUNGUIANOS
Palomo (2014) afirma que o inconsciente coletivo emitiria siacutembolos para
estimular o desenvolvimento evitando a estagnaccedilatildeo da cultura Para ele a poesia e
a literatura abordam temas recorrentes e ldquo(hellip) o poema possui justaposiccedilotildees de
22
planos condensaccedilotildees e deslocamentos o que permite uma leitura que se aproxima
do contexto oniacutericordquo (PALOMO 2014 p 45)
Aufranc (1986) interpretou a lenda do Rei Arthur tomando-a como uma
descriccedilatildeo do processo de individuaccedilatildeo A autora faz sua anaacutelise a partir da
perspectiva junguiana de que mitos e lendas contribuem para a elaboraccedilatildeo de
complexos de um povo e de que aqueles siacutembolos permaneceratildeo vivos enquanto
as narrativas permanecerem na memoacuteria popular Ela tambeacutem considera que esse
tipo de narrativa contribui para equilibrar a unilateralidade da nossa consciecircncia e
que ajuda o ego a perceber sua responsabilidade diante da individuaccedilatildeo Por isso
para Aufranc (1986) soacute continuam sendo transmitidos mitos e lendas que tenham
caraacuteter arquetiacutepico que narrem situaccedilotildees significativas para a humanidade
Moreira (2015) analisa a saga Harry Potter partindo do princiacutepio de que a arte
ndash e portanto a literatura ndash constitui importante fonte de pesquisa para a psicologia
analiacutetica pois tem influecircncia direta na cultura de seu tempo Para a autora o sucesso
e a repercussatildeo mundial dos livros e filmes do bruxo adolescente justificam a anaacutelise
da obra uma vez que a cultura comporta as imagens mais significativas de sua
eacutepoca Dessa forma seria importante estudar os siacutembolos presentes numa obra tatildeo
famosa para compreender de forma mais profunda do que ela trata e mesmo o
motivo de seu sucesso
43 OUTROS AUTORES
Zuacutentildeiga (2017) faz uma revisatildeo a respeito da forma como Homero retrata a
morte na Odisseia De acordo com ele o termo aparece 59 vezes ao longo do
poema a maioria no Canto XXIV e geralmente natildeo vem acompanhado de nenhuma
definiccedilatildeo Homero apenas se refere agrave morte como um fenocircmeno penoso cruel
pavoroso aflitivo horrendo despreziacutevel vil semelhante a um sono profundo etc
Segundo o autor quando Homero faz uso da expressatildeo teacutelos thanaacutetou estaria
se referindo ao desfecho da morte ou agrave efetivaccedilatildeo da morte No entanto o poeta
tambeacutem utilizaria o termo teacutelos para descrever qualquer tipo de conclusatildeo Zuacutentildeiga
(2017) explicita o emprego que Homero faz desse termo em outros contextos por
meio de passagens da Odisseia ao narrar a conclusatildeo da viagem de Ulisses por
exemplo o poeta relata que o heroacutei ansiava pelo final de um doce retorno ou
quando Ulisses ainda com a aparecircncia de mendigo ao ser golpeado por Antiacutenoo
23
pragueja ldquoque antes do seu casamento alcance Antiacutenoo o final da morterdquo3 (ZUacuteNtildeIGA
2017 p 25 grifo do autor traduccedilatildeo nossa) ou seja deseja que a morte do
pretendente ocorra antes que ele consiga se casar com Peneacutelope
De acordo com Zuacutentildeiga (2017) a morte de Anticleia matildee de Ulisses teria sido
considerada pelo proacuteprio Homero a mais horriacutevel do poema No Canto XI somos
informados de que aleacutem de ter morrido de tristeza por falta de notiacutecias do filho a
morte de Anticleia tambeacutem acarretou profundo pesar em seu marido Laertes
provocando-lhe envelhecimento precoce e levando-o ao isolamento
O autor destaca que por meio da Odisseia nos eacute transmitida a concepccedilatildeo que
aquela cultura tinha sobre morte e o que acontecia depois dela quando Ulisses
desce ao Hades e conversa com Aquiles a noccedilatildeo fica bastante clara por meio da
fala do filho de Teacutetis E dessa forma tambeacutem tomamos conhecimento de que no
Hades as almas podem manter praticamente os mesmo haacutebitos que tinham em vida
(num contexto diferente obviamente) ou podem ser castigadas pelo mal cometido
antes de morrer
Naquela tradiccedilatildeo a morte tambeacutem era compreendida como um episoacutedioevento
uacutenico o homem soacute morria uma vez e era entatildeo que descia aos Iacutenferos Este seria
o motivo segundo Zuacutentildeiga (2017) da fama adquirida pela forma como Circe recebe o
heroacutei e seus companheiros quando eles retornam do submundo ldquoimprudentes
vocecircs que vivos desceram agrave casa de HadesBIMORTAIS enquanto outros homens
morrem uma uacutenica vezrdquo4 (ZUacuteNtildeIGA 2017 p 31 grifo do autor traduccedilatildeo nossa)
Utilizando-se de alguns discursos presentes na Odisseia Zuacutentildeiga (2017)
destaca ainda que Homero julgaria inuacutetil enfrentar ou tolerar certas situaccedilotildees e
nesses casos o ideal seria morrer No entanto o poeta consideraria legiacutetimo perder
a vida por um ideal O autor dispotildee de sentimentos expressos por Peneacutelope e
Ulisses em momentos de grande anguacutestia para ilustrar o ponto de vista do poeta a
fim de natildeo passar o resto da vida lamentando a ausecircncia do marido e ainda para
natildeo ser obrigada a substituiacute-lo com um dos pretendentes Peneacutelope teria rogado aos
deuses por uma morte suave O proacuteprio Odisseu em algum momento de seu
turbulento retorno julgou que teria sido melhor morrer em Troia lutando Ao chegar
3 ldquo(hellip) que antes de su boda alcance Antiacutenoo el final de la muerterdquo4 ldquotemerarios quienes a la casa de Hades vivos bajasteisBIMORTALES cuando ouros hombres
mueren una uacutenica vezrdquo
24
em Iacutetaca e se deparar com o que os pretendentes haviam feito em seu palaacutecio o
heroacutei volta a declarar que estar morto seria melhor do que presenciar aquilo
Zuacutentildeiga (2017) tambeacutem ressalta a diferenccedila embora sutil entre a morte o
morrer e o modo de morrer De acordo com ele Homero demonstrava grande
habilidade para fazer essa distinccedilatildeo mas eventualmente pode haver confusatildeo por
parte de quem lecirc interpreta ou traduz a obra (do poeta) Para Zuacutentildeiga (2017) o
motivo da confusatildeo eacute que Homero utiliza vaacuterios termos para se referir ao morrer e o
fato de nunca defini-los demonstraria sua compreensatildeo do acontecimento como algo
muito natural e claro que natildeo requeria explicaccedilatildeo Tanto seria assim que uma
expressatildeo utilizada por Homero com frequecircncia de acordo com o autor seria
morrer e encontrar o destino
Araripe Juacutenior (2014) comenta a visatildeo de Nietzsche a respeito da decadecircncia
grega Para o filoacutesofo alematildeo o decliacutenio grego bem como de todo o Ocidente tem
relaccedilatildeo direta com a morte do espiacuterito dionisiacuteaco ou seja com a substituiccedilatildeo do
prazer e da euforia como motores da vida pelo ideal apoliacuteneo Nietzsche considera
que quando o modelo apoliacuteneo entra em vigor os homens ficam limitados agrave boa
accedilatildeo e ao bom comportamento ou seja a fazer o que for melhor para o coletivo
Ainda para o autor alematildeo Ulisses pode ser considerado responsaacutevel pela
decadecircncia grega e Ocidental Araripe Juacutenior (2014) questiona no entanto se sem
Ulisses teria havido progresso crescimento e desenvolvimento da humanidade
Rodrigues (2014) trabalha com a noccedilatildeo de melancolia e sofrimento do
intelectualismo claacutessico adotando uma concepccedilatildeo de divisatildeo mente e corpo
divergente da visatildeo de Jung e da psicossomaacutetica (para quem o sofrimento se origina
na psique) Para o autor a melancolia pode ser definida como uma desmedida
(hybris) entre almainteligiacutevel (acircmbito ativo e portanto capaz de proporcionar
liberdade ao homem) e corposensiacutevel (acircmbito passivo do homem e portanto capaz
de provocar sofrimento) ou seja um desequiliacutebrio uma perturbaccedilatildeo das paixotildees do
paacutethos o que coloca o homem numa posiccedilatildeo passiva Dentro dessa concepccedilatildeo o
sofrimento se origina no corpo de modo que o ideal eacute transcender os sentidos e
atingir a supremacia do intelecto Para essa escola a razatildeo ocupa papel central
uma vez que representa o uacutenico meio de conter as paixotildees libertando a alma do
domiacutenio da mateacuteria essa seria a uacutenica forma que o homem tem de alcanccedilar virtude
e portanto felicidade
25
Segundo o autor um dos grandes questionamentos de Platatildeo seria se a alma
deve renunciar ou se render agraves paixotildees do corpo Rodrigues (2014) menciona um
comentaacuterio do grande filoacutesofo sobre a Odisseia onde Platatildeo teria mencionado o
sofrimento de Ulisses a fim de demonstrar que Homero tambeacutem julgava necessaacuterio
o domiacutenio das paixotildees por parte da alma O comentaacuterio de Platatildeo seria ilustrado
com uma cena do poema onde o heroacutei bate no proacuteprio peito e conversa consigo
incentivando-se a natildeo desistir afinal jaacute enfrentara situaccedilotildees piores
Rodrigues (2014) utiliza os comentaacuterios de Platatildeo sobre Ulisses e a Odisseia a
fim de abordar a questatildeo da melancolia de maneira mais ampla Ele aponta que se
por meio da fala do heroacutei Homero tinha a intenccedilatildeo de sugerir que outras forccedilas satildeo
capazes de prejudicar a liberdade do homem e de lhe causar sofrimento entatildeo
essas forccedilas tambeacutem poderiam ser consideradas fontes de melancolia A fim de
sustentarjustificar sua posiccedilatildeo o autor se refere ao mito das Moiras as trecircs irmatildes
responsaacuteveis pelo destino dos homens Geralmente elas satildeo descritas como cegas
o que evidencia a qualidade aleatoacuteria do destino
E conclui que uma vez que o intelectualismo claacutessico julga a passividade como
a situaccedilatildeo mais embaraccedilosa para o homem podemos entender que a melancolia de
Ulisses nessa passagem do poema eacute consequecircncia da constataccedilatildeo da supremacia
das forccedilas do destino (efemeridade aleatoriedade falta de loacutegica) sobre seus atos
Rodrigues (2014) acrescenta que a mesma constataccedilatildeo deu origem ao espiacuterito
traacutegico grego
Bocayuva (2015) examina as dificuldades e tentaccedilotildees que se apresentam a
Ulisses durante seu retorno agrave Iacutetaca e a maneira astuciosa como ele consegue
escapar de todas sem nunca desistir de voltar para casa e levanta a hipoacutetese de
que o heroacutei pode ser considerado um filoacutesofo A autora inicia a elucidaccedilatildeo de seu
ponto de vista pela anaacutelise da influecircncia que os deuses exercem na vida de Ulisses
Para ela o rei de Iacutetaca recebeu especial proteccedilatildeo dos divinos e uma evidecircncia
disso eacute que encontramos mais de um episoacutedio na miacutetica onde ele aparece
acompanhado ou mesmo dialogando com algum deus ndash o que natildeo acontece com
todos os heroacuteis Aleacutem do mais Ulisses eacute bisneto de Hermes e sempre recebeu
muito suporte de Atenaacute
Contudo Bocayuva (2015) ressalta que apesar da influecircncia dos deuses na
vida de Odisseu ser constante ela nem sempre eacute positiva Maior exemplo disso eacute
26
que os obstaacuteculos que comeccedilaram a surgir durante o retorno do heroacutei resultaram da
ira de Posiacutedon apoacutes seu filho o ciclope Polifemo ter sido cegado por Ulisses
Ainda no acircmbito da relaccedilatildeo do heroacutei com os deuses a autora destaca a escuta
atenta e singular que Odisseu dispensa agraves divindades mesmo em casos que
poderiam ser fatais para o heroacutei como no episoacutedio com as sereias Ulisses poderia
ter morrido ao escutar o canto delas (destino de todos os homens que fizeram isso
antes dele) mas insistiu em arriscar
Bocayuva (2015) comenta que simbolicamente considera-se a descida de um
mortal ao Hades como acesso agrave sabedoria plena No entanto para ela a
caracteriacutestica de Ulisses que melhor permite qualificaacute-lo como filoacutesofo eacute seu desejo
inabalaacutevel de voltar para Iacutetaca para suas raiacutezes E como se natildeo bastasse o retorno
extremamente longo e penoso ao chegar em casa o heroacutei ainda precisou
exterminar os pretendentes de Peneacutelope e todos que estavam desrespeitando seu
palaacutecio e sua famiacutelia Mas o que a autora destaca sobre o retorno do heroacutei eacute
momento em que ele precisa comprovar sua identidade para a proacutepria esposa
Sabemos que Peneacutelope a fim de verificar se aquele homem diante dela
realmente era Ulisses utiliza-se de um segredo compartilhado apenas entre ela e o
marido a autoria do leito conjugal Tambeacutem sabemos que foi o proacuteprio Ulisses quem
construiu a cama a partir de uma grande oliveira que ficava no meio do quarto e o
quarto ao redor da cama Pois bem autora considera que o fato mais relevante
acerca deste segredo compartilhado por Ulisses e Peneacutelope estaacute subentendido
A casa do nosso heroacutei em outros termos sua paacutetria estaacute muito bemenraizada muito bem fundada em torno de sua cama de raiacutezes fincadasconstruiu sua casa seu mundo sua paacutetria Quer dizer que durante toda suajornada Odisseu como um filoacutesofo foi em busca do fundamento foi embusca do enraizamento do comeccedilo do princiacutepio do mundo seu proacutepriomundo (BOCAYUVA 2015 p 64)
Finalmente Bocayuva (2015) utiliza-se da obra de Platatildeo para justificar sua
hipoacutetese de que Odisseu pode ser considerado um filoacutesofo para ela Platatildeo teria
sido o primeiro a fazecirc-lo devido agrave forma como se refere ao heroacutei em sua obra
especificamente no mito de Er que se encontra no final de A Repuacuteblica Na
realidade a autora vai aleacutem e declara que do seu ponto de vista se natildeo fosse por
Homero o mito de Er nem teria sido criado
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O mito em questatildeo narra como eacute feito o julgamento das almas receacutem-chegadas
ao Hades e tambeacutem descreve o processo de retorno agrave vida das almas que jaacute
passaram por mil anos de torturas ou de regalias As almas satildeo orientadas a
escolherem um daimon e um modelo de vida que caracterizaraacute suas vidas futuras e
satildeo alertadas para o fato de que as consequecircncias de suas escolhas natildeo recairatildeo
sobre os deuses pois a virtude e a honestidade satildeo responsabilidades do indiviacuteduo
(ou seja todos satildeo capazes de ter uma vida boa se optarem por dar ouvidos aos
deuses) Neste momento da narrativa Ulisses eacute utilizado como exemplo de como
uma alma pode escolher sua proacutexima existecircncia com sabedoria tendo em mente as
afliccedilotildees da uacuteltima existecircncia o heroacutei se afasta de tudo que pode levaacute-lo a cometer os
mesmos erros que desencadearam o sofrimento anterior Desta forma Ulisses opta
com alegria por ser um homem comum desocupado e de condiccedilotildees modestas
Segundo Bocayuva (2015) no mito Platatildeo justifica a opccedilatildeo de Ulisses pela
existecircncia de um homem simples e tranquilo como fruto de sua inteligecircncia peculiar
Para ela esse tipo de existecircncia descreveria uma vida de oacutecio ou seja a maneira
como os filoacutesofos vivem A autora entende que por meio de sua narrativa Platatildeo
teria transformado o sagaz e virtuoso heroacutei num filoacutesofo Isso teria sido possiacutevel
porque no mito de Homero Ulisses levara uma vida virtuosa apesar de natildeo ter
nenhuma filosofia No entanto Bocayuva (2015) considera que se Ulisses natildeo fosse
um filoacutesofo jaacute em Homero e natildeo tivesse nenhuma filosofia natildeo teria tido uma vida
virtuosa Para fazer essa afirmaccedilatildeo ela leva em conta a forccedila emocional do heroacutei
considerando as inuacutemeras perdas e atribulaccedilotildees que ele enfrentou e ressalta sua
grandeza por saber mentir de forma uacutetil e natildeo viciosa Para a autora o personagem
de Ulisses abre possibilidade para a existecircncia de um filoacutesofo que tambeacutem possa ser
ardiloso caso necessaacuterio
Assunccedilatildeo (2003) tece reflexotildees a respeito da morte na Odisseia a partir do
diaacutelogo que acontece entre Ulisses e Aquiles quando o heroacutei itaacutecio desce ao Hades
a fim de consultar Tireacutesias A interpretaccedilatildeo do autor se baseia principalmente nas
diferenccedilas de padrotildees heroicos representados pelos dois personagens Ao encontrar
a psukheacute (termo utilizado pelo autor) de Aquiles Ulisses comenta que nunca houve
nem haveraacute homem tatildeo afortunado quanto o filho de Teacutetis que em vida era
respeitado como um deus e na morte gozava de amplo poder sobre os demais
mortos Aquiles no entanto retruca que natildeo quer ser consolado e afirma que
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preferia estar vivo e prestando serviccedilos a um homem simples do que estar morto e
ter influecircncia entre os mortos
Para interpretar este diaacutelogo o autor parte do princiacutepio de que Ulisses e
Aquiles mudaram de ideia em relaccedilatildeo agrave escolha do retorno e da gloacuteria o que
inverteria consequentemente as caracteriacutesticas que definem os dois personagens
Aquiles que havia optado por uma morte gloriosa e precoce em Troia agora
desejava estar vivo e poder voltar para casa e Ulisses aparentemente trocaria
aquele retorno penoso e interminaacutevel para Iacutetaca por toda a gloacuteria e tranquilidade da
qual Aquiles gozava agora morto
Logo em seguida poreacutem Assunccedilatildeo (2003) explica que essa interpretaccedilatildeo (da
inversatildeo entre os dois heroacuteis) natildeo seria viaacutevel uma vez que Aquiles teve
oportunidade de escolha5 mas Ulisses natildeo ao rei de Iacutetaca nunca foi oferecida a
opccedilatildeo entre o retorno e a gloacuteria pois estes soacute satildeo mutuamente excludentes no
modelo radical de heroacutei representado por Aquiles Ao passo que o autor considera
que a Odisseia
(hellip) celebra em seu conjunto um heroacutei cuja capacidade baacutesica eacute a de evitarndash por sua astuacutecia e flexibilidade ainda que natildeo covardemente ndash a proacutepriamorte conservando-se em vida e podendo entatildeo dar continuidade agravessofridas aventuras que se tornaratildeo mateacuteria do canto eacutepico (ASSUNCcedilAtildeO2003 p 104)
Desta maneira Assunccedilatildeo (2003) demonstra que a gloacuteria de Ulisses foi obtida
de modo um pouco mais complexo pois envolveu tanto sua participaccedilatildeo decisiva na
Guerra de Troia6 quanto o fato de ele ter sobrevivido agraves inuacutemeras adversidades que
se apresentaram durante seu longo retorno para Iacutetaca O autor aponta que na
verdade os feitos de Ulisses acabaram propondo um novo modelo de heroacutei onde a
obtenccedilatildeo da gloacuteria natildeo se restringe mais agrave forccedila e agraves habilidades beacutelicas mas
envolve a capacidade de manter-se vivo em diversas situaccedilotildees Outro elemento que
diferencia drasticamente os dois heroacuteis eacute a maneira como cada um morre enquanto
Aquiles perece na guerra jovem longe de sua gente Tireacutesias previra que Ulisses
morreria velho rico e cercado de seu povo
5 Antes que Aquiles partisse para a guerra sua matildee Teacutetis fizera uma previsatildeo a respeito de suamorte ele poderia optar entre morrer jovem em Troia e conquistar a gloacuteria eterna ou optar porpoderia voltar para sua terra natal e viver por muito tempo mas natildeo teria a mesma fama
6 Recordemos-nos de que foi graccedilas agrave astuacutecia de Ulisses ao tramar o cavalo de madeira que osgregos conseguiram invadir e devastar a fortaleza de Priacuteamo Aquiles jaacute estava morto a essasalturas
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Segundo Manzoni (2018) diversos estudiosos modernos jaacute consideraram a
Odisseia como uma jornada em busca de resgatar o proacuteprio nome e a capacidade
de nomear a proacutepria histoacuteria Afinal o maior perigo enfrentado por Ulisses na
epopeia eacute morrer no meio do caminho ser esquecido e natildeo poder contar ele
mesmo o que lhe aconteceu durante todo o tempo que passou longe de casa
Vaacuterias passagens do poema permitem essa interpretaccedilatildeo mas umas das mais
conhecidas coincide justamente com o momento em que a fim de natildeo revelar sua
identidade para o ciclope Polifemo o heroacutei tem a brilhante ideia de dizer que se
chama Ningueacutem
Eacute tatildeo ou mais intrigante o fato de que Ulisses o heroacutei da astuacutecia quando jaacute
estaacute prestes a fugir em seguranccedila da ilha do gigante resolve divulgar seu nome o
nome de seu pai sua procedecircnciahellip Munido da identidade de seu agressor
Polifemo filho de Posiacutedon pede que seu pai se vingue do heroacutei por ter lhe privado
de visatildeo Posiacutedon atende o pedido do filho e comeccedila a impor obstaacuteculos ao retorno
de Ulisses O autor tece um comentaacuterio interessante a respeito desse episoacutedio
Natildeo deixa de ser curioso portanto a forma pela qual enquanto ldquoningueacutemrdquoUlisses poderia voltar para casa anonimamente Eacute a partir de uma retomadade seu nome que seu destino errante eacute determinado pelo deus dos mares(MANZONI 2018 p 52 grifo do autor)
Manzoni (2018) nos recorda de que o termo ningueacutem aparece novamente na
Odisseia quando o rei dos Feaacutecios recebe Ulisses em seu palaacutecio e o questiona a
respeito de sua identidade Num primeiro momento o heroacutei natildeo responde No
entanto ao ouvir o aedo Feaacutecio cantar sobre a Guerra de Troia e especificamente
sobre a famosa estrateacutegia do cavalo de madeira arquitetada por Ulisses ele se
emociona Isso o instiga a revelar seu nome e a apresentar ele mesmo suas
andanccedilas
Para o autor o que levou Ulisses a mudar de ideia quanto a manter sua
identidade em segredo foi justamente o fato de ouvir o aedo cantar seus feitos ou
seja ouvir sua histoacuteria narrada por outra pessoa Isso seria indicado pelo choro do
heroacutei que demonstraria seu profundo pesar ao se perceber como algueacutem que natildeo
existe mais que natildeo vive mais
Manzoni (2018) explica que nesse momento quando revela sua identidade e
comeccedila a contar sua histoacuteria em primeira pessoa Ulisses coloca-se como autor ou
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seja como responsaacutevel por sua identidade e sua vida ele assume quem eacute e tudo
que jaacute lhe aconteceu Ateacute entatildeo era como se o heroacutei se encontrasse num estado
intermediaacuterio pois natildeo era mais Ulisses e tambeacutem ainda natildeo era Ulisses uma vez
que natildeo conseguia dizer quem ele era Por isso o momento em que ele interrompe
o aedo e passa a falar em seu lugar simboliza o instante em que se recompotildee em
que recupera sua identidade e sua histoacuteria
Gostaria de finalizar com comentaacuterio muito interessante de Manzoni (2018) ldquoA
partir do momento em que o nome eacute reconquistado isto eacute a partir do momento em
que o heroacutei (hellip) diz lsquoeu sou Ulissesrsquo sua histoacuteria estaacute assegurada (e em se tratando
da Odisseia a histoacuteria literaacuteria ocidental estaacute assegurada)rdquo (MANZONI 2018 p 68
grifo do autor)
Aqui o autor estabeleceu uma relaccedilatildeo entre o valor simboacutelico que este
momento teve na vida do heroacutei e a importacircncia que esta epopeia tem para a nossa
cultura como fundadora de nossa literatura Poreacutem penso que essa reflexatildeo sobre
a relaccedilatildeo e a importacircncia da reconquista do nome do heroacutei pode nos auxiliar
bastante a pensar na Odisseia como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
principalmente porque acontece logo antes de Ulisses finalmente conseguir voltar
para casa Essa reflexatildeo teraacute continuidade na Discussatildeo
31
5 O PROCESSO DE INDIVIDUACcedilAtildeO
Levar o inconsciente a seacuterio eacute afinal de contas uma questatildeo de coragempessoal e integridade (VON FRANZ 2008b p 304)
Antes de falar do processo de individuaccedilatildeo consideramos importante definir
brevemente as diferentes partes e dinacircmicas da psique Para tanto abordaremos a
consciecircncia e o ego o inconsciente pessoal e coletivo o si-mesmo os complexos
autocircnomos e as imagens arquetiacutepicas Para Jung (2011 [1939]) o ego eacute apenas o
centro da consciecircncia mas natildeo da psique como um todo e o inconsciente eacute
composto por duas camadas a pessoal e a coletiva A camada pessoal se constitui
ao longo da vida do indiviacuteduo e a camada coletiva conteacutem os arqueacutetipos formas de
apreensatildeo psiacutequica tipicamente humanas e eacute compartilhada por todos os homens e
mulheres
Consciecircncia e inconsciente natildeo satildeo opostos entre si mas mantecircm uma relaccedilatildeo
compensatoacuteria e complementar que constitui uma totalidade que Jung chamou de
si-mesmo Sobre o si-mesmo natildeo eacute possiacutevel conhecer muito pois eacute constituiacutedo por
uma quantidade indeterminaacutevel de material inconsciente de modo que natildeo podemos
ter ideia exata de sua grandeza (natildeo eacute possiacutevel conhecer a verdadeira natureza dos
processos inconscientes apenas formular hipoacuteteses a seu respeito a partir da
observaccedilatildeo das manifestaccedilotildees dos sonhos fantasias sintomas afetos accedilotildees e
opiniotildees de uma pessoa)
O inconsciente natildeo funciona da mesma forma que a consciecircncia natildeo possui
funccedilotildees diferenciadas eacute instintivo Eacute dotado poreacutem de espontaneidade e de
capacidade de direcionar o processo psiacutequico (como acontece por exemplo quando
um indiviacuteduo que permaneceu estagnado por muito tempo tem uma neurose
provocada pelo inconsciente e eacute tirado assim de sua apatia por mais que resista)
Ainda assim Jung (2011 [1928] p 74 sect 291) natildeo considera que o inconsciente
tenha um plano preestabelecido e atue no sentido de cumpri-lo trata-se de um
instinto de realizaccedilatildeo do si-mesmo ou mesmo do amadurecimento tardio da
personalidade Se o mecanismo do inconsciente tivesse um plano geral para o
indiviacuteduo todos seriam impelidos a desenvolver sua consciecircncia de forma quase
inevitaacutevel e natildeo eacute o que acontece
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Outra diferenccedila importante entre consciecircncia e inconsciente eacute a autonomia do
segundo conteuacutedos inconscientes (como memoacuterias imagens afetos) podem invadir
a consciecircncia a qualquer momento Jung define as emoccedilotildees como
(hellip) reaccedilotildees instintivas involuntaacuterias que perturbam a ordem racional daconsciecircncia com suas irrupccedilotildees elementares Os afetos natildeo satildeo ldquofeitosrdquoatraveacutes da vontade mas acontecem No afeto aparece agraves vezes um traccedilode caraacuteter estranho ateacute mesmo agrave pessoa que o experimenta ou conteuacutedosocultos irrompem involuntariamente (JUNG 2011 [1939] p 278 sect497 grifodo autor)
Jung (2011 [1939]) explica que quanto mais forte for a manifestaccedilatildeo de um
afeto tanto mais ele pode ser considerado parte de um complexo autocircnomo
Complexos satildeo aglomerados de associaccedilotildees agraves vezes traumaacuteticas outras apenas
dolorosas ou altamente acentuadas que vatildeo sendo reprimidas Todo complexo
possui um nuacutecleo arquetiacutepico e eacute dotado de energia proacutepria Tambeacutem funcionam de
forma autocircnoma como personalidades fragmentadas Nosso inconsciente pessoal eacute
povoado de complexos que podem se tornar parcialmente conscientes e resolvidos
dissolvidos Nesses casos o complexo perde a forccedila e autonomia de antes e
considera-se que sua energia foi realocada dentro da psique
Os complexos satildeo os conteuacutedos inconscientes responsaacuteveis pelas
perturbaccedilotildees da consciecircncia Isso pode acontecer caso a situaccedilatildeo exterior provoque
a aglutinaccedilatildeo e a atualizaccedilatildeo dos conteuacutedos de determinado complexo levando o
indiviacuteduo a agir de uma maneira bastante definida e previsiacutevel isso eacute chamado de
constelaccedilatildeo do complexo
Para Jung (2011 [1939]) a autonomia do inconsciente pode ser melhor
demonstrada pelo chamado homem normal do que pelo doente mental pois o
primeiro costuma ser surpreendido bem mais por esta caracteriacutestica justamente por
natildeo reconhececirc-la Nossa consciecircncia eacute jovem e portanto vulneraacutevel mas nasceu
do incons ciente ndash dos processos psiacutequicos que existiam antes que houvesse um
ego para ter consciecircncia deles
Fenocircmenos conhecidos como enfeiticcedilamento fasciacutenio e possessatildeo estatildeo
relacionados com a dissociaccedilatildeo e a repressatildeo de conteuacutedos inconscientes e
mesmo o homem civilizado estaacute bastante vulneraacutevel a todos estes perigos
Consciecircncia e inconsciente costumam colaborar com poucos conflitos de
modo que o inconsciente pode ateacute passar despercebido no entanto se indiviacuteduo ou
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grupo se distanciarem demais deste caraacuteter instintivo ele ressurgiraacute com violecircncia
O auxiacutelio do inconsciente costuma ser saacutebio e orientado para determinado fim
mesmo quando a consciecircncia natildeo consegue perceber isto suas manifestaccedilotildees
sempre buscam recuperar o equiliacutebrio que a consciecircncia perdeu de alguma forma
Stein (2007) explica que fenocircmenos psicoloacutegicos como sonhos fantasias e
eventos sincroniacutesticos envolvem a presenccedila de arqueacutetipos De fato a proximidade
entre a consciecircncia e o arqueacutetipo pode ateacute exercer uma funccedilatildeo protetora mas seraacute
sempre perturbadora O inconsciente cria conteuacutedos que a consciecircncia pode
considerar caoacuteticos e irracionais (como sonhos fantasias visotildees etc) e que
remetem a uma personalidade adormecida Como figuras que se destacam
frequentemente no cenaacuterio psiacutequico das pessoas por meio de sonhos ou projeccedilotildees
por exemplo Jung (2011 [1939]) ressalta anima e animus a sombra o heroacutei e o
Velho Saacutebio Em casos patoloacutegicos estas figuras entram na consciecircncia de maneira
autocircnoma Na poesia religiatildeo e mitologia aparecem de forma espontacircnea
Von Franz (2008b) aborda o papel e a importacircncia que os sonhos tecircm na
organizaccedilatildeo psiacutequica do homem tanto no periacuteodo em que os sonhos ocorreram
quanto ao longo da vida desse indiviacuteduo Sua abordagem se baseia na teoria de
Jung e portanto considera que os sonhos natildeo se relacionam exclusivamente com
a vida do sonhador mas tambeacutem com outros aspectos psiacutequicos de fato eacute como se
as imagens produzidas pelos sonhos seguissem um determinado esquema que
Jung denominou processo de individuaccedilatildeo
A autora explica que natildeo eacute faacutecil notar essa relaccedilatildeo entre as imagens oniacutericas
(principalmente para algueacutem mais distraiacutedo) porque elas costumam variar muito de
uma noite para outra mas afirma que eacute possiacutevel perceber esta relaccedilatildeo se
estudarmos uma sequecircncia de nossos sonhos durante alguns anos Isso porque
assim nos dariacuteamos conta de conteuacutedos (pessoas figuras paisagens cenaacuterios
situaccedilotildees) que se repetem com frequecircncia ou que somem por um tempo e depois
voltam a aparecer ou ateacute mesmo se transformam Ela tambeacutem explica que se os
sonhos forem adequadamente interpretados a atitude consciente do sonhador
poderia se transformar de forma mais raacutepida acelerando tambeacutem as mudanccedilas em
seus conteuacutedos oniacutericos
Jung (2011 [1939]) explica que existe uma relaccedilatildeo direta entre as imagens
arquetiacutepicas e a mitologia ndash o que pode ser percebido quando estudamos sonhos
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fantasias e deliacuterios Estas entidades no entanto natildeo aparentam possuir consciecircncia
tal como a entendemos De fato para Jung
(hellip) as personalidades arquetiacutepicas apresentam todos os sinais depersonalidades fragmentaacuterias-dissimuladas fantasmagoacutericas isentas deproblemas carentes de autorreflexatildeo sem conflitos sem duacutevidas semsofrimento talvez como deuses que natildeo tecircm qualquer filosofia (hellip) Agravediferenccedila de outros conteuacutedos elas permanecem sempre estranhas nomundo da consciecircncia Por isso satildeo intrusas e indesejaacuteveis uma vez quesaturam a atmosfera com premoniccedilotildees sinistras ou com o medo da loucura(JUNG 2011 [1939] p 285 sect 517)
Isso nos remete agrave difiacutecil tarefa da individuaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) a individuaccedilatildeo eacute um processo que daacute origem a um indiviacuteduo uacutenico do ponto
de vista psiacutequico e essa totalidade psiacutequica soacute faz sentido quando consideramos os
processos conscientes e inconscientes Apesar de pensarmos que a consciecircncia eacute
capaz de assimilar o inconsciente isso natildeo eacute tatildeo simples mesmo que obtenhamos
uma imagem relativamente completa das diferentes figuras do inconsciente natildeo
significa que o conhecemos completamente ateacute porque satildeo inerentes agrave consciecircncia
os movimentos de exclusatildeo escolha e diferenciaccedilatildeo De acordo com Jung (2011
[1939]) eacute necessaacuterio deixar de reprimir o inconsciente para que a partir do conflito
entre consciecircncia e inconsciente possa surgir o verdadeiro individuum A este
movimento Jung chamou de processo de individuaccedilatildeo Eacute essencial para o processo
que se compreenda aonde se quer chegar ou seja o embate entre consciecircncia e
inconsciente pretende gerar uma espeacutecie de siacutembolo unificador
Para Stein (2007) todo este processo leva vaacuterios anos Geralmente comeccedila
entre os 35 ou 40 e vai ateacute os 50 anos de idade ou mais causando sintomas como
depressatildeo desinteresse pela vida sensaccedilatildeo de fracasso desilusatildeo e medo da
morte precoce o indiviacuteduo deixa de sentir prazer por suas conquistas anteriores e
elas passam a parecem supeacuterfluas o indiviacuteduo tambeacutem natildeo se reconhece mais na
imagem que tinha de si mesmo o que pode ser acentuado pois eacute nesta fase que
comeccedilam a aparecer os sinais de envelhecimento Outro agravante eacute que eacute nesta
eacutepoca que costuma ocorrer uma inversatildeo de papeacuteis na famiacutelia os pais passam a
depender cada vez mais dos filhos e os proacuteprios filhos comeccedilam a demonstrar sua
independecircncia
35
Jung (2011 [1939]) afirma que consciecircncia e inconsciente se harmonizaratildeo por
meio de um processo irracional que pode ser expresso por siacutembolos mas para o
qual natildeo haacute uma foacutermula
Uma vez que o desenvolvimento psiacutequico natildeo pode ser feito simplesmente por
meio do esforccedilo consciente ndash pois trata-se de um fenocircmeno involuntaacuterio natural que
depende da accedilatildeo do centro organizador da psique ndash Von Franz (2008b) destaca que
este fenocircmeno pode ser representado nos sonhos por uma aacutervore que cumpre um
esquema definido de desenvolvimento poreacutem lento e involuntaacuterio tambeacutem
Realizar seu destino eacute o maior empreendimento do homem e o nossoutilitarismo deve ceder agraves exigecircncias da nossa psique inconsciente Setraduzirmos essa metaacutefora em linguagem psicoloacutegica a aacutervore simboliza oprocesso de individuaccedilatildeo e daacute uma boa liccedilatildeo ao nosso ego de visatildeo tatildeolimitada (VON FRANZ 2008b p 215)
Alvarenga (2015) faz uma afirmaccedilatildeo interessante ldquoTodos os talentos nos
definem como individualidade entretanto mais do que nossas individualidades
somos o que fazemos com nossos talentosrdquo (ALVARENGA 2015 p11) De acordo
com a autora para que o processo de individuaccedilatildeo se consume eacute necessaacuterio que
haja uma dedicaccedilatildeo exclusiva aleacutem de lealdade e fidelidade nos confrontos consigo
mesmo caso contraacuterio o processo seraacute traiacutedo
De acordo com Alvarenga (2015) a coniunctio de si consigo mesmo depende
de desempenharmos nossos talentos ou competecircncias de forma criativa ndash nisso a
funccedilatildeo simboacutelica pode ajudar jaacute que nos concede a capacidade de refletir a respeito
de possiacuteveis atitudes defensivas e boicotes do processo de individuaccedilatildeo E tudo isso
depende de mantermos ativo o tempo inteiro nosso heroacutei anocircnimo
Sobre a funccedilatildeo inferior Jung (2011 [1939]) explica que se trata da funccedilatildeo que
menos utilizamos de forma consciente e que esta complementa ou compensa a
nossa funccedilatildeo principal Desta maneira nossa funccedilatildeo inferior torna-se tanto alvo
quanto objeto de projeccedilotildees Eacute por isso que no processo de individuaccedilatildeo a funccedilatildeo
inferior precisa ser desenvolvida Por outro lado satildeo justamente estas
caracteriacutesticas que lhe conferem tamanha vitalidade pois como natildeo se trata de uma
funccedilatildeo que estaacute sob controle da consciecircncia ela praticamente nunca perde sua
espontaneidade Desta forma ela depende do si-mesmo o que significa que sempre
entra na consciecircncia de forma inesperada como um raio De acordo com Jung (2011
36
[1939]) o simbolismo do raio estaacute relacionado a uma transformaccedilatildeo inesperada na
condiccedilatildeo psiacutequica ao nascimento da luz Jung tambeacutem explica que a funccedilatildeo inferior
(hellip) afasta o eu e abre espaccedilo para um fator superior a ele isto eacute para atotalidade do ser humano constituiacuteda pela consciecircncia e pelo inconscienteestendendo-se portanto muito aleacutem do eu O si-mesmo sempre estiverapresente poreacutem adormecido (hellip) (JUNG 2011 [1939] p 304 sect 541)
O processo de individuaccedilatildeo requer liberdade e soacute pode acontecer de forma
espontacircnea Por se tratar do processo onde o indiviacuteduo se torna um todo requer
que ele se reconecte aos instintos que deixou para traacutes ndash ateacute porque se natildeo o fizer
sua consciecircncia acabaraacute dominada por eles O processo pode comeccedilar a acontecer
sem que o indiviacuteduo tenha consciecircncia dele mas Jung (2011 [1939]) considera que
o sujeito precisa ter a miacutenima noccedilatildeo do que estaacute acontecendo a fim de compreender
as transformaccedilotildees que estatildeo ocorrendo Se o sujeito natildeo tiver consciecircncia do que
estaacute se passando o processo teraacute que se tornar extremamente intenso para que
natildeo se perca novamente no inconsciente sem ter deixado nenhuma marca sem ter
causado nenhum resultado
Hoje em dia eacute de conhecimento geral que o meio da vida constitui uma eacutepoca
complicada o que natildeo significa que os eventos e as experiecircncias que nos
acometem nessa fase sejam menos surpreendentes em sua intensidade quando
chega a nossa vez de passar por eles Para Stein (2007) a experiecircncia do limiar eacute
uma das mais interessantes e importantes deste periacuteodo pois nos faz enfrentar um
grande obstaacuteculo constituiacutedo pela perda da identidade e da seguranccedila
O autor fornece breves explicaccedilotildees sobre os termos limiar e liminar uma vez
que ambos satildeo amplamente utilizados em seu livro Limiar vem de limien do latim e
significa entrada portal ou soleira da porta Quando entramos ou saiacutemos de algum
cocircmodo necessariamente cruzamos um limiar e por mais raacutepida que seja trata-se
de uma passagem importante Assim limiar foi uma palavra incorporada pela
psicologia para se referir ao estado-limite entre consciecircncia e inconsciecircncia ndash por
exemplo quando estamos caindo no sono ou despertando
Stein (2007) explica que a primeira etapa da transiccedilatildeo do meio da vida eacute a
separaccedilatildeo Pode acontecer de forma abrupta ou gradual mas sempre vai haver um
caraacuteter de negaccedilatildeo ou pressatildeo causando mudanccedilas de humor nostalgia ataques
de pacircnico racionalizaccedilotildees e ateacute periacuteodos de luto mesmo que natildeo se saiba
37
exatamente o que foi perdido A conduta das pessoas pode estar relacionada agrave
separaccedilatildeo e agrave ansiedade mesmo que elas costumem buscar razotildees diferentes para
seu sofrimento De qualquer forma as verdadeiras causas do desespero precisam
ser compreendidas No entanto ainda eacute cedo para o ego saber ao certo o que estaacute
buscando
Jung (2011 [1939]) explica que a individuaccedilatildeo eacute o processo que inclui a
reintegraccedilatildeo das nossas projeccedilotildees agrave nossa personalidade por isso eacute um processo
doloroso de integraccedilatildeo de opostos
Alvarenga (2012) explica que em algum momento o Self7 vai mobilizar estas
polaridades que ficaram relegadas agrave sombra fazendo-as emergir seja por meio de
sonhos atos falhos funccedilatildeo inferior ou aparentes sincronicidades ndash de qualquer
forma o Self vai impor ao ego a reflexatildeo necessaacuteria E estes seratildeo momentos
cruciais de integraccedilatildeo simboacutelica e de constituiccedilatildeo de individualidade E eacute desta
maneira que para a autora ldquoIndividuar eacute gerar a maior de todas as diversidades
conhecidasrdquo (ALVARENGA 2012 p 56)
Desta maneira a individuaccedilatildeo eacute um processo de desenvolvimento psicoloacutegico
que facilita a utilizaccedilatildeo das caracteriacutesticas individuais pois por meio dele o
indiviacuteduo tem a possibilidade de desenvolver tudo aquilo que o torna uacutenico que o
define Justamente por significar o desenvolvimento das peculiaridades pessoais a
individuaccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o rendimento que esta pessoa teraacute em
sociedade e portanto tem a ver com questotildees coletivas da humanidade e se
distancia do egoiacutesmo e do individualismo Por isso para Jung (2011 [1939]) natildeo
devemos entender a singularidade como algo estranho mas como uma combinaccedilatildeo
uacutenica de qualidades universais
Von Franz (2008b) explica que embora o amadurecimento da personalidade
dependa do Self e embora isso fique claro nos sonhos o quanto o Self vai emergir
ou se desenvolver durante a vida do indiviacuteduo vai depender da sua disposiccedilatildeo
egoica de dar atenccedilatildeo ou natildeo agraves mensagens recebidas dele Desta maneira a
autora explica que se o indiviacuteduo por exemplo tem um dom artiacutestico do qual seu
ego natildeo estaacute ciente ele natildeo vai desenvolver este dom porque eacute como se ele natildeo
tivesse o dom embora ele esteja laacute escondido Ou seja o processo de individuaccedilatildeo
7 O Self eacute o si-mesmo
38
depende da ajuda do ego pois a totalidade da psique soacute se realiza com o auxiacutelio do
ego ndash do contraacuterio o que o eu natildeo percebe da minha totalidade permanece abafado
Nesse sentido a autora comenta o simbolismo do altar como uma metaacutefora da
necessidade do nosso ego de se submeter ao poder do inconsciente e passar a
apenas ouvir e compreender o que eacute preciso fazer de acordo com a totalidade em
vez de planejar tudo conscientemente Ela diz que devemos agir como o pinheiro
que ao perceber algo impedindo seu crescimento como uma pedra por exemplo
se adapta vai mais para um lado ou mais para o outro mas natildeo deixa de crescer
Ela afirma que a exemplo da aacutervore eacute importante cedermos a esse impulso do Self
que eacute sutil e poderoso ao mesmo tempo pois trata-se de uma demanda que nos
estimula agrave autorrealizaccedilatildeo um ldquoprocesso no qual eacute necessaacuterio repetidamente
buscar e encontrar algo ainda natildeo conhecido por ningueacutemrdquo (VON FRANZ 2008b p
216)
Nos bastidores do caos aparente estaacute acontecendo uma enorme
transformaccedilatildeo na psique do indiviacuteduo que pode ser percebida ndash ainda que de forma
natildeo muito clara uma vez que se tratam de mensagens do inconsciente ndash por meio
de sonhos fantasias persistentes e intuiccedilotildees Neste momento Stein (2007) nos
recorda do quanto a transiccedilatildeo da meia-idade de Jung foi intensa resultando num
trabalho sobre o confronto com o inconsciente no qual ele discute a quebra da
persona e a liberaccedilatildeo da sombra e da anima no homem e do animus na mulher
Sobre a persona Jung (2011 [1939]) afirma que eacute como uma maacutescara que tem
a finalidade de facilitar a relaccedilatildeo entre o ego e a sociedade e de transmitir uma
imagem determinada do indiviacuteduo tanto exaltando as caracteriacutesticas que ele
desejar quanto camuflando as que ele natildeo considerar tatildeo pertinentes ao contexto
Por um lado a sociedade espera o melhor desempenho possiacutevel por parte do
indiviacuteduo por outro eacute impossiacutevel para qualquer pessoa adaptar-se completamente
agraves expectativas externas de modo que a persona se faz necessaacuteria Ela permite ao
indiviacuteduo se adequar ao seu meio ao mesmo tempo em que ele desenvolve uma
vida particular Agraves vezes tambeacutem a imagem transmitida pode ser tatildeo agradaacutevel que
o sujeito acaba se identificando com ela e se perde de sua verdadeira identidade O
fato de a persona ser necessaacuteria natildeo quer dizer que sua construccedilatildeo natildeo tenha
consequecircncias sobre o inconsciente uma vez que a adaptaccedilatildeo ao exterior implica
sacrifiacutecios e concessotildees consideraacuteveis por parte do ego De fato agraves vezes as
39
pessoas constroem personas tatildeo agradaacuteveis que passam a acreditar que satildeo aquilo
que demonstram ser e isto eacute um problema O ser humano nunca poderaacute se
desvencilhar de si mesmo e a tentativa de se identificar com sua persona com seu
papel social pode ter desenlaces indesejaacuteveis como viacutecios anguacutestias e ideias
obsessivas
A persona eacute um recorte mais ou menos arbitraacuterio da psique coletiva o que
significa que a verdadeira individualidade estaacute sempre impliacutecita na definiccedilatildeo da
persona ou seja mesmo que o eu se identifique totalmente com ela a
individualidade se faz sentir de forma indireta por meio daquilo que constitui a
persona No entanto a alma humana eacute ao mesmo tempo individual e coletiva e eacute
um erro o indiviacuteduo identificar-se com um ou outro aspecto de sua psicologia pois o
individual natildeo pode se desfazer no coletivo e romper com o coletivo representa
doenccedila Eacute por isso que em casos individuais natildeo eacute possiacutevel separar individual e
coletivo ateacute porque estes dois aspectos precisam estar em harmonia entre si para
que a alma possa se desenvolver
Quando o eu se identifica com a persona o centro individual jaz noinconsciente Ele se torna como que idecircntico ao inconsciente coletivoporquanto toda personalidade eacute por assim dizer apenas coletiva Em taiscasos haacute sempre uma intensa forccedila de succcedilatildeo rumo ao inconsciente e aomesmo tempo uma fortiacutessima resistecircncia consciente contra issomanifestando-se em um medo da destruiccedilatildeo dos ideais conscientes (JUNG2011 [1928] p 170 apecircndice grifo do autor)
Por meio da individuaccedilatildeo o si-mesmo se liberta tanto do poder sugestivo dos
arqueacutetipos quanto das falsas pretensotildees que a persona pode ter No entanto o autor
ressalta que o momento em que estes conteuacutedos inconscientes surgem na
consciecircncia e a forccedila com que o fazem eacute praticamente indescritiacutevel E acrescenta
que ldquoNa realidade a irrupccedilatildeo se preparou atraveacutes de muitos anos agraves vezes durante
a metade da vida (hellip)rdquo (JUNG 2011 [1928] p 65 sect 270)
Stein (2007) aborda a forma como a famosa crise da meia-idade desperta em
noacutes repentina e inconvenientemente nossa loucura secreta Para o autor este
estado de emergecircncia psicoloacutegica pode natildeo soacute abalar nossa autoestima quanto
nossa sauacutede mental pois vira nossas vidas pelo avesso e ningueacutem estaacute imune a
ele a meia-idade desorganiza qualquer ordem cuidadosamente estabelecida Stein
explica que isso acontece porque no meio da vida
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() descobrimos que a confusatildeo emocional e os pesadelos da adolescecircncianatildeo ficaram para traacutes esquecidos e guardados num lugar seguro dopassado Ao contraacuterio do que se imagina a psique ainda estaacute muito viva eativa O mito de que a vida ldquoadultardquo eacute um longo e estaacutevel periacuteodo decrescimento fundado sobre uma base soacutelida eacute destruiacutedo (STEIN 2007p12 grifo do autor)
Por isso eacute importante ficar atento a tudo que acontecer neste periacuteodo e tentar
entender por que estas coisas estatildeo ocorrendo neste momento da vida O autor cita
pesquisas recentes que mostram que os problemas da idade adulta natildeo satildeo
necessariamente o resultado de uma infacircncia infeliz uma vez que quando adultos
podemos nos desenvolver psiquicamente tanto quanto na infacircncia e na
adolescecircncia jaacute que o crescimento psiacutequico natildeo cessa Assim tambeacutem na meia-
idade podemos sofrer uma mudanccedila de identidade pois o Self pode experimentar
outra transformaccedilatildeo
Para Stein (2007) a meia-idade constitui uma crise da alma na qual perdemos
nosso antigo Self e vemos nascer um novo trata-se de um momento onde as
pessoas estatildeo realinhando sua vida com o mundo ao seu redor o que tem um
significado psicoloacutegico ndash e agraves vezes ateacute religioso ndash que ultrapassa o acircmbito social
O autor comenta que conforme suas observaccedilotildees ao longo do trabalho cliacutenico
o que costuma levar uma pessoa a prestar atenccedilatildeo e a respeitar a proacutepria psique eacute
justamente a crise o estado de emergecircncia psicoloacutegica porque uma vez imersos
nele natildeo temos mais como negar o processo de transformaccedilatildeo Quando as coisas
acontecem do modo esperado tendemos a natildeo dar importacircncia a fenocircmenos como
sonhos e fantasias mas no meio de uma crise psicoloacutegica estas imagens adquirem
uma proporccedilatildeo completamente diferente atingindo-nos e exigindo que faccedilamos algo
a seu respeito
Quanto mais inconsciente o indiviacuteduo estiver de seus proacuteprios conteuacutedos
psiacutequicos maior seraacute a frequecircncia com que iraacute projetaacute-los Conforme for
desenvolvendo sua consciecircncia poderaacute ateacute perceber o complexo como algo que
natildeo lhe seja completamente estranho embora ainda natildeo pertenccedila agrave sua
consciecircncia pois continua possuindo autonomia parcial
Para Jung (2011 [1928]) qualquer experiecircncia humana soacute eacute possiacutevel porque
nascemos dotados de uma estrutura psiacutequica que as possibilita Pais filhos
nascimento e morte por exemplo constituem possibilidade de imagens aprioriacutesticas
e coletivas o que significa que satildeo inconscientes isentas de conteuacutedo e natildeo
41
configuram destino Tais imagens adquirem conteuacutedo e influecircncia de acordo com a
experiecircncia que cada indiviacuteduo tiver relacionada a elas
Existe uma relaccedilatildeo compensatoacuteria entre animaanimus e a persona Para a
individuaccedilatildeo eacute de fundamental importacircncia que o indiviacuteduo aprenda a se diferenciar
de sua persona bem como de sua animaanimus Tanto os fatores reguladores da
vida em sociedade quanto os fatores inconscientes possuem caraacuteter coletivo e satildeo
determinantes para o sujeito ou seja eacute preciso discernir entre o que o eu deseja e o
lhe eacute exigido entre o que o eu deseja e o que o inconsciente lhe impotildee Eacute de se
esperar que as demandas internas e externas sejam conflitantes poreacutem eacute esta
tensatildeo de opostos que produz a energia necessaacuteria para a vida sem este processo
a autorregulaccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Assim por mais que persona e anima pareccedilam
contraditoacuterias satildeo elas que possibilitam a vida
Assim primeiro devemos nos separar de nossa persona e da imagem que
tiacutenhamos de noacutes mesmos Sem isso o ego natildeo conseguiraacute entrar no limiar fase
anterior ao contato mais profundo com o Self ndash mas isso envolve identificar a origem
da dor e todo um processo de luto A realizaccedilatildeo consciente pode ser complicada e
perceber-se conscientemente diferente requer um tipo de absorccedilatildeo completa da
persona embora as defesas do ego lutem contra Tambeacutem requer que nos
separemos da identificaccedilatildeo anterior com a persona Desta forma perceber-se
diferente eacute criacutetico e necessaacuterio ao mesmo tempo pois precisa haver uma
desidentificaccedilatildeo com a persona Eacute preciso haver um ponto final um encerramento
para que a psique assimile a nova situaccedilatildeo psicoloacutegica
Mesmo que o indiviacuteduo natildeo elabore este acontecimento ndash mesmo que natildeo haja
um processo de luto ndash ele pode se adaptar a esta situaccedilatildeo mal resolvida embora
seu comportamento vaacute se tornando cada vez mais ansioso riacutegido e desadaptado
por causa disso Assim o periacuteodo limiacutetrofe pode comeccedilar antes que o ego tenha se
libertado da identificaccedilatildeo com a antiga persona e se isso acontecer em vez de ficar
livre para vagar por este periacuteodo ambiacuteguo o ego vai ficar impossibilitado de enterrar
o passado e portanto ficaraacute preso nele cheio de nostalgia e arrependimento
Stein (2007) esclarece que quando natildeo nos desidentificamos totalmente da
nossa persona anterior eacute possiacutevel e ateacute compreensiacutevel que o ego se negue a
reconhecer o que estaacute acontecendo e consequentemente se negue a lidar com as
mudanccedilas e com as perdas Soacute podemos solucionar esta negaccedilatildeo defensiva
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relacionada agraves transformaccedilotildees sejam elas internas ou externas se nos
confrontarmos com nossa antiga persona e nos desidentificamos dela
definitivamente
Isso pode ser difiacutecil se jaacute de iniacutecio apresentarem-se dolorosos exemplos do
que haacute de errado em nossas atitudes conscientes pois aiacute jaacute comeccedilamos tendo que
engolir verdades amargas Desta forma os sonhos podem nos apontar aspectos
nossos ndash positivos ou negativos ndash que por inuacutemeros motivos haviacuteamos preferido
ignorar Aqui comeccedila a surgir a necessidade de readaptar a atitude consciente a
estes aspectos inconscientes o que Jung chamou de realizaccedilatildeo da sombra
A autora explica que
A sombra natildeo consiste apenas de omissotildees Apresenta-se muitas vezescomo um ato impulsivo ou inadvertido Aleacutem disso a sombra expotildee-semuito mais do que a personalidade consciente a contaacutegios coletivosEntrega-se entatildeo a impulsos que na verdade natildeo lhe pertencemParticularmente quando estamos em contato com pessoas do mesmo sexoeacute que tropeccedilamos tanto na nossa sombra quanto na delas Apesar depercebermos a sombra da pessoa do sexo oposto ela nos incomoda menose a desculpamos mais facilmente Nos sonhos e nos mitos portanto asombra aparece como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador (VONFRANZ 2008b p 223)
Para Stein (2007) quando a sombra se manifesta com mais intensidade no
meio da vida precisamos lidar com seus conteuacutedos de forma diferente do que
fizemos anteriormente em funccedilatildeo das possibilidades que eles representam Embora
estes conteuacutedos estejam se manifestando na forma de psicopatologias natildeo
podemos concluir que eles se restringem a traccedilos patoloacutegicos
Von Franz (2008b) considera que os valores contidos na sombra satildeo
necessaacuterios ao desenvolvimento da nossa consciecircncia mas por algum motivo
temos dificuldade de integraacute-los Quando vemos nos outros aquilo que natildeo
reconhecemos em noacutes estamos projetando nossa sombra isso impede que
vejamos o outro de forma objetiva e portanto impossibilita o verdadeiro
relacionamento entre as pessoas Outra desvantagem da projeccedilatildeo da sombra
apontada pela autora eacute que ela pode nos levar a cometer autossabotagens Em
uacuteltima instacircncia portanto se minha sombra vai trabalhar a meu favor ou contra mim
vai depender de como eu lido com ela Em si mesma a sombra natildeo eacute positiva nem
negativa mas torna-se hostil quando eacute incompreendida ou deixada de lado
43
Stein (2007) explica que o movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente
para si mesmo eacute conhecido como descida ao Hades em analogia agrave viagem feita por
Odisseu Eacute durante esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self
que natildeo pode se dar em nenhuma outra fase Isso eacute assim porque agora o Self
possui imagens novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos
proporcionaraacute pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas
que ele ainda precisa cumprir
Alvarenga (2015) afirma que simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem
os heroacuteis significa confrontar-se com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo
e que estaacute fora da minha consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-
se de uma morte simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem
antes causar dor A morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos
estruturantes essenciais para o autoconhecimento O maior objetivo do processo de
individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo consiga o maacuteximo possiacutevel expressar suas
singularidades Reconhecer que somos pereciacuteveis mortais reconhecer nossa
finitude e nossos limites tambeacutem faz parte da humanizaccedilatildeo natildeo aceitar estas
condiccedilotildees significa ficar preso agrave ilusatildeo de que somos imortais ficar preso na
polaridade divina
Um ego que natildeo incorpora sua sombra segundo Alvarenga (2012) eacute um ego
dissociado das caracteriacutesticas que considera negativas pois incapaz de integraacute-las agrave
proacutepria identidade As polaridades que ficarem excluiacutedas passaratildeo a agir como
inimigas de si mesmo como se fossem corpos estranhos agrave psique e possuiratildeo a
autonomia dos complexos A autora denomina estes aspectos excluiacutedos da
personalidade de antiacutegenos simboacutelicos e afirma que ldquoTodavia satildeo nuacutecleos da
proacutepria identidade mas pela condiccedilatildeo de alijados funcionam como antiacutegenos
psiacutequicos com o que mobilizam a formaccedilatildeo de anticorpos psiacutequicos e tambeacutem
fiacutesicos contra o proacuteprio organismo tanto fiacutesico quanto mentalrdquo (ALVARENGA 2012
p 56)
Este problema se resolveria facilmente se a integraccedilatildeo da sombra fosse uma
simples decisatildeo racional e consciente infelizmente natildeo funciona assim De fato
Von Franz (2008b) explica que se trata de algo tatildeo impulsivo que agraves vezes ldquoUma
experiecircncia amarga vinda do exterior pode ocasionalmente ajudaacute-la Eacute como se
fosse necessaacuterio um tijolo cair em nossa cabeccedila para conseguirmos deter os
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iacutempetos e impulsos da sombrardquo (VON FRANZ 2008b p 229) Nem sempre os
impulsos sombrios precisam ser controlados por um esforccedilo heroico mas agraves vezes a
sombra demonstra-se excessivamente poderosa porque o Self estaacute dando
orientaccedilatildeo semelhante nesse caso natildeo sabemos se quem nos pressiona a tomar
aquela atitude eacute a sombra ou o Self pois os conteuacutedos do inconsciente encontram-
se mesclados ndash a chamada contaminaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes
Da mesma forma em nossos sonhos de acordo com a autora natildeo eacute tatildeo
simples sabermos se determinadas figuras sombrias estatildeo representando parte da
nossa sombra do nosso Self ou dos dois Ela considera que resolver de antematildeo o
que este personagem estaacute representando ndash se eacute uma carecircncia a ser suprida ou um
aspecto a ser integrado ndash pode ser uma das tarefas mais difiacuteceis do nosso processo
de individuaccedilatildeo De fato Von Franz (2008b) considera os siacutembolos contidos nos
sonhos tatildeo complexos e sutis que o melhor seria natildeo fechar uma interpretaccedilatildeo a seu
respeito mas aprender a conviver com a duacutevida e continuar a observaacute-los
Von Franz (2008b) esclarece que a sombra natildeo eacute a uacutenica responsaacutevel pelos
nossos conflitos morais anima e animus tambeacutem satildeo responsaacuteveis pela confusatildeo
interna
Para Stein (2007) anima e animus podem nos atrair e nos envolver seja
atraveacutes de sonhos fantasias obsessivas de romances e aventuras ou ateacute mesmo
por meio do relacionamento com pessoas nas quais projetamos estas figuras de
forma inconsciente De qualquer forma existe um estiacutemulo imediato para se ligar
com seu oposto psicoloacutegico O incentivo para fazer esta ligaccedilatildeo estaacute na esperanccedila
de uma intensa cura psicoloacutegica No entanto o autor nos alerta para o fato de que
tal urgecircncia em se relacionar com aquela que parece ser a pessoa ideal pode nos
levar a ter inuacutemeras ilusotildees e posteriormente enormes decepccedilotildees
Stein (2007) considera que se separar de uma identidade antiga e reconhecer
esta perda satildeo processos cruciais No entanto ele afirma que a atitude de se
separar de uma persona antiga natildeo eacute exclusiva do meio da vida ocorrendo tambeacutem
em outros periacuteodos de transiccedilatildeo A experiecircncia liminar e o confronto com partes
reprimidas da personalidade tambeacutem acontecem em todos os periacuteodos de transiccedilatildeo
e agraves vezes podem acontecer de forma regressiva ou patoloacutegica Segundo o autor o
que eacute especiacutefico do meio da vida eacute o encontro e a negociaccedilatildeo com anima e animus
45
Trata-se de uma experiecircncia muito significativa e sem duacutevida essencial para o
resultado da transiccedilatildeo do meio da vida
Conforme jaacute foi dito anteriormente tendemos a projetar os conteuacutedos psiacutequicos
dos quais natildeo temos consciecircncia (ou temos pouca consciecircncia) e natildeo eacute diferente
com anima e animus Sobre a anima Jung explica que
A primeira portadora da imagem da alma eacute sempre a matildee depois seratildeo asmulheres que estimularem o sentimento do homem quer seja no sentidopositivo ou negativo Sendo a matildee como dissemos a primeira portadoradessa imagem separar-se dela eacute um assunto tatildeo delicado como importantee da maior significaccedilatildeo pedagoacutegica (JUNG 2011 [1928] p 87 sect 314)
O autor esclarece que a necessidade de se diferenciar da anima ndash aleacutem da
persona ndash reside no fato de que a nossa consciecircncia se volta principalmente para o
exterior e deixa de lado os conteuacutedos mais obscuros Aleacutem disso ele explica que a
anima agraves vezes atrapalha uma consciecircncia bem-intencionada e cria divergecircncias
entre a persona do sujeito e sua vida iacutentima Mas considera que tal situaccedilatildeo pode
ser resolvida se refletirmos sobre nosso conteuacutedo subjetivo e natildeo apenas sobre
nossa vida exterior
De acordo com Von Franz (2008b) eacute comum em mitos e contos de fada a
anima aparecer como uma sacerdotisa ou uma feiticeira ou seja um feminino
relacionado agraves trevas aos espiacuteritos (ao inconsciente)
A anima tambeacutem tem um aspecto positivo e um negativo como a sombra Uma
representaccedilatildeo da anima em seu aspecto negativo satildeo as Lorelei dos mitos
germacircnicos muito semelhantes agraves sereias gregas cujo canto sedutor levava os
homens agrave morte Estas representaccedilotildees tratam do aspecto perigoso da anima que
pode levar a uma ilusatildeo fatal A anima vai se manifestar de forma diferente em cada
homem mas Von Franz (2008b) frisa que o mais comum eacute que se manifeste na
forma de fantasia eroacutetica Nesse caso trata-se da anima em um aspecto primitivo
O homem vai projetar os aspectos de sua anima numa determinada mulher da
mesma forma que projetou os aspectos de sua sombra num determinado sujeito A
influecircncia da anima pode fazer com que um homem se apaixone agrave primeira vista
sentindo como se a conhecesse a vida toda e podendo ateacute passar por bobo para os
outros Von Franz (2008b) comenta as consequecircncias que essa projeccedilatildeo impetuosa
da anima pode ter num casamento quando leva a um caso extraconjugal Para a
autora ao gerar essa situaccedilatildeo caoacutetica o inconsciente estaacute pressionando o homem a
46
se desenvolver a integrar essa parte da sua personalidade inconsciente Por isso
ela considera que a questatildeo soacute se resolve quando o homem reconhece a anima
como uma forccedila interior
Sobre os aspectos positivos da anima Von Franz (2008b) destaca que em
termos praacuteticos percebemos a anima atuando como guia para o mundo interior do
homem quando ele
(hellip) leva a seacuterio os sentimentos os humores as expectativas e as fantasiastransmitidas por sua anima e quando ele os concretiza de alguma forma porexemplo na literatura pintura escultura muacutesica ou danccedila Quando trabalhacalma e demoradamente todas essas sugestotildees outros materiais aindamais profundos surgem do seu inconsciente entrando em conexatildeo com omaterial primitivo (VON FRANZ 2008b p 247 grifo do autor)
O que a autora explica aqui eacute que neste momento do processo de
individuaccedilatildeo se os sentimentos e fantasias natildeo forem levados a seacuterio a fim de que
o homem descubra o significado dessa figura como realidade interior seu processo
se estagna Poreacutem uma vez levada a seacuterio a anima volta a cumprir sua funccedilatildeo
inicial de transmitir ao homem as mensagens do Self
Para Jung (2011 [1928] p90 sect 319) eacute muito claro que os transtornos de ordem
subjetiva devem ser entendidos como uma adaptaccedilatildeo defeituosa agraves condiccedilotildees do
mundo interior uma vez que a realidade estaacute tanto fora quanto dentro
Ateacute aqui ao falar sobre anima o autor abordou a psicologia masculina A figura
equivalente presente na psique da mulher ele denominou de animus A mulher tem
a mesma tendecircncia ingecircnua do homem de considerar as reaccedilotildees de seu animus
como suas ainda que o faccedila de forma mais intensa do que os homens em nenhum
dos casos isso eacute verdadeiro Isso eacute assim porque nossos conteuacutedos psiacutequicos
atuam sobre noacutes mas natildeo temos controle sobre eles
Sempre partimos do pressuposto ingecircnuo de que somos os senhores emnossa proacutepria casa Deveriacuteamos habituar-nos no entanto com a ideia deque mesmo em nossa vida psiacutequica mais profunda vivemos numa espeacuteciede casa cujas portas e janelas se abrem para o mundo os objetos econteuacutedos desta uacuteltima atuam sobre noacutes mas natildeo nos pertencem A maioriadas pessoas natildeo concebe sequer esta ideia e aceita com dificuldade o fatode que seus vizinhos natildeo tecircm a mesma psicologia que a sua (JUNG 2011[1928] p 96 sect329)
O autor explica que enquanto a anima gera caprichos o animus elabora
opiniotildees muitas vezes bastante convictas irrefletidas e inflexiacuteveis Outra diferenccedila eacute
que enquanto a anima se personifica como uma mulher o animus se apresenta
47
como uma pluralidade de homens de autoridades cujas opiniotildees racionais satildeo
inquestionaacuteveis Aparentemente essas opiniotildees satildeo formadas por conceitos
guardados no inconsciente desde a infacircncia e constituem regras mais ou menos
razoaacuteveis e autecircnticas uacuteteis na falta de um criteacuterio consciente e confiaacutevel Jung
(2011 [1928]) ressalta que estas opiniotildees podem se manifestar sob a forma de
preconceito senso comum ou princiacutepio disfarccedilado
Ao abordar o animus personificaccedilatildeo masculina do inconsciente da mulher Von
Franz (2008b) afirma que este da mesma forma que a sombra e a anima possui
aspectos positivos e negativos Em seu aspecto positivo pode representar iniciativa
coragem honestidade chegando a ser mesmo muito significativo pois como a
anima (hellip) pode lanccedilar uma ponte para o Self por meio da atividade criadorardquo (VON
FRANZ 2008b p 255) Por outro lado os aspectos negativos do animus satildeo
perigosos e podem ser fatais A mais feminina das mulheres pode de repente
revelar-se inflexiacutevel fechada e ateacute mesmo cruel De acordo com a autora em mitos
sonhos e contos de fada este animus negativo pode aparecer como um assassino
um assaltante ou um democircnio da morte por exemplo O animus muitas vezes eacute
simbolizado por um grupo de homens nestes casos a autora afirma que ele estaacute
representando um aspecto mais coletivo do que pessoal
Anima e animus satildeo projetados com igual frequecircncia Como a anima o animus
estaacute sempre disposto a ocupar o lugar do homem real com suas opiniotildees que nunca
satildeo questionadas e acabam por negligenciar os indiviacuteduos pois generalizam
Anima e animus tambeacutem costumam se provocar mutuamente devido agraves suas
prediccedilotildees e projeccedilotildees afetivas o que impossibilita o diaacutelogo
Da mesma forma que a persona anima e animus podem assumir diversos
aspectos Por serem inconscientes no entanto muitas vezes natildeo percebemos que
constituem complexos autocircnomos funcionais Por isso quando natildeo satildeo
desenvolvidos e permanecem totalmente inconsciente e autocircnomos o crescimento
da personalidade fica prejudicado pois anima e animus continuaratildeo sendo
projetados externamente e seus conteuacutedos permaneceratildeo estranhos para noacutes
Quando conscientizados poreacutem se tornam pontes para o inconsciente e podemos
integrar seus conteuacutedos agrave nossa consciecircncia
Jung (2011 [1928]) comenta que por vezes temos a impressatildeo de que o
inconsciente se volta contra a consciecircncia de forma hostil e indiferente mas natildeo eacute
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bem assim O inconsciente soacute tem esta reaccedilatildeo quando a consciecircncia adota uma
postura ldquofalsa ou pretensiosardquo (JUNG 2011 [1928] p 106 sect 346) e mesmo assim
esta reaccedilatildeo tem uma finalidade que pode ser oposta agraves metas conscientes
A energia psiacutequica soacute pode ser libertada do inconsciente e apreendida quando
sob a forma de fantasias por isso a necessidade de dar vazatildeo agraves fantasias
inconscientes A conscientizaccedilatildeo das fantasias eacute um trabalho difiacutecil pois requer
objetividade o que significa que tanto a realidade da consciecircncia quanto a do
inconsciente satildeo vaacutelidas A conscientizaccedilatildeo das fantasias gera ampliaccedilatildeo de
consciecircncia e diminuiccedilatildeo gradual da influecircncia do inconsciente Consequentemente
percebe-se a transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo pois haacute uma mudanccedila
da atitude geral uma vez que as funccedilotildees inferiores foram assimiladas agrave consciecircncia
por meio da conscientizaccedilatildeo das fantasias
A esta transformaccedilatildeo obtida por meio do confronto com o inconsciente Jung
(2011 [1928]) denominou de funccedilatildeo transcendente Quando o paciente mergulha e
se entrega aos processos inconscientes inconsciente e consciecircncia se conectam
os conteuacutedos inconscientes ascendem se daacute a uniatildeo dos opostos esta eacute a funccedilatildeo
transcendente
O caminho da funccedilatildeo transcendente embora seja individual natildeo aliena a
pessoa do mundo pelo contraacuterio pois o indiviacuteduo soacute consegue seguir por ele de
maneira satisfatoacuteria se assumir as tarefas concretas agraves quais se propocircs Embora os
conteuacutedos inconscientes precisem ser conscientizados para que o indiviacuteduo se
diferencie dos demais e individue as fantasias natildeo substituem a realidade
Jung (2011 [1928]) afirma que a individuaccedilatildeo natildeo eacute apenas desejaacutevel mas
necessaacuteria ao homem pois o estado de fusatildeo e indiferenciaccedilatildeo com os outros
provoca compulsotildees e outras accedilotildees que colocam o indiviacuteduo em desarmonia
consigo mesmo com o que realmente eacute Este eacute o estado neuroacutetico insuportaacutevel
para o homem e do qual ele soacute consegue se livrar quando passa a ser coerente
com o que eacute
Inicialmente o homem tem para isso apenas um sentimento vago einseguro no entanto na medida em que seu desenvolvimento avanccedila talsentimento se torna mais claro e forte Quando algueacutem pode dizerverdadeiramente acerca de seus estados interiores e de seus atos ldquoAssimsou e assim atuordquo entatildeo teraacute alcanccedilado essa unidade consigo mesmoainda que dolorosamente pode assumir a responsabilidade de seus atoscontra toda resistecircncia Reconheccedilamos que nada eacute tatildeo difiacutecil quantosuportar-se a si mesmo() No entanto ateacute esta realizaccedilatildeo dificiacutelima seraacute
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possiacutevel se conseguirmos distinguir os conteuacutedos inconscientes de noacutesmesmos (JUNG 2011 [1928] p 116 sect373 grifo do autor)
Para atingir este objetivo se faz necessaacuteria a conquista da anima ou seja eacute
preciso que de complexo autocircnomo ela passe a exercer a funccedilatildeo de
permitirfacilitar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e inconsciente A partir daiacute o eu
consegue se desvencilhar da coletividade e do inconsciente coletivo (pois estaraacute
consciente de seus conteuacutedos inconscientes) e a anima perde seu caraacuteter
demoniacuteaco de complexo autocircnomo pois deixaraacute de atuar por meio da possessatildeo
Quando Jung (2011 [1928]) utiliza o conceito de Deus e o termo divino (e
nesse sentido demoniacuteaco pode ser utilizado da mesma maneira) ele se refere a
conteuacutedos psiacutequicos que se caracterizam por sua independecircncia e supremacia e
que satildeo capazes de se opor agrave nossa vontade provocando obsessatildeo e influenciando
nossas atitudes Para o autor os termos divino e demoniacuteaco satildeo adequados para
expressar a maneira autocircnoma que estes conteuacutedos tecircm de se expressar e para
reconhecer sua forccedila superior
A meta da individuaccedilatildeo eacute que o indiviacuteduo se conecte ao si-mesmo Jung (2011
[1928]) descreve o si-mesmo como algo irracional e indefiniacutevel que natildeo submete o
eu nem se opotildee a ele mas eacute algo em torno do qual o eu orbita digamos assim
Descobrir do que eacute realmente constituiacuteda nossa individualidade eacute uma tarefa
extremamente difiacutecil que exige profunda reflexatildeo Isso natildeo quer dizer que a
individuaccedilatildeo possa ser processada a partir de uma intenccedilatildeo consciente pois a
consciecircncia costuma excluir o que natildeo lhe conveacutem e a assimilaccedilatildeo de conteuacutedos
inconscientes nem sempre eacute agradaacutevel mas dela depende a individuaccedilatildeo Eacute
somente por meio da assimilaccedilatildeo dos conteuacutedos inconscientes que nos conectamos
com o si-mesmo e entatildeo nossa individualidade pode emergir e podemos assumir
um compromisso e uma posiccedilatildeo autecircntica com a realidade exterior
Von Franz (2008b) destaca a dificuldade de estabelecer uma descriccedilatildeo teoacuterica
uacutenica do processo de individuaccedilatildeo dentro da psicologia do inconsciente mas se
esforccedila para salientar suas caracteriacutesticas principais Nesse cenaacuterio entatildeo a
infacircncia teria grande importacircncia emocional e os sonhos tidos nesse periacuteodo
revelariam uma disposiccedilatildeo baacutesica da psique do indiviacuteduo a indicar simbolicamente
o seu destino Ela ressalta que natildeo precisa ser um sonho necessariamente pode ter
sido um episoacutedio concreto e marcante como uma profecia algo que de alguma
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forma antecipe seu destino de maneira simboacutelica A idade escolar tambeacutem pode ser
um periacuteodo criacutetico jaacute que eacute a fase em que a crianccedila comeccedila a se adaptar ao mundo
exterior assim a autora ressalta as dificuldades pelas quais a crianccedila pode passar
nesta fase Algumas (crianccedilas) podem se sentir muito diferentes das outras o que
acarretaria dor e traumas Nesta fase inuacutemeros choques podem fazem com que
essas crianccedilas se sintam discrepantes e abatidas o que provoca tristeza e solidatildeo
A crianccedila se torna consciente do mal presente em si e no mundo e estes comeccedilam
a influenciaacute-la Ao mesmo tempo a crianccedila passa a ter que lidar com estiacutemulos
internos urgentes incompreendidos ainda Sobre a juventude Von Franz (2008b)
diz que costuma constituir um periacuteodo de despertar gradativo no qual o indiviacuteduo
vai aos poucos se tornando consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor
A autora explica que se o desenvolvimento natural da consciecircncia for
perturbado nesse periacuteodo a crianccedila pode se alienar a fim de se proteger Nesses
casos seus sonhos e seus desenhos expressotildees de seu inconsciente passam a
apresentar de forma frequente e notaacutevel um motivo quadrado ou circular como
uma referecircncia ao nuacutecleo da psique o Self Este tipo de imagem costuma ser mais
comum quando a vida psiacutequica do sujeito se encontra comprometida de uma forma
mais seacuteria pois eacute do Self que proveacutem o modelo para a estruturaccedilatildeo do ego
Von Franz (2008b) afirma que enquanto algumas crianccedilas procuram um
sentido para a vida algo que lhes ajude a enfrentar tudo o que acontece dentro
delas mesmas ou ao seu redor outras se preocupam menos em encontrar um
significado mais profundo para as coisas porque obteacutem uma satisfaccedilatildeo mais
imediata com trabalho amor e esporte por exemplo Isso natildeo os torna mais
superficiais do que os primeiros apenas ldquo(hellip) o fluxo da vida eacute que os faz ter menos
atritos e perturbaccedilotildees que seus companheiros mais introspectivosrdquo (VON FRANZ
2008b p219)
A autora descreve o processo de individuaccedilatildeo como uma harmonizaccedilatildeo da
consciecircncia com o Self que por ser um tipo de apelo ao desenvolvimento costuma
inicialmente trazer sofrimento pois a personalidade se sente lesada ao perceber
sua liberdade tolhida Agraves vezes as coisas podem parecer bem para quem olha de
fora mas intimamente a pessoa pode perceber tudo como sem sentido e
entediante Von Franz (2008b) afirma que os mitos e contos de fada que se referem
ao rei que adoeceu ou envelheceu ou ao casal real esteacuteril ou ao monstro que rouba
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crianccedilas mulheres e tesouros de um reino ou ao espiacuterito maligno que natildeo deixa o
exeacutercito real seguir ou a secas inundaccedilotildees geadas ou neacutevoas que cobrem as
cidades fazem alusatildeo a este momento inicial do processo de individuaccedilatildeo Para ela
este momento pode ser simbolizado desta forma porque este primeiro encontro com
o Self faz o futuro parecer nebuloso e a princiacutepio nosso amigo interior se parece
mais com algueacutem a espreita para pegar o ego indefeso em vez de algueacutem disposto
a ajudaacute-lo
Ainda comentando sobre os mitos que podem ser relacionados a este
momento do processo de individuaccedilatildeo Von Franz (2008b) afirma que o talismatilde ou a
magia necessaacuterios para livrar o rei ou o reino do problema satildeo sempre algo muito
difiacutecil de conseguir e que o mesmo se passa na crise inicial da vida de uma pessoa
sempre buscamos algo impossiacutevel de encontrar algo desconhecido De nada
servem conselhos sensatos nestas horas aparentemente a uacutenica coisa que surte
efeito eacute o indiviacuteduo voltar-se para si e para essa escuridatildeo que se aproxima com
humildade e sem preconceitos a fim de descobrir o porquecirc de tudo isso
E de acordo Von Franz (2008b) estes objetivos costumam ser tatildeo singulares e
extraordinaacuterios que soacute por meio de sonhos e de fantasias conseguimos ter alguma
ideia deles As imagens assim reveladas podem ser bastante proveitosas se nos
voltarmos para o inconsciente sem preconceitos racionais e emocionais
A autora comenta que em casos em que o indiviacuteduo esteve num conflito seacuterio e
longo contra seu animus e sua anima impedindo-lhe a identificaccedilatildeo parcial com
eles o inconsciente adquire em sonhos e fantasias novo aspecto simboacutelico
representando agora o Self aparece personificado por figuras femininas superiores
como deusas ou sacerdotisas ndash no caso das mulheres ndash ou um velho saacutebio
guardiatildeo ou iniciador masculino ndash no caso dos homens Como personificaccedilatildeo tiacutepica
do Self em casos masculinos Von Franz (2008b) destaca o mago Merlin e o deus
grego Hermes
A autora ressalta que nem sempre o Self adquiriraacute a aparecircncia de um velho ou
uma velha saacutebios como se trata da personificaccedilatildeo de uma entidade que eacute ao
mesmo tempo velha e nova no sonho de um homem de meia idade por exemplo
podemos encontrar o Self personificado por um jovem O Self personificado como
uma figura jovem estaacute relacionado aos seus aspectos de vitalidade criativa de
renovaccedilatildeo de iniciativa de uma nova orientaccedilatildeo espiritual
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Von Franz (2008b) explica que ao adquirir a aparecircncia de um velho ou de um
jovem ndash ou de uma pessoa com a idade que desejar ndash o Self estaacute nos simbolizando
natildeo soacute que nos acompanha a vida inteira mas que transcende o tempo e o espaccedilo
como noacutes os compreendemos De fato de acordo com a autora o Self eacute
onipresente e tambeacutem costuma aparecer sob formas que sugerem esta
caracteriacutestica quando por exemplo manifesta-se como um homem gigante que
envolve todo o cosmos O aparecimento desta imagem nos sonhos de uma pessoa
segundo a autora indica que o centro vital da psique estaacute ativado o que possibilita
soluccedilotildees criativas para seus conflitos
A respeito das personificaccedilotildees do Self Stein (2007) deixa claro em seu estudo
sobre o meio da vida que se dedicaraacute ao mundo de Hermes agrave experiecircncia limiar
que seria nada mais do que uma viagem aos bastidores da alma No entanto o
autor ressalta que o arqueacutetipo representado por Hermes8 tambeacutem expressa a
presenccedila significativa do inconsciente cada vez que somos colocados em uma
situaccedilatildeo limiacutetrofe pela vida
Para Stein o limiar e Hermes existem fora do domiacutenio diacrocircnico e acabam
escapando aos limites Natildeo podemos manter o deus Hermes dentro de um padratildeo
de pensamento natildeo mercurial da mesma forma que natildeo podemos representar a
experiecircncia limiar da meia-idade apenas diacronicamente Tanto Hermes quanto a
experiecircncia limiar escapam agrave consciecircncia cronoloacutegica que tenta fixaacute-los e
permanecem inalcanccedilaacuteveis De fato depois de saiacuterem da fase liminar eacute comum as
pessoas terem a impressatildeo de que ela natildeo aconteceu pois sua composiccedilatildeo eacute muito
semelhante agrave dos sonhos
O autor explica que ao colocarmos o peacute no limiar acionamos o inconsciente
territoacuterio de Hermes e que seu estudo neste livro seraacute focado na atuaccedilatildeo de
Hermes durante este periacuteodo da vida que muitas vezes parece ambiacuteguo e
assustador Isso se daacute porque uma pessoa pode ter sua noccedilatildeo de identidade
suspensa durante o estado de limiar psicoloacutegico deixando-a com a sensaccedilatildeo de
alienaccedilatildeo O ego comeccedila a se questionar a respeito de seus propoacutesitos e
capacidades
Stein (2007) explica que tudo isso faz com que a pessoa que se encontra no
limiar da meia-idade fique bastante vulneraacutevel a imagens e pensamentos fortes
8 O arqueacutetipo de Hermes seraacute explorado em mais detalhes no capiacutetulo de Mitologia e PsicologiaAnaliacutetica
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mudanccedilas repentinas de humor e questotildees emocionais internas ou externas Os
acontecimentos podem ganhar proporccedilotildees muito diferentes das habituais pois
estamos emocionalmente muito sensiacuteveis
Quando acontece o limiar eacute como se os arqueacutetipos se agitassem no
inconsciente pois o Self estaacute se preparando para se comunicar atraveacutes de sonhos
fantasias intuiccedilotildees ou eventos sincrocircnicos Ao enviar estas mensagens para o ego
o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se aprofundar nos limites da psique e voltar
ileso No mito Hermes ajuda a conduzir as almas tanto para dentro quanto para fora
do Hades Eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de Hermes Para o
autor quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura de
Hermes surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia
Outras manifestaccedilotildees frequentes do Self Von Franz (2008b) ressalta estatildeo
relacionadas agrave quaternidade e ao nuacutemero 4 e seus muacuteltiplos tendo destaque
especial o nuacutemero 16 (resultado de quatro vezes quatro) Assim em representaccedilotildees
mitoloacutegicas tambeacutem eacute comum encontrarmos o Self sob a imagem dos quatro cantos
do mundo como um ciacuterculo dividido em quatro ou como uma mandala
Von Franz (2008b) afirma que a realidade psiacutequica de todo indiviacuteduo eacute
orientada para o Self ou seja em direccedilatildeo a ele Por isso a vida do homem nunca
poderaacute ser explicada apenas em termos de suas necessidades baacutesicas e de seus
instintos pois a nossa realidade psiacutequica soacute se manifesta simbolicamente e esses
siacutembolos variam de indiviacuteduo para indiviacuteduo Nas palavras dela
Em termos praacuteticos isso significa que a existecircncia do ser humano nuncaseraacute satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou demecanismos intencionais como a fome o poder o sexo a sobrevivecircncia aperpetuaccedilatildeo da espeacutecie etc Isto eacute o objetivo principal do homem natildeo eacutecomer beber etc mas ser humano Acima e aleacutem desses impulsos nossarealidade psiacutequica interior manifesta um misteacuterio vivo que soacute pode serexpresso por um siacutembolo e para exprimi-lo o inconsciente muitas vezesescolhe a poderosa imagem do Homem Coacutesmico (VON FRANZ 2008b p270 grifo do autor)
A autora segue explicando a imagem do Homem Coacutesmico comum em diversas
culturas embora estas tradiccedilotildees entendam o Homem Coacutesmico como a meta da
criaccedilatildeo natildeo se trata de uma realizaccedilatildeo de ordem exterior mas de um movimento do
ego extrovertido em direccedilatildeo ao Self de uma incorporaccedilatildeo do Self pelo ego O ego
se acalma depois de encontrar o Grande Homem interior
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Uma vez que este siacutembolo traduz algo total e pleno pode aparecer como
bissexual Assim ainda traz a vantagem de conciliar um dos opostos mais
relevantes da psicologia o feminino e o masculino Nos sonhos esta uniatildeo costuma
aparecer representada por um casal real divino ou em posiccedilatildeo de destaque de
alguma forma
Von Franz afirma que as pedras tambeacutem satildeo ldquo[hellip] representaccedilotildees comuns do
self porque satildeo objetos completos ndash imutaacuteveis e duradourosrdquo (VON FRANZ 2008b
p 274) ela cita as pedras preciosas da realeza como indiacutecio de seu poder e de sua
riqueza mas pedras de qualquer tipo podem aparecer simbolizando o Self Eacute
comum tambeacutem que o Self apareccedila sob a forma de um cristal este costuma
representar a uniatildeo dos opostos mateacuteria e espiacuterito
De acordo com a autora o Self tambeacutem costuma aparecer sob a imagem de
um animal relacionado agrave nossa natureza instintiva e ao nosso meio ndash o que
justificaria a presenccedila de tantos animais solidaacuterios nos mitos e contos de fada Ela
explica que a relaccedilatildeo do Self com a natureza ao seu redor e com o cosmos como
um todo resulta do fato do nosso aacutetomo nuclear psiacutequico estar conectado de forma
totalmente incompreensiacutevel para noacutes a tudo que existe no mundo a todas as
manifestaccedilotildees de vida internas e externas enfim a tudo que existe no contiacutenuo
espaccedilo-tempo conhecido por noacutes
Von Franz (2008b) comenta o conceito de sincronicidade cunhado por Jung
que se refere a uma coincidecircncia significativa ocorrida entre eventos internos e
externos sem nenhuma relaccedilatildeo causal A autora comenta que a sincronicidade eacute
encontrada por exemplo em estudos astroloacutegicos e em culturas que se utilizam de
pressaacutegios e consultam oraacuteculos pois trata-se de tentativas de explicar uma
coincidecircncia fora da simples relaccedilatildeo de causalidade Para ela o conceito de
sincronicidade traccedila um meacutetodo para abordarmos com mais profundidade a relaccedilatildeo
entre psique e mateacuteria Aleacutem disso Von Franz (2008b) ressalta que eventos
sincronizados costumam acompanhar etapas essenciais do processo de
individuaccedilatildeo ndash o que natildeo significa que natildeo possam passar desapercebidos caso o
indiviacuteduo natildeo tenha aprendido a observar os siacutembolos em seus sonhos ou as
coincidecircncias significativas
Por isso a ecircnfase da autora de que em algum momento de nossa vida
seremos capturados por uma aventura interior empolgante e uacutenica e que por isso
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mesmo esta ldquonatildeo pode ser copiada ou roubadardquo (VON FRANZ 2008b p 283) Isso
significa que o processo de individuaccedilatildeo descarta imitaccedilotildees ou seja mesmo que
desejemos seguir o modelo de um liacuteder espiritual natildeo seraacute possiacutevel copiar seu
processo seus passos mas sim sua sinceridade em viver a proacutepria vida
Conforme a autora jaacute mencionou anteriormente sobre os demais elementos do
inconsciente ndash sombra anima e animus ndash o Self tambeacutem apresenta aspectos
positivos e negativos No entanto conforme ela ressalta o lado obscuro do Self eacute
especialmente perigoso uma vez que o Self eacute o nuacutecleo da psique podendo levar as
pessoas a desenvolverem fantasias de grandiosidade capazes de possuiacute-las Como
exemplo claacutessico de pessoas que se encontram nesse estado a autora cita aqueles
que pensam ter resolvido os misteacuterios do universo e por isso perdem contato com
a realidade humana Ou seja a manifestaccedilatildeo do Self sem criteacuterio pode representar
grande perigo para o ego
A fim de entendermos os recados e processos relevantes do inconsciente natildeo
podemos perder o controle emocional eacute fundamental que o ego continue
funcionando normalmente e que seja capaz de perceber as proacuteprias imperfeiccedilotildees
Von Franz (2008b) reconhece que natildeo se trata de uma tarefa faacutecil
Muitas vezes o processo de individuaccedilatildeo nos pareceraacute mais uma obrigaccedilatildeo e
um peso do que uma benccedilatildeo Segundo Von Franz (2008b) uma pessoa que tenta
obedecer o inconsciente natildeo consegue mais fazer o que quer nem o que os outros
querem que ela faccedila de fato muitas vezes precisaraacute se distanciar dos demais para
conseguir se encontrar ndash daiacute a fama de antissocial e egocecircntrica que pode ganhar
eventualmente
Stein (2007) explica que no meio da vida eacute comum que a existecircncia das
pessoas sofra mudanccedilas draacutesticas e que padrotildees e laccedilos sejam rompidos
provocando intensas transformaccedilotildees tanto no acircmbito psicoloacutegico quanto no social
Trata-se em geral de um periacuteodo no qual as pessoas saem em busca de algo
indefinido e geralmente envolve um contato e uma imersatildeo involuntaacuteria com
determinados sentimentos ou experiecircncias por isso pode-se dizer que a meia-idade
eacute algo que nos acontece e natildeo algo pelo qual aguardamos ansiosos
Para o autor durante este periacuteodo de confusatildeo psicoloacutegica nossas relaccedilotildees
com as pessoas parecem distantes e enfraquecidas Isso acontece porque deixamos
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de nos importar com as coisas e queremos liberdade para encontrar um novo
sentido para nossas vidas pois nossa psique despertou
No entanto Von Franz (2008b) ressalta que isso natildeo constitui uma regra pois
haacute um fator pouco conhecido que interveacutem nesses casos o aspecto coletivo (ou
social) do Self Ela explica que na praacutetica o indiviacuteduo pode perceber esse aspecto
social do Self se observar seus sonhos por um certo periacuteodo pois notaraacute que eles
se referem agrave sua relaccedilatildeo com os outros A autora afirma que podemos interpretar de
duas formas quando sonhamos com outras pessoas ou trata-se da projeccedilatildeo de um
aspecto do proacuteprio sonhador ou o sonho realmente estaacute nos revelando algo sobre
aquela pessoa Nestas situaccedilotildees ela ressalta que nem sempre eacute simples entender o
que o inconsciente estaacute querendo dizer Estamos sintonizados com as pessoas com
as quais convivemos por isso independente de nossos pensamentos conscientes a
respeito delas nossos sonhos podem nos proporcionar percepccedilotildees subliminares E
uma vez que as imagens oniacutericas podem nos iludir (por causa das nossas
projeccedilotildees) ou nos fornecer uma informaccedilatildeo objetiva a uacutenica forma de fazer uma
interpretaccedilatildeo correta eacute tendo uma postura honesta e responsaacutevel diante delas
Assim desde que o ego se disponha a reconhecer essas projeccedilotildees o Self se
encarrega de ordenar e regular nosso relacionamento com as outras pessoas Para
Von Franz (2008b p 295) ldquoO processo de individuaccedilatildeo conscientemente realizado
transforma assim as relaccedilotildees humanas do indiviacuteduo Laccedilos de parentesco ou de
interesse comuns satildeo substituiacutedos por um tipo de uniatildeo diferente vinda do selfrdquo
Stein considera que eacute comum que duas pessoas que se encontram nesta
mesma fase liminar da vida ndash no meio da estrada ou de uma viagem concreta ou
natildeo ndash sentirem a presenccedila de Hermes pois ela cria uma sensaccedilatildeo de intimidade e
de conexatildeo imediata e intensa entre elas Brota tambeacutem uma intenccedilatildeo muito forte de
partilhar com tal pessoa esta fase da vida afinal uma das maiores expectativas da
maioria de noacutes eacute justamente encontrar um tipo de alma irmatilde com quem possamos
partilhar nossa jornada Talvez isso seja assim porque inconscientemente todos
estamos buscando Hermes e a comunhatildeo que este arqueacutetipo favorece
O autor explica que ansiar pela companhia de Hermes pode estar relacionado
a duas coisas primeiro ao desejo de estar numa jornada segundo agrave acircnsia por
estar numa intimidade intensa e radical com o outro A fase liminar eacute muito poderosa
justamente pois envolve invariavelmente a questatildeo da uniatildeo da identidade entre
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as pessoas que estatildeo passando por ela ao mesmo tempo Esse tipo de uniatildeo pode
levar as pessoas a formarem comunidades Quando a comunidade eacute formada por
pessoas que estatildeo passando por esta experiecircncia liminar observamos a expressatildeo
de Hermes no coletivo
Von Franz (2008b) explica que por mais que as ocupaccedilotildees e os deveres do dia
a dia sejam nocivos aos objetivos ocultos do nosso inconsciente estes laccedilos
formados pelo Self acabam aproximando aqueles que foram feitos uns para os
outros Ou seja por meio de sua funccedilatildeo social o Self de forma que natildeo
compreendemos promove a uniatildeo de pessoas que se encontram separadas mas
que foram feitas para se entenderem Assim da forma como entendemos o
processo de individuaccedilatildeo atualmente parece que o Self forma pequenos grupos por
meio de fortes laccedilos afetivos entre determinados indiviacuteduos ao mesmo tempo em
que gera um sentimento de solidariedade geral Soacute quando os laccedilos satildeo formados
pelo Self eacute podemos ter alguma garantia de que brigas inveja ou projeccedilotildees
negativas natildeo separaratildeo o grupo E eacute dessa forma que a verdadeira dedicaccedilatildeo ao
nosso processo de individuaccedilatildeo melhora tambeacutem nossa adaptaccedilatildeo social
Logicamente isso natildeo vai fazer desaparecer os conflitos de opiniatildeo e deveres
motivo pelo qual devemos nos recolher constantemente a fim de ouvir nosso Self e
seu ponto de vista Eacute soacute por meio da transformaccedilatildeo psicoloacutegica que encontraremos
o verdadeiro significado de nossas vidas e entatildeo nos tornaremos livres por isso o
processo de individuaccedilatildeo deve ser uma prioridade
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que o indiviacuteduo devotado agrave sua
individuaccedilatildeo contagie as pessoas ao seu redor mesmo sem a intenccedilatildeo de fazecirc-lo
de fato a autora explica que eacute justamente isso que torna suas atitudes tatildeo
contagiantes Natildeo eacute uma tarefa simples levar o inconsciente a seacuterio dessa forma
muito pelo contraacuterio eacute preciso muita coragem e integridade Exatamente por se
tratar de algo tatildeo complexo o processo de individuaccedilatildeo natildeo eacute algo linear a autora
utiliza a imagem de uma espiral ascendente para ilustraacute-lo indicando que nosso
desenvolvimento psiacutequico ldquo(hellip) cresce para o alto enquanto retorna
simultaneamente ao mesmo pontordquo (VON FRANZ 2008b p 301)
Ainda sobre esta etapa da vida o autor explica que
A transiccedilatildeo e a crise do meio da vida entatildeo envolvem esta crucial guinadade orientaccedilatildeo da persona para o Self Trata-se de uma guinada criacutetica para
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o processo de individuaccedilatildeo como um todo porque eacute a mudanccedila durante aqual a pessoa se liberta das camadas de influecircncias familiares e culturais eatinge certo grau de unicidade em sua apropriaccedilatildeo de fatos e influecircnciasexternos e internos Como outros ritos de passagem esta transiccedilatildeo podeser dividida em trecircs etapas separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo (STEIN 2007p41)
Stein (2007) ressalta outro ponto importante que as fases de transiccedilatildeo do meio
da vida ndash separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo ndash natildeo constituem um processo
extremamente definido e delimitado De fato ele explica que a divisatildeo nestas trecircs
fases eacute mais um recurso didaacutetico para facilitar a compreensatildeo de um processo que
costuma ser bem caoacutetico As fases natildeo satildeo completamente distintas entre si e nem
da vida em si pois deixam resiacuteduos Justamente por isso uma pessoa nunca mais
seraacute a mesma apoacutes passar por uma das fases e assimilaacute-la pois isso transformaraacute
sua atitude psicoloacutegica
Neste momento Stein (2007) nos explica a diferenccedila psiacutequica entre enterrar e
encobrir embora ambas as accedilotildees envolvam colocar algo sob a terra uma eacute
consciente e a outra natildeo No enterro o trabalho de separaccedilatildeo eacute feito de forma
consciente e somos capazes de perceber suas ramificaccedilotildees e transformarmos em
fatos objetivos as imagens que antes eram inconscientes A accedilatildeo de encobrir por
sua vez natildeo provoca mudanccedilas pois estaacute diretamente relacionada agrave repressatildeo e agrave
negaccedilatildeo mecanismos que acabam reforccedilando as identificaccedilotildees inconscientes
Desta forma o enterrar tem o propoacutesito de transformar fatos subjetivos em
objetivos promovendo a separaccedilatildeo pois por mais que esta fase cause dor e medo
eacute extremamente necessaacuteria A separaccedilatildeo antecede a fase do limiar que pode ser
considerada a principal fase da transiccedilatildeo do meio da vida Por isso Stein (2007)
considera que a porta principal de entrada deste periacuteodo da existecircncia eacute a
experiecircncia do luto e do enterro das antigas imagens e expectativas que tiacutenhamos a
respeito de noacutes mesmos e da vida A separaccedilatildeo o luto e o enterro dos antigos
planos ao nos emanciparmos de expectativas anteriores podem nos libertar de
antigas noccedilotildees de identidade O autor esclarece que esta experiecircncia costuma ser
sentida como medo da morte ou mesmo como a morte em si
Apoacutes uma separaccedilatildeo um enterro o periacuteodo liminar pode ser mais breve ou
mais longo Isso acontece porque o limiar tem duas dimensotildees a sincrocircnica e a
diacrocircnica Na dimensatildeo diacrocircnica as fases seguem basicamente uma ordem
cronoloacutegica No entanto quando observamos o liminar do ponto de vista sincrocircnico
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passamos a entendecirc-lo como uma camada da psique que portanto estaacute presente e
atuante a vida inteira independente do indiviacuteduo ter consciecircncia deste fato ou natildeo
Em sonhos essa figura pode aparecer representada por um viajante um marginal
um bobo um profeta ou ateacute um fantasma Sonhar com figuras liminares natildeo se
restringe a periacuteodos de transiccedilatildeo mas pode acontecer em qualquer eacutepoca da vida
dada sua dimensatildeo sincrocircnica
O meio da vida eacute um periacuteodo em que os limites externos e os internos se
associam levando a um caos que pode durar anos Fatores como a idade o
fracasso na realizaccedilatildeo de algum ideal e a perda de pessoas queridas unem-se ao
limiar gerado pela mudanccedila na estrutura psiacutequica de modo que as duas dimensotildees
do limiar ndash sincrocircnica e diacrocircnica ndash acontecem ao mesmo tempo No meio deste
caos onde os dois movimentos satildeo igual e excessivamente fortes Hermes se faz
essencial sem a presenccedila e a atitude do deus natildeo sobreviveremos agrave toda a
conturbaccedilatildeo desta fase da vida
Stein (2007) explica que as duas dimensotildees do limiar fazem referecircncia ao
tempo chronos pois diacrocircnico significa atraveacutes do tempo e sincrocircnico com o
tempo Por isso ele insiste eacute fundamental que a anaacutelise do limiar natildeo se limite ao
seu sentido linear Sistemas diacrocircnicos organizam os eventos numa sequecircncia
cronoloacutegica e ao aplicaacute-los ao desenvolvimento psicoloacutegico pode-se entender a
vida como sendo apenas uma sequecircncia causal de passos e ciclos O autor explica
que soacute utilizou este sistema (diacrocircnico) para ilustrar os eventos que ocorrem no
meio da vida traccedilando um paralelo com os ritos de passagem de van Gennep
separaccedilatildeo limiar e reintegraccedilatildeo No entanto os tempos eventos e a proacutepria
identidade transcorrem de forma sincrocircnica Ou seja eventos tempos impressotildees
experiecircncias valores noccedilotildees de identidade e referecircncias de memoacuteria se
confundem pois natildeo tecircm um limite rigidamente estabelecido Stein (2007) utiliza o
esquema que van Gennep emprega aos ritos de passagem pois considera que ele
ajuda a nortear uma discussatildeo difiacutecil como esta
Quando a alma se liberta durante a experiecircncia liminar do meio da vida ela
tambeacutem desperta ou seja passa a mostrar-se livre e ativa O luto pelo que natildeo
conseguimos realizar nos conecta a outros modos de funcionamento da consciecircncia
Desconectada de suas identificaccedilotildees egoicas anteriores a alma eacute guiada por
Hermes ateacute uma regiatildeo da psique onde tudo eacute subjetivo natildeo existe objetividade O
60
autor discute o propoacutesito psicoloacutegico da transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade e
conclui que esta fase traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite
que a pessoa conheccedila seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem
possui um Self por isso Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
Que a sombra ressurja no meio da vida e principalmente ao longo do periacuteodo
liminar eacute esperado Pessoas que se encontram na meia-idade costumam se
descrever como adolescentes e Stein (2007) explica que isso pode estar
relacionado ao fato de nesta fase da vida as defesas do inconsciente se tornarem
menos eficazes ou ainda ao fato do inconsciente estar mais carregado
energeticamente ou entatildeo a uma associaccedilatildeo dos dois fatores de qualquer forma
ldquo(hellip) os impulsos desejos fantasias e vontades que estavam reprimidos
reaparecem com forccedila no meio da vidardquo (STEIN 2007 p 88)
Stein (2007) esclarece que a entrada na experiecircncia do liminar da meia-idade
se daacute atraveacutes de uma experiecircncia de perda ou luto que conduz a uma possibilidade
de desapego ou flutuar psicoloacutegico Este flutuar envolve uma relaccedilatildeo mais direta
com os impulsos do que a que se eacute desejaacutevel em periacuteodos mais estaacuteveis da vida
Desta forma na fase liminar a consciecircncia hermeacutetica nos leva a reagir a um desejo
de forma mais imediata do que o fariacuteamos em outras fases da vida A atuaccedilatildeo
constitui um toacutepico claacutessico na psicologia profunda refere-se a quando o indiviacuteduo
faz algo movido por razotildees que natildeo satildeo completamente conhecidas nem por ele
mesmo Neste caso a relaccedilatildeo entre o ego e o desejo eacute obscurecida por diversas
defesas A conduta de Hermes no entanto eacute o oposto da atuaccedilatildeo pois envolve
demonstrar algo de forma clara consciente Nesta forma de comportamento ego e
impulso se relacionam livres de defesas ou racionalizaccedilotildees pois durante o periacuteodo
liminar o ego se torna muito proacuteximo do inconsciente
Stein (2007) nos recorda de que o sentido de orientaccedilatildeo de uma pessoa se
torna obscuro durante o periacuteodo liminar os caminhos natildeo parecem definidos e o
futuro parece inconcebiacutevel A fase da destruiccedilatildeo jaacute passou persona identidade
valores sonhos ideais autoimagem tudo isso jaacute caiu por terra e a alma se encontra
livre flutuante Agora os rumos parecem confusos pois o que servia antes natildeo serve
mais e a alma tambeacutem natildeo tem certeza sobre qual caminho seguir Para piorar a
situaccedilatildeo
61
A atitude e as funccedilotildees psicoloacutegicas que funcionavam como guias econselheiras no passado satildeo vozes inaudiacuteveis e quando ouvidas parecemnatildeo ter mais poder de persuasatildeo Eacute neste momento que surge o desejointenso de encontrar uma alma gecircmea (hellip) que havia sido desviado nopassado ou dirigido para outros fins ou talvez nunca tenha surgido antescom muita intensidade e que agora invade e massageia a consciecircnciacolocando dentro dela um desejo e uma visatildeo de completa intimidadepsicoloacutegica com algueacutem (STEIN 2007 p 99)
Para o autor a chacota em torno da crise da meia-idade estaacute relacionada a um
comportamento defensivo pois trata-se de um periacuteodo que costuma envolver a
regressatildeo da libido Neste caso o humor encontra-se instaacutevel e as emoccedilotildees mais
intensas o que afeta o funcionamento normal da consciecircncia de um adulto E Stein
(2007 p106) ressalta que ldquo(hellip) especialmente durante o periacuteodo liminar do meio da
vida estes padrotildees emocionais aparentemente infantis e adolescentes parecem
tomar conta e ressurgem ainda mais compulsivos e irracionais do que foram na
infacircncia() Tudo isso parece irracional nocivo agrave sociedade e pode acontecer a
qualquer um de noacutesrdquo
Stein (2007) reitera no entanto que o que leva agrave profunda transformaccedilatildeo
psicoloacutegica na meia-idade eacute a percepccedilatildeo clara da morte como conclusatildeo de uma
etapa da vida e como um processo inerente desta O autor explica que acontece
uma espeacutecie de morte metafoacuterica no meio da vida neste momento em que a
identidade consciente do indiviacuteduo se transforma tatildeo intensamente Haacute uma
reorganizaccedilatildeo em niacutevel inconsciente e a pessoa que eacuteramos morre de certa forma
Esse processo eacute necessaacuterio para que o novo indiviacuteduo possa nascer Todo este
processo se daacute durante o liminar do meio da vida e trata-se de um ponto
fundamental da existecircncia que eacute vivenciado como se estiveacutessemos de fato na terra
dos mortos pois a sensaccedilatildeo eacute de desespero fim da linha e de estar preso em
padrotildees antigos e sem sentido
Aqui Stein (2007) explica que fases interestruturais ou seja fases de
transiccedilatildeo correspondem a fases confusas onde os padrotildees psicoloacutegicos
dominantes sofrem mudanccedilas profundas jaacute que os aspectos do Self que antes eram
reprimidos passam agora a ser ressaltados Trata-se de um periacuteodo literalmente
liminar onde a identidade anterior passa a ser apenas uma persona Por isso rituais
de passagem tecircm sua funccedilatildeo psicoloacutegica pois ajudam as pessoas a se adaptarem agrave
nova situaccedilatildeo Rituais e costumes contecircm e expressam diversos elementos
pertencentes agrave dinacircmica psiacutequica e portanto ao arqueacutetipo
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Alvarenga (2015) afirma que os ritos iniciaacuteticos configuram atividades por meio
das quais buscamos compreender as coisas de outra forma ou iniciar novas etapas
em nossas vidas Buscar conhecimento eacute uma necessidade arquetiacutepica e obter
conhecimento eacute consequecircncia de nossa necessidade de nos comparar com os
outros quando nos comparamos com algueacutem nos voltamos para noacutes mesmos e
assim acabamos nos conhecendo melhor Buscar conhecimento tambeacutem nos
coloca diante do limite limite do que a consciecircncia pode conhecer limite do tempo
de vida etc pois tudo relacionado ao homem tem fim tem limite Dessa forma a
autora explica que o processo de individuaccedilatildeo tambeacutem estaacute relacionado com
aprender a lidar com os limites do eu e com a dor e o sofrimento inerentes ao ato de
tomar consciecircncia de si mesmo A autora explica que natildeo nos curamos dessas
dores mas podemos por meio de sucessivas mortes simboacutelicas transformaacute-las em
siacutembolos estruturantes gerando consciecircncia eacute assim que nos tornamos humanos e
o autoconhecimento eacute o objetivo principal da humanizaccedilatildeo
A experiecircncia liminar e os rituais de iniciaccedilatildeo portanto combinam com
siacutembolos de decomposiccedilatildeo e de morte motivo pelo qual quando nos detemos na
imagem do Hades ligada a mortes nos deparamos com o cerne destas
experiecircncias O autor explica que no liminar da meia-idade o que parece se tornar
consciente eacute justamente a subjetividade como sempre presente e atuante apesar
do brilho constante da consciecircncia Assim o principal resultado desta experiecircncia
liminar parece ser a consciecircncia do inconsciente
Durante o periacuteodo de transiccedilatildeo liminar a alma desperta e livre eacute levada por
Hermes a regiotildees psicoloacutegicas antes impenetraacuteveis ndash tais como as ilhas de Circe e
de Calipso para Ulisses Jaacute que o arqueacutetipo da transferecircncia estaacute ativado nesta
circunstacircncia o indiviacuteduo consegue viver o amor de forma bastante intensa com
outras figuras da alma ndash tal como Ulisses com Circe e Calipso A transferecircncia da
anima se expande de tal forma que a relaccedilatildeo com cada pessoa ou objeto deve ser
cuidadosamente analisada pois tudo representa uma figura da alma Nesta fase a
ansiedade gerada pela perda com antigas identificaccedilotildees chega a ser beneacutefica diante
dos ganhos psiacutequicos posteriores
Uma vez no periacuteodo liminar nosso senso de opostos antes extremo ndash tudo
preto no branco ndash comeccedila a se equilibrar devido ao aliacutevio das tensotildees inerente ao
mundo de Hermes pois eacute necessaacuterio que os opostos sejam integrados Desta
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forma uma experiecircncia liminar prolongada impede que o indiviacuteduo retorne ao estado
de antes o que eacute extremamente beneacutefico para seu processo de individuaccedilatildeo ao
entrar numa nova fase de estabilidade a pessoa natildeo perde a consciecircncia adquirida
durante a fase liminar A questatildeo principal da reintegraccedilatildeo terceira fase da transiccedilatildeo
do meio da vida eacute o quanto da consciecircncia adquirida vai permanecer conosco A
constelaccedilatildeo dos opostos neste periacuteodo corresponde a um pedido da psique por
completude Sua principal finalidade eacute colocar o ego a serviccedilo do Self e pedir que
ele aguente o periacuteodo difiacutecil e facilite a uniatildeo dos opostos a fim de obter um
elemento psiacutequico totalmente novo o chamado ouro psicoloacutegico ldquoEste ouro o
lsquonosso ourorsquo como dizem os alquimistas eacute a consciente presenccedila do Self dentro do
dia a dia da existecircncia do egordquo (STEIN 2007p155 grifo do autor)
Desta forma Hermes permanece conosco natildeo mais como arqueacutetipo
dominante na consciecircncia como no periacuteodo liminar obviamente mas sua presenccedila
constante vai favorecer nossos movimentos psiacutequicos Para o autor uma transiccedilatildeo
do meio da vida bem sucedida resulta numa identidade mais inclusiva e consciente
psicologicamente No entanto existe o perigo de que passada a agitaccedilatildeo da fase
liminar toda a consciecircncia que estava sendo adquirida durante o periacuteodo seja
eliminada Por isso a principal tarefa do indiviacuteduo na fase poacutes meio da vida eacute
encontrar formas praacuteticas de se manter em contato com a experiecircncia liminar
mesmo que isso pareccedila interferir em seus novos padrotildees de identidade e
estabilidade
Uma das formas de fazer isso propostas pelo autor eacute aprender a identificar a
presenccedila de Hermes mesmo durante periacuteodos de estabilidade uma vez que o deus
sempre se manifesta em periacuteodos liminares sua manifestaccedilatildeo durante um periacuteodo
estruturado ajuda a nos manter conectados com a experiecircncia liminar Em nossa
vida cotidiana a presenccedila de Hermes pode ser sentida obviamente nos sonhos
espaccedilo claacutessico de atuaccedilatildeo do deus em qualquer momento da vida Mas outros
eventos tambeacutem nos indicam a accedilatildeo do deus Por exemplo o silecircncio repentino no
meio de uma conversa a ansiedade diante do misterioso e do inesperado enquanto
executamos nossas tarefas cotidianas epifanias ou momentos passageiros de
escuridatildeo tudo isso pode ser considerado manifestaccedilatildeo de Hermes
Neste ponto do texto Stein (2007) aborda o casamento instituiccedilatildeo geralmente
vista como estaacutevel e tradicional
64
(hellip) que definitivamente deve excluir situaccedilotildees liminares de sua jurisdiccedilatildeoQuando duas pessoas se casam acabam-se as jornadas aventureiras delua-de-mel escapadas a dois atraveacutes de caminhos liminares e os riscos daintimidade intensa e enlouquecida satildeo trocados pela estabilidade e aseguranccedila de repetirmos os padrotildees familiares (STEIN 2007 p 158)
Eacute comum o casamento induzir uma identificaccedilatildeo com a estrutura o que
prejudica ou ateacute exclui a experiecircncia liminar da relaccedilatildeo matrimonial No entanto eacute
exatamente a repeticcedilatildeo dos padrotildees dentro do casamento que gera a demanda da
vivecircncia liminar como o desejo de viver um caso de amor incriacutevel De acordo com o
autor a soluccedilatildeo para este problema existe desde que ambos os parceiros se
mantenham atentos agrave presenccedila de Hermes na relaccedilatildeo conjugal ndash e isso vai
depender da atitude psicoloacutegica de cada um ndash o casamento pode ser uma relaccedilatildeo
que permite a dialeacutetica e portanto pode se manter monogacircmico
Stein (2007) tambeacutem adverte para o fato de que sempre que eventos
inconscientes dominam as intenccedilotildees do ego ndash seja no contexto matrimonial ou em
qualquer outro da vida ndash Hermes estaacute se manifestando e portanto temos uma
experiecircncia liminar a caminho o que deve ser levado em consideraccedilatildeo caso
queiramos preservar a dialeacutetica A dialeacutetica entre uma vida estruturada e o periacuteodo
liminar depende portanto do desenvolvimento da funccedilatildeo transcendente ponte para
a vida simboacutelica que implica termos noccedilatildeo do arqueacutetipo e de suas dimensotildees em
nossas atitudes e escolhas diaacuterias Eacute justamente isso que o autor considera um
resultado ideal da transiccedilatildeo do meio da vida
51 CASAMENTO TRAICcedilAtildeO E INDIVIDUACcedilAtildeO
O casamento e a traiccedilatildeo satildeo temas importantes na Odisseia O casamento
entre Ulisses e Peneacutelope eacute a motivaccedilatildeo que o impele a enfrentar todas as
dificuldades para voltar agrave Iacutetaca mas ao mesmo tempo temos as traiccedilotildees de Ulisses
com Circe com e Calipso enquanto Peneacutelope se manteacutem fiel a ele em meio a
inuacutemeros pretendentes
Para Vargas (1986) o casamento eacute a maneira mais frequente e mais feacutertil de
se viver parte da individuaccedilatildeo pois ele costuma proporcionar experiecircncias uacutenicas de
desenvolvimento ao ser humano experiecircncias que dificilmente ele encontraria em
outros relacionamentos Aleacutem disso o autor tambeacutem considera vital que a psicologia
se ocupe em compreender a relaccedilatildeo conjugal uma vez que noacutes profissionais da
aacuterea conhecemos a importacircncia que esta relaccedilatildeo tem para o desenvolvimento dos
65
cocircnjuges para o desempenho dos papeacuteis parentais e para a estruturaccedilatildeo da
personalidade dos filhos
Em outro artigo Vargas (1989) caracteriza a famiacutelia e o casamento como
instituiccedilotildees quase tatildeo antigas quanto a proacutepria humanidade e discute as razotildees que
tecircm levado a maioria dos homens e mulheres a se casarem e quais as
necessidades humanas que satildeo atendidas pela estrutura familiar e pelo casamento
Para Vargas (1989) o viacutenculo conjugal eacute paradoxal o ser humano necessita do
outro para saber quem eacute pois se isolado perde suas referecircncias e enlouquece Por
outro lado tambeacutem nascemos para nos tornarmos uacutenicos para ser o que somos
independente de qualquer pessoa para a nossa individuaccedilatildeo Para o autor esta
realidade paradoxal do homem se atualiza em qualquer relaccedilatildeo mas ela se faz
particularmente presente dentro de uma relaccedilatildeo conjugal
Na verdade uma vez que o Homem nasce para a individuaccedilatildeo conforme
afirma Vargas (1989) ele buscaraacute consciente ou inconscientemente situaccedilotildees que
lhe propiciem o desenvolvimento que lhe permitam se tornar si mesmo Tal busca
poderaacute levaacute-lo a desenvolver potenciais ainda adormecidos ou a superar obstaacuteculos
que o estejam impedindo de ampliar sua personalidade O autor esclarece que
Eacute dentro desta perspectiva que procuramos entender paixotildees e ligaccedilotildeesaparentemente tatildeo inadequadas e incompreensiacuteveis por todos e agraves vezespelo proacuteprio apaixonado que natildeo se conforma muitas vezes com seussentimentos por pessoa tatildeo ldquocomplicada e inadequadardquo E eacute tantas vezespor este caminho sofrido complicado e irracional que uma personalidadetem melhores possibilidades de se desenvolver (VARGAS 1989 p 103grifo do autor)
Por meio da mesma perspectiva Vargas (1989) procura explicar por qual
motivo a relaccedilatildeo conjugal eacute tatildeo cheia de oposiccedilotildees e por conseguinte tatildeo
complicada Embora potencialmente o viacutenculo conjugal possa proporcionar
bastante desenvolvimento ele tambeacutem pode se tornar uma grave defesa e estagnar
a vida do casal
O autor ressalta que a famiacutelia e o casamento tambeacutem proporcionam vivecircncias
estruturantes para os arqueacutetipos da persona e da sombra Isso se daacute porque vaacuterios
de nossos principais papeacuteis sociais condutas adaptativas e ateacute mesmo
caracteriacutesticas indesejaacuteveis do ego aparecem e satildeo desenvolvidas inicialmente
dentro da famiacutelia e mais tarde dentro do casamento
66
Vargas (1989) comenta que o conceito de transferecircncia como eacute entendido por
Jung acontece em todas as relaccedilotildees humanas e portanto tambeacutem estaacute presente
nas relaccedilotildees familiares e conjugais Para o autor isso estaacute relacionado ao fato de
elas serem bastante capazes de gerar vivecircncias simboacutelicas Ele considera de grande
ajuda para o trabalho cliacutenico refletir e analisar sobre as relaccedilotildees familiares e
conjugais dos pacientes a fim de enfatizar o quanto estas relaccedilotildees transferenciais
satildeo importantes para a nossa individuaccedilatildeo
Em artigo mais recente Vargas (2006) explica que embora o casamento
constitua uma das formas mais frequentes de realizarmos grande parte de nossa
individuaccedilatildeo a decisatildeo de natildeo se casar natildeo prejudica o processo dos que escolhem
continuar solteiros uma vez que a individuaccedilatildeo supotildee que cada pessoa realize seus
potenciais da sua proacutepria maneira aleacutem disso o autor tambeacutem esclarece que o
casamento ainda que represente um campo bastante feacutertil para nossa individuaccedilatildeo
natildeo eacute o uacutenico
Vargas (2006) explica que atualmente o casamento tem se realizado entre
simeacutetricos ou seja entre indiviacuteduos com direitos iguais para tentar realizar seus
sonhos desejos e necessidades Diferente de algum tempo atraacutes tambeacutem segundo
o autor os cocircnjuges tecircm se escolhido mutuamente substituindo os casamentos
arranjados Isso pressupotildee que os cocircnjuges consideram que seratildeo mais completos
juntos No entanto Vargas (2006) tambeacutem esclarece que muitas vezes as escolhas
que julgamos livres e conscientes natildeo satildeo tatildeo livres e conscientes assim podemos
inconscientemente estar em busca de pai e matildee ou seus opostos em nossos
cocircnjuges
Um aspecto importante da relaccedilatildeo conjugal destacado por Vargas (1986) eacute o
fato de as pessoas escolherem companheiras que representem seus opostos ou
seja parceiros que tenham na consciecircncia desenvolvido caracteriacutesticas que o outro
ainda precisa desenvolver Isso aconteceria porque a personalidade busca
desenvolver-se por completo A presenccedila do parceiro deveria estimular este
desenvolvimento e natildeo apenas compensar as caracteriacutesticas que o outro natildeo
desenvolveu ou natildeo integrou De acordo com Vargas (1986) quando isso acontece
ndash quando um compensa as dificuldades do outro ndash aparentemente pode-se ter uma
uniatildeo feliz por algum tempo mas trata-se de uma uniatildeo que natildeo estaacute
67
proporcionando a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges pois natildeo estaacute se exercendo na
alteridade que seria o principal sentido do casamento
Retomando artigo anterior Vargas (1986) comenta no casamento a
necessidade do cocircnjuge para a humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos do animus e da anima
da mesma maneira que na famiacutelia precisamos da matildee e do pai para a
humanizaccedilatildeo dos arqueacutetipos da Grande Matildee e do Pai Assim ele afirma que
Dada a necessidade da figura humana do outro para essas estruturaccedilotildees arelaccedilatildeo conjugal que natildeo estaacute comportando a estruturaccedilatildeo pelo Animus epela Anima dos cocircnjuges fica sujeita a vaacuterias dificuldades entre as quaiscom frequecircncia a diversificaccedilatildeo do parceiro (VARGAS1986 p 120)
O arqueacutetipo quer se manifestar o que pode proporcionar o desenvolvimento da
personalidade e essa expressatildeo pode ser criativa ou defensiva Vargas (1986)
afirma que dentro do casamento o arqueacutetipo tambeacutem pode funcionar de forma
criativa quando leva ao desenvolvimento dos cocircnjuges ou de forma defensiva
quando ambos ficam estagnados ndash o que natildeo significa que natildeo exista potencial
criativo apenas que as defesas estatildeo em accedilatildeo naquele momento Quando o
siacutembolo da paixatildeo se expressa de forma criativa proporciona desenvolvimento e
pode transformar-se num amor criativo que leva o casal ainda que por meio de
confrontos a um crescimento pessoal cada vez maior
Vargas (1986) esclarece que o casamento natildeo precisa ser perfeito e que o
casal natildeo precisa se entender maravilhosamente para proporcionar desenvolvimento
aos cocircnjuges de fato ele afirma que estes casais fantaacutesticos costumam esconder
uma sombra consideraacutevel
Torres (2014) meacutedica psiquiatra discute a forma como a traiccedilatildeo amorosa eacute
tratada na psicologia e representada na arte a autora afirma que sofrer por amor eacute
uma caracteriacutestica humana
Torres (2014) cita os claacutessicos Iliacuteada e Odisseia de Homero porque as duas
histoacuterias podem ser consideradas consequecircncias de uma traiccedilatildeo A Iliacuteada narra o
final da Guerra de Troia que aconteceu depois que Helena fugiu com Paacuteris
enquanto estava casada com Menelau A Odisseia narra a longa viagem de retorno
de Ulisses para casa apoacutes ter passado dez anos lutando em Troia contra sua
vontade o heroacutei ainda passa dez anos tentando voltar para Iacutetaca Durante os vinte
anos de ausecircncia do marido Peneacutelope permaneceu fiel dispensando os vaacuterios
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pretendentes que disputavam sua matildeo mesmo sem ter a menor ideia se Ulisses
voltaria para casa ou natildeo
Para Torres (2014) a traiccedilatildeo eacute um fenocircmeno mais complicado do que um
triacircngulo amoroso eacute a quebra de um compromisso de uma promessa de um pacto
De acordo com a autora eacute preciso saber que pacto estaacute sendo quebrado e se o fato
de este pacto natildeo estar claro fragiliza a relaccedilatildeo
Na opiniatildeo de Torres (2014) natildeo eacute possiacutevel esquecer uma traiccedilatildeo ocorrida
dentro de um relacionamento significativo mas existem outras alternativas ldquoPode-se
compreender uma traiccedilatildeo perdoar uma traiccedilatildeo elaboraacute-la reparaacute-la ressignificaacute-la
transcendecirc-la aprender com ela dentro ou fora de sua continuidaderdquo (TORRES
2014 p 59)
Para a autora quem perdoa uma traiccedilatildeo natildeo eacute generoso apenas com o outro
mas tambeacutem consigo mesmo e com a proacutepria relaccedilatildeo A autora questiona a
possibilidade de um relacionamento longo e significativo que natildeo requeira
eventualmente perdatildeo por algum evento mais complicado Para ela se existe algo
em comum no amor eacute a impossibilidade do humano de prever o futuro
Torres (2014) tambeacutem nos induz a refletir sobre trairmos a noacutes mesmos ao
nosso processo de individuaccedilatildeo Ela diz
Nesse sentido cabe a pergunta o que podemos nos prometer em termosde fidelidade ao nosso processo de individuaccedilatildeo Como manter dentro deuma relaccedilatildeo estaacutevel ou de casamento a fidelidade ao parceiro e a noacutesmesmos concomitantemente Eacute certamente um desafio (TORRES 2014p 61 grifo do autor)
Assim apesar de todas as dificuldades Torres (2014) conclui que aprender a
ser fiel consigo mesmo e com o outro pode ser mais importante do que esquecer
uma traiccedilatildeo ocorrida dentro de um relacionamento amoroso
Jorge (2015) explica que tambeacutem acontece uma traiccedilatildeo quando a pessoa fica
constantemente negando os proacuteprios desejos deixando tudo que considera
improacuteprio a respeito de si no inconsciente Nessas situaccedilotildees as potencialidades da
pessoa tambeacutem permaneceratildeo veladas e seus conteuacutedos sombrios estaratildeo o
tempo inteiro prontos para atuar ou serem projetados nos outros
As traiccedilotildees citadas pela autora ateacute agora satildeo consideradas traiccedilotildees a si
mesmo mas ela destaca que a traiccedilatildeo ao outro eacute mais conhecida e pode acontecer
em diferentes relaccedilotildees como nas de amizade familiares de trabalho ou amorosas
69
Assim Jorge (2015) nos apresenta uma reflexatildeo acerca do impacto causado pela
traiccedilatildeo nos relacionamentos amorosos sobre a psique do casal e sobre o papel dos
arqueacutetipos anima e animus nestas situaccedilotildees
De acordo com a autora as traiccedilotildees apesar de acarretarem sofrimento
tambeacutem podem proporcionar desenvolvimento psiacutequico para os envolvidos pois
expotildee que jaacute estava acontecendo uma traiccedilatildeo que algo estava sendo negligenciado
e precisa de cuidados para que haja ampliaccedilatildeo de consciecircncia Assim quando uma
pessoa traiacute ou eacute traiacuteda (concretamente) ela tem a oportunidade de ficar atenta a
essa situaccedilatildeo e se comprometer mais profundamente com objetivos que natildeo satildeo tatildeo
oacutebvios nem tatildeo imediatos
A respeito do apaixonar-se Jorge (2015) afirma que
Quando a mulhero homem projeta seu animussua anima no outro ele oavecirc de uma maneira idealizada portanto diferente do que eleela de fato eacute Apessoa apaixonada fica fascinada pela outra na medida em que seusconteuacutedos inconscientes satildeo projetados nela mas de fato ela estaacutefascinada por seus conteuacutedos internos espelhados no outro (hellip) E pareceque o animus e a anima desejam exatamente isso chamar a atenccedilatildeo paraserem vistos (JORGE 2015 p33)
Por esses motivos a autora diz que os relacionamentos amorosos satildeo capazes
de ativar aspectos internos importantes e desconhecidos e eacute isso que pode
proporcionar o desenvolvimento do casal No iniacutecio do relacionamento eacute comum
que a projeccedilatildeo de anima e animus seja maciccedila mas conforme os parceiros forem se
conhecendo melhor e forem retirando suas respectivas projeccedilotildees e integrando-as
eacute possiacutevel alcanccedilar o que Jung chamou de relacionamento psicoloacutegico Neste tipo
de relacionamento os dois parceiros tecircm uma consciecircncia mais ampla de seus
complexos e tambeacutem tecircm mais disponibilidade e coragem de refletir sobre e de
honrar o relacionamento que estatildeo compartilhando No entanto enquanto os
parceiros permanecerem inconscientes de suas respectivas projeccedilotildees elas
continuaratildeo causando dificuldades ao relacionamento
Jorge (2015) afirma que o desenvolvimento psiacutequico depende de o indiviacuteduo se
responsabilizar pelo proacuteprio processo de desenvolvimento ser fiel agraves proacuteprias leis
caso contraacuterio estaraacute traindo a si mesmo A autora acrescenta que enquanto o
indiviacuteduo natildeo reconhecer esta traiccedilatildeo tende a encontrar situaccedilotildees de traiccedilatildeo ao seu
redor traindo ou sendo traiacutedo
70
Jorge (2015) explica que quando o ego estaacute estagnado a psique pode utilizar-
se do interesse por um terceiro para chamar atenccedilatildeo para si Desta forma o terceiro
entra no relacionamento para representar algo que o indiviacuteduo ainda natildeo conseguiu
perceber em si mesmo por meio da relaccedilatildeo com seu atual parceiro Entatildeo
A energia que antes estava aprisionada no indiviacuteduo na vivecircncia de umrelacionamento de lsquotraiccedilatildeo a si mesmorsquo poderaacute ser canalizada para aseduccedilatildeo por um terceiro elemento na relaccedilatildeo e a lsquotraiccedilatildeo ao parceirorsquopoderaacute ocorrer como tentativa de tirar o indiviacuteduo de uma vivecircncia deunilateralidade (JORGE 2015 p 35)
A autora afirma que a traiccedilatildeo acontece porque a alma sofre por natildeo perceber
que estaacute se traindo e entatildeo a pessoa trai o parceiro No entanto Jorge (2015)
destaca que ainda que uma traiccedilatildeo cause sofrimento por meio desta vivecircncia eacute
possiacutevel perceber uma seacuterie de aspectos de modo que eacute possiacutevel trair a fim de ser
fiel a si mesmo
De acordo com a autora a traiccedilatildeo pode ser literal ou simboacutelica Quando
simboacutelica eacute vivenciada somente no acircmbito da fantasia e eacute ldquo(hellip) como se a pessoa
estivesse se relacionando com umuma amante fantasma que na verdade eacute seu
animusanima projetado (a)rdquo (JORGE 2015 p 35) Este tipo de traiccedilatildeo afirma a
autora eacute favoraacutevel ao desenvolvimento psiacutequico do traidor
Jaacute a traiccedilatildeo literal segundo Jorge (2015) envolve o casal e pode resultar na
separaccedilatildeo Se o casal decidir continuar junto precisaraacute avaliar o porquecirc e para quecirc
da traiccedilatildeo e tambeacutem seraacute necessaacuterio bastante esforccedilo das duas partes para se
tentar obter um relacionamento psicoloacutegico
De qualquer forma Jorge (2015) considera a traiccedilatildeo um convite para que o
indiviacuteduo recupere sua alma e se torne algueacutem mais pleno Para a autora a traiccedilatildeo
pode ser um evento estruturante que permitiraacute que os indiviacuteduos envolvidos por
meio da reflexatildeo e da elaboraccedilatildeo possam entender melhor o significado da vida e
possam se encontrar consigo mesmos tornando-se capazes de viverem
relacionamentos psicoloacutegicos verdadeiros
71
6 MITOLOGIA E PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
A palavra mito designa uma metaacutefora portanto uma visatildeo parcial algo que ao
mesmo tempo revela o misteacuterio e a essecircncia de um fenocircmeno (HOLLIS 2005)
Para Hollis (2005) os mitos correspondem ao ldquoconstructo psicoloacutegico e cultural mais
importante de nosso tempordquo (HOLLIS 2005 p 10) jaacute que em nossa cultura muito
apegada ao material o mito permite um tipo de equiliacutebrio entre espiacuterito e mateacuteria e
em uacuteltima instacircncia o equiliacutebrio com o transcendente
Como uma maneira primordial de explicar o homem o mundo e o universo os
mitos sempre estiveram presentes em todas as culturas e em todas as eacutepocas
Trata-se sempre de uma explicaccedilatildeo alegoacuterica aloacutegica de um fenocircmeno de modo
que podemos concluir que os mitos satildeo originados no inconsciente Quando os
temas miacuteticos satildeo compreendidos como uma forma de o inconsciente se expressar
fica faacutecil entender a repeticcedilatildeo constante de tais temas em diferentes eacutepocas e
culturas Quando temos uma compreensatildeo simboacutelica do mito conseguimos
perceber as divindades e as demais personagens do mito simbolicamente ou seja
como realidades arquetiacutepicas como estruturas psiacutequicas No trabalho cliacutenico
costuma-se utilizar a amplificaccedilatildeo simboacutelica no trabalho com sonhos associaccedilotildees
livres e fantasias por exemplo (ALVARENGA 2010a)
Se de acordo com Alvarenga (2010a) e seus diversos colaboradores
entendermos os mitos como ldquotraduccedilatildeo de expressotildees de caminhos arquetiacutepicos de
humanizaccedilatildeo ocorridos nos processos de individuaccedilatildeordquo (ALVARENGA 2010a p
15) a psique de todos os homens estariam sujeitas agraves atuaccedilotildees de tais estruturas
Ainda de acordo com a autora se analisarmos simbolicamente os mitos podemos
entendecirc-los como estruturas arquetiacutepicas presentes na psique de todos noacutes
Para Boechat (2009) a psique eacute naturalmente capaz de produzir imagens
mitoloacutegicas arquetiacutepicas Assim mitos contos de fada sonhos e fantasias tecircm a
mesma procedecircncia o inconsciente A funccedilatildeo dos mitos sempre foi a de responder
simbolicamente agraves questotildees da alma ndash e esta funccedilatildeo se manteacutem nos dias de hoje
mesmo em nossa sociedade tecnoloacutegica A ausecircncia de mitos e ritos em nossa
cultura de acordo com o autor tem gerado efeitos destrutivos Neste contexto ldquoo
ritual da anaacutelise visa a colocar o indiviacuteduo em contato mais iacutentimo com suas proacuteprias
transiccedilotildees de vida para que consiga caminhar de forma mais consciente por suas
72
passagens iniciaisrdquo (BOECHAT 2009 p 20) Assim o mito natildeo eacute apenas uma
estoacuteria mas um poderoso catalisador de mudanccedilas individuais e coletivas
Na praacutetica cliacutenica uma vez que a energia psiacutequica se movimenta atraveacutes da
associaccedilatildeo de imagens mitoloacutegicas ao detectarmos a imagem predominante no
quadro cliacutenico do paciente podemos ter uma noccedilatildeo da evoluccedilatildeo e do prognoacutestico do
caso este eacute o processo de amplificaccedilatildeo simboacutelica meacutetodo terapecircutico original
utilizado pelos psicoacutelogos junguianos O meacutetodo de amplificaccedilatildeo foi criado por Jung
como teacutecnica de emprego da mitologia (BOECHAT 2009)
Boechat explicita a importacircncia do mitologema para o desenvolvimento do
conceito de inconsciente coletivo
() mitologema isto eacute um nuacutecleo essencial do mito que se repete nos maisdiversos mitos e nas mais diversas culturas O conceito de mitologema eacuteimportantiacutessimo na construccedilatildeo teoacuterica da psicologia analiacutetica Foi pelapercepccedilatildeo dos mitologemas presentes nas produccedilotildees delirantes depsicoacuteticos nos sonhos e fantasias de todas as pessoas que Jung pocircdeformular a conceituaccedilatildeo de inconsciente coletivo (BOECHAT 2009 p24)
De acordo com Hollis (2005) qualquer indiviacuteduo pode a qualquer momento
ficar preso num mitologema especiacutefico Isso agraves vezes pode durar uma vida inteira
e de forma silenciosa pode influenciar a forma como conduzimos nossa vida
Podemos natildeo estar conscientes de nossa sabedoria instintiva poreacutem no
inconsciente esta sabedoria continua a atuar e quando impedida de se expressar
se manifestaraacute de forma patoloacutegica O autor coloca que ajudar o paciente a atingir a
maturidade e o discernimento dos mitos pessoais eacute o principal trabalho do processo
psicoterapecircutico uma vez que eacute isso que permite que o indiviacuteduo realmente
conduza sua vida porque entatildeo seraacute capaz de fazer escolhas
ldquoPortanto a mitologia continua presente eacute sempre essencial eacute sempre uma
expressatildeo baacutesica da alma humanardquo (BOECHAT 2009 p 14) Assim a interpretaccedilatildeo
de um mito ou conto de fada equivale ao ldquotrabalho de traduzir a histoacuteria amplificada
para a linguagem psicoloacutegicardquo (VON FRANZ 2008a p 54) e eacute por isso que o
estudo mitoloacutegico se faz tatildeo importante para a psicologia analiacutetica
Alvarenga e Lima (2006) nos explicam que ao abordarmos um mito ou um
deus especiacutefico natildeo estamos tratando de algo estaacutetico determinado uma vez que
um mito eacute composto por vaacuterios mitologemas de modo que pode se resolver de
vaacuterias formas Para os autores os deuses vatildeo se constituindo a partir de seus
73
relacionamentos suas vivecircncias e suas dificuldades Assim conforme as divindades
vatildeo adquirindo novos atributos e vatildeo interagindo entre si aumentam as
possibilidades de comeccedilos meios e fins para o mesmo mito Os caminhos seguidos
pelas divindades em seus mitos satildeo caminhos possiacuteveis de humanizaccedilatildeo para
aquele arqueacutetipo Os autores ressaltam
Os sonhos como nossas atitudes ou os padrotildees de nossosrelacionamentos satildeo ou podem ser considerados expressotildees de realidadesarquetiacutepicas que seguiram caminhos de humanizaccedilatildeo Essas realidadespodem ser vistas muitas vezes como recortes de um mito (ALVARENGA eLIMA 2006 p 50)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam que quando nossos sonhos ou pensamentos
trazem recortes miacuteticos ou seja quando revelam extratos da vida dos deuses faz
sentido pensar que o sonhopensamento terminaraacute da mesma forma que o mito caso
siga o rumo indicado pela histoacuteria Para que isso aconteccedila poreacutem o indiviacuteduo
precisa conhecer e elaborar os siacutembolos do mito Isso nos permitiria evitar ou
transformar um final traacutegico para uma determinada situaccedilatildeo caso identificaacutessemos o
mitologema de antematildeo e conhececircssemos seu final
Para os autores se a atividade psiacutequica atual (oniacuterica ou natildeo) conteacutem o futuro
podemos entendecirc-la como uma atualizaccedilatildeo dos futuros previamente anunciados
Isso pode nos ajudar no trabalho cliacutenico se utilizarmos esse pressuposto como
ferramenta objetiva para analisarmos o processo de individuaccedilatildeo em construccedilatildeo de
nossos pacientes Os autores consideram a amplificaccedilatildeo miacutetica desse material
analiacutetico fundamental uma vez que ele nos indica futuros possiacuteveis e a reflexatildeo a
respeito dele nos permitiraacute obter um maior controle dos acontecimentos Desta
forma ldquoConhecendo o mito e seus desdobramentos torna-se possiacutevel antever
futuros anunciados que poderatildeo ou natildeo vir a ser realidadesrdquo (ALVARENGA e
LIMA 2006 p 56)
Alvarenga e Lima (2006) afirmam ser indispensaacutevel para o trabalho cliacutenico
conhecer a estrutura miacutetica do paciente Utilizando as referecircncias de Myers e Myers
os autores explicam que eacute possiacutevel estabelecer relaccedilotildees bastante relevantes entre o
paciente e o mito tanto sobre seu jeito mais ou menos extrovertido de ser quanto
sobre seu jeito de se relacionar ndash se eacute mais perceptivo ou mais julgador ndash e que isso
nos forneceraacute referecircncias para determinar suas regecircncias divinas Os autores
consideram possiacutevel estabelecer as mesmas relaccedilotildees ao observar como a pessoa
74
se comporta como um todo ou seja em relaccedilatildeo agraves funccedilotildees da consciecircncia agraves
estruturas aniacutemicas agraves defesas aos complexos e agrave sombra Portanto ao
estabelecer correlaccedilotildees entre o paciente e o mito determinando suas regecircncias
divinas fica mais claro ldquoo que cada ser humano precisa ter de complementaccedilatildeo
arquetiacutepica para que o processo de individuaccedilatildeo se apresente expressando-se pela
harmonia do conjuntordquo (ALVARENGA e LIMA 2006 p54)
Os autores afirmam que quando adquirimos consciecircncia de sermos o
heroacuteiheroiacutena de nosso proacuteprio processo de individuaccedilatildeo que eacute algo essencialmente
humano natildeo soacute estamos seguindo algo predeterminado mas tambeacutem estamos
adquirindo consciecircncia de que como humanos nascemos para ser Isso eacute assim
porque quando nos damos conta de todos os possiacuteveis futuros anunciados em que
podemos nos transformar imediatamente nos tornamos responsaacuteveis pelo que
escolhemos ser a partir de entatildeo
De acordo com Alvarenga (2012) eacute possiacutevel perceber no mito a transformaccedilatildeo
da personalidade dos deuses ndash apesar de a narrativa mitoloacutegica natildeo ser loacutegica nem
seguir uma sequecircncia temporal Como exemplo ela cita a deusa Atenaacute que soacute
passa a ser considerada deusa da justiccedila e da sabedoria depois de integrar a
cabeccedila de Medusa (castigada pela proacutepria Atenaacute) em seu peitoescudo ndash
simbolicamente isso representaria a integraccedilatildeo da sombra
Ao abordar os mitos em outro artigo Alvarenga (2010b) afirma que
A mitologia grega comporta um acervo de relatos sobre afetos violentosencontros e desencontros amorosos entre deuses e deusas heroacuteis eheroiacutenas homens e mulheres sempre permeados com a marca dosarroubos apaixonados Essas histoacuterias revelam-se como fonte de sabedoriae ensinamento pois mais do que histoacuterias satildeo momentos miacuteticostradutores de realidades estruturantes da psique (ALVARENGA 2010b p17)
Para Jung (2011 [1939]) quando natildeo se trata de casos patoloacutegicos estas
figuras arquetiacutepicas surgem na consciecircncia de forma autocircnoma e eacute possiacutevel
perceber uma relaccedilatildeo direta entre estas personalidades e a mitologia quando se
estuda sonhos e fantasias por exemplo O autor explica que a presenccedila destas
entidades na consciecircncia pode ser incocircmoda pois elas nem sempre compartilham da
nossa forma de pensar da nossa eacutetica pois tecircm caracteriacutesticas de personalidades
fragmentaacuterias
75
Quando Jung (2011 [1928]) se refere a estes conteuacutedos como divinos ou
demoniacuteacos estaacute fazendo alusatildeo ao seu caraacuteter independente e autocircnomo agrave sua
capacidade de se sobrepor agrave nossa vontade consciente e de influenciar nossas
atitudes
Nesse sentido Stein (2007) explica o que quer dizer ter um deus por traacutes de
um padratildeo de comportamento ou de uma reaccedilatildeo resumidamente significa que a
dinacircmica psicoloacutegica que deu origem agrave imagem daquela divindade ainda afeta a
nossa consciecircncia embora natildeo mais em termos de feacute religiosa tal dinacircmica ou
energia continua a nos afetar por meio de sintomas doenccedilas e psicopatologias Por
isso o autor considera que ldquo(hellip) o insight e a terapia aumentariam bastante se
soubeacutessemos a correspondecircncia entre os padrotildees miacuteticos e os sintomas
psicopatoloacutegicos Isto deveria oferecer pistas essenciais para a descoberta do que
tais distuacuterbios significam (STEIN 2007 p 78)
Para o autor quando estes arqueacutetipos satildeo negligenciados passam a se
manifestar na forma de sintomas psicopatoloacutegicos de modo para que curar a
doenccedila eacute preciso descobrir qual arqueacutetipo foi negligenciado e reverenciaacute-lo Se
soubermos interpretar os sintomas teremos dicas de quais aspectos foram
reprimidos e negligenciados ao longo de nosso desenvolvimento
A fim de descobrir qual arqueacutetipo se encontra por traacutes do sintoma o terapeuta
precisaraacute utilizar o meacutetodo da amplificaccedilatildeo e portanto deveraacute estar familiarizado
com a mitologia por exemplo No trato com o paciente o terapeuta pode deixar
impliacutecito que os sintomas que estatildeo surgindo satildeo tentativas da psique de curar a si
mesma visando atingir a proacutepria totalidade de modo que estas imagens estatildeo
sendo geradas a serviccedilo da individuaccedilatildeo Quando o sintoma eacute interpretado como um
arqueacutetipodeus que pede a atenccedilatildeo e o respeito da alma esta atitude adquire
caraacuteter religioso Desta forma ao utilizar este meacutetodo o terapeuta tentaraacute entender
fenocircmenos como por que a psique estaacute agindo desta forma Qual unilateralidade
da consciecircncia estaacute tentando ser compensada por meio disso
Refletir sobre a presenccedila dos deuses em nossos sintomas e patologias nos
leva a considerar a psicologia e a accedilatildeo dos arqueacutetipos e a tentar entender como eles
influenciam nossas dinacircmicas e comportamentos psicoloacutegicos e patoloacutegicos Natildeo
temos como compreender os sintomas dos pacientes e seus sofrimentos se natildeo
conhecermos antes os arqueacutetipos que atuam de fundo De acordo com Stein
76
(2007) estas reflexotildees tambeacutem nos ajudam a entender por que os conteuacutedos
sombrios voltam agrave consciecircncia na meia-idade especialmente durante o periacuteodo
liminar Acontece que recuperar os mortos eacute crucial para que se consiga entrar e
atravessar o liminar por isso quando o inconsciente emerge no meio da vida o que
vem com mais forccedila satildeo os aspectos que natildeo foram desenvolvidos ou que foram
rejeitados anteriormente A vida e o futuro dependem demais destes aspectos que
foram negligenciados e que agora exigem atenccedilatildeo
Para o autor mitos e sonhos nos fornecem uma espeacutecie de fotografia da
psique de modo que ele considera mais interessante utilizar a mitologia e as
religiotildees do que os ritos de passagem em seu estudo sobre o meio da vida
Em termos do estudo do meio da vida Stein (2007) considera Hermes o deus
mais intimamente relacionado agraves questotildees que se desenrolam neste periacuteodo uma
vez que o meio da vida constitui uma experiecircncia de transiccedilatildeo e Hermes eacute o deus
das fronteiras e dos viajantes eacute o deus mensageiro e condutor de almas e na
alquimia eacute o mestre das transformaccedilotildees As mensagens de Hermes satildeo reveladas
no limiar domiacutenio do deus e sempre de forma surpreendente como tudo que eacute
relacionado a ele
Hermes pode aparecer em limiares maiores ou menores estas situaccedilotildees de
acordo com o autor representam a amplitude da transformaccedilatildeo de personalidade
sofrida Ele afirma que transformaccedilotildees menores acontecem o tempo todo atraveacutes
das compensaccedilotildees que o inconsciente faz embora sejam eventos breves
acontecem no limiar Jaacute as transformaccedilotildees maiores que envolvem mudanccedilas de
tipologia e de auto-organizaccedilatildeo podem levar anos pois trata-se da transformaccedilatildeo da
personalidade
Embora a presenccedila do deus Hermes represente um ganho imediato tambeacutem
confere ao evento um ar sobrenatural e amedrontador As manifestaccedilotildees do deus
costumam acontecer agrave noite na escuridatildeo e ele sempre chega de forma suave e
misteriosa pois representa o que eacute sincroniacutestico
O autor tambeacutem descreve a consciecircncia de Hermes (ou consciecircncia
hermeacutetica) eacute aquela que fica muito confortaacutevel com a ambiguidade e com a
ausecircncia de limites bem estabelecidos tanto no tempo quanto no espaccedilo daiacute sua
afinidade com a noite Assim a noite eacute um siacutembolo significativo do limiar aleacutem de
estar relacionada a Hermes por ser o contexto no qual ele costuma surgir
77
Cada arqueacutetipo atua na consciecircncia de uma forma diferente No caso de
Hermes ele se utiliza da habilidade de enganar e iludir sendo capaz tanto de
adormecer quanto de despertar as defesas do indiviacuteduo Por ser o guia de almas eacute
ele quem ajuda a consciecircncia a enfrentar e a lidar com a transformaccedilatildeo que precisa
ser assimilada O autor explica que se o passado natildeo for trabalhado no inconsciente
ele permanece escondido influenciando sutil e indiretamente o comportamento do
indiviacuteduo pois natildeo foi definitivamente enterrado
O autor discute um meacutetodo hermeacutetico na terapia que estaria mais alinhado
com a dinacircmica da experiecircncia liminar Tal meacutetodo consistiria em saber trabalhar
habilidosamente como Hermes insights imediatos pensamentos roubados e
qualquer outro achado casual que vier parar em nossas matildeos Hermes eacute um deus
irocircnico e praacutetico objetivo que natildeo se deixa impressionar por possibilidades
chocantes nem muito menos se deixa refrear por elas estas tambeacutem satildeo
caracteriacutesticas da atmosfera liminar Para Stein (2007)
Hermes a figura liminar por excelecircncia pois corresponde ao potencialliminar de cada um de noacutes nos daacute a capacidade de ver atraveacutes depretensotildees e fachadas uma vez que ele mesmo eacute tatildeo despretensioso edesligado da persona e das aparecircncias (STEIN 2007 p 69)
Hermes transpotildee aparecircncias e posiccedilotildees fixas porque natildeo se liga agrave persona e eacute
por isso tambeacutem que tem grande capacidade para inovaccedilotildees e transformaccedilotildees
Aleacutem da ampla imaginaccedilatildeo o deus tambeacutem dispotildee de energia suficiente para
concretizar ideias que natildeo seriam possiacuteveis para uma pessoa coletivizada Por isso
quando utilizamos o meacutetodo hermeacutetico a fim de encontrarmos uma diretriz para lidar
com a transiccedilatildeo liminar do meio da vida precisamos olhar para os pensamentos e
para as imagens que forem surgindo com a mesma postura luacutedica e natildeo sentimental
de Hermes para que possamos perceber um final menos ortodoxo
O autor explica que embora Hermes tenha uma relaccedilatildeo direta com o impulso
e isso possa fazer parecer paradoxal entendecirc-lo como um protetor contra as
reviravoltas do inconsciente durante a meia-idade eacute exatamente esta caracteriacutestica
do deus que vai nos servir de proteccedilatildeo pois numa fase em que os conteuacutedos
inconscientes se encontram mais na superfiacutecie e os impulsos mais fortes a melhor
forma de lidar com estes fatores eacute adotando uma postura mais espontacircnea diante
disso tudo Umas das questotildees principais aqui discutidas eacute que a natureza pode
78
curar a si mesma ndash ou seja todo o caos do meio da vida pode ser uma tentativa da
psique de se curar ou se tornar mais integrada consigo mesma
Stein (2007) destaca o aspecto de amigo e companheiro da humanidade do
deus Hermes Por isso Hermes eacute tatildeo importante principalmente na crise de meia-
idade ele nos ajuda a adquirir uma atitude religiosa de consciecircncia contiacutenua que soacute
eacute possiacutevel neste periacuteodo apoacutes esta crise
Se por um lado a comunidade pode ser vista como uma manifestaccedilatildeo de
Hermes a lua de mel entre dois amantes tambeacutem pode ser entendida como uma
experiecircncia hermeacutetica A lua de mel constitui uma experiecircncia liminar de status social
pois acontece no domiacutenio psicoloacutegico dos receacutem-casados abarcando
transformaccedilotildees emocionais ou de comportamento (companheirismo e intimidade) e
ambas envolvem Hermes De qualquer forma a viagem hermeacutetica pode ser descrita
pela ambiguidade e pela imprevisibilidade Assim ela pode nos dar a impressatildeo de
que ldquo(hellip) estamos sendo levados para casa quando na verdade estamos apenas
sendo levados para um passeiordquo (STEIN 2007 p 150) Neste sentido a lua de mel
natildeo eacute apenas uma viagem mas uma jornada pois os envolvidos encontram-se em
periacuteodos liminares como Ulisses na Odisseia
O autor discute que uma vez que Hermes estaraacute presente no reino do limiar
psicoloacutegico quando laacute chegarmos resta saber como ele se apresentaraacute a cada um
de noacutes No caso de Priacuteamo a chegada do deus o fez tremer De acordo com Stein
(2007) a presenccedila de Hermes
(hellip) evoca uma reaccedilatildeo maacutegica como se aquela figura encantadorasimbolizasse algo maior do que sua mera presenccedila Aqui os dois vetores seencontram um representando a intencionalidade do Eu e o outrorepresentando uma fonte de intenccedilatildeo no reino do arqueacutetipo E elesconvergem num modelo de sincronia Trata-se de um momento que conteacutemuma sorte inesperada (STEIN 2007 p 31)
Stein (2007) se utiliza do meacutetodo de amplificaccedilatildeo de Jung para refletir sobre o
que acontece na meia-idade O objetivo da amplificaccedilatildeo natildeo eacute simplesmente fazer
comparaccedilotildees entre diferentes materiais mas evidenciar o significado inconsciente
existente entre eles e o arqueacutetipo comum a todos Neste livro por exemplo para
abordar a transiccedilatildeo do meio da vida o autor mescla mitologia com ecircnfase no deus
Hermes estudos sobre ritos de iniciaccedilatildeo e ritos de passagem estudos socioloacutegicos
sobre a experiecircncia da meia-idade na sociedade contemporacircnea e sua proacutepria
79
experiecircncia como analista Estes diferentes materiais se relacionam porque em
cada um deles o autor ressaltou o fenocircmeno da transiccedilatildeo psicoloacutegica que eacute uma
experiecircncia comum a toda a humanidade independente de sexo idade ou cultura
Ao localizar o arqueacutetipo comum a todos estes materiais a amplificaccedilatildeo busca
examinaacute-lo da melhor maneira possiacutevel e explicar um padratildeo de funcionamento
psicoloacutegico O meacutetodo da amplificaccedilatildeo utiliza o mito de forma diferente de
socioacutelogos antropoacutelogos e mitoacutelogos por exemplo aqui o objetivo do estudo da
mitologia eacute evidenciar padrotildees psicoloacutegicos e explicar o significado de episoacutedios ou
acontecimentos contemporacircneos partindo da premissa de que os arqueacutetipos que
respaldavam a psique dos povos primitivos satildeo os mesmos que respaldam a nossa
atualmente a diferenccedila eacute que tais padrotildees psicoloacutegicos eram expressos por eles
atraveacutes de mitos
61 O MITO DO HEROacuteI DENTRO DA PSICOLOGIA ANALIacuteTICA
Henderson (2008) consoante Von Franz (2008) explica a importacircncia do
analista na observaccedilatildeo de uma seacuterie de sonhos pois embora o indiviacuteduo possa
julgar seus sonhos espontacircneos e desconexos ao observaacute-los em sequecircncia o
analista conseguiraacute perceber uma estrutura significativa nestas imagens oniacutericas
Tendo entendido o sentido de seus sonhos o paciente pode adotar uma nova
postura na vida O autor comenta que alguns siacutembolos presentes em nossos sonhos
satildeo tatildeo antigos que natildeo conseguimos reconhececirc-los e portanto compreendecirc-los eacute
que eles decorrem do que Jung chamou de inconsciente coletivo
Aqui o analista pode ajudar o paciente a lidar com a sobrecarga de siacutembolos
que tecircm surgido nos sonhos tanto com os (siacutembolos) que jaacute se tornaram
inadequados para aquele indiviacuteduo quanto com aqueles que ainda natildeo tiveram sua
essecircncia decifrada
No entanto Henderson (2008) pontua que antes de o analista sair explorando
os significados dos siacutembolos oniacutericos com seus pacientes ele precisa estudar suas
origens e significados daiacute a importacircncia de conhecer diferentes mitologias por
exemplo este conhecimento nos permitiraacute entender as analogias entre histoacuterias
seculares e agraves vezes ateacute milenares e os sonhos das pessoas Aleacutem disso para o
autor o estudo detalhado do simbolismo e da funccedilatildeo por ele desempenhada em
diferentes culturas torna mais claro o propoacutesito da psique ao recriar estes siacutembolos
80
Para Henderson (2008) estas analogias natildeo satildeo acidentais e acontecem porque a
mente humana conserva a faculdade de produzir siacutembolos e de se expressar por
meio deles de fato a atividade simboacutelica eacute vital para a psique do homem e dela
depende toda mudanccedila de atitude nossa pois trata-se do nosso meio de
comunicaccedilatildeo com o inconsciente
Para o autor portanto o elo entre os mitos primitivos e os siacutembolos psiacutequicos eacute
fundamental para a atividade do analista pois o ajuda a contextualizar-se tanto
historicamente quanto em relaccedilatildeo agrave perspectiva do paciente O mito mais comum e
mais conhecido no mundo eacute o mito do heroacutei Ele eacute encontrado desde a mitologia
claacutessica grega ateacute manifestaccedilotildees culturais contemporacircneas9 E como natildeo poderia
ser diferente tambeacutem aparece em nossos sonhos Henderson afirma que o mito do
heroacutei
Tem um flagrante poder de seduccedilatildeo dramaacutetica e apesar de menosaparente uma importacircncia psicoloacutegica profunda Satildeo mitos que variammuito nos seus detalhes mas quanto mais os examinamos maispercebemos quanto se assemelham estruturalmente Isso quer dizer queguardam uma forma universal mesmo quando desenvolvido por grupos ouindiviacuteduos sem qualquer contato cultural entre si (hellip) Ouvimosrepetidamente a mesma histoacuteria do heroacutei de nascimento humilde masmilagroso provas de sua forccedila sobre-humana precoce sua ascensatildeo raacutepidaao poder e agrave notoriedade sua luta triunfante contra as forccedilas do mal suafalibilidade ante a tentaccedilatildeo do orgulho (hybris) e seu decliacutenio por motivo detraiccedilatildeo ou por um ato de sacrifiacutecio ldquoheroicordquo no qual sempre morre(HENDERSON 2008 p142 grifo do autor)
O autor destaca outra qualidade significativa do mito do heroacutei que nos ajuda a
compreendecirc-lo em diversas versotildees uma falha inicial do heroacutei eacute compensada pela
tutela de figuras poderosas que lhe possibilitam empreender tarefas sobre-humanas
impossiacuteveis de realizar sozinho Tais figuras poderosas divinas satildeo representaccedilotildees
simboacutelicas do Self a psique total e centro da psique que fornece ao ego a forccedila de
que ele precisa A funccedilatildeo especiacutefica destas personagens nos remete agrave funccedilatildeo
principal do mito do heroacutei que eacute a de ajudar o indiviacuteduo a desenvolver a consciecircncia
egoica ou seja tornar-se consciente do que ele consegue e do que ele natildeo
consegue fazer ficando preparado para as tarefas decretadas pela vida Depois que
o indiviacuteduo passa por esse teste inicial e atinge a maturidade o mito de heroacutei deixa
de ter importacircncia Podemos dizer que a morte do heroacutei no mito representa
simbolicamente a aquisiccedilatildeo dessa maturidade
9 Podemos ver o mito do heroacutei representado em livros filmes e seacuteries de sucesso tais comoVingadores Harry Potter O Senhor dos Aneacuteis Star Wars e a seacuterie Grimm ndash Contos de Terror
81
Henderson (2008) ressalta que embora ateacute entatildeo tenha tratado do mito do
heroacutei como um todo (ou seja envolvendo todos os detalhes do nascimento ateacute a
morte do heroacutei) tambeacutem eacute importante reconhecer e distinguir cada fase deste mito
pois elas representam tarefas diferentes para o heroacutei e ldquo(hellip) se aplicam a
determinado ponto alcanccedilado pelo indiviacuteduo no desenvolvimento da sua consciecircncia
do ego e tambeacutem aos problemas especiacuteficos com que ele se defronta a um dado
momentordquo (HENDERSON 2008 p 144) Ou seja aqui o autor explica que no mito
o heroacutei tambeacutem se desenvolve a fim de poder representar diferentes estaacutegios da
consciecircncia do homem
Para ilustrar a importacircncia de conhecer diferentes simbolismos e seus
respectivos valores culturais o autor comenta o sonho de um paciente de meia-
idade Ele afirma que sem o conhecimento da mitologia natildeo conseguiria ter
ajudado o paciente a fazer algo de uacutetil com as imagens deste sonho ldquoEsse homem
sonhou que estava em um teatro e que era lsquoum importante espectador de opiniatildeo
muito acatadarsquo Na peccedila representava-se uma cena em que havia um macaco
branco sobre um pedestal cercado de homensrdquo (HENDERSON 2008 p 148)
Um sonho assim deve ser interpretado com cuidado eacute preciso pensar tanto
nos encadeamentos simboacutelicos quanto na vida do sonhador O que o autor conta
sobre o momento de vida do paciente eacute que ele agrave eacutepoca do sonho fisicamente
alcanccedilara a maturidade Era bem-sucedido no trabalho e parecia exercer bem seus
papeacuteis de marido e de pai Mas psicologicamente ainda era um adolescente As
imagens do sonho o impactaram fortemente apesar de natildeo terem nenhuma relaccedilatildeo
com seu dia a dia consciente Aqui Henderson (2008) explica que podemos unir as
imagens arquetiacutepicas do heroacutei agrave experiecircncia particular do sonhador a fim de apurar o
quanto tecircm em comum Por exemplo o autor entendeu o macaco do sonho como
uma representaccedilatildeo simboacutelica do trickster10
Em psicologia analiacutetica o conceito de sombra ocupa um lugar de destaque
pois por meio dela o ego projeta aspectos reprimidos ou ocultos de sua
personalidade nos outros No entanto oculto e reprimido natildeo satildeo sinocircnimos de
negativo e prejudicial de fato o proacuteprio ego possui caracteriacutesticas que natildeo
10 Jung (2011 [1939]) define o trickster como uma figura arquetiacutepica que eacute ao mesmo tempoastuciosa e travessa divertida e maldosa O trickster tambeacutem representa a sombra coletiva e daacutemovimento a tudo que estaacute estagnado levando luz agraves trevas e escuridatildeo agrave clareza Essa figura eacutepersonificada na mitologia grega por Hermes e na mitologia noacuterdica por Loki
82
constituem exemplos de excelecircncia em comportamento de modo que eacute possiacutevel
sim encontrar qualidades na sombra
De acordo com Henderson (2008) o ego diverge da sombra no que Jung
chamou de batalha pela libertaccedilatildeo a batalha que o homem primitivo travava para
atingir consciecircncia Nela a luta entre ego e sombra era representada pelo combate
entre o heroacutei e os poderes universais do mal personificados por monstros como
dragotildees No desenvolvimento da consciecircncia individual o heroacutei simboliza a forma
por meio da qual o ego vence a ineacutercia do inconsciente e liberta o homem maduro
livre do desejo do retorno ao mundo da matildee
O autor ressalta que embora seja comum o heroacutei ganhar (matar) do monstro
tambeacutem existem mitos em que ele cede agrave criatura ndash exemplo claacutessico eacute o de Jonas e
a baleia O combate entre o heroacutei e o dragatildeo eacute o modelo mais encontrado do mito e
demonstra o tema arquetiacutepico da vitoacuteria do ego sobre as tendecircncias regressivas
Isso se relaciona diretamente com o fato de que para a maioria das pessoas o lado
negativo de sua personalidade equivale ao reprimido e portanto inconsciente No
entanto o heroacutei precisa reconhecer este lado reprimido ou seja sua sombra e a
forccedila existente nela Assim precisa travar uma espeacutecie de pacto com este lado que
considera destrutivo a fim de vencer o monstro Em outras palavras o ego soacute
prevaleceraacute se integrar a sombra
Neste ponto do texto Henderson (2008) faz uma ressalva natildeo devemos
procurar estabelecer paralelos imediatos entre os materiais do sonho e da mitologia
pois sonhos satildeo movimentos particulares e portanto satildeo configurados pelas
condiccedilotildees de quem sonha O que o inconsciente faz eacute adaptar o conteuacutedo
arquetiacutepico conforme as necessidades do sonhador a fim de lhe comunicar algo O
que se observa de modo geral eacute que os siacutembolos heroicos surgem quando o ego
precisa se fortalecer quando a consciecircncia precisa de ajuda para fazer algo que natildeo
conseguiria sozinha ou sem contar com energias vindas do inconsciente
Henderson (2008) comenta outro aspecto bastante presente no mito do heroacutei
sua propensatildeo a proteger ou salvar a donzela em perigo Para o autor a finalidade
desta tarefa de salvar a princesa em apuros ultrapassa as conveniecircncias bioloacutegicas
e conjugais a psique tem necessidade de liberar a anima seu componente
profundo para poder realizar atos criativos
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O autor tambeacutem faz um paralelo entre o mito do heroacutei e a aquisiccedilatildeo de
consciecircncia egoica dentro do esquema cultural Ele explica que de certa forma os
egos da crianccedila e do adolescente tambeacutem precisam travar batalhas para se
desvencilharem dos desejos paternos e poderem desenvolver a proacutepria identidade
Henderson (2008 p165) afirma que ldquoComo parte dessa ascensatildeo em direccedilatildeo agrave
consciecircncia a batalha entre o heroacutei e o dragatildeo pode ter que se repetir vaacuterias vezes
a fim de liberar a energia necessaacuteria para uma imensidatildeo de tarefas humanas que
podem formar do caos um esquema culturalrdquo Quando este movimento eacute bem-
sucedido a imagem do heroacutei surge como uma forccedila do ego que jaacute natildeo precisa mais
derrotar monstros pois jaacute consegue personificar suas forccedilas profundas Por exemplo
sua sombra e sua anima natildeo precisam mais aparecer de forma tatildeo ameaccediladora nos
sonhos como monstros
Para Henderson (2008) quando o homem percebe que jaacute atingiu essa
consciecircncia individual e que jaacute se estabeleceu dentro da comunidade estaacute pronto
para transcender a fase heroica e tomar atitudes mais maduras Mas o autor explica
que natildeo se trata de uma mudanccedila automaacutetica o indiviacuteduo precisa passar por uma
fase de transiccedilatildeo por iniciaccedilotildees
Henderson (2008) tambeacutem explica que pela oacutetica psicoloacutegica natildeo devemos
igualar o ego agrave imagem do heroacutei este uacuteltimo representa uma forma simboacutelica por
meio do qual o ego se separadiferencia dos arqueacutetipos projetadosevocados
nospelos pais na infacircncia Isso acontece porque a princiacutepio todos temos um senso
de Self ou seja uma noccedilatildeo de totalidade da psique e eacute dela que surge a
consciecircncia individual conforme o indiviacuteduo vai crescendo Mas como
aparentemente o mito do heroacutei representa a primeira fase da diferenciaccedilatildeo psiacutequica
humana pode haver essa confusatildeo
O autor afirma que o heroacutei ldquo(hellip) parece percorrer um ciclo quaacutedruplo por meio
do qual o ego procura alcanccedilar uma autonomia relativa da sua condiccedilatildeo original de
totalidaderdquo (HENDERSON 2008 p 168) Sem esse miacutenimo de independecircncia o
relacionamento do indiviacuteduo com o ambiente adulto torna-se impossiacutevel O mito do
heroacutei no entanto natildeo garante a independecircncia por miacutenima que seja apenas
aponta o caminho a ser percorrido pelo ego a fim de adquirir consciecircncia Ainda eacute
problema do ego resolver como ele vai se preservar e se desenvolver e como vai
ser uacutetil para si mesmo e para seu meio
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Os rituais de iniciaccedilatildeo comuns em sociedades tribais constituem um meio
eficiente de lidar com este problema pois o ritual permite ao jovem entrar em
contato com as camadas mais profundas de sua identidade numa espeacutecie de morte
simboacutelica Isso acontece porque durante estes rituais o jovem tem sua identidade
temporariamente dissolvida no inconsciente coletivo entatildeo por meio de um rito
solene de renascimento o jovem eacute resgatado da morte e aiacute temos ldquo(hellip) o primeiro
ato de verdadeira assimilaccedilatildeo do ego em um grupo maior esteja ele sob a forma de
totem clatilde ou tribo ou uma combinaccedilatildeo dos trecircsrdquo (HENDERSON 2008 p 168)
O autor explica que ritos de passagem seja nas sociedades tribais ou nas mais
complexas implicam sempre um ritual de morte e renascimento para indicar a
passagem de uma etapa da vida para outra e podem acontecer em qualquer fase
da vida do homem marcando diferentes transiccedilotildees Por isso os ritos iniciaacuteticos natildeo
se limitam aos jovens uma vez que cada fase do desenvolvimento humano gera
conflito No entanto para Henderson (2008) esta perturbaccedilatildeo pode se manifestar de
forma mais intensa (pelo menos na nossa sociedade) entre os 35 e os 40 anos
Aleacutem disso ele comenta que o ego na passagem da maturidade para a velhice
clama pelo heroacutei uma uacuteltima vez para ajudaacute-lo novamente a desta vez consciente
da morte natildeo se dissolver no Self Para Henderson (2008) o arqueacutetipo da iniciaccedilatildeo
eacute intensamente ativado em fases essenciais como essas para que a mudanccedila
possa ser mais relevante para o indiviacuteduo do que a transiccedilatildeo da adolescecircncia
O autor ressalta a importacircncia de procurarmos exemplos de experiecircncias
subjetivas no homem contemporacircneo ao estudarmos sobre ritos de iniciaccedilatildeo da
mesma forma que fazemos ao estudar o mito do heroacutei Para ele eacute normal que a
psique das pessoas que procuram terapia apresentem imagens que reproduzam
rituais de iniciaccedilatildeo
Henderson (2008) explica a diferenccedila entre o mito do heroacutei e os rituais de
iniciaccedilatildeo os heroacuteis costumam obter o sucesso ambicionado mesmo que para isso
precisem cometer uma hybris11 e ateacute serem punidos com a morte O noviccedilo ao
contraacuterio precisa abdicar de suas ambiccedilotildees antes de se submeter agraves provas natildeo soacute
ele natildeo deve pensar que vai ser bem-sucedido como deve estar preparado para
morrer durante o ritual Independente da prova ser leve moderada ou severa a
11 Brandatildeo (2011b) define a hybris como um descomedimento uma transgressatildeo onde um mortaltenta competir com ou ultrapassar os deuses imortais
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finalidade do ritual eacute sempre a de causar a sensaccedilatildeo da morte simboacutelica a fim de
induzir um renascimento simboacutelico
O autor nos apresenta outro simbolismo de tradiccedilotildees sagradas relacionadas a
periacuteodos de transiccedilatildeo que natildeo tem a finalidade de integrar o indiviacuteduo agrave qualquer
doutrina ou consciecircncia coletiva mas sim tiraacute-lo de uma condiccedilatildeo imatura ou
restritiva ou seja estes siacutembolos tecircm a funccedilatildeo de conduzir o homem a um estaacutegio
mais maduro se relacionam com a sua transcendecircncia
Henderson (2008) faz uma ponte entre este assunto e a psicologia ao escrever
que
A crianccedila como jaacute dissemos possui um sentido de totalidade (ouintegridade) mas apenas antes do aparecimento do seu ego consciente Nocaso do adulto esse sentido de integridade eacute alcanccedilado por meio de umauniatildeo do consciente com os conteuacutedos inconscientes da sua mente Dessauniatildeo surge o que Jung chamava ldquofunccedilatildeo transcendente da psiquerdquo pelaqual o homem pode alcanccedilar sua finalidade mais elevada a plenarealizaccedilatildeo das potencialidades do seu Self (ou ser) (HENDERSON 2008p197)
O autor explica que os siacutembolos de transcendecircncia retratam o esforccedilo do
homem para atingir seus objetivos e mostram as formas atraveacutes das quais os
conteuacutedos inconscientes podem passar para a consciecircncia Ele afirma que um dos
siacutembolos que aparece com mais frequecircncia nos sonhos indicando essa libertaccedilatildeo
pela transcendecircncia eacute o da peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria Durante essa espeacutecie
de peregrinaccedilatildeo experimental o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como
renuacutencia e expiaccedilatildeo A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom
espiacuterito geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a
anima) como Atenaacute ou Sofia Henderson (2008) tambeacutem explica que esses
siacutembolos satildeo mais comuns na primeira fase da vida quando o indiviacuteduo ainda estaacute
mais vinculado agrave famiacutelia e ao grupo social e precisa aprender a traccedilar seu caminho
sozinho
Por mais difiacutecil que nos pareccedila notar os siacutembolos antigos que aparecem em
nossos sonhos entender seu significado e sua relaccedilatildeo com nossa vida atual para o
autor o assunto se torna mais compreensiacutevel quando nos damos conta de que
apenas a apresentaccedilatildeo destes esquemas arcaicos mudaram mas seu significado
psiacutequico permanece o mesmo
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62 O HEROacuteI NA GREacuteCIA ANTIGA
Brandatildeo (2011b) nos explica que etimologicamente o heroacutei seria o guardiatildeo
aquele que nasceu para defender e servir Portanto o autor discute a origem as
caracteriacutesticas e as funccedilotildees prestadas pelo heroacutei ndash tanto na vida terrena quanto
post mortem De acordo com ele a controveacutersia acerca da origem desta figura estaacute
relacionada particular e principalmente aos diferentes tipos de sacrifiacutecio que eram
oferecidos aos deuses e aos heroacuteis
Embora estudos atuais mostrem que a origem do heroacutei natildeo pode ser
comprovada pelo tipo de sacrifiacutecio que a ele era oferecido tambeacutem ficou
comprovado que eacute possiacutevel sim descrever o heroacutei grego em linhas gerais por mais
diferenccedilas que existam entre um personagem e outro Desta forma parece que
independente da cultura ou da crenccedila o heroacutei eacute uma personagem que tem
intimidade com o combate (muitas vezes referida como Trabalhos) a agoniacutestica a
medicina os Misteacuterios e a arte divinatoacuteria Eacute ele quem funda cidades e grupos e
apoacutes sua morte seu culto tem a funccedilatildeo de proteger seu povo Estas satildeo as
caracteriacutesticas relacionadas agrave natureza sobre-humana do heroacutei Poreacutem no lado
sombrio o heroacutei pode demonstrar algumas deformidades e mesmo caracteriacutesticas
morais questionaacuteveis como pode ser um anatildeo ou um gigante pode ser androacutegino
faacutelico ou mesmo impotente pode ser muito violento e sanguinaacuterio ou pode ateacute ter
sua maior virtude transformada numa hybris Sobre isso Brandatildeo (2011b) comenta
que o ideal de astuacutecia nos poemas heroicos eacute representado por Ulisses bisneto de
Hermes ou seja Ulisses pode ser considerado um trickster mas eacute visto como
modelo de prudecircncia Como exemplo o autor menciona que Ulisses arquitetou uma
vinganccedila despreziacutevel contra Palamedes e nunca sofreu as consequecircncias por isso
Os heroacuteis costumam ter um nascimento complicado e encontramos exemplos
disto nos mitos de Heacuteracles e de Perseu Geralmente o heroacutei tem descendecircncia real
eou divina (dupla paternidade) mas isso natildeo costuma significar que sua vida seraacute
mais faacutecil pelo contraacuterio Tambeacutem eacute comum que seu nascimento seja precedido por
dificuldades tanto de seu povo (como fome e seca) quanto de seus pais (como
periacuteodo longo de esterilidade) ou seja resultado de um relacionamento secreto
devido a alguma profecia que advirta acerca do perigo que representa o nascimento
daquela crianccedila Nesses casos a crianccedila eacute abandonada ao nascer nas aacuteguas ou
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num monte e costuma ser cuidada por fecircmeas de animais como cabra loba ursa
ou por pessoas de condiccedilotildees humildes como pastores e pescadores
Os heroacuteis gregos compartilham uma natureza sobre-humana mas natildeo podem
ser considerados deuses Sua atuaccedilatildeo acontece numa eacutepoca primordial apoacutes o
triunfo de Zeus e a criaccedilatildeo dos homens quando ainda natildeo existiam limites e regras
bem estabelecidos
No entanto heroacuteis jaacute nascem com duas virtudes que logo se destacam a honra
(τɩμή timeacute) e a excelecircncia Costuma ser durante a adolescecircncia (se jaacute natildeo tiver sido
na infacircncia) que o heroacutei comeccedila a demonstrar eou a descobrir suas habilidades
superiores e verdadeira origem o que o conduz de volta ao reino Tambeacutem faz parte
da trajetoacuteria do heroacutei um periacuteodo de formaccedilatildeo iniciaacutetica quando ele se ausenta do
lar para receber educaccedilatildeo a fim de aprimorar suas habilidades natas Apoacutes ter
passado por diversos ritos iniciaacuteticos o heroacutei vai para o mundo onde a princiacutepio se
destacaraacute em tarefas comuns e depois quando chegar em regiotildees fantaacutesticas se
destacaraacute por feitos extraordinaacuterios ateacute obter algum ecircxito definitivo que lhe
permitiraacute o regresso e lhe garantiraacute a gloacuteria eterna Por isso apoacutes superar inuacutemeras
dificuldades e conquistar coisas extraordinaacuterias ndash inclusive a esposa ndash o heroacutei
recebe o reconhecimento que lhe eacute devido Por fim eacute comum que tenha uma morte
traacutegica ateacute mesmo em consequecircncia de suas imperfeiccedilotildees e excessos Brandatildeo
(2011b) afirma que em todas as culturas o mito do heroacutei costuma seguir este
modelo
Sobre a educaccedilatildeo do heroacutei o autor explica que apesar de ter nascido portando
honra e excelecircncia extraordinaacuterias o heroacutei precisa ser treinado a fim de conseguir
realizar suas tarefas Dentre os diversos educadores dos heroacuteis o mais famoso foi o
centauro Quiacuteron mestre de Aquiles e Jasatildeo por exemplo Quiacuteron era meacutedico mas
seu amplo conhecimento permitia que fornecesse treinamento atleacutetico (agoniacutestica)
que ensinasse a arte divinatoacuteria (macircntica) a muacutesica dentre outros Mais importante
ainda para os heroacuteis que Quiacuteron educava do que o fato de que ele era um meacutedico
ferido eram os ritos iniciaacuteticos pelos quais ele os fazia passar pois isso aleacutem de
lhes conferir direito de participar mais tarde da vida poliacutetica social e religiosa da
poacutelis permitia que enfrentassem qualquer tipo de monstro
Brandatildeo (2011b) aponta que muitos autores se esquivam de abordar a origem
do heroacutei e mostra que as pesquisas sobre o tema natildeo estatildeo concluiacutedas Ele por
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sua vez pensa no heroacutei como um arqueacutetipo de algo que nasceu para arcar com
nossas muacuteltiplas deficiecircncias psiacutequicas O fato de ser um arqueacutetipo explica a
semelhanccedila estrutural da personagem em tatildeo diversas culturas que nunca tiveram
contato entre si
Sobre a dupla paternidade do heroacutei o autor comenta a afirmaccedilatildeo de Jung de
que as crianccedilas enxergam os pais como deuses e soacute vatildeo abandonar esta imagem
na idade adulta apoacutes muita resistecircncia se abandonarem Isso acontece porque a
imagem parental eacute arquetiacutepica daiacute a mitologizaccedilatildeo que a acompanha O autor
tambeacutem atribui isso ao costume de escolher um padrinho e uma madrinha
(godfather e godmother em inglecircs) para cada filho ou seja pessoas que ficam
responsaacuteveis pelo bem-estar espiritual da crianccedila representando a descendecircncia
divina do heroacutei
Sobre os Misteacuterios (cultos aos heroacuteis) Brandatildeo (2011b) afirma que sobraram
poucos registros ndash ateacute porque alguns desses rituais de iniciaccedilatildeo eram secretos ndash de
modo que pouco se sabe a respeito O autor aponta que os Misteacuterios tambeacutem
estavam relacionados aos oraacuteculos principalmente visando agrave cura (pois os heroacuteis
tinham relaccedilatildeo com a medicina) Aleacutem disso os Misteacuterios marcavam a passagem
para a idade adulta de maneira importante para a vida social e eram carregados
tambeacutem de aspecto religioso Dentre os rituais mais comuns Brandatildeo (2011b p
25) destaca ldquo(hellip) o corte do cabelo a mudanccedila de nome o mergulho ritual no mar
a passagem pela aacutegua e pelo fogo a penetraccedilatildeo num Labirinto a cataacutebase ao
Hades o androginismo o travestismo a hierogamiardquo
O corte do cabelo (seja de uma mecha ou do cabelo todo) representa um
sacrifiacutecio e pode ser um ritual de luto ou simbolizar uma mudanccedila de faixa etaacuteria ou
de estado A forma a cor e o comprimento dos cabelos em conjunto tecircm um caraacuteter
facilmente distinguiacutevel tanto individual quanto coletivamente Quando o cabelo eacute
cortado eacute como se houvesse um rompimento como a forma de ser anterior de
modo que o corte de cabelo simboliza um recomeccedilo
A mudanccedila de nome tambeacutem eacute muito importante na iniciaccedilatildeo dos heroacuteis
Brandatildeo (2011b) nos conta sobre um rito realizado na Iacutendia Veacutedica dez dias apoacutes o
nascimento da crianccedila quando esta recebia dois nomes um de conhecimento geral
e um que soacute a famiacutelia conhecia O autor tambeacutem comenta que em culturas
primitivas era comum a crianccedila ir mudando de nome conforme fosse passando por
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etapas iniciaacuteticas A atribuiccedilatildeo de um nome secreto separa a pessoa de seu mundo
profano anterior e ajuda a integraacute-la em seu novo mundo sagrado
Brandatildeo (2011b) comenta a importacircncia que alguns autores atribuem ao nome
consideram-no algo extraordinaacuterio vital realmente essencial para o serobjeto
denominado de modo que sua exclusatildeo extingue tambeacutem quem porta o nome
Desta forma conhecer o nome de algueacutemalgo equivale a conhecer sua essecircncia
Este seria o motivo para heroacuteis deuses e ateacute mesmo cidades possuiacuterem um nome
conhecido e outro secreto pois o nome faz parte do ser da coisa e tudo possui
energia mana Para Brandatildeo (2011b) Ulisses conhecia o nome de seu arco e por
isso no episoacutedio com os pretendentes foi o uacutenico a conseguir manipulaacute-lo
Sobre o androginismo que era praticado no mundo heroico o autor afirma que
estava intimamente relacionado com o travestismo e com o hierograves gaacutemos
(casamento sagrado dos heroacuteis) Para abordar o conceito de androacutegino Brandatildeo
(2011b) retoma o Banquete de Platatildeo onde consta um discurso sobre o
ἀνδρόγυνος (androacuteguynos) De acordo com esta explanaccedilatildeo no passado os
humanos podiam apresentar trecircs sexos o masculino o feminino ou o androacutegino
(que compartilhava o masculino e feminino ou apresentava os dois sexos de cada
vez ou seja o androacutegino podia ser masculino e feminino feminino e feminino ou
masculino e masculino) Os androacuteginos eram seres esfeacutericos que foram se tornando
cada vez mais audaciosos a ponto de intimidarem os deuses ao tentar subir o
Olimpo Diante disso Zeus cortou os androacuteginos ao meio fazendo-os caminhar
sobre duas pernas depois mandou Apolo cuidar de suas feridas e virar seus rostos
para o lado do umbigo (sinal da separaccedilatildeo) a fim de que os homens pudessem se
dar conta sempre da proacutepria incompletude Dessa forma cada metade ficou a
procurar pelo seu complementar desejando se re-unir Para Platatildeo essa eacute a origem
do amor e ela inclui o homossexualismo feminino e masculino
Nos mitos dos heroacuteis tanto o androginismo quanto o homossexualismo
masculino satildeo bastante comuns mas o androginismo em si costuma aparecer por
meio do travestismo da mudanccedila de sexo ou do hierograves gaacutemos pois existem poucos
mitos sobre o tema na mitologia claacutessica Mitos sobre heroacuteis que mudaram de sexo
como Tireacutesias satildeo mais frequentes do que os sobre androginismo A respeito do
travestismo talvez o caso mais famoso seja o de Aquiles que estava vivendo como
uma moccedila entre as filhas do rei Licomedes sob o nome de Pirra a fim de natildeo ir
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para a Guerra de Troia e morrer jovem conforme a profecia O disfarce durou ateacute
Ulisses chegar e desmascarar o rapaz com sua astuacutecia
De acordo com as antigas teogonias gregas todos os deuses satildeo androacuteginos
motivo pelo qual podem procriar sem parceiros Aleacutem disso a androginia simboliza a
totalidade e a perfeiccedilatildeo espiritual e aparece no iniacutecio e no fim dos tempos na visatildeo
escatoloacutegica como modelo de plenitude e salvaccedilatildeo pois conjuga os opostos e faz
alusatildeo ao hieacuteros gaacutemos o casamento sagrado
Jaacute o hieroacutes gaacutemos simboliza a reuniatildeo o reencontro com a metade perfeita ndash a
partir do caso descrito no Banquete Isso explicaria as enormes dificuldades que o
heroacutei tem que enfrentar (incluindo arriscar a proacutepria vida) para conquistar sua
esposa no mito Brandatildeo ressalta que
Outra prova de altiacutessima importacircncia nas nuacutepcias do heroacutei eacute quando este eacuteobrigado a lutar com verdadeira multidatildeo de pretendentes pela matildeo da bem-amada E nesse caso a heroiacutena que nos vem logo agrave mente eacute Helena afilha de Zeus e de Leda a Helena que jaacute aos nove anos fora raptada porTeseu e que apoacutes seu casamento e adulteacuterio provocou a suprema provaheroica a Guerra de Troia() Mas se Helena graccedilas agrave poesia homeacutericaque lhe conservou todo o esplendor incomparaacutevel da figura miacutetica eacute a maisceacutelebre das heroiacutenas natildeo eacute todavia a uacutenica que fez palpitar os coraccedilotildeesdos heroacuteis satildeo bem conhecidos os numerosos pretendentes preacute e poacutes-matrimoniais da ldquofideliacutessimardquo Peneacutelope como se mostraraacute no mito deUlisses (BRANDAtildeO 2011b p 37)
O autor tambeacutem nos apresenta o motivo Putifar amplamente difundido na
mitologia grega e na de outras culturas e que constitui uma circunstacircncia criacutetica
para o heroacutei porque costuma terminar em trageacutedia (provas extraordinaacuterias exiacutelio
cegueira vinganccedila morte) No motivo Putifar algueacutem eacute acusado e punido
injustamente por adulteacuterio pois se recusou a ter relaccedilotildees sexuais improacuteprias
Brandatildeo (2011b) explica que a palavra heroacutei permanece na linguagem atual
popular com o sentido de guerreiro e este tambeacutem era o sentido usado por Homero
para se referir aos homens que lutaram em Troia Jaacute Hesiacuteodo usa o termo para se
referir aos que lutaram em Troia e em Tebas Aleacutem do combate a morte tambeacutem
qualifica um homem como heroacutei Eacute a qualidade de combatente que difere os heroacuteis
dos deuses e independente do motivo das lutas satildeo elas o motivo da existecircncia do
heroacutei os deuses combateram apenas ateacute conquistarem suas respectivas posiccedilotildees
depois pararam porque a morte natildeo era uma opccedilatildeo para eles
De acordo com Brandatildeo (2011b) o espiacuterito guerreiro do heroacutei tambeacutem estava
presente nos cultos que eram dedicados a eles pois estes tinham a finalidade de
91
manter a poacutelis protegida durante a guerra Alguns gregos chegavam ateacute a oferecer
sacrifiacutecios em homenagem aos heroacuteis durante as guerras a fim de obter proteccedilatildeo
Conservar as reliacutequias dos heroacuteis tinha o mesmo objetivo
Foi por essa razatildeo que (hellip) os atenienses por ocasiatildeo da luta contraEsparta pela posse da cidade macedocircnica de Anfiacutepolis tomaram suasprecauccedilotildees mandando procurar os ossos de Reso o ceacutelebre rei da Traacuteciamorto por Ulisses na Iliacuteada (BRANDAtildeO 2011b p 43)
O autor comenta que embora a mitologia do heroacutei guerreiro seja bastante
vasta e conhecida um ponto natildeo fica exatamente claro nos poemas como eram
travados os combates Sabemos que as guerras eram decididas por meio de
diversas lutas entre os grandes heroacuteis enquanto os outros combatentes guerreavam
em segundo plano isso porque o verdadeiro heroacutei eacute solitaacuterio e enfeita a luta
enquanto os demais homens morrem no anonimato
A agoniacutestica corresponde agraves disputas atleacuteticas de caraacuteter religioso e pode ser
considerada um prolongamento das lutas em campos de batalha pois nestas
disputas tambeacutem satildeo utilizados recursos beacutelicos e embora o objetivo natildeo seja a
morte do adversaacuterio a perda da vida durante o agoacuten eacute um risco Trata-se de uma
das formas mais caracteriacutesticas do culto heroico embora os deuses tambeacutem tenham
participaccedilatildeo no agoacuten Encontramos outra conexatildeo entre os cultos heroico e
agoniacutestico nas palestras e nos ginaacutesios locais onde os heroacuteis eram treinados para
as disputas atleacuteticas uma vez que muitos destes eram consagrados a heroacuteis
Brandatildeo (2011b) comenta que embora Hermes fosse considerado o deus protetor
das palestras Heacuteracles aparecia sempre ao lado do deus por ser considerado o
ideal atleacutetico O autor tambeacutem nos conta que o ginaacutesio de Delfos havia sido
construiacutedo exatamente no local onde Ulisses ao caccedilar o javali fora mordido por ele
incidente que deixou uma cicatriz importante que permite que o heroacutei seja
reconhecido muito mais tarde ao retornar para Iacutetaca
Brandatildeo (2011b) comenta que para os heroacuteis miacuteticos serem festejados com
jogos eacute porque devem ter se destacado por suas habilidades atleacuteticas Tanto eacute
assim que nas primeiras disputas atleacuteticas miacuteticas receberam destaque heroacuteis
mitoloacutegicos como Heacuteracles os Dioscuros e os sete que lutaram em Tebas cada um
numa modalidade agoniacutestica ndash lembrando que todos esses grandes heroacuteis se
submeteram a intenso treinamento especializado antes de partirem para os jogos ou
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para as batalhas Os heroacuteis costumavam ter apenas um mestre tendo se destacado
Quiacuteron e apenas Heacuteracles teve diversos instrutores incluindo Autoacutelico avocirc de
Ulisses
A opiniatildeo comum eacute de que a agoniacutestica teve origem no culto aos heroacuteis mortos
ateacute porque agocircnes no sentido de jogos fuacutenebres satildeo temas sempre presentes nos
poemas dos heroacuteis ndash embora os jogos fuacutenebres em si aconteccedilam tambeacutem em
homenagem a personagens secundaacuterios na miacutetica Mas isso natildeo quer dizer que
estas disputas acontecessem apenas em funerais o costume se difundiu e jogos
notaacuteveis passaram a acontecer por exemplo a fim de obter a matildeo de determinada
jovem em casamento Foi numa dessas disputas atleacuteticas que Ulisses ganhou a matildeo
de Peneacutelope Os agocircnes tambeacutem podiam ser realizados a fim de obter o domiacutenio de
um reino Tanto a disputa pela esposa quanto pelo reino poderiam terminar em
morte
Conforme jaacute foi apontado por Brandatildeo (2011b) anteriormente o heroacutei tambeacutem
estaacute intimamente relacionado com a Macircntica que seria a arte da adivinhaccedilatildeo e que
pode se apresentar de diversas formas sendo que cada heroacutei tem acesso a uma
geralmente E embora as artes divinatoacuterias sejam intriacutensecas aos mitos de alguns
heroacuteis notoacuterios justamente por esses dons como Tireacutesias e Calcas nos mitos de
outros heroacuteis como Ulisses e Heacuteracles o dom da adivinhaccedilatildeo eacute apenas um
apecircndice
O autor tambeacutem nos explica que era comum os heroacuteis praticarem a iaacutetrica em
conjunto com os dons divinatoacuterios ou seja sua atividade de cura costumava ser
orientada pelos oraacuteculos Aparentemente depois que Aquiles medicou e curou
Paacutetroclo a ciecircncia meacutedica se tornou um tema quase obrigatoacuterio nos poemas
heroicos de modo que apareceram muitos exemplos depois disso Ulisses por
exemplo teve sua ferida curada por seu avocirc Autoacutelico Mas natildeo eram apenas os
males fiacutesicos que os heroacuteis eram capazes de curar com suas habilidades meacutedicas
podiam tratar ateacute a loucura
O tema dos heroacuteis com conhecimentos meacutedicos ainda conduz a dois outros
motivos miacuteticos interessantes o do meacutedicodoente ou doentemeacutedico (que ficou
famoso com Quiacuteron que apesar de ter uma ferida incuraacutevel provocada por Heacuteracles
ensinou a diversos heroacuteis a arte da iaacutetrica) O motivo do ferimento que soacute pode ser
curado por aquele que o provocou eacute igualmente notaacutevel
93
Brandatildeo (2011b) esclarece que o heroacutei sempre deve estar pronto para lidar
com o sofrimento e com a solidatildeo da mesma forma que sempre deve estar pronto
para o combate e mesmo para as cataacutebases Enquanto os ritos iniciaacuteticos os
fortalecem para as realizaccedilotildees heroicas em vida os Misteacuterios tecircm a funccedilatildeo de
preparaacute-lo para a morte que o transformaraacute no guardiatildeo de sua cidade e de seus
concidadatildeos Depois de mortos alguns heroacuteis passam mesmo a ser cultuados nos
Misteacuterios
Os heroacuteis representavam o ideal maacuteximo para os gregos e eram vistos como
superiores aos homens tanto fiacutesica quanto espiritualmente de modo que eram tidos
como altos belos fortes corajosos sagazes e vitoriosos
O heroacutei no entanto eacute uma figura ambivalente polimoacuterfica que possui
inuacutemeros opostos incorporados em si e ao lado de todas estas qualidades que lhe
permitem conquistar inuacutemeros benefiacutecios para a humanidade costumam aparecer
tambeacutem caracteriacutesticas monstruosas tanto fiacutesicas quanto morais conforme jaacute foi
mencionado anteriormente Eacute isso que faz com que ele seja tanto fonte de
benefiacutecios quanto de maldiccedilatildeo principalmente se for ofendido
Na Odisseia apoacutes ser cegado por Ulisses Polifemo comenta que uma profecia
jaacute havia lhe prevenido sobre aquele acontecimento mas ele estava esperando um
heroacutei alto e bonito natildeo aquele homem baixinho e feio Na Iliacuteada a pouca altura de
Ulisses tambeacutem eacute mencionada
Aleacutem das deficiecircncias fiacutesicas jaacute citadas anteriormente Brandatildeo (2011b) lista a
cegueira a gagueira e a coxeadura (ou demais defeitos ou cicatrizes nas pernas)
como bastante comuns entre os heroacuteis O autor explica que em muitos casos o
defeito natildeo tem relaccedilatildeo efetiva com o mito ndash como no caso de Eacutedipo que tem
apenas o nome significando peacutes inchados mas isso natildeo interfere na narrativa Em
outros ao contraacuterio a deficiecircncia eacute o cerne do mito quando encarada como um
castigo divino por exemplo que envergonha ou impede o heroacutei de conseguir algo
Cicatrizes costumam se localizar nos membros inferiores e natildeo costumam ser muito
relevantes para a narrativa ndash a cicatriz de Ulisses pode ser considerada uma
exceccedilatildeo pois permite que ele seja reconhecido por sua antiga ama quando ainda
estaacute disfarccedilado de mendigo configurando um momento importante e emocionante
da Odisseia Jaacute a cegueira costuma aparecer entre os adivinhos miacuteticos
representando o dom da visatildeo interior
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O heroacutei tambeacutem pode ter um comportamento social e eacutetico questionaacuteveis
conforme jaacute foi dito anteriormente O apetite insaciaacutevel por exemplo era muito
comum entre eles e podemos ver esta caracteriacutestica em Heacuteracles e em Ulisses Um
apetite sexual demasiado tambeacutem podia levar os heroacuteis a cometerem atos como
adulteacuterio incesto e estupro Mas a violecircncia dos heroacuteis natildeo se limita ao campo
sexual e o heroacutei pode se tornar um assassino e matar fora da guerra ndash por
vinganccedila ciuacutemes inveja ou ateacute mesmo loucura por exemplo Neste caso a lista de
familiares assassinados por heroacuteis costuma ser enorme E claro qualquer um
destes crimes pode ser agravado agrave condiccedilatildeo de sacrileacutegio se for cometido dentro do
templo de algum deus Brandatildeo (2011b) acentua que esta ambivalecircncia natildeo eacute
caracteriacutestica de um ou outro heroacutei em particular mas eacute inerente agrave figura do heroacutei
Vimos que geralmente o heroacutei tem um nascimento difiacutecil sua vida consiste
numa seacuterie de batalhas sofrimentos e descomedimentos e a morte constitui o
uacuteltimo grau iniciaacutetico sua prova final pois costuma acontecer de forma violenta ou
num momento de solidatildeo mas eacute sempre traacutegica Alguns heroacuteis se matam outros
morrem na guerra ou nas lutas outros em acidentes e alguns satildeo assassinados (agraves
vezes por parentes) Ulisses acabou assassinado por seu filho adolescente sem
saber Nem o rapaz nem o heroacutei se conheciam e o jovem soacute descobriu quem havia
matado depois que a trageacutedia jaacute estava feita
Eacute a morte no entanto que confere ao heroacutei a condiccedilatildeo sobre-humana pois
eles continuam atuando apoacutes terem morrido diferente dos homens comuns As
reliacutequias do heroacutei satildeo vistas como maacutegicas e perigosas e continuam atuando
durante seacuteculos Sua existecircncia poacutes-morte no entanto depende da manutenccedilatildeo de
seus antigos pertences ou de seus restos mortais Brandatildeo afirma que
(hellip) a morte do heroacutei transforma-o em δαίμων (daiacutemon) intermediaacuterio entreos homens e os deuses num escudo poderoso que protege a poacutelis contrainvasotildees inimigas pestes epidemias e todos os flagelos Partiacutecipe de umaldquoimortalidaderdquo de cunho espiritual garante a perenidade de seu nometornando-se destarte um arqueacutetipo um modelo exemplar para quantos seesforccedilam por superar a condiccedilatildeo efecircmera do mortal e sobreviver namemoacuteria dos homens (BRANDAtildeO 2011b p67 grifo do autor)
Para o autor a grande tarefa do heroacutei eacute conhecer-se por inteiro eacute atingir a
proacutepria unidade no meio de sua multiplicidade Com a morte do heroacutei se fecha o
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uroacuteboro e o ciclo pode recomeccedilar O heroacutei pode ser considerado a fonte que conteacutem
as energias que alimenta o cosmo
63 OS DEUSES MAIS ATUANTES NA ODISSEIA
Apresentarei agora um breve resumo dos mitos de Atenaacute Posiacutedon e Hermes
os deuses que mais influenciam o retorno de Ulisses para Iacutetaca apoacutes a Guerra de
Troia Por atuarem em momentos tatildeo importantes da vida do heroacutei considero
relevante esclarecer um pouco mais sobre cada um para mais tarde poder
relacionaacute-los simbolicamente ao processo de individuaccedilatildeo do heroacutei
631 O MITO DE POSIacuteDON
Posiacutedon eacute filho de Crono e Reia e portanto irmatildeo de Zeus Quando Zeus
derrotou o pai e assumiu o poder dividiu o universo e Posiacutedon ficou responsaacutevel
pelos rios e mares como presente dos Ciclopes deuses ferreiros ganhou o tridente
Cordeiro (2010) nos apresenta Posiacutedon como ldquosenhor das aacuteguas e de tudo que elas
geram abrigam e escondemrdquo (CORDEIRO 2010 p 91) ele eacute responsaacutevel pelas
secas e pelas inundaccedilotildees Eacute o uacutenico deus de quem Hades tem medo por receio de
que o irmatildeo exponha seu reino ao fazer a terra tremer com seu tridente
Posiacutedon estaacute ligado agrave emoccedilatildeo e portanto seu reino abriga tanto as criaturas
fertilizadoras quanto as destruidoras ndash o deus poreacutem manteacutem controle sobre todas
elas A manifestaccedilatildeo de Posiacutedon sempre causa transformaccedilotildees
Ao final da disputa entre Zeus e Crono e a pedido de Zeus Posiacutedon construiu
trecircs portotildees de bronze no Taacutertaro para conter os Titatildes vencidos De acordo com a
autora
este eacute o primeiro muro de contenccedilatildeo feito por Posiacutedon Na transposiccedilatildeo deum mundo mais primitivo e despoacutetico onde o devorador Crono era o reipara outro mais discriminado povoado de deuses portadores de atributosespeciacuteficos e variados coube a Posiacutedon construir a barreira mantenedorada indiscriminaccedilatildeo titacircnica para sempre aprisionada (hellip) Nesse momentojaacute se assinala a dotaccedilatildeo de Posiacutedon como aquele capaz de impor a barreirade manter o caos dentro de limites (CORDEIRO 2010 p 92)
Logo no iniacutecio de seu reinado a atitude tirana de Zeus irritou os demais
deuses o que levou Hera Posiacutedon e Apolo a armarem para derrubar o novo
soberano Como vinganccedila Zeus condenou Posiacutedon a construir muros ao redor de
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Troia para que esta ficasse segura ndash e esta foi a segunda barreira construiacuteda pelo
deus
Por ser senhor das aacuteguas Posiacutedon carrega as caracteriacutesticas do elemento a
aacutegua estaacute presente em todos e pode levar tanto agrave evoluccedilatildeo quanto agrave destruiccedilatildeo Ao
construir muros Posiacutedon estrutura formas de conter seus elementos
desestruturantes
Os seres abrigados por Posiacutedon representam potencialidades e eacute isso que
difere seu reino do de Hades no Hades os personagens jaacute estatildeo mortos e
portanto natildeo apresentam possibilidade de mudanccedila
Conforme jaacute foi dito o homem entra em contato com o reino de Posiacutedon
atraveacutes da emoccedilatildeo e a respeito disso Cordeiro nos lembra de que
emoccedilatildeo pura e verdadeira nada tem a ver com moral coacutedigos de eacuteticavalores elevados etc As diferentes paixotildees se apresentam quando podemsem consciecircncia de serem bem-vindas adequadas permitidas ou natildeoAparecem inundam e sobra ao ego a tarefa de arcar com asconsequecircncias (CORDEIRO 2010 p 93)
Assim os filhos de Posiacutedon sempre traduzem imagens arquetiacutepicas
extremamente intensas e agraves vezes expressotildees de aspectos psiacutequicos terriacuteveis por
exemplo o senhor dos mares eacute pai dos monstros Minotauro e Cariacutebdis e do ciclope
Polifemo ndash na Odisseia Ulisses enfrenta os dois uacuteltimos
Sobre o encontro de Ulisses com Posiacutedon Cordeiro afirma
Odisseu o grande heroacutei da guerra de Troia astuto ardiloso articuladordescendente de Hermes e Siacutesifo teraacute em seu encontro com Posiacutedon agrande tarefa de encontrar um ldquomundo fora do mundordquo e sair dele maissaacutebio e ponderado Odisseu eacute um personagem essencialmente criativo dotipo pensamento intuitivo Ele pensa reflete e intui as artimanhasnecessaacuterias para se sair bem entre seus pares Eacute um heroacutei que conhececomo funciona o mundo onde vive Pois bem Posiacutedon o afasta dessemundo de certezas Quando comeccedila seu retorno agrave sua terra Iacutetaca e suaesposa Peneacutelope Odisseu penetra em outra realidade povoada de seres eacontecimentos fantaacutesticos A famosa perseguiccedilatildeo de Posiacutedon acontecepontualmente a partir do encontro do heroacutei com o Ciclope mas mesmoantes de Odisseu e seus homens chegarem agrave malfadada ilha de Polifemo aviagem jaacute estava acidentada Na euforia da vitoacuteria e pressa de retorno aolar Odisseu natildeo prestou as devidas honras aos deuses exceto a Atenaacute enatildeo se purificou do sangue derramado por suas matildeos (hellip) Eacute um grandeembate entre o heroacutei e a divindade o confronto entre a racionalidade e aemoccedilatildeo entre a astuacutecia e a resistecircncia (CORDEIRO 2010 p 101 grifo doautor)
Desde sua partida para a guerra de Troia estima-se que Ulisses passou vinte
anos fora de Iacutetaca a guerra teria durado dez anos e sua viagem de retorno outros
97
dez E Posiacutedon fez questatildeo de atrapalhar e de atrasar o retorno do heroacutei tanto ao
expocirc-lo a diferentes riscos quanto ao tentar seduzi-lo de diversas formas ndash por
exemplo atraveacutes da passagem por Cilas e Cariacutebdis e tambeacutem por meio do encontro
com as sereias De acordo com Cordeiro (2010) em sua viagem de volta Odisseu
enfrenta riscos de entorpecimento da consciecircncia e tambeacutem de morte literal
Posiacutedon representaria o cenaacuterio da jornada deste heroacutei em direccedilatildeo ao proacuteprio centro
e agrave proacutepria anima
632 O MITO DE ATENAacute
Ribeiro (2010) nos apresenta a versatildeo claacutessica do mito da deusa na qual
Zeus apaixona-se e casa-se com Meacutetis deusa da prudecircncia e da sabedoria Poreacutem
ao ser informado por um oraacuteculo de que um fruto dessa relaccedilatildeo ocuparia seu lugar
no poder Zeus desenvolveu uma artimanha a fim de engolir Meacutetis A deusa jaacute
estava graacutevida de Atenaacute de modo que ao engolir a matildee Zeus passou a gestar a
filha
E assim Atenaacute nasce da cabeccedila de Zeus adulta vestida e pronta para o
combate A deusa natildeo passou pela infacircncia e nem pela dependecircncia dos pais Atenaacute
eacute uma deusa virgem como Aacutertemis e de acordo com a autora podemos entender
essa virgindade simbolicamente como algo que ldquorevela que essas deusas integram
aspectos do masculino em si mesmas e natildeo precisam de um parceiro ou consorte
para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino tais como agressividade
racionalidade ou autoridaderdquo (RIBEIRO 2010 p 283)
A dor de cabeccedila intensa que Atenaacute causa em Zeus no momento de nascer
pode ser entendida simbolicamente como sinal de que ela veio para transformar o
estado das coisas inclusive o proacuteprio pai Apesar de Zeus ter se comportado como
seu pai Crono ao engolir Meacutetis o nascimento de Atenaacute tambeacutem representa a
possibilidade de um relacionamento simeacutetrico entre masculino e feminino Atenaacute se
apresenta como a deusa que sustenta a ordem o padratildeo e a cultura e simboliza a
reflexatildeo e a inteligecircncia Apoacutes matar acidentalmente a melhor amiga Palas Atenaacute
passa a matar intencionalmente revelando seu lado impulsivo vingativo irado e
poderoso
Diferente de Ares Atenaacute natildeo estaacute interessada na guerra no instinto beacutelico mas
no heroiacutesmo Para Ribeiro (2010) a deusa ldquoEacute intensa e sempre proacutexima eacute
companheira daqueles que admira e a acolhem mas natildeo eacute dada aos
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descomedimentos passionais ao contraacuterio sua amizade requer atributos do
espiritualrdquo (RIBEIRO 2010 p 285)
Atenaacute sempre estaacute junto aos heroacuteis nos momentos em que estes precisam de
incentivo e inspiraccedilatildeo conduzindo-os agrave realizaccedilatildeo ajudando-os a discriminar as
coisas Por exemplo Atenaacute ajuda Perseu a combater Medusa (que pode ser
entendida simbolicamente como a expressatildeo dos aspectos sombrios de Atenaacute)
A partir desse momento Atenaacute passa a utilizar a cabeccedila de Medusa incrustada
em seu escudo Nesta passagem do mito podemos entender Medusa como um
complexo que a deusa elaborou e integrou
Nessa nova realidade psiacutequica a deusa faz cair por terra o pressuposto deque o selvagem natildeo pode conviver com o civilizado Pelo contraacuterio Atenaacuterepresenta a transformaccedilatildeo da capacidade da cultura em integrar o que lheeacute estranho de assimilar o Outro sem com isto tornar-se selvagem Natildeo maiso outro fora de mim mas o Outro em mim transformando-me (RIBEIRO2010 p 286 grifo do autor)
Atenaacute tem dificuldade de lidar com as emoccedilotildees e por isso quando se
confronta com estas age sem refletir Os sentimentos como ciuacuteme e inveja poderiam
ajudar a deusa a se humanizar mas ela natildeo consegue lidar com eles pois natildeo
admite ser colocada para traacutes Por outro lado Atenaacute possibilita a organizaccedilatildeo
mental uma vez que eacute a deusa da razatildeo e do comedimento
Mente e corpo pensamento e sentimento costumam estar muito polarizados
em Atenaacute poreacutem ao proteger Ulisses Atenaacute consegue integrar tais polaridades A
fim de conseguir voltar para seu reino e para sua esposa Ulisses passou por muitas
provas teve que integrar diversos siacutembolos sempre contando com a ajuda de
Atenaacute que o queria de volta agrave Iacutetaca poreacutem transformado
Odisseu eacute um heroacutei que aceita qualquer prova a fim de cumprir seu destino
Segundo Ribeiro
(hellip) O heroacutei regressa para a gloacuteria do que a deusa defende Telecircmacoprecisava de um pai Laertes precisava de um filho e Peneacutelope de maridoOra essas satildeo as instacircncias da vida civilizada da poacutelis da cultura emtempos de paz A deusa privilegia no regresso de Odisseu as relaccedilotildeessociais Ligando o passado ndash a partida de Odisseu ndash ao presente ndash seuregresso e seu reencontro com Peneacutelope ndash faz-se a ponte da memoacuteria queintegra os dois tempos Faz-se Histoacuteria (RIBEIRO 2010 p 291 grifo doautor)
99
A consciecircncia de Atenaacute se volta para fora para o bem comum e assim estaacute
profundamente relacionada agrave evoluccedilatildeo da cultura atraveacutes de sua ligaccedilatildeo com a
ciecircncia com a tecnologia e com a arte Ao mesmo tempo tambeacutem estaacute relacionada
ao conhecimento e sabedoria suas caracteriacutesticas principais
633 O MITO DE HERMES
Hermes eacute o deus dos viajantes das fronteiras e das situaccedilotildees limite eacute elequem leva e traz mensagens entre os planos e faz a passagem de umadimensatildeo agrave outra da vida agrave morte e eacute tido na alquimia como o mestre dastransformaccedilotildees Hermes nos levaraacute nesta odisseacuteia em busca de novoscaminhos que nos conduzam no meio da vida Ele seraacute nosso companheiroem estradas que surgem do nada e levam a lugar nenhum e que surgemcom bastante frequecircncia nesse periacuteodo criacutetico de nossa vida No meio davida natildeo temos outra escolha a natildeo ser deixar que Hermes conduza nossasalmas (STEIN 2007p 17)
De acordo com Baptista (2010) a imagem de mensageiro dos deuses com seu
chapeacuteu e sandaacutelias aladas estaacute fortemente ligada a Hermes Ele consegue transitar
entre os trecircs reinos ndash Olimpo Terra e Iacutenferos ndash com extrema facilidade e velocidade
pois o movimento tambeacutem eacute uma de suas principais caracteriacutesticas Os atributos
deste deus tambeacutem o relacionam com a alquimia e a psicologia pois eacute considerado
guia de almas e senhor das fronteiras o que permite uma identificaccedilatildeo com aqueles
que trabalham com a consciecircncia e o inconsciente O nuacutemero quatro tambeacutem eacute
atribuiacutedo a Hermes
Batista (2010) nos conta que logo ao nascer a sabedoria demonstrada por
Hermes foi tamanha que espantou sua matildee Maia seu pai Zeus e seu irmatildeo
Apolo Isso porque em sua primeira peripeacutecia o bebecirc Hermes se soltou de seus
cueiros e fugiu da caverna onde morava com a matildee para ir atraacutes de carne Ele
havia percebido que estava com fome e decidiu fazer algo a respeito Para a autora
Hermes ldquoDiscrimina em si mesmo o desejo de comer carne e busca saciaacute-lo Este
fato denota uma capacidade jaacute pronta de olhar para si mesmo dar-se conta de uma
necessidade a partir de uma percepccedilatildeo aleacutem de uma independecircncia no agirrdquo
(BAPTISTA 2010 p 265) Este episoacutedio tambeacutem mostra que Hermes natildeo eacute um
deus conformado mas ambicioso e ousado capaz de transformar desejo em accedilatildeo
Segundo Baptista (2010) quando Hermes rouba as 50 cabeccedilas de gado de
Apolo ndash seu oposto e complementar ndash demonstra que o irmatildeo tem algo de que ele
precisa Enquanto Apolo representa o pensamento linear a sobriedade e o controle
100
Hermes receacutem-nascido jaacute demonstra autoconfianccedila para enfrentar autoridades e
astuacutecia para enganar e mentir a fim de conseguir o que quer
O roubo no entanto adquire caraacuteter religioso quando Hermes sacrifica dois
novilhos em honra dos deuses e se autointitula o deacutecimo segundo deus do Olimpo
Para Baptista (2010) aqui a capacidade de Hermes de discriminar o que quer fica
ainda mais niacutetida pois ao se abster de comer a carne sacrificial ele demonstra
respeito perante o religioso e o sagrado e maturidade para conter seus instintos
Baptista (2010) relata que Hermes tambeacutem foi o primeiro a produzir fogo com
o qual presenteou os outros deuses quando passou a integrar o Olimpo A autora
considera que o fogo-consciecircncia era necessaacuterio nesse momento de transiccedilatildeo do
instintual para o sagrado
Depois de roubar os bois do irmatildeo voltando para sua caverna Hermes
encontra uma tartaruga e resolve transformaacute-la numa lira De acordo com Baptista
(2010) este episoacutedio nos remete agrave tipologia do deus e evidencia sua intuiccedilatildeo
superior pois Hermes consegue transformar a tartaruga um animal frio num
instrumento musical que tem a capacidade de comover as pessoas especialmente
Apolo maior representante divino da razatildeo Para a autora este episoacutedio tambeacutem
nos permite perceber o quanto a inteligecircncia e a criatividade de Hermes estatildeo
voltadas para a troca fazendo dele um deus da alteridade
Quando Apolo vai reclamar o gado roubado nervoso Hermes manteacutem a calma
e mente Assim os dois acabam levando a questatildeo para Zeus resolver porque soacute
ele e sua sabedoria teriam como lidar com a mentira do pequeno Poreacutem ao ser
colocado a par da situaccedilatildeo Zeus ri e em vez de punir Hermes recomenda que os
irmatildeos se reconciliem e aprendam um com o outro ndash eacute um pai poacutes-patriarcal Zeus
no entanto ordena a devoluccedilatildeo do gado por parte de Hermes e o proiacutebe de mentir a
partir de entatildeo e Hermes negocia concorda em parar de mentir mas se reservaraacute o
privileacutegio de natildeo dizer toda a verdade ldquoHermes cria com esse fato o espaccedilo para o
segredo no acircmbito do sagradordquo (BAPTISTA 2010 p 268)
Hermes devolve o gado de Apolo e depois toca a lira para ele cantando as
qualidades do irmatildeo Apolo fica encantado com o instrumento ndash aqui Baptista (2010)
nos fala acerca do poder da muacutesica sobre o pensamento ndash e se inicia a troca de
presentes entre os dois irmatildeos Baptista (2010) tambeacutem ressalta o fato de Apolo ser
o deus da muacutesica e a forma como Hermes cria um instrumento que atualiza o dom
101
do irmatildeo e daacute esse instrumento para ele imediatamente depois de tecirc-lo criado
demonstrando total desapego Para a autora isso demonstra que Hermes se
apropriou de sua criatividade e eacute isso que permite que ela continue fluindo de forma
tatildeo dinacircmica ndash pois logo depois de dar a lira para Apolo Hermes cria a flauta
Apolo presenteia o irmatildeo com o cajado de ouro tornando-o o deus dos
pastores Por isso Hermes lhe daacute a flauta e promete natildeo lhe roubar o arco ou a lira
ndash e aproveita para pedir a ajuda de Apolo para aprender sobre a arte da videcircncia
Baptista (2010 p 269) destaca que ldquoNesta sucessatildeo de trocas de presentes e
informaccedilotildees vemos como Hermes exercita sua capacidade de negociaccedilatildeo e de
firmar contratosrdquo
Finalmente quando Zeus elogia o quanto Hermes eacute engenhoso e habilidoso
com palavras este pede para ser seu arauto e guardiatildeo do Olimpo Zeus natildeo soacute
concorda como tambeacutem atribui ao filho as funccedilotildees de negociante comerciante e
mensageiro entre os mundos Eacute assim segundo Baptista (2010) que Hermes
recebe o caduceu o chapeacuteu redondo e as sandaacutelias aladas
A autora relata que os vaacuterios casamentos de Hermes geraram alguns filhos
como Autoacutelico (avocirc materno de Ulisses) Pan e Priacuteapo tendo sido Hermafrodito ndash
seu filho com Afrodite ndash o mais importante de todos ldquoA fertilidade a sexualidade a
androgenia satildeo produtos gerados a partir de Hermesrdquo (BAPTISTA 2010 p 270)
Diferente dos outros deuses que se desenvolvem e se transformam por meio
de seus diversos relacionamentos e aventuras Baptista (2010) explica que Hermes
se desenvolve e se transforma por meio daqueles que auxilia Devido ao atributo do
movimento e da velocidade Hermes sabe de tudo e consegue estar em todo lugar
motivo pelo qual costuma ser requisitado para ajudar a realizar passagens
importantes A autora cita alguns exemplos onde a participaccedilatildeo do deus foi
fundamental como apoacutes o rapto de Perseacutefone por Hades quando Demeacuteter fez a
terra parar de produzir foi Hermes quem convenceu Hades a negociar a companhia
da esposa com a sogra para que as plantas voltassem a brotar Quando Dioniso
nasceu da coxa de Zeus Hermes foi responsaacutevel por levar o bebecirc para ser criado
por um casal na Terra como menina escondido de Hera
A participaccedilatildeo de Hermes tambeacutem foi fundamental na histoacuteria de heroacuteis de
destaque foi com a ajuda dele que Heacuteracles concluiu sua deacutecima segunda tarefa
descer ao Taacutertaro pegar Ceacuterbero e sair de laacute com o animal vivo Perseu tambeacutem
102
conseguiu a cabeccedila de Medusa mas para isso obteve ajuda de Hermes e Atenaacute
E finalmente Hermes fornece a Ulisses a planta que vai tornaacute-lo imune ao veneno
de Circe impedindo-a de transformaacute-lo num porco a fim de que ele possa ldquo(hellip)
retornar agrave sua busca pelo feminino profundo representado por Peneacutelope que o
aguarda em Iacutetacardquo (BAPTISTA 2010 p 271) Para a autora Hermes identifica
Ulisses como um heroacutei em seu caminho de individuaccedilatildeo e por isso o provecirc com a
flor e as informaccedilotildees necessaacuterias para escapar da magia regressiva da feiticeira
103
7 A VIDA DE ULISSES
O processo de individuaccedilatildeo passa por diversas etapas e eacute capaz de muitasperipeacutecias () (JUNG 2011 [1939] p 351 sect 616)
Para abordar a vida de Ulisses os autores utilizados foram Brandatildeo (2011b)
Homero (20112013) e Kereacutenyi (2015b) Os mitos costumam ter mais de uma
versatildeo e Kereacutenyi (2015b) explica que os antigos narradores nunca conseguiram
juntar as diferentes mitologias dos heroacuteis numa narrativa uacutenica e totalmente
coerente
71 ORIGEM
Sobre a origem de Ulisses Brandatildeo (2011b) afirma que haacute divergecircncias como
acontece com todos os heroacuteis na Odisseia ele eacute considerado filho de Laerte e
Anticleia Tratando do lado materno Ulisses eacute neto de Autoacutelico e bisneto de
Hermes Homero natildeo aborda o assunto mas outras versotildees do mito afirmam que
Anticleia jaacute estava graacutevida de Siacutesifo quando se casou com Laerte
Kereacutenyi (2015b) nos conta que Siacutesifo era um homem muito sutil e astuto
pertencente aos primeiros habitantes da terra Morava em Corinto cidade
supostamente fundada por ele Conta-se que Siacutesifo conseguiu uma fonte do deus-
rio Aacutesopo em sua cidade em troca da informaccedilatildeo sobre o paradeiro de sua filha
Egina Ocorre que Zeus havia raptado a moccedila e Siacutesifo escondido nos rochedos de
sua cidade flagrara o deus Devido a isso o espiatildeo atraiu a fuacuteria de Zeus que
enviou Tacircnato a Morte para mataacute-lo mas Siacutesifo conseguiu dissimulaacute-lo natildeo se
sabe como O que se sabe eacute que Siacutesifo conseguiu acorrentar a Morte e ateacute que
Ares libertasse Tacircnato ningueacutem mais morreu Mas o astuto homem ainda conseguiu
negociar antes de descer ao Hades ele pediu para falar com sua esposa a Rainha
Meacuterope uma uacuteltima vez Sorrateiramente pediu a ela que natildeo lhe prestasse
nenhum sacrifiacutecio fuacutenebre Cessadas as libaccedilotildees Hades e Perseacutefone ficaram
surpresos com Siacutesifo Daiacute se deduz que Siacutesifo natildeo era apenas rei de Corinto mas
de toda a terra afinal conseguiu enganar Perseacutefone com sua laacutebia a fim de deixaacute-
lo sair do Hades para promover os sacrifiacutecios aos deuses subterracircneos No entanto
o que Siacutesifo fez foi fugir do Hades escapando da Morte pela segunda vez
104
Eacute apoacutes esta faccedilanha que Siacutesifo e Autoacutelico se conhecem Autoacutelico filho de
Hermes e Quiacuteone honrando o pai era considerado mestre dos ladrotildees Siacutesifo era
apenas um grande trapaceiro mas soacute isso jaacute torna memoraacutevel o encontro dos dois
pois naquela eacutepoca a populaccedilatildeo terrena ainda era escassa O que se deu foi que
Siacutesifo intrigado percebia apenas seu rebanho diminuir mas Autoacutelico nunca era
pego roubando Usando de sua astuacutecia entatildeo Siacutesifo criou um esquema para
comprovar o roubo tendo sido um dos primeiros a dominar a arte da escrita
derramou chumbo nos cascos dos bois em forma de letras gravando a sentenccedila
Autoacutelico me roubou Foi soacute depois disso que Autoacutelico confessou e ele
ldquo(hellip) tinha o vencedor em tatildeo grande conta que firmou imediatamente comele acordo de amizade e hospitalidade (hellip) Uma taccedila de beber ldquohomeacutericardquomostra de maneira indisfarccedilaacutevel Siacutesifo no quarto de dormir da filha dohospedeiro o velhaco-mor sentado na cama e a rapariga com o seu fusoManteria ele secretamente relaccedilotildees com a bela Anticleia Eis aiacute uma atitudeque teria sido bem digna dele Mas teria sido tambeacutem uma ideia digna deAutoacutelico oferecer a proacutepria filha ao homem que o sobrepujara em astuacutecia demodo que pudessem ambos produzir o mais esperto de todos Dessa formaAnticleia veio a ser a matildee de Ulisses natildeo foi atraveacutes de Laerte queconhecemos como o pai na Odisseia mas atraveacutes de Siacutesifo que elaconcebeu o homem de muitas manhas a acreditarmos nessa histoacuteriaLaerte desposou-a quando ela jaacute estava graacutevida (KEREacuteNYI 2015b p 81grifo do autor)
O famoso castigo de Siacutesifo retrata o esforccedilo eternamente vatildeo de afastar de si a
sorte de todos os mortais no mundo subterracircneo ele passa a eternidade rolando
para cima uma pedra que sempre rolaria para baixo novamente
De acordo com esta versatildeo do mito portanto Ulisses seria entatildeo filho de
Siacutesifo o mais astuto e atrevido dos mortais neto de Autoacutelico o mais sabido dentre
os ladrotildees e bisneto de Hermes deus das trapaccedilas Desta forma soacute poderia
mesmo ser um heroacutei que se destacasse por sua inteligecircncia determinaccedilatildeo
coragem astuacutecia e manha Ulisses eacute portanto digno de seu avocirc Autoacutelico mestre-
ladratildeo que ldquo(hellip) juntou a filha Anticleia ao arquipatife Siacutesifo a fim de que entre si
lhe produzissem um neto exatamente como aquelerdquo (KEREacuteNYI 2015b p296)
Sobre a origem do nome do heroacutei Kereacutenyi (2015b) nos conta que quando
Ulisses nasceu Autoacutelico estava hospedado na casa do genro e da filha O casal
colocou o bebecirc no colo do avocirc e pediu que ele lhe desse um nome O velho ladratildeo
teria escolhido Ulisses (Odysseus) porque sabia jaacute ter provocado o oacutedio de muita
gente ateacute entatildeo Embora Ulisses natildeo nos pareccedila um personagem odioso na
105
Odisseia ndash pois em grego a palavra para odiado eacute odyssomenos ndash em outras
histoacuterias o heroacutei faz coisas que podem ser consideradas terriacuteveis
Ainda sobre o nome do heroacutei Brandatildeo conta que ele nasceu em Iacutetaca num dia
de grande temporal
Semelhante anedota deu ensejo a um trocadilho sobre o nome Οδυσσεύς(Odysseuacutes) cuja interpretaccedilatildeo estaria contida na frase grega Κατὰ τὴν όδὸνὕσεν ὁ Ζεύς (Katagrave tegraven hodograven hyacutesen ho Dzeuacutes) ou seja ldquoZeus chovia sobreo caminhordquo o que impediu Anticleia de descer o monte Neacuterito A OdisseiaXIX 406-409 no entanto cria outra etimologia para o pai de Telecircmaco oproacuterpiro Autoacutelico que fora a Iacutetaca visitar a filha e o genro e laacute encontrara oneto receacutem-nascido ldquopor ter se irritado () com muitos homens e mulheresque encontrara pela terra fecundardquo aconselhou aos pais que dessem aomenino o nome de Οδυσσεύς (Odysseuacutes) uma vez que o epiacuteteto lembra defato o verbo ὀδύσσομɑɩ (odyacutessomai) ldquoeu me irrito eu me zangordquo Narealidade ainda natildeo se conhece com precisatildeo a etimologia de Odysseacuteus() (BRANDAtildeO 2011b p304 grifo do autor)
Aleacutem de ser bisneto de Hermes Ulisses sempre recebeu ajuda da deusa
Atenaacute desde seu nascimento Durante a Guerra de Troia o heroacutei se aliou a
Diomedes outro protegido de Atenaacute e juntos os dois cometeram crimes aleacutem dos
necessaacuterios para a conquista da cidade atraindo o oacutedio de muita gente
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam que ainda que o Coacutedigo de
Honra tivesse sido ideia sua Ulisses natildeo gostou nada quando ficou sabendo que
teria que ir para Troia naquele momento e deixar para traacutes esposa e filho receacutem-
nascido Assim argumentou vaacuterias coisas e quando nenhuma delas deu certo e
Menelau chegou em Iacutetaca para buscaacute-lo Ulisses resolveu se fingir de louco Aleacutem do
momento lhe ser um tanto inoportuno um oraacuteculo jaacute o avisara de que ele voltaria
sozinho e soacute dali a vinte anos Assim de forma totalmente indigna para um rei
Ulisses vestiu um gorro e fingiu trabalhar no arado Prevenido contra a astuacutecia de
Ulisses Menelau foi a Iacutetaca acompanhado de seu primo Palamedes tambeacutem muito
astuto e inventivo Palamedes percebeu a artimanha e colocou Ulisses agrave prova
botando o pequeno Telecircmaco diante dele e desafiando-o a passar o arado sobre o
proacuteprio filho Sem escolha Ulisses abandonou seu disfarce e acompanhou
Agamecircmnon e seus homens agrave guerra Em Troia o heroacutei foi absolutamente dedicado
agrave causa dos atridas mas Palamedes nunca foi perdoado por ele por tecirc-lo
desmascadado e ao longo da guerra Ulisses se vingou de forma bastante cruel
Os gregos lapidaram-no debaixo dos muros de Troia depois que Ulisses introduziu
106
sub-repticiamente ouro e uma carta forjada de Priacuteamo em sua tenda Homero natildeo
nos revela nada disso (KEREacuteNYI 2015b p 303)
Como diversos outros heroacuteis Ulisses tambeacutem foi educado por Quiacuteron e
comeccedilou a demonstrar suas habilidades logo cedo Foi durante uma breve estadia
na corte do avocirc Autoacutelico que o heroacutei participou de uma caccedilada a javalis ndash caccedilada
que agraves vezes era fatal A experiecircncia acabou sendo mais importante para Ulisses do
que lhe pareceu na hora natildeo soacute ele sobreviveu apenas com uma cicatriz pouco
acima do joelho resultado de uma mordida como esta cicatriz permitiu que ele
fosse reconhecido quando de seu retorno agrave Iacutetaca apoacutes vinte anos de ausecircncia
Depois do episoacutedio com o javali Laerte enviou Ulisses ateacute Messena agrave corte do
rei Orsiacuteloco para reivindicar parte de seu rebanho que havia sido roubada Laacute
Ulisses conheceu o filho de Ecircurito e como prova de amizade os dois heroacuteis
trocaram armas foi assim que Ulisses acabou com o famoso arco divino com o qual
mataria os presunsoccedilos pretendentes de Peneacutelope
Brandatildeo (2011b) explica que Ulisses completa a doquimasiacutea (as primeiras
provas iniciaacuteticas) quando mata o javali ndash o que simboliza aquisiccedilatildeo de poder
espiritual ndash e depois quando conquista o arco ndash o que simboliza a aquisiccedilatildeo do
poder real por isso recebe o reino de Iacutetaca de Laerte e todas as suas riquezas
apoacutes conquistar estes dois feitos
Mas Ulisses ainda precisava se casar para ser considerado um rei de verdade
Assim inicialmente ele cortejou Helena No entanto apoacutes perceber que os
pretendentes de Helena eram muitos ele resolveu se voltar para a prima da bela
Peneacutelope afinal sempre fora um homem praacutetico A uniatildeo com Peneacutelope lhe
proporcionaria tantas vantagens quanto a uniatildeo com Helena e Peneacutelope tambeacutem
era bem bonita ndash mas natildeo tinha a fama de beleza da prima De qualquer forma
Ulisses conseguiu a matildeo de Peneacutelope em algumas versotildees do mito foi em troca da
ideia do Coacutedigo de Honra12 que fornecera a Tiacutendaro pai de Helena em outras ele
simplesmente ganhou uma corrida de carros em honra de Peneacutelope
Sobre o casamento de Peneacutelope e Odisseu Brandatildeo (2011b) afirma que este
tem duas versotildees de acordo com o mito uma delas atribui o casamento agrave influecircncia
do tio de Peneacutelope Tiacutendaro que facilitou as bodas do heroacutei com a sobrinha em
12 O Coacutedigo de Honra sugerido por Ulisses consistia num juramento entre todos os pretendentesoriginais em respeitar a escolha de Helena e lutar para defendecirc-la caso violada Ou seja casoalgueacutem fugisse com Helena todos os outros deveriam se unir para proteger a honra do maridopreviamente escolhido por ela
107
recompensa do Coacutedigo de Honra em outra versatildeo Peneacutelope fora o precircmio
concedido a quem vencesse uma corrida de carros e Odisseu venceu De qualquer
forma Peneacutelope se mostrou apaixonada pelo marido desde o comeccedilo quando
forccedilada pelo pai a escolher entre ficar em Esparta ou seguir o marido para a
longiacutenqua Iacutetaca ela preferiu ir embora com o marido ldquoA partir de Homero a
fidelidade de Peneacutelope se converteu num siacutembolo universal perpetuado pelo mito e
sobretudo pela literaturardquo (BRANDAtildeO 2011b p 343)
Mas o autor discorda desta imagem da rainha de Iacutetaca pois afirma que natildeo
corresponde a versotildees poacutes-homeacutericas do mito Tais versotildees contam que Peneacutelope
praticou adulteacuterio com todos os pretendentes durante a ausecircncia de Ulisses e que o
traiu ateacute mesmo apoacutes seu retorno Uma das versotildees inclusive narra que Odisseu
apoacutes ter descoberto sobre as infidelidades da esposa a banira de Iacutetaca Peneacutelope
teria se exilado primeiro em Esparta mas depois seguira para Mantineia onde
passara o resto da vida Em outra variante Ulisses teria matado Peneacutelope apoacutes
descobrir que ela tivera um caso com o pretendente Anfiacutenomo De qualquer forma
Brandatildeo (2011) chama atenccedilatildeo para o fato de que o mito natildeo discute a fidelidade de
Ulisses E apresenta uma hipoacutetese para o fato ldquoPossivelmente agravequela eacutepoca
adulteacuterio era do gecircnero feminino (BRANDAtildeO 2011b p 343)
72 TROIA
Mas para tratarmos da partida de Ulisses precisamos entender a Guerra de
Troia e por que ela aconteceu Por isso neste momento Kereacutenyi (2015b) nos conta
sobre as bodas de Teacutetis e Peleu que podem ser assinaladas como motivo para o
iniacutecio agrave guerra por assim dizer Teacutetis era uma das grandes deusas do mar e Zeus e
Posiacutedon a haviam disputado No entanto havia uma profecia de que um filho gerado
entre a deusa e um dos dois irmatildeos originaria um novo rei dos deuses E foi assim
que os dois acabaram abrindo matildeo dela e o noivo escolhido foi o mortal Peleu
Tratou-se de uma festa de casamento muito importante agrave qual os deuses
compareceram A deusa Eacuteris a Discoacuterdia no entanto natildeo fora convidada Mesmo
assim ela apareceu na festa e ao ter sua entrada barrada jogou uma maccedilatilde entre
os convidados Em outra versatildeo do mito teria sido Momo a censura quem
planejara tudo a Terra estava superpovoada e Zeus estava pronto para destruir a
108
humanidade quando Momo o aconselhou a gerar Helena e arranjar o casamento de
Teacutetis com Peleu jaacute sabendo de todas as consequecircncias dos dois eventos
Kereacutenyi (2015b) nos conta que a maccedilatilde jogada por Eacuteris entre os convidados
tem diferentes origens de acordo com diferentes autores mas de qualquer forma
nela estava escrito agrave mais bela Imediatamente Hera Afrodite e Atenaacute se acharam
igualmente merecedoras do tiacutetulo e comeccedilou a disputa que levaria agrave completa ruiacutena
de Troia e outras desgraccedilas
Na fortaleza de Troia Priacuteamo formou a maior famiacutelia real de que se tem notiacutecia
entre os heroacuteis Heacutecuba a rainha e suas concubinas lhe deram cinquenta filhos
homens ndash aleacutem das mulheres Heacutecuba jaacute havia dado agrave luz Heitor e estava graacutevida
novamente quando sonhou que paria uma brasa incandescente que incendiava
Troia Cassandra uma das filhas de Priacuteamo era profetisa mas por ter rejeitado
Apolo o deus lhe tirara a credibilidade Por isso quando ela determinou que a
crianccedila que Heacutecuba esperava devia ser morta ao nascer Priacuteamo natildeo seguiu o
conselho da filha em vez disso mandou abandonar o menino no Monte Ida Ali o
bebecirc foi amamentado por uma ursa durante cinco dias depois foi encontrado por
pastores que resolveram criaacute-lo Assim Paacuteris permaneceu vivendo no Monte Ida
sob o nome de Alexandre e se tornou um pastor forte e bonito
Quando do episoacutedio da disputa da maccedilatilde Zeus enviou Hermes ateacute este
priacutencipepastor troiano a fim de que ele decidisse a qual deusa pertencia o tiacutetulo de
mais bela Em troca do tiacutetulo cada deusa ofereceu um presente ao jovem Hera
ofereceu o poder sobre a Europa e a Aacutesia Atenaacute ofereceu o heroiacutesmo e Afrodite
ofereceu a mulher mais linda do mundo Helena O jovem escolheu o presente de
Afrodite insultando as outras duas deusas O primeiro passo de Afrodite a fim de
conceder-lhe Helena foi reconduzir Alexandre (Paacuteris) agrave casa dos pais Priacuteamo feliz
por descobrir que o filho estava vivo recebeu-o no palaacutecio concedendo-lhe seu
lugar de direito apesar dos alertas de Cassandra de que ele traria a ruiacutena de Troia
Kereacutenyi (2015b) explica que Helena foi cortejada numa eacutepoca em que o
costume era a futura noiva ser disputada por diversos pretendentes ao mesmo
tempo o que tanto permitia que a moccedila escolhesse seu esposo quanto permitia que
os rapazes se dessem conta de sua capacidade um detalhe importante eacute que a
corte natildeo precisava ser feita pessoalmente
109
Segundo o autor Ulisses foi um dos primeiros se natildeo o primeiro pretendente
de Helena No entanto o rei de Iacutetaca natildeo teria feito a corte pessoalmente nem
enviado presentes agrave bela pois sabia muito bem que Menelau seria o vitorioso O que
Ulisses fez em vez disso foi aconselhar Tiacutendaro o pai da moccedila sobre como lidar
com todos os pretendentes da filha Assim Ulisses foi autor do Coacutedigo de Honra
que estabelecia que Helena escolheria o proacuteprio marido e que os demais
pretendentes deveriam se unir e defender a uniatildeo caso algueacutem resolvesse disputar
a posse de Helena mesmo depois do casamento E em vez de se casar com
Helena Ulisses preferiu se casar com a prima dela Peneacutelope que se tornaria o
emblema da fidelidade para todos os tempos
De acordo com Kereacutenyi (2015b) Helena e Menelau jaacute estavam casados haacute dez
anos quando Paacuteris e Eneias chegaram em Esparta e foram recebidos pelo casal
real No deacutecimo dia no entanto Menelau teve que partir para Creta Foi quando
Helena cedeu agrave influecircncia de Afrodite e seguiu Paacuteris para Troia
Foi a mensageira dos deuses Iacuteris quem deu a notiacutecia a Menelau Este se
aconselhou com o irmatildeo Agamecircmnon em Micenas e depois com Nestor em Pilo13
e a recomendaccedilatildeo final foi de que ele mandasse Ulisses buscar Aquiles para enviaacute-
lo para a guerra ndash uma vez que Aquiles natildeo estava obrigado pelo Coacutedigo de Honra a
participar pois natildeo fora um dos pretendentes de Helena
Embora considerado o mais astuto dos homens Ulisses natildeo se revelou astuto
a ponto de conseguir fugir do proacuteprio Coacutedigo de Honra e portanto da Guerra de
Troia que o separou de Peneacutelope e Telecircmaco por vinte anos ndash dez anos de guerra
e mais dez anos da famosa jornada do heroacutei de retorno para casa
A primeira missatildeo de Ulisses na guerra foi acompanhar Menelau ateacute Delfos
para consultar o oraacuteculo Depois disso Ulisses Menelau e Palamedes foram para
Troia para tentar resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica mas os troianos se
recusaram a devolver Helena Entatildeo Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) nos contam
que Ulisses ajudou Menelau a ir buscar Aquiles que Teacutetis havia escondido na corte
de Licomedes mas cuja participaccedilatildeo na guerra era essencial para a vitoacuteria de
acordo com o adivinho Calcas Teacutetis conhecia o destino do filho caso ele lutasse em
Troia por isso deixou-o na ilha de Ciros vivendo como uma linda donzela ruiva entre
as filhas do rei sob o nome de Pirra
13 Pilo ou Pilos trata-se da mesma ilha com diferentes grafias dependendo do autor
110
Ulisses chegara ao palaacutecio disfarccedilado de comerciante provido de roupas
femininas que intencionava oferecer agraves filhas do rei e foi assim que conseguiu
entrar no aposento reservado agraves moccedilas No entanto debaixo dos vestidos tambeacutem
levou escudos e lanccedilas escondidos Enquanto as meninas olhavam as roupas
conforme ordens suas tocaram uma trombeta chamando para a batalha Foi
quando Aquiles correu para as armas Descoberto Aquiles partiu entatildeo para a
Guerra de Troia deixando para traacutes a princesa Deidamia graacutevida de um filho seu
Mais tarde Ulisses tambeacutem precisou ir buscar o menino em Ciros pois seria esta
uma das condiccedilotildees para que os gregos tomassem Troia
Outro episoacutedio que evidencia a astuacutecia inigualaacutevel de Ulisses se passou em
Aacuteulis os homens natildeo podiam dar continuidade agrave viagem pois Aacutertemis suspendera os
ventos O adivinho Calcas explicou que a deusa estava irritada com Agamecircmnon
pois ele ao matar uma corsa afirmara que executara o animal melhor do que
Aacutertemis Agora para se redimir com a deusa Agamecircmnon deveria sacrificar Ifigecircnia
sua primogecircnita
Para convencer Clitemnestra a levar a filha ateacute Aacuteulis Ulisses e Menelau
aconselharam Agamecircmnon a enviar uma mensagem falsa para a esposa dizendo
que ele queria casar a filha com Aquiles Assim que enviou a mensagem no entanto
Agamecircmnon ficou horrorizado com o que estava prestes a fazer ndash matar a proacutepria
filha ndash e tentou mandar uma segunda mensagem cancelando a primeira mas
Menelau o impediu
Quando Clitemnestra e seus filhos Ifigecircnia e Orestes chegaram ao
acampamento aqueu Agamecircmnon e Menelau estavam se demonstrando hesitantes
Vendo aquilo Ulisses tratou de colocar os demais reis e soldados contra os dois
irmatildeos obrigando-os a sacrificarem a moccedila a fim de cumprir o oraacuteculo No uacuteltimo
instante poreacutem Aacutertemis substituiu Ifigecircnia por uma corsa impedindo que Ulisses
Menelau e Agamecircmnon agravassem sua hybris
Ulisses ainda se destacou mais uma vez antes do iniacutecio da guerra por sua
astuacutecia incomparaacutevel quando interpretou corretamente o oraacuteculo em relaccedilatildeo agrave cura
de Teacutelefo ferido por Aquiles
De acordo com Brandatildeo (2011b) Ulisses partiu de Iacutetaca com doze navios
lotados de soldados e marujos No caminho para Troia foi desafiado por
111
Filomelides rei de Lesbos e na luta matou-o Durante um banquete em Lemnos
Ulisses e Aquiles tiveram uma discussatildeo aacutecida pois enquanto um considerava como
atributo mais importante a prudecircncia o outro considerava a bravura Agamecircmnon
ficou empolgado com a briga porquanto conforme uma previsatildeo de Apolo os
aqueus se apossariam de Troia quando reinasse a discoacuterdia entre os chefes
helenos entatildeo ele supocircs que se trataria de uma vitoacuteria raacutepida O autor afirma que
mais tarde este episoacutedio foi alterado pelos mitoacutegrafos que atribuiacuteram a discussatildeo a
Aquiles e Agamecircmnon como a primeira de muitas entre os dois Teria sido tambeacutem
em Lemnos ou em Crises ilhota vizinha que os aqueus abandonaram Filoctetes
por recomendaccedilatildeo de Ulisses O autor tambeacutem narra um evento que natildeo consta nos
poemas homeacutericos uma segunda missatildeo de paz agrave Troia na qual Ulisses e Menelau
mais uma vez tentam resolver a questatildeo do rapto de forma paciacutefica Desta vez
poreacutem as coisas quase terminaram mal para os dois aqueus porque os troianos
natildeo apenas recusaram qualquer acordo de paz como o povo amotinado queria
matar os visitantes Quem os salvou foi o conselheiro de Priacuteamo Antenor
Ulisses foi um dos grandes heroacuteis da Guerra de Troia sempre demonstrando
astuacutecia bom senso praticidade criatividade habilidade oratoacuteria e diplomacia
Coube a ele recuperar Filoctetes ndash outro requisito para a conquista de Troia de
acordo com a profecia Mas as proezas de Ulisses natildeo se resumem agraves suas tarefas
como embaixador corajoso e audacioso o heroacutei arriscou sua vida vaacuterias vezes
Junto com Diomedes seu companheiro de atrocidades durante a guerra
Ulisses armou uma cilada perigosa a fim de capturar Doacutelon espiatildeo troiano Depois
de terem feito Doacutelon revelar tudo o que queriam saber Diomedes lhe arrancou a
cabeccedila Baseados nas informaccedilotildees obtidas por meio do espiatildeo Ulisses e Diomedes
entraram no acampamento inimigo e apanharam Reso heroacutei traacutecio que viera ajudar
os troianos Entatildeo assassinaram-no tambeacutem e roubaram-lhe os cavalos pois uma
profecia dissera que Reso seria invenciacutevel caso seus cavalos tomassem aacutegua do rio
Escamandro
O Cavalo de Troia foi a maior faccedilanha de Ulisses durante a Guerra de Troia
isso ningueacutem questiona Mas as feitas e a crueldade do heroacutei segundo Brandatildeo
(2011b) natildeo terminam na idealizaccedilatildeo do Cavalo uma vez dentro de Troia ele foi o
primeiro a sair de seu ventre acompanhado por Menelau a fim de ir ateacute a casa de
Deiacutefobo buscar Helena Ulisses tambeacutem jogou do alto de uma torre o bebecirc
112
Astiacuteanax filho de Heitor Depois recomendou que Neoptoacutelemo (filho de Aquiles)
matasse Poliacutexena caccedilula de Priacuteamo sobre o tuacutemulo de seu pai a fim de promover
ventos favoraacuteveis para o retorno dos aqueus
Entre as pessoas que odiavam Ulisses jaacute durante a Guerra de Troia encontra-
se um dos antigos pretendentes de Helena Aacutejax filho de Teacutelamon Aacutejax tinha uma
estatura gigantesca erguia-se acima de todos nas batalhas e os poetas o fizeram
inferior somente a Aquiles em termos de aparecircncia e habilidades de luta
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Aacutejax se tornou ainda mais complicada apoacutes a morte
de Aquiles quando os dois disputaram a armadura do heroacutei morto confeccionada
por Hefesto e oferecida por Teacutetis em honra ao grego mais forte e corajoso da
guerra depois de Aquiles Tratava-se de uma escolha difiacutecil mas Atenaacute favoreceu a
vitoacuteria de Ulisses Agamecircmnon parecia natildeo saber resolver a questatildeo entatildeo pediu
ajuda a Nestor Este provavelmente influenciado por Ulisses sugeriu que
perguntassem para os prisioneiros troianos quem causara mais danos a Troia e a
resposta foi unacircnime Ulisses Inconformado com aquele resultado Aacutejax
enlouquecendo temporariamente trucidou um rebanho de carneiros pensando se
tratar dos gregos que lhe negaram a armadura de Aquiles Quando percebeu o que
tinha feito envergonhado Aacutejax se matou
Em outra versatildeo apresentada por Brandatildeo (2011b) apoacutes a tomada de Troia
Aacutejax teria pedido a morte de Helena o que provocou a ira de Menelau e
Agamecircmnon Cheio de sagacidade Ulisses conseguiu poupar Helena e devolvecirc-la a
Menelau Entatildeo Aacutejax pediu para ficar com o Palaacutedio ndash pequena estaacutetua de Atenaacute
dotada de propriedades maacutegicas Mais uma vez Ulisses interferiu contra ele e
convenceu os irmatildeos a natildeo lhe cederem a estatueta As ameaccedilas de Aacutejax se
agravaram de modo que Menelau e Agamecircmnon acharam por bem aumentarem
sua seguranccedila pessoal com guardas De qualquer forma na manhatilde seguinte Aacutejax
jaacute havia se suicidado
Brandatildeo (2011b) nos conta que a Guerra de Troia natildeo terminou com a morte de
Heitor pois os aqueus ainda precisavam obter trecircs coisas antes de conquistar a
vitoacuteria os ossos de Peacutelops o Palaacutedio que se encontrava dentro da cidade e o
regresso de Filoctetes que eles haviam abandonado em Lemnos ndash ideia de Ulisses
ndash devido ao seu machucado fedorento
113
Conquistados todos os requisitos os aqueus se prepararam para tomar e
destruir Troia Influenciado por Atenaacute Ulisses projetou o fatiacutedico cavalo de madeira ndash
mais conhecido como Cavalo de Troia ndash que foi introduzido na cidade lotado de
guerreiros ocultos em seu ventre que devastaram a cidade durante a madrugada
Feito isso os heroacuteis aqueus se prepararam para retornar agraves suas casas apoacutes dez
anos de guerra Entre eles estava Ulisses
73 RETORNO A IacuteTACA
Menelau e Agamecircmnon natildeo conseguiram concordar a respeito do momento de
partir Menelau queria levar Helena embora de Troia o mais raacutepido possiacutevel mas
Agamecircmnon queria prestar honras a Atenaacute antes da viagem Ulisses resolveu
esperar e ir embora com Agamecircmnon mas quando eles partiram uma grande
borrasca os separou levando os barcos de Ulisses para a regiatildeo dos Ciacutecones Laacute o
heroacutei e seus homens saquearam a cidade e mataram seus habitantes exceto o
sacerdote de Apolo Maratildeo que presenteou Ulisses com doze acircnforas de um vinho
delicioso doce e forte No entanto os Ciacutecones conseguiram contra-atacar matando
alguns companheiros de Ulisses antes que estes conseguissem voltar para os
barcos e fugir
Odisseu e seus homens navegaram para o sul e jaacute tinham avistado o cabo
Maleia quando mais uma vez foram atingidos por um vendaval que os fez vagar
pelo mar por nove dias ateacute finalmente chegarem ao paiacutes dos Lotoacutefagos onde os
habitantes comiam a flor do loto Trecircs companheiros de Ulisses experimentaram a
flor e perderam completamente a vontade de seguir viagem pois ela era maacutegica e
fazia as pessoas se esquecerem de suas origens Natildeo foi faacutecil para o heroacutei levaacute-los
de volta para o navio e ir embora daquele lugar
Do paiacutes dos Lotoacutefagos Ulisses e seus homens foram parar na terra dos
ciclopes Por precauccedilatildeo Ulisses resolveu deixar a maioria dos companheiros numa
ilhota Para explorar aquela terra desconhecida ele levou consigo apenas doze dos
seus melhores homens e um dos odres de vinho de Maratildeo Eles entraram numa
caverna alta redil de gordos rebanhos e ficaram aguardando o dono daquela
morada e a hospitalidade que esperavam lhes fosse prestada
Polifemo o ciclope proprietaacuterio da caverna chegou ao final do dia mas natildeo se
mostrou nada hospitaleiro de fato jantou seis companheiros de Ulisses Foi entatildeo
114
que o heroacutei resolveu oferecer-lhe o doce e forte vinho de Maratildeo e apoacutes embebedaacute-
lo o suficiente a ponto de fazecirc-lo pegar no sono Ulisses cegou-lhe o uacutenico olho
Polifemo acordou louco de dor e saiu da caverna pedindo ajuda gritando que
Ningueacutem o cegara ndash porque Ulisses dissera que se chamava Ningueacutem Nenhum
ciclope deu atenccedilatildeo ao pedido de ajuda julgando que Polifemo estava falando
bobagens Entatildeo o ciclope ficou na saiacuteda da gruta para pegar os homens e devoraacute-
los quando eles tentassem fugir Mais uma vez a astuacutecia de Ulisses entrou em cena
para salvar a pele dos companheiros amarrando os homens restantes sob a barriga
dos carneiros eles conseguiram escapar e chegar no barco
Homero (2013) nos conta com mais detalhes como se deu esta fuga que se
demonstrou fatiacutedica para o heroacutei Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a
alguma distacircncia quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela havia sido uma
vinganccedila porque ele natildeo havia sido hospitaleiro Em resposta o Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e jogou contra o barco de Odisseu mas errou o alvo por
sorte e eles saiacuteram ilesos Odisseu entatildeo resolveu provocar ainda mais Polifemo
apesar da tentativa de seus companheiros de persuadi-lo do contraacuterio dizendo que
ele natildeo devia provocar um homem selvagem daqueles Poreacutem Odisseu natildeo deu
ouvidos e gritou para Polifemo seu verdadeiro nome para que ele pudesse
responder corretamente quando lhe perguntassem a respeito de quem o cegara
Assim falaram mas natildeo persuadiram o meu magnacircnimo coraccedilatildeoDei-lhe entatildeo esta reacuteplica enfurecido no meu coraccedilatildeolsquoOcirc Ciclope se algum homem mortal te perguntarquem foi que vergonhosamente te cegou o olhodiz que foi Ulisses saqueador de cidadesfilho de Laertes que em Iacutetaca tem seu palaacuteciorsquo (HOMERO 2013 IX v 500-505)
Polifemo entatildeo gritou de volta que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito
daquele episoacutedio mas imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto
e natildeo por aquele baixote ordinaacuterio e fraco que o havia embebedado Em seguida
com oacutedio Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu
chegasse em casa No entanto caso seu regresso estivesse determinado pediu que
fosse um regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e
sozinho Posiacutedon ouviu e atendeu a prece do filho
Tendo escapado de Polifemo Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a
ilha de Eacuteolo senhor dos Ventos Diferente do ciclope Eacuteolo os acolheu e muito bem
115
passaram um mecircs farto em sua ilha antes de serem mandados para casa E na
partida para garantir que tudo corresse bem Eacuteolo ainda conteve todos os ventos
rebeldes num odre que entregou para Odisseu deixando liberto apenas Zeacutefiro que
deveria conduzi-los com tranquilidade ateacute Iacutetaca O uacutenico poreacutem eacute que obviamente o
odre natildeo deveria ser aberto para natildeo liberar os outros ventos
Durante nove dias os navios seguiram seu curso correto No deacutecimo quando
Iacutetaca jaacute estava agrave vista Odisseu exausto pegou no sono Foi quando seus
companheiros se apossaram do odre que ele ganhara de Eacuteolo julgando que
contivesse tesouros e o abriram liberando os demais ventos Na mesma hora
foram empurrados na direccedilatildeo contraacuteria e Ulisses acordou Quando percebeu o que
estava acontecendo se perguntou se deveria jogar-se no mar e morrer afogado de
uma vez mas resolveu continuar sofrendo e vivendo
De volta agrave Eoacutelia Ulisses e seus companheiros foram expulsos de laacute por Eacuteolo
que disse que eles estavam amaldiccediloados pelos deuses Depois de uma semana
vagando pelo mar os navios de Ulisses chegaram agrave Lestrigocircnia terra de gigantes
canibais que natildeo demoraram nada a devorar um dos companheiros de Odisseu
enviado para explorar a terra desconhecida Em seguida arremessaram pedras
contra os navios ancorados destruindo todos menos o de Odisseu que se
encontrava mais distante
O heroacutei fugiu com seu navio e tripulaccedilatildeo restante e foi parar na ilha de Eeia
tratava-se da morada da feiticeira Circe Odisseu mandou vinte e trecircs homens
sondarem o local Circe recebeu todos em seu palaacutecio de forma muito agradaacutevel fecirc-
los sentar-se e preparou-lhes uma poccedilatildeo Consumida a beberagem Circe
transformou todos em porcos Apenas Euriacuteloco escapou pois receoso natildeo entrara
no palaacutecio da bruxa Ele voltou para avisar Odisseu sobre o ocorrido e o heroacutei em
vez de fugir dirigiu-se ao palaacutecio da feiticeira para resgatar seus companheiros
Nesse momento Hermes assumindo a aparecircncia de um adolescente apareceu
diante dele para alertaacute-lo do perigo que ele corria com Circe e ensinaacute-lo como
escapar Hermes entregou a Odisseu a moacuteli uma planta que deveria servir como
antiacutedoto contra a poccedilatildeo da feiticeira Assim Odisseu foi ateacute o palaacutecio da bruxa
bebeu sua poccedilatildeo e quando ela o tocou com sua varinha a fim de transformaacute-lo em
porco o heroacutei manteve a forma humana surpreendendo-a Ele entatildeo sacou a
espada conforme as instruccedilotildees de Hermes e ameaccedilou Circe exigindo a reversatildeo
116
de seus companheiros E foi assim que Odisseu natildeo soacute obteve seus homens de
volta como desfrutou da hospitalidade e do amor de Circe por um ano De acordo
com Brandatildeo (2011b) dessa relaccedilatildeo entre o heroacutei e a feiticeira nasceram Teleacutegono
e Nausiacutetoo
Apoacutes um ano confortaacutevel em Eeia Ulisses e seus companheiros partiram mas
natildeo para Iacutetaca para o Hades Brandatildeo (2011b) comenta que nenhum heroacutei completa
seu Uroacuteboro sem descer real ou simbolicamente ao reino das sombras ou seja
sem fazer uma cataacutebase E a viagem de Ulisses ao Hades foi orientada por Circe a
fim de que ele pudesse consultar Tireacutesias para saber o que fazer para chegar em
Iacutetaca e mesmo depois que chegasse em Iacutetaca ndash ou seja a fim de conhecer o
restante de seu itineraacuterio e o fecho da sua proacutepria vida
A cataacutebase de Ulisses foi simboacutelica segundo o autor
Deixando a nau junto aos bosques consagrados a Perseacutefone e portanto agravebeira-mar andou um pouco mais para abrir um fosso e fazer sobre ele aslibaccedilotildees e os sacrifiacutecios rituais ordenados pela maga Tatildeo logo o sanguedas viacutetimas negras penetrou no fosso ldquoos corpos ancestrais os eiacutedolaabuacutelicosrdquo (exceto o eiacutedolon de Tireacutesias que talvez guardasse laacute embaixoseu noacuteos ldquoespiacuterito perfeitordquo) recompostos temporariamente vieram agravetona()O heroacutei pocircde assim ver e dialogar com muitas ldquosombrasrdquo particularmentecom Tireacutesias que lhe vaticinou um longo e penoso caminho de volta e umamorte tranquila longe do mar e em idade avanccediladahellip (BRANDAtildeO 2011bp 323 grifo do autor)
Apoacutes retornar do Hades Ulisses e seus companheiros tiveram outra breve
estadia na ilha de Eeia onde o heroacutei recebeu instruccedilotildees mais precisas de Circe
sobre seu itineraacuterio a fim de chegar em Iacutetaca a feiticeira o instruiu sobre como
passar pelas sereias como sobreviver a Cila e Cariacutebdis e tambeacutem para natildeo
consumir o rebanho de Heacutelio
O primeiro encontro do heroacutei foi com as sereias elas se alimentavam de carne
humana e tentariam atraiacute-lo bem como a todos seus companheiros com seu canto
irresistiacutevel Uma vez que os homens estivessem na aacutegua elas os devorariam A fim
de natildeo ceder agrave tentaccedilatildeo se atirar na aacutegua e morrer a tripulaccedilatildeo deveria tampar os
ouvidos com cera No entanto caso Ulisses desejasse ouvir o canto maravilhoso
deveria ser amarrado firmemente ao mastro de modo que natildeo pudesse se mexer
Como os homens estariam com cera no ouvido tambeacutem natildeo ouviriam suas suacuteplicas
para ser solto de modo que correria tudo bem ningueacutem iria se jogar no mar e
117
ningueacutem iria soltaacute-lo e ele conheceria e sobreviveria ao canto das sereias uma
enorme faccedilanha para um mortal
Tendo atravessado a ilha das sereias Odisseu e seus companheiros
precisavam passar pelos penhascos onde se escondiam Cila e Cariacutebdis e o mais
raacutepido possiacutevel pois tratava-se de dois monstros Quem escapasse do primeiro natildeo
escapava do segundo mas Circe ensinou a Odisseu como sobreviver ele teria que
navegar mais perto de Cila ndash e mesmo assim perdeu seis homens
Embora inconformado Ulisses seguiu viagem com seus companheiros
remanescentes Desta vez foram parar na ilha de Heacutelio onde foram obrigados a
passar um mecircs uma vez que os ventos pararam de soprar e eles natildeo tinham como
viajar Nisso toda a comida que tinham acabou e apesar da ordem expressa de
Ulisses de que natildeo deveriam tocar no rebanho do deus os marinheiros sacrificaram
as vacas e se banquetearam Por isso quando os ventos voltaram a soprar e os
homens se preparavam para partir Heacutelio pediu a Zeus vinganccedila e Zeus lanccedilou um
raio sobre o navio matando todos os homens exceto Ulisses que natildeo participara
do banquete
Odisseu se agarrou agrave quilha do navio e se deixou levar pelos ventos fortes
Mais uma vez Homero (2013) nos daacute mais detalhes da situaccedilatildeo do heroacutei que ficou
apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e Cariacutebdis e desta
vez sem navio e sem tripulaccedilatildeo O heroacutei soacute escapou dos monstros porque quando
se aproximou e Cariacutebdis tragou toda a aacutegua ele se pendurou numa figueira e ficou
laacute esperando que ela vomitasse os restos de seu barco para sentar-se sobres ele e
seguir remando com as matildeos e quando passou por Cila Zeus natildeo permitiu que ela
o visse Assim Odisseu vagou pelo mar por nove dias ateacute que no deacutecimo chegou agrave
ilha onde morava Calipso Tendo se apaixonado pelo heroacutei a ninfa o reteve em sua
ilha por algum tempo (e esse tempo varia de acordo com o autor) ndash alguns dizem
que foram dez anos outros oito cinco ou apenas um De acordo com Brandatildeo
(2011b) Odisseu e Calipso tiveram dois filhos Nausiacutetoo (que tambeacutem aparece como
filho de Odisseu e Circe) e Nausiacutenoo
A situaccedilatildeo entre Ulisses e Calipso se estendeu ateacute que Atenaacute interveio ela
pediu ao pai que mandasse Hermes avisar a ninfa que era hora de deixar o heroacutei
voltar para casa e Zeus atendeu ao pedido da filha Ainda que natildeo muito contente
Calipso precisou ceder agrave vontade de Zeus e concedeu a Ulisses o material do qual
118
ele precisava para construir uma jangada No quinto dia Ulisses partiu sob a
proteccedilatildeo de Atenaacute Posiacutedon no entanto ainda guardava rancor do heroacutei que cegara
seu filho Polifemo e descarregou toda sua raiva sobre a pequena jangada
destruindo-a
Mais uma vez Ulisses fica vagando pelo mar sobre um pedaccedilo de seu barco
destroccedilado Desta vez poreacutem ele recebeu a ajuda de Ino Leucoteia que lhe
emprestou um veacuteu o qual lhe serviria como talismatilde Foi agarrado a este talismatilde que
depois de trecircs dias exausto Ulisses conseguiu chegar em terra firme ainda que nu
e sozinho Por causa do cansaccedilo extremo o heroacutei se recolheu num bosque onde
Atenaacute lhe proporcionou um doce sono Ulisses estava agora na Feaacutecia
O heroacutei foi acordado por uma algazarra tratava-se de Nausiacutecaa e suas
companheiras que depois de terem lavado seu enxoval num rio ali perto agora
estavam jogando bola Nausiacutecaa era filha dos reis Alciacutenoo e Areta e Ulisses pediu
ajuda a ela Como ele estava nu e faminto ela lhe forneceu roupas e comida depois
o convidou ao palaacutecio Os Feaacutecios tinham uma vida tranquila e luxuosa e foram
bastante hospitaleiros com o heroacutei
Durante o banquete em homenagem ao hoacutespede e a pedido do proacuteprio o
aedo cantou a estrateacutegia mais audaciosa da Guerra de Troia a armadilha do cavalo
de madeira Ao ouvir Ulisses comeccedilou a chorar Alciacutenoo percebeu e pediu que ele
contasse um pouco mais de si
Com o famoso e convicto Εἴμrsquo Ὀδυσσεύς (Eiacutemrsquo Odysseuacutes) eu sou Ulisses oheroacutei desfilou para o rei e seus comensais o longo rosaacuterio de suas gestasgloriosas andanccedilas e sofrimentos na terra e no mar desde Iacutelion ateacute a ilhade Esqueacuteria (BRANDAtildeO 2011b p 329 grifo do autor)
Alciacutenoo primeiro tentou transformar em genro o famoso hoacutespede mas apoacutes
sua recusa educada lhe forneceu transporte ateacute Iacutetaca os barcos Feaacutecios eram
ceacutelebres por sua seguranccedila e rapidez e aleacutem disso Alciacutenoo carregou com
presentes o barco que levaria Odisseu
Ulisses dormiu durante a viagem de modo que os marujos de Alciacutenoo ao
chegarem em Iacutetaca o deixaram na praia junto com seus presentes habilmente
escondidos sob uma oliveira Os mesmos marujos e a mesma embarcaccedilatildeo
responsaacuteveis por deixar Ulisses em sua terra natal foram transformados num
rochedo por Posiacutedon no retorno agrave Feaacutecia cumprindo uma profecia antiga
119
Enquanto isso Brandatildeo (2011b) se aproveita do momento de descanso de
Ulisses para nos colocar a par do que houve em Iacutetaca nos vinte anos de sua
ausecircncia Quando Ulisses foi para a guerra Laerte que supostamente poderia ter
reassumido o trono natildeo o fez Sua situaccedilatildeo foi agravada pela morte da esposa que
morrera de saudades do filho e tambeacutem com a situaccedilatildeo dos pretendentes de
Peneacutelope Laerte mudou-se para o interior a viver ldquoentre os servos e numa
estranha espeacutecie de autopuniccedilatildeo a cobrir-se com andrajos a dormir na cinza junto
ao fogo no inverno e sobre as folhas no veratildeordquo (BRANDAtildeO 2011b p 330)
Telecircmaco ndash que de acordo com Homero foi o uacutenico filho de Ulisses e
Peneacutelope ndash era um bebecirc quando o pai foi para a guerra e foi deixado sob os
cuidados do grande amigo do heroacutei Mentor Os quatro primeiros cantos da Odisseia
se referem a Telecircmaco e ao iniacutecio de sua juventude Do canto XV ao XXIV do poema
satildeo narradas as tramas e lutas do rapaz ao lado do pai contra os pretendentes de
Peneacutelope
De acordo com Brandatildeo (2011b) Telecircmaco tinha 17 anos quando tentou
afastar os pretendentes de sua matildee que soacute faziam dilapidar os bens de seu pai
ausente Como os pretendentes reagiram planejando mataacute-lo Atenaacute interveio
prontamente e o aconselhou a viajar em busca de notiacutecias do pai Desta forma
Telecircmaco foi falar com Nestor em Pilos e depois com Menelau e Helena em
Esparta
Voltando agrave Iacutetaca e ao momento presente o autor afirma que depois de tantos
anos afastado ningueacutem acreditava que Ulisses ainda estivesse vivo ndash daiacute a
presenccedila dos 108 nobres pretendentes agrave matildeo de Peneacutelope em seu palaacutecio Todos
os pretendentes provinham de ilhas pertencentes a Ulisses E todos eles haviam
chegado laacute como simples aspirantes agrave esposa do heroacutei ausente no entanto ao
longo dos anos foram se tornando violentos arrogantes e autoritaacuterios e passaram a
agir como se fossem donos dos rebanhos e da adega de Ulisses Os servos que natildeo
os obedeciam fieacuteis a Ulisses eram mal tratados e a maioria das servas acabou por
se tornar amante deles
Para Brandatildeo
Peneacutelope aparece na realidade bastante retocada na Odisseia Tradiccedilotildeeslocais e posteriores nos fornecem da esposa de Ulisses um retrato muitodiferente do que nos eacute apresentado no poema homeacuterico Neste ela
120
desponta como o siacutembolo perfeito da fidelidade conjugal Fidelidadeabsoluta ao heroacutei ausente durante vinte anos (BRANDAtildeO 2011b p 331)
Quando forccedilada pelos pretendentes a escolher entre um deles Peneacutelope
resolveu fazer uma mortalha para o sogro prometendo que tomaria uma decisatildeo
assim que terminasse a mortalha No entanto ela desfazia de noite o que fizera de
dia A mentira durou trecircs anos ateacute que uma das servas deixou escapar para os
pretendentes o que a rainha estava fazendo e Peneacutelope precisou se esquivar da
escolha de outras formas
Atenaacute fez com que Ulisses adquirisse a aparecircncia de um velho mendigo
quando ele acordou e foi sob este disfarce que ele foi procurar o porcariccedilo Eumeu
seu servo mais fiel O disfarce era necessaacuterio neste momento para que Ulisses
tivesse noccedilatildeo do que estava acontecendo em seu palaacutecio e de quem lhe era fiel Ao
mesmo tempo conduzido por Atenaacute Telecircmaco estava de volta a Iacutetaca e foi
encontrar o pai na casa de Eumeu Ulisses revela sua identidade ao filho e eles
imediatamente comeccedilam a planejar a morte dos pretendentes de Peneacutelope
Neste momento do poema eacute importante mencionar outra demonstraccedilatildeo de
fidelidade que emocionou muito Ulisses a de seu cachorro Argos O catildeo agora
bastante velho abanou o rabo quando viu seu dono se aproximar Depois disso lhe
faltaram forccedilas e Argos deitou morto Ulisses chorou emocionado com a recepccedilatildeo
dos humildes Eumeu e Argos que divergia completamente da grosseria com que
havia sido recebido por Antiacutenoo o mais violento e orgulhoso dentre os pretendentes
de Peneacutelope
Os pretendentes fizeram Ulisses lutar com Iro o mendigo local a fim de diverti-
los e apoacutes a intervenccedilatildeo de Telecircmaco e a hospitalidade de Peneacutelope que recebeu
o falso mendigo em seu palaacutecio eles conversaram longamente a respeito das
saudades que ela sentia do marido
A hospitalidade de Peneacutelope no entanto quase arruinou os planos de Ulisses
e Telecircmaco contra os pretendentes quando ela chamou a velha ama Euricleia para
banhar o heroacutei Fideliacutessima como era Euricleia logo reconheceu a cicatriz na perna
de Ulisses Este teve que impor silecircncio agrave velha ama e conter-lhe as emoccedilotildees
Depois do banho rainha e falso mendigo retomaram o diaacutelogo
Para Odisseu aproximava-se o momento da vinganccedila Atenaacute o ajudou
inspirando Peneacutelope com a ideia da prova do arco assim a rainha anunciou que
121
apresentaria aos pretendentes o arco de Odisseu ela se casaria com aquele que o
armasse com mais facilidade e conseguisse fazer passar a flecha pelos orifiacutecios dos
doze machados
Aqui Brandatildeo (2011b) nos lembra de que um heroacutei sempre precisa conquistar
sua esposa ele tem que superar obstaacuteculos chegando a arriscar a proacutepria vida
Exemplos disso satildeo Heacuteracles Menelau e Jasatildeo
O resultado da prova proposta por Peneacutelope foi a falha de todos os
pretendentes que nem mesmo conseguiram armar o arco de seu esposo E foi soacute
por insistecircncia da rainha e do priacutencipe de Iacutetaca que os pretendentes aceitaram que o
mendigo Odisseu tentasse armar o arco Ele disparou a flecha e acertou todos os
alvos deixando a todos boquiabertos Entatildeo ele se despiu dos farrapos e o heroacutei
se despiu do homem do mar Era agora novamente o Odisseu guerreiro e assim
comeccedilou o aniquilamento dos pretendentes Antiacutenoo foi sua primeira viacutetima
Apenas quatro de seus servos foram poupados Dentre suas servas doze
foram punidas por imprudecircncia Mas Odisseu ainda precisava enfrentar a
desconfianccedila prudente de Peneacutelope O heroacutei agora remoccedilado graccedilas a um toque
maacutegico de Atenaacute precisava comprovar sua identidade para a esposa
Acontece que o leito conjugal havia sido construiacutedo com uma peculiaridade
conhecida apenas pelo casal E foi soacute quando Odisseu descreveu a cama que ele
mesmo fizera que Peneacutelope o reconheceu e aceitou
Talvez fosse prudente acrescentar que natildeo mais estamos em pleno marmas em plena madrugada no palaacutecio de Ulisses em Iacutetacahellip E como umasoacute madrugada eacute muito pouco para matar as saudades de vinte anos deausecircncia Atenaacute a deusa de olhos garccedilos ante a ameaccedila da aproximaccedilatildeopouco discreta da Aurora de dedos cor-de-rosa deteve-a em pleno oceanoe simplesmente prolongou a noitehellip (BRANDAtildeO 2011b p 335)
Enquanto as almas dos pretendentes eram impelidas para o Hades grande
maioria dos habitantes de Iacutetaca resolveu ir vingar seus filhos ou parentes De forma
que Ulisses Telecircmaco Laerte e outros poucos conduzidos por Atenaacute lidaram com
os vingadores A matanccedila teria sido grande mas Atenaacute interveio novamente
Brandatildeo (2011b) afirma que o final de vida paciacutefico que Tireacutesias previra para
Ulisses e que nos eacute apresentado por Homero na Odisseia natildeo eacute a uacutenica versatildeo da
velhice do heroacutei Tambeacutem como jaacute foi dito encontramos controveacutersias no que diz
respeito agrave fidelidade de Peneacutelope
122
Brandatildeo (2011b) esclarece que Peneacutelope e Ulisses natildeo viveram felizes para
sempre pois a fim de expiar o massacre dos pretendentes o heroacutei precisara fazer
um sacrifiacutecio para Hades Perseacutefone e Tireacutesias Feito o sacrifiacutecio ele se dirigiu a peacute
ateacute o paiacutes dos Tesprotos no Epiro Laacute seguindo recomendaccedilotildees de Tireacutesias fez
sacrifiacutecios a Posiacutedon tentando se reconciliar com o deus apoacutes ter cegado seu filho
Polifemo Nesse meio tempo no entanto Caliacutedice rainha da Tesproacutetida teria se
apaixonado pelo heroacutei e lhe oferecido metade de seu reino Desta uniatildeo teria
nascido Poliportes
O autor tambeacutem nos apresenta uma variante do mito segundo a qual Ulisses
apoacutes as acusaccedilotildees dos pais dos pretendentes foi condenado ao exiacutelio por
Neoptoacutelemo que cobiccedilava suas posses Refugiando-se na corte do rei Toas na
Etoacutelia Ulisses casou-se com a princesa e morreu de velhice confirmando a previsatildeo
de Tireacutesias De qualquer forma Brandatildeo (2011b) explica que ser banido e ter que
fazer sacrifiacutecios eacute algo comum nos mitos dos heroacuteis e tem a finalidade de purificaacute-
los
Em outra variante trazida pelo autor ao longo destas viagens Ulisses teria
encontrado o troiano Eneias e os dois teriam se reconciliado Assim Ulisses teria
ido para o domiacutenio etrusco de Tirrecircnia na Itaacutelia laacute fundando trinta cidades O heroacutei
teria lutado com valentia para estabelecer seu reino e laacute teria morrido em idade
avanccedilada
A versatildeo do mito na qual Ulisses morre em Iacutetaca na verdade eacute decorrente de
um acidente Acontece que Teleacutegono filho do heroacutei e de Circe apoacutes descobrir a
identidade do pai partiu agrave procura de Ulisses Desembarcando em Iacutetaca comeccedilou a
devastar os rebanhos O heroacutei velho e cansado foi em socorro de seus pastores
mas acabou morto pelo filho O jovem lamentou demais ao descobrir o que havia
feito a quem havia matado
Essas satildeo diferentes versotildees do final do mito mas todas parecem apontar para
a concretizaccedilatildeo das previsotildees de Tireacutesias de que Odisseu morreria velho tendo
fincado seu remo numa terra que natildeo conhecesse o mar o que de acordo com Stein
(2007) significa simbolicamente honrar as necessidades do inconsciente coletivo
123
8 ANAacuteLISE E DISCUSSAtildeO
Quando um homem segue as instruccedilotildees do seu inconsciente pode recebere aplicar esse dom que lhe permite de repente fazer da sua vida ateacute entatildeodesinteressante e apaacutetica uma aventura interior sem fim repleta depossibilidades criadoras (VON FRANZ 2008b p265)
Apoacutes ter discorrido nos capiacutetulos anteriores sobre a importacircncia atribuiacuteda por
Jung e demais autores poacutes-junguianos ao processo de individuaccedilatildeo e agraves
transformaccedilotildees que ocorrem no meio da vida e apoacutes abordar o papel da mitologia e
do arqueacutetipo do heroacutei para a psicologia analiacutetica trabalharemos com alguns eventos
da Odisseia organizados em ordem cronoloacutegica para darmos iniacutecio agrave nossa anaacutelise
do mito e demonstrar que por meio de uma leitura simboacutelica eacute possiacutevel
compreendecirc-lo como uma metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino dentro
do modelo junguiano
Em nossa anaacutelise consideraremos apenas os episoacutedios descritos no retorno do
heroacutei agrave Iacutetaca Natildeo trataremos de sua infacircncia e juventude de suas participaccedilotildees em
rituais de iniciaccedilatildeo de seu casamento com Peneacutelope nem de sua atuaccedilatildeo
determinante na Guerra de Troia
Conforme jaacute comentamos nossa anaacutelise do mito seraacute baseada na perspectiva
teoacuterica de Jung (2011 [1939]) e de demais autores que como ele consideravam a
individuaccedilatildeo um processo que teria iniacutecio no meio da vida quando o indiviacuteduo jaacute
estivesse com sua vida social relativamente estabelecida de modo que pudesse
lidar com questotildees mais pessoais Em nossa pesquisa natildeo encontramos a idade do
nosso heroacutei mencionada de forma expliacutecita No entanto a partir do que vimos com
Brandatildeo (2011b) e Kereacutenyi (2015b) no capiacutetulo anterior poderiacuteamos supor que
Ulisses se encontrava aproximadamente nessa fase da vida quando iniciou seu
retorno ndash pois o mito daacute a entender que ele era um rei esposo e pai jovem quando
precisou deixar a famiacutelia e o reino para ir lutar em Troia Assim somados aos dez
anos de Guerra o heroacutei estaria no iniacutecio do processo
Antes de abordarmos a Odisseia na tentativa de estabelecer uma metaacutefora
entre o poema e o processo de individuaccedilatildeo gostariacuteamos de lembrar rapidamente
que esta natildeo eacute a forma como Homero nos conta a histoacuteria do heroacutei o poema
comeccedila pelo meio e Ulisses jaacute se encontra sozinho e preso na ilha de Calipso
124
Todas as desgraccedilas sofridas durante os dez anos de seu retorno bem como os
desafios enfrentados por ele ao chegar em Iacutetaca satildeo narrados pelo poeta fora de
ordem o que poderiacuteamos relacionar ao que Stein (2007) explica a respeito da
dimensatildeo sincroniacutestica da experiecircncia liminar ndash que natildeo segue uma sequecircncia
cronoloacutegica ndash e nos permitiria a leitura simboacutelica do poema como um processo de
individuaccedilatildeo
Toda a viagem de Ulisses eacute realizada por meio de navegaccedilatildeo mariacutetima e de
acordo com Von Franz (2008b) podemos entender que a imagem ndash bastante
frequente em sonhos mitos e contos de fadas ndash da travessia de uma extensatildeo de
aacutegua sinaliza uma mudanccedila de atitude importante
Brandatildeo (2011b) nos apresenta um mapa ndash intitulado O retorno uroboacuterico de
Ulisses ndash que exemplifica o longo trajeto percorrido pelo heroacutei ateacute conseguir
regressar ao seu reino Embora Troia se encontrasse agrave direita e relativamente perto
de Iacutetaca ndash se considerarmos todo o tempo e a distacircncia que Odisseu demorou para
chegar ao seu destino ndash o heroacutei percorre um longo caminho ateacute chegar agrave ilha de
Circe que ele visita duas vezes ndash antes e depois de descer ao Hades ndash passando
por Cilas na primeira e Cariacutebdis na segunda ateacute finalmente se dirigir para sua casa
Esse caminho sinuoso pontuado pelas duas passagens por Circe e pelo estreito de
Cilas e Cariacutebdis representa bem o retorno uroboacuterico designado por Brandatildeo
(2011b) Jung (2011 [1956]) explica que o uroacuteboro eacute um siacutembolo que representa
tanto a integraccedilatildeo dos opostos quanto a renovaccedilatildeo de si-mesmo Ainda eacute
interessante observar que a direccedilatildeo do desenho demonstra o heroacutei se deslocando
sobretudo da direita para a esquerda A respeito disso Jung comenta que
[hellip] a direccedilatildeo rumo agrave esquerda indica em geral um movimento rumo aoinconsciente e para a direita (o do ponteiro do reloacutegio) indica a direccedilatildeo paraa consciecircncia O primeiro eacute sinister e o segundo eacute lsquodireitorsquo lsquocorretorsquo e lsquojustorsquo(JUNG 2011 [1939] p322 sect564 grifo do autor)
A nosso ver isto ajuda a respaldar a analogia que propomos entre a penosa
viagem de Ulisses e a individuaccedilatildeo masculina ndash uma vez que tanto a viagem
uroboacuterica quanto esse caminho para a esquerda estatildeo relacionados a este
processo
125
O heroacutei enfrenta inuacutemeros percalccedilos e leva dez anos ateacute conseguir chegar em
casa Somos entatildeo remetidos agrave maneira como Jung (2011 [1939]) nos explica a
individuaccedilatildeo o doloroso processo de desenvolvimento psicoloacutegico O autor afirma
ser essencial para o processo ndash apesar de se tratar de um movimento espontacircneo e
irracional da psique para o qual natildeo existe um meacutetodo a ser seguido ndash que se
compreenda onde se quer chegar ou seja o surgimento de uma espeacutecie de siacutembolo
unificador No caso do nosso heroacutei poderiacuteamos considerar que esse siacutembolo eacute o
casamento Retomaremos essa questatildeo no final da anaacutelise
Desse modo a longa e penosa viagem mariacutetima de nosso heroacutei representaria
que chegara o momento dele lidar com as tendecircncias preteridas De acordo com o
autor tambeacutem eacute comum quando somos inexperientes nessa tarefa que faccedilamos
isso por meio de projeccedilatildeo pois nesse comeccedilo natildeo costumamos estar cientes de
tambeacutem possuir aquelas caracteriacutesticas Poderiacuteamos pensar que este foi o motivo
para Ulisses ter deixado Troia acompanhado de seus homens mas precisado
chegar agrave Iacutetaca sozinho podemos entender as mortes dos companheiros do heroacutei ao
longo da viagem como siacutembolo de que ele estava integrando gradualmente as
caracteriacutesticas que antes lhe eram sombrias e que no mito aparecem
representadas pelas figuras dos companheiros
81 O INIacuteCIO DA VIAGEM DE VOLTA
Ao final da Guerra logo no iniacutecio da viagem os navios de Ulisses que
deixaram Troia acompanhados da frota de Agamecircmnon foram separados dos deles
por uma borrasca Desse modo o heroacutei ficou sozinho com seus companheiros e
suas naus Poderiacuteamos pensar que esse momento do mito traduz simbolicamente
o processo do heroacutei tendo iniacutecio por isso borrasca e a separaccedilatildeo dos barcos de
Agamecircmnon conforme vimos em Jung (2011 [1928]) a individuaccedilatildeo eacute tarefa
exclusiva onde cada um eacute responsaacutevel por percorrer e concluir seu proacuteprio caminho
e podemos analisar a borrasca do poema a partir da interpretaccedilatildeo de Von Franz
(2008b) para quem este tipo de imagem remete aos momentos iniciais do processo
quando a pessoa pode ter a sensaccedilatildeo de perda de controle sofrimento e
instabilidade futura
A tempestade mandou Ulisses e seus companheiros para a regiatildeo dos
Ciacutecones onde eles saquearam as cidades e mataram seus habitantes (poupando
126
apenas o sacerdote de Apolo que os presenteou com o vinho que seraacute usado para
embebedar Polifemo) Ulisses quis partir apoacutes o primeiro assalto mas seus homens
natildeo obedeceram e a devastaccedilatildeo continuou ateacute que os habitantes preparam um
contra-ataque forccedilando Ulisses e seus parceiros a fugirem alguns morreram
durante a debandada Nesta passagem podemos perceber que Ulisses ainda estaacute
identificado com a persona do homem guerreiro Nesse processo em estaacutegio inicial
podemos entender os companheiros que se recusam a partir como manifestaccedilotildees
de aspectos da psique do heroacutei que ainda natildeo estatildeo dispostos ao esforccedilo que a
individuaccedilatildeo exige entatildeo literalmente sabotam a jornada A morte de alguns de
seus companheiros no momento da fuga indica que a integraccedilatildeo de conteuacutedos
sombrios jaacute estaacute comeccedilando
Odisseu e seus homens seguem viagem mas tecircm seu curso alterado
novamente por um vendaval que apoacutes fazecirc-los vagar agrave deriva por dias os arrasta
para o paiacutes do Lotoacutefagos onde podemos encontrar outro exemplo de sabotagem do
processo (a dependecircncia quiacutemica) pois trecircs companheiros se viciaram em loto
(planta com substacircncias psicoativas) e o heroacutei precisa levaacute-los embora agrave forccedila
Metaforicamente podemos considerar as drogas como outra forma de fuga de
evitar entrar em contato e adquirir consciecircncia de determinados conteuacutedos
inconscientes desagradaacuteveis que estatildeo comeccedilando a emergir
82 ENCONTRO COM POLIFEMO
O proacuteximo perigo enfrentado por eles se passa na caverna de Polifemo filho de
Posiacutedon Ulisses acompanhado por doze companheiros resolveu espiar o interior
da morada do ciclope de imediato o dono da casa devorou seis deles A fim de
escapar com os homens que haviam sobrado Ulisses decidiu embriagar e cegar
Polifemo O heroacutei estava prestes a fugir incoacutegnito quando resolveu revelar sua
identidade desencadeando a vinganccedila de Posiacutedon Nesta passagem do mito temos
um exemplo da astuacutecia do heroacutei mas tambeacutem vemos simbolizados os riscos que o
orgulho em excesso representa para nosso desenvolvimento psiacutequico
Stein (2007) pode nos ajudar a compreender o embate entre Ulisses e o deus
dos mares segundo ele poderiacuteamos entender a situaccedilatildeo como manifestaccedilotildees de
sintomas psicopatoloacutegicos decorrentes do arqueacutetipo negligenciado O autor ainda
afirma que conhecer e saber interpretar estes sintomas nos pode favorecer
127
Apesar de Alvarenga e Baptista (2011) considerarem Odisseu como um tipo
intuiccedilatildeo com pensamento auxiliar para Cordeiro (2010) o heroacutei representa um tipo
pensamento intuitivo e achamos que faz mais sentido pensar nessa tipologia se
analisarmos tudo o que Posiacutedon representa simbolicamente (o mundo emocional) e
no poema (o grande antagonista do heroacutei) Compartilhamos a opiniatildeo de Cordeiro
(2010) devido a diversos trechos da vida de Ulisses na qual ele usa sua astuacutecia e
inteligecircncia para vencer as adversidades de forma tatildeo fria que agraves vezes segundo
Brandatildeo (2011b) beira a psicopatia Consideramos por exemplo que a escolha de
Ulisses pela esposa Peneacutelope natildeo foi devida ao amor e sim por uma questatildeo
praacutetica frente a grande quantidade de pretendentes de Helena
Jung (2011 [1939]) enfatiza que na individuaccedilatildeo eacute importante que
desenvolvamos a nossa funccedilatildeo inferior ndash aleacutem de integrarmos todos os outros
conteuacutedos natildeo desenvolvidos ndash para que nossa consciecircncia deixe de ser dominada
por eles Nesse momento podemos considerar as dificuldades e vinganccedilas
impostas por Posiacutedon ndash motivo principal do atraso na viagem de Ulisses ndash como
momentos em que a funccedilatildeo inferior do heroacutei ndash que de acordo com Cordeiro (2010)
seria o sentimento ndash invadiria a consciecircncia dele No mito podemos entender isso
retratado pelo arqueacutetipo do deus diretamente ligado agrave emoccedilatildeo De acordo com
Cordeiro (2010) a funccedilatildeo superior de Posiacutedon seria sentimento em completa
oposiccedilatildeo agrave funccedilatildeo superior de Ulisses Assim podemos entender Posiacutedon como um
aspecto sombrio do heroacutei capaz portanto de contaminar sua funccedilatildeo superior
Podemos entender que Ulisses ainda identificado com o guerreiro natildeo estaria
pronto para desenvolver esse conteuacutedo (a funccedilatildeo sentimento) por isso os aspectos
sombrios que seriam representados por seus companheiros continuariam a se
manifestar impedindo a continuidade da viagem
Outro episoacutedio que pode ser entendido metaforicamente como uma sabotagem
a este processo eacute encontrada quando Ulisses e seus companheiros estatildeo quase
chegando em Iacutetaca conduzidos ateacute laacute com a ajuda do deus dos ventos O heroacutei
adormece e seus companheiros julgando que o odre recebido pelo deus conteacutem
tesouros resolvem abri-lo liberando os ventos rebeldes e acabam empurrados de
volta agrave Eoacutelia Mas desta vez Eacuteolo os expulsa dizendo que estatildeo amaldiccediloados pelos
deuses Esta eacute a primeira ocasiatildeo (cronologicamente durante o retorno) em que
Ulisses eacute prejudicado pelo comportamento dos companheiros por ter caiacutedo no sono
128
Em seguida vatildeo parar na Lestrigocircnia ilha de gigantes canibais que atacam os
barcos de modo que soacute resta o navio de Odisseu e os homens que estavam nele ndash
o nuacutemero de companheiros do heroacutei diminui cada vez mais a cada dificuldade
enfrentada
83 ENCONTRO COM A CIRCE
Na ilha de Circe a feiticeira transforma em porcos os companheiros que
Ulisses enviou para explorarem o local Somente escapou Euriacuteloco que
desconfiado natildeo entrou no palaacutecio Ele sugere a Ulisses que fujam mas o heroacutei
pega as suas armas para ir defender seus companheiros Nesse momento Odisseu
recebe ajuda divina de Hemes que aparece para ele sob a forma de um jovem
sobre como lidar com a feiticeira sem perder a condiccedilatildeo humana tambeacutem Aleacutem das
instruccedilotildees o deus tambeacutem fornece uma planta para protegecirc-lo das poccedilotildees Ulisses
recupera seus companheiros e eles permanecem na ilha por um ano o heroacutei tecircm
filhos com a feiticeira Quando chega o momento de Ulisses ir ao Hades consultar
Tireacutesias eacute Circe quem o orienta
Podemos considerar Hermes nesta passagem como uma manifestaccedilatildeo do Self
Stein (2007) explica que eacute no limiar psicoloacutegico que o ego recebe a orientaccedilatildeo de
Hermes pois quando nos encontramos neste estado de limiar psicoloacutegico a figura
do deus surge representando o Self nas funccedilotildees de mensageiro e de guia Para o
autor ao enviar estas mensagens para o ego o inconsciente pretende ajudaacute-lo a se
aprofundar nos limites da psique e voltar ileso Sobre o aspecto jovem de Hermes
Von Franz (2008b) ressalta que o Self pode ser personificado por um jovem pois eacute
ao mesmo tempo velho e novo ele transcende o tempo e o espaccedilo A figura jovem
estaacute relacionada aos aspectos de vitalidade criativa de renovaccedilatildeo de iniciativa de
uma nova orientaccedilatildeo espiritual
Podemos ver metaforizada nessa passagem do mito o primeiro contato de
Odisseu com um personagem feminino que podemos entender como uma imagem
da anima Inicialmente eacute um contato arriscado e negativo (trata-se de uma feiticeira
ela tem autonomia forccedila conhecimentos que o heroacutei desconhece como um
complexo) mas depois que Ulisses aprende a lidar com ela ela perde seu caraacuteter
demoniacuteaco passando a exercer uma influecircncia positiva
129
Von Franz (2008b) afirma que eacute comum que a anima apareccedila personificada por
feiticeiras ou sacerdotisas (o aspecto inconsciente) No mito de Ulisses esse
aspecto da psique do heroacutei aparece primeiro representado por Circe depois por
Calipso No caso de Circe o primeiro contato deles eacute negativo e soacute apoacutes a ajuda de
Hermes se torna positivo Von Franz (2008b) tambeacutem discute os aspectos positivo e
negativo que a anima pode assumir e que nos casos individuais estatildeo ligados ao
relacionamento do homem com a matildee A autora descreve os aspectos negativos da
anima como mulheres perigosas atraentes misteriosas caprichosas provocadoras
Como aspectos positivos Von Franz (2008b) destaca as funccedilotildees de mediadora e de
guia entre o homem e seu interior e a facilitar a comunicaccedilatildeo entre consciecircncia e
inconsciente De fato Circe instrui Ulisses sobre como ir e voltar do Hades e o que
fazer para se comunicar com as almas quando estivesse laacute
84 DESCIDA AO HADES
No Hades Ulisses tem a oportunidade de conversar com vaacuterias almas
incluindo a de sua matildee Mas a finalidade de sua descida aos Iacutenferos foi se
aconselhar com Tireacutesias sobre o que fazer para chegar agrave Iacutetaca Tireacutesias explica que
ao chegar na ilha de Heacutelio natildeo deve de forma alguma comer o rebanho do deus
caso contraacuterio perderia todos os seus homens remanescentes e levaria mais tempo
para chegar agrave casa Aleacutem disso explica-lhe que para apaziguar a ira de Posiacutedon
depois de retornar agrave Iacutetaca e se vingar dos pretendentes deveria partir levando
consigo um remo para fincaacute-lo numa terra onde natildeo conhecem o mar
Ulisses foi um dos poucos mortais a conhecer o Hades em vida (como tambeacutem
Heacuteracles Orfeu Teseu e Psiquecirc) e sua tarefa laacute teve caraacuteter motivo e desfecho
diferentes dos encontrados nos outros mitos Alvarenga (2015) afirma que
simbolicamente descer aos Iacutenferos como fazem os heroacuteis significa confrontar-se
com a sombra com tudo aquilo que eu desconheccedilo e que estaacute fora da minha
consciecircncia que natildeo faz parte da minha identidade Trata-se de uma morte
simboacutelica e portanto proporcionaraacute transformaccedilatildeo mas natildeo sem antes causar dor A
morte simboacutelica permite que o ego integre siacutembolos estruturantes essenciais para o
autoconhecimento
Podemos considerar que este eacute um momento crucial no processo de
individuaccedilatildeo de Ulisses teriacuteamos aqui um encontro entre o ego e o Self simbolizado
130
por Tireacutesias Stein (2007) explica que a descida ao Hades corresponde ao
movimento psicoloacutegico de se voltar profundamente para si mesmo e que eacute durante
esta descida agraves profundezas que ocorre o encontro com o Self agora com imagens
novas e relevantes a respeito da vida e nosso encontro com ele nos proporcionaraacute
pistas acerca do novo indiviacuteduo que estaacute surgindo e sobre as tarefas que ele ainda
precisa cumprir Na mitologia Tireacutesias eacute o uacutenico mortal a quem Perseacutefone rainha do
Hades consentiu que mantivesse sua consciecircncia e seus dons profeacuteticos depois de
morto E de fato Tireacutesias natildeo soacute explica a Ulisses o que ele deve fazer para voltar
para casa ou seja como prosseguir com seu processo de individuaccedilatildeo mas
tambeacutem lhe daacute uma tarefa a cumprir O que significaria simbolicamente fincar o
remo numa terra onde natildeo se conhece o mar
Stein (2007) conclui que esta fase de transiccedilatildeo para o liminar da meia-idade
traz agrave tona uma nova consciecircncia de si mesmo pois permite que a pessoa conheccedila
seu inconsciente ela entende que natildeo eacute soacute ego tambeacutem possui um Self por isso
Stein (2007) fala em despertar e em libertaccedilatildeo da alma
No Hades Ulisses conversou com Anticleia sua matildee Aqui entendemos que
se trata novamente de um aspecto da sua anima Jung (2011 [1928]) explica que a
matildee eacute a primeira portadora da projeccedilatildeo da anima do homem e portanto
desidentificar-se dela eacute uma tarefa um tatildeo necessaacuteria quanto complicada De fato
podemos interpretar o fato de Ulisses tentar abraccedilaacute-la trecircs vezes sem sucesso
como uma representaccedilatildeo dessa dificuldade Outros encontros significativos neste
trecho foram com Agamemnon e Aquiles Agamemnon lhe conta a histoacuteria de como
fora assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto enquanto Aquiles lamenta
sua condiccedilatildeo de morto e afirma que preferiria viver humildemente do que morrer
cheio de gloacuteria Aqui consideramos que se tratam de conteuacutedos inconscientes de
Ulisses pois estatildeo em total oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de um heroacutei que conforme
Brandatildeo (2011b) satildeo sua honra e sua excelecircncia Podemos interpretar esses
diaacutelogos como a necessidade do heroacutei de se desprender de seu lado guerreiro
O heroacutei volta para a ilha de Circe Ela ajuda novamente Ulisses ensinando-o a
ouvir o canto das sereias sem sucumbir agrave tentaccedilatildeo Tambeacutem avisa-o que precisaraacute
escolher entre passar por Cilas e Cariacutebdis Ela o instrui a evitar Cariacutebdis pois natildeo
sobreviveria e a seguir por Cilas mesmo perdendo seis homens Ela tenta dissuadi-
lo de enfrentar o monstro pois seria inuacutetil Por fim assim como Tireacutesias ela adverte
131
Ulisses que chegaraacute agrave ilha do deus sol e que deveraacute deixar incoacutelume o seu rebanho
Ulisses conforme Circe lhe ensinou instrui seus homens a amarraacute-lo ao mastro do
navio e a tampar os ouvidos com cera As sereias aqui podem representar outro
aspecto negativo da anima pois satildeo monstros que atraem e afogam marujos com
seu canto ndash representando a atraccedilatildeo sexual e os impulsos bioloacutegicos Podemos
entender que Ulisses poreacutem jaacute integrou essa parte da sua anima e assim
consegue resistir ao canto Podemos considerar tambeacutem que Cilas eacute uma passagem
necessaacuteria para o heroacutei da qual ele natildeo pode escapar Representa a necessidade
do ego de se entregar ao inconsciente coletivo Apesar do aviso de Circe Ulisses se
arma mesmo assim com a intenccedilatildeo de proteger seus companheiros Mas eacute inuacutetil o
rei de Iacutetaca perde novamente companheiros Esse trecho mostra que Ulisses ainda
luta contra seu processo de individuaccedilatildeo ainda natildeo estaacute pronto para deixar de ser o
Ulisses guerreiro a se curvar ao seu destino Ainda assim ele eacute pouco a pouco
compelido a integrar o seu aspecto sombrio representado pela perda de alguns de
seus companheiros
85 ENCONTRO COM CALIPSO
Apoacutes passar pelas sereias e por Cilas Ulisses e seus homens chegam agrave ilha
de Heacutelio conforme previsto por Tireacutesias Ulisses compartilha com seus
companheiros a profecia do adivinho Infelizmente natildeo conseguem prosseguir a
viagem pois o vento cessa completamente (ver qual eacute o vento eacute o Zeacutefiro) Ficam
presos por um mecircs enquanto todas as provisotildees que haviam no navio acabam
Ulisses se recolhe para meditar e acaba dormindo Esfomeados os seus homens
ignoram o aviso de Ulisses e fazem um banquete com os bois O heroacutei volta e
percebe o que eles fizeram na sua ausecircncia Neste instante as carnes comeccedilam a
mugir e a se mover Os homens percebem que estatildeo amaldiccediloados mas a fome fala
mais alto Ulisses eacute o uacutenico a natildeo se alimentar do rebanho do deus sol Depois do
banquete macabro o vento volta a soprar e eles podem finalmente zarpar Mas a
vinganccedila dos deuses eacute imediata Zeus a pedido de Heacutelio lanccedila um raio na
embarcaccedilatildeo Ulisses eacute o uacutenico sobrevivente agarrado agrave quilha do navio Vemos
novamente nesse trecho a accedilatildeo do inconsciente pois o ego eacute compelido a integrar
seus aspectos sombrios pois o vento que levaria Ulisses para casa soacute volta a soprar
depois que o rebanho de Heacutelio eacute sacrificado Este aliaacutes eacute outro trecho onde o heroacutei
132
dorme enquanto seus companheiros agem contra sua vontade Isso pode
representar o ego sendo tomado pela sombra Mas eacute soacute quando o ego confronta
esses aspectos ndash ou seja quando Ulisses vecirc e admoesta seus companheiros ndash que
ele integra a sua sombra e consegue prosseguir viagem sozinho
Ulisses precisa entatildeo passar por Cariacutebdis mas dessa vez sem barco nem
tripulaccedilatildeo Ele consegue sobreviver graccedilas agrave ajuda de Zeus e agrave sua astuacutecia
segurando-se a um ramo de oliveira Ele estaacute agora totalmente agrave deriva Cariacutebdis
um monstro marinho que sugava e cuspia a aacutegua do mar trecircs vezes ao dia lembra a
figura do dragatildeo-matildee ou matildee-terriacutevel de Jung (2011 [1935]) Eacute um monstro que
vive nos mares do ocidente de boca escancarada devorando os homens que
passam por ela Poderiacuteamos relacionar essa matildee-sarcoacutefago com sua matildee Anticleia
Jung (2011 [1935]) afirma que o dragatildeo-matildee engole seu filho novamente depois que
a faz nascer Anticleia conforme ela mesma conta se afogou no mar acreditando
que seu filho morrera Poderiacuteamos pensar entatildeo numa matildee devoradora Mas no
caso de Ulisses ele natildeo eacute engolido consegue com a ajuda do Self aqui
representado por Zeus se agarrar a um ramo de oliveira para sobreviver Podemos
supor que ele jaacute identificou este aspecto negativo e devorador da anima Seu ego
natildeo poderia mais ser invadido por esses conteuacutedos
Apoacutes vagar no mar por nove dias ele chega agrave ilha de Calipso Apaixonada por
ele ela reteacutem o heroacutei laacute por vaacuterios anos ateacute que Atena pede a Zeus que envie
Hermes para convencer Calipso a deixar Ulisses partir Contrariada Calipso
concede o material para Ulisses construir a jangada para a viagem Temos nessa
passagem duas manifestaccedilotildees da anima Podemos entender que ela comeccedila ndash
assim como foi com Circe ndash negativa pois Ulisses eacute retido contra a sua vontade
Poreacutem apoacutes uma nova intervenccedilatildeo do Self ela passa a ser positiva Isso eacute expresso
quando Ulisses recusa a oferta de imortalidade pela deusa ele finalmente quer
prosseguir no seu processo de individuaccedilatildeo Outro momento significativo eacute quando
ela ensina o heroacutei a construir sua proacutepria jangada assim como o processo de
individuaccedilatildeo eacute algo que ele precisa fazer sozinho Nesse momento Ulisses integrou
esse aspecto romacircntico da anima A outra manifestaccedilatildeo da anima estaacute representada
por Atenaacute representando a sabedoria Mas a sua ajuda eacute indireta inconsciente
porque Ulisses ainda natildeo estaacute pronto para identificaacute-la
133
86 OS FEAacuteCIOS
Apoacutes 18 dias no mar Ulisses avista a terra dos Feaacutecios Nesse momento
Posiacutedon retornando da Etioacutepia percebe que Ulisses estaacute quase a salvo Ele lanccedila
um uacuteltimo ataque agitando os mares para naufragar e afogar o heroacutei A deusa Ino
interveacutem a favor do heroacutei ela o orienta a se desfazer de sua jangada e de sua
armadura nadar no mar agitado com a ajuda de um veacuteu maacutegico Apesar da sua
relutacircncia inicial Ulisses natildeo tem escolha a natildeo ser obedecer Levado pelas ondas
Ulisses chega satildeo e salvo a Feaacutecia Ele devolve o veacuteu ao mar conforme instruiacutedo
por Ino antes de desmaiar vencido pelo cansaccedilo Neste confronto final com
Posiacutedon o ego eacute obrigado pela atuaccedilatildeo da sombra a entrar em confronto com seus
aspectos inconscientes representado por Ulisses se jogando no mar agitado sendo
levado pelas ondas O mar eacute uma representaccedilatildeo comum do inconsciente Ajudado
novamente pela anima desta vez representada por Ino Ulisses precisa se desfazer
de sua jangada e de sua armadura Podemos entender aqui que se trata do ego se
desidentificando com a persona
Chegamos entatildeo ao estaacutegio final do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses pois
ele chega agrave Feaacutecia sozinho e nu Ele integrou diferentes aspectos de sua anima
integrou os aspectos sombrios representados por seus companheiros e
desidentificou-se com a persona ao abandonar todas as posses e armas que havia
conquistado durante a Guerra de Troia e sua viagem de volta Podemos dizer que
Ulisses perdeu sua identidade antiga e renasce quando atinge a costa da Feaacutecia
pois emerge do mar nu e exausto tal um receacutem-nascido Ao encontrar Nausiacutecaa ndash
filha do rei Alciacutenoo e da rainha Areta ndash e suas servas ele pede ajuda com
humildade abraccedilando os joelhos da moccedila Essa atitude eacute ineacutedita para o orgulhoso
rei de Iacutetaca que outrora revelara seu nome ao ciclope Polifemo atraindo para si a
fuacuteria de Posiacutedon Na Feaacutecia Ulisses recebe a ajuda de Nausiacutecaa e Atenaacute Eacute a
primeira vez na Odisseia que Atenaacute ajuda o heroacutei diretamente mas ainda sem se
manifestar para ele no canto ela aparece como a amiga de Nausiacutecaa num sonho
para inspiraacute-la a ir ao rio onde Ulisses dormia e aparece como uma menina para
guiar o heroacutei ateacute o palaacutecio Podemos entender que conforme Ulisses segue no seu
processo de individuaccedilatildeo Atenaacute estaacute cada vez mais presente e atuante na vida do
heroacutei Mas assim como no episoacutedio com Calipso ele ainda natildeo estaacute pronto para
confrontaacute-la diretamente Diferentemente da sua atuaccedilatildeo com Calipso poreacutem que
134
foi indireta atraveacutes de Hermes desta vez a influecircncia da deusa eacute direta Ao chegar
ao palaacutecio temos novamente um exemplo de mudanccedila em Ulisses pois este se
joga aos peacutes de Areta suplicando por ajuda Os reis feaacutecios satildeo muito hospitaleiros
com ele organizando um banquete com a cidade toda em sua homenagem Durante
o banquete Ulisses pede para o aedo cantar a armadilha mais audaciosa da Guerra
de Troia O aedo canta sobre o Cavalo de madeira Ulisses chora Alciacutenoo o vecirc
chorando e pede para Ulisses falar de si Ulisses conta todos os eventos que
ocorreram durante sua conturbada viagem de retorno ateacute chegar agrave Feaacutecia Alciacutenoo
pergunta a Ulisses se ele quer se casar com Nausiacutecaa O heroacutei responde
educadamente que natildeo que precisa voltar para sua famiacutelia Entatildeo Alciacutenoo lhe
fornece um transporte para levaacute-lo agrave Iacutetaca cheio de presentes
Nessa passagem Ulisses eacute resgatado acolhido e ajudado pelos Feaacutecios que
satildeo descendentes de Posiacutedon Podemos considerar que o heroacutei estaacute integrando sua
funccedilatildeo inferior pois ele acaba renovando sua identidade primeiro recupera seu
nome ao revelaacute-lo a Alciacutenoo em seguida a sua histoacuteria ao contaacute-la aos Feaacutecios
presentes no banquete e por fim recupera ateacute suas riquezas com os inuacutemeros
presentes que recebe dos Feaacutecios Ele cria um novo ego menos orgulhoso e mais
em contato com sua sombra sua funccedilatildeo inferior O choro ao ouvir a histoacuteria do
Cavalo de Troia poderia significar uma ruptura com seu passado de guerreiro e a
transposiccedilatildeo de suas proacuteprias barreiras egoacuteicas
87 IacuteTACA
Ulisses transformado pode finalmente voltar agrave Itaca Enquanto Ulisses dorme
os feaacutecios que o acompanharam o deixam com seus presentes na ilha Este fato eacute
significativo justamente porque natildeo acontece nenhum novo contratempo
prolongando ainda mais o seu retorno Logo isso nos mostraria que Ulisses natildeo eacute
mais tomado pelos seus conteuacutedos sombrios por estar mais agrave vontade com a sua
funccedilatildeo inferior Poderiacuteamos dizer que ele estaacute em paz consigo mesmo os conteuacutedos
inconscientes natildeo vecircm mais agrave tona para sobrepujar o ego
Ao acordar Ulisses desorientado eacute recebido por Atenaacute disfarccedilada Ela
confirma que estatildeo em Iacutetaca e testa sua sabedoria ao perguntar quem ele era
Ulisses usando de sua astuacutecia inventa uma histoacuteria Eacute entatildeo que Atenaacute revela sua
verdadeira identidade a ele Aqui podemos cogitar que Ulisses estaacute finalmente
135
pronto para integrar esse aspecto da sua anima pois ele demonstra sabedoria ao
ocultar sua identidade e ao evitar de se precipitar ao palaacutecio onde certamente seria
morto para encontrar sua esposa e filho A partir deste momento Atenaacute se torna sua
aliada ajudando-o a derrotar os pretendentes a reencontrar e a reconquistar sua
alma gecircmea Peneacutelope Ela o adverte dos perigos que o aguardam no palaacutecio
repleta de pretendentes que tramaram contra seu filho Telecircmaco e que
certamente natildeo receberiam a notiacutecia do retorno de Ulisses de forma paciacutefica Ela daacute
a Ulisses a aparecircncia de um mendigo para esconder sua identidade Vemos entatildeo
mais exemplos da mudanccedila ocorrida em Ulisses o heroacutei natildeo se incomoda de
Vemos tambeacutem o heroacutei que no passado teve que ser contido para natildeo matar
Euriacuteloco aguentar as incessantes provocaccedilotildees do cabreiro (e traidor) Melacircntio e dos
pretendentes sem revidar e revelar sua identidade Tambeacutem se conteve ao ser
forccedilado a lutar pelos pretendentes contra o mendigo Iro Apesar da ser insultado e
da sua enorme experiecircncia em combate Ulisses se mostra clemente e conversa
amigavelmente com o mendigo Pode-se entender que essa comedida do heroacutei natildeo
se daacute apenas pela astuacutecia pois haacute episoacutedios ndash tal como o jaacute citado com o ciclope
Polifemo ndash em que a astuacutecia do heroacutei eacute vencida pela sua timeacute Essa mudanccedila eacute
simbolizada na Odisseia pela morte do catildeo Argos Ele representa o aspecto
impulsivo e instintos primitivos do heroacutei Podemos dizer a partir disso que Ulisses
conseguiu desenvolver um pouco mais a sua funccedilatildeo sentimento pois ele natildeo eacute mais
arrebatado por ela como ocorre frequentemente com tipos pensamento Eacute o que o
ajuda a natildeo revelar sua identidade agrave Peneacutelope quanto este apoacutes 20 longos anos
se vecirc sendo interrogado por ela
Finalmente apoacutes a famosa prova do arco Ulisses derrota todos os
pretendentes com a ajuda de Telecircmaco Eumeu e o vaqueiro Vemos aqui que
Atenaacute continua acompanhando o heroacutei Mas novamente durante o confronto ela
exige que eles demonstrem seu valor Da mesma forma que Calipso natildeo entregou
uma jangada pronta ao heroacutei Atenaacute natildeo lutaraacute no lugar de Ulisses eacute ele que deve
percorrer o caminho sozinho ele que deve cumprir o seu destino A anima eacute apenas
um guia De fato Ulisses eacute o uacutenico que consegue retesar o arco atravessar os doze
machados e atingir o alvo Eacute Atenaacute tambeacutem que evita mais derramamento de
sangue apoacutes os familiares dos pretendentes tentarem vingar suas mortes No uacuteltimo
verso do poema ela decreta a paz
136
Mas o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses natildeo termina na Odisseia Afinal
Tireacutesias deu uma uacuteltima tarefa ao heroacutei para aplacar enfim a fuacuteria de Posiacutedon o rei
de Iacutetaca precisa ir a uma terra que desconhece o mar e fincar o remo Entatildeo deveria
sacrificar bois cabras e afins em nome do deus Simbolicamente podemos entender
por isso que Ulisses precisa desenvolver ainda mais a funccedilatildeo sentimento integrar
outros aspectos da sua sombra De fato o processo de individuaccedilatildeo nunca termina
ningueacutem individua completamente haacute sempre mais a se aprender a se desenvolver
88 DISCUSSAtildeO
Ao tentar estabelecer uma relaccedilatildeo simboacutelica entre a Odisseia e o processo de
individuaccedilatildeo masculino pudemos observar nas passagens acima diversos trechos
que representariam as suas etapas a integraccedilatildeo dos aspectos da sombra atraveacutes
da morte dos companheiros de Ulisses a identificaccedilatildeo da anima representada pelas
diferentes figuras femininas a desidentificaccedilatildeo com a persona que ocorre ao longo
do poema quando Ulisses se desfaz pouco a pouco de suas posses e armaduras
siacutembolos do Ulisses guerreiro e o desenvolvimento da funccedilatildeo inferior que eacute
instigado por Posiacutedon a partir do episoacutedio com o ciclope Polifemo e que
observamos sobretudo na terra dos Feaacutecios Henderson (2008) afirma que a
peregrinaccedilatildeo ou jornada solitaacuteria eacute um dos siacutembolos que indicam a transcendecircncia
onde o indiviacuteduo ficaraacute mais consciente de si-mesmo No mito de Ulisses essa
peregrinaccedilatildeo corresponderia agrave Odisseia O autor explica ainda que durante essa
viagem o indiviacuteduo descobre a natureza da morte como renuacutencia e expiaccedilatildeo
Poderiacuteamos relacionar essa morte simboacutelica com a cataacutebase do heroacutei sua descida
ao Hades A jornada tambeacutem costuma ser determinada por um bom espiacuterito
geralmente o mestre da iniciaccedilatildeo ou uma figura feminina superior (a anima) como
Atenaacute ou Sofia No caso de Ulisses tanto Hermes quanto Atenaacute aparecem e ajudam
diretamente e indiretamente o heroacutei Atraveacutes da leitura simboacutelica podemos enxergar
a Odisseia de duas formas primeiro como o processo de individuaccedilatildeo de Ulisses e
segundo de forma mais geral como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo
masculino
Mas resta ainda a questatildeo do objetivo do processo de individuaccedilatildeo por que o
heroacutei precisou passar por tanto sofrimento Podemos considerar que o siacutembolo
unificador do processo do heroacutei eacute o seu casamento com Peneacutelope Conforme vimos
137
em Brandatildeo (2011b) esta se mostrou desde o iniacutecio apaixonada pelo marido a
ponto de escolher segui-lo depois que seu pai lhe forccedilou a escolher entre
permanecer em Esparta ou partir para Iacutetaca Podemos pensar aqui que
diferentemente do seu marido na eacutepoca Peneacutelope jaacute estava muito mais em contato
com as suas emoccedilotildees Vargas (1986) explica que pessoas podem escolher
cocircnjuges com caracteriacutesticas opostas agraves suas para compensar suas deficiecircncias
Mas segundo ele esses casamentos natildeo permanecem felizes por muito tempo
pois quando um apenas compensa as caracteriacutesticas que o outro natildeo possui o
casamento natildeo proporciona a individuaccedilatildeo dos cocircnjuges Para Vargas (1989) o
indiviacuteduo precisa humanizar sua anima ou o seu animus para deixar de projetaacute-las
no seu parceiro e promover uma relaccedilatildeo de alteridade que seria o objetivo do
casamento Se de acordo com a nossa leitura a individuaccedilatildeo de Ulisses ocorre na
Odisseia podemos cogitar que seu casamento se encontrava na situaccedilatildeo de
estagnaccedilatildeo descrita por Vargas (1989) O que poderiacuteamos pensar entatildeo a respeito
da participaccedilatildeo de Ulisses na Guerra de Troia pouco depois do seu casamento e do
seu primeiro filho
Compreendemos que Ulisses foi obrigado a se afastar de seu reino e de sua
famiacutelia por causa de sua proacutepria ideia uma vez que ele foi forccedilado a participar da
Guerra de Troia (que durou dez anos) por causa do Coacutedigo de Honra que ele
mesmo inventou ou seja poderiacuteamos considerar que a Guerra de Troia foi devida
ao plano dele
Nesse caso poderiacuteamos supor que se tratou de uma atuaccedilatildeo do inconsciente
do heroacutei visando seu desenvolvimento psiacutequico Afinal se Ulisses era tatildeo astuto
como ele pocircde deixar passar o risco de seu plano O acordo estabelecido com o pai
de Helena em troca do Coacutedigo de Honra lhe garantiria a matildeo de Peneacutelope que seria
um casamento igualmente vantajoso No entanto Helena poderia realmente vir a ser
raptada e nosso heroacutei engenhoso natildeo pareceu se dar conta disso Portanto
notamos que a mesma ideia que livrara Ulisses da grande rivalidade pela matildeo de
Helena e que lhe garantiria sua suposta tranquilidade ao lado de Peneacutelope obrigou-
o a se afastar de sua famiacutelia para defender o casamento de outro homem
Assim poderiacuteamos levantar a hipoacutetese de que Ulisses jaacute intuiacutera ainda que natildeo
de maneira totalmente clara seu futuro ter que lutar por uma esposa extremamente
disputada Mas pelo visto ele julgara que aquele seria o caso se se casasse com a
138
filha de Zeus14 e numa tentativa de fugir daquele destino trabalhoso resolvera retirar
sua proposta Buscando ser praacutetico presumira que ao casar-se com a prima de
Helena estaria seguro o casamento com Peneacutelope garantiria a Ulisses um futuro
tranquilo pois acabaria com qualquer possibilidade dele ter que lutar por sua esposa
no futuro
Com tudo isso o ponto onde queremos chegar eacute que podemos conceber a
Guerra de Troia como partes do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses porque ela
comeccedila e termina com ideias dele o Coacutedigo de Honra e o Cavalo de Troia
Julgamos plausiacutevel inferir agrave Ulisses a responsabilidade pela Guerra de Troia
pois suspeitamos que a maneira como ele escolheu a esposa foi uma tentativa
inconsciente de natildeo entrar em contato com a sua funccedilatildeo inferior ndash que no caso do
heroacutei consideramos ser o sentimento Se seguirmos essa linha de raciociacutenio
perceberemos que a forma como ele optou por casar-se com Peneacutelope foi
principalmente atraveacutes do uso de suas funccedilotildees superiores utilizando-se do seu
pensamento Percebemos que Ulisses usufruindo-se de sua famosa astuacutecia se pocircs
a maquinar um jeito de escapar daquela desagradaacutevel intuiccedilatildeo que tivera a respeito
de seu futuro
14 Helena era filha de Zeus e Leda por isso era tatildeo bela
139
9 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como objetivo inicial para este trabalho haviacuteamos proposto traccedilar paralelos
entre alguns episoacutedios narrados na Odisseia e o processo de individuaccedilatildeo da forma
como eacute descrito por Jung e autores junguianos a fim de compreender o retorno do
heroacutei itaacutecio como uma metaacutefora da individuaccedilatildeo masculina
Jung procurou desenvolver sua psicologia apoiado na observaccedilatildeo de diferentes
domiacutenios de conhecimento culturas e eacutepocas Dentre estas aacutereas a mitologia foi
essencial para a construccedilatildeo de sua teoria Um conceito fundamental da psicologia
profunda desenvolvida por ele eacute o processo de individuaccedilatildeo que descreve a
disposiccedilatildeo natural da psique humana de se autorregular e se desenvolver
originando um indiviacuteduo uacutenico e mais integrado com suas singularidades
Jung (2011 [1939]) considera que o processo de individuaccedilatildeo se inicia no meio
da vida Trata-se de um ponto de vista bastante discutido entre autores junguianos e
poacutes-junguianos Stein (2007) eacute um dos que concorda com Jung a respeito dessa
questatildeo com base em sua experiecircncia cliacutenica o autor desenvolveu um trabalho
sobre os inconvenientes que podem se manifestar no meio-da-vida quando este
processo comeccedilaria Ele se refere a essa reviravolta que ocorre em nossa psique e
agrave qual segundo ele todos estamos sujeitos como crise da meia-idade
Para Stein (2007) o que provocaria tais sintomas psicopatoloacutegicos seria a
manifestaccedilatildeo das imagens dos arqueacutetipos que foram menosprezados pelo indiviacuteduo
Nesse caso a soluccedilatildeo implicaria sanar a questatildeo do arqueacutetipo injuriado que agora
impotildee seu reconhecimento
Jung (2011 [1928]) explica que a individuaccedilatildeo eacute uma etapa necessaacuteria pois um
indiviacuteduo natildeo diferenciado fica sujeito agrave atuaccedilatildeo dos seus conteuacutedos inconscientes
pode se identificar com sua persona ser tomado pela sua sombra projetar sua
anima ou seu animus em indiviacuteduos do sexo oposto e sua funccedilatildeo inferior pode
invadir sua consciecircncia de forma descontrolada Portanto Jung (2011 [1939])
descreve as fases pela qual o indiviacuteduo passa durante o processo a
desidentificaccedilatildeo com a persona o confronto e integraccedilatildeo com conteuacutedos sombrios
a diferenciaccedilatildeo da anima ou do animus o encontro com o Self e o desenvolvimento
da funccedilatildeo inferior
140
O casamento tambeacutem pode ser um elemento significativo para o processo de
individuaccedilatildeo por ser de acordo com Vargas (1989) fonte de vivecircncias simboacutelicas
Ainda segundo Vargas (1986) essas experiecircncias dificilmente satildeo encontradas em
outros tipos de relacionamento Caso a relaccedilatildeo esteja se exercendo na alteridade
propicia o desenvolvimento psicoloacutegico dos cocircnjuges Caso contraacuterio ambos ficaratildeo
estagnados
O estudo mitoloacutegico segundo Von Franz (2008a) eacute valioso para a psicologia
analiacutetica Alvarenga (2010a) explica que o mito corresponde a uma traduccedilatildeo dos
caminhos arquetiacutepicos de humanizaccedilatildeo nos processos de individuaccedilatildeo Boechat
(2009) corrobora esta visatildeo afirmando que os mitos intensificam as mudanccedilas
individuais e coletivas Henderson (2008) adiciona que o mito do heroacutei eacute o mais
comum presente desde a mitologia grega ateacute as sociedades contemporacircneas ndash em
filmes de sucesso como Vingadores Ultimato Harry Potter e o Senhor dos Aneacuteis
Na anaacutelise simboacutelica da Odisseia consideramos que Ulisses teve consoante o
mapa de Brandatildeo (2011b) um retorno uroboacuterico ele percorreu num primeiro
momento um longo caminho rumo agrave esquerda ateacute a descida ao Hades Depois
seguiu rumo agrave direita passando novamente por Circe e pelo estreito de Cilas e
Cariacutebdis Relacionamos essa trajetoacuteria de acordo com a interpretaccedilatildeo de Jung
(2011 [1939]) primeiro a um movimento em direccedilatildeo ao inconsciente (para a
esquerda) e depois a um movimento em direccedilatildeo agrave consciecircncia (para a direita)
Desse ponto de vista a descida aos iacutenferos marcaria o aacutepice da sua viagem a sua
cataacutebase Tambeacutem relacionamos a viagem mariacutetima do heroacutei com o que Von Franz
(2008b) diz a respeito dos sonhos com navegaccedilatildeo nas aacuteguas que representam uma
mudanccedila significativa de atitude Aleacutem disso a borrasca que separa Ulisses dos
demais heroacuteis aqueus estaria em conformidade com o que ela diz sobre o iniacutecio do
processo de individuaccedilatildeo onde haacute instabilidade perda de controle e incerteza
Em seguida interpretamos algumas passagens do poema de Homero como
siacutembolos tanto do processo de individuaccedilatildeo de Ulisses como do processo de
individuaccedilatildeo masculino no modelo Junguiano O iniacutecio da viagem do heroacutei
representaria o iniacutecio do processo de individuaccedilatildeo Os homens que o acompanham
seriam aspectos sombrios do heroacutei isto eacute a parte de Ulisses que ainda natildeo estaria
pronta para abandonar seu lado guerreiro Estes em diversas passagens sabotam
o seu retorno ndash por exemplo no episoacutedio dos Ciacutecones dos Lotoacutefagos de Eacuteolo e da
141
ilha de Heacutelio Nesse caso a morte dos seus companheiros representariam o heroacutei
integrando esses conteuacutedos sombrios Posiacutedon seria outro aspecto da sombra de
Ulisses relacionado agrave sua funccedilatildeo inferior que supomos ser a funccedilatildeo sentimento
Interpretamos a descida do heroacutei ao Hades como o encontro com o Self
representado pelo adivinho Tireacutesias Ali o heroacutei tambeacutem encontra outros heroacuteis
como Agamemnon e Aquiles Entendemos o diaacutelogo entre eles como um diaacutelogo
entre o heroacutei e a sua necessidade de abandonar o seu lado guerreiro As
personagens femininas que ele encontra durante a viagem ndash Circe as sereias
Calipso Ino sua matildee Nausiacutecaa e Atenaacute ndash corresponderiam a diferentes imagens da
anima que ele precisa aprender a diferenciar Esses momentos seriam marcados
de acordo com a nossa leitura pela atuaccedilatildeo do Self representado por Hermes Com
Circe Hermes daacute a Ulisses a moacuteli que impede com que ele se transforme em porco
Com Calipso apoacutes a intervenccedilatildeo de Atenaacute Hermes aparece para a deusa e pede
que ela deixe o heroacutei voltar para casa Quando Ulisses a nosso ver lida com essas
expressotildees da anima elas passariam a exercer sua funccedilatildeo de guia Circe ensina
Ulisses a passar pelas sereias por Cilas e a descer ao Hades para consultar o
adivinho Tireacutesias Calipso ensina o heroacutei a construir uma jangada Ino o socorre
quanto estaacute prestes a ser afogado por Posiacutedon instruindo-o a abandonar sua
jangada e sua armadura e a vestir seu veacuteu Nausiacutecaa daacute roupas e comida a Ulisses
e o escolta ateacute o palaacutecio dos Feaacutecios onde recebe presentes comida e uma
embarcaccedilatildeo para voltar para Iacutetaca Atenaacute que consideramos representar a
sabedoria da anima acompanha Ulisses ao longo da sua jornada interfere quando
estaacute retido na ilha de Calipso promove o seu encontro com Nausiacutecaa e o recebe em
Iacutetaca ajudando-o a derrotar os pretendentes e reencontrar sua esposa O episoacutedio
com Ino tambeacutem representaria a desidentificaccedilatildeo com a sua persona pois ele
precisa se desfazer de sua jangada e armadura chegando nu e sozinho agrave Feaacutecia
Quando chega a Iacutetaca entendemos que o heroacutei estaacute mudado mais em controle de
suas emoccedilotildees ele aceita sua aparecircncia de mendigo se conteacutem face agraves
provocaccedilotildees de Melacircntio e dos pretendentes Mas tem mais uma tarefa pela frente
o heroacutei precisaraacute viajar novamente para fincar seu remo num lugar onde natildeo
conhecem o mar Entendemos por isso que o processo de individuaccedilatildeo natildeo termina
haacute sempre conteuacutedos inconscientes que precisam ser elaborados
142
De acordo com Jung (2011 [1939]) o processo de individuaccedilatildeo pela integraccedilatildeo
dos opostos gera um siacutembolo unificador Sugerimos que para Ulisses esse siacutembolo
seria seu casamento com Peneacutelope pois ele teria escolhido casar com ela por uma
questatildeo praacutetica natildeo precisar defender seu casamento Seria isso que pelo Coacutedigo
de Honra desencadeia a Guerra de Troia e o levaria a passar vinte anos longe de
casa Entendemos por isso que Ulisses teria sido o responsaacutevel pelo seu processo
de individuaccedilatildeo e que seria por isso que ao voltar para Iacutetaca precisou derrotar os
pretendentes e defender o seu casamento
Nossa anaacutelise se limitou agrave Odisseia que conta o retorno de Ulisses agrave Iacutetaca
como metaacutefora do processo de individuaccedilatildeo masculino Portanto gostariacuteamos de
sugerir para trabalhos futuros uma anaacutelise mais aprofundada da ideia de que
Ulisses foi ao mesmo tempo o responsaacutevel pelo iniacutecio e pelo fim da guerra (graccedilas
ao estratagema do Cavalo de Troia) Tambeacutem gostariacuteamos de propor uma anaacutelise de
outros personagens da Odisseia Afinal os quatro cantos iniciais da Odisseia
comeccedilam natildeo satildeo a respeito de Odisseu mas de Telecircmaco Nesses quatro cantos
chamados de Telemaquia tambeacutem podemos observar que se opera uma
transformaccedilatildeo Seria possiacutevel considerar a sua jornada como um ritual de iniciaccedilatildeo
Peneacutelope tambeacutem seria outro personagem interessante Tanto Jung (2011 [1928])
quanto Von Franz (2008b) explicam que o animus diferentemente da anima
geralmente eacute representado por um grupo de homens que representariam suas
opiniotildees e convicccedilotildees Poderiacuteamos considerar seus inuacutemeros pretendentes como
expressotildees de seu animus Deixamos estas questotildees em aberto para serem
examinadas em trabalhos futuros
143
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147
APEcircNDICE A ndash RESUMO DA ODISSEIA
Considerei uacutetil fazer um resumo do poema para utilizaccedilatildeo pessoal enquanto
realizava o trabalho para me auxiliar tanto em relaccedilatildeo agrave parte teoacuterica quanto no
momento da anaacutelise Ao longo do processo em conjunto com meu orientador
decidimos acrescentar este resumo no final do trabalho pois pensamos que poderia
ser proveitoso para o leitor tambeacutem A versatildeo da Odisseia utilizada aqui foi Homero
(2013)
Canto I
A Odisseia comeccedila com o poeta pedindo que Atenaacute lhe narre as aventuras de
Odisseu apoacutes a guerra de Troia enquanto ele tentava voltar para casa para Iacutetaca
Odisseu jaacute havia perdido muitos de seus homens quando se inicia a narrativa e o
poeta atribui aos proacuteprios companheiros de Odisseu a responsabilidade por sua
morte
Quanto aos demais aqueus que haviam combatido em Troia e que natildeo haviam
morrido jaacute estavam todos em seus lares Soacute Odisseu ainda natildeo tinha conseguido
chegar pois estava retido na gruta de Calipso ninfa que o cobiccedilava como marido
Embora lamentasse continuamente Odisseu natildeo podia ir embora Todos os deuses
eram solidaacuterios a Odisseu menos Posiacutedon
Posiacutedon estava nos Etiacuteopes recebendo uma hecatombe de bois e carneiros
quando os demais deuses se reuniram em assembleia no Olimpo Zeus inicia
comentando o receacutem-assassinato de Egisto que apesar de ter sido alertado por
Hermes em relaccedilatildeo agraves consequecircncias caso insistisse em desposar Clitemnestra
esposa legiacutetima de Agamecircmnon levou a cabo o empreendimento Assim Egisto
assassinou Agamecircmnon logo que este retornou da guerra de Troia e foi vingado
pelo filho Orestes que assassinou o amante da matildee
Apoacutes argumentar que Egisto tivera um fim merecido Atenaacute pediu ao pai Zeus
que intercedesse por Odisseu Zeus lhe explicou que o retorno do rei de Iacutetaca estava
sendo impedido por Posiacutedon que estava se vingando de Odisseu por ter cegado
seu filho o ciclope Polifemo Zeus no entanto concordou em ajudar e mandou
Hermes agrave ilha de Calipso informaacute-la da necessidade do regresso de Odisseu
Enquanto isso Atenaacute se dirigiu agrave Iacutetaca para encorajar Telecircmaco filho de Odisseu a
expulsar de Iacutetaca rochosa os pretendentes de Peneacutelope
148
Disfarccedilada de forasteiro Atenaacute chegou agrave Iacutetaca e assegurou a Telecircmaco que
seu pai natildeo havia morrido soacute estava tendo seu retorno negado pelos deuses mas
natildeo tardaria a chegar uma vez que era um homem muito engenhoso Telecircmaco
revelou que preferia ter confirmaccedilatildeo da morte de Odisseu a ter que conviver com
todos os pretendentes de sua matildee que aos poucos iam dilapidando a fortuna de
seu pai ndash com a demora do retorno de Odisseu inuacutemeros homens foram para Iacutetaca
clamar a matildeo da rainha Peneacutelope Telecircmaco revela tambeacutem o receio de ser
assassinado pelos pretendentes e a duacutevida em relaccedilatildeo a sua ascendecircncia afirma
natildeo ter certeza de que Odisseu eacute seu pai
Diante das apreensotildees de Telecircmaco Atenaacute o incentivou a expulsar os
pretendentes o mais depressa possiacutevel e sugeriu que o rapaz fosse ateacute Pilos
conversar com Nestor e depois ateacute Esparta conversar com Menelau a fim de obter
notiacutecias de Odisseu Ao partir alccedilando voo como uma ave Atenaacute deixou Telecircmaco
com o coraccedilatildeo repleto de coragem tanto para enfrentar os pretendentes quanto
para partir em busca do pai
Enquanto isso o aedo cantava o regresso dos aqueus findada a guerra de
Troia De seus aposentos Peneacutelope ouviu o canto e em prantos dirigiu-se ao aedo
pedindo que ele cantasse a respeito das faccedilanhas de outros homens ou deuses
porque ouvir a respeito daquele tema lhe causava muita tristeza Nisso Telecircmaco
interpelou a matildee perguntando por que ela reprovava a canccedilatildeo afinal a culpa pela
ausecircncia de Odisseu natildeo era do aedo e sim dos deuses aleacutem disso muitos outros
haviam perecido em Troia O rapaz entatildeo disse que Peneacutelope deveria voltar aos
seus aposentos e ocupar-se de seu tear e da roca Espantada com aquela atitude
Peneacutelope acolheu as saacutebias palavras de Telecircmaco
Canto II
Na manhatilde seguinte Telecircmaco convocou uma assembleia de pretendentes Ele
sentou-se no lugar do pai provido de uma graccedila divinal que lhe derramara Atenaacute
Telecircmaco lamentou a falta de notiacutecias de seu pai e a presenccedila de todos aqueles
homens que cortejavam sua matildee e que dilapidavam seus bens Assim pediu a Zeus
e a Tecircmis que afastassem os pretendentes de sua casa Diante disso Antiacutenoo ndash um
dos pretendentes ndash respondeu que Telecircmaco fora muito atrevido em suas palavras
e culpou Peneacutelope pela situaccedilatildeo pois havia quase quatro anos ela vinha iludindo o
coraccedilatildeo dos pretendentes dando-lhes falsa esperanccedila Entatildeo Antiacutenoo descreveu a
149
artimanha de Peneacutelope para enganaacute-los ela prometera escolher um pretendente
assim que terminasse de tecer uma mortalha para Laertes pai de Odisseu No
entanto o que ela tecia de dia desmanchava de noite Dessa forma enganara os
pretendentes por todo aquele tempo Entatildeo uma das servas que sabia do plano
alertou os pretendentes Sem escapatoacuteria Peneacutelope terminou a mortalha
constrangida Antiacutenoo acrescentou que Peneacutelope deveria se casar com quem o pai
dela aconselhasse uma vez que se ela continuasse postergando sua escolha ndash por
meio das habilidades de tecer e da astuacutecia que Atenaacute lhe concedera ndash os
pretendentes continuariam consumindo os bens de Odisseu Telecircmaco respondeu
que seria inadmissiacutevel expulsar sua matildee de casa e acrescentou que se os
pretendentes estivessem descontentes que fossem embora Por outro lado caso
achassem certo arruinar o sustento de Odisseu que o fizessem e que os deuses os
punissem do modo que considerassem justo
Ao ouvi-lo Zeus mandou duas aacuteguias que partindo do alto de uma montanha agrave
esquerda voou na direccedilatildeo dos pretendentes lanccedilando um olhar de morte a eles e
se matando-se uma agrave outra em seguida Isso fez com que os aqueus tremessem de
medo Nisso o bravo anciatildeo Haliterses interpretou o voo das aacuteguias e profetizou que
Odisseu jaacute estava proacuteximo e que planejava a morte dos pretendentes Haliterses
propocircs que os pretendentes pusessem fim agravequela situaccedilatildeo Ele ainda lembrou aos
pretendentes de que jaacute havia previsto que Odisseu voltaria para casa vinte anos
apoacutes sua partida desconhecido e sem seus companheiros e acrescentou que
aquilo jaacute estava acontecendo
Euriacutemaco outro pretendente respondeu que o anciatildeo devia ficar quieto pois
sua proacutepria interpretaccedilatildeo dos fatos era mais correta ou seja enquanto Peneacutelope
fizesse os aqueus esperarem os bens de Telecircmaco seriam devorados
Telecircmaco replicou pedindo um barco e vinte tripulantes para que o levassem a
Esparta e a Pilos a fim de buscar informaccedilotildees sobre seu pai Caso confirmasse que
seu Odisseu estava vivo esperaria Caso contraacuterio honraria sua memoacuteria e deixaria
sua matildee casar-se novamente
Mentor companheiro a quem Odisseu incumbira a tarefa de cuidar de sua
casa se revoltou contra o povo de Iacutetaca que parecia ter esquecido a benevolecircncia
de seu rei e se revoltou tambeacutem com os pretendentes Lioacutecrito pretendente
respondeu que aquela revolta era inuacutetil uma vez que mesmo que Odisseu
150
retornasse morreria ao se opor aos pretendentes todos Depois disso a assembleia
se dispersou Telecircmaco por sua vez foi orar a Atenaacute A deusa disfarccedilada no corpo
de Mentor disse ao rapaz que a viagem em busca do pai natildeo seria infrutiacutefera nem
frustrante Acrescentou que a maioria dos filhos eacute inferior aos pais mas afirmou que
a Telecircmaco natildeo faltava a sabedoria de Odisseu de modo que era de se esperar que
ele realizasse a viagem A deusa ainda assegurou a Telecircmaco que todos os
pretendentes pereceriam num mesmo dia e que por causa da amizade que tinha
com Odisseu logo providenciaria o melhor barco e a melhor tripulaccedilatildeo para
acompanhar Telecircmaco em sua viagem aleacutem disso a proacutepria Atenaacute prometeu que
seguiria viagem com eles
Enquanto isso os pretendentes maldiziam e tiravam sarro de Telecircmaco um
deles afirmou que ele planejava buscar em sua viagem ajuda para exterminaacute-los
Outro agourou com escaacuternio que Telecircmaco poderia perecer na viagem assim como
Odisseu
Nisso Telecircmaco desceu ao poratildeo de seu pai para arranjar provisotildees para sua
viagem Nesta tarefa ajudou-o a serva Euricleia Telecircmaco aleacutem de pedir ajuda para
abastecer seu barco ainda deixou claro que Euricleia natildeo devia comentar sua
viagem com ningueacutem muito menos com Peneacutelope pelo menos natildeo nos onze ou
doze primeiros dias de sua partida Inicialmente Euricleia se horrorizou ao ouvir o
plano de Telecircmaco uma vez que era filho uacutenico e muito querido mas apoacutes a
garantia do rapaz de que a empreitada teria assistecircncia divina acalmou-se
Nesse meio tempo Atenaacute assumindo a aparecircncia de Telecircmaco providenciou o
melhor barco e os melhores tripulantes para acompanharem o rapaz e apoacutes a
provisatildeo de alimentos a deusa fez com que todos os pretendentes dormissem de
modo que natildeo atrapalhassem a partida do filho de Odisseu Ela mesma a bordo
proporcionou um vento favoraacutevel Zeacutefiro agrave viagem Atingido o fluxo desejado os
tripulantes libaram vinho aos deuses imortais principalmente agrave Atenaacute
Canto III
O barco de Telecircmaco e seus tripulantes chegou a Pilos Agrave beira mar
encontraram os habitantes da cidade imolando touros a Posiacutedon Atenaacute foi a
primeira a desembarcar incentivando Telecircmaco a acompanhaacute-la e a dirigir-se
diretamente a Nestor rei de Pilos a fim de perguntar sobre Odisseu No entanto
quando Telecircmaco e seus companheiros entraram na cidade Pisiacutestrato filho de
151
Nestor foi o primeiro a estabelecer contato Ele sugeriu que os forasteiros fizessem
uma prece a Posiacutedon uma vez que o festim era dele Atenaacute contente com o
ajuizado Pisiacutestrato orou a Posiacutedon pedindo que ele lhes permitisse voltar com
seguranccedila apoacutes cumprir seu propoacutesito ali Telecircmaco repetiu a prece
Apoacutes o festim Nestor perguntou aos visitantes quem eram e de onde vinham
Telecircmaco respondeu que eles eram de Iacutetaca e que ele era filho de Odisseu e uma
vez que Nestor havia lutado ao lado de Odisseu em Troia Telecircmaco estava ali para
pedir-lhe notiacutecias do pai Nestor contou que os aqueus haviam sofrido muito em
Troia e acrescentou que ningueacutem poderia competir com Odisseu no quesito
sabedoria Ao final da guerra poreacutem Atenaacute enfurecida suscitou uma disputa entre
Menelau e Agamecircmnon Agamecircmnon achava necessaacuterio imolar sagradas
hecatombes para acalmar Atenaacute Menelau no entanto era a favor de um regresso
imediato Assim metade da tropa partiu com Menelau e a outra metade ficou em
Troia com Agamecircmnon Odisseu e seus homens tomaram o partido do Agamecircmnon
enquanto Nestor partiu com Menelau Graccedilas agrave oferenda feita a Posiacutedon por Nestor
e seus companheiros estes asseguraram um regresso seguro a Pilos de modo que
Nestor natildeo tinha notiacutecias dos outros aqueus Em resposta Telecircmaco contou a
Nestor a respeito da situaccedilatildeo que vinha aguentando em Iacutetaca laacute os numerosos
pretendentes de sua matildee dilapidavam sua fortuna e planejavam contra ele
Diante disso Nestor comentou que jaacute havia ouvido a respeito dos
pretendentes e acrescentou que se Atenaacute protegesse Telecircmaco da mesma forma
que protegia Odisseu nada daquilo aconteceria pois nunca vira tamanha proteccedilatildeo
dispensada por um deus a um mortal Telecircmaco replicou que natildeo acreditava que
aquilo fosse possiacutevel mesmo se os deuses o quisessem Atenaacute respondeu ao rapaz
que os deuses tudo podiam e acrescentou que era melhor enfrentar inuacutemeros
obstaacuteculos antes de chegar em casa do que ser assassinado no momento em que
chegasse em casa (a deusa estaacute se referindo a Agamecircmnon que fora assassinado
por Egisto e Clitemnestra assim que retornara de Troia) Telecircmaco volveu-lhe que
natildeo acreditava no retornou de Odisseu que devia estar morto em seguida
perguntou a Nestor exatamente o que havia acontecido a Agamecircmnon Apoacutes narrar
o terriacutevel episoacutedio Nestor aconselhou Telecircmaco a partir para encontrar Menelau
para isso deixou que o rapaz escolhesse seu meio de transporte ele poderia fazer a
viagem no barco em que viera ou poderia utilizar-se do carro e dos cavalos de
152
Nestor Atenaacute elogiou a atitude de Nestor e afirmou que iria ateacute Esparta com os
companheiros de Telecircmaco pelo mar mas Nestor deveria encaminhar Telecircmaco a
cavalo e ser escoltado por filhos
Canto IV
Ao chegarem ao solar de Menelau em Esparta Telecircmaco e seus
companheiros foram devidamente recebidos de modo que soacute foram questionados a
respeito de sua origem apoacutes um banquete Durante a refeiccedilatildeo Menelau comentou
que nenhum dos aqueus havia penado tanto quanto Odisseu acrescentou que lhe
causava pesar natildeo ter notiacutecias do rei de Iacutetaca e mencionou que a ausecircncia de
notiacutecias dele devia deixar Laertes Peneacutelope e Telecircmaco arrasados Ao ouvir isso
Telecircmaco derramou uma laacutegrima Menelau percebeu mas hesitou entre deixar
Telecircmaco tomar a iniciativa a respeito e falar do pai ou a questionaacute-lo colocando-o
agrave prova
Neste momento Helena saiu de seus aposentos e perguntou ao marido quem
eram os estrangeiros pois achou Telecircmaco muito parecido com Odisseu Menelau
concordou com a esposa a respeito da semelhanccedila Pisiacutestrato filho de Nestor
confirmou ao casal que se tratava do filho de Odisseu e disse que estavam laacute
justamente em busca de notiacutecias do rei de Iacutetaca Menelau celebrou entatildeo a
chegada do filho de um amigo que por ele suportara tantas lutas e afirmou que
nunca conhecera algueacutem tatildeo corajoso e poderoso a ponto de conceber o cavalo de
Troia uma vez que tal faccedilanha fora fatal aos troianos Tambeacutem afirmou que
pretendia conceder um reino inteiro a Odisseu e seu povo caso ambos tivessem
sucesso em seu retorno da guerra Apoacutes o discurso de Menelau choraram Helena
Telecircmaco o proacuteprio Menelau e o filho de Nestor Entatildeo Helena teve a ideia de
colocar no vinho uma droga capaz de fazer os homens esquecerem os infortuacutenios e
o sofrimento e logo todos dormiram
No dia seguinte Menelau perguntou a Telecircmaco o verdadeiro motivo de sua
viagem Telecircmaco volveu-lhe que buscava notiacutecias do pai Menelau por sua vez
narrou brevemente os proacuteprios obstaacuteculos que enfrentara em seu retorno de Troia
explicando por que natildeo tinha notiacutecias de Odisseu Em seguida convidou Telecircmaco a
ficar por onze ou doze dias em sua casa apoacutes os quais lhe daria de presente para
que seguisse viagem trecircs cavalos e uma carruagem Telecircmaco agradeceu mas
recusou o presente alegando que seus companheiros em Pilos jaacute deviam estar
153
preocupados com sua longa ausecircncia Menelau ofereceu entatildeo uma cratera
lavrada de prata que tinha o acabamento em ouro feito por Hefesto
Enquanto isso os pretendentes no solar de Odisseu concatenavam que a
viagem de Telecircmaco havia sido um esquema contra eles Assim resolveram tripular
um barco e esperar dissimulados seu regresso para mataacute-lo Peneacutelope logo
descobriu tais planos atraveacutes de Medonte o arauto que tinha ouvido tudo Peneacutelope
lamentou e questionou a partida do filho Medonte por sua vez argumentou que
Telecircmaco poderia ter sido impelido por algum deus Depois disso o arauto partiu e
Peneacutelope se desfez em pranto Em seguida ela recriminou suas amas por nenhuma
terem-lhe alertado a respeito da partida de Telecircmaco Nisso Euricleia assumiu a
culpa e explicou agrave rainha de Iacutetaca o motivo de natildeo ter-lhe avisado havia se
comprometido com Telecircmaco em seguida sugeriu agrave rainha que orasse a Atenaacute
Peneacutelope acolheu a sugestatildeo de Euricleia e apoacutes tomar um banho e se vestir
com roupas limpas fez uma oferenda e uma prece a Atenaacute pedindo proteccedilatildeo a
Telecircmaco Atenaacute atendeu agrave prece ao mesmo tempo os pretendentes planejavam
no salatildeo o assassinato de Telecircmaco quando de seu retorno
Canto V
Durante uma assembleia de deuses Atenaacute intercedeu por Odisseu
lamentando que o povo de Iacutetaca parecia natildeo se lembrar mais dele uma vez que a
ninfa Calipso o mantinha retido em sua mansatildeo haacute tanto tempo Aleacutem disso Atenaacute
se indignava com o plano dos pretendentes de matar Telecircmaco Zeus retorquiu que
natildeo sabia o motivo do incocircmodo de Atenaacute uma vez que ela mesma planejara o
regresso e a vinganccedila de Odisseu bem como a viagem e o regresso de Telecircmaco
Apesar disso o deus dos deuses dirigiu-se a Hermes o mensageiro e mandou-o
avisar Calipso de que os deuses haviam decidido pelo regresso de Odisseu agrave Iacutetaca
Hermes na ilha de Calipso encontrou-a na imensa gruta onde ela morava
tecendo Calipso o reconheceu Hermes por sua vez natildeo avistou Odisseu que
estava na praia chorando como de costume
Calipso indagou a Hermes o motivo da visita e o deus respondeu-lhe que fora
enviado por Zeus uma vez que Odisseu apoacutes ter sofrido muito em Troia no
momento do seu regresso o rei de Iacutetaca pecara contra Atenaacute de modo que fora
conduzido num caminho errante Entretanto agora Zeus ordenava a partida
154
imediata de Odisseu para Iacutetaca Calipso reclamou dizendo que os deuses eram
crueacuteis e ciumentos ndash principalmente quando uma deusa se deitava com um mortal
Ela argumentou que havia salvado Odisseu depois de ele ter chegado sozinho a sua
ilha apoacutes um castigo do Zeus que rompera seu barco com um raio Ele havia
perdido todos os seus companheiros e ela cuidara dele e lhe prometera a
imortalidade sem que ele envelhecesse jamais Entretanto como se tratava de uma
vontade de Zeus Calipso deixaria que Odisseu partisse Poreacutem afirmou que natildeo lhe
proveria conduccedilatildeo uma vez que natildeo possuiacutea barcos nem remos mas o ensinaria
como chegar a Iacutetaca satildeo e salvo
A proacutepria Calipso foi dar a notiacutecia a Odisseu que natildeo parava de lamentar o
fracasso de seu regresso principalmente porque jaacute natildeo o encantava mais a ninfa
Calipso disse que o deixaria partir e o incentivou a construir a proacutepria jangada Ela
tambeacutem prometeu-lhe roupas e provisotildees para a viagem aleacutem de um vento
favoraacutevel a fim de que ele chegasse a Iacutetaca satildeo e salvo ndash desde que fosse a
vontade dos deuses uma vez que ela natildeo tinha como contrariaacute-los
Odisseu desconfiado achou que Calipso arquitetava algo nefasto contra ele e
se recusou a partir a menos que a deusa jurasse que natildeo estava planejando
nenhum novo grande desastre para ele Em resposta a deusa elogiou a astuacutecia de
Odisseu para conseguir o que queria e garantiu que natildeo lhe desejava mal Entatildeo ela
disse ao filho de Laertes que ele deveria partir imediatamente caso realmente
recusasse sua oferta de imortalidade e afirmou que ele ainda sofreria muitas
provaccedilotildees antes de chegar agrave Iacutetaca Odisseu respondeu agrave deusa que apesar de
tudo ansiava chegar em casa e que se algum deus ainda o impusesse algum
sofrimento ele o suportaria No dia seguinte Odisseu comeccedilou a construir sua
jangada com a ajuda de Calipso Em quatro dias o trabalho estava acabado No
quinto dia Calipso deixou Odisseu partir com provisotildees e uma brisa favoraacutevel
conforme prometera
Apoacutes 18 dias cruzando o mar Odisseu finalmente avistou as montanhas dos
Feaacutecios Nisso Posiacutedon voltando da Etioacutepia viu que Odisseu se aproximava de
terra firme e se enfureceu reclamou que os deuses haviam mudado seus desiacutegnios
enquanto estivera longe uma vez que Odisseu onde estava escaparia facilmente
de seu castigo Entatildeo prometeu que ainda causaria miseacuteria a Odisseu Assim fez
com que o ceacuteu ficasse escuro e o mar agitado Odisseu vendo isso receou morrer
155
ali mesmo Em seguida sua jangada foi parcialmente destruiacuteda pelo vento e ele
ficou submerso durante um longo tempo por causa das pesadas roupas que vestia
Ao emergir Odisseu sentou-se sobre o que restava de sua jangada tentando evitar
a morte
Ateacute que Ino ndash outrora mortal filha de Cadmo que naquele momento obtivera
honra dos deuses ndash com pena de Odisseu assumiu a aparecircncia de uma gaivota e
pousou na jangada falando com ele Ela o orientou a se despir da roupa pesada a
abandonar definitivamente a jangada e a nadar ateacute a terra dos Feaacutecios ele deveria
chegar a salvo laacute Por fim entregou-lhe um veacuteu imortal que Odisseu deveria
abandonar ao chegar em terra firme Odisseu ficou com receio de abandonar a
jangada e resolveu natildeo obedecer Entatildeo Posiacutedon agitou ainda mais o mar e acabou
de destruir a jangada de Odisseu O heroacutei sem opccedilatildeo se despiu e se atirou ao mar
com o veacuteu sob o peito pronto para nadar Finalmente Posiacutedon concedeu uma treacutegua
a Odisseu permitindo-o chegar agrave terra firme Atenaacute mandou um vento favoraacutevel que
ajudou Odisseu a chegar agrave terra dos Feaacutecios Laacute Odisseu procurou abrigo debaixo
de duas moitas que poderiam protegecirc-lo do sol da chuva e do frio Entatildeo Atenaacute fez
com que ele dormisse para descansar
Canto VI
Enquanto Odisseu dormia Atenaacute se dirigiu ao palaacutecio do rei dos Feaacutecios
Alciacutenoo Laacute acordou Nausiacutecaa filha de Alciacutenoo e assumindo a aparecircncia da filha
de Dimas grande amiga de Nausiacutecaa incentivou-a a lavar suas roupas e a de seus
irmatildeos no rio
Na manhatilde seguinte Nausiacutecaa pediu autorizaccedilatildeo para o pai para ir lavar
roupas e ele a concedeu Depois de chegarem ao rio Nausiacutecaa e suas servas
lavaram as roupas e estenderam-nas para secar Enquanto esperavam elas
tomaram banho almoccedilaram e depois foram brincar com uma bola Nausiacutecaa e as
servas jaacute estavam com tudo pronto para voltar ao palaacutecio quando Atenaacute elaborou
uma plano para que Nausiacutecaa conduzisse Odisseu agrave cidade Assim a deusa fez
com que a princesa jogasse a bola na moita debaixo da qual Odisseu dormia
Assustado Odisseu acordou e se perguntou receoso onde se encontraria Entatildeo
ouviu os gritos das moccedilas e emergiu de sob a moita cobrindo suas partes iacutentimas
com folhas e foi ao encontro das donzelas Elas se assustaram e fugiram restando
apenas Nausiacutecaa encorajada por Atenaacute Agrave distacircncia Odisseu lhe pediu ajuda Ele
156
narrou brevemente seus infortuacutenios agrave princesa e pediu-lhe roupas e auxiacutelio para
chegar agrave cidade A princesa concordou em ajudaacute-lo e explicou que ele estaacute no paiacutes
dos Feaacutecios do qual Alciacutenoo seu pai era rei Em seguida Odisseu se banhou e se
vestiu e Atenaacute conferiu-lhe uma aparecircncia resplandescente de beleza e graccedila
fazendo com que a princesa ficasse a admiraacute-lo e quisesse casar-se com ele Em
seguida ela ordenou agraves aias que o alimentassem e o levou agrave cidade Enquanto isso
Odisseu orou a Atenaacute pedindo que ela o fizesse cair nas graccedilas dos Feaacutecios
Canto VII
Ao chegar agrave cidade dos Feaacutecios Odisseu encontrou-se com Atenaacute ndash que
assumira a aparecircncia de uma adolescente ndash e pediu-lhe que o levasse ao palaacutecio de
Antiacutenoo e a deusa assim o fez Jaacute no salatildeo do palaacutecio Odisseu suplicou agrave rainha
Areta que lhe fornecesse uma escolta a fim de que chegasse agrave sua paacutetria Ao
terminar sua fala e apoacutes a sugestatildeo do anciatildeo Equeneo que simpatizara com
Odisseu o rei Alciacutenoo tirou o heroacutei do chatildeo onde ele estava e sentou-o numa
cadeira ao seu lado Uma serva trouxa aacutegua numa bacia de prata para que Odisseu
lavasse as matildeos e depois serviu-lhe uma refeiccedilatildeo Apoacutes terem comido e libado aos
deuses Alciacutenoo dirigiu-se aos caudilhos e conselheiros dos Feaacutecios dizendo que
na manhatilde seguinte eles cuidariam da viagem de Odisseu de modo que dali por
diante ele soacute sofreria o destino que as Moiras lhe haviam reservado Odisseu
agradeceu eloquentemente
Neste momento Areta reconheceu as roupas que Odisseu vestia uma vez que
ela mesma as tecera e perguntou-lhe enfim quem ele era e onde conseguira
aquelas roupas Odisseu resumiu-lhe seus problemas contou que apoacutes um desastre
causado por Zeus perdera seus companheiros e seu barco e fora parar na ilha de
Calipso Permanecera laacute por sete anos e recusara a oferta de imortalidade da
deusa que no oitavo ano sob a ordem de Zeus permitiu-lhe partir numa jangada
Jaacute tinha avistado as montanhas dos Feaacutecios quando Posiacutedon despedaccedilou sua
jangada e Odisseu ao sabor das ondas chegou ao paiacutes No dia seguinte viu
Nausiacutecaa e suas aias brincando na praia e pediu-lhes ajuda Apoacutes ouvir a narrativa
Alciacutenoo expressou seu desejo de tornaacute-lo seu genro mas afirmou que natildeo lhe
contrariaria a vontade e manteria sua promessa de prover-lhe transporte agrave Iacutetaca na
manhatilde seguinte
157
Canto VIII
Na manhatilde seguinte Alciacutenoo e Odisseu levantaram-se cedo Enquanto isso
Atenaacute percorria a cidade sob a aparecircncia do arauto do rei promovendo o
repatriamento de Odisseu e incentivando os homens a dirigirem-se agrave praccedila para
serem convocados a acompanhar o hoacutespede em sua viagem Apoacutes os homens
terem se reunido Alciacutenoo deu iniacutecio ao seu discurso explicou que apesar de natildeo
saber quem era o forasteiro este viera lhe implorar meios de partir em seguranccedila
de modo que agora Alciacutenoo pedia que 52 dos melhores moccedilos se dispusessem a
escoltaacute-lo Apoacutes escolhidos os 52 rapazes Alciacutenoo mandou preparar um festim
Apoacutes a refeiccedilatildeo o aedo trazido pelo arauto comeccedilou a cantar um dos feitos
gloriosos dos heroacuteis tratava-se de uma discussatildeo entre Odisseu e Aquiles durante
um banquete discussatildeo da qual Agamecircmnon se alegrou porque brigavam entre si
os mais bravos aqueus Odisseu disfarccedilou sua emoccedilatildeo ao ouvir o relato mas
Alciacutenoo percebeu e apressou o iniacutecio dos jogos que precederiam a viagem
Laoacutedamas filho de Alciacutenoo sugeriu que o forasteiro fosse convidado a participar dos
esportes Odisseu poreacutem recusou o desafio alegando que toda a tristeza e fadiga o
impeliam a voltar o mais raacutepido possiacutevel para casa Euriacutealo um dos guerreiros de
Troia no entanto desafiou Odisseu dizendo que ele natildeo tinha aparecircncia atleacutetica
Irritado o rei de Iacutetaca resolveu participar de uma das provas Entatildeo pegou o maior e
mais grosso disco muito mais pesado do que os outros e o lanccedilou muito aleacutem da
marca dos anteriores Atenaacute disfarccedilada de homem concedeu-lhe a vitoacuteria Odisseu
orgulhoso de si desafiou os outros moccedilos a alcanccedilarem aquela marca afirmando
que soacute natildeo podia competir com Heacuteracles ou com Ecircurito que disputavam com os
imortais Reconheceu que poderia perder na corrida uma vez que seus muacutesculos
estavam frouxos devido agraves enormes ondas que enfrentara a nado Alciacutenoo confirmou
a superioridade dos Feaacutecios na corrida e na danccedila e pediu que os melhores
danccedilarinos Feaacutecios danccedilassem para o hoacutespede a fim de provar seu talento Apoacutes o
espetaacuteculo Odisseu afirmou-se maravilhado
Alciacutenoo pediu entatildeo que os demais doze reis da Feaacutecia trouxessem presentes
para o hoacutespede como mantos e ouro Depois disso as servas banharam Odisseu e
o vestiram Nausiacutecaa maravilhou-se ao vecirc-lo e pediu que ele se lembrasse dela
quando chegasse em casa como a primeira que o resgatara Em resposta Odisseu
158
prometeu que se Zeus lhe permitisse chegar em casa ele dirigiria preces a ela
como se ela fosse uma divindade
Apoacutes o banquete Odisseu se dirigiu ao aedo Demoacutedoco e o elogiou por
cantar perfeitamente os feitos e sofrimentos dos aqueus durante a guerra de Troia
Entatildeo pediu que ele cantasse a respeito da construccedilatildeo do cavalo de madeira que
permitira a vitoacuteria aos gregos e que fora ideia de Odisseu e fabricado com a ajuda
de Atenaacute Odisseu ainda prometeu a Demoacutedoco que se ele narrasse esse episoacutedio
corretamente espalharia sua fama pelo mundo E o aedo assim o fez Odisseu
chorou de emoccedilatildeo ao ouvir tudo aquilo Mais uma vez apenas Alciacutenoo percebeu e
sem demora pediu a Odisseu que revelasse sua identidade a fim de que seus
barcos pudessem conduzi-lo de volta agrave casa
Canto IX
Finalmente Odisseu revelou seu nome sua origem e acrescentou que era
conhecido no mundo e nos ceacuteus por sua astuacutecia E apoacutes afirmar que natildeo havia
nada mais doce do que a terra natal comeccedilou a narrar sua saga contou como a
deusa Calipso cobiccedilando-o como marido retivera-o em sua gruta depois a deusa
Circe o prendera em seu palaacutecio pelo mesmo motivo mas Odisseu afirmou que
nenhuma delas conseguira convencecirc-lo Entatildeo comeccedilou a narrar as dificuldades
lanccediladas a ele por Zeus durante seu regresso Ao sair de Troia os ventos o levaram
proacuteximo dos Ciacutecones em Ismaro onde ele saqueara a cidade matara os homens e
levara suas esposas e suas riquezas repartindo tudo igualmente entre seus
companheiros Os Ciacutecones poreacutem pediram ajuda a seus vizinhos que mais
numerosos atacaram ao amanhecer perto dos barcos Ao final do dia os Ciacutecones
haviam vencido os aqueus e em decorrecircncia disso mataram seis homens de cada
barco da frota de Odisseu Depois disso os demais prosseguiram a viagem tristes
por um lado mas contentes por terem escapado agrave morte Todavia Zeus lanccedilou uma
tempestade prodigiosa contra os barcos cobrindo terra e mar de nuvens como se
tivesse caiacutedo a noite Os barcos foram arrastados e destroccedilados pela fuacuteria do vento
Boacutereas Entatildeo os homens remaram com toda a forccedila ateacute a terra e uma vez em
terra firme passaram ali duas noites com o coraccedilatildeo cheio de fadiga e de tristeza
Ao terceiro dia retomaram a viagem Ao partirem levados pela correnteza e pelo
vento Boacutereas vagaram por nove dias e no deacutecimo foram parar na terra dos
Lotoacutefagos Eles comeram beberam e depois Ulisses enviou trecircs companheiros para
159
investigar aquela terra Os Lotoacutefagos natildeo os ameaccedilaram deram-lhes de comer do
loto e apoacutes comecirc-lo eles natildeo tiveram mais vontade de partir mas sim de ficar ali
sustentando-se de loto Odisseu precisou levaacute-los agrave forccedila e amarraacute-los ao barco
para prosseguirem viagem Entatildeo chegaram ao paiacutes dos hostis Ciclopes Laacute natildeo se
plantava natildeo se arava eles confiavam a semeadura aos deuses imortais Tambeacutem
natildeo tinham leis de modo que cada famiacutelia fazia suas proacuteprias regras
Ateacute aquele momento Odisseu contava ainda com doze navios cheios de
homens Ao nascer o dia as ninfas filhas de Zeus ajudaram na caccedila de cabras
para a tripulaccedilatildeo Enquanto comiam e bebiam vinho os homens observavam a ilha
dos Ciclopes de onde soavam as vozes deles das ovelhas e das cabras e de onde
notavam fumaccedila No dia seguinte Odisseu resolveu explorar a ilha com alguns
companheiros e descobrir se os nativos eram crueacuteis e selvagens ou se eram
hospitaleiros e tementes aos deuses entatildeo pediu que seus demais homens
esperassem no barco
De onde estavam Odisseu e seus companheiros avistaram uma caverna um
pouco distante onde dormiam muitos carneiros ovelhas e cabras Odisseu conclui
que se tratava da morada de algum homem monstruoso e solitaacuterio e escolheu doze
bravos camaradas para o acompanharem Odisseu levou consigo um odre cheio de
vinho e provisotildees num alforje porque seu bravo coraccedilatildeo pressentira um encontro
com um homem robusto selvagem e sem noccedilatildeo de justiccedila nem de leis Eles
entraram na caverna que estava vazia exceto pelos gordos carneiros e mais aleacutem
pelos queijos
A primeira coisa que os companheiros de Odisseu lhe pediram foi que os
deixasse se apossarem dos queijos antes de voltar ao barco levando cabritos e
cordeiros Mas Odisseu queria conhecer o dono da caverna e saber se ele lhes
seria hospitaleiro de modo que impediu seus homens de voltarem O Ciclope natildeo
tardaria a aparecer para o desgosto dos camaradas de Odisseu Ainda assim os
homens conseguiram fazer um banquete antes do retorno do dono da casa Quando
ele chegou poreacutem os homens se esconderam no fundo da caverna O Ciclope
trazia consigo o seu rebanho de ovelhas e enquanto aticcedilava o fogo viu Odisseu e
seus homens e perguntou quem eram e de onde vinham Odisseu respondeu que
eles eram aqueus regressando de Troia vagueando agrave mercecirc dos ventos enquanto
sua intenccedilatildeo era voltar para casa Entatildeo Odisseu pediu ao Ciclope que honrando os
160
deuses lhes fornecesse agasalho e presentes como faria um bom hospedeiro O
Ciclope respondeu que seu povo natildeo temia aos deuses porque eram mais fortes do
que eles em seguida para testar Odisseu perguntou onde estava atracado o barco
deles Odisseu astucioso no entanto respondeu que Posiacutedon arrebentara seus
barcos na orla daquele paiacutes de modo que soacute haviam sobrado ele mesmo e aqueles
homens O Ciclope impiedoso poreacutem nada respondeu em vez disso se pocircs de peacute
e agarrou dois dos camaradas de Odisseu para em seguida esmagaacute-los no chatildeo e
devoraacute-los Apoacutes a refeiccedilatildeo o Ciclope foi dormir No dia seguinte bem cedo ele
ordenhou seu rebanho de ovelhas e apoacutes se alimentar de mais dois camaradas de
Odisseu saiu com o rebanho da caverna que fechou facilmente com uma enorme
pedra Enquanto o Ciclope conduzia seu rebanho agrave montanha Odisseu permaneceu
na caverna maquinando uma vinganccedila e pedindo a graccedila de Atenaacute para executaacute-la
Foi entatildeo que ele avistando o cajado do Ciclope foi ateacute laacute e cortou um pedaccedilo de
mais ou menos dois metros que mandou seus companheiros afiarem e depois o
escondeu O Ciclope voltou com as ovelhas ao final do dia e foi logo agarrando
mais dois homens para devorar Odisseu entatildeo se aproximou dele oferecendo-lhe
vinho O Ciclope gostou da bebida e quis mais Foi quando pediu que Odisseu lhe
revelasse sua identidade Antes de responder no entanto Odisseu ofereceu-lhe
mais vinho O Ciclope jaacute estava becircbado quando finalmente Odisseu declarou que
se chamava Ningueacutem O Ciclope entatildeo respondeu que em nome da hospitalidade
devoraria Ningueacutem por uacuteltimo e depois caiu no sono Odisseu aproveitou para pegar
sua enorme lanccedila e ir aquececirc-la no fogo enquanto dirigia palavras de incentivo a
seus companheiros para que nenhum recuasse O toro estava a ponto de pegar
fogo quando Odisseu o entregou a seus homens estes inspirados de coragem por
algum deus cravaram o toro fumegante no olho do Ciclope enquanto Odisseu
pesando de cima o fazia girar Odisseu e seus homens se afastaram enquanto o
Ciclope acordava urrando de dor Os companheiros de Odisseu se afastaram
enquanto ele arrancava o toro ensanguentado do olho Entatildeo ele comeccedilou a chamar
os Ciclopes seus vizinhos para que o ajudassem Agrave porta da caverna fechada com
uma pedra os vizinhos perguntaram a Polifemo o que o afligia Ele respondeu que
ldquoNingueacutem amigos estaacute matando-me pelo dolo natildeo pela forccedilardquo Os Ciclopes
vizinhos entatildeo aconselharam Polifemo a que rezasse a Posiacutedon seu pai uma vez
161
que se ningueacutem estava lhe causando tormentos aquilo soacute poderia ser um desiacutegnio
de Zeus e foram embora
Polifemo torturado pela dor foi sentar-se na entrada da caverna de braccedilos
estendidos na esperanccedila de capturar qualquer homem que ousasse tentar fugir
Odisseu teve entatildeo a ideia de prender trecircs carneiros juntos lado a lado de modo
que no carneiro do meio fosse um de seus homens agarrado agrave barriga do animal a
fim de passarem todos desapercebidos por Polifemo O Ciclope nada percebeu
porque apalpava apenas as costas de cada animal que saiacutea da caverna Para a fuga
de Odisseu restou apenas um carneiro o melhor e mais robusto e ele da mesma
forma se escondeu sob o pelo agarrado agrave barriga do animal
Odisseu e seus companheiros jaacute estavam a alguma distacircncia da caverna
quando se soltaram dos animais e se puseram a correr para seus barcos Estavam
um pouco longe quando Odisseu gritou para Polifemo que aquela era apenas uma
vinganccedila dos deuses porque ele natildeo havia sido hospitaleiro O Ciclope arrancou o
pico de uma montanha e o jogou contra o barco de Odisseu mas eles saiacuteram ilesos
Odisseu entatildeo se adiantou para provocar ainda mais Polifemo mas seus
companheiros tentaram persuadi-lo dizendo que natildeo devia provocar (mais do que jaacute
havia provocado) um homem selvagem daqueles Odisseu natildeo deu ouvidos e gritou
para Polifemo seu verdadeiro nome ndash Odisseu ndash para que ele pudesse responder
corretamente quando lhe perguntassem a respeito de sua cegueira Polifemo gritou
de volta dizendo que jaacute tinha ouvido uma profecia a respeito daquele episoacutedio mas
imaginara que seria cegado por algueacutem alto belo e robusto e natildeo por aquele
baixote ordinaacuterio e fraco que o havia submetido atraveacutes do vinho Em seguida
Polifemo pediu a Posiacutedon seu pai que natildeo permitisse que Odisseu chegasse em
casa Entretanto se tal regresso estivesse determinado pediu que fosse um
regresso muito difiacutecil demorado e que ele chegasse agrave Iacutetaca humilhado e sozinho
Posiacutedon ouviu a prece do filho
Odisseu e seus companheiros navegaram ateacute a ilha onde se encontrava o
restante dos homens e depois de reunidos partiram Mais uma vez seus
sentimentos eram ambiacuteguos doiacutea-lhes terem perdido companheiros mas os
alegrava terem escapado agrave morte
162
Canto X
Odisseu e seus companheiros chegaram agrave ilha de Eacuteolo intendente dos ventos
enjaulados Laacute passaram um mecircs Eacuteolo agasalhou a todos eles e os interrogou a
respeito de Troia e da volta dos aqueus Odisseu respondeu a todas as perguntas e
em seguida pediu que Eacuteolo o repatriasse Eacuteolo assentiu e entatildeo entregou para
Odisseu um odre contendo todos os ventos exceto Zeacutefiro que era o vento
responsaacutevel por levar os homens de volta
Odisseu conduziu o barco (a fim de chegarem mais raacutepido) e no deacutecimo dia
eles avistaram Iacutetaca Entatildeo o sono caiu sobre Odisseu fazendo-o dormir e
enquanto ele dormia seus companheiros ressentidos do fato de estarem voltando
da guerra de matildeos vazias enquanto Odisseu retornava trazendo vaacuterios tesouros
resolveram abrir o odre presenteado por Eacuteolo Os ventos laacute contidos entatildeo
escaparam e um tufatildeo arrastou os navios para o mar alto afastando-os de Iacutetaca
levando-os de volta para a ilha de Eacuteolo Este se espantou ao ver Odisseu de volta e
perguntou o que havia ocorrido Odisseu explicou e pediu ajuda novamente mas
Eacuteolo o expulsou de sua ilha dizendo que natildeo ajudaria um mortal que os deuses
abominavam
Odisseu e seus companheiros navegaram por mais seis dias e no seacutetimo
chegaram agrave cidadela de Lamos em Teleacutefito dos Lestriacutegones Como natildeo avistaram
pessoas nem animais trabalhando Odisseu despachou alguns companheiros para
investigar Eles encontraram uma moccedila corpulenta filha do Lestriacutegone Antiacutefates que
descia agrave fonte com um cacircntaro Perguntaram a ela a respeito do povo que ali vivia e
de seu rei e ela apontou a mansatildeo do pai Chegando agrave mansatildeo os homens se
depararam com uma mulher alta como uma montanha era a rainha Ela logo
chamou o marido e este planejando um triste fim para os companheiros de
Odisseu agarrou um deles imediatamente e preparou o jantar Os outros fugiram
depressa para o barco O rei entatildeo alertou a cidade e seu povo mais parecido
com gigantes do que com homens comeccedilou a jogar enormes pedras em torno dos
barcos o que despedaccedilou alguns fazendo com que homens sucumbissem Os
Lestriacutegones capturaram os homens que caiacuteam no mar para jantaacute-los Diante disso
Odisseu correu a cortar as amarras de seu barco e seus homens se puseram a
remar fugindo
163
Dali eles chegaram agrave ilha de Eeia onde vivia a deusa Circe Odisseu dividiu
seus homens em dois grupos um liderado por ele e outro por Euriacuteloco O grupo de
Euriacuteloco partiu primeiro os homens chorando e se lamentando pelos companheiros
que tinham acabado de perder para os Lestriacutegones Os homens acharam o solar de
Circe que era rodeado por leotildees e lobos que ela havia enfeiticcedilado A princiacutepio os
homens se assustaram com aqueles animais mas eles natildeo lhes foram hostis Entatildeo
os companheiros de Odisseu puderam ver Circe laacute dentro cantando e tecendo O
primeiro a falar foi Polita o companheiro preferido de Odisseu que incentivou os
demais a chamaacute-la Circe logo apareceu e os convidou a entrar Euriacuteloco poreacutem
desconfiado ficou do lado de fora Circe preparou a refeiccedilatildeo dos homens
adicionando drogas agrave comida as drogas fariam com que eles se esquecessem da
proacutepria origem Depois que eles comeram a deusa os transformou em porcos mas
de modo que eles conservassem a inteligecircncia
Diante disso Euriacuteloco correu de volta para o barco para alertar os
companheiros Rapidamente Odisseu pegou sua espada e seu arco e pediu que
Euriacuteloco o levasse ao solar de Circe Este implorou a Odisseu que mudasse de
ideia e que fugisse com os demais homens imediatamente Mas Odisseu decidiu
que chegaria agrave morada de Circe mesmo sem ajuda e foi adiante Em seu caminho
para o palaacutecio entretanto foi interrompido por Hermes disfarccedilado de um rapaz no
iniacutecio da adolescecircncia O deus entatildeo pegou Odisseu pelas matildeos e o advertiu
tanto Odisseu natildeo conseguiria salvar seus companheiros transformados em porcos
como ele mesmo seria transformado Entretanto o deus disse a Odisseu que queria
livraacute-lo daquele destino e lhe ofereceu uma droga preventiva Com ela Odisseu
comeria da comida de Circe mas natildeo se esqueceria de sua origem E quando Circe
lhe apontasse sua vara maacutegica para transformaacute-lo ele sacaria uma espeacutecie de faca
ameaccedilando mataacute-la Assustada ela convidaria Odisseu a deitar-se com ela e ele
natildeo deveria recusar a fim de garantir a libertaccedilatildeo de seus companheiros Aleacutem
disso Odisseu deveria obter da deusa a promessa de que ela natildeo planejaria mais
nenhuma maldade contra ele Entatildeo Hermes entregou a Odisseu a erva preventiva
mocircli que era muito difiacutecil para os mortais arrancarem
Odisseu seguiu ateacute a mansatildeo de Circe e comeu a comida que ela lhe
ofereceu sem no entanto ficar enfeiticcedilado A deusa espantada ajoelhou diante
dele perguntando-lhe quem era e de onde vinha Antes que ele respondesse ela
164
adivinhou que estava diante de Odisseu inteligente e engenhoso Acrescentou que
Hermes jaacute a havia alertado a respeito daquela visita haacute muito tempo e a fim de que
criassem confianccedila um no outro Circe convidou Odisseu a subir aos seus
aposentos Odisseu poreacutem respondeu que natildeo subiria a natildeo ser que ela jurasse
solenemente que natildeo lhe faria mal algum A deusa fez o juramento e eles subiram
ao magniacutefico leito
Mais tarde uma serva ofereceu a refeiccedilatildeo Odisseu com o coraccedilatildeo apertado
pressagiando mais desgraccedilas natildeo sentiu vontade de comer Circe entatildeo vendo-o
daquele jeito perguntou qual era o problema Odisseu respondeu que natildeo poderia
sentir vontade de comer enquanto seus companheiros estavam transformados em
porcos e pediu que ela os libertasse Dirigindo-se agrave pocilga com a vara em punho
Circe ungiu cada um com uma droga diversa fazendo-os retornarem agrave forma
humana poreacutem mais moccedilos e mais bonitos Os companheiros de Odisseu ao vecirc-lo
foram um a um chorando lhe beijar as matildeos em agradecimento A proacutepria Circe se
comoveu com a cena e mandou Odisseu ao barco para colocaacute-lo na terra e depois
voltar para a caverna dela com os tesouros acumulados Ele correu para o barco
para transmitir a ordem aos companheiros Enquanto todos os homens obedeceram
imediatamente Euriacuteloco tentou dissuadi-los dizendo que Circe os transformaria em
animais tambeacutem e que aquela era outra insensatez da parte de Odisseu assim
como a visita ao antro do Ciclope Polifemo Ao ouvir aquilo Odisseu considerou
decapitar Euriacuteloco mas os companheiros o convenceram do contraacuterio Entatildeo
Odisseu conduziu seus homens ao solar de Circe e ateacute Euriacuteloco os acompanhou
com medo da fuacuteria do rei de Iacutetaca
Chegando agrave mansatildeo da deusa os homens comeram e beberam felizes por se
reencontrarem E passaram um ano daquela forma banqueteando-se de carne
abundante e de vinho suave na mansatildeo de Circe ateacute que os companheiros de
Odisseu o alertaram da necessidade de voltarem para Iacutetaca ressaltando todo o
tempo que jaacute haviam passado na ilha de Eeia Odisseu deixando-se persuadir foi
suplicar agrave deusa que lhes permitisse voltarem agrave paacutetria conforme ela havia
prometido Circe prontamente respondeu que natildeo reteria Odisseu em sua casa
contra a vontade dele mas avisou que ele teria que fazer outra viagem ainda antes
de poder voltar para Iacutetaca ele deveria descer agrave mansatildeo de Hades e Perseacutefone para
consultar o adivinho Tireacutesias
165
Ao ouvir isso Odisseu se desesperou e se pocircs a chorar e a rolar na cama da
deusa desejando a morte Enfim conseguiu perguntar quem o guiaria em tal
empreitada Circe assegurou que ele natildeo precisava se preocupar porque o sopro do
vento Boacutereas o levaria e acrescentou as seguintes instruccedilotildees depois de cruzar o rio
Oceano onde ele deveria ver uma praia estreita e os bosques de Perseacutefone Ali
Odisseu deveria ancorar seu barco e perguntar pela morada de Hades por ali fluiacuteam
o Piriflegetonte e o Cocito que eacute um braccedilo do Eacutestige O Eacutestige era o rio que levava
ao Hades Havia um rochedo no lugar em que os dois rios se encontravam e
Odisseu deveria cavar um buraco ali e fazer libaccedilotildees aos mortos primeiro de leite e
mel depois de vinho suave e por uacuteltimo de aacutegua Entatildeo deveria espalhar farinha e
invocar insistentemente os mortos com a promessa de que ao chegar ao seu
palaacutecio em Iacutetaca ele imolaria a melhor novilha e encheria a pira de nobres oferendas
a todos eles a Tireacutesias especificamente sacrificaria o carneiro negro mais
esplecircndido de seu rebanho Apoacutes invocar os mortos Odisseu deveria imolar um
carneiro e uma ovelha negra de frente para o Eacuterebo enquanto andava para traacutes na
direccedilatildeo do rio Naquele momento surgiria um grande nuacutemero de almas e Odisseu
deveria entatildeo pedir que seus companheiros oferecessem sacrifiacutecios aos deuses e
orassem a eles ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Odisseu por sua vez
teria que manter as almas afastadas do sangue ateacute consultar Tireacutesias que lhe
revelaria como seria seu regresso agrave Iacutetaca
Os companheiros de Odisseu se desesperaram quando este lhes falou a
respeito da viagem agrave mansatildeo de Hades mas natildeo puderam fazer nada a respeito a
natildeo ser seguir as coordenadas de Odisseu ateacute laacute
Canto XI
O sol estava se pondo quando eles chegaram aos extremos de Oceano
aportaram o barco desembarcaram as reses e se puseram a caminhar ao longo do
rio ateacute chegarem ao local indicado por Circe Entatildeo Perimedes e Euriacuteloco seguraram
as viacutetimas enquanto Odisseu cavava o buraco no solo e fazia as libaccedilotildees seguindo
as instruccedilotildees de Circe primeiro leite e mel depois vinho depois aacutegua depois
farinha Em seguida ele fez promessas de ao chegar em Iacutetaca imolar a melhor
novilha e oferecer as mais nobres oferendas aos mortos e de sacrificar o mais
esplecircndido carneiro negro a Tireacutesias Apoacutes invocar os mortos com votos e preces
Odisseu degolou as reses sobre a cova e o sangue negro delas escorreu
166
As almas subidas do Eacuterebo entatildeo se aglomeraram eram donzelas moccedilos
solteiros velhos sofridos muitos mortos em combate com as armaduras tingidas de
sangue Eles eram muitos e Odisseu ficou aterrorizado Entatildeo mandou seus
companheiros pelarem e queimarem as reses que jaacute estavam degoladas orando
aos deuses ao poderoso Hades e agrave terriacutevel Perseacutefone Ele por sua vez sacou seu
glaacutedio impedindo os mortos de chegarem ao sangue antes que ele consultasse
Tireacutesias
A primeira alma a se aproximar foi a de seu companheiro Elpenor que ficara
sem pranteio e insepulto no palaacutecio de Circe uma vez que Odisseu e seus homens
tiveram que partir de laacute com urgecircncia Elpenor pediu ao rei de Iacutetaca que em nome
de sua esposa Peneacutelope de seu pai Laertes e de seu filho Telecircmaco ao voltar agrave
ilha de Eeia o sepultasse para que natildeo fosse motivo de coacutelera dos deuses Odisseu
prometeu atender aos desejos de Elpenor
Em seguida veio ao encontro de Odisseu a alma de sua matildee Anticleia que
ele deixara viva ao partir para Troia Embora tenha sentido pesar ao vecirc-la natildeo
deixou que ela se aproximasse do sangue Finalmente veio a alma de Tireacutesias que
apoacutes reconhecer Odisseu perguntou o que ele estava fazendo naquele lugar
despreziacutevel e pediu que afastasse a adaga de modo que ele pudesse se aproximar
do sangue e bebecirc-lo a fim de revelar-lhe a verdade
Apoacutes sorver o sangue o adivinho disse para Odisseu que enquanto ele
esperava um retorno tranquilo agrave Iacutetaca Posiacutedon faria com que fosse um retorno
muito penoso porque guardava rancor de Odisseu por ter-lhe cegado o filho
Polifemo Apesar das desgraccedilas Odisseu conseguiria chegar em casa desde que
conseguisse conter a proacutepria impaciecircncia e a de seus companheiros quando
chegassem agrave ilha de Trinaacutecia e encontrassem pastando as vacas e as ovelhas de
Heacutelio que tudo vecirc e tudo escuta e as deixassem em paz e cuidassem de seu
regresso No entanto Tireacutesias previa o fim do barco e da tripulaccedilatildeo caso os homens
saqueassem o rebanho do deus Se de alguma forma Odisseu conseguisse
escapar deste fim Tireacutesias afirmou que ele chegaria agrave Iacutetaca somente apoacutes muito
tempo sozinho e humilhado a bordo de barcos estrangeiros e encontraria
tribulaccedilotildees em casa (os pretendentes de Peneacutelope) Era certo que Odisseu
conseguiria se vingar de todos os homens fosse por meio de sua astuacutecia fosse por
meio de luta aberta Depois de matar todos os pretendentes Odisseu deveria partir
167
ateacute chegar a um povo que natildeo conhecesse o mar Laacute assim que ele cruzasse com
um caminhante que elogiasse o seu mangual deveria fincar o remo no chatildeo e imolar
um carneiro um touro e um javali a Posiacutedon Em seguida deveria voltar a Iacutetaca e
sacrificar aos deuses centenas de bois Finalmente Tireacutesias profetizou que Odisseu
morreria de velhice em casa em meio a sua famiacutelia e em plena prosperidade Apoacutes
ouvi-lo Odisseu perguntou-lhe o que deveria fazer para que sua matildee o
reconhecesse Tireacutesias explicou que Odisseu deveria permitir que sua matildee
chegasse perto do sangue Em seguida o adivinho voltou agrave mansatildeo de Hades
Anticleia entatildeo bebeu um pouco de sangue e conseguiu reconhecer o filho
Entre lamentos perguntou-lhe como ele chagara vivo ateacute ali Odisseu respondeu
que tivera que descer ao Hades para consultar o adivinho Tireacutesias uma vez que
ainda natildeo conseguira chegar em casa ao inveacutes vinha errando pelos mares desde
que partira de Troia Odisseu aproveitou para perguntar a respeito de seu pai
Laertes de seu filho Telecircmaco e de sua esposa Peneacutelope Anticleia respondeu que
Laertes jaacute bastante velho permanecia em sua fazenda aguardando o regresso do
filho Telecircmaco dirigia as propriedades do pai Peneacutelope continuava a esperaacute-lo
triste e chorosa Anticleia acrescentou que ela mesma morrera de saudades do
glorioso Odisseu Por fim a mulher aconselhou o filho a deixar o Hades Nisso um
grande nuacutemero de almas femininas se aproximou a fim de beber o sangue Odisseu
usou sua espada para afastaacute-las a fim de poder interrogaacute-las a respeito de sua
identidade e ascendecircncia
Terminando este relato Odisseu afirmou que precisava ir dormir enquanto os
deuses e os Feaacutecios cuidavam de conduzi-lo de volta a Iacutetaca Alciacutenoo entatildeo pediu
que Odisseu tivesse paciecircncia e esperasse ateacute o dia seguinte para iniciar a viagem
e que naquele momento continuasse a narrar suas aventuras Odisseu contou que
apoacutes a dispersatildeo daquelas mulheres aproximou-se dele a alma de Agamecircmnon em
torno da qual se aglomeravam todas as outras que haviam morrido na casa de
Egisto junto com ele Depois de beber o sangue tentou abraccedilar Odisseu mas natildeo
pode fazecirc-lo Odisseu chorou ao vecirc-lo e perguntou qual o motivo de sua morte
Agamecircmnon narrou que ao chegar em casa fora assassinado por Egisto amante
de sua esposa Clitemnestra Odisseu espantou-se ao ouvir aquilo comentando que
Zeus devia odiar os filhos de Atreu ndash Menelau e Agamecircmnon ndash e que exercia este
oacutedio por meio das mulheres uma vez que muitos dos aqueus haviam morrido por
168
causa de Helena enquanto sua irmatilde Clitemnestra armava uma cilada para o
marido Em resposta Agamecircmnon disse que Odisseu natildeo precisava temer tal
destino pois Peneacutelope era sensata e seu filho Telecircmaco decerto era um homem
bom e ambos ficariam felizes com seu regresso
Em seguida se aproximaram as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Antiacuteloco e
de Aacutejax Ao reconhecer Odisseu Aquiles chorando perguntou como o engenhoso
Odisseu fora parar no Hades Odisseu respondeu que fora falar com Tireacutesias
esperando que ele lhe revelasse uma forma de chegar agrave Iacutetaca Entatildeo Odisseu
acrescentou que nenhum homem nunca fora nem seria tatildeo feliz quanto Aquiles
que era tatildeo honrado quanto um deus pelos aqueus quando vivo e que agora
exercia grande autoridade entre os mortos de modo que natildeo deveria lamentar a
proacutepria morte Aquiles entretanto respondeu que preferiria lavrar a terra de um amo
pobre a reinar sobre as almas do Hades Em seguida pediu notiacutecias de seu filho
Odisseu respondeu que Neoptoacutelemo se destacava junto aos aqueus por suas boas
ideias sua coragem e seu fiacutesico Apoacutes saquearem Troia Neoptoacutelemo fora embora
satildeo e salvo Ao ouvir aquilo Aquiles afastou-se orgulhoso A alma de Aacutejax mantinha-
se afastada arredia guardando rancor pela vitoacuteria que Odisseu obtivera sobre ele
quando disputaram as armas de Aquiles em Troia Odisseu se surpreendeu ao vecirc-lo
ainda rancoroso e afirmou que a disputa das armas havia sido um flagelo dos
deuses uma vez que sua morte fora uma perda tatildeo grande aos aqueus quanto a de
Aquiles e a culpa de tudo fora exclusivamente de Zeus Aacutejax ouviu tudo aquilo e
sem responder voltou ao Eacuterebo
Odisseu entatildeo avistou Tiacutetio um gigante filho da terra que tinha dois abutres
devorando seu fiacutegado de modo que ele natildeo podia espantaacute-los Tambeacutem viu Tacircntalo
de peacute numa lagoa atormentado pela sede uma vez que natildeo conseguia beber a
aacutegua que lhe chegava ao queixo Viu ainda Siacutesifo que tentava empurrar um imenso
rochedo montanha acima mas toda vez que chagava perto do topo uma forccedila fazia
com que o rochedo rolasse montanha abaixo
Finalmente Odisseu avistou o espectro de Heacuteracles filho de Zeus casado com
Hebe filha de Hera O proacuteprio Heacuteracles encontrava-se em festins com os deuses
apoacutes ter-se tornado imortal Heacuteracles chorou ao reconhecer Odisseu e comentou
com ele que seu destino era tatildeo triste quanto o seu quando na terra uma vez que se
encontrara subjugado a Euristeu Este lhe infligira doze aacuterduas tarefas inclusive a
169
de mandar buscar o cachorro de Hades ndash tarefa a qual ele sobrevivera graccedilas agrave
ajuda de Hermes e Atenaacute
Apoacutes a partida de Heacuteracles inuacutemeras almas se aglomeraram em torno de
Odisseu amedrontando-o de modo que ele correu para o barco e junto com seus
companheiros comeccedilou a remar para longe dali
Canto XII
Odisseu e seus homens voltaram agrave ilha de Eeia agrave casa de Circe onde
sepultaram o falecido Elpenor Apoacutes o ritual a deusa se dirigiu a eles a fim de elogiaacute-
los por sua excelecircncia uma vez que apoacutes a descida ao Hades eles teriam duas
mortes enquanto os outros homens morrem apenas uma vez Entatildeo ela os convidou
para um banquete e para dormirem laacute e soacute partissem pela manhatilde Depois que os
homens dormiram Circe pocircde conversar com Odisseu com privacidade Apoacutes
indagaacute-lo a respeito do que havia acontecido durante sua descida ao Hades
comeccedilou a narrar como seria sua viagem agrave Iacutetaca a partir dali ele encontraria duas
sereias que atraveacutes de seu canto fascinavam os homens de modo a impedi-los de
se afastar dali A fim de conseguir ouvir o belo canto delas Odisseu deveria tampar
os ouvidos de sua tripulaccedilatildeo com cera e ficar firmemente amarrado ao barco de
modo que natildeo pudesse ser capturado pelas sereias e morrer ali como tantos
haviam feito antes dele Quando seu navio estivesse longe das sereias Odisseu
deveria escolher entre dois caminhos de um lado ficavam os Rochedos Eminentes
atraveacutes do qual nunca havia passado nenhum ser do outro lado ficava um rochedo
que nenhuma embarcaccedilatildeo jamais havia ultrapassado ndash exceto a ceacutelebre Argo em
decorrecircncia da ajuda que Hera prestara a Jasatildeo No meio do penedo abrir-se-ia
uma gruta voltada para o Eacuterebo onde morava Cila monstro terriacutevel que ladrava
terrivelmente e possuiacutea doze patas atrofiadas e seis pescoccedilos extremamente
longos De cada pescoccedilo saiacutea uma cabeccedila medonha portadora de trecircs fileiras de
dentes Metade do corpo de Cila ficava dentro da gruta mas as cabeccedilas ficavam
para fora pescando tudo que pudesse comer No outro penedo Odisseu encontraria
uma figueira brava por baixo da qual a divina Cariacutebdis aspirava toda a aacutegua Nem
os deuses poderiam salvar Odisseu caso ele passasse por Cariacutebdis sua melhor
opccedilatildeo entatildeo era se aproximar do rochedo de Cila e perder seis homens para o
monstro ao inveacutes de passar perto de Cariacutebdis e perder toda a tripulaccedilatildeo
170
Ouvindo aquilo Odisseu ainda tentou obter de Circe um meio de passar por
Cariacutebdis e Cila sem perder seis homens A deusa se zangou porque mais uma vez
Odisseu queria arranjar uma forma de natildeo recuar nem diante dos imortais Ainda
assim o aconselhou a pedir a ajuda de Crateide matildee de Cila quando estivesse
perto desta Somente com a ajuda de Crateide Odisseu e seus homens
conseguiriam chegar agrave Trinaacutecia onde pastavam as vacas e carneiros de Heacutelio
Neste ponto Circe repetiu a Odisseu o que Tireacutesias jaacute havia lhe dito se ao chegar agrave
Trinaacutecia ele e seus homens deixassem intactos o rebanho do deus chegariam agrave
Iacutetaca apesar dos reveses Poreacutem caso roubassem as vacas e os carneiros teriam o
barco e a tripulaccedilatildeo destruiacutedos e o proacuteprio Odisseu caso escapasse soacute conseguiria
chegar agrave Iacutetaca depois de muito tempo humilhado e sozinho
Logo que nasceu o dia e Odisseu e seus companheiros partiram ajudados
pelo vento favoraacutevel enviado a eles por Circe Jaacute em alto-mar Odisseu relatou aos
companheiros as advertecircncias feitas pela deusa em primeiro lugar eles precisariam
se defender do canto das sereias de modo que apenas Odisseu o ouvisse desde
que amarrado Assim um a um o rei de Iacutetaca foi tampando os ouvidos de seus
companheiros com cera depois eles o ataram na carlinga e sentados e remando
continuaram conduzindo o barco agrave ilha das sereias Ao ver o barco as sereias se
puseram a cantar maravilhosamente chamando Odisseu Elas diziam saber tudo
que se passara durante a guerra em Troia e afirmaram que quem as ouvia partia
mais saacutebio e mais feliz Odisseu seduzido pediu que seus companheiros lhe
soltassem mas conforme a instruccedilatildeo preacutevia eles o amarraram ainda mais forte e
soacute o soltaram quando jaacute estavam longe da ilha das sereias
Mal haviam deixado as sereias avistaram um nevoeiro e uma onda enorme
Assustados pararam de remar mas Odisseu percorreu o barco incentivando-os a
continuar lembrando-os de que jaacute haviam enfrentado outros contratempos Os
homens obedeceram
Odisseu propositalmente natildeo havia contado aos seus companheiros a
respeito de Cila receando que apavorados eles se escondessem no poratildeo do
navio Quando entraram naquele estreito poreacutem Odisseu esquecendo-se das
recomendaccedilotildees de Circe vestiu sua armadura empunhou duas lanccedilas e subiu agrave
proa donde esperava ser o primeiro a avistar Cila Odisseu poreacutem natildeo viu nada e
ele e seus homens penetraram se lamentando naquele estreito onde de um lado
171
estava Cila e do outro a divina Cariacutebdis bebia toda a aacutegua do mar e quando a
vomitava provocava redemoinhos mortais Enquanto Odisseu e seus companheiros
temendo a morte olhavam para Cariacutebdis Cila arrebatou seis homens os que tinham
os braccedilos mais fortes devorando-os Odisseu considerou aquela como a pior
experiecircncia da viagem inteira
Por fim eles escaparam de Cila e de Cariacutebdis e se aproximaram da ilha do
deus Heacutelio O mugido das vacas e o balido das ovelhas podia ser ouvido de longe o
que deixou Odisseu receoso fazendo-o lembrar das palavras do adivinho Tireacutesias e
da deusa Circe Rapidamente ele orientou sua tripulaccedilatildeo a continuar remando para
longe dali Euriacuteloco prontamente retrucou que Odisseu era cruel uma vez que natildeo
permitia a seus homens parar para descansar e comer e rapidamente convenceu a
tripulaccedilatildeo a aportar na ilha Odisseu prevendo a desgraccedila tentou fazer com que
seus homens prometessem natildeo matar nenhuma vaca e nenhum carneiro que
encontrassem na ilha e que se satisfizessem apenas com as provisotildees fornecidas
por Circe A tripulaccedilatildeo prometeu e apoacutes ancorar o barco eles prepararam a ceia
comeram e dormiram
Cedo no dia seguinte Odisseu lembrou a seus companheiros de que eles
tinham o que comer e o que beber no barco de modo que natildeo deveriam tocar nas
vacas e nas ovelhas daquela ilha uma vez que elas pertenciam ao deus Heacutelio Os
homens prometeram prontamente Poreacutem passou-se um mecircs sem que soprasse
nenhum vento favoraacutevel agrave navegaccedilatildeo As provisotildees acabaram e os homens
tentaram pescar e caccedilar mas foi em vatildeo Odisseu entatildeo adentrou a ilha a fim de
orar aos deuses Jaacute se encontrava longe dos companheiros quando antes de iniciar
suas preces os deuses lanccedilaram um sono profundo sobre ele Enquanto isso
Euriacuteloco se pocircs a dar maus conselhos agrave tripulaccedilatildeo afirmando que nada era mais
triste do que morrer de fome de modo que eles deviam abater as vacas da ilha as
vacas de Heacutelio sem entretanto deixar de fazer um sacrifiacutecio aos deuses A
tripulaccedilatildeo concordou Neste momento Odisseu acordou e voltou correndo para o
barco mas ao sentir o cheiro da gordura entendeu tudo e perguntou aos deuses o
por quecirc daquilo e qual era o objetivo dos imortais ao fazecirc-lo adormecer uma vez
que seus companheiros cometeriam um crime enquanto ele dormia
Enquanto isso Heacutelio indignado se dirigiu aos deuses exigindo um castigo
para os companheiros de Odisseu que ousaram abater suas vacas Caso natildeo fosse
172
atendido prometeu mergulhar ao Hades e brilhar para os mortos Rapidamente
Zeus pediu que Heacutelio continuasse a brilhar para os imortais e para os mortais sobre
a Terra e prometeu que castigaria Odisseu e sua tripulaccedilatildeo sem demora
Odisseu correu ao barco para repreender seus tripulantes mas jaacute era tarde
demais porque as vacas jaacute estavam mortas Entatildeo os deuses fizeram com que os
couros comeccedilassem a rastejar e que as postas comeccedilassem a mugir nos espetos
Durante seis dias os companheiros de Odisseu se banquetearam com as
melhores vacas de Heacutelio no seacutetimo dia partiram Estavam em alto-mar quando
Zeus mandou uma nuvem escura sobre o barco escurecendo o mar Natildeo demorou
a vir uivando Zeacutefiro e com sua fuacuteria o vento rompeu o mastro do navio e caiu na
cabeccedila do piloto matando-o Ao mesmo tempo Zeus jogou um raio sobre o barco
projetando a tripulaccedilatildeo para fora privando-os assim do regresso Odisseu amarrou
a quilha ao mastro e sentado sobre eles deixou-se levar pelos ventos fortes No
entanto ele ficou apavorado ao perceber que teria que passar novamente por Cila e
por Cariacutebdis Quando se aproximou dos monstros Cariacutebdis aspirou toda a aacutegua e
Odisseu soacute escapou porque se agarrou agrave figueira Quando ela vomitou o mastro e a
quilha Odisseu jogou-se no mar alcanccedilou os madeiros sentou-se sobre eles e
seguiu remando com as matildeos Zeus impediu que Cila visse o rei de Iacutetaca e Odisseu
passou nove dias vagando Na deacutecima noite os deuses o aproximaram da ilha de
Ogiacutegia onde mora a deusa Calipso que acolheu e cuidou de Odisseu
Canto XIII
Quando Odisseu terminou este relato os Feaacutecios que estavam presentes
ficaram em silecircncio embevecidos Alciacutenoo no entanto anunciou que a arca para
conduzir Odisseu jaacute se encontrava abastecida de roupas de ouro e de muitos
presentes
Em seguida todos se recolheram para dormir Mal raiou a Aurora de dedos
roacuteseos os homens terminaram de carregar o barco Em seguida voltaram para a
casa de Alciacutenoo prepararam um banquete e comeram enquanto o aedo
Demoacutedoco cantava Odisseu entretanto olhava para o ceacuteu ansioso para partir
Alciacutenoo mandou que o arauto Pontocircnoo temperasse vinho com mel e servisse
aos homens para que eles orassem a Zeus antes de enviar Odisseu para Iacutetaca
Depois que os homens libaram aos deuses o divino Odisseu orou agrave Atenaacute pedindo
que ela garantisse sempre a felicidade na casa de Alciacutenoo Dito isso o arauto
173
conduziu Odisseu e os homens ao barco Odisseu caiu num sono suave e profundo
assim que os homens comeccedilaram a remar Apoacutes ter sofrido tantas anguacutestias ele
enfim dormia tranquilamente O barco seguia veloz conduzindo um homem tatildeo
inteligente quanto os deuses
Na manhatilde seguinte o barco jaacute se aproximava de Iacutetaca Os homens aportaram
na ilha e sem que Odisseu tivesse acordado o deixaram sobre um lenccedilol estendido
na areia Em seguida desembarcaram o ouro e os presentes que Odisseu ganhara
graccedilas agrave influecircncia de Atenaacute Em seguida regressaram agrave Feaacutecia
Posiacutedon ficou enfurecido e questionou Zeus a respeito de suas intenccedilotildees
afinal como ele (Posiacutedon) poderia ser respeitado pelos imortais se natildeo era
respeitado nem pelos mortais descendentes dele os Feaacutecios Aleacutem disso Posiacutedon
se ofendera porque havia designado muitas dificuldades para Odisseu antes que
este chegasse em casa no entanto os Feaacutecios o haviam transportado com
facilidade e lhe haviam concedido inuacutemeros presentes muito mais do que Odisseu
havia saqueado em Troia Zeus respondeu que Posiacutedon natildeo tinha do que reclamar
e caso estivesse insatisfeito com a conduta de algum mortal cabia a ele infligir o
castigo Posiacutedon replicou que temia a fuacuteria de Zeus por isso nada mais havia feito
No entanto para castigaacute-los ele agora desejava acabar com os barcos dos Feaacutecios
no caminho de volta e tambeacutem desejava esconder a Feaacutecia com altas montanhas
Zeus sugeriu que Posiacutedon petrificasse o barco e seus tripulantes convertendo-o
numa ilhota que pudesse ser vista por toda a cidade Em seguida Posiacutedon poderia
cercar a cidade de montanhas a fim de escondecirc-la E assim Posiacutedon fez
O rei Alciacutenoo se desesperou ao ver aquilo lamentando que aquele destino jaacute
havia lhe sido predito Entatildeo declarou que os Feaacutecios natildeo mais deveriam repatriar
os homens que laacute surgissem e imediatamente deveriam imolar uma duacutezia de
touros agrave Posiacutedon torcendo para que ele desistisse daquele castigo
Enquanto isso em Iacutetaca Odisseu acordou mas natildeo reconheceu a proacutepria
terra porque estava envolvido por uma neacutevoa enviada por Atenaacute neacutevoa esta que
tambeacutem natildeo permitia que ele fosse reconhecido por ningueacutem antes de se vingar dos
pretendentes de Peneacutelope Odisseu receoso a respeito de seu paradeiro pocircs-se a
lamentar Neste instante Atenaacute assumindo a aparecircncia de um rapaz se aproximou
de Odisseu Este alegre ao vecirc-lo perguntou onde estava Atenaacute respondeu que ele
174
se encontrava em Iacutetaca que era conhecida ateacute mesmo em Troia distante das terras
dos aqueus
O atribulado Odisseu por mais contente que estivesse por estar em casa se
dirigiu agrave deusa de modo a esconder sua identidade sempre movido por sua astuacutecia
Apoacutes ouvi-lo Atenaacute de olhos verde-mar assumiu a aparecircncia de uma bela mulher e
repreendeu-o por nunca abandonar seu lado ludibriador nem mesmo em sua proacutepria
terra Entatildeo determinou que fossem direto ao assunto uma vez que ele era o mais
persuasivo dos mortais e ela era famosa entre os divinos por sua inteligecircncia e
astuacutecia Assim revelou ser Atenaacute deusa que sempre o assistia e protegia e que
naquele momento estava ali para ajudaacute-lo a concatenar um plano para lidar com os
problemas que encontraria em casa Em primeiro lugar Odisseu deveria suportar
calado todos os infortuacutenios que laacute encontrasse pois natildeo deveria ser reconhecido
Odisseu argumentou que era difiacutecil reconhecer a deusa mas que ele sabia que
ela o protegera durante a guerra de Troia Apoacutes sua partida no entanto afirmou que
nunca mais notara a presenccedila dela principalmente em decorrecircncia de todo o
sofrimento que havia passado Soacute voltara a reconhececirc-la na terra dos Feaacutecios
quando ela o incentivara a seguir ateacute a cidade Entatildeo ainda desconfiado Odisseu
pediu que Atenaacute lhe revelasse sua real localizaccedilatildeo
Atenaacute mais uma vez o repreendeu por toda aquela desconfianccedila e afirmou
que era por este mesmo motivo que natildeo podia abandonaacute-lo Qualquer outro homem
na posiccedilatildeo dele teria corrido para o palaacutecio e para a famiacutelia Odisseu no entanto
queria ter certeza de onde estava e testar sua esposa Atenaacute acrescentou que
Peneacutelope passara aqueles vinte anos lamentando a ausecircncia de Odisseu A deusa
por sua vez nunca duvidara de seu retorno o que natildeo significava que ela desejava
guerrear com Posiacutedon a respeito daquilo
Atenaacute entatildeo dissipou a neacutevoa em torno de Odisseu de modo que ele pode
reconhecer sua terra Em seguida incentivou Odisseu a natildeo ter medo se dirigir agrave
cidade e escondeu todos os presentes que ele havia ganhado dos Feaacutecios em uma
gruta Entatildeo os dois comeccedilaram a planejar o extermiacutenio dos pretendentes atrevidos
apoacutes a deusa colocar Odisseu a par da situaccedilatildeo atual enquanto os pretendentes haacute
trecircs anos estavam a dilacerar seus bens Peneacutelope chorava constantemente
desejando seu regresso ao mesmo tempo enganava os pretendentes fazendo
promessas de casamento que natildeo queria cumprir
175
Odisseu agradeceu a deusa porque sem ela morreria ao chegar ao seu
palaacutecio assim como Agamecircmnon havia morrido nas matildeos de sua esposa
Clitemnestra e do amante dela Egisto Entatildeo Odisseu pediu que Atenaacute o auxiliasse
durante sua vinganccedila contra os pretendentes da mesma forma que o ajudara em
Troia Atenaacute garantiu proteger Odisseu naquela empreitada acrescentando que
acreditava que todos os pretendentes pereceriam Para isso ela o tornaria
irreconheciacutevel com a aparecircncia de um mendigo Depois da transformaccedilatildeo a
primeira coisa que ele deveria fazer era procurar o porqueiro que queria igualmente
bem agrave Peneacutelope a Telecircmaco e a Odisseu e que fora responsaacutevel por conservar seu
sustento O rei de Iacutetaca deveria informar-se da situaccedilatildeo atual dali enquanto Atenaacute ia
a Esparta buscar Telecircmaco que havia partido em busca de notiacutecias do pai
Odisseu quis saber da deusa porque ela permitira que Telecircmaco viajasse
sendo que sabia a respeito de seu retorno ainda questionou se a finalidade daquilo
era a de que Telecircmaco tambeacutem sofresse anguacutestias Atenaacute respondeu que Odisseu
natildeo precisava se preocupar pois Telecircmaco natildeo passaria por nenhuma dificuldade
Aleacutem disso o rapaz havia conquistado renome Entretanto alguns pretendentes
estavam maquinando mataacute-lo antes que ele regressasse mas garantiu que este
plano estava fadado ao fracasso
Dito isso Atenaacute fez com que Odisseu assumisse a aparecircncia de um velho
mendigo Entatildeo despachou-o para a cidade enquanto ela mesma ia em busca de
Telecircmaco
Canto XIV
Odisseu foi subindo o porto seguindo o caminho que Atenaacute lhe indicara a fim
de encontrar o porcariccedilo Eumeu Assim que Odisseu chegou ao paacutetio do siacutetio do
porqueiro os catildees avanccedilaram contra ele mas seu dono os impediu e repreendeu o
forasteiro por sua imprudecircncia acrescentando que os deuses jaacute lhe causavam muito
sofrimento com a ausecircncia de seu amo que ele nem sabia se ainda estava vivo
Entatildeo o porcariccedilo convidou Odisseu a sua cabana para que ele comesse e
bebesse Durante a refeiccedilatildeo o porqueiro se pocircs a reclamar dos pretendentes eles
deviam ter ouvido dos deuses a notiacutecia da morte de Odisseu porque natildeo era certo
conduzir um pedido de casamento daquela forma consumindo todo o patrimocircnio do
rei atual ndash embora que ausente Entatildeo acrescentou que seu amo possuiacutea uma
176
quantidade inigualaacutevel de riquezas natildeo sendo superado nem por vinte homens
juntos
Odisseu absorvia todas estas palavras enquanto comia em silecircncio e planejava
vinganccedila contra os pretendentes Ao final da fala do porcariccedilo o falso mendigo
tentou tranquilizaacute-lo dizendo que Odisseu estava a caminho O porcariccedilo
entretanto se mostrou increacutedulo e contou que enquanto Telecircmaco tinha ido a Pilos
em busca de notiacutecia do pai os pretendentes tramaram uma emboscada para mataacute-
lo em seu regresso Apoacutes relatar brevemente ao estrangeiro a situaccedilatildeo em que Iacutetaca
se encontrava o porcariccedilo indagou a respeito da origem do velho Em resposta
Odisseu inventou uma histoacuteria Apoacutes ouvir a narrativa Eumeu preparou uma cama
para Odisseu e antes que o rei disfarccedilado se deitasse o porcariccedilo afirmou que
quando Telecircmaco regressasse proveria tuacutenica e transporte para o forasteiro Em
seguida Eumeu se retirou natildeo quis dormir junto a Odisseu porque natildeo lhe agradava
a ideia de deixar os porcos sozinhos Odisseu por sua vez ficou contente ao se
deparar com a fidelidade do porqueiro
Canto XV
Palas Atenaacute encontrou Telecircmaco em Esparta e o aconselhou a voltar para
Iacutetaca a fim de conservar seus bens e assegurou que Menelau o ajudaria na
empreitada para que ele ainda pudesse encontrar sua matildee irrepreensiacutevel em casa
Acrescentou que o pai e o irmatildeo de Peneacutelope estavam pressionando-a para que se
casasse com Euriacutemaco e que ela poderia partir levando tesouros sem o
consentimento de Telecircmaco A deusa tambeacutem avisou Telecircmaco a respeito do perigo
que ele enfrentaria perto de Iacutetaca uma vez que os pretendentes estavam planejando
mataacute-lo Embora a proacutepria Atenaacute acreditasse que os pretendentes morreriam antes
de assassinarem Telecircmaco ela orientou o rapaz a procurar o porcariccedilo assim que
chegasse agrave Iacutetaca e a esperar ateacute o dia seguinte para entatildeo enviaacute-lo agrave cidade a fim
de informar a Peneacutelope a respeito de seu retorno E assim apoacutes conversar com
Menelau Telecircmaco ndash com um carro carregado de presentes do rei de Esparta e
depois de ter desfrutado de um esplendoroso almoccedilo ndash retornou agrave paacutetria
Enquanto Telecircmaco retornava Odisseu jantava com o porcariccedilo e com outros
homens e a fim de testar Eumeu perguntou se este lhe proveria bondoso agasalho
para que fosse ateacute a cidade na manhatilde seguinte pedir comida aos pretendentes e
quem sabe fornecer notiacutecias a Peneacutelope acerca de Odisseu Aflito Eumeu tentou
177
dissuadir o falso mendigo da ideia de ir mendigar aos pretendentes que eram
extremamente violentos e ressaltou que ele deveria permanecer ali ateacute o retorno de
Telecircmaco que lhe forneceria roupas e transporte apoacutes este diaacutelogo eles foram
dormir e logo cedo na manhatilde seguinte Telecircmaco chegou agrave morada do porqueiro
Canto XVI
Mal havia raiado a manhatilde e Odisseu alerta por causa dos latidos dos
cachorros incentivou Eumeu a ir verificar o que estava acontecendo Mal Odisseu
terminara de falar Telecircmaco surgiu agrave porta Imediatamente o rapaz foi saudado pelo
porqueiro e apoacutes os cumprimentos declarou que estava ali para pedir notiacutecias de
Peneacutelope ndash teria ela se casado com outro ndash e de Odisseu ndash teria ele morrido
Eumeu assegurou que Peneacutelope ainda era rainha de Iacutetaca e ofereceu um jantar ao
rapaz que devia estar faminto depois de sua longe viagem Somente apoacutes a
refeiccedilatildeo Telecircmaco indagou a respeito do hoacutespede ndash Odisseu disfarccedilado de mendigo
ndash quis saber quem ele era de onde era e por que vira
Assim que Eumeu explicou que o mendigo ser recebido por Telecircmaco o
priacutencipe de Iacutetaca respondeu que natildeo tinha como recebecirc-lo natildeo teria forccedilas para
defendecirc-lo caso os pretendentes o atacassem e sua matildee tambeacutem natildeo estava em
condiccedilotildees de receber ningueacutem em casa entretanto enviaria roupas e comida para o
velho a fim de que ele natildeo se tronasse um estorvo para Eumeu Apoacutes ouvir o filho
Odisseu resolveu perguntar-lhe como ele estava lidando com aquela situaccedilatildeo com
os pretendentes ele aceitava de bom grado Estava obedecendo a algum oraacuteculo
Telecircmaco respondeu que nem ele nem Peneacutelope tinham como pocircr fim agravequela
situaccedilatildeo e em seguida mandou Eumeu agrave cidade avisar sua matildee de que havia
chegado satildeo e salvo
Assim que o porcariccedilo sumiu Atenaacute assumindo a forma de uma bela mulher
fez-se visiacutevel para Odisseu ndash e apenas para ele ndash e o aconselhou a revelar sua
verdadeira identidade para Telecircmaco a fim de que eles pudessem planejar um fim
aos pretendentes e em seguida garantiu que ela mesma participaria do confronto
Entatildeo a deusa tocou Odisseu com sua vara de ouro e fez com que sua aparecircncia
se tornasse bonita e suas roupas bastante apresentaacuteveis Quando a deusa partiu
Odisseu foi ao encontro do filho este por sua vez se espantou ao vecirc-lo e
perguntou se ele era um deus Odisseu entatildeo explicou que era seu pai Telecircmaco
poreacutem duvidou acreditando que ainda se tratava de um deus disfarccedilado Poreacutem
178
apoacutes ouvir do pai que aquela suacutebita transformaccedilatildeo de velho em moccedilo fora obra de
Atenaacute o rapaz abraccedilou o pai e se pocircs a chorar
Telecircmaco quis saber como Odisseu finalmente chegara agrave Iacutetaca este explicou
que fora levado pelos Feaacutecios num barco carregado de presentes e que agora
sob a orientaccedilatildeo de Atenaacute deveria exterminar os pretendentes Entatildeo Odisseu
perguntou quantos eram os pretendentes a fim de decidir se ele e Telecircmaco sozinho
dariam conta de todos O rapaz se espantou ao ouvir aquilo afirmou que sempre
ouvira histoacuterias a respeito da gloacuteria de seu pai mas aquele seria um
empreendimento impossiacutevel Odisseu entretanto respondeu que eles tinham Atenaacute
e Zeus como aliados
Apoacutes convencer Telecircmaco Odisseu expocircs seu plano Telecircmaco deveria
retornar agrave cidade bem cedo o porcariccedilo levaria Odisseu disfarccedilado de mendigo
mais tarde O rapaz natildeo deveria reagir caso os pretendentes ofendessem Odisseu
deveria sim esconder as armas deixando para eles apenas um par de adagas um
de lanccedilas e um de escudos O rapaz tambeacutem natildeo deveria avisar ningueacutem a respeito
da chegada de Odisseu nem mesmo agrave Peneacutelope o plano tambeacutem era descobrir
quais mulheres e quais servos lhe eram fieacuteis
Assim que o arauto e o porcariccedilo comunicaram agrave rainha a respeito da chegada
de Telecircmaco os pretendentes se enfureceram para eles aquela viagem havia sido
um grande atrevimento da parte do jovem e um atrevimento que natildeo deveria ter
dado certo E muito antes que os abusados pudessem avisar aos pretendentes que
espreitavam Telecircmaco para assassinaacute-lo para que voltassem o barco deles
retornou
Ao se reunirem novamente os pretendentes resolveram que juntos dariam
cabo de Telecircmaco ali na proacutepria Iacutetaca uma vez que duvidavam que seus planos se
concretizassem caso o rapaz estivesse vivo Neste momento Anfiacutenomo propocircs que
eles deveriam consultar os desiacutegnios dos deuses antes de cometerem o horriacutevel ato
de assassinar um priacutencipe Os pretendentes concordara e ato contiacutenuo se dirigiram
agrave casa de Odisseu
Naquele momento Peneacutelope resolveu aparecer aos pretendentes uma vez
que ficara sabendo a respeito da ameaccedila a seu filho Uma vez diante deles dirigiu-
se a Antiacutenoo lembrando-o da hospitalidade outrora oferecida a seu pai por Ulisses
e pedindo que ele pusesse fim ao abuso dos demais pretendentes Nisso Euriacutemaco
179
prometeu agrave rainha que nunca permitiria que lhe matassem o filho ndash poreacutem ele
mesmo planejava o assassinato de Telecircmaco Peneacutelope entatildeo voltou aos seus
aposentos e pocircs-se a chorar Odisseu ateacute que Atenaacute fez com que ela dormisse
Antes que Odisseu caiacutesse no sono a deusa transformou-o novamente num velho
mendigo a fim de que ningueacutem mais o reconhecesse
Canto XVII
Ao nascer o dia Telecircmaco se dirigiu ao porcariccedilo avisando-o que estava indo
para a cidade e que ele deveria levar o forasteiro para laacute mais tarde Assim que
chegou em casa Telecircmaco foi recebido por Euricleia a ama e depois por Peneacutelope
emocionada com o retorno do filho Telecircmaco por sua vez agradeceu as boas-
vindas emocionado tambeacutem e entatildeo anunciou que estava indo agrave praccedila buscar um
forasteiro que lhe fizera companhia desde seu retorno de Pilos
Depois que Telecircmaco e o forasteiro tomaram banho comerem e beberem
Peneacutelope se dirigiu ao filho perguntando se ele obtivera notiacutecias de Odisseu
Telecircmaco respondeu que soubera por Menelau que Odisseu se encontrava na ilha
da ninfa Calipso que natildeo permitia que ele fosse embora Nisso Teocliacutemeno profeta
de Argos que fugira de laacute para Pilos e depois partira com Telecircmaco garantiu a
Peneacutelope que Odisseu jaacute se encontrava em Iacutetaca A rainha natildeo acreditou mas
louvou o profeta e garantiu que o encheria de presentes caso aquele vaticiacutenio fosse
verdadeiro
Enquanto isso Odisseu e o porcariccedilo se dirigiam agrave cidade no caminho
encontraram Melacircntio que acompanhado por dois pastores ia levando as melhores
cabras para o jantar dos pretendentes e tirou sarro deles ao vecirc-los provocando
Odisseu tanto com suas palavras quanto com um pontapeacute em suas naacutedegas O rei
de Iacutetaca poreacutem controlou seu impulso de revidar e ele e o porcariccedilo seguiram seu
caminho em direccedilatildeo agrave cidade Quando laacute chegaram Odisseu disse a Eumeu que
seguisse em frente enquanto ele ali permaneceria Enquanto os dois conversavam
um cachorro que estava por ali ergueu a cabeccedila e as orelhas era Argos o catildeo de
Odisseu O animal estava deitado no chatildeo maltratado cheio de carrapatos e tentou
se levantar para festejar o antigo dono mas natildeo teve forccedilas Odisseu se emocionou
com a cena mas disfarccedilou Nisso Eumeu entrou na mansatildeo e logo em seguida
Argos morreu era como se soacute estivesse esperando rever seu dono uma uacuteltima vez
180
Ao reparar na presenccedila do porqueiro Telecircmaco fez sinal para que este se
aproximasse e entregou-lhe uma cesta com patildeo e carne para que ele desse ao
mendigo forasteiro Assim que o rei disfarccedilado terminou de jantar Atenaacute se
aproximou e ordenou que ele fosse mendigar entre os pretendentes a fim de
descobrir quais eram os mais justos Os homens doavam a Odisseu conforme ele se
aproximava com as matildeos estendidas mas natildeo deixaram de estranhaacute-lo Finalmente
Antiacutenoo reclamou com o porcariccedilo porque este permitira a entrada do mendigo na
cidade Aleacutem disso Antiacutenoo se negou a dar qualquer coisa ao mendigo e ainda
praguejando sua presenccedila atirou-lhe nas costas um banco
Odisseu suportou a agressatildeo firme e calado mas em sua cabeccedila planejava
sua vinganccedila Alguns pretendentes se revoltaram com a atitude de Antiacutenoo dizendo
que ele fora insensato uma vez que o mendigo poderia ser um deus disfarccedilado
Telecircmaco e Peneacutelope tambeacutem se revoltaram com o tratamento que estava sendo
dispensado ao forasteiro e entatildeo a rainha ordenou ao porqueiro que levasse o
mendigo para dentro do palaacutecio e lhe perguntasse a respeito de Odisseu a rainha
estava preocupada porque seus recursos estavam se esgotando e lamentava a
ausecircncia de Odisseu para se livrar dos pretendentes
O porqueiro foi avisar ao rei disfarccedilado que Peneacutelope solicitava sua presenccedila
no palaacutecio e o mendigo afirmou que diria toda a verdade agrave rainha uma vez que ele
e Odisseu haviam sofrido muito juntos
Canto XVIII
Neste momento Arneu cujo apelido era Iro um mendigo local se aproximou
de Odisseu tentando expulsaacute-lo Odisseu respondeu que natildeo o estava prejudicando
e que portanto o machucaria se ele continuasse a provocaacute-lo Antiacutenoo divertiu-se
com aquele diaacutelogo e logo incitou os demais pretendentes a tomarem partidos
estipulando o precircmio para o vencedor um pedaccedilo de carne e a permissatildeo para
jantar entre os pretendentes e para expulsar todos os outros mendigos da cidade
Telecircmaco incentivou a refrega
Atenaacute fez com que os membros de Odisseu parecessem maiores e mais fortes
surpreendendo os pretendentes e amedrontando seu oponente Raacutepido e facilmente
Odisseu derrotou o outro mendigo e quando foi sentar-se com os pretendentes
estes o cumprimentaram divertidos
181
Neste momento Atenaacute incentivou a Peneacutelope que aparecesse diante dos
pretendentes tanto para encantaacute-los quanto para transmitir melhor impressatildeo ao
filho e ao esposo Uma de suas criadas entretanto sugeriu que ela tomasse banho
e se arrumasse antes a fim de natildeo aparecer com o rosto manchado de laacutegrimas
Peneacutelope natildeo quis saber de se arrumar aleacutem do mais acreditava que sua beleza
havia partido com Odisseu ao inveacutes disso ela pedia a companhia de Autocircnoe e
Hipodacircmia suas aias para natildeo aparecer sozinha diante dos homens
Atenaacute poreacutem tinha outros planos para a rainha de Iacutetaca e fez com que ela
caiacutesse num doce sono Enquanto Peneacutelope dormia Atenaacute incrementou-lhe a
aparecircncia fazendo com que ela se igualasse a uma deusa Logo depois as aias se
aproximaram e Peneacutelope acordou
A rainha se aproximou dos pretendentes deixando todos encantados mas se
dirigiu apenas ao filho repreendendo-o por ter deixado que os pretendentes
maltratassem o forasteiro Enquanto Telecircmaco se explicava para a matildee Euriacutemaco
elogiou e exaltou a beleza de Peneacutelope naquele momento Peneacutelope entatildeo
comentou que Odisseu ao partir para Troia disse-lhe que caso natildeo tivesse
retornado ateacute que Telecircmaco atingisse a idade adulta ela deveria se casar com quem
quisesse e ir embora de Iacutetaca Naquele momento Peneacutelope reconhecia que um
segundo casamento lhe seria inevitaacutevel mas lamentava profundamente a maneira
como estava sendo cortejada os pretendentes deviam trazer-lhe presentes natildeo
dilapidar seus bens Intimamente Odisseu se alegou com as palavras da esposa
porque ao mesmo tempo em que incentivava os pretendentes a lhe darem
presentes seduzia-os ainda mais
Diante do discurso de Peneacutelope Antiacutenoo respondeu que ela deveria aceitar os
presentes dos aqueus que quisessem presenteaacute-la pois natildeo ficava bem recusaacute-los
poreacutem deixou claro que nenhum dos pretendentes partiria antes que ela tivesse
escolhido um como esposo Depois disso Peneacutelope se retirou mas os demais ali
permaneceram Apoacutes retrucar agrave provocaccedilatildeo de uma das aias da rainha Odisseu
iniciou nova refrega com os pretendentes coube a Telecircmaco pocircr fim agrave discussatildeo e
mandar que cada pretendente se dirigisse agrave proacutepria casa
Canto XIX
Restaram apenas Odisseu e Telecircmaco na sala e imediatamente o pai mandou
o filho esconder todas as armas Por sua vez o rapaz logo chamou a ama Euricleia
182
e inventou uma desculpa para que ela retivesse todas as mulheres num quarto
enquanto ele escondia as armas de seu pai que por falta de cuidado estariam
estragando Assim que Euricleia saiu com as moccedilas Telecircmaco e Odisseu se
puseram a esconder as armas Terminada esta tarefa Odisseu mandou Telecircmaco ir
dormir e disse que se quedaria ali mesmo a fim de aguccedilar a curiosidade das aias
dos pretendentes e da proacutepria Peneacutelope Enquanto Telecircmaco dormia Odisseu
maquinava com a ajuda de Atenaacute uma forma de vingar-se dos pretendentes
As aias estavam tirando a mesa em que os pretendentes haviam comido e
bebido quando Melacircntia provocou Odisseu novamente dizendo que ele estava
importunando e que deveria partir se natildeo quisesse sem expulso com violecircncia
Odisseu retrucou de maneira furtiva dizendo que a aia natildeo deveria agir daquele jeito
se quisesse evitar a fuacuteria de Peneacutelope de Telecircmaco ou do proacuteprio Odisseu caso
ele voltasse Peneacutelope que ouvira o diaacutelogo repreendeu duramente a aia Em
seguida pediu para a despenseira Euriacutenome trazer uma cadeira para o forasteiro a
fim de que pudesse interrogaacute-lo
Odisseu disfarccedilado jaacute se encontrava sentado diante da esposa quando esta
iniciou a conversa ela quis saber quem ele era e de onde era Ardilosamente o falso
mendigo pediu a ela que natildeo lhe perguntasse a respeito daquilo porque era tudo
muito penoso para ele A rainha assim lamentou a ausecircncia de Odisseu e a dor que
aquilo lhe causava entatildeo narrou as artimanhas que viera usando para se esquivar
de um segundo casamento aconselhada por algum deus pusera-se a tecer uma
mortalha para o sogro Laertes ela prometeu que escolheria um novo marido assim
que terminasse o trabalho Poreacutem toda noite ela desfazia uma parte do trabalho de
modo que a conclusatildeo da obra continuava sendo adiada sem que nenhum
pretendente soubesse Ela enganara os aqueus durante trecircs anos mas no iniacutecio do
quarto ano traiacuteda por suas aias fofoqueiras os pretendentes ficaram sabendo da
artimanha e foram confrontaacute-la sem saiacuteda ela terminara a mortalha e agora
precisava escolher um noivo visto que sua famiacutelia a pressionava e seu filho estava
infeliz com a situaccedilatildeo Aqui Peneacutelope voltou a indagar a respeito da descendecircncia
do forasteiro e este a repreendeu jaacute que ela insistia ele responderia embora aquilo
lhe causasse sofrimento Disse que era Etatildeo de Creta laacute ele conhecera Odisseu
que fora levado para laacute pelos ventos e ateacute presenteara o hoacutespede Peneacutelope ouvia a
183
tudo aquilo chorando Odisseu se pudesse tambeacutem choraria mas se conteve para
natildeo revelar sua verdadeira identidade
O rei disfarccedilado assegurou agrave esposa que tivera notiacutecias de Odisseu
recentemente ele estava vivo e estava a caminho de casa transportando inuacutemeras
riquezas Peneacutelope natildeo acreditou no forasteiro mas nem por isso deixou de acolhecirc-
lo em seu palaacutecio mandou que as aias lhe preparassem uma cama confortaacutevel e
que no dia seguinte o banhassem a fim de que Telecircmaco cuidasse da refeiccedilatildeo dele
depois disso Odisseu recusou o leito luxuoso mas pediu que seus peacutes fossem
banhados por uma criada idosa e leal Imediatamente Peneacutelope indicou a velha
Euricleia para a tarefa mulher que havia cuidado de Odisseu desde seu nascimento
Euricleia se emocionou ao conversar com o forasteiro porque disse que ele a
lembrava muito de Odisseu
No instante em que comeccedilou a lavar os peacutes de seu amo Euricleia notou a
cicatriz deixada nele por um javali e emocionada reconheceu-o Ela quis avisar
Peneacutelope mas Odisseu pediu que ela mantivesse segredo
Quando Euricleia se afastou Peneacutelope contou ao forasteiro um sonho que
tivera nele Odisseu na forma de uma aacuteguia dissera para ela que estava a caminho
de casa e que mataria todos os pretendentes quando chegasse Peneacutelope
entretanto natildeo acreditava que o sonho tivesse sido um pressaacutegio e explicou-lhe a
forma como escolheria um novo marido ela proporia uma competiccedilatildeo entre eles
Antes de partir para Troia Odisseu costumava dispor doze achas em fileira e
retesando um arco disparava flechas atraveacutes de todas elas Peneacutelope se casaria
com quem conseguisse cumprir a tarefa com mais facilidade O rei disfarccedilado
incentivou a rainha a realizar aquela competiccedilatildeo o mais raacutepido possiacutevel garantindo
que Odisseu chegaria antes que qualquer outro homem conseguisse retesar seu
arco
Canto XX
Odisseu natildeo conseguia dormir porque natildeo parava de pensar na vinganccedila e em
como sozinho daria conta de tantos homens Neste momento Atenaacute assumindo a
aparecircncia de uma mulher se aproximou dele e indagou o motivo de toda aquela
preocupaccedilatildeo uma vez que ele jaacute se encontrava em casa e que teria ajuda dela
para enfrentar todos aqueles homens Antes de partir a deusa fez com que um doce
sonho se apossasse de Odisseu
184
Enquanto isso em seu quarto Peneacutelope orava a Aacutertemis pedindo que a deusa
proporcionasse sua morte naquele momento para poupaacute-la de ter que se unir a um
homem inferior a Odisseu Na manhatilde seguinte foi a vez de Odisseu orar a Zeus
pedindo que ele lhe enviasse algum sinal de bom agouro Para a alegria de Odisseu
Zeus mandou trovotildees
Euricleia tomou aquilo como bom agouro e logo mandou as servas fazerem
uma rigorosa limpeza no palaacutecio Nisso Eumeu o porqueiro se aproximou e
perguntou ao forasteiro se os pretendentes continuavam a destrataacute-lo Odisseu
respondeu que continuava sendo maltratado e pediu que os deuses castigassem
aqueles homens abusados
Neste momento Melacircntio o cabreiro se aproximou tambeacutem conduzindo as
cabras para o jantar dos pretendentes tornou a provocar o falso mendigo dizendo
que ele deveria partir para deixar de incomodar Mais uma vez Odisseu se absteve
de retrucar enquanto em sua cabeccedila planejava sua vinganccedila contra o cabreiro
Logo em seguida aproximou-se deles Fileacutecio o vaqueiro que ao contraacuterio do
cabreiro se mostrou muito fiel a Odisseu Para ele tambeacutem o falso mendigo
afirmou que Odisseu logo retornaria
Enquanto isso os pretendentes planejavam o assassinato de Telecircmaco entatildeo
uma aacuteguia carregando uma pomba morta entre as garras desceu voando na
direccedilatildeo deles vinda do lado esquerdo e Anfiacutenomo um dos pretendentes logo
interpretou aquilo como um mal sinal Os demais homens concordaram
Canto XXI
Por influecircncia de Atenaacute Peneacutelope resolveu propor a competiccedilatildeo do arco aos
pretendentes naquele momento Assim a rainha se dirigiu ateacute a cacircmara onde
estavam guardados os tesouros de Ulisses pegou o estojo que continha o arco e se
dirigiu aos pretendentes Ela apresentou-lhes o arco de Odisseu e disse que se
casaria com aquele que conseguisse retesaacute-lo com maior facilidade e atravessar
com apenas uma flecha todas as achas em seguida mandou que Eumeu o
porqueiro distribuiacutesse as flechas entre os pretendentes tarefa que o homem
cumpriu com laacutegrimas nos olhos Igualmente Fileacutecio chorou ao ver as flechas serem
distribuiacutedas entre aqueles homens desrespeitosos Telecircmaco ao contraacuterio diante da
declaraccedilatildeo da matildee se manifestou disse que concordava com a competiccedilatildeo e
incentivou os pretendentes a darem iniacutecio a elas
185
O primeiro a se candidatar foi Liodes mas apoacutes vaacuterias tentativas natildeo
conseguiu retesar o arco e desistiu Os demais pretendentes tambeacutem tentaram sem
sucesso Finalmente sobraram apenas Euriacutemaco e Antiacutenoo
Enquanto isso o vaqueiro e o porcariccedilo haviam saiacutedo da casa e Odisseu os
seguira Perguntou se eles estariam dispostos a defender seu senhor caso ele
voltasse de repente e ambos concordaram entatildeo Odisseu lhes revelou sua
identidade e prometeu-lhes esposas e bens caso eles o ajudassem Para provar que
dizia a verdade a respeito de quem era mostrou-lhes sua cicatriz Ambos se
emocionaram ao reconhecer o amo
Em seguida Odisseu expocircs-lhes seu plano afirmou que nenhum dos
pretendentes conseguiria cumprir a tarefa e que entatildeo Eumeu deveria entregar-lhe
o arco Em seguida deveria ordenar que as mulheres se trancassem no salatildeo
cumprindo suas tarefas natildeo deveriam ir ao paacutetio sob nenhuma circunstacircncia para
garantir isso Fileacutecio deveria trancar todas as portas do paacutetio com correntes
Nisso Euriacutemaco tentou retesar o arco de Odisseu tambeacutem sem sucesso e
lamentou que todos os pretendentes fossem inferiores ao rei de Iacutetaca Antiacutenoo por
sua vez nem tentou cumprir a tarefa antes sugeriu que na manhatilde seguinte
oferendassem as melhores cabras a Apolo o deus arqueiro e depois retomassem a
disputa Todos os pretendentes se afeiccediloaram agravequela ideia Neste momento
Odisseu pediu que os pretendentes permitissem que ele mesmo tentasse retesar o
arco Os homens reagindo agrave apreensatildeo de uma possiacutevel vitoacuteria do mendigo
reagiram com grosserias Entatildeo foi a vez de Peneacutelope falar e ela ordenou que o
arco fosse entregue ao forasteiro e afirmou que caso ele cumprisse a tarefa
forneceria a ele roupas novas e transporte para onde quer que ele desejasse ir
Diante disso Telecircmaco respondeu que era ele quem tinha a autoridade para
entregar o arco para qualquer homem de modo que ela devia voltar aos seus
aposentos e ocupar-se de seu tear enquanto ele lidava com a situaccedilatildeo Surpresa
com a atitude do filho Peneacutelope acatou a ordem do filho e se retirou
Entatildeo Eumeu entregou o arco a seu amo que retesando-o apontava-o para
todos os lados para se certificar de que o tempo natildeo havia causado nenhum dano a
sua arma Vendo aquilo os pretendentes comeccedilaram a fazer comentaacuterios receosos
e invejosos Neste momento Zeus mandou um trovatildeo como sinal Odisseu se
186
alegrou enquanto os pretendentes se amedrontaram O rei disfarccedilado de mendigo
disparou sua flecha com perfeiccedilatildeo atraveacutes das doze achas
Depois de seu feito Odisseu se dirigiu a Telecircmaco e para despistar os
pretendentes pediu que ele mandasse preparar a ceia dos aqueus bem como sua
distraccedilatildeo a muacutesica Entatildeo fazendo um sinal indicou ao filho que ele deveria pegar
suas armas
Canto XXII
Odisseu se desfez de suas roupas de mendigo e pedindo a gloacuteria de Apolo
apontou seu arco na direccedilatildeo de Antiacutenoo e acertou-lhe a garganta com sua flecha
Os pretendentes desesperados com a cena comeccedilaram a procurar armas e
escudos pelo salatildeo mas natildeo encontraram nada entatildeo ameaccedilaram Odisseu de
morte por ele ter assassinado um nobre jovem ndash eles ainda natildeo sabiam com quem
estavam lidando Raivoso Odisseu finalmente se revelou e disse que estava ali
para se vingar de todos aqueles homens que durante sua ausecircncia sem saberem
se ele ainda vivia ou natildeo ousaram cortejar sua esposa e dilapidar seus bens
Aterrorizados os pretendentes comeccedilaram a olhar em volta procurando uma
forma de escapar apenas Euriacutemaco respondeu dizendo que o culpado por toda
aquela situaccedilatildeo era Antiacutenoo e Odisseu jaacute havia dado cabo dele de modo que agora
o rei deveria poupar os demais pretendentes a fim de que eles fossem buscar
formas de recompensaacute-lo pelo dano material que haviam causado Odisseu
respondeu que natildeo estava interessado em reaver nenhuma riqueza apenas queria
vingar-se assassinando todos Euriacutemaco ainda tentou convencer os pretendentes a
lutarem contra Odisseu uma vez que eles estavam em nuacutemero muito maior mas
nem bem completou sua frase foi atingido no fiacutegado por uma flecha disparada por
Odisseu
Anfiacutenomo avanccedilou contra Odisseu empunhando sua espada mas foi atingido
nas costas por Telecircmaco Em seguida o rapaz correu para perto do pai para avisaacute-lo
de que estava indo buscar armaduras elmos e flechas para ele para si mesmo
para o porcariccedilo e para o vaqueiro enquanto isso Odisseu foi atirando nos
pretendentes com as flechas que jaacute tinha Telecircmaco natildeo demorou e logo os quatro
homens estavam devidamente protegidos para a luta
Odisseu disparava setas na direccedilatildeo dos pretendentes sem errar nenhum
Quando suas flechas acabaram ele partiu para enfrentaacute-los empunhando seu
187
escudo e sua lanccedila protegido tambeacutem por seu elmo Neste momento Ageleu um
dos pretendentes tentou incentivar os outros a fugirem para a cidade e buscar
ajuda Melacircntio o cabreiro no entanto lembrou que todas as postas do paacutetio
estavam trancadas de modo que natildeo era possiacutevel que ningueacutem saiacutesse O melhor a
fazer era buscar as armas e que Odisseu e Telecircmaco guardavam no depoacutesito e
assim Melacircntio saiu para buscaacute-las
Quando Melacircntio voltou e os pretendentes comeccedilaram a se proteger e a se
armar Odisseu ficou bastante receoso e comentou com Telecircmaco que alguma
serva devia ter deixado as armas disponiacuteveis para os pretendentes o rapaz poreacutem
admitiu a culpa explicando que natildeo havia fechado direito a porta do depoacutesito
Enquanto falavam Eumeu percebeu que Melacircntio estava voltando ao depoacutesito para
buscar mais armas Entatildeo Odisseu mandou seus servos fieis impedirem que
Melacircntio alcanccedilasse as armas atando-o a uma coluna
A partir daiacute seguiu-se uma luta entre Odisseu Telecircmaco Eumeu e Fileacutecio
contra os pretendentes Apesar de a luta ter sido incentivada por Atenaacute a deusa natildeo
proporcionou vitoacuteria imediata ao seu heroacutei protegido e a seus companheiros
querendo antes testar a forccedila e a bravura de Odisseu Finalmente apoacutes tantas
ofensivas bem-sucedidas da parte de Odisseu e sua equipe Atenaacute ajudou-os a pocircr
fim na refrega
Findada a luta apoacutes a morte de todos os pretendentes Odisseu mandou que
Telecircmaco fosse chamar Euricleia a fim de designar-lhe uma tarefa A velha ama quis
comemorar o feito de Odisseu mas este a interrompeu e em lugar disso pediu que
ela lhe apontasse quais dentre as servas haviam se deitado com os pretendentes
Euricleia respondeu que dentre as cinquenta mulheres que trabalhavam no palaacutecio
doze haviam se envolvido com os pretendentes Odisseu pediu que Euricleia as
trouxesse a sua presenccedila e a velha ama obedeceu de pronto Entatildeo Odisseu
ordenou que elas retirassem os corpos dos pretendentes e limpassem o paacutetio
Realizada a tarefa Telecircmaco as enforcou a fim de que tivessem uma morte mais
dolorida Melacircntio tambeacutem foi torturado decepado e morto
Odisseu e seus companheiros foram se lavar e depois ele pediu a Euricleia
que lhe trouxesse ingredientes para defumar o salatildeo ao mesmo tempo ela deveria
avisar a Peneacutelope e agraves outras servas de que elas deveriam ir ao paacutetio encontrar seu
rei
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Canto XXIII
Peneacutelope natildeo acreditou quando Euricleia lhe disse que Odisseu estava em
casa e que tinha matado todos os pretendentes A anciatilde entatildeo explicou que
Odisseu era o forasteiro a quem todos estavam destratando e afirmou que
Telecircmaco jaacute conhecia a verdadeira identidade do mendigo Peneacutelope quis saber
como o marido sozinho combatera e vencera todos os pretendentes mas Euricleia
natildeo soube explicar disse apenas que se deparara com o patratildeo cercado pelos
corpos dos homens abusados Peneacutelope continuou increacutedula afirmando que aquele
soacute poderia ser o feito de algum deus porque Odisseu estava morto Euricleia
finalmente contou que reconhecera o mestre pela cicatriz em sua perna mas fora
proibida por ele de contar a Peneacutelope a respeito de seu regresso
Ainda indecisa a respeito de como se comportaria diante do esposo Peneacutelope
foi ao encontro dele Mesmo diante de Odisseu Peneacutelope permaneceu calada por
algum tempo apenas encarando-o ateacute que foi repreendida por Telecircmaco Peneacutelope
poreacutem justificou sua atitude dizendo que queria pocircr o forasteiro agrave prova para ter
certeza de que ele era quem dizia ser Odisseu natildeo se ofendeu com a fala de
Peneacutelope pelo contraacuterio incentivou-a a ir em frente e questionaacute-lo Poreacutem antes
que a rainha comeccedilasse a fazer suas perguntas Odisseu mandou que fosse
preparada uma festa a fim de que ningueacutem mais na cidade ficasse sabendo a
respeito da morte dos pretendentes e em vez disso acreditassem que Peneacutelope
finalmente havia se casado novamente
Ao ouvir a festanccedila o povo que estava do lado de fora da mansatildeo se pocircs a
maldizer Peneacutelope que teoricamente natildeo fora capaz de defender a casa de seu
legiacutetimo esposo Enquanto isso a despenseira Euriacutenome banhava untava e vestia
seu rei Atenaacute tambeacutem despejou sobre ele uma graccedila que fez com que parecesse
mais alto e mais belo Depois de pronto Odisseu foi ter com a fiel esposa que
entatildeo o colocou agrave prova ela ordenou que Euricleia tirasse a cama do quarto para
que ele dormisse sobre ela Poreacutem aquela cama fora construiacuteda por Odisseu e natildeo
podia ser movida de seu lugar original uma vez que fora esculpida a partir de uma
oliveira que crescera no paacutetio ndash e Odisseu apontou isso quando Peneacutelope sugeriu
que a cama fosse movida Diante daquilo finalmente convencida Peneacutelope abraccedilou
o marido desfeita em prantos Odisseu tambeacutem se pocircs a chorar
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Passado algum tempo Odisseu sugeriu que ele e a esposa fossem descansar
no leito conjugal porque suas provaccedilotildees ainda natildeo haviam chegado ao fim de
acordo com o que Tireacutesias dissera a Ulisses quando de sua visita ao Hades o rei de
Iacutetaca ainda teria que visitar muitas cidades levando consigo um remo ateacute chegar a
um povo que natildeo conhecia o mar Odisseu deveria imolar viacutetimas a Posiacutedon e aos
demais deuses inclusive apoacutes retornar agrave Iacutetaca Assim assegurara Tireacutesias Odisseu
morreria de velhice confortavelmente em terra firme cercado de suas riquezas e de
sua famiacutelia
O rei e a rainha de Iacutetaca celebraram sua reuniatildeo no leito conjugal e depois
continuaram a conversar Peneacutelope contou a respeito do quanto sofrera com a falta
de respeito dos pretendentes e Odisseu narrou as desgraccedilas pelas quais havia
passado Na manhatilde seguinte Odisseu orientou Peneacutelope a tomar conta de suas
riquezas enquanto ele ia visitar o pai Laertes
Canto XXIV
Enquanto isso Hermes ia guiando as almas dos pretendentes que seguiam se
lamentando ateacute o local habitado pelos espectros dos mortos Ali os pretendentes se
depararam com as almas de Aquiles de Paacutetroclo de Aacutejax e de Agamecircmnon
Agamecircmnon logo reconheceu Anfimedonte filho de Menelau e foi perguntar-lhe o
que havia acontecido para que todos aqueles homens fossem parar ali ao mesmo
tempo Anfimedonte explicou que todos eles pretendiam a matildeo de Peneacutelope e
contou a respeito da artimanha da rainha de Iacutetaca a mortalha para Laertes que ela
tecia durante o dia e desmanchava durante a noite Mal os pretendentes
descobriram a respeito da trama Odisseu chegou agrave Iacutetaca e com a ajuda do filho e
do porcariccedilo matara os pretendentes ele mesmo sugeriu agrave esposa a prova que
levaria agrave desgraccedila dos pretendentes
Nisso Odisseu chegava agrave fazenda do pai e instruiacutea Telecircmaco e os servos a
prepararem o jantar enquanto ele colocava Laertes agrave prova Odisseu encontrou o pai
na vinha vestido com roupas rasgadas triste Odisseu chorou ao ver o pai naquele
estado mas logo se recompocircs e se aproximou perguntando-lhe quem era de quem
era escravo em seguida comentou que haacute alguns anos havia hospedado Odisseu
e quis saber se encontrava-se em Iacutetaca Laertes imediatamente quis notiacutecias do filho
e perguntou quem era o visitante Odisseu respondeu que era priacutencipe de Alibante e
disse que fazia cinco anos que havia hospedado Odisseu Laertes voltou a envolver-
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se em tristeza ao ouvir aquilo e entatildeo Odisseu natildeo pocircde mais manter a farsa
abraccedilou o pai e revelou-lhe sua identidade Antes de acreditar no que ouvia Laertes
exigiu que o visitante comprovasse sua identidade e Odisseu mostrou-lhe a cicatriz
na perna causada pelo javali aleacutem de nomear todas as aacutervores que ganhara do pai
quando crianccedila Passada a emoccedilatildeo do reencontro Laertes e Odisseu foram ateacute a
casa encontrar Telecircmaco o vaqueiro e o porcariccedilo Laertes foi banhado e vestido
por uma serva e depois embelezado pela graccedila de Atenaacute Odisseu e Laertes se
juntaram aos servos para o jantar e assim que os servos reconheceram Odisseu
reverenciaram-no
Enquanto isso corria a notiacutecia da morte dos pretendentes e os familiares se
juntavam do lado de fora da mansatildeo do rei de Iacutetaca recolhendo seus mortos
Incentivados por Eupites ndash pai de Antiacutenoo ndash mais da metade dos homens comeccedilou
a planejar vinganccedila e a se preparar para a luta
Apoacutes Odisseu e seus homens terem terminado sua refeiccedilatildeo Odisseu mandou
algueacutem vigiar laacute fora e assim descobriram que os familiares dos pretendentes
estavam se aproximando para atacar Odisseu ordenou que se armassem e nisso
Atenaacute disfarccedilada de Mentor se aproximou deles Os homens ficaram felizes ao ver
a deusa e cheios de coragem partiram para a batalha Laertes Odisseu e Telecircmaco
logo feriram os homens que se encontravam mais proacuteximos e antes que estes
fossem mortos Atenaacute pediu que interrompessem a batalha Os familiares dos
pretendentes comeccedilaram a fugir assustados mas Odisseu foi atraacutes deles furioso A
fim de impedi-lo Zeus lanccedilou um raio perto dele Atenaacute pediu novamente que
Odisseu cessasse o combate ele obedeceu e a deusa estabeleceu a paz entre
eles