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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ANDRÉ LUIS CAIS BEM-ESTAR ANIMAL: QUESTÕES ÉTICAS E LEGAIS MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ANDRÉ LUIS CAIS

BEM-ESTAR ANIMAL: QUESTÕES ÉTICAS E LEGAIS

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2011

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ANDRÉ LUIS CAIS

BEM-ESTAR ANIMAL: QUESTÕES ÉTICAS E LEGAIS

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Mestre

em Direito das Relações Sociais –

Direitos Difusos e Coletivos – sob a

orientação do Professor Doutor Marcelo

Gomes Sodré.

SÃO PAULO

2011

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BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

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“A grandeza de uma nação e seu progresso moral pode ser julgado pelo

modo como seus animais são tratados”. (Mahatma Gandhi).

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Para os meus queridos e amados pais, Arif Cais e Neuza Maria Pelozo Cais,

Pelo eterno amor, respeito e profunda admiração. Para o meu irmão, Marco Aurélio Cais.

Para minha irmã, Luciana Cais. Para minha linda e dócil sobrinha, Ana Beatriz.

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Para os meus tios, Homar Cais e Cleide Previtalli Cais.

Por terem me recebido e acolhido como um filho, Ao longo de muitos e muitos anos ao chegar do interior.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Professor Doutor Marcelo Gomes Sodré, pelos ensinamentos

passados ao longo do desenvolvimento do presente trabalho, principalmente pela

tranquilidade necessária em momentos de extrema preocupação e tensão.

Aos meus pais, Arif Cais e Neuza Maria Pelozo Cais, meus guias e mentores na

minha formação humana. Exemplo de vida. Além de pais, amigos maravilhosos. Sou

eternamente grato e feliz por ter vocês ao meu lado. Uma menção honrosa ao meu

pai pelo árduo trabalho de revisão e críticas ao presente trabalho.

Aos meus irmãos Marco Aurélio Cais e Luciana Cais e a minha sobrinha Ana Beatriz

Cais, pelo carinho e apoio de sempre.

Ao meu cunhado André Caracanha, pelo carisma e afeição com que sempre tratou a

nossa querida família.

Aos meus tios, Homar Cais e Cleide Previtalli Cais, por tudo o que sempre fizeram

por mim. Devo toda a minha formação e apoio profissional a vocês. Sou um felizardo

por ter tido a oportunidade e a felicidade da experiência de um convívio ao lado de

vocês.

Ao meu primo e também irmão, Fernando Fontoura da Silva Cais. Obrigado pelo

excelente trabalho de revisão e pelas valorosas críticas também feitas ao presente

trabalho, bem como aos conselhos a mim sempre dados.

A amiga Paula Rodrigues Ramos, que durante sua estadia na Universidade de

Coimbra forneceu vasto material de pesquisa que contribuiu com a elaboração

desse trabalho.

Ao meu amigo e irmão Thiago Zaldini Hernandes pela ajuda nas pesquisas

realizadas e pelo apoio e incentivo de sempre.

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A todos os amigos do Milaré Advogados, em especial ao Dr. Édis Milaré, pela

oportunidade a mim dada ao integrar essa valorosa equipe. Faço uma menção em

especial a Ana Cláudia La Plata de Mello Franco, com quem tive a grandiosa

experiência de trabalhar. Um ser humano fantástico. Ao Luiz Carlos de Castro

Vasconcellos, pelas inúmeras discussões e troca de informações acerca da questão

animal. Aos consultores técnicos, Antomar Viegas de Oliveira Jr. e João Roberto

Rodrigues, não somente pelo convívio e aprendizado diário, mas também pela

conquista e o ganho de uma amizade verdadeira.

A família Dinamarco pela qual sou e serei eternamente grato por ter tido não só a

oportunidade de trabalhar ao longo de muitos e muitos anos, mas também por ter

conquistado amigos e pessoas maravilhosas. Um agradecimento em especial aos

sócios fundadores, Cândido Rangel Dinamarco, Luiz Rodovil Rossi, Cândido da

Silva Dinamarco e Pedro da Silva Dinamarco. Ao lado de vocês aprendi muita coisa,

principalmente acerca da ética profissional. Obrigado por tudo e por ainda frequentar

essa honrosa e maravilhosa família. Aos novos sócios, Tarcísio Beraldo e José

Roberto dos Santos Bedaque e aos amigos Cláudio Dinamarco, Maurício Giannico,

Clarisse Frechiani Lara Leite, Luciana Barone Bento, Bruno Vasconcelos Carrilho

Lopes, Pedro Bianqui, Helena Mechelin Wajsfeld Cicaroni, Daniel Raichelis

Degenszajn, Samuel Mezzalira, Márcio Araújo Opromolla, Luis Fernando Guerrero e

Marcos dos Santos Lino.

A todos os meus familiares, em especial ao querido Alexandre Cais (tio Xandico) e

as tias Syria Cais dos Santos, Warde Cais Silva Gomes (tia Rosinha), Zuleika Cais,

Alice Cais Dias Nascimento e Neyda Pelozo Antunes por todo amparo e apoio

espiritual. À minha irmãzinha Maria Eugênia Previtalli Cais, por todo apoio.

Aos demais amigos e familiares, pela paciência e pelos eventos que deixei de

frequentar para a conclusão desse trabalho. A menção especial de cada um

dificultaria tornaria exaustiva qualquer forma de agradecimento. Saibam que sou

grato a Deus por ter muitos amigos ao meu lado. A vocês, minha eterna gratidão.

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A oportunidade do convívio ao lado de muitos animais domésticos. São seres

fantásticos, desprendidos das grandes chagas que assolam a humanidade, como o

ódio e o egoísmo, estando sempre dispostos a dar e a retribuir o carinho que lhes

são ofertados. À Princess, Meggie, Judy, Lolly, Rita, Greta, Ruth, Lailla, Nicolau e

Simão, meus sentimentos de carinho por ter tido vocês ao meu lado.

A todos os demais animais que contribuíram e ainda contribuem com o avanço da

ciência. Esperamos que esse trabalho possa ajudar nas condutas éticas que pairam

sobre essa atividade e, que, num futuro não muito distante, o avanço científico

permita que não mais utilizem desses amados seres como cobaias. Ao atingirmos

esse objetivo, passaremos a admirá-los e respeitá-los como nossos verdadeiros

“irmãos”.

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RESUMO

A presente proposta tem por objetivo refletir sobre a recente discussão

apresentada pela comunidade acadêmica e científica acerca do uso de animais na

experimentação científica, bem como propor o aperfeiçoamento da legislação

brasileira sobre o bem-estar animal. Faz-se necessário um breve contexto histórico

sobre a origem e a evolução do conceito de antropocentrismo para a corrente do

biocentrismo, intimamente relacionada com a discussão sobre a natureza e os

direitos dos animais. A discussão abordada faz uma reflexão sobre a justificativa

para a utilização de animais em experimentos científicos e a necessidade de um

Conselho de Ética efetivo e eficaz, capaz de gerenciar experimentações em animais

ou impedir a sua repetição e multiplicação, sem razões substanciais ou

embasamento científico que beneficie o homem em detrimento da conservação da

natureza. Nesse quadro, a natureza, em especial os animais, merecem uma reflexão

adequada e um questionamento filosófico: os animais são sujeitos de direitos ou

merecem ser respeitados apenas por uma visão humanista em prol do uso e do

benefício humano?

Palavras-chave: Antropocentrismo. Biocentrismo. Bem-Estar Animal.

Utilização de Animais na Experimentação Científica. Questões Éticas.

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ABSTRACT

This proposal aims to reflect on the recent discussion presented by academic

and scientific community about the use of animals in scientific experimentation and

propose improvement of Brazilian legislation on animal welfare. It is necessary a brief

historical background on the origin and evolution of the concept of anthropocentrism

to current biocentrism, closely related to the discussion of Nature and animal rights.

The discussion dealt with some thoughts about the justification for the use of animals

in scientific experiments and the need for an effective and efficient Board of Ethics,

able to manage animal experiments or avoid their repetition and multiplication without

substantial reason or scientific basis that may benefit man rather than the

conservation of nature. In this context, Nature, especially animals, deserve a proper

reflection and a philosophical inquiry: are animals subjects of rights or do they

deserve to be respected only under a humanist view in favor to the human use and

benefit?

Keywords: Anthropocentrism. Biocentrism. Animal Welfare. Use of animals in

scientific experimentation. Ethical Issues.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 1

1. AS QUESTÕES ÉTICAS E A VISÃO DO ANIMAL NA HISTÓRIA............. 5

1.1 O Campo da Moral e da Ética.................................................................. 5

1.2 Antropocentrismo................................................................................... 13

1.2.1 A visão Pré-Socrática.......................................................................... 15

1.2.2 A visão de Sócrates............................................................................. 19

1.2.3 A visão de Platão................................................................................. 20

1.2.4 A visão de Aristóteles......................................................................... 21

1.2.5 O Antigo Testamento e o Novo Testamento..................................... 23

1.2.6 Antropocentrismo moderno............................................................... 25

1.3 Ecocentrismo ou Biocentrismo............................................................. 29

2. A PROTEÇÃO DOS ANIMAIS NO DIREITO ESTRANGEIRO.................. 41

2.1 Declaração Universal dos Direitos dos Animais................................. 41

2.2 União Europeia....................................................................................... 44

2.3 Inglaterra................................................................................................. 47

2.4 Estados Unidos da América.................................................................. 54

2.5 Alemanha................................................................................................. 56

2.6 França...................................................................................................... 57

2.7 Canadá..................................................................................................... 58

2.8 Holanda.................................................................................................... 60

2.9 Austrália.................................................................................................. 61

2.10 Portugal................................................................................................. 63

2.11 Espanha................................................................................................. 64

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3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE PROTEÇÃO ANIMAL................... 68

3.1 A Evolução da Proteção Animal na Legislação Brasileira................. 68

3.2 A Proteção Animal na Constituição Federal........................................ 71

3.3 A Visão do Animal no Contexto do Código Civil................................. 75

3.4 A Proteção Animal nas Esferas Penal e Administrativa..................... 80

4. CRUELDADE E MAUS-TRATOS COM OS ANIMAIS............................... 85

4.1 Bem-Estar Animal e Direito Animal...................................................... 85

4.2 Igualdade Semântica no Conceito de Crueldade ou Maus-tratos...... 88

4.3 Casos Específicos de Crueldade com os Animais.............................. 92

4.3.1 Abate animal...................................................................................... 100

4.3.2 Galinhas poedeiras e Frangos de corte.......................................... 105

4.3.3 Zoológico............................................................................................ 108

4.3.4 Circo.................................................................................................... 110

4.3.5 Rodeio................................................................................................. 112

4.3.6 Vaquejada........................................................................................... 116

4.3.7 Rinhas de galo................................................................................... 117

4.3.8 Touradas............................................................................................. 118

4.3.9 Animais de estimação....................................................................... 120

5. EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL................................................................. 122

5.1 Ética na Experimentação Animal e a Lei nº 11.794/2008................... 122

5.2 Animais na Pesquisa e no Ensino...................................................... 129

5.3 A Dignidade da Vida e o Direito dos Animais.................................... 134

5.4 Maus-tratos em Experimentos Científicos......................................... 142

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CONCLUSÃO............................................................................................... 147

BIBLIOGRAFIA............................................................................................ 152

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1

INTRODUÇÃO

O convívio com animais e sua utilização pelo homem decorrem de tempos

imemoriais. Seja para utilizá-los como animais de companhia (por exemplo, o cão,

domesticado há cerca de doze mil anos), seja para o trabalho (o cavalo,

domesticado há aproximadamente oito mil anos) ou ainda, para a alimentação (o

boi, domesticado em torno de sete mil anos), são costumes que se perdem nos

registros da História.

Entre os inúmeros equívocos humanos, possivelmente o maior, foi o que o

levou à crença de que a natureza é inesgotável e que a ética humana não se aplica

aos animais. Tal crença provoca cada vez mais o desequilíbrio natural, resultando

na ameaça de extinção de animais silvestres em consequência da diminuição dos

fragmentos florestais, abrigo natural da vida animal, ou ferindo princípios éticos que

não podem ser relegados. É um equivocado modo de agir que atinge especialmente

animais de laboratório e animais domésticos. Se é certo que, ao longo da história

geológica da vida, muitas espécies foram levadas à extinção por causas naturais,

como os grandes Dinossauros, é também certo que foram extintas pela ação

deletéria do homem no ambiente, como o Dodô (Raphus solitarius) das Ilhas

Maurício ou o Pombo-viageiro (Ectopistes migratorius) nos Estados Unidos e, ainda,

a Ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), do nordeste brasileiro considerada extinta na

natureza (baixa densidade populacional), conjugada pela ação da caça. Refletir

sobre essas questões para tentar reverter tal crença pretende ser o objeto deste

estudo.

Foi Richard Martin quem revelou ao mundo os princípios legais contra a

crueldade para com os animais.1 Posteriormente sobreveio uma lei, intitulada British

Cruelty to Animal Act, datada de 1876, que regulamentava o uso de animais em

experimentação científica. O documento preconizava reconsiderar as necessidades

da ciência, colocando-a ao lado das necessidades humanas que se servem dos

1 Richard Martin foi membro da Câmara dos Comuns (House of Commons), tendo elaborado em 1822 uma lei,

conhecida como Lei de Martin, tipificando como crime os maus-tratos e sofrimento desnecessário praticados em

alguns animais domésticos (gado, cavalos e ovelhas). Disponível em:

http://www.britannica.com/EBchecked/topic/366965/Martins-Act. Acessado em 28 de outubro de 2010. E

também: RADFORD, Mike. Animal welfare law in Britain. Regulation and responsability. Oxford: Oxford

University Press, 2001, p. 33-39.

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animais, impedindo, na medida do possível, a dor e trazendo ainda a questão acerca

da relevância da experimentação com animais.

Mais recentemente, ou seja, em 1986, a Inglaterra aprovou a lei conhecida

como Animal (Scientific Procedures) Act, que prevê a fiscalização de biotérios e

impõe o acompanhamento rigoroso das pesquisas com animais. Diversos países da

Europa foram precursores dessa orientação, elaborando leis de proteção aos

animais em experimentação, tais como a Polônia (1928), a Suécia (1944), a França

(1968), a Holanda (1977) e a Noruega (1984).

Com a criação da Comunidade Europeia – hoje União Europeia – foi

aprovada em 1986 a convenção sobre a Proteção de Animais Vertebrados Utilizados

para fins de Experimentação e outros fins Científicos, com o objetivo de uniformizar

as exigências para todos os países membros.

A par da experimentação, o uso dos animais para lazer ou para companhia,

bem como o seu abate para alimentação, também carece de questionamentos de

caráter ético em grande parte do mundo, muito embora em alguns casos ainda se

justifique a sua utilização.

A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou a Lei nº 11.977, de

25 de agosto de 2005, que trata do “Código de Defesa dos Animais no Estado de

São Paulo”. Dentre outras questões, esse código proíbe o uso de instrumentos não

naturais em animais de rodeios, como o sedém, ou sedenho (corda de couro ou

fibra, enlaçada entre a bolsa escrotal e o pênis dos animais, que os forçam a realizar

saltos involuntários sob os efeitos da dor). Essa lei, embora traga consigo alguns

princípios éticos tem sido questionada principalmente pelos organizadores de

rodeios, atividade altamente rentável, sobretudo no Estado de São Paulo.

Esse instrumento legal, por sua vez, estabelece ainda critérios para a

utilização de animais em experimentação científica, criando um Comitê de Pesquisa

em Animais de Experimentação. Esse colegiado tem o poder de recomendar, ou

não, as diretrizes às agências de fomento a título de incentivo, reduzindo, o ônus

fiscal para as empresas fabricantes de cosméticos que não se utilizam de animais

em seus testes. O grande mérito dessa lei é que ela vem surtindo efeito, uma vez

que a maioria dos veículos de divulgação científica exige o parecer desse órgão

institucional.

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Posteriormente, a Lei Federal nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, também

conhecida como Lei Arouca, estabeleceu procedimentos para o uso de animais em

experimentos científicos e determinou a criação de um Conselho Nacional de

Controle de Experimentação Animal – CONCEA e as Comissões de Ética no Uso de

Animais – CEUAs.

No Brasil, a utilização de animais como objeto de diversão popular, como em

rodeios, nas vaquejadas e na “farra do boi”,2 assim como as touradas em Portugal,

na Espanha, no Equador3 e no México, causam consideráveis sofrimentos aos

animais, motivo pelo qual desperta o sentimento de que é necessária uma mudança

cultural no sentido de conter tais práticas. Alguns estados espanhóis, como o

arquipélago das Canárias em 1991, e a região da Catalunha, em julho de 2010,4

proibiram a prática cruel das touradas contra os animais.

Esses primórdios do século XXI ainda faz com que o homem desperte e se

sensibilize para a tomada de decisões de reconstrução ou proteção da natureza

para humanização das ações, conforme recomenda a Agenda 21, o importante

documento nascido na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o

Desenvolvimento, a Rio-92, realizado no Rio de Janeiro em 1992.

Neste entendimento, o Direito, como Filosofia e Ciência, deve promover a

justiça e impor a ordem no sentido de proteger o ambiente e de contribuir com a

promoção também do crescimento moral e ético do ser humano. Diante das

perspectivas sombrias da sociedade moderna em constante mudança, respeitar a

natureza é a palavra de ordem que se impõe nesse novo cenário mundial como

propósito de todos.

2 Em junho de 1997, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário nº 153.351-8-SC, proibiu

a “farra do boi”, consoante será detalhado neste estudo em momento oportuno. 3 Em janeiro de 2011, o presidente do Equador, Rafael Correa, propôs um conjunto de emendas constitucionais.

Dentre as questões submetidas ao referendo popular, estava a discussão da proibição das touradas no país. Os fãs

dessa atividade organizaram uma tourada especial em protesto contra essa decisão do governo. Segundo os

defensores das touradas, aproximadamente 60 mil trabalhadores em todo o país correm o risco de ficarem sem

emprego. Disponível em: http://veja.abril.com.br/multimidia/video/governo-do-equador-quer-proibir-touradas.

Acessado em 28 de março de 2011. Após o referendo popular, ficou decidido que em 111 jurisdições as touradas

poderão ocorrer, porém, sem matar o animal, inclusive na capital (Quito). Já em 93municípios, as touradas

tradicionais com a morte do animal na arena continuarão. Disponível em:

http://ativismo.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=4399:equador-capital-perde-tourada-

com-morte-do-boi-apos-referendo&catid=33:noticias-em-tempo-real&Itemid=89. Acessado em 2 de julho de

2011. 4 Essa nova lei entrará em vigor no dia 1º de janeiro de 2012.

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São, pois, objetivos do presente trabalho, o estudo comparativo e a evolução

da legislação sobre o bem-estar animal e a proposta de alterações da legislação que

regula a utilização dos animais na experimentação científica, na alimentação e na

diversão. Pretende-se, desse modo, promover um debate construtivo sobre muitas

questões que hoje são pautas da comunidade acadêmico-científica no que diz

respeito ao bem-estar animal e à sua utilização na experimentação científica.

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1. AS QUESTÕES ÉTICAS E A VISÃO DO ANIMAL NA HISTÓRIA

1.1 O Campo da Moral e da Ética

No cotidiano, os indivíduos de uma sociedade se defrontam com situações

que exigem uma determinada conduta ou um comportamento específico em que

julgam ser mais apropriada ou mais digna de ser cumprida. Estas normas, que são

intimamente reconhecidas, fazem com que os indivíduos devam agir desta ou

daquela maneira. Neste caso, pode-se afirmar que o indivíduo agiu moralmente com

suas convicções, independentemente de um juízo de aprovação ou desaprovação

de caráter moral do mesmo ato.

Portanto, quando se trata de opções ou decisões para resolver problemas, “os

indivíduos recorrem a normas, cumprem determinados atos, formulam juízos e, às

vezes, se servem de determinados argumentos ou razões para justificar a decisão

adotada ou os passos dados”.5

Entende-se por moral, pois, o conjunto de regras destinadas a regular as

relações dos indivíduos numa determinada sociedade. Nesse diapasão, assim como

uma sociedade é sucedida por outra, a moral, de igual modo, também pode ser

substituída por outra.

A dinâmica desse tipo de comportamento, seja de um indivíduo, seja de um

grupo social, acompanha a própria origem do homem em sociedade, uma vez que

as atitudes humanas e as reflexões daí inerentes apenas variam de uma época para

outra.

Como afirma Sánchez Vásquez:

A este comportamento prático-moral, que já se encontra nas formas mais primitivas de

comunidade, sucede posteriormente – muitos milênios depois – a reflexão sobre ele. Os

5 VÁZQUES, Adolfo Sánchez. Ética. João Dell´Anna (trad.). 30ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2008, p. 16-17.

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homens não só agem moralmente (isto é, enfrentam determinados problemas nas suas

relações mútuas, tomam decisões e realizam certos atos para resolvê-los e, ao mesmo

tempo, julgam ou avaliam de uma ou de outra maneira estas decisões e estes atos), mas

também refletem sobre esse comportamento prático e o tomam como objeto da sua

reflexão e de seu pensamento. Dá-se assim a passagem do plano da prática moral para o

da teoria moral; ou, em outras palavras, da moral efetiva, vivida, para a moral reflexa.

Quando se verifica esta passagem, que coincide com o início do pensamento filosófico, já

estamos propriamente na esfera dos problemas teórico-morais ou éticos.6

Segundo o citado autor, o problema enfrentado por um indivíduo em uma

determinada situação deve ser resolvido com a ajuda de uma norma que ele próprio

reconhece e aceita intimamente e que a solução por ele encontrada é moralmente

valiosa. Afirma ainda que seria desnecessário recorrer à ética esperando encontrar

uma norma de ação para cada situação concreta. Nas palavras do autor, “a ética

poderá dizer-lhe, em geral, o que é um comportamento pautado por normas, ou em

que consiste o fim – o bom – visado pelo comportamento moral, do qual faz parte o

procedimento do indivíduo concreto ou o de todos. O problema do que fazer em

cada situação concreta é um problema prático-moral e não teórico-ético”.

Portanto, pode-se afirmar que os problemas éticos se caracterizam pela sua

generalidade e isto os distingue dos problemas morais da vida cotidiana que nos são

apresentados nas situações concretas. Em suma, a ética contribui na

fundamentação e justificação de um determinado comportamento moral.

Conforme, ainda Sánchez Vázques, o teórico ético não tem a função de dizer

aos homens o que deve ser feito em determinado caso concreto, em ditar normas ou

princípios pelos quais o seu comportamento deve pautar-se. Ele não deve

transformar-se apenas em uma espécie de legislador do comportamento moral do

indivíduo ou da comunidade. A função fundamental da ética, “é a mesma de toda a

teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os

conceitos correspondentes”.7

Desse modo, continua o citado autor, “o valor da ética como teoria está

naquilo que explica, e não no fato de prescrever ou recomendar com vistas à ação

6 Op. cit. p. 17.

7 Op. cit. p. 20.

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em situações concretas”. Nas suas palavras, “A ética é a teoria ou ciência do

comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma

específica de comportamento humano”.8

Na esteira desse pensamento, assim afirma Albeiro Mejia Trujillo:

A ética é um dos balizadores da conduta humana que leva o homem a agir conforme o

bem pelo bem dentro dos consensos majoritários de bondade, é o eixo reitor de todas as

atitudes internalizadas pelo homem como boas para si, para o outro e para o próprio

universo. Poderia dizer que é a consciência da necessidade de auto preservação em todos

os níveis. Somente quem possui esta determinação interior pode ser verdadeiramente

ético.9

Pode-se dizer, por conseguinte, que a ética tem como fundamento a

dignidade da pessoa humana, da qual, consubstanciada em suas crenças pessoais

e morais, decorrerão normas universais de comportamento, que expressarão essa

dignidade em todos os tempos e em todos os lugares.

Nesse contexto, todo conjunto de normas e condutas que estabelecem a base

de uma determinada sociedade, ou seja, da moral vigente naquele grupo, pressupõe

a existência de um aglomerado de princípios, valores e normas de comportamento.

Portanto, um princípio identifica o começo de onde algo provém ou é gerado,

ou de onde emana o conhecimento. Assim entendido, o princípio significa as normas

de comportamento social que geram a qualidade subjetiva do ser humano que a elas

correspondem.

Como afirma Fábio Konder Comparato:

A filosofia ética surgiu na Grécia como reflexão sobre o comportamento humano,

considerado em seu duplo aspecto, subjetivo e objetivo. Ao elemento subjetivo

corresponde a noção de êthos (noos), ou seja, a maneira de ser ou os hábitos de uma

8 Op. cit. p. 23.

9 TRUJILLO, Alberio Mejia. Ética numa Perspectiva Transdisciplinar. Brasília: Editora Gilson Matilde Diana,

2008, p. 32.

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pessoa; ao elemento objetivo, a noção de êthos (êoos), isto é, os usos e costumes de uma

coletividade.10

No tocante ao comportamento individual, o padrão ético na filosófica grega

clássica era a aretê, atualmente traduzida por virtude. Já em relação ao modo

coletivo de vida, o padrão da vida ética era a lei (nómos), “entendida não como

qualquer regra imposta pelo poder político, mas como o princípio regulador do

comportamento humano, desde sempre vigente na coletividade”.11

Aristóteles afirmava que a função social do homem de Estado (politikos)

consistia em fazer de seus cidadãos homens de bem (agathoi), cumpridores da lei.

Segundo ensinava, a norma ética, por mais excelência que tivesse, não tinha real

vigor ou vigência se não estivesse viva na consciência do homem, ou seja, se não

correspondesse a uma disposição individual e coletiva de viver eticamente.12

Fábio Konder Comparato novamente nos diz que:

Ora, a disposição pessoal a fazer o bem e a evitar o mal, segundo Aristóteles, não seria

propriamente inata, não se encontraria, tal qual, na natureza humana. Ela seria antes, o

fruto dos usos e costumes, como expressão dos grandes princípios de vida em sociedade.

O filósofo chega a fazer uma aproximação verbal entre exis – disposição pessoal, que os

romanos traduziram por habitus – e êoos. Assim, diz ele, não nascemos propriamente

virtuosos, mas aprendemos a nos comportar de modo correto e honesto na vida ativa. Em

matéria de artes ou ofícios, a aprendizagem é sempre feita pela prática. Tornamo-nos

construtores, construindo casas; citaristas, tocando o instrumento. Da mesma forma, pela

prática das ações justas tornamo-nos homens justos; pela prática das ações moderadas

(sophrona), senhores de nossas paixões; pela prática de ações corajosas adquirimos a

virtude da coragem.13

Dessa forma, os princípios éticos são normas que nos obrigam a agir em

função do valor do bem pela nossa ação, ou do objetivo final que dá sentido à vida

10

COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, moral e religião no mundo moderno. 2ª ed., São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, 496. 11

Op. cit. p. 496-497. 12

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1102 a, 8-11. No mesmo sentido, Política, 1333 a, 11-16. Apud.

COMPARATO. Fábio. Op. cit. 497. 13

Op. cit. p. 497.

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9

humana; e não de um interesse puramente subjetivo, que não compartilhamos com

a comunidade. Esse valor objetivo deve ser considerado conjuntamente: no

indivíduo, no grupo ou classe social, no povo, ou na própria humanidade.14

A ética relacionada com a experimentação animal e com a possibilidade ou

não da utilização de seres humanos como cobaias, está diretamente ligada com as

questões oriundas de um mundo pós-Segunda Guerra Mundial.

Com o fim dessa conflagração, os médicos nazistas foram julgados pelos

crimes praticados com os experimentos realizados em seres humanos nos campos

de concentração nazistas. No dia 19 de agosto de 1947, os acusados foram julgados

e condenados, tendo sido elaborado um documento, conhecido como Código de

Nuremberg, por meio do qual, foram reunidos princípios éticos acerca da utilização

de pesquisas com seres humanos.

A Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou, no dia 10 de dezembro

de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse documento incorporou

as cláusulas do Código de Nuremberg, proibiu a realização de experimentos em

seres humanos sem esclarecimento por parte dos médicos e cientistas e sem o

consentimento prévio dos pacientes que sofreriam os experimentos. Violar esse

preceito é violar gravemente o direito humano de escolher por vias próprias o seu

próprio bem ou o que julgar ser o próprio bem.

Posteriormente, veio a Declaração de Helsinque, que é um conjunto de

princípios éticos que regem a pesquisa com seres humanos e foi redigido pela

Associação Médica Mundial. Esse documento sofreu diversas alterações, sendo a

última no ano de 2008; é considerado como o primeiro padrão internacional de

pesquisa biomédica e constitui a base para a maioria dos documentos nesse

aspecto.

A Declaração de Helsinque mencionava o uso de animais em pesquisas

científicas como pré-requisito para a realização de pesquisa clínica. Com o

fortalecimento e o amadurecimento dos protestos contra a utilização de animais na

experimentação científica, a Associação Médica Mundial, em 1975, formulou a

segunda versão da Declaração de Helsinque. Nessa versão foi incluída a

recomendação de que deveria ser tomado um cuidado especial na condução de

14

Op. cit. p. 500.

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10

pesquisa que pudesse afetar o meio ambiente. Também estabelecia que o bem-

estar dos animais, utilizados para a pesquisa, deve ser respeitado.

Nesse sentido, Sônia T. Felipe afirma que:

Enfim, para causar dor, sofrimento e morte a um ser vivo, capaz de vivenciar tais

experiências como perda ou dano, há que se ter uma justificativa moral. Se os atos de um

sujeito moral causam dor e sofrimento a outros, e se esse sujeito aceita racionalmente,

isto é, em nome do seu interesse, o princípio da não injúria, de sua vida em decorrência

da experiência dolorosa, então, esse mesmo sujeito moral deve justificar eticamente seus

atos quando esses causam danos que o princípio moral em questão não permite a ninguém

infligir a outros. Para que o ato de causar dor, sofrimento ou morte a outrem seja

moralmente justificável, há que se indicar sua serventia aos interesses e propósitos

daquele que os sofre.15

Assim, diante deste breve panorama de cunho ético, pode-se afirmar que é

aceitável, dentro de limites justos e sensatos, a utilização de animais em

experimentos científicos. É evidente que não se discute o experimentalismo

irresponsável e predatório, o qual deve ser fortemente repudiado pelo comitê de

ética, pelo direito e pela sociedade. Ademais, a ciência não tem como fim maltratar

os animais por ela utilizados.

A utilização dos animais ainda assegura um esclarecimento e o avanço das

ciências médicas para a melhoria das condições de saúde dos seres humanos e dos

próprios animais. Sem dúvida, o progresso científico se faz necessário quando se

trata da saúde. Porém, os métodos alternativos são também meios

comprovadamente eficazes, na maioria dos casos, principalmente quando envolve o

campo educacional e a indústria de cosméticos.

Até bem pouco tempo, apenas métodos in vivo empregando animais de

laboratório eram utilizados para este fim. Atualmente, as indústrias farmacêuticas e

cosméticas são forçadas a atingir objetivos sociopolíticos e humanitários de reduzir o

número de animais utilizados na pesquisa, enquanto que, simultaneamente,

necessita diminuir custos e gerar, de forma relevante, dados reprodutíveis espécie-

15

FELIPE, Sônia T. A ética e experimentação animal. Fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da

UFSC, 2007, p. 72.

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11

específicos, eliminando a experimentação animal e atendendo definitivamente o

conceito “3R” (reduzir, reutilizar, reciclar). Os avanços da ciência possibilitaram o

desenvolvimento de métodos in vitro que, ao mimetizarem sistemas biológicos

complexos, possibilitam atingir a meta de redução de uso de animais.16

A Secretaria de Saúde São Paulo, com apoio do Instituto Nacional de Ciência

e Tecnologia e Toxinas (INCTTox), juntamente com o CNPq/FAPESP e Instituto

Butantan, lançou recentemente um manual prático sobre o uso e cuidados éticos

nos tratos com animais. Ao apresentar o referido trabalho, assim afirmou o

coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxicinas, Osvaldo

Augusto Brazil Esteves Sant´Anna: “A ética no trato com animais passa,

necessariamente, pela ética humana, e esta, pelo exercício da inteligência”.17

E continua o citado autor:

Regras, Leis, Normas, Convenções, Mitos e Lendas, o Homo sapiens as estabelece,

modifica ou elimina; muito, se não tudo, cria-se por conveniências, corporativismos.

Questões sérias são jogadas na vala comum das enquetes e, pela emoção, raramente pela

razão, são tratadas sob o rótulo da democracia. O emprego de animais em laboratórios é

essencial e comprovadamente necessário, como demonstrado por Pasteur, Roux, Koch,

Behring, Lutz, Chagas e Vital Brazil desde os 1800, com o estabelecimento, no

continente europeu e no Brasil, de paradigmas envolvendo prevenções e terapias. Graças

aos animais, e tão só a eles, muito se conhece acerca das relações patógeno-hospedeiro,

do desenvolvimento de patologias e de doenças crônico-degenerativas, da resistência e da

sensibilidade a medicamentos. E, durante os processos de conhecimento, há que se

empregar animais, sejam ratos, serpentes, coelhos, cavalos ou camundongos.18

As sucintas análises em torno dos conceitos de ética e de moral – salientando

as sutis diferenças semânticas entre ambas – se prestam para refletir sobre a

existência de uma grande e atual discussão na comunidade científica acerca da

utilização dos animais em experimentos científicos.

16

ENGLER, Maria Silvya Stuchi, et al. II Congresso Brasileiro de Bioética e Bem Estar Animal (4 a 6 de agosto

de 2010), Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 118-125. 17

SANT´ANNA, Osvaldo Augusto Brazil Esteves. Manual prático sobre usos e cuidados éticos de animais de

laboratório. TAMBOURGI, Denise V. et. al. (org.) São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo,

2010, p. xiii. 18

Op. cit. p. xiii.

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12

De um lado, a defesa de cientistas que justificam a utilização dos animais

nesses experimentos por considerarem que são importantes nos meios de

pesquisas, seja em busca de novos medicamentos, seja para análise e evolução de

um determinado quadro clínico referente a uma enfermidade específica. De outro

lado, os defensores do abolicionismo animal, quer nos experimentos científicos, quer

na utilização desses animais como fonte de alimentos e vestuário. E ainda, a

corrente do bem-estar animal, que prega um meio adequado e digno para essas

vidas.

Acredita-se fortemente, que, com o avanço da tecnologia e da ciência, em um

futuro próximo, os animais não mais serão utilizados em experimentos e, quiçá na

alimentação ou vestuário, ao menos a drástica diminuição na sua utilização. O bom

senso e responsabilidade são valores que devem ser verificados em qualquer

atividade humana, ainda mais quando envolve um ser vivo, dotado de capacidade

de sentir prazer, dor e sentimentos.

As questões éticas a serem discutidas no presente trabalho giram em torno

de uma ciência que pretende ser responsável e que ainda necessita dos animais em

seus tratos. Nesse sentido temos a ética antropocêntrica, por meio da qual analisa o

comportamento do homem, exaltando-o como um ser superior, guiado, basicamente,

pela razão e a ética ecocêntrica, a qual estuda o comportamento do homem em

relação à natureza global, entendendo e compreendendo a sua atuação e

responsabilidade com os demais seres vivos.

Verifica-se, portanto, que o uso de animais em experimentos científicos deve

ser realizado com uma maior conscientização dos pesquisadores e demais técnicos

que lidam e tratam com esses animais no dia-a-dia. A vida desses seres não é

descartável ou desprezível. Ao contrário. Esses animais devem ser vistos com mais

respeito e maior consideração, não somente por sua utilização, mas também por

serem, em grande parte da escala animal, seres sencientes, ou seja, capazes de

sentirem dor e prazer, fazendo parte de um elo com a natureza.

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13

1.2 Antropocentrismo

O antropocentrismo pode ser definido como a “forma de pensamento que

considera o homem o centro do universo e tudo interpreta de acordo com valores e

experiências humanas”.19 Portanto, a exegese desse conceito permite afirmar que

tudo o que estritamente se relaciona com os seres humanos na Terra, para

aumentar a sua importância, é considerado uma visão antropocêntrica.

Como será visto nos tópicos seguintes, o antropocentrismo é fruto da tradição

judaico-cristã e é a base para todas as religiões e pensamentos filosóficos que

tentam explicar a vida humana e sua origem na Terra.

Essa perspectiva, do homem como centro do universo, reflete, basicamente, a

visão da cultura ocidental. A forte expansão desse pensamento fez com que fosse

incorporada nas demais civilizações, seja de forma pacífica, seja de forma forçada.

Aristides Arthur Soffiati Neto, ao mostrar a marca do antropocentrismo na

sociedade ocidental e sua natureza, afirma:

A maior contradição do antropocentrismo ocidental, progressivamente globalizado a

partir do século XV, consistiu não na imposição do domínio masculino sobre as mulheres,

do domínio europeu branco sobre outros povos e diversidades fenotípicas, da luta de

classes ou entre Estados nacionais, mas de uma longa guerra da humanidade contra a

natureza não humana. Da guerra de todos contra todos, presumida por Hobbes, passou-se

ao que Michel Serres chamou de guerra de todos contra tudo. Enquanto o humanismo

supervalorizou a posição do „homem‟ no universo, o mecanicismo coisificou e

instrumentalizou a natureza não humana, fornecendo as razões ideológicas para um

conflito secular que foi desprezado ou não percebido pela humanidade ocidentalizada,

visto estar ela centrada em seus dramas, tragédias e comédias. Só a partir da década de

60, com os reveses impostos pela natureza não humana à humanidade, é que começou a

se esboçar uma crítica radical aos estilos de desenvolvimento nascidos da Revolução

Industrial. A juízo de Immanuel Wallerstein, as revoluções de 1968 denunciaram que

liberalismo, conservadorismo e socialismo eram variantes de uma mesma ideologia ou

projeto político produzido pelo iluminismo, não sendo este senão o mecanicismo em sua

19

Dicionário HOUAISS da língua portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

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14

versão sofisticada. Em outras palavras, conservadorismo, liberalismo e socialismo

expressavam um naturalismo mecanicista, reducionista, determinista, dualista e utilitarista

que tratava os ecossistemas como entidades inanimadas postas a serviço das

antropossociedades e com capacidade inesgotável de fornecer matéria e energia na

entrada, ao mesmo tempo em que era capaz de absorver ilimitadamente os rejeitos da

civilização industrial em suas roupagens capitalista e socialista, na saída.20

Essa base antropocêntrica sobre a qual se edificou, essencialmente, a

sociedade ocidental, permitiu que, ao longo da história da humanidade, o homem se

utilizasse dos recursos naturais de maneira predatória. Inúmeros são os exemplos

de uma situação preocupante ou de alarmada e acelerada e irreversível devastação

ambiental.

Nesse estado de coisas, os animais não humanos são os seres diretamente

prejudicados, pois “não obstante a perda dos seus habitats em termos quantitativo e

qualitativo, estes foram, no desenrolar da evolução humana, postos na condição de

inferiores, seres irracionais com a finalidade de nos servir e com a obrigação de se

adequar às nossas imposições”.21

Na perspectiva de descontruir essa visão antropocêntrica, surgiram novas

correntes e teorias adeptas do ambientalismo e do ecologismo, afirmando,

basicamente que a Terra não é uma fonte de recursos inesgotáveis à disposição do

bel prazer do homem ou dos interesses e das atividades humanas; e ainda, que a

sua utilização indevida e em larga escala poderá acarretar diversos e seríssimos

desequilíbrios nos ecossistemas, podendo causar a extinção de diversas espécies

de seres vivos existentes na Terra, inclusive com a queda da qualidade da vida

humana.

20

SOFFIATI NETO, Aristides Arthur. Ecossistemas aquáticos: antropocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo.

BENJAMIN, Antônio Herman V.; MILARÉ, Édis (coords.). Revista de Direito Ambiental, ano 10, nº 37. São

Paulo: RT, 2005, p. 205. 21

ROCCO, Bruno Aurélio Giacomini. Algumas considerações sobre o convívio entre o homem e os animais.

Revista de Direitos Difusos, ano II, vol. 11, São Paulo: Editora Esplanada-ADCOAS, 2002, p. 1.417.

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15

1.2.1 A visão Pré-Socrática22

As reflexões a seguir, de caráter histórico, levam a considerar – a título de

amostra – o quanto o pensamento do passado grego era voltado para enaltecer a

figura do ser humano, em primeiro lugar.

Alguns autores divergem quanto à origem das questões relacionadas com a

filosofia, se na Grécia antiga ou no Oriente. Todavia, a maioria dos historiadores

apontam a Grécia antiga como o berço dessa ciência do conhecimento. É o

chamado “milagre grego” com a ciência teórica e, na filosofia, a sua mais grandiosa

e impressionante manifestação.23

A cultura grega estava intimamente relacionada com o mar, dada sua

localização geográfica. Esse fato facilitava a comunicação e o comércio com outros

povos, ou seja, o intercâmbio de comunicação e o confronto com outras civilizações.

Essa circunstância provocou o surgimento tanto das aventuras reais quanto as

construções imaginárias na mentalidade dos gregos, fazendo com que se

expressassem através das suas famosas epopeias. Portanto, por meio da poesia, o

homem grego cantou as formas de viver e de pensar.24

Para os primeiros filósofos gregos, o mundo se iniciou com o Caos, que seria

o abismo sem fundo, a força criadora do Universo. Segundo acreditavam:

De Caos sairá a sombra, sob a forma de um par: Érebo e Noite. Da Sombra sai, por sua

vez, a luz sob a forma de outro par: Éter e Luz do Dia, ambos filhos da Noite. Terra dará

nascimento ao céu, depois às montanhas e ao mar. Segue-se a apresentação dos filhos da

22

A corrente filosófica chamada de pré-socrática é, na verdade, meramente cronológica, referindo-se, portanto,

àqueles anteriores a Sócrates (470-399 a.C.). Esse marco é puramente conceitual, uma vez que muitos filósofos

são contemporâneos a ele, como, por exemplo Pitágoras (570-495 a.C.), Tales de Mileto (625-546 a.C),

Parmênides de Eleia (séc. V a.C.), entre outros. 23

A cultura grega sofreu fortes influências de outras civilizações e povos, tais como os egípcios, os assírios, os

persas, os babilônicos e outros. 24

As epopeias são o resultado da fusão de lendas eólicas e jônicas, nas quais relatavam as expedições marítimas

e os contatos com a cultura oriental. Os ciclos desses cantos eram uma sequência de episódios sobre o mesmo

fato ou herói. Dos inúmeros poemas, apenas dois se conservaram: a Ilíada e a Odisseia de Homero, escritos entre

o século X e o VIII a.C.

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16

luz, dos filhos da sombra e da descendência da Terra – até o momento do nascimento de

Zeus, que triunfará sobre seu pai, Cronos. Começará então a era dos olímpicos.25

A cultura grega, nesse momento, estava intimamente envolvida com as

questões místicas, com o divino. A religião e o misticismo faziam parte da

compreensão do mundo e era uma constante a interação do sobrenatural com o

profano, do religioso com o natural.

Consoante afirmado por Daniel Braga Lourenço:

Essa fase é caracterizada pela predominância do que se denomina pensamento mítico. Ele

consiste em uma forma peculiar de compreensão do mundo, pela qual o povo explica a

realidade em que vive por meio do recurso à figura do mito. O mito, por sua vez, pode ser

delineado como fruto de uma tradição cultural e folclórica e não de um pensamento

individual. Pressupõe a adesão sem questionamento por parte de quem integra essa

mesma cultura.26

Hesíodo (séc. VIII a.C.), contemporâneo de Homero (séc. IX a.C.), afirmava

que os animais devoravam-se a si próprios porque a eles não fora dado o senso do

que fosse o certo ou o errado. O senso de justiça teria sido atribuído por Zeus

somente aos homens. Verifica-se, de início, uma distinção entre os seres dotados de

razão, dentre os quais prepondera a justiça, e os que não a possuíam, prevalecendo

a necessidade, o instinto, um comportamento inato e próprio à defesa do indivíduo.

Segundo Edna Cardozo Dias, “aos homens é concedido o Direito – Dike – ao qual

devem obediência (os homens), e que, ao mesmo tempo, é o maior dos bens.

Assim, há uma ordem para os homens e outra para os animais irracionais”.27

Iniciam-se, então, as primeiras investigações acerca da origem do universo e

a relação do homem (anthropos) com a natureza (physis), buscando-se explicações

25

PRÉ-SOCRÁTICOS. Coleção Os Pensadores. José Cavalcante de Souza et al. (trad.). São Paulo: Editora

Nova Cultural Ltda., 1999, p. 12. 26

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris Editor, 2008, p. 46. 27

DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 18. Apud

LOURENÇO, Daniel Braga. Op. cit., p. 47.

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17

dos fenômenos naturais mediante um lento processo de abandono do misticismo,

passando agora para uma explicação de cunho científico-filosófico.

A chamada democracia grega era exercida diretamente e apenas por aqueles

que usufruíam o direito de cidadania: homens livres, dentre os quais não se incluíam

os escravos, os estrangeiros, as mulheres e as crianças. No contexto desse modelo

de democracia, a função de orador era fundamental e o dom da palavra tornou-se

não apenas um instrumento de ascensão política, como também um problema que

preocupava retóricos e pensadores. Preparar o indivíduo para a vida pública e

conferir-lhe capacitação ou virtude (aretê) política28 representava adestrá-lo na arte

da persuasão, devendo, para tanto, saber usar a palavra.

Com o intuito de atender a esses requisitos da ação política da Atenas

democrática, caminham os sofistas e os professores da eloquência, disputando o

ensino dos jovens atenienses no uso correto e hábil da palavra. A designação de

“sábios” (sofistas) é dada por eles mesmos, trazendo uma mensagem contrária as

pretensões dos tradicionais “amigos da sabedoria” (filósofos). Não se preocupam em

desvendar os segredos do universo; negam a possibilidade de se desvendar a

natureza (physis) das coisas; fundamentam todo o conhecimento na convenção

(nomos), a partir das impressões sensíveis, resultando que nenhuma afirmativa

poderia pretender validade absoluta, só valendo relativamente as experiências e as

circunstâncias em que têm origem.

Um dos grandes filósofos representantes do período pré-socrático,29 foi

Pitágoras de Samos, que passou a explicar a realidade através dos números.30

28

A virtude era um atributo restrito à nobreza, manifestada por meio da conduta cortesã e do heroísmo do

guerreiro. As epopeias de Homero e Hesíodo (séculos X-VIII a.C.) transmitem a tradição ética na cultura grega.

Na sua origem, a palavra areté não tinha o sentido preciso de virtude, pois designava não apenas a excelência

humana, como também a não humana. Posteriormente, com Hesíodo (séc. VIII a.C.) é que areté passa a assumir

um significado estritamente moral, deixando de ser um atributo natural de bem-nascidos para se transformar em

uma conquista, resultado do esforço e do trabalho de qualquer homem. 29

A fim de delinear um contexto histórico, o período pré-socrático inicia-se com a chamada Escola Jônica, cujos

pensamentos filosóficos iniciaram-se nas colônias gregas do Mediterrâneo oriental, no mar Jônico, atualmente a

região da Turquia. Os principais representantes desse período foram Tales de Mileto (floresceu em 585 a.C.), e

seus discípulos Anaximandro (610-547 a.C.), Anaxímenes (585-528 a.C.), Xenófanes de Cólofon (580-480 a.C.)

e Heráclito de Éfeso (500 a.C.).

Pitágoras de Samos (floresceu em 530 a.C.) situa-se no período de transição da chamada Escola Jônica para a

Escola Italiana, que, ao contrário da abstração dos jônicos, propuseram o surgimento da lógica e da metafísica.

Os representantes desse período, além de Pitágoras, foram: Alcmeon de Crotona (séc. V a.C.), Filolau de

Crotona (séc. V a.C.), Parmênides de Eléia (floresceu em 500 a.C.).

A Escola Atomística (considerada por muitos a mãe da física e da química modernas) representava o auge do

período pré-socrático com a teoria de que o principal elemento seria o átomo. Esse período teve como principais

representantes: Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera (460-370 a.C.).

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Pitágoras ainda defendia a imortalidade da alma e a sua transmigração após um

período do morto para um outro corpo, seja ele humano, seja animal, até que ocorra

sua purificação. A isso, chamava-se de metempsicose.

Essa inovação pitagórica coloca em pé de igualdade – ao menos no plano

espiritual – todos os seres vivos, em um processo de intercâmbio entre eles.

Pregava ainda a justiça entre todos os seres, pois o “homem e todo o ser vivo estão

enraizados num mundo que, longe de ser o apanágio de alguns, é dado a todos,

igualmente”.31

Esse era o clima cultural de Atenas do período historicamente chamado de

pré-socrático. Ocorre que a moral tradicional e as normas de conduta política

estavam em alteração pela vaga racionalização que os sofistas apontavam. Com o

passar do tempo, o cidadão ateniense verifica que é o homem quem faz ou altera as

leis, como resultado do confronto do acordo entre os interesses e os pontos de

vistas diferentes.

É nesse contexto que Sócrates, juntamente com os atenienses, desenvolve

uma atividade sob vários aspectos oposta aos mestres da eloquência e da arte de

persuasão. Tratava-se da arte da razão, da racionalização.32

Sócrates criou um novo entendimento de alma (psiché), que dominou a

tradição ocidental, como sendo a sede da consciência normal e do caráter, a

realidade interior que se manifesta mediante palavras e ações, podendo ter

conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade. Esses predicados que nascem

da psique constituem os valores que passam a ser a principal preocupação que

polariza os cuidados do homem.

A Escola Eleática transferiu a discussão da realidade cósmica para o binômio verdade/aparência ou

realidade/aparência, tendo como principais representantes: Zenão de Eléia (floresceu em 464 a.C.) e Melisso de

Samos (floresceu em 444 a.C.).

Por fim, após a consolidação da filosofia como gênero cultural autônomo, com a estabilização da sociedade

grega e o apogeu das cidades-estados, surgem os sofistas, considerados os mestres da oratória e retórica,

transmitindo seus ensinamentos pela arte da persuasão para inserir os cidadãos na vida política. Os principais

representantes desse período foram: Protágoras de Abdera (490-421 a.C.), Górgias de Leontinos (487-380 a.C.),

Hípias de Elis (433 a.C.), Licofron, Pródicos (470 a.C.) e Trasímaco (459-400 a.C.). PRÉ-SOCRÁTICOS.

Coleção Os Pensadores. José Cavalcante de Souza et al. (trad.). São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999,

p. 61-65 e LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto

Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008, p. 43-60. 30

A explicação da realidade através dos números contribuiu e muito para a matemática. 31

LOURENÇO, Daniel Braga. Op. cit., p. 53. 32

SOCRÁTES. Coleção Os Pensadores. Enrico Corvisieri e Mirtes Coscodai (trad.). São Paulo: Editora Nova

Cultural Ltda., 1999, p. 19-26.

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19

1.2.2 A visão de Sócrates

Sócrates (470-399 a.C.) é considerado um dos grandes filósofos gregos.

Muito ensinou acerca das virtudes humanas, tendo sido morto em decorrência dos

seus próprios ensinamentos. Com efeito, fora condenado por representar uma

ameaça para as tradições da polis (por não reconhecer os deuses do Estado e

introduzir novas divindades) e um elemento pernicioso à juventude (por,

supostamente, corromper os jovens).

Durante toda a sua existência, viveu para considerar o justo e o injusto,

praticando boas ações e evitando o mal. Em sua condenação, afirmava que

morrendo injustamente, a vergonha cairia sobre os que injustamente o condenaram,

pois “se a injustiça é vergonhosa, como não seria vergonhoso um ato injusto?”

Afirmava ainda que a única coisa que importava era viver honestamente, sem

cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida.33

A democracia grega, apesar desse nome característico, era repleta de

contrastes, uma vez que a sociedade não somente possuía escravos, como também

descartava as crianças com má formação, além do tratamento excludente dado às

mulheres. Portanto, a democracia era um “modelo social” praticado por um grupo

seleto de homens livres, os únicos que eram considerados cidadãos, na concepção

desse termo. Sócrates, entretanto, repudiava a escravidão da “democracia” grega.

Diante do cenário desse tipo de “democracia”, a questão que envolvia os

animais, evidentemente, não teria trato ou conotação diferente da própria raça

humana. Os animais eram considerados meros produtos para serem utilizados pelo

ser humano. Em um de seus inúmeros diálogos, por exemplo, após discorrer sobre o

sol e a lua, a água e os ventos e os enormes benefícios desses bens naturais dados

pelos deuses ao homem, Sócrates foi questionado por seu discípulo Eutidemo, que

arguiu, se, além dos homens, os animais também seriam objeto de preocupação dos

deuses.

Assim respondeu o filósofo:

33

Sócrates era completamente desprovido de bens materiais. Dedicou sua vida à missão que lhe fora dada pelo

deus de Delfos: o dialogar com as pessoas, fazendo-as justificar seus conhecimentos, virtudes e habilidades que

lhes eram atribuídas.

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20

Não é sabido que até esses animais nascem e são alimentados para o homem? Que outro

animal tira tão grande proveito das cabras, ovelhas, cavalos, bois, asnos etc., como o

homem? Julgo-os até mais úteis que os vegetais. Não nos alimentamos e enriquecemos

menos de uns que outros. Muitas raças humanas existem que não se alimentam dos

produtos da terra, e sim do leite, queijo, carne que lhes fornecem os rebanhos. Todos

domesticam, domam os animais úteis e neles encontram auxiliares para a guerra e muitos

trabalhos.34

Pode-se afirmar que a expressão “animais úteis” refere-se àqueles que eram

utilizados pelo homem. Isso não quer dizer que não se consideravam os animais

tidos como “inúteis”, isto é, aqueles que não serviam ao homem. Essa denominação

transmite a falta de conhecimento das relações ecológicas entre todos os seres

vivos existentes na Terra.

O período socrático é considerado como eminentemente antropocêntrico,

uma vez que o método por ele desenvolvido foi o autoconhecimento (“conhece-te a ti

mesmo”, ensinava ele), donde se extrai que as leis morais originam no homem e a

razão humana é o papel condutor da verdade.

Portanto, a exemplo do pensamento socrático, pode-se dizer que esse

paradigma de ligação do homem com a natureza se mostra muito remoto. Esse

modo de pensar, por sinal, se cristalizou e perdura até os dias de hoje.

1.2.3 A visão de Platão

Platão (427-327 a.C.) foi um dos grandes discípulos de Sócrates. Na

continuidade do trabalho de seu mestre, tentou demonstrar que a filosofia tinha uma

prevalência sobre as ideias em relação ao chamado mundo sensível. Segundo seu

método, é através do diálogo que se busca a universalidade do pensamento.

34

SOCRÁTES. Coleção Os Pensadores. Enrico Corvisieri e Mirtes Coscodai (trad.). São Paulo: Editora Nova

Cultural Ltda., 1999, p. 239.

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21

Para esse filósofo, a concepção de justiça se faz presente quando um

indivíduo consegue que seu intelecto domine seus impulsos irracionais. A razão,

portanto, é considerada a parte superior do espírito e deve controlar a inferior, ligada

aos desejos. Nesse raciocínio, uma sociedade somente será justa quando as

classes inferiores forem dominadas pelas superiores. Cria-se, por conseguinte, uma

estrutura hierárquica em que as chamadas classes inferiores não somente podem,

como também devem ser controladas pelas classes superiores.

Em sua clássica obra A República, Platão questiona a forma de uma

sociedade ideal, o meio para uma construção de uma sociedade justa. Ele atribui a

cada homem um determinado fim e atividade35 e ensina que o pensamento racional

não é para todos, mas sim um privilégio para alguns. Na lógica desse seu raciocínio,

a maior parte dos homens não pode alcançar a “bondade filosófica”, podendo atingir

ao máximo a “bondade cívica” pela obediência às leis, motivo pelo qual a companhia

dos deuses estaria reservada a poucos afortunados.

1.2.4 A visão de Aristóteles

Aristóteles (384-322 a.C.) foi discípulo de Platão. Sua principal ideia para

explicar a relação do universo com a natureza e com o homem era a de que existiria

uma hierarquia natural entre os objetos inanimados, os seres vivos e os homens.

Afirmava que tudo na natureza fora criado para servir a um propósito, mas que, ao

final da cadeia hierárquica, o propósito da natureza e dos demais seres vivos seria

servir ao homem.

Esse filósofo sustentava:

As plantas existem em benefício dos animais, e as bestas brutas em benefícios do homem

– os animais domésticos para seu uso e alimentação, os selvagens (ou, de qualquer

35

Platão atribui em sua obra A República a organização da cidade ideal apoiada em uma divisão racional de

trabalho, em que a justiça depende da função exercida por três classes distintas: a dos artesãos (encarregados da

produção de bens materiais); a dos soldados (encarregados da defesa da cidade); e a dos guardiões (incumbidos

de zelas pela observância das leis).

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22

maneira, a maioria deles) para servir de alimento e outras necessidades da vida, tais como

roupas e vários instrumentos. Como a natureza nada faz sem propósito ou em vão, é

indubitavelmente verdade que ela fez todos os animais em benefício do homem.36

O ponto de vista filosófico de Aristóteles se contrapõe às filosofias de

Sócrates e de Platão; a escola por ele inaugurada possuía um forte apelo de

investigação empírica.

Diante dessa doutrina, Aristóteles concebe a teoria da “grande cadeia da vida”

onde os seres que apenas sobrevivem, tal como as plantas, ocupam o degrau mais

baixo da escala, acima do qual estão os seres sencientes, conscientes e capazes de

experiência, seguidos pelos seres espirituais que habitam os degraus mais

elevados; por fim, acima deles, ocupando degraus incrivelmente mais altos, estão as

divindades.37

Nesse “pano de fundo”, o filósofo também descrevia: “O homem livre ordena

ao escravo de um modo diferente do marido à mulher, do pai ao filho. Os elementos

da alma estão em cada um desses seres, mas em graus diferentes. O escravo é

completamente privado da faculdade do querer; a mulher a tem, mas fraca; a do filho

é incompleta”.

Essa visão da filosofia clássica de que os seres são criados em benefício uns

dos outros (as plantas teriam sido criadas em benefício dos animais e estes foram

criados para beneficiar os homens), sendo os animais para a mera utilização dos

homens ou como suas propriedades, não só predominou durante toda a evolução da

sociedade humana, como ainda hoje constitui uma corrente que encontra adeptos.

Aristóteles negava aos animais a capacidade de raciocinar, de possuir

intelecto; e por não possuírem esses atributos, não seriam capazes de desenvolver

emoções, mesmo que, eventualmente, parecessem experimentá-las.

Essa relação de domínio entre espécies diferentes fez com que o homem

olhasse para a natureza apenas como um objeto ao seu dispor, que pudesse utilizá-

36

Aristóteles. Politics, p. 16. Apud SINGER. Peter. Libertação animal. Marly Winckler (trad.). São Paulo:

Lugano Editora, 2004, p. 215. 37

SANTANA, Heron José de. Espírito animal e o fundamento moral do especismo. Apud SANTANA, Heron

José de e SANTANA, Luciano Rocha (coord.). Salvador: Revista Brasileira de Direito Animal, ano 1, nº 1,

2006, p. 49.

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23

la sem preservá-la, sem o devido respeito com o vínculo entre si e que marca todos

os seres existentes no Planeta.

1.2.5 O Antigo Testamento e o Novo Testamento

A era grega clássica chega ao fim quando sofreu uma derrocada por parte

dos macedônios,38 os quais, posteriormente, são derrotados por Roma, que teve

enorme expansão de seu domínio por grande parte da Europa, da África e da Ásia,

surgindo o império romano.

O império romano teve forte influência do patrimônio grego, não somente no

campo filosófico, mas também nos conceitos modernos de política, cidadania e

democracia que lá foram germinados. Com sua vasta campanha expansionista,

Roma deixou como um de seus grandes legados em prol do direito das civilizações

ocidentais de tradição romano-germânica, o direito civil (jus civile = civil law),

diferentemente da outra divisão ocidental, a common law (lex communis).

De igual modo, nesse período, a exemplo dos períodos anteriores, os animais

eram considerados e tratados como “coisas”, ou seja, eram meros objetos a serem

apropriados por qualquer pessoa. Aliás, nessa mesma categoria situavam-se os

escravos. A propósito, esse mesmo modo de pensar e agir, em parte, permanece

nos dias de hoje.

Com a conversão do império romano ao cristianismo, a cultura romana foi

amplamente modificada. Nesse ínterim, a vasta dominação que exerceu no ocidente

fez com que o cristianismo se implantasse no mundo todo, tornando-a hoje, a maior

de todas as religiões.39

38

A Grécia antiga foi dominada por Felipe II da Macedônia e seu filho Alexandre, em meados de 340 a.C.

Alexandre expandiu, e muito, as conquistas de seu império (Europa e Ásia), motivo pelo qual ficou conhecido

como Alexandre, o Grande. Deixou como grande legado a difusão da cultura grega, resultando na mistura da

cultura grega com a cultura oriental, dando origem à cultura helenística. 39

O cristianismo é praticado atualmente por cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo, o equivalente a um terço

da população mundial. Disponível em:

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2003/030407_religioescristianismo.shtml. Acessado em 23 de outubro

de 2010.

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O cristianismo sofreu forte influência da cultura da época e absorveu a

interpretação dada pelos judeus e gregos no tocante aos animais. Com o apogeu de

Roma, a espécie humana desde o seu nascimento passa a ter significativo valor não

só moral, mas de proteção à vida.

Os ensinamentos da Bíblia no Antigo Testamento já privilegiavam o homem

em relação aos demais seres vivos existentes na Terra. Ao dar uma especial

condição ao ser humano, enfatizou profundamente o antropocentrismo. A esse

respeito, as palavras de Santana e Oliveira:40

A perspectiva negativista referente aos animais será fundamentada através das religiões

monoteístas, que formarão o judaísmo entre outras, conforme se infere do livro do

Gênesis que, integrantes das Escrituras monoteístas, determina o ser humano como o

máximo da criação, pois este seria o único ser criado à imagem e semelhança de Deus,

devendo-se a existência dos demais seres atender a finalidade exclusiva de servir ao

homem.

Não só as religiões dos homens serão um dos elementos legitimadores da visão

negativista referente aos animais. Teremos, também, no racionalismo filosófico um de

seus mais fervorosos elementos, como é o caso do filósofo pré-socrático Protágoras (480-

410 a.C.), que enaltecerá o antropocentrismo, ao formular o princípio do homo mensura,

segundo o qual o homem seria a medida de todas as coisas, inclusive daquelas que são

pela sua existência ou não são pela sua não-existência.

No primeiro capítulo do livro do Gênesis,41 encontramos as bases do

antropocentrismo, descrevendo como Deus criador confia ao Homem criado o

domínio sobre a criação:

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança; e que eles

dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e

todos os répteis que se rastejam sobre a terra (Gn, I, 26). Deus os abençoou e lhes disse:

40

SANTANA, Luciano Rocha; OLIVEIRA, Thiago Pires. Guarda responsável e dignidade dos animais. Apud

SANTANA, Heron José de; SANTANA, Luciano Rocha (coords.). Salvador: Revista Brasileira de Direito

Animal, ano 1, nº 1, 2006, p. 72. 41

A Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Edições Paulinas, 1985.

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„Sede fecundo, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do

mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra (Gn, I, 28).

No segundo capítulo, Deus apresenta ao homem os diferentes animais da

criação para que lhes sejam dados nomes. Esse privilégio de conceder um nome

traduz a ideia de que ao homem é investido de poder sobre a Terra:

Iahweh Deus modelou, então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as

conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o

homem lhe desse (Gn, II, 19). O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a

todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou a auxiliar que lhe

correspondesse (Gn, II, 20).

Posteriormente, após o episódio do dilúvio, quando Deus abençoa Noé e seus

filhos, assim afirmou:

Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: „Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a

terra‟ (Gn, IX, 1). Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra e de todas as aves

do céu, como de tudo o que se move na terra e de todos os peixes do mar: eles são

entregues nas vossas mãos (Gn, IX, 2). Tudo o que se move e possui a vida vos servirá de

alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das plantas (Gn, IX, 3).

1.2.6 Antropocentrismo moderno

Desde os primórdios dos antigos filósofos – à maneira de uma herança do

pensamento judaico-cristão que permanece até os dias de hoje – foram aqui

expostas algumas visões que caracterizam o chamado antropocentrismo.

Naturalmente, vários e longos milênios nos separam do calendário dos tempos. Esta

exposição, então, apesar de extremamente sintética – e não poderia ser de outra

maneira – é emblemática e rica de significado para demonstrar que o ser humano,

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na cultura ocidental, ontologicamente surgiu para dominar a natureza e os seres

vivos e não vivos que nela existem. Essa cultura milenar é, pois, um fio condutor que

nos fez chegar ao antropocentrismo dos tempos modernos.

A teoria da grande cadeia da vida proposta por Aristóteles foi perpetuada em

decorrência do domínio da Igreja Católica e de seus principais representantes: Santo

Agostinho na Igreja primitiva e Santo Tomás de Aquino na Idade Média. Ambos

ressaltaram que a capacidade de pensar é um atributo exclusivo do homem e esta é

a sua diferença entre os demais seres animados. Esse raciocínio justificava, na

visão do cristão, que, na ordem natural, o imperfeito deve sempre servir ao perfeito,

do mesmo modo como o irracional deve estar a serviço do racional.42

A perfeição do homem estaria na sua semelhança e proximidade com Deus,

pois as criaturas intelectuais estariam em um posto mais alto; por isso, sua

proximidade com a divindade. A filosofia de Tomás de Aquino afirmava ainda que

não havia pecado em usar algo para o fim a que se destinava, na seguinte ordem:

as plantas para os animais e os animais para os homens. Esse era, inclusive, o

mandamento inscrito no livro do Gênesis (Gn I, 29-30 e IX, 3), da seguinte maneira:

Deus disse: „Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície

da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento‟

(Gn, I, 29).

A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo que rasteja sobre a terra e que é animado

de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas, e assim se fez (Gn I,30).

Tudo o que se move e possui a vida vos servirá de alimento, tudo isso eu vos dou, como

vos dei a verdura das plantas (Gn, IX, 3).

Nesse momento, consagra-se a posição filosófica de que o homem é

hierarquicamente superior aos demais seres vivos, proveniente das teorias clássicas

da perfeição do homem proposta por Platão e Aristóteles. Nesse contexto, a

existência de uma “imperfeição” passou a chamar-se “pecado”. Havia, então, três

espécies de pecado: os cometidos pelos homens contra Deus, os cometidos pelos

42

SANTANA, Heron José de. Espírito animal e o fundamento moral do especismo. Apud SANTANA, Heron

José de; SANTANA, Luciano Rocha (coords.). Salvador: Revista Brasileira de Direito Animal, ano 1, nº 1,

2006, p. 51.

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homens contra si próprios e aqueles contra terceiros. Percebe-se, pois que se

tratava de um arcabouço religioso de viés cultural que excluía o pecado ou o crime

praticado contra os animais.

Pode-se afirmar, portanto, que a base da religião judaico-cristã representa a

forma pelo qual o homem trata os animais com certo desprezo e até com barbárie,

pois o capítulo do Gênesis transformou os animais em meros objetos de uso e ao

bel-prazer dos homens.

Com o fim da Idade Média,43 surge a época denominada do Renascimento,

em que as artes e a filosofia, bem como o ser humano, retornam ao debate e à

discussão filosófica, uma vez que durante a era medieval, Deus era o centro do

pensamento. Esse novo período histórico é caracterizado pelo humanismo,

abandonando-se, portanto, o teocentrismo para lançar raízes no antropocentrismo

fascinante.

Insignes pensadores surgiram nesse período, sendo que vários deles

chocaram o mundo da época com seus estudos. Na verdade, Nicolau Copérnico

(1473-1543), Giordano Bruno (1548-1600), Galileu Galilei (1564-1642), quebraram o

paradigma da teoria geocêntrica para a heliocêntrica, além do que, pregavam que o

Universo era um espaço infinito com outros corpos celestes circundando os astros.

O grande representante da filosofia racionalista moderna foi René Descartes

(1596-1650) que levou ao extremo a filosofia aristotélico-tomista. Com efeito, ele

afirmava que a linguagem era a única prova de que os homens possuíam espírito

capaz de pensar, sentir e raciocinar; ao passo que os animais eram incapazes de ter

sentimentos ou de poder manifestar qualquer pensamento e, que, portanto, não

passavam de simples autômatos.

A racionalidade, segundo Descartes, torna o homem o senhor e dono da

natureza. Ele assegurava que sendo os homens os únicos seres dotados de uma

alma imortal, não eram autômatos. Já os animais, como não possuíam alma,

consequentemente não possuíam consciência e, não tendo consciência, eram seres

43

A Idade Média é conhecida também como “Idade das Trevas”, pois após a queda do império romano (séc. V)

e as invasões bárbaras, houve uma queda e estagnação da produção intelectual. Coube aos monges dos mosteiros

cristãos e aos árabes da península ibérica a reintrodução da cultura na Europa. O fim da Idade Média e início do

Renascimento correspondem ao século XV, com os mecenas. Aqueles indivíduos ricos que financiavam os

cultores das artes e das ciências.

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brutos, inanimados, sujeitos às leis mecânicas como qualquer outro objeto, não

sentindo, portanto, dor ou prazer.

Para Descartes, como não havia a comunicação de linguagem entre os

animais, não poderiam expressar seus pensamentos, consequentemente, não

seriam conscientes.44

A teoria mecanicista cartesiana – aquela que concebe metaforicamente a

natureza como uma máquina cheia de engrenagem – servia também à prática da

experimentação em animais vivos e que fora amplamente utilizada nesse período na

Europa, com o detalhe de que, nessa época, não existiam anestésicos.45

Nesse cenário, para Descartes, os animais seriam meras máquinas para a

utilização dos homens.

Outra corrente filosófica iniciada nesse período foi o empirismo, contrariando

a filosofia racionalista que encontrava a base da sua argumentação na

espiritualidade. David Hume (1711-1776), por exemplo, identifica nos animais a

presença de características físicas e atividades mentais muito próximas às dos

homens; nesse sentido, ele prepara as bases para a revolução darwiniana,46 que

rompe definitivamente a barreira filosófica construída entre o homem e as demais

espécies.

Até esse período, prevalece, então, a base da filosofia aristotélica e o

conceito de que o homem é o único ser dotado de razão, de linguagem e de

44

A etologia – estudo do comportamento dos animais – provou há muito tempo que essa argumentação não era

plausível, uma vez que inúmeros animais demonstraram não somente poder comunicar-se com as espécies

intraespecificamente, como também interespecificamente, mas também deixaram evidente ter plena interação

com a linguagem humana. 45

Peter Singer traz um relato da conveniência da teoria mecanicista: “Como então não havia anestésicos, esses

experimentos devem ter feito os animais se comportar de tal forma que indicaria, para a maioria de nós,

estarem sofrendo dor intensa. A teoria de Descartes permitia aos experimentadores que desconsiderassem

quaisquer escrúpulos que pudessem ter nessas circunstâncias. O próprio Descartes dissecou animais vivos com

o objetivo de aumentar seus conhecimentos de anatomia, tendo muitos fisiologistas renomados da época se

declarado cartesianos e mecanicistas. O seguinte testemunho de um desses experimentadores, que trabalhava no

seminário jansenista de Port-Royal, no final do século XVII, deixa clara a conveniência da teoria de Descartes:

„Batiam nos cães com perfeita indiferença e zombavam dos que sentiam pena das criaturas como se elas

sentissem dor. Diziam que os animais eram relógios; que os gritos que emitiam quando golpeados não

passavam do ruído provocado por alguma molinha que haviam acionado, mas, que o corpo, como um todo, não

tinha sensibilidade. Pregavam as quatro patas dos pobres animais em tábuas para praticar a vivissecção e

observar a circulação do sangue, tema que era motivo de muitas discussões‟” (SINGER, Peter. Libertação

animal. Marly Winckler (trad.). São Paulo: Lugano Editora, 2004, p. 227-228). 46

Charles Darwin (1809-1882) revolucionou o mundo com a Teoria das Espécies, demonstrando que o homem é

resultado do processo da evolução animal.

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capacidade para distinguir o bem e o mal; único que possui uma alma imortal e em

tudo semelhante a Deus.

1.3 Ecocentrismo ou Biocentrismo

James Lovelock é um dos grandes autores que formularam a teoria da Mãe

Terra ou Teoria Gaia.47 De acordo com ela, a Terra é, na verdade, um organismo

vivo, capaz de regular seu próprio clima e sua composição para manter sempre

confortáveis os que nela habitam.48

A Teoria Gaia é assim definida:

Uma entidade complexa que abrange a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo da

Terra; na sua totalidade, constituem um sistema cibernético ou de realimentação que

procura um meio físico e químico para a vida neste planeta. A manutenção de condições

relativamente constantes por controle ativo pode ser convenientemente descrita pelo

termo homeostase.49

Essa teoria tem a finalidade de superar o velho conceito que considera a

natureza como uma força primitiva a ser conquistada. Esse também é o

entendimento de Edward O. Wilson que assim afirmou:

Pesquisamos uma questão em busca de um conceito, de um padrão que imponha uma

ordem. Procuramos uma maneira de falar sobre o terreno ainda por desbravar, uma

palavra ou uma frase que chame a atenção para o objecto da nossa atenção. Esperamos

ser os primeiros a estabelecer a conexão. Pretendemos detectar e identificar um processo,

47

Gaia é também conhecida como Geia ou Ge (em grego, Gé = Terra) radical adotado nas ciências como a

Geografia e Geologia. Para os antigos filósofos gregos, Gaia era a deusa da Terra e possuía uma absurda

potencialidade geradora. 48

James Lovelock afirma que a “Teoria Gaia” não é de sua autoria e sim do considerado pai da geologia, James

Huton que a utilizou pela primeira vez em uma conferência em Edimburgo, em 1785, onde afirmou que:

“Considero a Terra um superorganismo e o seu estudo apropriado a fisiologia”. LOVELOCK, James. Gaia. Um

novo olhar sobre a vida na Terra. 3ª ed. Pedro Bernardo (trad.). Lisboa: Edições 70, 1995, p. 19. 49

LOVELOCK, James. Op. cit. p. 30.

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talvez uma reação química ou um padrão de comportamento que accione uma mudança

ecológica, uma nova maneira de classificar o fluxo de energia, ou uma relação entre

predador e presa que os preserva a ambos, por entre uma gama quase ilimitada de

objectivos.50

Historicamente, sabemos que a natureza se reduziu aos interesses da

espécie humana. Na verdade, desde o início da aparição do homem, ele retira os

recursos naturais para assegurar sua própria sobrevivência, mais do que o

necessário para o desenvolvimento da sociedade humana. Esse procedimento tem

suas raízes nos ditames da filosofia da religião judaico-cristã, conforme registrado

em páginas anteriores.

Com toda naturalidade, pois o homem sempre tratou a natureza como um

mero objeto a ser possuído e dominado por seus interesses. O resultado de tal

dominação dilapidou parte dos recursos naturais existentes. Lamentavelmente, com

o passar dos anos, levou a um estado de degradação do planeta e a deteriorar a

qualidade ambiental. Atualmente, vivemos parcela dos efeitos devastadores

resultantes de uma expropriação depredatória que vem de longa data. Porém, deve-

se perguntar: mesmo diante de todas as questões e problemas oriundos da

devastação dos recursos naturais, o homem passou a respeitar a “mãe natureza”

depois de todos esses acontecimentos?

Com as incessantes e irracionais intervenções humanas, ficou evidente que

os ciclos naturais são cada vez mais rompidos ou, quando não rompidos, se

desequilibram. É notório o posicionamento de cientistas contrários a teoria do

aquecimento global, afirmando ainda que a militância ambientalista é uma forte arma

de propósitos políticos como, de fato, pode ser. Todavia, ninguém pode negar que

fenômenos e catástrofes naturais ocorrem cada vez mais, com maior intensidade e

com maior amplitude pela face da terra.51

A natureza é movida por um fenômeno cíclico (ciclo da água, do carbono, da

fotossíntese, da quimiossíntese, etc.). Além de participar do movimento dos astros e

obedecer ao ritmo das estações, ainda possui o ciclo da decomposição da matéria

50

WILSON, Edward O. A Diversidade da vida. Isabel Mafra (trad.) Lisboa: Gradiva, 1997, p. 16-17. 51

Atualmente, as estações do ano não prevalecem mais em épocas específicas. Diversos fenômenos naturais até

então inexistentes em determinadas localidades vêm ocorrendo. No Brasil, tufões e furacões aconteceram

recentemente no Sul, além de terremotos no Centro-Oeste.

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31

orgânica e da germinação dos seres vivos, parecendo “funcionar segundo o modelo

de uma imensa fábrica de reciclagem e de tratamento da energia e da matéria”.52

Muito dos cientistas que duvidam da possibilidade de uma hecatombe global,

afirmam que a reversibilidade da natureza renovará os seus ciclos e a própria

intervenção humana; é uma afirmação corroborada por muitos políticos, juristas e

pensadores. Todavia, como afirma François Ost,53 esse é o tradicional álibi em que

se refugiam os poluidores e predadores. Álibi que não reconhece que as ações

antrópicas são cada vez mais intensas e concentradas no tempo, interrompendo os

ciclos naturais e, por seus efeitos cumulativos, aproximam-se dos limiares da

irreversibilidade. Por isso o alerta do citado autor:

Independentemente, mesmo, da tomada em consideração das perturbações humanas, a

ciência ecológica está mais consciente do que antes da irreversibilidade do longo tempo

da natureza: a natureza, como a história, nunca se repete; é apenas em nível de percepção

humana que se forma a impressão de retorno do mesmo.54

Nesse sentido, a ecologia científica fornece mais questões à espera de

respostas seguras, representando um paradoxo de que quanto mais se sabe, menos

se afirma. Naturalmente, isso se deve à imensidão dos fatos da natureza e às

limitações da inteligência humana.

Voltando um pouco ao passado recente, a publicação da obra Primavera

Silenciosa em 196255 motivou a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente

Humano, realizada em Estocolmo no ano de 1972. A partir desse evento, a

humanidade passou a despertar para uma tomada de consciência quanto às

questões da defesa do meio ambiente. A proteção da natureza em nível global é

resultado de uma nova consciência no que se refere ao valor intrínseco do

patrimônio genético e da biodiversidade, valor que inclui os cuidados com as

espécies ameaçadas de extinção ou com o ambiente natural já comprometido. Em

outros termos, surgiu um sentimento globalizado sobre a necessidade de uma nova

52

OST, François. A natureza à margem da lei. A ecologia à prova do direito. Joana Chaves (trad.). Lisboa:

Instituto Piaget, 1995, p. 109. 53

OST, François. Op. cit. p. 109. 54

Idem. 55

CARSON, Rachel. Primavera Silenciosa. Raul de Polillo (trad.). São Paulo: Editora Melhoramentos, 1962.

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32

ordem para a proteção da natureza em nível planetário. Poder-se-ia afirmar que

começou a existir uma visão holística que envolve a natureza e os elementos que a

compõem.

A conveniência humana na sociedade mostra que, de uma maneira geral, o

homem tende a não preservar aquilo que pertence à coletividade, ou aquilo que é

comum a todos; apenas revela maiores cuidados com aquilo que lhe pertence. Daí a

importância de se conscientizar para a dimensão social do valor dos recursos

naturais. Nesse sentido, toda tomada de consciência em torno da preservação dos

recursos naturais tem um fio condutor que se manifesta através do estudo das

relações dos seres vivos entre si e o meio orgânico ou inorgânico no qual vivem e

que hoje a sociedade está conhecendo com o nome de ecologia.

Na esteira desse entendimento, François Ost56 propõe um termo que julga

adequado para a corrente de pensamento que envolve os conjuntos naturais e a sua

interação como um todo: deveria ser traduzida literalmente por “ecologia profunda”

ou “ecologia radical”. Porém, outras denominações são também utilizadas, como,

por exemplo, biocentrismo ou ecocentrismo. Como nos ensina referido autor, adotar-

se-á aqui a expressão biocentrismo, tendo em vista que, considerando a natureza

como um ser dotado de vida (a bios, em grego), esta seria a expressão mais

apropriada.

Essa corrente é formada por diversas ciências, tendo principalmente por base

a teoria evolucionista de Charles Darwin, a qual retira todo o privilégio da espécie

humana, substituindo-a na dinâmica evolutiva da vida. A Teoria Gaia, acima referida,

representa, basicamente, uma comunidade organizada em que há uma cooperação

entre plantas, animais e elementos abióticos, em uma perfeita simbiose. Refere-se a

um modo de pensar enraizado em um passado místico (cultura dos ameríndios)57 e

56

OST, François. Op. cit. p. 174-175. 57

Essa ideia de consciência ecológica remonta à cultura indígena. A esse respeito, François Ost exemplifica

quando o cacique Seattle, chefe dos Sioux, na resposta que dirigia ao governador do Dakota, que lhe pretendia

comprar as terras da tribo: “Para o meu povo, não há um pedaço de terra que não seja sagrada – uma agulha de

pinheiro que cintila, uma margem arenosa, uma bruma leve no meio dos bosques sombrios. Tudo é sagrado aos

olhos do meu povo. A seiva que cresce na árvore contém em si própria a memória dos peles-vermelhas. Cada

clareira, cada insecto que zumbe, é sagrado na memória e na consciência do meu povo. Nós fazemos parte da

terra e ela faz parte de nós. Esta água cintilante que corre pelos ribeiros e rios não é apenas água, é o sangue

dos nossos ancestrais {...}. Porque, se tudo desaparece o homem poderia morrer numa grande solidão

espiritual. Todas as coisas estão ligadas entre si. Ensinai às vossas crianças o que ensinamos às nossas sobre a

terra: que ela é nossa mãe, e que tudo o que lhe acontece acontece-nos a nós e aos filhos da terra. Se o homem

desdenha a terra desdenha-se a si próprio. Disto temos a certeza. A terra não pertence ao homem, mas é o

homem quem pertence à terra”. Op. cit. p. 172-173.

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se projeta em termos práticos com uma aliança do Planeta Terra com a urbanização,

industrialização e consumo, consubstanciado em uma melhor qualidade de vida,

alimentação mais saudável e ações políticas em respeito à nossa ligação com a mãe

Terra.

A partir desse momento, ou seja, a partir de uma visão que ensina que todos

os seres se relacionam e são dependentes entre si, pode-se questionar que a

natureza deixe de ser um mero objeto de direito, à disposição das necessidades

humanas; não sendo objeto de direito passa a ser sujeito de direitos, tendo

dignidade própria, fazendo valer-se desses direitos tidos como fundamentais,

opondo-se às eventuais ações antrópicas depredatórias.

Cumpre lembrar que a Teoria Gaia afasta completamente a visão

antropocêntrica que predominou praticamente durante toda a existência da vida

humana na Terra. Apesar do predomínio do antropocentrismo, o lado positivo da

História mostra que, nos primórdios da humanidade nossos antepassados viviam

uma relação direta com a natureza, ora respeitando e venerando os inúmeros

deuses protetores da natureza, ora utilizando as suas dádivas para sua

sobrevivência e o aperfeiçoamento e o melhor desenvolvimento das comunidades e

sociedades que se formavam.

É a partir do chamado período renascentista que as grandes ciências

humanas – cujas bases perduram até os dias atuais – enaltecem a figura do homem

como sendo o senhor da Terra, seguindo, evidentemente, a intenção do seu Criador

que os concebeu à sua imagem e semelhança, conforme está escrito no livro do

Gênesis.

O Renascimento58 foi um período marcado por profundas transformações

sociais, pois representa o final da Idade Média e início da Idade Moderna. É a

ruptura das estruturas medievais e a redescoberta e revalorização da cultura da

antiguidade clássica. A “redescoberta” do mundo e do homem fez com que essa

época se tornasse humanista (investigação do homem por excelência da natureza) e

os estudos daí provenientes foram baseados no empirismo; nas experiências como

formadora das ideias. Essa fase se aprofundou e ampliou a sabedoria antiga,

criando novas ciências e disciplinas, com uma nova visão do mundo e do homem.

58

O período renascentista é um período histórico que surgiu aproximadamente no final do séc. XIII e meados do

séc. XVII.

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Posteriormente, o Iluminismo59 pregou a supremacia da racionalidade contra

as crenças e mitos do passado. Esse período é considerado como um dos mais

importantes da história intelectual e cultural do ocidente, tendo transformado

profundamente as questões políticas e sociais, com a consolidação dos estados-

nação, a expansão dos direitos civis e a redução da influência de instituições

hierárquicas como a nobreza e a igreja católica. O Iluminismo embasou os ideais

das Constituições modernas com a Revolução Francesa.

Portanto, a partir desse período, o homem reforça a crença de que deve

dominar a natureza da forma como melhor lhe aprouver. Interessante relatar que

muitos animais foram condenados durante essa época por crimes que supostamente

haviam cometidos por “culpabilidade moral” ou por comportamentos tidos como

demoníacos.

Na verdade, essa cultura de condenar animais por supostos crimes

permaneceu até meados do século XX. Luc Ferry60 e Daniel Braga Lourenço61

trazem inúmeros relatos das condenações de diversos grupos de animais, dentre as

quais, a título de exemplo, são aqui relatados os casos mais interessantes.

Em 1314, um touro que matou um homem foi enforcado em Moisy (França).

Em 1386, na cidade de Falaise (França), uma porca foi julgada e condenada à

execução em praça pública (mutilada e enforcada) pela morte de uma criança. Em

1474, na cidade de Basileia (Suíça), um galo fora condenado à fogueira por ter

botado um ovo, pois a crença da época afirmava que tais ovos seriam chocados por

entidades malévolas (acreditava-se que os ovos sem gema dariam à luz a figura

mitológica do basilisco). Duzentos anos depois, em 1710, um francês apresentou um

trabalho perante a Academia de Ciências afirmando que os ovos sem gema eram

produtos ocasionais de fêmeas adoentadas. Em 1519, em Stelvio (Itália), toupeiras

foram excomungadas e expulsas da cidade pela acusação de danificar as colheitas.

Em 1545, na cidade de Saint Julien (França), besouros foram excomungados por

terem infestado as videiras locais. No ano de 1622, em New Heaven (EUA), um

cidadão de nome Potter foi condenado à forca juntamente com seus oito animais

59

O Iluminismo tem como marco o início do séc. XVIII e término no início do séc. XIX. 60

FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica. A árvore, o animal e o homem. Rejane Janowitzer (trad). Rio de

Janeiro: DFL, 2009, p. 9-19. 61

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris Editor, 2008, p. 166-182.

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domésticos pelo crime de sodomia e bestialidade. Em 1713, na cidade de Piedade

(Maranhão), um mosteiro franciscano foi infestado por cupins, tendo sido também

excomungados. Em 1916, a elefanta Mary, da cidade de Tennessee (EUA), após

sucessivos maus-tratos por parte de seu treinador, feriu-o mortalmente, tendo sido

condenada à pena de enforcamento. Já em 1940, um homem e três vacas foram

queimados vivos em Pont-à-Mousson (França) pela prática de bestialidade. Em

1963, em Trípoli (Líbia), setenta e cinco pombos-correios receberam a sentença de

morte, pois um bando de contrabandista os haviam treinados para carregar notas

bancárias da Itália, da Grécia e do Egito para a Líbia.62 A corte os condenou, pois

“eram treinados demais e perigosos para serem deixados à solta”. Já os

contrabandistas, foram apenas multados. Em 1994, o governador de New Jersey

(EUA) baniu de seu estado um cão sob a acusação de que estava causando

distúrbios nas cercanias.

A morte do ser humano provocada por um animal ou uma por “besta”, como

era considerado na época, representava uma subversão da ordem natural e rompia

com os mandamentos divinos. A alegação de ausência de dolo não era motivo que

justificasse a não punição desses animais; ou seja, eles não eram punidos pela sua

culpabilidade, mas, sim, pelo fato de serem inferiores na cadeia hierárquica,

rompendo com a ordem natural imposta por Deus. Os julgamentos, portanto,

funcionavam com a finalidade de restaurar a ordem rompida e, no fundo, como uma

vingança sobre o ofensor.

O processo e a condenação pelos quais os animais passavam, tal como os

exemplos acima abordados, não se coadunam com o nosso atual sistema jurídico,

uma vez que eles não detêm a capacidade de ser parte no processo. Aliás, nem o

eram na época em que foram condenados à pena de morte. Porém, ainda hoje,

muitos cães que provocam lesões em seres humanos, são sacrificados nos centros

de zoonoses, por serem considerados agressivos.

Acerca dessa questão de direito animal, um capítulo e um tópico específico

serão dedicados a essa discussão, levando-se em conta a proposta de tornar a

defesa de seus direitos um tema relativamente mais fácil ou perceptível. Essa

discussão se justifica pelo fato de se colocar em jogo vidas de seres não humanos,

62

WALLECHINSKY, David; WALLACE, Amy. O Livro das Listas. Mirian Groeger e Sylvio Gonçalves

(trad.). Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p. 226.

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como os quais se convivem nas residências ou que apenas admiramos junto a

parentes e amigos, em parques e zoológicos ou mesmo soltos no seu próprio

hábitat. Como afirmado por Peter Singer,63 animais não humanos não possuem a

capacidade de falar ou raciocinar, de legislar ou assumir deveres e obrigações.

Entretanto, são características que não impedem de considerar que são capazes de

sofrer ou sentir prazer como seres sencientes.

Por outro lado, o mesmo não acontece no reino vegetal. Com efeito, inúmeras

críticas são postas acerca da defesa de uma floresta ou de uma espécie rara de

árvore situada em um determinado local ou, até mesmo, no quintal de uma

residência. Não se pretende aqui afirmar que a vida de uma árvore ou de uma

samambaia e, tampouco, de um inseto ou de uma lagartixa deva prevalecer sobre a

vida humana. Não se trata disto; uma vez que provocar uma discussão em torno de

estabelecer hierarquia de valor entre um ser humano e um ser não humano, exigiria

um maior aprofundamento do conhecimento científico, o que não é a proposta do

presente trabalho.

Acerca do referido tema, Christopher Stone64 escreveu um interessante artigo

em 1972, no qual relata o episódio em que a sociedade Walt Disney pretendia

instalar uma estação de desportos de inverno no Mineral King Valley, um vale da

Sierra, na Califórnia, muito conhecido por suas sequoias. O Sierra Club, associação

de defesa da natureza muito ativa na região, opusera-se ao referido

empreendimento, tendo em vista que seria necessária uma grande supressão

dessas árvores centenárias. Em suma, o projeto a ser instalado ameaçava destruir a

estética e o equilíbrio natural da região. Em 17 de setembro de 1970, o Tribunal de

Apelação da Califórnia rejeitou a ação por falta de interesse de agir, com o

argumento de que o Sierra Club não sofreria pessoalmente um prejuízo.65

Ao escrever o citado artigo, a argumentação utilizada por Christopher Stone

foi que não seria o Sierra Club a vítima a sofrer com a supressão das sequoias, mas,

sim, as próprias árvores que se pretendia defender. O citado autor, brilhantemente

relacionou essa defesa com as categorias de seres humanos que, até então, não

63

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo. Lugano Editora, 2004. 64

STONE, Christopher D. Should trees have standing? 3ª ed., New York: Oxford University Press, 2010. 65

O resultado do recurso interposto foi de que, dos nove juízes, quatro julgaram contrário à tese defendida por

Christopher Stone; dois se abstiveram e três votaram a favor. Em suma, as árvores do Mineral King Valley

perderam o processo por apenas um voto.

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eram considerados como sujeitos de direitos, como os escravos, os negros, as

mulheres, os excepcionais e as crianças. Para sustentar sua defesa, levantou ainda

o seguinte questionamento: “e não está o universo jurídico povoado de sujeitos de

direito inanimados, incapazes de agirem juridicamente por si próprios, como as

sociedades comerciais, as associações e as coletividades públicas, as quais

reconhecemos a personalidade jurídica?”.

Lamenta-se que, ainda hoje, a preocupação vigente em relação à natureza é

justificativa puramente econômica, e não pelo fato de ser um dano ecológico que

vise à recuperação do status quo ante.

Segundo aponta Luc Ferry,66 a discussão e os debates teóricos acerca da

ecologia se estruturam em três correntes distintas e opostas no tocante às questões

inerentes na relação entre o homem e a natureza.

A primeira, parte da ideia de que, através da natureza, o homem tem que se

proteger. Essa corrente se baseia no pressuposto de que o meio ambiente não é

dotado de um valor intrínseco; leva em conta apenas o seu valor extrínseco, ou seja,

ao destruir o meio que o cerca, o homem coloca a sua própria existência em risco.

Essa posição é meramente humanista e até mesmo antropocêntrica, pois a natureza

é levada em consideração tão somente de modo indireto.

A segunda corrente avança na direção de um significado moral outorgado a

certo seres não humanos. Adota o princípio utilitarista, segundo o qual é preciso

buscar não somente o interesse dos homens, mas de maneira geral, diminuir ao

máximo o sofrimento e bem-estar dos seres não humanos, aumentando, em

contrapartida, o máximo possível de bem-estar. Essa corrente encontra grande

defesa no movimento de libertação animal, em que todos os seres suscetíveis de

prazer e de dor devem ser tidos como sujeitos de direito e tratados como tal.

Verifica-se aqui a inclusão desses seres nas preocupações filosóficas morais.

A terceira reside na defesa do caso de Mineral King Valley, em busca de uma

proteção aos direitos das árvores, ou seja, da própria natureza na sua forma vegetal

e mineral.

O filósofo francês Michel Serres67 afirmou que, no século passado – uma

referência ao século XIX – o povo retomou seus direitos políticos, que foram

66

FERRY, Luc. Op. cit. p. 30.

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roubados por duas revoluções igualitárias. Do mesmo modo, os proletários

recuperaram os benefícios materiais e sociais do seu trabalho. Todavia, em relação

à nossa animalidade, sustenta que deve ser restabelecida a hierarquia para que

nunca mais se acabe. Nesse processo, começar-se-á uma nova história futura como

as do século passado em busca de equilíbrio e justiça, mas com novos parceiros, o

coletivo, o global e o mundo.

Nas palavras do citado autor, “a Terra fala-nos em termos de forças, de

ligações e de interações, e isso basta para celebrar um contrato. Cada um dos

parceiros em simbiose deve, por direito, a sua vida ao outro, sob pena de morte”.68

Assim, é preciso dar à natureza, em respeito, em beleza, em moderação, o

que dela recebemos, instalando a simbiose, ao contrário do parasitismo. Esse

contrato estabelecer-se-ia de forma tácita, por meio do qual a Terra nos fala em

termos de forças, vínculos e interações, o que bastaria para estabelecer-se um

contrato. Essas forças, esses vínculos e essas interações caberiam à ciência

estabelecê-los, à poesia cantá-los, ao amor mantê-los e à religião sustentá-los no

ser.

Ao comentar a obra de Serres, assim afirmou François Ost:

A verdadeira questão que coloca, desde logo, a obra de Michel Serres, ainda que em

filigrana, do tema do contrato natural, é a do governo dos homens pela ciência; ou,

melhor ainda, do confronto necessário entre garantias jurídicas (prudência, contrato,

justiça, equilíbrio das prestações) e saber científico. O jurídico conseguiu, até aqui,

pacificar as relações entre os homens; é o papel do contrato social. A ciência, em

contrapartida, nunca perdeu o mundo; o contrato sábio ou contrato científico sobre o qual

se baseia – dá razão – das coisas do mundo. A questão, hoje, é de sobrepor os dois

contratos: de reintegrar o interesse do mundo no comércio dos homens.69

O mundo natural merece uma proteção por aquilo que representa em si

mesmo e não porque tão somente poderá assegurar uma melhor qualidade de vida

ao homem, ou o bem-estar e a saúde humana.

67

SERRES, Michel. O Contrato Natural. Serafim Ferreira (trad.). Lisboa: Instituto Piaget, 1990, p. 68-69. 68

SERRES, Michel. Op. cit. p. 68-69. 69

OST, François. A natureza à margem da lei. A ecologia à prova do direito. Joana Chaves (trad.). Lisboa:

Instituto Piaget, 1995, p. 196.

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Não se propõe aqui, evidentemente, “congelar” a utilização dos recursos

naturais existentes, necessários e até mesmo imprescindíveis às atividades

humanas e a própria existência do homem na Terra.

Ao tratarmos do tema “natureza”, é muito fácil colocar a paixão e a emoção

em detrimento da razão. Não se põe em discussão a questão se a vida de um inseto

ou de uma só árvore vale o mesmo do que uma vida humana. O que se pretende

discutir é algo mais aprofundado, de cunho puramente conceitual, no que se refere

ao respeito à vida. Dessa forma, a pergunta essencial para o tema é: a natureza

como um todo é sujeito de direitos ou é somente objeto de direitos?70

Como já exposto, o comportamento do homem na Terra sempre se pautou

por um enfoque antropocêntrico, por meio do qual todos os seres que nela habitam,

de certa forma, estão aqui para uma melhor garantia dos direitos tidos como

inerentes apenas à vida humana.

Ocorre que a cultura convencional que criou tais pressupostos já não está

prevalecendo nos dias atuais, pois uma coisa é certa e não se discute: a vida do

homem depende necessariamente da natureza e não o contrário. Se a espécie

humana fosse extinta atualmente, a natureza não humana certamente se recomporia

e atingiria um certo equilíbrio e a vida no globo estaria estabilizada.

A natureza, na visão constitucional, é um mero objeto de direitos em prol dos

interesses do homem.

Os documentos das duas Conferências Mundiais para a defesa do meio

ambiente, a Declaração de Estocolmo em 1972 e a Declaração do Rio de Janeiro

em 1992, são explícitos ao assegurar que a preservação ambiental é importante

para uma melhor qualidade de vida humana ou, até mesmo, para a proteção da vida

70

Erika Bechara, em seus estudos sobre os aspectos da proteção da fauna, faz uma pergunta extremamente

pertinente e que muito se assemelha ao tema ora tratado. Assim coloca referida autora: “Por mais que o

reconhecimento dos direitos da natureza afigure-se atitude das mais nobres e das menos reacionárias, nós,

cientistas do direito, antes de nos posicionarmos, devemos nos ater principalmente ao tratamento que o

ordenamento jurídico dispensa aos entes naturais, i.e., qual a vertente adotada pelo sistema legal com relação à

proteção do meio ambiente: a natureza é sujeito de direitos e obrigações ou é objeto de direitos, fazendo, porém,

jus à proteção constitucional e legal na exata medida em que preserva a vida humana?

Ficamos com a segunda colocação.

Por mais que esta visão tenha uma aparência egoísta, somos obrigados a reconhecer que o nosso ordenamento

jurídico não confere direitos à natureza, aos bens ambientais. São eles, dessa forma, tratados como objetos de

direitos, não como sujeitos. São objetos que atendem a uma gama de interesses dos sujeitos – os seres humanos.

Sendo assim, a preservação da natureza não poderá prevalecer CONTRA os interesses da humanidade, ainda

que possa prevalecer contra os interesses particulares de alguns grupos ou de algumas pessoas”. (BECHARA,

Erika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 72-73).

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humana. Novamente prevalece o caráter antropocêntrico, principalmente na Agenda

21 que consagrou o uso da nomenclatura desenvolvimento sustentável.

Albert Schweitzer, no distante ano de 1936, publicou o artigo The Ethics of

Reverence of Life, em que preconizou a ética do respeito a todas as manifestações

de vida, questionando a visão soberana e egoísta autodeterminada pelo ser humano

frente à natureza. Schweitzer atribuiu um valor inerente a todos os indivíduos vivos,

remetendo a uma visão sistêmica, cujo universalismo do planeta resultava da

harmonia entre as distintas formas de vida.

Outro grande pensador que incluiu os animais foi José Lutzenberger,71 que

dedicou uma vida inteira a proclamar a importância de uma visão sistêmica que

integre o homem com a natureza. Ressaltou que o planeta é um sistema vivo como

um organismo, em que tudo está conectado e interagindo entre si, que tem sua

própria biogefisiologia e homeostase, ou seja, um equilíbrio autocontrolado. Nesse

sistema vivo, cada espécie é importante e insubstituível, e seu desaparecimento

debilita o organismo como um todo.

Todas essas considerações e análises deixaram claro que o ser humano é

apenas uma parte de um todo que envolve uma interdependência de diferentes

sistemas vivos que, por sua vez, compõem um complexo e mais abrangente

sistema, de acordo com os ensinamentos de Maria Mocellin Raymundo.72

71

José Antônio Lutzenberger foi agrônomo e um ecologista brasileiro, tendo participado ativamente na luta pela

conservação e preservação ambiental. 72

RAYMUNDO, Marcia Mocellin. História da ética animal. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos;

BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na Pesquisa e no

Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 44.

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2. A PROTEÇÃO DOS ANIMAIS NO DIREITO ESTRANGEIRO

2.1 Declaração Universal dos Direitos dos Animais

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi um grande feito em prol

da vida e da integridade dos animais, tendo inúmeros países como signatários,

inclusive o Brasil.73 Essa declaração foi proclamada pela Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, em Bruxelas, em 27 de

janeiro de 1978. Tal documento adotou uma nova filosofia de pensamento sobre os

direitos dos animais, reconheceu o valor da vida e propôs um estilo de conduta

humana condizente com a dignidade e o merecido e devido respeito aos animais.74

A Declaração, incluindo os “considerando”, possui os seguintes artigos:

“Preâmbulo:

Considerando que todo o animal possui direitos;

Considerando que o desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e

continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza;

Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das

outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no

mundo;

Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a

perpetrar outros;

73

Tratado Internacional é todo acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público e

destinado a produzir efeitos jurídicos. A Convenção de Viena/69 sobre o Direito dos Tratados conceitua-o como:

“um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste

de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação

específica” (art. 2º, I, alínea „a‟). No campo do Direito Internacional Público, os tratados são sinônimos de

Declaração.

Todavia, a declaração, historicamente não é considerada um tratado. Tradicionalmente, quando se dá conotação

de declaração a um texto, pretende-se diferenciá-lo de um tratado. A declaração era um substitutivo de uma

convenção, sem ter caráter obrigatório. Era uma declaração de princípios. A Convenção de Viena/69, art. 2º, as

unificou, dispondo que, independentemente do termo, palavra ou nomenclatura, tratado é todo acordo formal,

escrito, celebrado entre Estados e/ou organizações internacionais.

Em suma, consoante afirma Paulo Affonso Leme Machado: “as declarações internacionais, ainda que oriundas

das Nações Unidas, não são transpostas automaticamente para o Direito interno dos países, pois não passam

pelo procedimento de ratificação perante o Poder Legislativo. Diferentemente, as convenções ou tratados

passam a ser obrigatórios no Direito interno após sua ratificação e entrada em vigor” (MACHADO. Paulo

Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 77-78). 74

LEVAI, Laerte Fernando. Direitos dos animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004, p.47.

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Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos

homens pelo seu semelhante;

Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a

respeitar e a amar os animais,

Proclama-se o seguinte

Artigo 1º-

Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.

Artigo 2º-

1. Todo o animal tem o direito a ser respeitado.

2. O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los

violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais.

3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.

Artigo 3º-

1. Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis.

2. Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e

de modo a não provocar-lhe angústia.

Artigo 4º-

1. Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu

próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir.

2. Toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este

direito.

Artigo 5º-

1. Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente

do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de

liberdade que são próprias da sua espécie.

2. Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem

com fins mercantis é contrária a este direito.

Artigo 6º-

1. Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a uma duração

de vida conforme a sua longevidade natural.

2. O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.

Artigo 7º-

Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e de

intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso.

Artigo 8º-

1. A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é

incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica,

científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação.

2. As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.

Artigo 9º-

Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado,

transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor.

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43

Artigo 10-

1. Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem.

2. As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a

dignidade do animal.

Artigo 11-

Todo o ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio, isto é um

crime contra a vida.

Artigo 12-

1. Todo o ato que implique a morte de grande um número de animais selvagens é um

genocídio, isto é, um crime contra a espécie.

2. A poluição e a destruição do ambiente natural conduzem ao genocídio.

Artigo 13-

1. O animal morto deve de ser tratado com respeito.

2. As cenas de violência de que os animais são vítimas devem de ser interditas no cinema

e na televisão, salvo se elas tiverem por fim demonstrar um atentado aos direitos do

animal.

Artigo 14-

1. Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar representados a

nível governamental.

2. Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do homem.75

Em suma, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais considera que

cada animal tem direitos e que o desconhecimento ou o desprezo desses direitos

têm levado, e continuam a levar, o homem a cometer crimes contra a natureza e

contra os animais.

Este texto de caráter universal não tem força de lei, pois não é um documento

internacional ratificado pelo Poder Legislativo brasileiro. Como afirma Laerte

Fernando Levai: “ele não possui forma de tratado e tampouco estabelece sanções

àqueles que o infringirem, faltando-lhe poder coercitivo. Subsiste, todavia, como uma

carta de princípios, de natureza moral, fonte indireta para a aplicação da lei”.

Antes da criação desse relevante documento para a proteção animal, em

1964 – como visto em páginas anteriores – havia sido formulada a primeira versão

da Declaração de Helsinque, a qual apenas mencionava o uso de animais em

pesquisas científicas como pré-requisito para a realização de pesquisa clínica. Em

decorrência dos protestos contra o uso de animais em experimentos científicos, em

1975 foi formulada a segunda Declaração de Helsinque, tendo como recomendação

75

Disponível em: http://www.apasfa.org/leis/declaracao.shtml. Acessado em 15 de janeiro de 2011.

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44

um cuidado especial com pesquisas que possam afetar o meio ambiente, além de

estabelecer o bem-estar desses animais.

Atualmente, diversos países possuem uma legislação específica para o trato

com os animais em experimentação. Todavia, para os países onde essa legislação

inexiste, o Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas (Council

for International Organizations of Medical Sciences – CIOMS) publicou em 1985 os

Princípios Internacionais para a Pesquisa Biomédica Envolvendo Animais

(International Guiding Principles for Biomedical Research Involving Animals).

O objetivo do CIOMS, ao desenvolver esses princípios, é fornecer,

especialmente aos países que não possuam uma legislação específica sobre a

experimentação animal, uma base mínima para que possam desenvolver seus

mecanismos de controle, seja por meio voluntário, seja mediante uma legislação,

através dos seguintes objetivos: 1) avaliar os projetos e autorizar sua realização,

incluindo a avaliação dos propósitos da pesquisa e dos níveis de dor e estresse nos

animais; 2) inspecionar as condições e procedimentos nos experimentos em

animais; 3) assegurar padrões „humanitários‟ na criação e no trato dos animais; e

4) assegurar visibilidade pública. Recentemente, tem sido possível observar também

que as regulamentações visam forçar o uso de alternativas, quando elas existem.76

A esse respeito, a título de exemplificação, serão citadas legislações de

diferentes países acerca da questão envolvendo a proteção animal, seja em relação

ao bem estar animal, seja na sua utilização em experimentos científicos. Cumpre

observar que a consulta das legislações a seguir – em sua maior parte – foi possível

pela rede mundial de computadores.77

2.2 União Europeia

A União Europeia é uma união supranacional de caráter político, econômico e

social de vinte e sete países, incluindo, praticamente, todos os países europeus.

76

PAIXÃO, Rita Leal; SCHRAMM, Fermin Roland. Experimentação animal razões e emoções para uma ética.

Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 52. 77

Disponível em: http://animallaw.info/. Acessado em 19 de janeiro de 2011.

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45

Noruega, Suíça, Islândia e Liechtenstein são economicamente afiliados à União

Europeia, mas, atualmente, não são membros formais.

Essa entidade foi constituída em 1992 com uma série de objetivos políticos

em mente. As primeiras alianças europeias que deram ensejo à atual União

Europeia foram formadas na esteira da Segunda Guerra Mundial não só para

facilitar o comércio entre os países europeus, mas também para garantir a paz entre

eles. Entretanto, a União Europeia de hoje foi estabelecida principalmente por

diferentes razões. De acordo com o tratado de fundação, seu objetivo foi promover o

progresso econômico e social, afirmar a identidade europeia no cenário internacional

e proteger os direitos dos cidadãos que dela fazem parte, entre outros interesses.

Na União Europeia existem três tipos principais de leis e também três

procedimentos para aprová-las. Quanto aos tipos, existem regras que se tornam leis

em todos os Estados-membros logo que são aprovadas, sendo substituídas todas as

leis nacionais anteriores existentes. Existem as diretivas, que definem um resultado

que todos os países precisam alcançar, mas lhes é dado a liberdade de descobrir

como chegar até ele. Existem ainda as decisões, que são estreitos atos legais

aplicáveis a indivíduos específicos.

Na União Europeia, os animais de companhia são protegidos pela Convenção

Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia. O seu princípio básico afirma

que nenhuma pessoa deve proporcionar a um animal de estimação dor, sofrimento

ou angústia desnecessária. Além disso, prescreve que ninguém deve abandonar um

animal de estimação.

Animais de criação têm o respaldo de vários instrumentos de proteção. São

eles: A Convenção Europeia para a Proteção dos Animais nas Explorações de

Criação, a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais em Transporte

Internacional e a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais para Abate. São

tratados que servem de base para uma série de leis aprovadas pela União Europeia

e foram elaboradas para proteger o bem-estar dos animais de criação com o tempo

de abate. De igual modo, sancionou várias leis que proíbem e eliminam as práticas

de criação que são comuns nos Estados Unidos. Essas práticas incluem baterias de

gaiolas para poedeiras, celas de criação de vitelos e celas de gestação para porcas

gestantes.

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46

Além disso, está havendo ainda um significativo progresso no tocante à

legislação relativa ao transporte internacional de animais. Se aprovada, serão

necessários repouso, alimentação e água a todas as espécies de animal

transportado após nove horas de transporte. Esse período de tempo é muito menor

do que o permitido na legislação interestadual americana que estabelece os

mesmos cuidados a cada vinte e oito/trinta e seis horas. As etapas progressivas

tomadas pela União Europeia têm melhorado a promoção do bem-estar animal e

estão liderando o caminho para os mesmos procedimentos em todo o mundo. .

Porém, é questionável a forma de engorda de gansos na França que “injeta”,

compulsoriamente, alimento goela abaixo para dotá-los de esteatose hepática grave

e, dessa forma, atender uma demanda gastronômica para a produção de foie gras.

Em relação à experimentação animal, pode-se destacar a Diretiva

86/609/CEE, de 24 de Novembro de 1986, alterada pela Diretiva 2003/65/CE, de 22

de julho de 2003. São diretivas que se aproximam das disposições legislativas,

regulamentares e administrativas dos Estados-membros, no que dizem respeito à

proteção dos animais utilizados para fins de experimentação e para outros fins

científicos.

A Decisão do Conselho 1999/575/CE, de 23 de março de 1998, é relativa à

celebração da Convenção Europeia para a proteção dos animais vertebrados

utilizados para fins experimentais e outros fins científicos. Nestes termos:

A Comunidade apoia todas as ações cujo objetivo principal é o bem-estar dos animais

utilizados para fins experimentais. Por esta razão, a Comunidade irá intensificar os seus

esforços para desenvolver a substituir os métodos científicos, a fim de cumprir o seu

objetivo de reduzir o número de animais utilizados para fins experimentais.

Outra Decisão do Conselho 2003/584/CE, de 22 de julho de 2003, está

relacionada com a celebração do Protocolo de Alteração da Convenção Europeia

para a proteção dos animais vertebrados utilizados para fins experimentais e outros

fins científicos, nos seguintes termos:

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47

O Protocolo estabelece um procedimento simplificado para a alteração dos apêndices

técnicos à Convenção que lhe permita refletir os últimos desenvolvimentos científicos e

técnicos e os resultados da investigação nos domínios abrangidos.

A Recomendação da Comissão 2007/526/CE, de 18 de junho de 2007, dispõe

sobre as orientações para a acomodação e tratamento dos animais utilizados para

fins experimentais e outros fins científicos.

Em 2009, a União Europeia introduziu uma legislação para eliminar

progressivamente os testes de cosméticos em animais em toda a Europa, conforme

a Diretiva 2003/15/EC, que alterou a Diretiva 76/768/EEC. Essa lei também proibia a

venda de cosméticos que tivessem sido testados em animais, não importando onde

eles eram produzidos. A proibição total de cosméticos testados em animais entrará

em vigor na Europa em março de 2013. Essa postura foi prevista para provocar

importante efeito sobre os fabricantes uma vez que terão de cessar os testes em

animais para continuar a vender seus produtos. Todavia, foi formada uma comissão

para discutir um possível adiamento do prazo estipulado.78

2.3 Inglaterra

A Inglaterra é considerada o país pioneiro na questão da proteção animal. No

dia 3 de abril de 1800, um membro do parlamento, Sir William Pulteney, introduziu

um projeto de lei na Câmara dos Comuns (House of Commons) para proibir o

confronto de touros com cachorros (bull-baiting).79 Essa proposta legislativa foi

hostilizada perante o parlamento, sofrendo uma derrota curiosa à época: 43 votos a

78

Disponível em:

http://www.hsi.org/world/europe/news/releases/2010/03/animal_tested_ban_delayed_032610.html#3. Acessado

em 20 de agosto de 2011. 79

O bull-baiting era considerado um passatempo que foi introduzido pela realeza e pela aristocracia inglesa. No

final do século XVIII era associado às camadas mais pobres da sociedade. Esse “passatempo” era realizado da

seguinte maneira: um touro ficava amarrado em um pequeno espaço, com mobilidade aproximada de dez metros,

no qual soltavam cachorros treinados para abatê-lo. Como método preparatório para o combate, era soprado

pimenta em seu nariz para que a irritação agitasse o touro para a batalha. Antes de sofrerem uma transformação

genética, o buldogue (bulldog) e o bull terrier eram utilizados nessa prática cruel.

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48

41. Posteriormente, em 1802, uma nova tentativa do mesmo projeto de lei fracassou

mais uma vez.80

Em 1809, Thomas Erskine propôs um projeto de lei para a Câmara dos

Lordes (House of Lords) para prevenir a crueldade com os animais, comumente

praticadas. Sua argumentação baseava-se na reinterpretação do significado do

termo bíblico “dominação” em relação aos animais. Afirmava que os homens tinham

um dever moral para com eles, pois se fosse verificado quaisquer sentimentos de

gratificação e felicidade no animal, como a sensibilidade, a dor e o prazer, eles não

serviriam exclusivamente aos propósitos humanos. Erskine afirmava que os animais

foram criados para nosso uso, mas não para o nosso abuso. Esse projeto de lei foi

aprovado na Câmara dos Lordes apenas para as “bestas de cargas”, mas foi

rejeitado na Câmara dos Comuns por 37 votos a 27.81

Quase dez anos depois dos projetos de leis visando um certo benefício

animal, Richard Martin, em 1821, juntamente com seus dois assistentes, Thomas

Erskine e John Lawrence, apresentou um projeto de lei contra maus-tratos em

cavalos e em outros animais. Essa lei foi aprovada pela Câmara dos Comuns por 48

votos a 16, mas foi rejeitada na Câmara dos Lordes. No ano seguinte, no dia 24 de

maio de 1822, Richard Martin apresentou novamente esse projeto de lei, tendo sido

aprovado em ambos os parlamentos no dia 21 de junho de 1822.82

A lei introduzida por Richard Martin, Lei Britânica Contra Crueldades (British

Anticruelty Act), também conhecida como Lei de Martin (Martin Act), tornava ilegal o

ato de maltratar a esmo determinados animais domésticos (cavalo, égua, mula,

burro, boi, vaca, novilho e ovelhas), propriedade de uma ou mais pessoas. Ao que

consta, essa é a primeira lei que pune a crueldade contra os animais.

Em 1823 Martin propôs um novo projeto de lei para proibir o confronto de

touros (bull-baiting) e a rinha de cães (dog-fighting). Em 1824, ele tentou estender os

efeitos da Lei Britânica Contra Crueldades (British Anticruelty Act) para os cachorros,

80

RADFORD, Mike. Animal welfare law in Britain. Regulation and responsibility. Oxford: Oxford University

Press, 2001, p. 33-35. 81

RADFORD, Mike. Op. cit. p. 35-37. 82

RADFORD, Mike. Op. cit. p. 38-39.

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49

gatos, macacos e outros animais, bem como o confronte de ursos (bear-baiting) e

outros “esportes” cruéis com animais. Nenhum desses projetos foi aprovado.83

Nesse período surgiram as primeiras sociedades protetoras dos animais. A

pioneira delas foi criada em 1824, denominada Sociedade para a Prevenção da

Crueldade Contra os Animais (Society for the Prevention of Cruelty to Animals), com

o propósito de assegurar a mitigação do sofrimento animal e a promoção e

expansão da prática humanitária para os animais de classes inferiores. Em 1835,

essa sociedade recebeu membros da realeza, como a princesa Victoria, antes de

subir ao trono. Com a sua sucessão ao trono em 1837, a rainha Victoria renovou seu

patrocínio e, em 1840, essa sociedade recebeu a denominação de Sociedade Real

para a Prevenção da Crueldade Contra os Animais (Royal Society for the Prevention

of Cruelty to Animals – RSPCA). Com o apoio da rainha, a proteção da causa animal

ganhou além da posição social, a sua legitimidade. Essa sociedade existe até os

dias de hoje e tem como tarefa resgatar animais de perigo e a investigação de casos

de denúncia de crueldade para com eles.

No âmbito legal, a primeira lei a regulamentar o uso de animais em pesquisas

foi proposta no Reino Unido em 1876, intitulada Lei de Crueldade Britânica para os

Animais (British Cruelty to Animal Act). Essa lei regulamentava o uso de animais em

experimentação científica, preconizando reconsiderar as necessidades da ciência

com as necessidades humanitárias dos animais, impedindo, na medida do possível,

a dor e levantando, ainda, a questão da relevância da experimentação com animais.

Em 1911, a Inglaterra saiu à frente dos demais países e introduziu a Lei de

Proteção aos Animais (Protection Animal Act), que visava proteger os animais contra

os atos humanos, tais como bater, chutar, maltratar, sobrecarregar, torturar,

enfurecer ou aterrorizar quaisquer animais domésticos ou de cativeiro ou,

injustificadamente, fazer ou deixar de fazer algo que causasse sofrimento

desnecessário.

Posteriormente, sobreveio a Lei de Desempenho Animal (Performing Animals

(Regulation) Act), de 1925, que exigia que qualquer pessoa que realizasse a

exposição ou o treinamento e o desempenho de qualquer animal vertebrado fosse

registrado junto a uma autoridade local. A lei dava poderes às autoridades locais

83

RADFORD, Mike. Op. cit. p. 39.

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50

para proibir o treinamento ou a exibição do animal que fosse acompanhado de

alguma crueldade.

Em 1951 foi promulgada a Lei de Animais de Estimação (The Pet Animals

Act), que instituiu o sistema de licenciamento para lojas de animais no Reino Unido.

Essa lei estabeleceu algumas condições para que as autoridades locais pudessem

ser levadas em consideração na hora de determinar a concessão de uma licença de

pet shop. Para determinar se devia ou não conceder uma licença, essas autoridades

podiam investigar os candidatos e confirmar que os animais seriam mantidos em um

ambiente sanitário e físico adequado. Deviam certificar-se também que seriam

alimentados regularmente e que não seriam vendidos antes que atingissem uma

idade adequada, entre outros fatores. Essa lei proibia a venda de animais como, por

exemplo, animais de estimação, em qualquer lugar público, inclusive na rua ou em

uma barraca ou carrinho de mão em um mercado. Em 1983, ela foi alterada.

Em 1952 foi proibida a rinha de galos, intitulada como Lei de Luta de Galo

(Cock Fighting Act). No ano de 1960 foi promulgada uma Lei de Abandono de

Animais (Abandonment of Animals Act) e, em 1961, três organizações

antivivisseccionistas britânicas, a União Britânica para a Abolição da Vivissecção

(British Union for the Abolition of Vivisection), a Sociedade Nacional

Antivivissecionista (National Antivivisection Society) e a Sociedade Escocesa para a

Prevenção da Vivissecção (Scottish Society for the Prevention of Vivisection)

fundaram uma companhia, a Lawson Tait Trust, que tem como finalidade estimular e

financiar os pesquisadores que não utilizem animais em suas pesquisas.

Em 1969 foi criado o Fundo para a Substituição de Animais em Experimentos

Médicos (Fund for the Replacement for Animals in Medical Experiments – FRAME).

Muito embora a legislação britânica possuísse desde 1876 a Lei de Crueldade

Britânica (British Cruelty to Animal Act), somente em 1986 foi promulgada a principal

lei que controla o uso de animais nos experimentos científicos, a Lei de

Procedimentos Científicos para os Animais (Animals Scientific Procedures Act),84

que prevê a fiscalização de biotérios e o acompanhamento rigoroso das pesquisas

84

Disponível em: http://www.homeoffice.gov.uk/science-research/animal-research/. Acessado em 9 de fevereiro

de 2011.

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51

com animais. Os princípios dessa regulamentação foram resumidos por Edna

Cardozo Dias,85 a seguir:

É conceituado como animal protegido todo ser vivo vertebrado que não seja o

homem. Qualquer vertebrado, em sua forma fetal, larval ou embrionária, é um

animal protegido, desde o estágio de seu desenvolvimento no qual (no caso de

mamífero, ave ou réptil) metade do período de gestação ou incubação das

espécies relevantes for ultrapassado, ou em qualquer outro caso, quando ele se

torna capaz de se alimentar independentemente;

O processo legal para experimento é definido como a prática científica aplicada a

um animal protegido que possa ter o efeito de causar dor, sofrimento, tristeza ou

lesão duradoura;

O controle sobre os experimentos é exercido mediante a obrigatoriedade de uma

licença pessoal e de outra para o projeto. A licença pessoal precisa ser obtida pelo

cientista a fim de o habilitar para os experimentos autorizados. A licença será

dada sob condição de o experimentador reduzir ao mínimo a dor do animal, assim

como seu desconforto e aflição, e de, no caso de sacrifício, que esse seja

realizado por métodos humanitários. No requerimento deve ser especificado o

local do experimento e a natureza do trabalho;

A licença de projetos é dada para projetos específicos, em locais específicos, e

que só possam ser desenvolvidos pelas pessoas que sejam portadoras de licença

válida para um ou mais experimentos. O local de experimento precisa possuir um

certificado do Secretário de Estado. Essa licença estabelece que só devem ser

usados no projeto animais provenientes de criadouros especializados. Cada

animal deve ter uma ficha especificando sua origem, destino e outros dados;

Os animais usados em experimentos terão, pois, de ser criados para tal fim, em

estabelecimento autorizado e certificado pelo Secretário de Estado. Entretanto,

sabe-se que são intensos na Europa o contrabando de animais e o furto de animais

que possuem donos para venda aos laboratórios. Outros animais que acabam nos

laboratórios são os cães greyhounds, usados para corrida, e os animais recolhidos

pela carrocinha;

Outra regra é que um animal que sofreu experimentação não poderá ser

submetido a outro experimento, exceto com ordem do Secretário de Estado. O

85

DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 83-84.

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animal que esteja em estado de sofrimento após a experimentação deve ser

humanitariamente sacrificado. Ficam proibidas a vivissecção em público e sua

exibição em vídeo ou televisão; e

Os experimentos são inspecionados por um Comitê. Pelo menos dois terços de

seus membros devem possuir qualificação médica ou veterinária e, pelo menos,

um membro deve ser advogado. A metade dos membros deve ser de pessoas que

não tenham tido nos seis anos anteriores nenhuma licença para experimento ou

que não tenha violado o ato de proteção aos animais.

Consoante afirmado por Rita Leal Paixão e Fermim Roland Schramm:

Na antiga legislação, „experimento‟ não era claramente definido, e o enfoque era

basicamente destinado aos procedimentos cirúrgicos. Não havia controle sobre o

delineamento experimental, o número de animais ou as espécies utilizadas, nem sobre a

competência dos profissionais envolvidos. Tornou-se necessário um importante

„movimento‟ que impulsionasse a aprovação do Animals (Scientific Procedures) Act 1986

pelo Parlamento britânico. Esse movimento foi influenciado por três fatores em especial:

o „ano do bem-estar animal (1976-1977), o „Memorando Hougtho/Platt‟ é uma coligação

formada pela Associação Britânica de Veterinária (Bristish Veterinary Association –

BVA), pelo Comitê para a Reforma da Experimentação Animal (Committee for the

Reform of Animal Experimentation – CRAE) e pelo Fundo para Substituição dos Animais

em Experimentos Médicos (Fund for the Replacement of Animals in Medical Experiments

– FRAME) (HOLLANDS, 1995, P. 33). Em 1976 teve início a campanha do „Ano do

Bem Estar animal‟ em comemoração ao centenário do Cruelty to Animal Act 1876. Com

isso, a necessidade de se reformar a lei começou a ser discutida; criou-se um comitê com

essa finalidade, posteriormente ocorreu a coligação das entidades citadas e, em 1979, já

estavam estabelecidos os principais objetivos para a nova legislação: 1. Restringir a dor;

2. Redução substancial no número de animais utilizados; 3. Desenvolvimento e utilização

de métodos alternativos humanitários de pesquisa; e 4. Consideração pública (CRAE

Apud HOLLANDS, 1995, p. 34). A partir desses objetivos, a nova lei foi estabelecida em

1986.86

86

PAIXÃO, Rita Leal; SCHRAMM, Fermin Roland. Experimentação animal razões e emoções para um ética.

Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 50.

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53

Já em 1973, a Lei de Criação de Cães (Breeding of Dogs Act), instituiu um

regime de licenças das autoridades locais e a inspeção de estabelecimentos de

criação de cães.

Um aspecto importante da legislação do Reino Unido é a emissão de

“Códigos de Prática”, que acompanham muitas dessas leis. Os códigos

proporcionam uma orientação prática para as pessoas objetivando ajudá-las na

compreensão dos dispositivos das leis. A violação de um código de conduta não

tornava uma pessoa responsável, nos termos da legislação associada. Mesmo

assim, entretanto, a violação de um código de prática podia ser invocada para

estabelecer eventual responsabilidade. Em contrapartida, poderia também ser

invocada para refutar sua culpa ou para demonstrar a conformidade com uma lei.

Em 1988 ainda foi fundada a EuroNiche, que, em 2000, alterou sua

denominação para InterNiche. Trata-se de uma ampla rede formada por alunos,

professores e militantes pela causa dos direitos dos animais. Visa buscar

alternativas ao uso de animais nas ciências e na educação médica, biológica e

veterinária.

Em 1998 foi publicada uma lei com forte apoio e pressão popular, abolindo a

utilização de animais na fabricação de cosméticos. Portanto, desde 1998 a Inglaterra

aboliu o uso de animais em testes para essa famigerada indústria.

Mais recentemente, ou seja, em 2007, entrou em vigor a Lei de Bem-Estar

Animal (Animal Welfare Act), substituindo a Lei de Proteção Animal (Protection

Animal Act) de 1911. Com essa nova lei, pela primeira vez se exigiu um dever de

diligência para os proprietários de animais. Em outros termos, agora não são apenas

os donos de animais que são obrigados por lei a fornecer as necessidades básicas

dos animais de companhia, como comida e água, mas também veem especificados

os cuidados veterinários e um ambiente adequado a esses animais. Segundo a

antiga lei, um dever de cuidado tinha sido prescrito apenas para animais de criação.

Essa lei estabelece penas para a prática de certas atividades consideradas

prejudiciais ao bem-estar animal. As ações que constituem delitos incluem:

sofrimento desnecessário, mutilação, corte da cauda de um cão (com certas

exceções), administração de substâncias venenosas ou prejudiciais e, ainda,

engajar ou participar de combates entre animais.

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O documento também especifica que a pessoa responsável por um animal

deve garantir o seu bem-estar, inclusive certificando-se de um ambiente físico

adequado para que suas necessidades nutricionais sejam atendidas, e para que

seja protegido da dor, sofrimento, ferimentos e doenças. A lei tem ainda outras

peculiaridades: proíbe a venda de um animal para uma pessoa com idade inferior a

dezesseis anos; dá aos inspetores e aos policiais a autoridade para tomar medidas

para aliviar o sofrimento de um animal em perigo; permite a inspeção de certas

premissas e repressão de crimes diversos; e estabelece as condições em que um

animal pode ser morto. Por último, estabelece ainda penalidades para os crimes

delineados, incluindo penas de prisão e o pagamento de multas e despesas.

2.4 Estados Unidos da América

Em 1909, surgiu a primeira publicação norte-americana sobre aspectos éticos

da utilização de animais em experimentação, proposta pela Associação Médica

Americana.

A União Pan-Americana,87 em 1940, celebrou em Washington a promulgação

da Convenção Americana para Proteção da Flora e Fauna, fazendo com que os

Estados Unidos, muito mais tarde, editassem, em 1966, a Lei de Bem-Estar para

Animais de Laboratório (Laboratory Animal Welfare Act), atualmente denominada Lei

de Bem-Estar Animal (Welfare Animal Act).

Essa lei sofreu seis emendas, respectivamente nos anos de 1970, 1976,

1985, 1990, 2002 e 2007. Um dos seus aspectos mais importantes reside na criação

e na obrigação das Comissões Institucionais de Ética no Uso de Animais

(Institutional Animal Care and Use Committee – IACUC). Nela também se destaca a

participação de um membro externo para representar os interesses da comunidade

no tocante ao tratamento dos animais, ou seja, trata-se de um pioneirismo na

participação de membros da sociedade para integrar esta comissão.

Esse comitê teria três funções principais:

87

Antiga denominação do corpo permanente da OEA (Organização dos Estados Americanos). Essa

nomenclatura foi abandonada em 1970, passando a chamar-se Secretaria Geral da OEA.

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55

(a) a de revisar os projetos, avaliando os projetos de pesquisa ou protocolos experimentais

com a finalidade de verificar se há necessidade daquela pesquisa ou procedimento e se o

modelo animal proposto é o melhor modelo biológico, além de assegurar que os animais

não sofrerão dor ou estresse desnecessário; (b) a de inspecionar e vistoriar os locais onde

os animais são mantidos e os locais dos experimentos; e (c) a de proporcionar

atendimento veterinário aos animais sempre que possível.88

A Lei de Bem-Estar Animal (Welfare Animal Act) determina, dentre outras

exigências: o devido preparo e treinamento do pessoal de laboratório que terá

contato direto com o animal a ser utilizado; um ambiente adequado para primatas

não humanos; exercícios regulares para os animais; o uso de anestésicos e

analgésicos quando os experimentos propiciarem dor aos animais; e a presença

(participação) de um médico veterinário para a utilização dos animais em laboratório.

Todavia, esta lei é severamente criticada pelas associações protetoras dos

animais, porque excluiu os ratos e camundongos, além das aves e animais utilizados

na agricultura. Como basicamente na experimentação animal, em cerca de

aproximadamente 80% a 90% dos experimentos, são utilizados como cobaias os

ratos e camundongos, há uma forte pressão da sociedade protetora dos animais

para a inclusão de todos esses animais em seus propósitos.

Em 1967 foi criada a Unidos de Ação para Animais (United Action for Animals)

e, em 1973, instituída a Lei de Espécies Ameaçadas (Endangered Species Act); uma

lei sobre animais utilizados em pesquisa médica, a Lei de Extensão a Pesquisas

Médicas (Health Research Extension Act de 1985), uma Política de Cuidado

Humano e Uso de Animais de Laboratório (Public Health Service Policy on Humane

Care and Use of Laboratory Animals), de 1986. Acrescentem-se ainda as

regulamentações no âmbito do Departamento de Agricultura e dos Institutos

Nacionais de Saúde (National Institutes of Health).

Em 1980 surgiu a organização PETA – Pessoas pelo Tratamento Ético dos

Animais (People for the Ethical Treatment of Animals – PETA), com o objetivo de

88

ALMEIDA SILVA, Tagore Trajano de. Antivivisseccionismo e direito animal: em direção a uma nova ética

na pesquisa científica. LECEY, Eladio; CAPPELLI, Sílvia (coords.). Revista de Direito Ambiental, ano 14, nº

53. São Paulo: RT, 2009, p. 285-286.

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56

estabelecer e proteger o direito dos animais. Esta é uma das grandes organizações

não governamentais existentes, cujas medidas de ação podem consideradas um

tanto quanto radicais. Com efeito, essa entidade determina que os animais não

devam ser utilizados na alimentação e vestuário, bem como nos experimentos

científicos e entretenimento.

2.5 Alemanha

A Alemanha seguiu os passos da Inglaterra e, em 1838, editou normas gerais

de proteção animal, tendo promulgado a primeira lei sobre experimentos com

animais em 1883. Com o passar do tempo, foi sendo alterada nos anos de 1933, em

1972 e 1986, tendo sido ampliada cada vez mais o controle através da exigência de

licenças não só para cada projeto específico, como também para o cientista

responsável e para a instituição de pesquisa.

A principal legislação de proteção dos animais é o Lei de Bem-Estar Animal

(Animal Welfare Act), promulgada em 25 de maio de 1998. Ela reforça o princípio

utilitarista que prescreve a existência de uma boa razão para que algum dano possa

ser causado aos animais. Segundo suas justificativas legais, uma boa razão para

infligir algum dano aos animais é a proteção da vida e o bem-estar dos seres

humanos.

A Lei de Bem-Estar Animal (Animal Welfare Act) alemã estabelece que os

experimentos científicos podem ser realizados em animais vertebrados somente se

a dor, o sofrimento ou o dano que podem ser esperados para infligir aos animais de

laboratório sejam eticamente justificáveis, tendo em vista o propósito do

experimento. Experimentos prolongados e repetitivos que causem dores contínuas

ou sofrimento aos animais vertebrados somente podem ser feitos se os resultados

esperados forem de extrema importância para as necessidades fundamentais dos

seres humanos ou até mesmo dos próprios animais.

A legislação alemã proíbe também a utilização de animais nos experimentos

cuja finalidade seja o desenvolvimento ou o teste de armas ou o teste de munições e

de equipamentos associados.

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57

No ano de 2002, uma emenda constitucional incluiu no artigo 20 da

Constituição da Alemanha a palavra Und die Tiere, que significa “e os animais”,

passando a vigorar com a seguinte redação: “O Estado protege os fundamentos

naturais da vida e os animais”. Portanto, a proteção dos animais na Alemanha é uma

tarefa fundamental do Estado, sendo, a partir de então, um preceito constitucional.89

2.6 França

Tradicionalmente, o século XIX é considerado o marco do nascimento na

experimentação animal como um importante método científico. Um dos pioneiros

nas experimentações com animais foi François Magendie (1783-1855), que seguia a

linha de pensamento de René Descartes ao ignorar qualquer tipo de sofrimento

animal, uma vez que, de acordo com o cartesianismo, esses seres eram

considerados “máquinas”.

Seu sucessor, Claude Bernard (1813-1878), tido como um dos maiores

fisiologistas de todos os tempos, institucionalizou a vivissecção animal, fornecendo

as bases da pesquisa experimental moderna.

Nesse contexto histórico, um fato muito interessante envolveu esse famoso

fisiologista que defendia contundentemente a utilização de animais na

experimentação científica. Em meados de 1860, Claude Bernard utilizou o cachorro

de estimação de sua filha para ministrar uma de suas aulas. Em resposta a esse ato,

sua esposa, por não concordar com tal procedimento – a utilização de animais em

experimentação – rompeu os laços matrimoniais e, posteriormente, fundou em 1883

a primeira associação de defesa dos animais de laboratório, intitulada Liga

Antivivisseccionista Francesa (Ligue Antivivisectionniste Française), cujo primeiro

presidente foi o famoso escritor e poeta francês, Victor Hugo.90

89

Disponível em: http://animallaw.info/. Acessado em 19 de janeiro de 2011. 90

RAYMUNDO, Marcia Mocellin. História da Ética Animal. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos;

BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na Pesquisa e no

Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 51. E também PAIXÃO, Rita Leal;

SCHRAMM, Fermin Roland. Experimentação animal razões e emoções para um ética. Niterói: Editora da

Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 63.

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58

Seguindo a inovação e o avanço inglês no tocante aos direitos dos animais,

em 1845 foi criada a Sociedade para Proteção dos Animais e, em 1850, a França

adotou a Lei Grammont, que proibia os maus-tratos infligidos em públicos aos

animais domésticos.

Em relação à experimentação animal, o Decreto de 18 de outubro de 1987

(na redação dada pelo Decreto de 29 de maio de 2001), para efeitos da seção 654

do Código Penal e artigo 276 do Código Rural, completada por duas ordens de 19

de abril de 1988 – retomando as disposições da diretiva comunitária de 24 de

novembro de 1986 – regulara as condições de experimentos, a natureza

experimental, a origem e experiência de cuidar dos animais e o credenciamento de

instituições. O objetivo era limitar a finalidade de testar e reduzir, na medida do

possível, o sofrimento do animal (anestesia quando possível ou por eutanásia). A

experimentação deveria satisfazer o requisito da necessidade e da falta de

disponibilidade de métodos alternativos. Mas a lei não definiu os campos de limites,

por conseguinte, a necessidade de uma interpretação ampla pode ser aceita.

Em 2000, a França ratificou também a Convenção Europeia para a Proteção

dos Animais Vertebrados em 1986. Existe no país uma Comissão Nacional de Ética

para Ciências Biológicas e da Saúde e uma Comissão Nacional sobre a

Experimentação Animal.

2.7 Canadá91

O Canadá possui uma maneira diferenciada de controle de pesquisa animal,

sendo o único país do mundo a apresentar um sistema voluntário de autorregulação

na utilização de animais em pesquisas.

O responsável pelo sistema é o Conselho Canadense de Cuidados Animais

(Canadian Council on Animal Care – CACC), que estabelece os princípios a serem

observados no Guia para o Cuidado e Uso de Animais em Experimentos (Guide to

the Care and Use of Experimental Animals) e supervisiona a sua aplicação. O

91

Disponível em: http://www.ccac.ca/. Acessado em 23 de janeiro de 2011.

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programa do CACC envolve os animais vertebrados que são utilizados para fins de

pesquisa, ensino e testes, requerendo a presença de uma comissão institucional em

todos os locais onde ocorre a experimentação. Esse conselho reconhece que a

legislação pode fornecer os parâmetros de aceitabilidade dos estudos em animais,

mas acredita que a proteção real e efetiva advém da percepção e da sensibilidade

do pesquisador.92

O Conselho Canadense de Cuidados Animais (Canadian Council on Animal

Care – CACC) é um órgão autônomo e independente, criado em 1968 para

supervisionar no país o uso ético de animais na ciência. Esse órgão está registrado

como uma organização sem fins lucrativos e é financiada principalmente pelo

Instituto de Pesquisa em Saúde Canadense (Canadian Institutes of Health Research

– CIHR) e pelo Conselho de Ciências Naturais e Engenharia de Pesquisa do

Canadá (Natural Sciences and Engineering Research Council of Canada – NSERC).

Conta também com contribuições adicionais de departamentos federais baseados

na ciência e agências e instituições privadas que participam dos seus programas.

Esse colegiado atua como um órgão quase regulatório e estabelece normas

(os seus documentos de diretrizes e políticas) sobre o uso de animais na ciência,

aplicáveis em todo o Canadá. É responsável perante o público em geral e pela

divulgação de informações sobre o uso de animais na ciência. Além de documentos

e orientações políticas, o CCAC desenvolve dados estatísticos anuais sobre o

número de animais utilizados na ciência e produz a cada ano, um relatório para

divulgar informações para seus eleitores e para o público em geral.

Em novembro de 2010, o Comitê de Médicos para uma Medicina

Responsável (Physicians Committee for Responsible Medicine –PCRM), anunciou o

fim do uso de animais nos testes laboratoriais das universidades do Canadá. As

faculdades de medicina devem agora recorrer a métodos alternativos, como, por

exemplo, simuladores humanos.93

92

PAIXÃO, Rita Leal; SCHRAMM, Fermin Roland. Op. cit., p. 51-52. 93

Disponível em: http://www.anda.jor.br/2010/11/08/canada-declara-se-livre-da-experimentacao-animal-em-

faculdades/. Acessado em 13 de fevereiro de 2011.

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2.8 Holanda

Na Holanda, a lei de proteção animal data de 1977 e foi revisada em 1997.

O país possui um partido político que tem entre suas prioridades o bem-estar

animal e o tratamento respeitoso desses seres. O partido está representado na

Câmara dos Deputados, no Senado e nos Estados Provinciais. Ao que consta, é a

primeira agremiação político-partidária dedicada ao bem-estar animal que teve seus

candidatos eleitos para um parlamento nacional. Tal pioneirismo se aplica tanto na

Holanda quanto em qualquer outro lugar do mundo.

O Partido para os Animais (Party for the Animals) acredita que os animais

devem ter os direitos que eles merecem e que os seus interesses não devem mais

ser subordinados aos interesses econômicos.

Esse partido foi fundado em 2002 e, em novembro de 2006, elegeu para o

parlamento holandês dois, dos cento e cinquenta assentos na Câmara dos

Representantes da Holanda.

Em 2007, foram realizadas as eleições para os Estados Provinciais, sendo

que o Partido para os Animais elegeu nove lugares em oito províncias, garantindo

um dos setenta e cinco assentos no Senado.

Seu objetivo é criar uma sociedade onde os animais sejam tratados de uma

forma respeitosa. Com efeito, segundo afirmam, existem muitos problemas

associados à maneira como os animais são tratados. Na verdade, segundo afirmam,

os animais costumam não serem vistos como criaturas vivas, com uma alma, mas

como produtos que as pessoas julgam que possam ser usados e abusados como

bem entenderem, seja na indústria da pecuária, seja como cobaias em laboratórios,

seja como objeto de caça e pesca ou como uma fonte de entretenimento para os

visitantes de circos e zoológicos. O objetivo almejado por esse partido político é

instituir uma situação jurídica dos animais como parte da legislação holandesa.

No dia 28 de junho de 2011, o parlamento holandês aprovou por 116 votos a

favor e 30 contrários, uma lei que proíbe o sacrifício de animais em rituais religiosos,

apesar da oposição dos partidos cristãos e das organizações muçulmanas e

judaicas. O projeto de lei foi apresentado pelo Partido para os Animais (Party for the

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61

Animals) e suscitou inúmeras discussões acerca da liberdade religiosa na Holanda.

Segundo apontado por alguns especialistas no assunto, aproximadamente, dois

milhões de animais são sacrificados anualmente em rituais na Holanda.94

2.9 Austrália

Na Austrália, todos os estados possuem uma legislação referente à matéria

que envolve a crueldade com animais e, em alguns deles, houve uma atualização

recente e mais detalhada na abordagem da referida matéria.

Os atuais estatutos referentes à questão animal são: Lei de Prevenção da

Crueldade Contra os Animais (Prevention of Cruelty to Animals Act), promulgado em

1979, tendo sofrido algumas alterações no ano de 1985 e de 1986; a Lei de Bem-

Estar Animal (Animal Welfare Act), promulgada em 1992 e modificada em 1993, em

1999 e em 2002, bem como a Lei de Proteção e Cuidado Animal (Animal Care

Protection), promulgada em 2001.

Atualmente, o foco central está voltado para o Código Australiano de Boas

Práticas para o Cuidado e Uso de Animais para Fins Científicos (Australian Code of

Practice for the Care and Use of Animals for Scientific Purposes), promulgado pela

primeira vez em 1969, tendo sofrido sua última atualização em 2004.

O objetivo desse código é assegurar a ética e os cuidados humanos no uso

de animais para fins científicos. Os princípios nele estabelecidos têm o condão de

orientar os pesquisadores, os professores, as instituições, as Comissões de Ética

Animal e todas as pessoas envolvidas no cuidado e no uso de animais para aqueles

propósitos.

O código preceitua as diversas questões éticas que devem ser levadas em

consideração no que diz respeito à utilização de animais para fins científicos. Ele

abrange todos os aspectos do tratamento e da utilização com os animais para fins

científicos na medicina, na biologia, na agricultura, na veterinária e em outras

94

Disponível em:

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticia/HOLANDA+APROVA+LEI+QUE+PROIBE+SACRIFICIO+D

E+ANIMAIS+EM+RITUAIS_13102.shtml. Acessado em 29 de junho de 2011.

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ciências que envolvam animais, além da indústria e do ensino. Isso inclui o seu uso

em pesquisa, no ensino, nas pesquisas de campo; nos testes de produtos e em seus

diagnósticos, na produção de produtos biológicos e nos estudos ambientais.

Foram estabelecidos os princípios gerais para os cuidados com o uso de

animais, suas especificações e responsabilidades de pesquisadores, professores e

das instituições que forem utilizá-los. Esse Código trouxe ainda os detalhes dos

termos de referência, a composição e o funcionamento das Comissões de Ética

Animal. Ele também fornece diretrizes para a conduta humana das atividades

científicas e para a aquisição de animais e seus cuidados, incluindo as suas

necessidades ambientais.

O citado documento abrange todos os vertebrados vivos não humanos e

invertebrados de ordem superior. Investigadores e professores devem ter em conta

os conhecimentos emergentes e os valores éticos quando propuserem a utilização

de outras espécies animais não abrangidos por esse código. Os animais em fase

inicial de desenvolvimento, que estiverem em forma embrionária e que puderem

sentir dor e sofrimento, para que sejam utilizados, devem ter decisões quanto ao seu

bem-estar baseadas e fundamentadas em provas de seu desenvolvimento

neurobiológico. Como guia, também deve ser levado em conta o potencial para a

experiência da dor ou sofrimento quando os embriões, fetos e larvas tiverem

progredido além da meia gestação, ou do período de incubação das espécies

relevantes ou tornarem-se capazes de se alimentarem com independência.

Em suma, o Código Australiano de Boas Práticas para o Cuidado e Uso de

Animais para Fins Científicos (Australian Code of Practice for the Care and Use of

Animals for Scientific Purposes) enfatiza basicamente: (i) a responsabilidade dos

investigadores e professores e das instituições que utilizam animais para assegurar

que o seu uso é justificado, tendo em conta os benefícios científicos ou educacionais

e os potenciais efeitos sobre o bem-estar animal; (ii) que deve ser assegurado que o

bem-estar animal será sempre considerado; (iii) que o desenvolvimento e a

utilização de técnicas que substituam a utilização de animais em atividades

científicas e de ensino; (iv) que deve ser minimizado o número de animais utilizados

em projetos e deve ainda ser aperfeiçoados os métodos e procedimentos para evitar

a dor ou a angústia nos animais utilizados em pesquisas científicas e nas atividades

de ensino.

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2.10 Portugal

Em 1995 foi promulgada a Lei de Proteção aos Animais (Lei nº 92/1995), com

o objetivo de proteger o animal e estabelecer regras para o seu bem-estar. Essa

legislação proíbe todas as formas de violência injustificada contra os animais, como

infligir a morte, o sofrimento cruel e o sofrimento prolongado ou imputar graves

lesões a um animal.

No entanto, uma das maiores debilidades da lei portuguesa encontra-se na

inexistência de sanções legais por terem sido reservadas para uma lei específica

posterior. Em outras palavras, não existem sanções legais por violação das

disposições jurídicas até que uma lei específica seja definitivamente aprovada.

Em essência, Portugal aprovou no papel uma lei que prevê a proteção dos

animais, mas, na realidade, não há aplicação imediata. Alguns dos problemas

criados por essa situação são atenuados pelo empenho das associações de defesa

dos animais que movem os tribunais com diversas proposituras de ações. São

procedimentos que ajudam a aliviar alguns desses problemas.

Desde 2003, há uma proposta legislativa para introduzir a proteção dos

animais na Constituição da República de Portugal. Esse texto frisa que os animais

são seres sencientes e dotados de uma sensibilidade física e psíquica; afirma ainda

que são características que lhes permitem, à semelhança dos humanos, vivenciar a

dor e o prazer – sendo certo que, naturalmente, por todos os meios, procuram evitar

experiências dolorosas, a privação da vida e da liberdade como males que devem

ser evitados para com os animais.

O país considera que, atualmente, o respeito pelos animais é um valor moral

e social que se mostra bastante consensual nas sociedades humanas, impondo-se

com mais ou menos força, dependendo das circunstâncias históricas, sociais e

culturais de cada sociedade. Com esse entendimento, então, há uma proposta de

introdução da proteção dos animais na Constituição da República portuguesa.95

95

A proposta para a redação do artigo 73 da Constituição de Portugal prevê que:

“1. Os animais que sejam dotados de uma sensibilidade física e psíquica que lhes permita experienciar o

sofrimento são seres intrinsecamente merecedores de respeito e de proteção por parte de todas as pessoas e do

próprio Estado.

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Todavia, apesar de uma proposta na legislação portuguesa em relação a

proteção animal, ainda são permitidas as práticas cruéis das touradas nesse país.

Uma diferença com as touradas espanholas, reside em que o touro não é morto na

arena, além de possuir toureiros a cavalo.

2.11 Espanha

Ao tratarmos da questão animal na Espanha, automaticamente nos é

remetida a imagem das touradas nesse país. Ao longo dos séculos, as arenas foram

palco do confronto sempre desigual entre homem e animal. Segundo estimativas,

esse mercado movimenta mais de US$ 1 bilhão de dólares por ano e é fonte de

renda de muitas famílias espanholas. A partir de 2012, graças às constantes

manifestações de grupos em defesa dos animais, entrará em vigor uma lei proibindo

as touradas na Catalunha.96

Muito embora as touradas sejam consideradas por muitos espanhóis como

uma “arte” e, de fato, encontra-se enraizada na cultura desse país, não se pode

concordar com as afirmações de que os touros não sofrem maus-tratos ao serem

obrigados a “lutar” pela sobrevivência nas arenas. São evidentes os inúmeros maus-

tratos a que são infligidos para essa atividade extremamente arcaica e cruel.

As touradas podem ser resumidas da seguinte maneira:97

Em um espetáculo tradicional, há três toureiros e cada um deles tem que abater dois

touros. Para isso eles contam com uma equipe que vai minando a resistência do animal

2. É dever do Estado Português promover e assegurar o respeito pelos animais que possuam as características

indicadas no número anterior, tomando as necessárias medidas para protegê-los e preservar de todo o

sofrimento, aprisionamento ou morte não justificáveis.

3. Os animais que possuam as características indicadas no nº 1 deste artigo só poderão ser submetidos à

inflicção de sofrimento, ao aprisionamento ou à indução da morte nos casos em que tal se revele necessário e

seja realizado de acordo com legislação específica que regulará tais situações”. 96

Disponível em: http://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2011/02/touradas-movimentam-mais-de-us-1-

bilhao-por-ano-na-espanha.html. Acessado em 10 de maio de 2011. 97

Disponível em: http://vidaeestilo.terra.com.br/turismo/noticias/0,,OI3903034-EI18238,00-

Uma+tarde+para+mergulhar+na+tradicao+espanhola+das+touradas.html. Acessado em 20 de agosto de 2011.

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antes da entrada triunfal do protagonista. O show começa sempre com o toureiro mais

experiente.

A indumentária é um espetáculo à parte. Enquanto fazem movimentos de aquecimento

com os capotes - os panos vermelhos, de forro amarelo -, os toureiros reluzem com suas

roupas de seda colorida e os bordados em ouro.

O espetáculo começa ao som de uma banda que entoa músicas tradicionais enquanto os

profissionais se apresentam ao público, circulando pela arena sob aplausos e assobios.

O espaço da arena é então esvaziado. A furiosa entrada do primeiro touro é acompanhada

do silêncio da plateia. O ímpeto do animal faz com que os ajudantes do toureiro se

preocupem, em um primeiro instante, em cercá-lo. Para isso, recorrem com muita

frequência aos recuos de madeira que existem na parede da arena.

Uma vez delimitado o espaço ao redor do bicho, entram os picadores - os toureiros a

cavalo que espetam o animal com lanças. As estocadas fazem o touro perder sangue e a

força nos músculos. O choque dos chifres contra o cavalo é violento e chega a

desestabilizar o toureiro.

Com a saída dos picadores, o trabalho passa aos banderilleros. Eles devem enfiar varas

curtas com ponta de arpão (banderillas) nas costas do animal, perto do pescoço, uma

região cheia de terminações nervosas. A intenção é atiçar o touro para a batalha final,

além de continuar desestruturando sua resistência.

O trabalho dos banderilleros é acompanhado com o fervor do público mais fiel. A

performance é fascinante. Ao se lançar, sem proteção, em direção ao boi, os auxiliares do

toureiro têm que desenvolver uma técnica de flexibilidade do corpo. Com a mesma

agilidade, devem chegar muito perto do animal para fincar as varas e, logo em seguida, se

afastar correndo. Se acertarem as duas varas ao mesmo tempo são devidamente

aplaudidos, mas se errarem apenas uma delas os aplausos dão lugar às vaias. A ação

acontece três vezes.

A exigência do público aumenta com a entrada do toureiro principal, conhecido como

matador. Para a parte final, ele traz consigo um pano vermelho mais curto montado em

um bastonete de madeira; na outra mão ele segura uma espada.

A cada manobra mais arriscada - com o touro rente ao corpo ou um toureada feita de

joelhos, por exemplo - a plateia vibra com o tradicional “olé!”. Para finalizar o embate, o

matador distrai o cansado animal, deixando-o com a cabeça baixa. Um movimento

certeiro e a espada é fincada quase que inteira no prolongamento da coluna. O ideal é que

a investida seja feita apenas uma vez para que o animal caia morto segundos depois. Caso

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o toureiro não acerte de primeira, o público não hesita em vaiar novamente. A reação é a

mesma se o matador demorar demais para finalizar o confronto. Os mais exaltados

levantam e gritam “mata-o!”.

Com o animal morto e ensanguentado no chão, a plateia se divide: alguns aplaudem de

pé, outros se levantam para ir embora - neste caso, os turistas - e outros permanecem

boquiabertos.

O desempenho do matador é avaliado pelos lencinhos brancos que ele consegue angariar

do público. Se muitos começam a se chacoalhar após a apresentação, é sinal de

reconhecimento de uma grande performance. E quando mais da metade do público saúda

a apresentação desta forma, ele é premiado com a orelha do animal. Este tipo de

premiação é muito importante para a carreira de um matador. Quanto maior o número de

orelhas em seu currículo, maior o seu prestígio profissional.

Os seis touros sacrificados em cada espetáculo têm a mesma origem e todos são

preparados exclusivamente para o dia de sua morte. Eles são criados em cativeiro por

cerca de quatro anos, com dieta especial. Depois de mortos, a carne dos animais é

vendida a açougues. O touro morto deixa a arena arrastado por cavalos a galope enquanto

a banda toca mais uma música tradicional. Do animal, resta apenas um rastro de sangue

marcado na areia.

Verifica-se, portanto, que é uma atividade extremamente cruel e desigualdade

no embate entre toureiro e touro. Frisa-se ainda que o animal, antes de adentrar na

arena, sofre diversos maus-tratos com o seu “preparo” para esse fim. Esse

sofrimento pode ser assim resumido: o touro tem seus chifres cortados para perder

um pouco de sua orientação; sua visão é ofuscada com vaselina; são inseridas

agulhas nos órgãos genitais, além de sofrer com uma alimentação adequada e

ambiente insalubre.98

Atualmente, a proteção animal na Espanha é assegurada pela Lei nº 32/2007,

a qual estabeleceu a base para o regime de proteção dos animais e de infrações e

sanções para assegurar o cumprimento das regras relativas à proteção dos animais

em diferentes circunstâncias; isto é, exploração, transporte, teste e sacrifício.

98

DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 217. A questão

das touradas também poderá ser vista com maiores detalhes no item 4.3.8 desse trabalho.

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Desde dezembro de 2010, o código penal espanhol foi alterado, tipificando

como crime, os maus-tratos aos animais domésticos, mesmo sem agravante de

crueldade, imputando como pena que variam de três meses a um ano de prisão e

restrição de um ano a três anos para trabalhar em qualquer emprego relacionado

com animais.99

99

Disponível em: http://www.soama.org.br/cgi-bin/soama_noticias.pl?id=10409. Acessado em 15 de

agosto de 2011.

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3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE PROTEÇÃO ANIMAL

3.1 A Evolução da Proteção Animal na Legislação Brasileira

No Brasil, pela primeira vez, os animais foram abrangidos pela legislação por

meio do Decreto nº 16.590, de 10 de setembro de 1924, o qual proibia as diversões

públicas que lhes causassem sofrimento. Essa lei proibia as corridas de touros,

garraios e novilhos, e de galos e canários, dentre outras diversões que provocavam

sofrimento aos animais.

Uma década depois, o Decreto nº 24.645, de 10 de julho de1934, tipificava

trinta e uma figuras de maus-tratos aos animais. Seu grande marco foi conceder aos

animais uma nova interpretação de status, considerando-os como “sujeitos de

direitos”, na possibilidade de o Ministério Público assisti-los em juízo, na qualidade

de substituto legal.100

Em 1941, o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro tipificou a conduta da

prática de atos cruéis contra os animais por meio de seu artigo 64.101 Esse Decreto é

conhecido como lei das contravenções penais, o qual não revogou o Decreto-Lei

nº 24.654, de 10 de julho de1934, mas o complementou com preceitos da proteção

animal. Consoante afirmado por Edna Cardozo Dias:

Na época levantou-se uma polêmica em torno do fato de a Lei de Contravenções Penais

ter revogado o Decreto instituído por Getúlio. A jurisprudência firmou-se no sentido de

que „em síntese, os preceitos contidos no art. 64 compreendem na sua quase totalidade,

100

Esse decreto foi instituído durante a ditadura de Getúlio Vargas e permanece parcialmente em vigor, pois não

foi totalmente revogado pelo Decreto Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. 101

“Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:

Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis.

§ 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou

exposto ao publico, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.

§ 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com

crueldade, em exibição ou espetáculo público”.

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todas aquelas modalidades de crueldade contra animais contidas no art. 3º do Decreto

24.645/34‟.102

103

Posteriormente, vinte anos depois, o Decreto nº 50.620, de 18 de maio de

1961, proibiu expressamente a briga de galo. Todavia, no ano seguinte, foi editado

novo Decreto nº 1.233, de 22 de junho de 1962, que revogou o anterior, deixando de

existir qualquer proibição expressa quanto as brigas de galo. Muito se discutiu na

época acerca da revogação ou não também do Decreto nº 24.654, de 10 de julho de

1934, que considerava maus-tratos as brigas de galo, uma vez que ele fora instituído

com força de lei e, como cediço, uma lei não pode ser revogada por um decreto.

Em 1967, o Decreto nº 221, de 28 de fevereiro, mais conhecido como Código

de Pesca, tratou de cuidar dos animais aquáticos e de disciplinar a atividade de

pesca. Foi, posteriormente, alterado pela Lei nº 7.679, de 23 de novembro de 1988,

e revogado pela atual Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Naquele mesmo ano

de 1967, foi promulgada a Lei Federal nº 5.197, de 3 de janeiro, também conhecida

como Código de Caça, que considerou crimes as contravenções penais, tendo sido,

posteriormente, alterada pela Lei nº 7.653, de 12 de fevereiro de 1988. Esta última,

além de considerar a fauna silvestre como propriedade do Estado, aboliu a

concessão de fiança nos crimes cometidos contra os animais.

Em 1979 foi promulgada a Lei nº 6.638, de 8 de maio, que tratou das normas

práticas didático-científicas da vivissecção de animais. Essa lei preocupou-se com o

cadastramento de biotérios e centros de experimentação de demonstração com

animais vivos e com a autorização para o seu funcionamento por órgão competente.

Cuidou também de exigir a presença de um técnico capacitado durante a realização

da vivissecção, restringindo essa prática na pesquisa cientifica e no aprendizado

cirúrgico; porém, não se manifestou acerca dos princípios dos 3Rs: Substituição

(Replacement), Redução (Reduction) e Refinamento (Refinement),104 bem como as

comissões de ética no uso de animais em experimentação.

102

DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 155. 103

Nesse mesmo sentido: LEVAI, Laerte Fernando. Direitos dos animais. Campos do Jordão: Editora

Mantiqueira, 2004, p.30-31. 104

O princípio dos 3Rs foi divulgado em 1959 por W. M. S. Russel e R. L. Burch, que significam: Substituição

(replacement) de animais por métodos alternativos; Redução (reduction) do número de animais utilizados em

experimentos; e Refinamento (refinement) em orientação de métodos adequados para reduzir a dor e o

desconforto dos animais empregados em experimentos científicos.

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70

Todavia, como não houve qualquer regulamentação dessa lei, acabou não

sendo aplicada. Posteriormente, foi revogada pela intitulada Lei Arouca, a Lei

nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, que estabeleceu procedimentos para o uso

científico de animais, sendo regulamentada pelo Decreto nº 6.899, de 15 de julho de

2009, o qual dispõe sobre a utilização de animais em atividade de ensino, pesquisas

e outras experimentações. No entanto, essa lei aplica-se somente às espécies

animais do subfilo vertebrata, não abrangendo os demais grupos da escala

zoológica.105

No ano de 1981, foi promulgada a Lei nº 6.938, de 31 de agosto, que instituiu

a Política Nacional do Meio Ambiente. Tal diretriz incluiu a fauna como parte

integrante do meio ambiente, disciplinou a ação governamental e inseriu a

responsabilidade civil e administrativa pelo dano ambiental.

A Lei nº 7.173, de 14 de dezembro de 1983, dispõe sobre o estabelecimento e

o funcionamento de jardins zoológicos, instituindo o IBAMA como órgão competente

para sua concessão e fiscalização.

Dois anos depois, foi promulgada a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985,

dispondo sobre a proteção dos interesses difusos e, consequentemente, incluindo a

fauna no rol protetório, ao instituir a ação civil pública por danos ocasionados ao

meio ambiente.

A pesca de toda espécie de cetáceo foi proibida pela Lei nº 7.643, de 18 de

dezembro de 1987, também conhecida como Lei de Proteção à Baleia.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, os animais foram incluídos

no preceito constitucional, em seu artigo 225, dando proteção para uma sadia

qualidade de vida para as presentes e futuras gerações, imputando ainda a

responsabilidade penal e administrativa aos infratores que praticarem condutas

lesivas ou que ameaçarem a vida em todas as suas formas.

A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, também chamada de Lei dos

Crimes Ambientais, dispõe de sanções administrativas e penais contra atividades

lesivas ao meio ambiente, independentemente da responsabilidade civil. Seus

105

O filo chordata abrange animais adaptados para viver em água doce ou água salgada, na terra e no ar. São

divididos em protocordados, os cordados mais primitivos, destituídos de coluna vertebral e caixa craniana e os

eucordados, mais evoluídos, pois além de apresentarem coluna vertebral, têm crânio com encéfalo. O subfilo

vertebrata faz parte dos eucordados, compreendendo os peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos.

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artigos de 29 a 37 preveem os crimes dolosos e culposos contra o meio ambiente.

Referida lei inovou no tocante ao crime de omissão ou comissão contra os animais e

a regra da coautoria e participação nos crimes contra os animais. Inovou também

por ter instituído a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes contra o

meio ambiente, posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 3.179, de 21 de

setembro de 1999, e revogado pelo atual Decreto nº 6.514, de 22 de julho de 2008.

No tocante à questão do tráfico internacional de animais silvestres,106 o Brasil

é signatário da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e

Fauna Selvagem em Perigo de Extinção – CITES, elaborada em Washington no ano

de 1973.107 Essa convenção tem como objetivo impedir o comércio ilegal e, ao

mesmo tempo, regular o comércio internacional de animais.

Existem ainda diversas portarias e normas esparsas acerca da proteção

animal, estabelecidas a partir da década de 1960.108

3.2 A Proteção Animal na Constituição Federal

O Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada

no dia 5 de outubro de 1988, tem o seguinte enunciado:

106

“Aproximadamente quarenta milhões de animais são retirados da Natureza do território brasileiro por ano.

Entre dez animais capturados, após um penoso percurso em que são submetidos a péssimas e cruéis condições,

apenas um chega vivo ao consumidor final. Conforme estimativa apresentada pelo RENCTAS em fevereiro de

2002, depois do tráfico de drogas e armas, o tráfico ilegal de animais silvestres é a terceira maior atividade

ilegal do mundo. Movimenta no mundo todo cerca de vinte bilhões de dólares por ano e o Brasil participa com

aproximadamente 15% desse valor”. RODRIGUES, Danielle Tetü. O ilegal comércio e tráfico internacional de

animais silvestres e a proteção penal brasileira. In: O Direito Internacional no cenário contemporâneo. 1ª ed.

Curitiba: Juruá, 2003, p. 247. Apud RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais. Uma abordagem

ética, filosófica e normativa. 2ª ed., Curitiba: Juruá Editora, 2008, p. 69. 107

Essa Convenção Internacional foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 54, de 17 de novembro de

1975 (com emenda do Decreto nº 133, de 24 de maio de 1991), promulgado pelo Decreto nº 76.623, de 17 de

novembro de 1975, com as alterações em Gaborone, em 20 de abril de 1983, aprovada pelo Decreto Legislativo

nº 35/1985, promulgada pelo Decreto nº 92.446, de 7 de março de 1986 (RODRIGUES, Danielle Tetü, Op. cit.

p. 69). 108

Portaria nº 139N/93, regulamentando a obtenção de registro de “criadouro conservacionista”; Portaria

nº 2.134/1990, regulamentando o criadouro de borboletas; Portaria nº 332/1990, a qual dispõe sobre a coleta de

material zoológico; Portaria nº 005/1991, estabelecendo critérios para o acasalamento de espécies ameaçadas da

fauna brasileira; Portaria nº 016/1994, regulamentando a criação ou a manutenção de animais em cativeiro da

fauna silvestre com a finalidade de subsidiar pesquisas científicas; Portaria nº 29/1994, disciplina a importação e

exportação da fauna silvestre exótica e da fauna silvestre brasileira; Portaria nº 117/1997, tratando da compra e

venda de animais silvestres; Portaria nº 118N/1997, normatizando o funcionamento de criadouros de animais

silvestres para fins econômicos (RODRIGUES, Danielle Tetü. Op. cit. p. 68).

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Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte,

para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos

sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a

igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e

internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de

Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

A Constituição Federal preceitua que o direito ao meio ambiente é voltado

para a satisfação das necessidades humanas. Todavia, não há impedimento para

que se entenda a proteção da vida em todas as suas formas, bem como o respeito e

integração de todos os seres que habitam o planeta Terra.

Frisa-se que as duas primeiras Conferências Mundiais para a defesa do meio

ambiente (Declaração de Estocolmo em 1972 e Declaração do Rio de Janeiro em

1992) são explícitas ao assegurar a preservação ambiental em face de uma melhor

qualidade de vida humana ou até mesmo de protegê-la. A partir dessas duas

conferências mundiais, especialmente a Rio-92, o centro das preocupações com o

chamado desenvolvimento sustentável, basicamente, diz respeito aos seres

humanos.

Como visto em outra oportunidade desse estudo, essa visão é única e

exclusivamente antropocêntrica. Mesmo assim, a Constituição deixou clara a

preocupação com a punição com atos de crueldade praticados contra os animais,

atribuindo-lhes a qualidade de seres que são partes integrantes do meio ambiente.

Assim dispõe o art. 225 do preceito constitucional:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso

comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à

coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º- Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...)

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73

VII- proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em

risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a

crueldade.

§ 3º- As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os

infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,

independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Por evidente, veja-se que a questão do meio ambiente é tema de relevada

importância, a ponto de passar a ser um preceito fundamental, agora, como garantia

constitucional. Ao assegurar e garantir um meio ambiente ecologicamente

equilibrado em seus preceitos constitucionais, fez com que a Carta Magna fosse

considerada como uma das mais avançadas no mundo. Segundo José Afonso da

Silva:

A Constituição, como isso, segue, e até ultrapassa, as Constituições mais recentes

(Portugal, art. 66, Espanha, art. 45) na proteção do meio ambiente. Toma consciência de

que a qualidade do meio ambiente se transformara num bem, num valor mesmo, cuja

preservação, recuperação e revitalização se tornaram num imperativo do Poder Público,

para assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento;

em verdade, para assegurar o direito fundamental à vida. As normas constitucionais

assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos

fundamentais do homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da

tutela do meio ambiente. Compreendeu que ele é um valor preponderante, que há de estar

acima de quaisquer considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao

direito de propriedade, como as de iniciativa privada. Também esses são garantidos no

texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental

à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é

instrumental no sentido de que, mediante essa tutela, o que se protege é um valor maior: a

qualidade da vida humana.109

109

SILVA, José Afonso da. Fundamentos constitucionais da proteção do meio ambiente. BENJAMIN, Antônio

Herman V.; MILARÉ, Édis (coords.). Revista de Direito Ambiental, ano 7, nº 27. São Paulo: RT, 2002, p. 53.

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74

A proteção do meio ambiente inserido na Constituição Federal reflete na

proteção da vida, da qualidade de vida para a sobrevivência da espécie humana.

Ocorre que os animais têm o mesmo direito dos homens de viver no planeta Terra.

Cumpre ressaltar que todos os animais existentes no Brasil,

independentemente de sua categoria ou espécie, são bens ambientais jurídica e

constitucionalmente protegidos. Portanto, os animais silvestres, domésticos ou

domesticados, nativos, exóticos e migratórios têm proteção garantida pela

Constituição Federal, 110 adotando um posicionamento de proximidade com o ser

humano.

Nesse diapasão, a defesa dos interesses dos animais é garantida pelo

Ministério Público, nos termos dos artigos 127111 e 129112 da Constituição Federal, e

por outras instituições e entidades, previstas no artigo 5º,113 da Lei da Ação Civil

Pública (Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985) e do art. 2º, § 3º do Decreto nº 24.645,

de 10 de julho de 1934.

São indubitáveis os relevantes papéis que as organizações não

governamentais desempenharam ao longo de todo o processo e lutas para a busca

de melhorias em relação aos tratos com os animais. É certo também como agora

buscam pela ruptura da visão exclusivamente antropocêntrica e a conquista dos

direitos dos animais.

Acerca desse relevante tema, assim comunga João Marcos Adede y Castro:

110

Art. 225, § 1º, inc. VII, da Constituição Federal. 111

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,

incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais

indisponíveis. 112

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I- promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

II- zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos

assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III- promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio

ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. 113

Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I- o Ministério Público;

II- a Defensoria Pública;

III- a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV- a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V- a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem

econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

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Como refere Silva, a dogmática jurídica indica que somente o homem pode ser sujeito de

direitos, mas que esta lógica se inverte quando falamos de direito ambiental, que aceita a

ideia de que o homem é mero representante dos animais, em juízo, como acontece com as

pessoas jurídicas. Assim, o direito dos animais, em termos de processo, administrativo ou

judicial, é beneficiado pelas mesmas garantias asseguradas aos homens.114

Portanto, a questão dos direitos dos animais é extremamente complexa,

motivo pelo qual não será abordada no presente trabalho. Todavia, não se pode

negar que, ao imputar interesses a serem defendidos, seja em juízo, seja fora dele,

por meio de ação civil pública, da ação popular ou da ação penal pública, estar-se-á

atribuindo aos seres não humanos o direito constitucional da ampla defesa, do

contraditório e do devido processo legal. Em outros termos, nesse caso, os seres

não humanos são detentores de direitos como quaisquer outros, tanto uma pessoa

física, quanto uma pessoa jurídica.

3.3 A Visão do Animal no Contexto do Código Civil

O ordenamento jurídico brasileiro é um sistema que possui como fonte de

Direito as leis escritas. É a estrutura chamada de civil law, originada da concepção

da epopeia e conquista romana, que estabeleceu sua base jurídico-científica ao

longo de diversos continentes, basicamente os países de tradição latino-germânica.

Desde o ordenamento jurídico romano até os tempos atuais, os animais não

estavam inseridos em um contexto de membros da sociedade e, portanto, não

possuíam direitos. Os animais eram – e para muitos ainda continuam sendo –

considerados coisas (em latim: res).

Portanto, “sob o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados ou

à propriedade privada, a servidão animal foi sacramentada pelo Direito”.115

114

CASTRO, João Marcos Adede y. Direito dos Animais na Legislação Brasileira. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris Editor, 2006, p. 45. 115

LEVAI, Laerte Fernando. Direitos dos animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004, p.19.

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Para o Código Civil, “coisa” é tudo aquilo que existe no universo; e “bens” são

as coisas que possuem valor econômico. Muito embora os animais possuam valor

econômico, eles não são considerados coisas ou bens nos termos do código civil, no

qual o proprietário tem direito de usar, fruir e dispor como lhe bem aprouver.

Os bens jurídicos, além da sua relevância patrimonial, abrangem também

outros aspectos, tais como coisas corpóreas e incorpóreas, materiais ou imateriais,

tais como a liberdade, a honra. Por isso, são insuscetíveis de valoração econômica.

O bem jurídico, portanto, possui um conceito muito amplo.

O antigo Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916)

tratava os animais domésticos como bens móveis. Eram os chamados semoventes.

Eram considerados propriedades dos donos e os animais que, por ventura, fossem

abandonados, estariam sujeitos à apropriação. Ou seja, o Código Civil de 1916 não

protegia a fauna em relação à questão da preservação da espécie, mas, sim, em

relação à propriedade, como um bem meramente econômico (os arts. 592 a 602

dispunham sobre a aquisição e a perda da propriedade no antigo Código Civil).

Pelas disposições legais existentes, todos os animais silvestres (tanto no

âmbito terrestre como no aéreo), e os animais aquáticos, são considerados bens de

propriedade do Estado e do domínio público. Essa definição de bens do Estado é no

sentido mais amplo, no sentido constitucional de República Federativa do Brasil; ou

seja, são bens da nação brasileira, constituída da União, dos Estados-membros, do

Distrito Federal e dos Municípios, com expressas competências e deveres e

responsabilidades pela efetiva defesa ou proteção e real preservação vinculada à

sua função ecológica (arts. 1º, 18, 23, incs. I, VI, VII e 225, § 1º, inc. VII, da

Constituição Federal).116

Como propriedade do Estado, tais bens são de domínio público, integrantes

do patrimônio público indisponível, ou seja, servem ao interesse de todos. Como é

cediço, tais bens possuem um regime jurídico diferenciado. Não se trata de bens

públicos de uso comum do povo, que são “todos as coisas imóveis ou móveis sobre

as quais o público, anonimamente, coletivamente, exerce direitos de uso e gozo”, os

quais são inalienáveis e imprescritíveis.

116

Nesse sentido, CUSTÓDIO, Helita Barreira. Crueldade contra animais e proteção destes como relevante

questão jurídico-ambiental e constitucional. BENJAMIN, Antônio Herman V.; MILARÉ, Édis (coords.). Revista

de Direito Ambiental, ano 3, nº 10, São Paulo: RT, 1998, p. 82.

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Como afirma Herman Antônio Benjamin:

No caso dos bens públicos integrantes dos recursos ambientais e considerados de uso

comum do povo, salienta-se que, na evolução do conceito bem público, o meio ambiente,

„como macrobem, é bem público não por que pertença ao Estado (pode até pertencê-lo),

mas porque se apresenta no ordenamento, constitucional e infraconstitucional, como

„direito de todos‟, como bem destinado a satisfazer as necessidades de todos‟. Trata-se de

„bem público em sentido objetivo e não em sentido subjetivo, integrando uma certa

„dominialidade coletiva‟, desconhecida do direito tradicional público.117

Nesse contexto, Helita Barreira Custódio afirma que:

Com estas breves observações, é oportuno, ainda, salientar, para melhor clareza das

normas constitucionais e legais aplicáveis ao importante assunto, de forma insistente, que

a propriedade dos animais silvestres e aquáticos, legalmente atribuída ao Estado (país),

formado da União, dos estados-membros, do Distrito Federal e dos municípios, como

domínio público integrante do patrimônio público, se encontra desvinculada da

tradicional união entre animal e propriedade, típica do direito romano. Como propriedade

do Estado, sob regime jurídico excepcional, em nada se confunde com os bens de

propriedade da União, que se encontram expressamente definidos nas normas do art. 20,

incs. I a XI, da CF. Sob esse aspecto, torna-se patente que os animais silvestres e

aquáticos, em liberdade, sob a proteção do Poder Público, não pertencem só à União, não

são bens públicos da União, não se encontram definidos em nenhuma norma das normas

do art. 20, I a XI, da Constituição, em que se definem os bens da União. Evidentemente,

os animais silvestres e aquáticos constituem bens públicos da República Federativa do

Brasil, ou seja, da Nação Brasileira constituída da União, dos estados-membros, do

Distrito Federal e dos municípios (CF, art. 1º, 18), com expressos deveres e

responsabilidades para a sua diligente administração, defesa ou proteção e preservação

vinculada à sua função ecológica, como bens públicos de utilização, aproveitamento ou

gozo comum do povo ou das presentes e futuras gerações (CF, art. 225 e § 1º, VII, c/c art.

117

BENJAMIN, Antônio Herman. Função Ambiental. In: Dano ambiental – prevenção, reparação e repressão.

Biblioteca de Direito Ambiental. São Paulo: RT, 1993, p. 64-66, Apud CUSTÓDIO, Helita Barreira. Crueldade

contra animais e proteção destes como relevante questão jurídico-ambiental e constitucional. BENJAMIN,

Antônio Herman V.; MILARÉ, Édis (coords.). Revista de Direito Ambiental, ano 3, nº. 10, 1998, São Paulo: RT,

p. 83.

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23, I, VI, VII; art. 37, § 6º; Lei 5.197, de 03.01.1967, art. 1º; Dec.-lei 221, de 28.02.1967,

art. 3º).118

Com o advento do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de

2002), os dispositivos do antigo código foram suprimidos, tendo em vista a

superveniência dessa lei, mas também pela incorporação dos dispositivos da

Constituição Federal, a qual assegura que os recursos naturais são um bem da

coletividade, um bem de todos, não sendo admissível, portanto, que um diploma

legal de natureza privada pudesse regular bens dessa natureza.

O novo diploma legal trata os animais domésticos e domesticados como seres

semoventes, passíveis de direitos reais, mas, como um simples objeto de posse. A

visão antropocêntrica ainda predominante, assim como a legislação pátria

contribuem para manter um conceito e uma “tradição” popular que dão a entender

que esses seres vivos, no ordenamento pátrio estão ao bel prazer do homem. O

Código Civil iguala os animais a um bem qualquer, como um mero objeto que pode

ser transacionado. Em suma, um sujeito de não direito.119

Nesse diapasão, o dono de um animal é, portanto, um mero detentor,

guardião ou responsável por aquele ser vivo, não podendo dispor dele a não ser

para transferência a outra pessoa. Ou seja, o proprietário de um animal não pode

abandoná-lo, feri-lo ou, simplesmente, matá-lo. O bem juridicamente tutelado é o

próprio meio ambiente, independentemente de sua vinculação com o ser humano.

Na esfera civil, o causador dos danos contra a fauna deverá recompor ou

devolver à natureza os animais abatidos e apreendidos (consoante disposto no art.

14, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981: Política Nacional do Meio Ambiente).

A regulação de qualquer lei em face dos animais deve, necessariamente,

observar a legislação constitucional, tendo em vista o relevante valor ecológico da

fauna. 118

Op. cit. p. 83-84. 119

“Art. 1.442. Podem ser objeto de penhor:

(...)

V- animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola.

Art. 1.444. Podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios.

Art. 1.447. Podem ser objeto de penhor máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos, instalados e em

funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais, utilizados na indústria; sal e bens destinados à

exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados;

matérias-primas e produtos industrializados”.

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Apesar de o Código Civil tutelar interesses privados, ou seja, a relação de

pessoas e de seus bens (disposição expressa no art. 1º do Código Civil de 1916,120

omitida pelo atual código, mas que, continua regulando a relação desses

interesses), o art. 1.228, § 1º estipula que:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de

reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades

econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o

estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e

o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Verifica-se, portanto, que a propriedade possui uma função social, na qual o

direito individual à propriedade deve ser exercido dentro de certos limites, sem

abusos. O não aproveitamento do bem pode levar a severas sanções. Verifica-se,

que há um interesse geral prevalecendo sobre um interesse particular.

A função social da propriedade tem a finalidade de coibir a ilegítima utilização

da propriedade, garantindo um benefício e utilidade maior a toda a sociedade e não

somente ao seu proprietário.121

Em outros termos, ao instituir o § 1º, do art. 1.228, no novo Código Civil, o

legislador afirmou que, mesmo em relação de caráter privado, devem ser

observadas ainda regras de interesse geral, em vista do “princípio constitucional da

solidariedade e da fraternidade, estabelecidos como metas e objetivos fundamentais

na constituição da nação brasileira”.122

Caso as medidas de proteção à fauna não sejam atendidas, além dos outros

elementos formadores do meio ambiente e interesse social, poderá ocorrer a

desapropriação, tendo em vista que não se atende aos requisitos da função social

da propriedade.

120

Este Código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas

relações. 121

A função social da propriedade está prevista na Constituição Federal nos arts. 5º, inc. XXIII, 170, inc. III, 182

e 186. 122

CASTRO, João Marcos Adede y. Direito dos Animais na Legislação Brasileira. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris Editor, 2006, p. 63.

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3.4 A Proteção Animal nas Esferas Penal e Administrativa

A preservação ambiental encontra no Direito Penal um dos instrumentos mais

relevantes e significativos, uma vez que, em muitos casos, as sanções

administrativas e civis não são suficientes para coibir ou reprimir as agressões

contra o meio ambiente.

Proteger a fauna e a flora é de extrema importância. Essa proteção não deve

limitar-se somente os países detentores da sua biodiversidade; ela deve estender-se

a todo o ecossistema, local e global.123

Nos casos em que ocorre a prática dos crimes ambientais, podemos afirmar

que o bem jurídico protegido é o meio ambiente. Segundo o jurista Mauricio Libster,

citado por Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas:

O bem jurídico ambiental pertence à categoria dos bens jurídicos coletivos, já que afeta a

comunidade como tal, seja de forma direta ou indireta, mediata ou imediata. É um bem

jurídico de todos e está estreitamente vinculado às necessidades existenciais dos sujeitos,

como a vida, a saúde, a segurança e ainda a recreação.124

Os maus-tratos com os animais são punidos administrativamente e

penalmente desde o ano de 1934, com o Decreto nº 24.645, de 10 de julho de 1934.

Lamentavelmente, até os dias atuais, verificamos atividades extremamente

repulsivas praticadas contras os animais e tidas por seus defensores, como

123

No dia 29 de outubro de 2010 foi assinado o Protocolo de Nagoya, na 10ª Conferência das Partes da

Convenção sobre Diversidade Biológica – COP-10, por meio do qual foi reconhecido o direito dos países sobre a

sua biodiversidade. Portanto, cada país que explorar a diversidade natural (plantas, animais ou micro-

organismos) em territórios que não sejam seus, além de pedir autorização para as nações “donas dos recursos”,

os novos produtos que forem daí produzidos (fármacos ou cosméticos), terão, necessariamente, de repartir os

lucros entre quem os desenvolveu e o país de origem do recurso. Isto inclui ainda as comunidades que utilizem

desses recursos tradicionalmente, como os indígenas, por exemplo, os quais também receberão royalties pela

exploração comercial. É o chamado “ABS”, sigla em inglês que significa Acesso e Repartição de Benefício dos

Recursos Genéticos da Biodiversidade. O Brasil, por ser o maior detentor da biodiversidade do mundo, foi o

grande vitorioso das negociações, muito embora o pleito de pagamento de efeitos retroativos para direitos da

biodiversidade, não se aplicam no acordo assinado por 193 países, com exceção dos Estados Unidos, que sequer

participou do encontro (MIOTO, Ricardo. Países alcançam acordo da biodiversidade. Folha de S. Paulo. São

Paulo, p. A22, 30 out. 2010). 124

FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS. Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8ª ed., São Paulo:

RT, 2006, p. 38.

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atividades “culturais”, como a briga de galo, a vaquejada e a “farra do boi”, exemplos

brevemente tratados anteriormente.

A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998), no

capítulo V, seção I, trata dos crimes contra a fauna. Os crimes contra a fauna estão

tipificados nos arts. 29 a 37. Com exceção do art. 30 (que trata de contrabando de

peles e couros de anfíbios e répteis) e do art. 35 (que trata da pesca com explosivos

e substâncias tóxicas), os quais determinam a pena de reclusão, nos demais crimes

ali tipificados a pena é de detenção, podendo ser substituída pela pena privativa de

liberdade por medidas restritivas de direito. Ou seja, com exceção dos mencionados

arts. 30 e 35, os demais são considerados crimes de menor potencial ofensivo e são

passíveis da Lei dos Juizados Especiais Criminais.

O art. 29 da referida lei tipifica como crime as seguintes atividades: “Matar,

perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota

migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade

competente, ou em desacordo com a obtida. Pena - detenção de seis meses a um

ano, e multa”.

Esse artigo define os crimes contra a fauna silvestre, sendo “todos aqueles

pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou

terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos

limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”.

Portanto, esse artigo 29 não abrangeu os animais exóticos e domésticos, que

são aqueles que vivem harmoniosamente com o homem, do qual, aliás, geralmente

dependem. Para esses casos, porém, há o art. 32 dessa mesma lei que preceitua

ser crime: “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,

domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena - detenção, de três meses a

um ano, e multa”.

Esse artigo é uma atualização das condutas previstas no referido Decreto nº

24.645, de 10 de julho de 1934, que previa punições por crueldade e maus-tratos125

125

A expressão maus-tratos faz parte da figura típica ancorada no art. 136 do Código Penal: “Expor a perigo a

vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento

ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo

ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”.

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contra os animais, e no art. 64 da Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei nº

3.688, de 3 de outubro de 1941).126

O § 1º do citado artigo estipula: “Incorre nas mesmas penas quem realiza

experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou

científicos, quando existirem recursos alternativos”.

Verifica-se, então, que o art. 29 da Lei nº 9.605/98 não versa sobre os animais

domésticos, mas tão somente diz respeito aos animais silvestres. Já em relação ao

artigo 32, a tipificação penal se refere a diversas categorias dos animais (silvestres,

domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos).

Alguns autores afirmam que o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais – que

trata da prática de maus-tratos aos animais – revogou a legislação anterior que

tratava do mesmo assunto.127

José Henrique Pierangeli afirma que “examinando os dois diplomas

legislativos, não logramos chegar à conclusão de que o Decreto de 1934 foi

tacitamente revogado pelo Código Ambiental. Sem definir o que se deve entender

por maus-tratos, esta parte definida na lei anterior, a lei nova recepciona conceitos e

definições que não foram expressamente – e só por essa forma poderiam sê-lo –

revogados. Diversa é a situação do art. 64 da LCP, que regulava essa mesma

situação”.128

Em sentido contrário, Luís Paulo Sirvinskas afirma que o art. 64 da Lei de

Contravenções Penais (Decreto Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941) e o Decreto

Lei nº 24.645, de 10 de julho de 1934 (que estabelece medidas de proteção aos

animais domésticos), não foram revogados e continuam em vigor.129

126

Art. 64. “Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:

Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis”. 127

Neste sentido: FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS. Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 8ª

ed., São Paulo: RT, 2006, p. 109; PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 2ª ed., São Paulo: RT, 2009,

p. 178; COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro et al. Crimes e Infrações Administrativas Ambientais.

Comentários à Lei nº 9.605/98. 2ª ed., Brasília: Brasília Jurídica. 2001, p. 207; CASTRO, João Marcos Adede y.

Direito dos Animais na Legislação Brasileira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2006, pp. 99; 103 e

180 e ainda GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. Crimes Ambientais. Comentários à Lei 9.605/98. São

Paulo: RT, 2011, p. 50. 128

PIERANGELI, José Henrique. Maus-tratos contra os animais. MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso

Leme (org.). Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental, vol. II. São Paulo: RT, 2011, p. 299. 129

SILVINSKAS, Luís Paulo. Direito ambiental, fauna e tráfico de animais silvestres. BENJAMIN, Antônio

Herman V.; MILARÉ, Édis (coords.). Revista de Direito Ambiental, ano 8, nº 30. São Paulo: RT, 2003, p. 69.

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Consoante disposto no art. 14 da Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, é

permitida a concessão de licença especial a cientistas pertencentes a instituições

científicas, oficiais ou oficializadas, ou por elas indicadas, a coleta de material para

fins de natureza científica. Nesse sentido, o art. 32 do chamado Código de Pesca,

também admite a concessão de licença especial a cientistas para essa finalidade.

Todavia, a concessão de licença especial não autoriza a prática de maus-

tratos, mesmo que por cientistas devidamente autorizados a praticar um

determinado experimento. Caso isto ocorra, estar-se-á cometendo um crime

ambiental.

Muito embora tenhamos a tipificação penal de diversos crimes que podem ser

praticados contra a fauna, a lei penal e a execução penal devem ser aperfeiçoadas

para uma fiscalização eficaz e o cumprimento adequado da Lei de Execução Penal,

sob pena de vermos em mais uma seara, a impunidade dos diversos crimes que são

cometidos aos seres vivos existentes na Terra.

No âmbito administrativo, a própria Lei de Crimes Ambientais também dispõe

sobre as sanções administrativas por danos causados ao meio ambiente.

É considerada infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que

viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio

ambiente.130

Essa mesma lei afirma que são autoridades competentes para lavrar auto de

infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos

ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA,

designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias

dos Portos, do Ministério da Marinha.131 Os órgãos do SISNAMA estão tipificados no

art. 6º da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 (Lei da Política Nacional do Meio

Ambiente).

Na esfera administrativa, no capítulo específico das sanções aplicáveis às

infrações cometidas contra a fauna, o infrator e causador de um determinado dano

ambiental poderá ser autuado administrativamente com multa pecuniária, além da

130

Art. 70 da Lei nº 9.605/1998, de 12 de fevereiro de 1998. 131

Art. 70, § 1º, da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.

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apreensão do produto ou subproduto originário da caça ou apanha (arts. 24 a 42, do

Decreto nº 6.514, de 22 de julho de 2008).

As sanções administrativas aplicadas às condutas e atividades lesivas ao

meio ambiente estão previstas no Decreto nº 6.514/2008. No âmbito da

administração, as modalidades de pena previstas são: multa administrativa,

advertência, apreensão de animais, produtos e subprodutos da fauna, instrumentos

e apetrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração,

destruição ou inutilização do produto, embargo de obra ou atividade, demolição de

obra, suspensão parcial ou total da atividade, restrição de direito, bem como

obrigação de fazer ou não fazer determinada atividade considerada prejudicial ao

meio ambiente.

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4. CRUELDADE E MAUS-TRATOS COM OS ANIMAIS

4.1 Bem-Estar Animal e Direito Animal

Mohandas Karamchand Gandhi, popularmente conhecido como Gandhi, ou

Mahatma que significa a “grande alma” em sânscrito, foi um notável defensor do

princípio da não agressão como forma de protesto (satyagraha). Inúmeros foram

seus feitos e exemplos deixados à humanidade. Em relação à questão animal, assim

afirmou ao referir-se à característica de uma nação: “a grandeza de uma nação e

seu progresso moral pode ser julgado pelo modo como seus animais são tratados”.

Diante dessa afirmação, poderíamos atribuir a alguma nação a sua

grandiosidade em relação aos tratos com os animais?

O conceito de bem-estar animal expressa uma qualidade de vida que

assegure características inerentes à sua própria existência, tais como saúde física e

mental, felicidade e prazer. Na verdade, assegura uma perfeita harmonia no e com o

ambiente em que vive. Assim o é em relação aos humanos; assim deveria ser em

relação aos animais.

Dentro deste conceito de bem-estar animal, deve-se considerar um aspecto

extremamente significativo da homeostase, ou seja, o que ocorre no interior do

animal (estrutural e funcional) que é regulado em função do meio externo

(temperatura, som, ambiente, etc.), mediante múltiplos ajustes de equilíbrio dinâmico

para se manterem constantes, evitando, assim, um desgaste muito grande do seu

metabolismo animal e, consequentemente, um sofrimento do animal.

Nesse entendimento, muito animais de laboratório sofrem um estresse

desnecessário por parte de pesquisadores que não estão atentos às exigências do

estado do bem-estar animal. Esses animais são tratados como se fossem “todos

iguais”, desconsiderando as suas necessidades individuais em favor do grupo,

vendo estes seres vivos apenas como uma visão antropocêntrica.

Os elementos que limitam o bem-estar animal, segundo MacArthur Clark, são:

(i) falta de boa saúde e da habilidade para agir normalmente; (ii) falta de elementos

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no ambiente, que lhes permitam desenvolver seus comportamentos normais e

(iii) falta de atenção aos aspectos sensoriais e emocionais, que se traduzem em um

grau inferior de seu bem-estar.132

Os pesquisadores precisam eliminar essas circunstâncias que desequilibram

o bem-estar animal. Para tanto, devem ter conhecimento: (i) do comportamento (a

etologia é a ciência que estuda o comportamento animal) e da biologia do animal em

estudo; (ii) do manejo e das condições ambientais adequadas à espécie utilizada;

(iii) de como evitar dor e estresse e (iv) da consciência de estar utilizando um ser

com sensibilidade.133

Diferentemente do bem-estar animal, o direito animal pressupõe

características distintas, ou seja, o seu status ético e moral se iguala ao dos homens

para que, assim como eles, se beneficiem e possam usufruir os mesmos direitos e

prerrogativas atribuídas à natureza humana.

Essa distinção é muito bem colocada por David Favre:

Bem-estar animal tem como uma premissa inicial que homens têm uma ética, moral ou

religião que respalda uma obrigação de tratar animais bem, não infligir dor desnecessária

e sofrimento aos animais. Certamente essa premissa não está refletida completamente nas

leis atuais, e consideráveis mudanças deverão ocorrer para que esse padrão seja

alcançado. Direitos dos Animais têm uma premissa diferente: que animais são seres com

um status ético e moral como os seres humanos, logo eles não deveriam apenas ter

proteção do direito, (bem-estar) mas ser uma parte do sistema legal com seus próprios

direitos.134

Verifica-se, portanto, que a discussão acerca do direito animal é uma nova

etapa dos direitos fundamentais. É a valorização da vida em todas as suas formas.

Segundo Peter Singer,

132

RIVERA, Ekaterina A. B. Bem-estar na experimentação animal. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos

Santos; BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na

Pesquisa e no Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 76-77. 133

RIVERA, Ekaterina A. B. Op. cit. p. 76-77. 134

FAVRE, David. O ganho de força dos direitos dos animais. Apud SANTANA, Heron José de; SANTANA,

Luciano Rocha (coords.). Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador. Ano 1, nº 1, 2006, p. 28.

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A extensão do princípio básico da igualdade de um grupo para outro não implica que

devamos tratar os dois grupos exatamente da mesma maneira, ou que devamos conceder-

lhes exatamente os mesmos direitos. O que devemos fazer ou não depende da natureza

dos membros desses grupos. O princípio básico da igualdade não requer tratamento igual

ou idêntico, mas sim, igual consideração. A igual consideração por seres diferentes pode

levar a tratamentos e direitos distintos.135

O autor cita como exemplo o caso do aborto em que muitas feministas lutam

pelo direito da mulher de fazê-lo. Como o homem macho não pode, evidentemente,

abortar, não há sentido em se falar no seu direito de praticá-lo. Assim, pois, como os

animais não podem votar, também não faz sentido, em termos de direito, qualquer

afirmação nesse contexto. Portanto, a questão do princípio da igualdade de um

grupo não implica tratar os dois grupos exatamente da mesma maneira ou que

devamos conceder os mesmos direitos, mas, sim, ter a mesma consideração.

A igualdade, pois, é uma ideia moral e não a afirmação de um fato. A base

essencial da igualdade moral é de Jeremy Bentham136 ao afirmar que “cada um

conta como um e ninguém como mais de um”. Em outras palavras, os interesses de

um ser em uma determinada ação devem ser levados em conta e receber o mesmo

peso que o interesse semelhante de qualquer outro ser.137

A questão em pauta em relação aos direitos dos animais relaciona-se

diretamente com a capacidade que esses seres têm de poder sofrer. Portanto,

argumentar dizendo atribuir direitos aos animais é dar-lhes uma qualidade que é

135

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo. Lugano Editora, 2004, p. 4. 136

Jeremy Bentham (1748-1832) foi um filósofo inglês adepto da escola filosófica da teleologia, que se preocupa

com as consequências de uma ação para sua avaliação moral. É considerado o pai do utilitarismo, uma vez que

foi o primeiro a usar essa expressão. A teoria utilitarista está em confronto com a visão cartesiana e tomista em

relação aos animais, visão prevalecente à época. Ela enfatiza as consequências de uma ação em detrimento dos

princípios e regras que guiam essas ações. Ou seja, uma ação é moralmente correta se suas consequências são

mais favoráveis do que desfavoráveis para todos os envolvidos.

Em contraposição à escola teleológica, existe a escola filosófica deontológica, a qual entende que o julgamento

sobre uma ação ser moralmente certa ou errada faz-se a partir da avaliação do cumprimento de regras

predeterminadas de conduta ou dever, não se preocupando prioritariamente com as consequências da ação, mas,

sim, enfatizando a ação em si. Um dos grandes filósofos adeptos dessa corrente foi Immanuel Kant (SANDERS,

Aline; FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos. A concepção dos deveres indiretos e diretos em relação aos

animais não humanos: Fundamentos para o entendimento de seu status moral. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves

dos Santos; BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na

Pesquisa e no Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 34-36). 137

SINGER, Peter. Op. cit. p. 6.

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inerente apenas aos seres dotados de “racionalidade” e de “linguagem”, ou seja, aos

seres humanos, não seria compatível, pois não seria possível atribuir obrigações e

direitos a esses seres.

Muito embora a expressão “especismo” não seja de Peter Singer (2004), foi

ele quem, praticamente, levou-a ao conhecimento da comunidade científica,

delimitando-a como o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos

interesses de membros de sua própria espécie contra os de outras.138

Todavia, Sônia T. Felipe explica de forma clara essa questão:

Ao reclamar ou reivindicar o direito de não ser maltratado, um direito negativo, o que um

sujeito ou seu representante moral e legal está a reivindicar, de fato, é uma espécie de

imunidade. Em outras palavras, reclama-se ou reivindica-se proteção para garantir a

própria liberdade de se manter íntegro, física e emocionalmente. Isso implica, para os

demais, um não-direito, ou seja, um dever negativo, uma restrição de sua própria

liberdade, da liberdade de tirar, através de atos de negligência (privação) ou de violência

(inflição), os meios e as condições que propiciam bem-estar físico ou emocional ao ser

sensível em questão.139

Não se imputam apenas direitos negativos aos animais; há ainda o

reconhecimento de direitos positivos, como o de receber todo o carinho e sustento

inerente a um bem-estar e uma sadia qualidade de vida a qualquer ser vivo, ou seja,

de prestar ajuda e assistência quando necessário.

4.2 Igualdade Semântica no Conceito de Crueldade ou Maus-Tratos

A Lei nº 6.938/1981, como referido anteriormente, instituiu a Política Nacional

do Meio Ambiente. Seu art. 3º, inciso I conceitua o meio ambiente como “o conjunto

de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que

138

A expressão especismo é de Richard Ryder e encontra-se dicionarizada no The Oxford English Dictionary. 139

FELIPE, Sônia T. A ética e experimentação animal. Fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da

UFSC, 2007, p. 139.

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permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. O art. 2º por sua vez, inciso

I, considera o meio ambiente como “um patrimônio público a ser necessariamente

assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo”.

A Constituição Federal em seu art. 225, § 1º, inciso VII, preceitua que ao

Poder Público compete “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as

práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de

espécies ou submetam os animais a crueldade”.

Desse modo, o texto constitucional, ao colocar sob proteção jurídica a fauna

em geral, não categorizou os animais, donde se deduz que o termo fauna inclui tanto

os animais silvestres, como os exóticos, os domésticos e domesticados e os

migratórios.

A fauna silvestre, sem desconsiderar as demais, tem merecido maiores

cuidados e preocupações, pois é a que contém as espécies mais ameaçadas de

extinção.

O art. 1º, da Lei nº 5.197/67, de 3 de janeiro de 1967, ao tratar da fauna diz

que: “os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento

e que vivem naturalmente fora do cativeiro, cativeiro, constituindo a fauna silvestre,

bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado,

sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”. Já o § 3º,

do art. 29 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conceitua animal silvestre

como “todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer

outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida

ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou em águas jurisdicionais

brasileiras”.

Pode-se depreender da legislação, portanto, que, a característica primordial

para ser considerado um animal silvestre é ter a sua origem ou hábitat natural no

país, ou ainda ser espécie de rota migratória. São considerados como animais

silvestres aqueles não domesticados, que vivem livres no ambiente natural de

origem.

Por conseguinte, o animal doméstico é aquele cuja espécie já não se

encontra livremente na natureza e, sofreu ao longo do tempo, alterações genéticas

para atender necessidades do homem. Portanto, encontra-se adaptado ao convívio

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humano, às habitações, à cidade e, que, por isso, torna-se quase que impossível a

sua sobrevivência sem a intervenção humana.140 O animal domesticado é o

selvagem que, após ser amestrado pelo homem, ao longo do tempo, passa a

conviver com este sem apresentar as mesmas características do apego

doméstico.141 Isso quer dizer que, mesmo que em uma determinada espécie haja

indivíduos sob o convívio humano, uma grande parcela da espécie mantêm-se sob

condições naturais e, em estado de vida livre, não perdendo o atributo de

silvestre.142 A característica de silvestre não se resume ao animal em si, mas, sim,

em relação à espécie animal, à sua origem ou hábitat.143 Já a fauna exótica é aquela

cuja espécie não é nativa do país. Por fim, a fauna migratória é aquela cuja espécie

vive uma parte da sua vida no país de origem e, por condições adversas do clima,

migra para outros países até que condições naturais determinem o seu retorno à

origem e, da mesma forma recebe este tratamento os animais que têm o país como

parte de sua rota migratória.144

Portanto, o art. 225, inciso VII, § 1º, da Constituição Brasileira, ao afirmar a

competência de “proteger a fauna e a flora”, assegura a defesa, a proteção e a

preservação de todos os animais e deixa expressa a proibição de qualquer prática

cruel com esses seres vivos.

Segundo Helita Barreira Custódio,145 considera-se crueldade com animais:

140

São exemplos desses animais: o cão, o gato, o cavalo, o boi, a cabra, o coelho, a galinha. 141

O chimpanzé e o elefante são exemplos de animais domesticados. 142

A diferença entre fauna doméstica e fauna domesticada reside basicamente na perda de suas características

biológicas e comportamentais, pois esses animais convivem pacificamente com o homem e dependem dele para

sua sobrevivência. Segundo aponta Laerte Fernando Levai, a fauna doméstica “é aquela constituída de espécies

que, através de processos tradicionais de manejo, passaram a ter características biológicas e comportamentais

com estreita dependência do homem, por exemplo, o cão, o gato, o cavalo, a vaca, o pato, o porco e a galinha.

Já a fauna domesticada é composta por animais silvestres, nativos ou exóticos, que, por circunstâncias

especiais, perderam seus habitats, na natureza e passaram a conviver pacificamente com o homem, dele

dependendo para sua sobrevivência, como acontece com alguns animais mantidos em circos ou zoológicos”.

(LEVAI, Laerte Fernando. Direitos dos animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004, p.33-34). 143

Nesse sentido, MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro, 19ª ed., São Paulo:

Malheiros, 2011, p. 822. E também BECHARA, Erika Bechara. A Proteção da Fauna sob a Ótica

Constitucional, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 21. Veja-se, portanto, que o aprisionamento e a

reprodução em cativeiro de determinada espécie animal, seja em um zoológico (para a preservação da espécie,

estudos ou contribuição da educação ambiental), seja para o abate (como o jacaré ou a capivara), não lhes

retiram o atributo de animais silvestres. 144

A fauna migratória, por força de acordos internacionais (dos quais o Brasil é signatário), recebe, para fins de

proteção, o status de “fauna silvestre” quando em território brasileiro. Um exemplo é a andorinha-azul que nasce

nos EUA/Canadá e migra para o Brasil durante o inverno do hemisfério norte. 145

CUSTÓDIO, Helita Barreira. Crueldade contra animais e proteção destes como relevante questão jurídico-

ambiental e constitucional. BENJAMIN, Antônio Herman V.; MILARÉ, Édis (coords.). Revista de Direito

Ambiental, ano 3, nº 10: São Paulo: RT, 1998, p. 66.

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91

Toda ação ou omissão, dolosa ou culposa (ato ilícito), em locais públicos ou privados,

mediante matança cruel pela caça abusiva (profissional, amadorista, esportiva, recreativa

ou turística), por desmatamentos ou incêndios criminosos, por poluição ambiental,

mediante dolorosas experiências diversas (didáticas, científicas, laboratoriais, genéticas,

mecânicas, tecnológicas, dentre outras), amargurantes práticas diversas (econômicas,

sociais, populares, esportivas como tiro ao voo, tiro ao alvo, de trabalhos excessivos ou

forçados além dos limites normais, de prisões, cativeiros ou transportes em condições

desumanas, de abandono em condições enfermas, mutiladas, sedentas, famintas, cegas ou

extenuantes, de espetáculos violentos como lutas entre animais até a exaustão ou morte,

touradas, farra do boi ou similares), abates atrozes, castigos violentos e tiranos,

adestramentos por meios e instrumentos torturantes para fins domésticos, agrícolas ou

para exposições, ou quaisquer outras condutas impiedosas resultantes em maus tratos

contra animais vivos, submetidos a injustificáveis e inadmissíveis angústias, dores,

torturas, dentre outros atrozes sofrimentos causadores de danosas lesões corporais, de

invalidez, de excessiva fadiga ou de exaustão até a morte desumana da indefesa vítima

animal.

Assim sendo, por ato de crueldade entende-se aquele em que o agente,

dolosamente, se compraz em praticar o mal, em atormentar ou prejudicar a vítima,

submetendo-a a um ato duro, insensível, desumano, pungente e doloroso. Nesse

sentido, crueldade é sinônimo de desumanidade, de impiedade, de ferocidade.

Segundo o Dicionário HOUAISS da língua portuguesa, crueldade é:

“1. Característica do que é cruel. 2. Prazer em fazer o mal. 3. Severidade;

dureza”.146

Ela inclui, portanto, atrocidade injustificada, tortura, tirania, sevícias; é o

emprego de meios dolorosos; é maltratar, espancar. Em síntese, é infligir

sofrimentos desnecessários à vítima. Os atos de crueldade, especificamente em

relação aos animais, também podem decorrer de atos omissivos, como, por

exemplo, nas situações em que eles não são alimentados ou neles se mutilem

órgãos sem o uso de técnicas recomendadas e aprovadas pela autoridade

competente para lhe amenizar o sofrimento. Saliente-se que não se consideram atos

146

Dicionário HOUAISS da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, 2ª ed.

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cruéis aqueles que se referem ao corte de pelos, de cauda (quando justificado) ou

de castração.

Ainda segundo Custódio,147 o conceito de maus-tratos equipara-se ao

conceito de crueldade e, que, seus efeitos são igualmente puníveis, evidenciando,

assim, termos e expressões equivalentes.

Segundo o citado dicionário, maus-tratos seria: “crime de submeter alguém a

castigo, trabalho excessivo e/ou alguma privação”.

O antigo Decreto nº 24.645/1934, de 10 de julho de 1934, que estabelecia

medidas de proteção animal, já havia ampliado a definição e o conceito de maus-

tratos, equiparando a atos cruéis. O inciso I, do art. 3º do referido Decreto

considerava maus-tratos como sendo o ato de “praticar ato de abuso ou crueldade

em qualquer animal”, e exemplificou em trinta incisos os atos considerados de maus-

tratos ou cruéis.

Já o artigo 136 do Código Penal tipifica maus-tratos como:

Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para

fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou

cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer

abusando de meios de correção ou disciplina.

Tem-se, portanto, que atos de crueldade no seu sentido mais amplo

abrangem também os atos de maus-tratos, quando manifestados na sua forma mais

perversa.

4.3 Casos Específicos de Crueldade com os Animais

Conforme analisada em páginas anteriores, a teoria mecanicista sustentada

no séc. XVI por René Descartes advogava que sendo os animais desprovidos de

147

CUSTÓDIO, Helita Barreira. Op. cit., p. 68.

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alma, seriam simples máquinas ou meros seres vivos mecânicos. Por essa razão,

eles seriam insensíveis a qualquer dor ou sofrimento que lhes fossem impostos,

porque as sensações residiriam na alma, elemento exclusivo do ser humano.

Essa teoria cartesiana também serviu de fundamento que justificou uma série

de maus-tratos e violências cometidas contra os animais, dando origem a costumes

que, por sinal, perduram até os dias atuais. Todavia, maus-tratos aos seres mais

fracos sempre foram uma constância ao longo da história da humanidade. Há uma

passagem interessante atribuída a Xenófanes de Cólofon, crente na transmigração

da alma, que assim descreveu em seus versos: “E uma vez, passando por um

cãozinho que espancavam, apiedou-se, dizem, e falou o seguinte: Para! Não batas

mais! Pois é a alma de um amigo, reconheci-a ao ouvir sua voz”.148

Como visto no item sobre o direito da natureza e biocentrismo, durante a

Idade Média, em um determinado momento da História, os animais passaram a ser

“sujeitos de direito” na relação processual pelos crimes que lhes eram impostos,

tendo sido ajuizado diversos processos – tanto na esfera civil como na esfera

criminal – em que eles eram colocados na qualidade de parte, em razão dos danos

materiais e dos supostos crimes que haviam cometidos.149

A condenação à pena de reclusão ou morte dos animais em igualdade com os

crimes praticados pelos homens representou, na Idade Média, a carga de

superstição que orientava o homem medieval ou servia como uma justificativa para

as “pragas”, cujas tragédias socioeconômicas exigiam uma resposta perante a

148

Os Pensadores. Pré-Socráticos. Livro IV. Editora Nova Cultural Ltda., 1999, p. 70. Xenófanes de Cólofon

(cerca de 570-528 a.C.) foi poeta, sábio e rapsodo, cantando seus poemas através da Grécia. Em oposição aos

filósofos de Mileto, só escreveu em verso. Fez-se famoso com os ataques aos poetas (Hesíodo e Homero) e aos

pensadores (Tales, Pitágoras e Epimênides). 149

Marco Antônio Azkoul esclarece a dúvida que paira sobre o curioso fato de os animais serem processados na

época medieval, uma vez que ainda não havia um fortalecimento e concepção de Estado. Segundo ele: “Sucede

que durante a Idade Média, por razões históricas, a autoridade jurisdicional era distribuída entre a Igreja

Católica, ente supranacional que predominava na época e que herdara a processualística romana, e os Feudos,

cujo direito era extremamente casuístico, salvo pouquíssimas exceções que tentavam aplicar alguns institutos do

Direito Romano adequando-o à realidade local. Assim, boa parte dos processos contra animais tramitavam nas

instâncias judiciais eclesiásticas, havendo, primeiro, uma fase pré-processual com a autoridade religiosa do

lugar, um padre, por exemplo, proferindo maldições contra os animais que causassem quaisquer danos materiais,

em casos que não haviam atentado direto à vida humana, pois estes implicavam em imediata prisão do animal.

Em seguida, era redigida uma petição ao juiz eclesiástico o qual oficiava o Promotor de Justiça para acompanhar

os autores da ação e nomeava um advogado dos réus. „Os animais eram citados e intimados a comparecer ao

tribunal e caso não comparecessem após a Terceira citação, eram condenados por revelia, sendo aplicada a pena

de expulsão, ao mesmo tempo em que o advogado dos animais recorria da decisão, fazendo as alegações que

entendesse pertinentes, cabendo ao Promotor de Justiça replicá-las, reafirmando a condenação (AZKOUL,

Marco Antônio. Crueldade contra os animais. SANTANA, Heron José de; SANTANA, Luciano Rocha

(coords.). Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador. Ano 1, nº 1, 2006, p. 29-31).

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população desesperada pela fome e miséria. Assim, as entidades detentoras do

poder tentavam processar e condenar os “causadores das pragas” como os ratos e

os insetos, tornando-os responsáveis pelas mazelas e desprezando outras variáveis

de cunho socioambiental em decorrência da atuação humana, como, por exemplo, o

esgotamento dos recursos naturais, as intempéries climáticas, a sujeira e a poluição

dos burgos.150

Isso foi nos idos tempos. Atualmente, os animais são considerados

irresponsáveis pelos seus próprios atos; os titulares de sua guarda151 respondem

pelos atos por estes causados.152

Inúmeros são os experimentos já realizados nas mais diversas áreas da

ciência moderna, principalmente no tocante à psicologia, à indústria farmacêutica e à

indústria de cosméticos. Com efeito, tais atividades utilizam de forma cruel os

animais em seus experimentos, muitas vezes completamente desnecessários e que

lhes infligem imensa e intensa dor física, sem levar em conta que também acarretam

uma perda de tempo e de gasto de quantias significativas.

Muitos destes experimentos consistem em choques, envenenamentos,

bombardeamento com radiações, utilização de produtos de cosméticos ou

farmacológicos que provocam diversas toxicidades que, posteriormente, resultam

em agonizantes períodos de sobrevivência.

Se o animal não é um mero instrumento de pesquisa, a ciência, por sua vez, é

necessária, sendo que o atual estágio do saber científico em muito é fruto da

utilização dos animais na experimentação. Todavia, isto não significa que a

sociedade deva permanecer ingênua, baseada na crença da “bondade da ciência”,

fazendo com que não nos importemos ou sequer tenhamos notícias dos

experimentos a serem realizados. Em contrapartida, quando um animal é morto a

150

SANTANA, Luciano Rocha; OLIVEIRA, Thiago Pires. Guarda responsável e dignidade dos animais. Apud

SANTANA, Heron José de; SANTANA, Luciano Rocha (coords.). Revista Brasileira de Direito Animal.

Salvador. Ano 1, nº 1, 2006, p. 78. 151

Adota-se aqui a expressão “guarda dos animais” ao invés de “posse dos animais”, tendo em vista que o termo

“posse” representa uma coisificação dos animais, algo completamente ultrapassado e retrógrado; ao passo que o

termo “guarda” significa a vigilância que tem por finalidade defender, proteger ou conservar um animal ou

alguma coisa. No mesmo sentido, SANTANA, Luciano Rocha e OLIVEIRA, Thiago Pires. Guarda responsável

e dignidade dos animais. Op. cit. p. 69. 152

Artigo 936 do Código Civil brasileiro: “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado,

se não provar culpa da vítima ou força maior”.

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“bel prazer”, a sociedade fica chocada e exige uma reprimenda por parte do poder

público.

Segundo Erika Bechara,153 a Constituição Federal permite, implicitamente, a

prática de determinadas atividades, ainda que consideradas cruéis, com o fim maior

da preservação da vida humana, cujas garantias são asseguradas por essa mesma

Constituição.

De fato, em casos da prevalência da vida humana em detrimento de uma vida

animal, buscar-se-á a valoração da vida humana. Entretanto, não se pode admitir

abusos como os casos em que animais de criadouros supostamente cometem atos

tidos como “cruéis” ou “selvagens”, como, por exemplo, o recente caso da baleia

orca que atacou sua tratadora, levando-a à morte. Alguns diretores daquele parque

cogitaram em exterminar a vida desse cetáceo pela “brutalidade” praticada. Outros

exemplos, como o caso de leões e elefantes que, ao fugirem dos circos e das

prisões em que estavam confinados, foram brutalmente assassinados na sua busca.

A vingança que exige a morte do animal não se justifica em nenhuma hipótese,

soando um tanto quanto absurda qualquer consideração a favor da vingança.

A crueldade com os animais compreende todo ato atentatório à sua

integridade físico-psíquica, sendo que a submissão do animal pode não ultrapassar

o absolutamente necessário. A Constituição Federal veda qualquer forma ou prática

que submetam os animais à crueldade.154 Assim também consta no citado art. 32 da

Lei de Crimes Ambientais, Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.

Em casos análogos, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou a favor dos

animais e declarou as crueldades que lhes eram praticadas. Um dos exemplos mais

notórios foi a proibição da “farra do boi”, no Estado de Santa Catarina. É de se

lamentar que os seus defensores ainda sustentem essa verdadeira brutalidade em

nome de uma pretensa atividade cultural.155

153

BECHARA, Erika. A Proteção da Fauna sob a Ótica Constitucional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira,

2003, p. 69. 154

Assim preceitua o inc. VII, § 1º, do art. 225 da Constituição Federal. 155

Supremo Tribunal Federal, RE nº 153.351-8-SC, rel. min. Francisco Rezek, j. 03.06.1997, p. 13.013.1998.

A Farra do Boi ocorre no Estado de Santa Catarina. Foram os açorianos que trouxeram por volta do séc. XVIII

essa prática cruel com os animais que lhe dão nome. Apesar da proibição pelo Supremo Tribunal Federal,

clandestinamente ainda ocorrem tais práticas. A Farra do Boi ocorria com mais frequência na Semana Santa;

ocorria também em datas comemorativas e festivas ou celebradas em ocasiões especiais. Antes do evento, o boi é

confinado por diversos dias sem alimento disponível. Para aumentar o desespero do animal, comida e água são

colocados num local onde o boi possa ver, mas não possa alcançar. A “Farra” começa quando o boi é solto e

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Não se trata, evidentemente, de um evento cultural. Ao contrário, representa

um verdadeiro desrespeito com as demais formas de vida, uma prática violenta e

cruel. Como brilhantemente afirmado pelo advogado em prol da defesa dos animais,

no julgamento da “farra do boi”, “manifestações culturais são as práticas existentes

em outras partes do país, que também envolvem bois submetidos à farra do público,

mas de pano, de madeira, de „papier máché‟; não seres vivos, dotados de

sensibilidade e preservados pela Constituição da República contra esse gênero de

comportamento”. Um exemplo de manifestação cultural é a festa do boi bumba, no

Estado do Amazonas, em que o Caprichoso é representado pela cor azul e o

Garantido, pela cor vermelha. Em três dias de festa, milhares de pessoas de todas

as classes sociais reunidas, descobrirão qual agremiação homenageará o seu

respectivo boi de maneira mais criativa e bela.156

Outra modalidade “de lazer” ainda muito realizada na clandestinidade são as

rinhas de galos. Lamentavelmente, alguns Estados brasileiros promulgaram leis

estaduais, em frontal violação da Constituição Federal, na vã tentativa de legalizar e

permitir essa prática extremamente cruel. Todavia, o Supremo Tribunal Federal

determinou liminarmente a proibição dessa atividade até o julgamento em definitivo

da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade.157

perseguido pelos “farristas”, que carregam pedaços de pau, facas, lanças de bambu, cordas, chicotes e pedras. No

desespero de fugir, esses animais correm em direção ao mar, lagos e rios e acabam se afogando. Fontes da

WSPA-Brazil (World Society for Protection of Animals) relatam ter visto o gado sendo torturado de diversas

maneiras: animais banhados em gasolina e depois incendiados, pimenta jogada em seus olhos que, geralmente,

são arrancados. Participantes quebram os cornos e patas do animal e cortam seus rabos. Os bois podem ser

esfaqueados e espancados, mas há um certo “cuidado” para que o animal permaneça vivo até o final da

“brincadeira”. Essa tortura pode continuar por três dias ou mais. Finalmente o boi é morto e a carne é dividida

entre os participantes.

Aqueles que ainda defendem tal prática sustentam que é um ritual simbólico, uma encenação da Paixão de

Cristo, onde o boi representaria Judas; outros acreditam que o animal representa Satanás e, torturando o Diabo,

as pessoas estariam se livrando dos pecados. Mas hoje em dia o evento não tem nenhuma conotação religiosa.

Para as pessoas que moram na área litorânea, onde a barbárie acontece, a farra do boi é apenas uma oportunidade

para se fazer uma festa e se ganhar algum dinheiro extra, pois alguns moradores aproveitam para vender bebidas

e petiscos para os participantes (Disponível em: http://www.farradoboi.info/o_que_e.shtml. Acessado em11 de

fevereiro de 2011). 156

Nesse sentido também, ROCCO. Bruno Aurélio Giacomini. Algumas considerações sobre o convívio entre o

homem e os animais. Revista de Direitos Difusos, ano II, vol. 11, São Paulo: Editora Esplanada-ADCOAS, 2002,

p. 1.422-1.424. 157

Supremo Tribunal Federal, ADI nº 1.856 MC-RJ, rel. min. Carlos Velloso, j. 03.09.1998, p. 22.09.2000.

A rinha de galos é uma luta entre galos que envolve apostas entre os seus participantes. Era uma atividade

popular na Índia, China e Pérsia e foi introduzida na Grécia, tendo sido adotada pelos romanos e praticada por

outras civilizações posteriores. No Brasil, o presidente Jânio Quadros editou o Decreto nº 50.620, de 18 de maio

de 1961, que proibiu expressamente a rinha de galo. Todavia, no ano seguinte, Tancredo Neves, através do

Decreto nº 1.233, de 22 de junho de 1962, revogou o Decreto, deixando de existir qualquer proibição expressa

com as brigas de galo.

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Edna Cardozo Dias158 nos traz dois exemplos recentes do intento de legalizar

a rinha de galos e as brigas de canários. O primeiro se refere ao município de

Salvador que aprovou a Lei Municipal nº 4.149/1990, que permitia a realização de

brigas de galo naquele município, mesmo em afronta ao artigo 214, inc. VII, da

Constituição do Estado da Bahia.159 A Liga de Prevenção da Crueldade contra o

Animal dirigiu uma representação ao Procurador Geral de Justiça, que ajuizou uma

Ação Declaratória de Inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça da Bahia,

que julgou procedente a ação para declarar inconstitucional a Lei Municipal

nº 4.149/1990.160

O segundo exemplo se refere à sanção pelo governador do Estado do Rio de

Janeiro, da Lei nº 2.895, de 20 de março de 1998, autorizando a criação e a

realização de exposição e competições entre aves combatentes (galos e canários)

no seu Estado. Foi encaminhada uma representação ao Procurador Geral da

República, para propositura de uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade. No

dia 26 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação

Direta de Inconstitucionalidade e julgou inconstitucional a Lei nº 2.895, de 20 de

março de 1998.161

Tramita na Câmara Federal o Projeto de Lei nº 4.548, de 26 de maio de 1998,

de autoria do deputado federal José Thomaz Nonô (DEM/AL),162 por meio da qual se

pretende a exclusão das sanções penais às práticas de atividades com animais

domésticos ou domesticados. Em suma, na prática, o que se pretende é um

verdadeiro retrocesso na legislação e na proteção ambiental, uma vez que a

justificativa para tal feito é o suposto “respeito” a tradições culturais e religiosas. Seu

resultado, porém, será a legalização de práticas e divertimentos cruéis com diversos O Estado do Rio de Janeiro promulgou a Lei nº 2.895, de 20 de março de 1998, por meio da qual autorizava e

disciplinava a realização de competições entre galos combatentes. No dia 3 de setembro de 1998, o Supremo

Tribunal Federal julgou procedente a medida cautelar proposta pela Procuradoria Geral da República para

suspender até o final do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade que ainda não foi julgada (ADI nº

1.856 MC-RJ). 158

DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 184-198. 159

Art. 214- “O Estado e Municípios obrigam-se, através de seus órgãos da administração direta e indireta, a:

(...)

VII - proteger a fauna e a flora, em especial as espécies ameaçadas de extinção, fiscalizando a extração, captura,

produção, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos, vedadas, na forma da lei, as

práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem sua extinção ou submetam os animais à

crueldade”. 160

TJ-BA, Tribunal Pleno, Adin nº 880-8, rel. des. Jatahy Fonseca, j. 12.06.1992. 161

STF, ADIn nº 1856, rel. min. Celso de Mello, j. 26.05.2011, p. 03.06.2011. 162

Atualmente o deputado federal exerce o cargo de vice-governador de Alagoas pelo partido DEM/AL. Quando

da propositura do citado projeto de lei, o deputado era membro do partido pelo PSDB/AL.

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animais, como a “farra do boi” e a rinha de galos. No dia 7 de março de 2001,

lamentavelmente, o citado Projeto de Lei recebeu parecer favorável da Comissão de

Constituição e Justiça e de Cidadania – CCJC e foi aprovado por essa comissão no

dia 12 de novembro de 2008. No dia 4 de julho de 2011, esse Projeto foi retirado de

pauta de votação, pairando ainda dúvidas sobre o seu futuro.163

Muitos são os exemplos de maus-tratos aos animais no chamado

agronegócio. Como exemplo, podemos citar as gaiolas de bateria para as galinhas

poedeiras, as caixas para vitelos que os impedem de se levantar ou esticar os

membros, o confinamento de animais e a rápida alimentação para a engorda, além

da mutilação dos bicos de galinhas de criação etc.

A criação em escala industrial liquidou os modos tradicionais dos pequenos

proprietários, ou melhor, esses produtores foram engolidos pelo agronegócio. Esse

sistema de criação reduziu o animal a uma máquina, criando uma situação em que o

dinheiro transforma qualquer trabalho em mero valor comercial.

No dia 27 de julho de 2011, os integrantes do Órgão Especial do Colégio de

Procuradores de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo,

considerando o elevado número de ocorrências envolvendo abusos, maus-tratos,

ferimento e mutilação de animais, inclusive em ambiente urbano e doméstico,

aprovaram a criação do Grupo Especial de Combate aos Crimes Ambientais e de

Parcelamento do Solo Urbano (GECAP), que terá como uma de suas atribuições a

“Defesa dos Animais”, em especial, domésticos ou domesticados, como também

silvestres, nativos ou exóticos. O ato normativo nº 704/2011-PGJ-CPJ, de 28 de

julho 2011, editado pelo Procurador-Geral de Justiça e Colégio de Procuradores de

Justiça, disciplinou a implantação do GECAP, dispondo sobre a sua missão

institucional, atribuições, composição e organização.164

A criação de um Grupo Especial é o primeiro passo para a criação de uma

Promotoria de Defesa Animal. Muito embora o Grupo Especial de Combate aos

Crimes Ambientais e de Parcelamento do Solo Urbano, aprovado pelo Órgão

Ministerial, vise ao combate também de outros crimes ambientais, constitui

indubitavelmente um grande avanço na defesa dos animais, na medida em que, pela

163

Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=20954.

Acessado em 30 de julho de 2011. 164

Disponível: http://capez.taisei.com.br/capezfinal/index.php?secao=1&subsecao=0. Acessado em 31 de julho

de 2011.

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primeira vez, no Estado de São Paulo, um organismo centralizará ações contra

todas as formas de criminalidade envolvendo cães, gatos, cavalos etc.

A crueldade com os animais não é vista na perspectiva do não humano; é

vista, isso sim, e tão somente pelo lado sentimental dos humanos que consideram a

crueldade apenas uma ofensa a moral e aos bons costumes.

Nesse sentido, cabe uma questão: os maus-tratos e as crueldades com os

animais atingem a coletividade ou somente os próprios sujeitos ofendidos? A nosso

ver, a violência contra os animais, além de representar um ato cruel contra a

coletividade, representa, sim, uma violência às vítimas dessa prática,

independentemente de nossos sentimentos subjetivos.165

Não é escopo do presente trabalho analisar em detalhes as diversas

crueldades que existem com os animais. Mesmo assim, porém, é necessária uma

breve menção às barbáries que são cometidas, em alguns casos com o fim de

diversão e até mesmo como um traço cultural, supondo-se que ainda existam tais

objetivos.

Ademais, cumpre ressaltar ainda que em alguns casos, como na alimentação

e no vestuário, por exemplo, ainda se faz necessária a utilização desses seres, pela

própria cultura do homem, que, desde os primórdios, sentiram a necessidade em

caçá-los e a utilizá-los como vestimentas para a sua própria sobrevivência. Não é

legal ou mesmo de natureza moral que se utilize de animais silvestres para isto,

conforme estabelece a Lei nº 9.605/1998. Outras questões, como a utilização em

experimentos científicos, ainda são suportáveis e justificáveis para um maior avanço

do conhecimento de certas enfermidades, dentre as quais se justificam para um bem

comum, seja em prol do homem, seja em prol dos próprios animais. Evidente,

porém, que toda sua utilização somente se justiça com base nos preceitos éticos e

legais existentes, conforme estabelecem o Conselho Federal de Medicina

Veterinária, o Conselho Federal de Biologia e a legislação sobre Bioética.

165

Muito embora a doutrina entenda que, nesses casos, as vitimas de crueldade são a coletividade e não os

animais tratados com crueldade.

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100

4.3.1 Abate animal

Na cultura israelita, alguns animais são considerados “puros” e permitidos

para alimentação humana, tais como bovinos, ovinos, cervos, caprinos e animais

que possam voar.166 Outros animais são tidos como “impuros” e proibidos como

alimentos; são os porcos, os camelos, os cavalos e os gatos. Como é proibido

alimentar-se do sangue desses quadrúpedes e de algumas aves – pois o sangue é

considerado a morada da vida – esses animais devem ser abatidos exclusivamente

segundo regras determinadas. São regras que impõem, entre outras coisas, o corte

completo do esôfago e da traqueia por meio de uma faca afiadíssima, de maneira

que rapidamente seja derramado, o máximo possível de sangue.167

O ritual e o método para aplicar tais regras chamam-se kosher, também

chamado, por muitos veterinários, como “jugulação” ou “degola cruenta”. O

posicionamento cultural e religioso de muitos judeus em relação à obediência a esse

ritual contraria os laudos técnicos que afirmam que este método causa extremo

sofrimento ao animal a ser abatido.168

Na religião islâmica, o abate animal para consumo (halal) segue praticamente

o mesmo caminho do método kosher. Em regra, é vedado o consumo de carne de

animais já mortos, de sangue, de carne suína e de carne sobre a qual não foi

pronunciado o nome de Deus.169

166

Nem todos os animais que voam são considerados puros. Identificá-los nem sempre é uma tarefa simples. 167

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais. Fundamentação e Novas Perspectivas. Porto Alegre:

Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008, p. 116. 168

Segundo Roberto de Oliveira Roça, “para a realização da degola, o animal é encaminhado ao boxe de abate,

o qual tem as patas traseiras presas em uma corrente de roldana que está suspensa por um guincho. O animal é

então baixado até seu dorso tocar o solo, mantendo seu posterior suspenso. Essa suspensão do animal de

grande porte, por si só, já acarreta o rompimento da musculatura, ocasionando muito sofrimento e estresse ao

animal. Um gancho, na forma de “V” é colocado sobre a mandíbula e o pescoço é tensionado. O “sochet”

apoia uma das mãos sobre o pescoço do animal e, através de um movimento realizado com a “chalaf”, corta

entre o primeiro e o segundo anel da traqueia, a pele, veias jugulares, artérias, carótidas, esôfago e traqueia,

não podendo encostar o fio da faca nas vértebras cervicais. A incisão deve ser executada sem interrupção, sem

movimentos bruscos, sem perfuração, sem dilacerações nem sobre a laringe. Após a incisão, o animal é

suspenso ao trilho, seguindo para o término da sangria e esfola (Picchi, 1996; Picchi & Ajzental, 1993). Nos

momentos após a degola e suspensão, os animais abatidos por este ritual apresentam flexão dos membros

anteriores e contração dos músculos da face, sinais evidentes de dor” (LOURENÇO, Daniel Braga. Op. cit. p.

117-118). 169

“Estão-vos vedados: a carniça, o sangue, a carne de suíno e tudo o que tenha sido sacrificado com a

invocação de outro nome que não seja o de Deus; os animais estrangulados, os vitimados a golpes, os mortos

por causa de uma queda, ou chifrados, os abatidos por feras, salvo se conseguirdes sacrificá-los ritualmente; o

(animal) que tenha sido sacrificado nos altares” (5ª surata, versículo 3).

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101

O Estado de São Paulo, por meio da Lei Estadual nº 7.705, de 19 de fevereiro

de 1992 – a chamada Lei do Abate Humanitário – estabeleceu algumas regras na

tentativa de minimizar a dor e sofrimento dos animais a serem abatidos para fins de

consumo. Por meio dessa lei, ficou proibido o uso de marreta e da picada do bulbo

(choupa), bem como ferir ou mutilar os animais antes da insensibilização. O

documento legal beneficiou o abate animal ao instituir “o emprego de métodos

científicos e modernos de insensibilização aplicados antes da sangria por

instrumento de percussão mecânica, por processamento químico („gás CO2‟),

choque elétrico (eletronarcose), ou ainda, por outros métodos modernos que

impeçam o abate cruel de qualquer tipo de animal destinado ao consumo”.170

Essa lei teve o grande mérito de instituir a prévia insensibilização na ocasião

do abate por métodos mais aperfeiçoados. Todavia, foi revogada pela Lei Estadual

nº 10.470, de 20 de dezembro de 1999, que alterou o § 1º, do art. 1º daquela lei, ao

permitir o abate por métodos de caráter religioso, passando a vigorar com a seguinte

redação:

Artigo 1º- É obrigatório em todos os matadouros, matadouros - frigoríficos e abatedouros,

estabelecidos no Estado de São Paulo, o emprego de métodos científicos e modernos de

insensibilização aplicados antes da sangria por instrumento de percussão mecânica, por

processamento químico ("gás CO2"), choque elétrico (eletronarcose), ou ainda, por outros

métodos modernos que impeçam o abate cruel de qualquer tipo de animal destinado ao

consumo, com exceção dos abates regidos por preceitos religiosos (jugulação cruenta),

direcionados ao consumo pelas comunidades a que se destinam, mediante solicitação dos

matadouros, matadouros-frigoríficos ou abatedouros aos órgãos oficiais, sem prejuízo da

observância ao que dispõem os artigos 6º, 7º e 8º da presente lei.

§ 1º- É vedado o uso de marreta e da picada do bulbo (choupa), bem como ferir ou

mutilar os animais antes da insensibilização, com exceção dos abates regidos por

preceitos religiosos e direcionados ao consumo pelas comunidades a que se destinam,

desde que as atividades de insensibilização e abate sejam previamente normatizadas

quanto às formas e efetuadas por profissionais competentes para o exercício da função,

devidamente credenciados pelas entidades oficiais e religiosas específicas.

170

Art. 1º da Lei 7.705/1992. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 39.972, de 17 de fevereiro de 1995.

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Portanto, lamentavelmente, a Lei nº 10.470/1999 permitiu a prática no Estado

de São Paulo do método kosher e halal, utilizados pelas culturas judaica e

muçulmana, respectivamente. Como esses abates são realizados sem a

insensibilização prévia do animal, a sangria passou a ser feita com o animal

consciente que, como visto, provoca-lhe uma morte sofrida.

Outras religiões, como o candomblé, possuem como ritual religioso o

sacrifício ou a oferenda de animais para as divindades, no caso, os orixás. Para

essa cerimônia, em regra, são utilizados: bois, bodes, galinhas, patos, pombos,

bodes e carneiros.

Nesse cenário, uma questão pertinente: estaria o abate religioso coberto pela

Constituição Federal (art. 225, § 1º, inc. VII) e pela Lei dos Crimes Ambientais

(art. 32, da Lei 9.605/1998)?

Cumpre destacar que o presente trabalho não se presta a propor a extinção

do abate de animais e tampouco regular a ingestão de carnes por parte da

população; não se presta de igual modo a desmerecer questões religiosas atinentes

a qualquer crença. A proposta é prezar as melhores condições desses animais no

momento do abate.

Nesse sentido, a liberdade de culto não deve ser absoluta, sendo restrita em

relação à liberdade de crença, que é absoluta e ilimitada. Portanto, ao indivíduo é

permitido acreditar em tudo que lhe aprouver, mas não pode aplicar no plano físico a

liberdade ampla de culto quando houver conflitos com outros valores, em relação a

normas protetoras que se contrapõem à barbárie. Nesse caso, o Estado não

somente pode como também deve intervir no campo da liberdade de culto. Na

verdade, o indivíduo não pode matar ou provocar sofrimento em nome do exercício

da liberdade de sua crença.171

Ademais, o abate religioso submete inequivocadamente os animais a uma

crueldade ainda maior que causada no abate humanitário.

A título de curiosidade, vale repetir que, no dia 28 de junho de 2011, o

parlamento holandês aprovou uma lei proibindo o sacrifício de animais em rituais

religiosos, apesar da oposição dos partidos cristãos e das organizações

171

Nesse sentido também: LEVAI, Laerte Fernando. Direitos dos animais. Campos do Jordão: Editora

Mantiqueira, 2004, p.87 e LOURENÇO, Daniel Braga. Op. cit. p. 124.

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muçulmanas e judaicas. Com a aprovação dessa lei, a Holanda se juntou a Suécia,

Noruega, Áustria, Estônia e Suíça, países que possuem leis proibindo tais

práticas.172

Mesmo o processo de matança sem fins religiosos, mediante a sensibilização

e o atordoamento do animal, ainda assim está longe de receber o qualificativo de

“abate humanitário”, uma vez que os animais são postos em boxes de contenção –

os chamados “corredores da morte” – e conduzidos por meio de estímulos elétricos

para o abate. Durante esse percurso, os gritos e a vocalização de outros animais

próximos ao abate, e o odor do sangue impregnado no local, aterrorizam aqueles

que se encontram nessa “fila indiana”, pois eles tentam a todo custo retornar ao local

de origem em sua caminhada forçada. As pupilas dilatadas dos animais abatidos

são um sinal convincente da sua sensação de pânico e de sofrimento.

No caso do abate bovino, além das situações acima mencionadas, a situação

ainda se agrava. Com efeito, usa-se percussão mecânica, ou seja, uma pistola que

impulsiona um êmbolo metálico que perfura o crânio e atinge o cérebro do animal.

Quando bem aplicado, consegue derrubá-lo com o único golpe. Todavia, o coma

cerebral não mata o animal antes da sangria. Frequentemente, o magarefe erra o

alvo e o animal abatido fica suscetível a dores e sofrimentos durante a sangria.

Em relação ao abate de suínos, a prática utilizada são as chamadas “salas de

choques”. Nesse espaço, os animais são submetidos a eletronarcose coletiva. Os

suínos são muito conhecidos pelos gritos e grunhidos que emitem naturalmente. Em

uma situação de abate, os gritos e gemidos de dor são agravados pela presença de

outros animais que já passaram pelo “corredor da morte”.

Assim como no caso do abate bovino, o magarefe nem sempre aplica

corretamente a eletronarcose nos suínos a serem abatidos; essa falha faz com que

os porcos apenas fiquem atordoados no momento da sangria.

Muitas vezes, nem sempre os estímulos elétricos aplicados no crânio são

suficientes ou mesmo realizados de modo adequado; é um transtorno que faz com

que muitos animais sejam escaldados (para retirada dos pelos) e esfaqueados ainda

172

Disponível em:

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticia/HOLANDA+APROVA+LEI+QUE+PROIBE+SACRIFICIO+D

E+ANIMAIS+EM+RITUAIS_13102.shtml. Acessado em 29 de junho de 2011.

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vivos, contribuindo para maior sofrimento deles e de outros que ainda estão por

passar pelo mesmo método de abate.

Em relação aos ovinos, o processo de matança segue praticamente o mesmo

rito dos suínos, ou seja, a eletronarcose. Todavia, a diferença reside na retirada do

couro do animal para o seu aproveitamento no mercado de peles.

Já no caso das aves, o método de insensibilização também é feito mediante

descargas elétricas. Entretanto, a eletronarcose, nesse caso, é feita com a imersão

das aves em água com corrente elétrica, causando-lhes um choque. Após a sangria,

são levadas à escalda para afrouxar e facilitar a retirada das penas.

Em todos os casos de abate animal, o método de insensibilização por gás é

muito pouco utilizado, tendo em vista que representa um custo maior para as

empresas do ramo. Os processos de pistola e de descargas elétricas são os mais

comuns e mais utilizados.

Acrescente-se ainda que os sofrimentos desses animais não residem única e

exclusivamente no momento do abate; eles ainda sofrem maus-tratos desde a sua

prévia alimentação até o caminho dos abatedouros, onde muitos criadores deixam

de alimentá-los um dia antes de serem mortos, porque, segundo sua linha de

raciocínio, estariam economizando um dia de alimentação com animais que logo irão

morrer.

Por fim, após muitos deles serem privados de uma alimentação digna de

qualquer ser vivo, são transportados para os frigoríficos de modo precário porque

viajam pelas longas estradas do país, confinados com diversos outros animais, sem

descanso e sem alimentação, ocasionando a mutilação de muitos deles durante o

transporte. Também vivem em precárias condições climáticas, quando, em muitos

casos, podem ser mortos por asfixia devido ao calor excessivo ou à desidratação

ocasionada pelo calor. Isso acontece principalmente quando as aves são

transportadas para o abatedouro.

O Ministério da Agricultura e do Abastecimento aprovou a Instrução

Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2000, por meio da qual padroniza os métodos de

insensibilização para o chamado abate humanitário,173 estabelecendo os requisitos

173

Abate humanitário é o conjunto de diretrizes técnicas e científicas que garantam o bem-estar dos animais

desde a recepção até a operação de sangria.

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mínimos para a proteção dos animais de açougue (bovinos, equinos, suínos, ovinos,

caprinos e coelhos), bem como os animais silvestres criados em cativeiros, a fim de

evitar a dor e o sofrimento.

Essa Instrução Normativa tem como âmbito de aplicação todos os

estabelecimentos industriais que realizam o abate dos animais de açougue, impondo

diversos requisitos para minimizar o sofrimento do animal a ser abatido.

No Estado de São Paulo, a Lei nº 11.977, de 25 de agosto de 2005, que

instituiu o Código de Proteção aos Animais do Estado, proíbe conservar animais

embarcados por mais de seis horas sem água e alimento. Nesse caso, devem as

empresas de transporte providenciar as necessárias modificações em seu material,

veículos e equipamentos (art. 16, inc. II). Proíbe também transportar animais em

cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho e

números de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados

esteja protegido por rede metálica ou similar, que impeça a saída de qualquer parte

do corpo do animal (art. 16, inc. IV).

Verifica-se, portanto, que a legislação deve ser mais bem elaborada e

aplicada, para proporcionar um abate tido como humanitário, incluindo as melhores

técnicas existentes no mercado. Não só, como ainda deve haver um melhor

treinamento e um preparo psicologicamente adequado dos profissionais que lidam

com estes animais – tanto os profissionais de criadouro e tratamento, como os dos

frigoríficos e abatedouros – para melhor compreenderem e minimizarem ao máximo

o sofrimento dos animais.

4.3.2 Galinhas poedeiras e Frangos de corte

A galinha é considerada um dos primeiros animais a serem removidos das

condições relativamente naturais da fazenda tradicional para as atuais técnicas

padronizadas de produção em massa para a obtenção de carne e ovos. O frango é

um grande sucesso da história da zootecnia. Segundo Peter Singer, somente nos

Estados Unidos são abatidos aproximadamente 5 bilhões desses animais por ano ou

o equivalente a 102 milhões por semana.

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106

O produtor recebe lotes contendo dez mil a cinquenta mil pintinhos em um

único dia. Esses animais recém-nascidos são colocados em um galinheiro sem

janelas ou em gaiolas empilhadas, visando a criação de um número maior de aves

em um mesmo espaço.

A alimentação e iluminação são controladas para que cresçam de forma

rápida. Singer afirma que:

A iluminação é ajustada de acordo com os conselhos dos pesquisadores: por exemplo,

deve haver luz bem clara, vinte e quatro horas por dia na primeira e segunda semanas,

para estimular os frangos a ganhar peso rapidamente; então, as luzes são diminuídas um

pouco e ligadas e desligadas a cada duas horas, pois acredita-se que os frangos, após um

período de sono, estejam prontos para comer; finalmente, por volta da sexta semana,

quando as aves tiverem crescido tanto que o espaço começa a ficar apertado, chega o

ponto em que as luzes serão mantidas bem fraquinhas, o tempo todo. O objetivo dessas

luzes fracas é reduzir a agressividade causada pela superlotação.174

Os frangos de corte são mortos quando atingem sete semanas de idade, ao

passo que a expectativa de vida de um animal criado naturalmente em uma fazenda

tradicional pode chegar até os sete anos de vida.

Esses animais de aproximadamente dois quilos chegam a ficar confinados em

um espaço de aproximadamente 450 centímetros quadrados por ave, o mesmo que

a dimensão de uma folha de papel ofício. É muito comum nessas condições, o

estresse provocado pela superlotação, motivo pelo qual os animais acabam bicando-

se uns aos outros, inclusive se matando e até praticando o canibalismo, algo que

jamais ocorreria na natureza, uma vez que a agressividade não é da índole desses

animais, muito embora haja um respeito e hierarquia entre eles.

Tanto nos animais para abate, quanto nos animais de cria para ovos, é

comum a prática da “debicagem”. Singer nos diz que essa prática foi realizada pela

primeira vez em San Diego, na década de 1940, com um maçarico:

174

Op. cit. p. 112-113.

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O criador queimava a parte superior do bico das galinhas para que elas não pudessem

bicar as penas umas das outras. Essa técnica rudimentar foi logo substituída pela

aplicação de um ferro de soldar adaptado à função e hoje se preferem instrumentos

semelhantes à guilhotina, com lâminas incandescentes, especialmente projetadas para

isso. O bico do pintinho é inserido no instrumento e a lâmina incandescente corta-lhe a

ponta. O procedimento é realizado muito rapidamente: cerca de quinze pintinhos são

debicados por minuto. Essa pressa significa que a temperatura e afiação da lâmina podem

variar, resultando em cortes malfeitos e graves ferimentos nas aves.175

O processo de “debicagem”, de fato reduz os danos que uma galinha pode

ocasionar às outras. Todavia, isso poderia ser reduzido caso não houvesse o

estresse do animal decorrente de uma superpopulação dos atuais métodos de

criação. Porém, a “debicagem” produz danos nos animais, uma vez que comem

menos e perdem peso, sendo um sinal de que esse processo provoque dor.

Pesquisadores do Conselho de Pesquisa Agrícola e Alimentar britânico (British

Agricultural and Food Research Council) examinaram os tocos dos bicos das aves

debicadas e descobriram que os nervos danificados cresciam novamente, formando

uma massa de fibras nervosas entrelaçadas, chamada neuroma. Estes neuromas

provocam dor aguda e crônica no toco que restam em seres humanos que sofrem

amputação, o que também pode ocorrer nesses animais.176

Além da “debicagem”, as galinhas ainda sofrem pelo sufocamento no

criadouro, fenômeno conhecido como “empilhamento”. O atual método de criação –

com luz intensa e com o convívio de milhares de animais – faz com que eles fiquem

agitados e nervosos, ocasionando situações de pânico. Com isso, elas correm para

um canto do aviário e empilham-se umas sobre as outras, asfixiando uma enorme

quantidade de galinhas.

Além disso, esses animais ainda estão sujeitos a doenças, decorrentes da má

ventilação; dos excrementos desses animais, o que torna o ar com uma enorme

quantidade de amoníaco; e das bactérias que afetam os seus pulmões.

Por fim, o processo de transporte para os frigoríficos não são muito diferentes.

Esses animais são encaixotados com milhares de outros e são empilhados na

175

Op. cit. p. 115. 176

SINGER, Peter. Op. cit. p. 116. E ainda: ROSA, Instituto Nina. Não Matarás. Os Animais e os Bastidores da

Ciência. DVD. 65 min.

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108

carroceria de caminhões que trafegam por horas e horas sem que esses recebam

água ou alimentos.

As galinhas poedeiras sofrem o mesmo processo de “debicagem”. Porém,

existem algumas peculiaridades na sua criação que as diferem dos maus-tratos

realizados aos frangos para abate. Ao nascer os pintinhos são separados de sua

mãe e os machos são descartados nos lixos ou moídos para servirem de ração, pois

não possuem valor comercial.

As fêmeas são colocadas em gaiolas de baterias ou baterias de gaiolas.

Nesse pequeno espaço, cerca de 40 a 45 centímetros, são criadas até cinco aves

por gaiola.177

A criação desses animais nessas gaiolas dificultam com que eles possam

ficar em pé, muitas vezes, danificando suas patas. O crescimento das garras,

frequentemente, entrelaçam-se nos arames. Esse método se “justifica”, na visão dos

criadores, por uma única razão, facilita a passagem dos excrementos e o seu

acúmulo para posterior limpeza. Inúmeros animais são mutilados, seja pelas brigas

constantes entre os animais, seja pela raspagem do pelo nas gaiolas ou mortos pelo

confinamento.178

4.3.3 Zoológico

Os Jardins Zoológicos destinam-se a atender a finalidades culturais, sociais e

científicas; abrigam diversas espécies nativas ou exóticas, visando o intercâmbio de

informações para pesquisas e estudos. Além disso, têm o intuito de contribuir para o

desenvolvimento da educação ambiental e para a conservação de espécies

ameaçadas de extinção, as quais, hoje, praticamente só existem em cativeiro, onde

algumas vezes a reprodução ocorre com razoável sucesso.

Um exemplo notável de recuperação ocorreu com o mico-leão-dourado ou

sauim piranga, que se multiplicou em zoológicos norte-americanos e foram

177

SINGER, Peter. Op. cit. p. 122-135. 178

ROSA, Instituto Nina. Não Matarás. Os Animais e os Bastidores da Ciência. DVD. 65 min.

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transladados para o Brasil. Sob a gestão de biólogos brasileiros, têm repovoado a

Mata Atlântica. Os Jardins Zoológicos constituem coleções de animais silvestres

mantidos vivos em cativeiro ou em semiliberdade e expostos à visitação pública. São

considerados como Unidades de Conservação instituídas pela Resolução CONAMA

nº 011/1987.

As peculiaridades e objetivos altamente nobres e também as rígidas

exigências de ordem legal dos zoológicos fazem deles um espaço onde dificilmente

existam maus-tratos. Mesmo assim, o seu funcionamento depende de prévia

autorização do Poder Público Federal, conforme disciplina o art. 2º da Lei nº 7.173,

de 14 de dezembro de 1983. Precisam ainda ser registrados no Instituto Brasileiro

do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA,179 sendo

considerado crime ambiental a sua utilização sem a devida autorização das

autoridades competentes, de acordo com o art. 29, § 1º, inc. III, da Lei nº 9.605, de

12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais).

Por sua vez, as instituições oficiais de finalidade científica, sejam do Poder

Público, sejam de domínio particular, servem como suporte de pesquisas e visam à

melhoria da qualidade de vida da população (p. ex., como o desenvolvimento de

medicamentos, vacinas, soros, etc.), além de preservar, manter, reintegrar e

acompanhar as espécies (florísticas e, mais notadamente, faunísticas) ameaçadas

ou não de extinção.

A coleta de exemplares da fauna silvestre para tais fins pode ser autorizada a

cientistas pertencentes a instituições científicas, oficiais ou oficializadas, ou por

estas indicadas, conforme dispõe o art. 14 da Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967.

Nessa linha, o art. 11 da Lei nº 7.173, de 14 de dezembro de 1983, também

estabelece que a aquisição ou a coleta de animais da fauna indígena (nacional) para

os Jardins Zoológicos dependerá sempre de autorização prévia a ser expedida pelo

IBAMA, segundo a Portaria IBAMA 283/P, de 18 de maio de 1989.

A Instrução Normativa IBAMA 3/1999 estabeleceu os critérios para o

licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de manejo de fauna

silvestre exótica e de fauna silvestre brasileira em cativeiro.

179

Vide Portaria IBAMA 283/P, de 18 de maio de 1989.

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110

Porém, os animais no zoológico sofrem, primeiramente, com o seu

aprisionamento. Tal fato, não pode ser negado. Além do mais, existem inúmeros

casos de maus-tratos pelos criadores desses animais, como o espancamento de

animais, a falta de alimentação adequada, etc. Alguns animais ainda sofrem com

instalações inadequadas, seja com o pequeno espaço, seja com as condições de

temperatura do recinto e até mesmo com a paisagem, muito diferente do ambiente

natural.

Infelizmente, alguns zoológicos ainda contribuem para o tráfico internacional

de animais silvestres, vendendo boa parte de seu acervo para traficantes.

Recentemente, o zoológico de Niterói foi fechado por maus-tratos aos animais e por

funcionamento sem autorização do IBAMA. Suspeita-se que esse zoológico enviou

cerca de quatrocentos e noventa animais a particulares, vulgo, traficantes.180

O tratamento dado aos animais em cativeiro deve ser adequado, juntamente

com instalações específicas com cada espécie, com espaço compatível com as

características naturais e dimensões do animal, mantendo condições adequadas de

habitabilidade, higiene e salubridade, sob pena dos crimes de maus-tratos, previstos

no art. 32 da Lei nº 9.605/1998, que trata do crime de abuso e maus-tratos à fauna.

4.3.4 Circo

Os animais de circo representam um dos maiores exemplos de maus-tratos.

Com efeito, ao contrário daqueles que são privados de liberdade de seu hábitat por

questões educacionais, pedagógicas e científicas – que, em muitos casos, podem

justificar a prática de tal ato – esses animais são retirados e privados de seus

familiares apenas com o intuito de um entretenimento a um público dirigido.

Confinados e, muitas vezes, acorrentados em minúsculas jaulas, onde são

mal alimentados, maltratados, sofrem com o estresse da perda do hábitat e com as

inúmeras e esgotantes viagens realizadas pelas estradas brasileiras em condições

extremamente precárias e cruéis.

180

Disponível: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/942912-zoologico-e-autuado-por-repassar-animais-sem-

autorizacao-no-rio.shtml. Acessado em 31 de julho de 2011.

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111

Para que possam “entreter” o público, são submetidos a severos e violentos

sistemas de “aprendizado” a fim de realizar determinadas atividades as quais sequer

fariam se vivessem em liberdade. São inúmeras as práticas de torturas com os

animais em circo, como queimaduras, choques, má alimentação, estrangulamento,

extração de dentes, etc.

Diversos municípios brasileiros, como São Paulo, Campinas, Belo Horizonte,

Porto Alegre, Florianópolis, São José do Rio Preto e outros, proibiram a utilização de

animais em circos, tendo em vista os maus-tratos praticados aos animais expostos

ao público. Alguns Estados também proibiram essa atividade cruel, como Paraíba,

Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo181 e, recentemente,

Paraná. O Projeto de Lei nº 7.291, de 5 de julho de 2006, de autoria do senador

Álvaro Dias (PSDB/PR) estabelece que o circo dependerá de registro perante o

órgão federal responsável pela política nacional da cultura. Pretende ainda impor o

registro de animais da fauna silvestre e exótica mantidos pelos circos junto ao órgão

ambiental competente. Juntamente com esse Projeto, foram anexados outros

projetos que proíbem a utilização de animais silvestres e “ferozes” e até mesmo, de

qualquer tipo de animal nesses espetáculos. São eles: Projeto de Lei nº 2.875, de 18

de abril de 2000; Projeto de Lei nº 2.913, de 2 de maio de 2000; Projeto de Lei

nº 2.936, de 3 de maio de 2000; Projeto de Lei nº 2.957, de 3 de maio de 2000;

Projeto de Lei nº 2.965, de 4 de maio de 2000; Projeto de Lei nº 3.389, de 30 de

junho de 2000; Projeto de Lei nº 3.419, de 2 de agosto de 2000; Projeto de Lei

nº 4.450, de 4 de abril de 2001; Projeto de Lei nº 4.770, de 30 de maio de 2001;

Projeto de Lei nº 5.752, de 21 de novembro de 2001; Projeto de Lei nº 12, de 18 de

fevereiro de 2003; Projeto de Lei nº 6.445, de 15 de dezembro de 2005 e Projeto de

Lei nº 933, de 2 de maio de 2007.

Com o apensamento dos citados projetos, o Projeto de Lei nº 7.291, de 5 de

julho de 2006 foi alterado no dia 20 de dezembro de 2007, propondo a proibição

agora, em nível federal, a utilização de animais em circo, bem como a entrada no

Brasil de qualquer companhia circense ou similar estrangeira, caso tenham animais

incluídos em suas apresentações.182 No dia 17 de novembro de 2009, esse projeto

181

Art. 21 da Lei Estadual nº 11.977, de 25 de agosto de 2005: “É vedada a apresentação ou utilização de

animais em espetáculos circenses”. 182

Esses projetos não foram propostos por uma questão de proteção animal, mas em razão da trágica morte do

menino de seis anos, José Miguel dos Santos Fonseca Júnior, cujo corpo foi destroçado por quatro leões do circo

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112

foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça e de

Cidadania – CCJC, da Câmara dos Deputados. Desde então, aguarda-se a votação

no Plenário da Câmara para a sua devida aprovação.183

Espetáculos e parques aquáticos que utilizam animais, também se

enquadram na categoria de exposição para entreter o público.

4.3.5 Rodeio

As atividades destinadas à exibição pública, a exemplo dos tradicionais

rodeios, infligem diversos maus-tratos aos animais utilizados no espetáculo. Aliás,

boa parte do público que a eles assistem jamais imaginou os sofrimentos que

pudessem ser ocasionados.

Muito embora os realizadores desses eventos tentem impor regras e

afirmações para que tais práticas não ocasionem sofrimento ou dor aos animais, é

muito comum a ocorrência de acidentes com ferimentos e até com a morte desses

animais.184

Os rodeios são considerados como “as atividades de montaria ou de

cronometragem e as provas de laço, nas quais são avaliados a habilidade do atleta

em dominar o animal com perícia e o desempenho do próprio animal” (art. 1º,

parágrafo único da Lei 10.519, de 17 de julho de 2002). A Lei nº 10.220, de 11 de

abril de 2001, institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio,

equiparando-o a um atleta profissional.

Vostok, no dia 9 de abril de 2000, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana de Recife. O

incidente ocorreu por um descuido do domador que abriu a grade onde os animais se encontravam antes do

tempo, facilitando o ataque das pessoas próximas ao local. A Polícia Militar matou dois leões logo após o ataque

e uma hora depois matou mais outros dois animais. Após a necropsia realizada, constatou-se que os animais não

possuíam nada no estômago e, segundo informado à época, os animais haviam sido alimentados somente três

dias antes. Disponível em: http://www.apasfa.org/peti/circos/circo_news2.shtml. Acessado em 10 de fevereiro de

2011. 183

Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=329678.

Acessado em 30 de julho de 2011. 184

No dia 19 de agosto de 2011, na 56ª Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, um bezerro teve que ser

sacrificado após a prova intitulada como “bulldog”, por meio da qual o animal tem que ser derrubado, por meio

de uma imobilização com as mãos, sem o uso de nenhum equipamento. O bezerro sofreu uma lesão nas vértebras

(coluna cervical) e ficou tetraplégico. Ao cair na arena, não conseguiu se levantar e teve que ser carregado na

carroceria de um veículo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/963017-bezerro-e-sacrificado-

apos-prova-na-arena-de-barretos.shtml. Acessado em 21 de agosto de 2011.

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113

Frisa-se que a citada lei equipara os peões de boiadeiros como “atletas”.

Porém, discordamos de qualquer opinião no sentido de justificar os rodeios como

uma modalidade esportiva. Trata-se, na verdade, de um grande negócio

empresarial.

A Lei nº 10.519, de 17 de julho de 2002, dispõe sobre a promoção e

fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeio, por meio da

qual afirma que caberá à entidade promotora do rodeio, a suas expensas, prover:

médico veterinário habilitado, responsável pela garantia da boa condição física e

sanitária dos animais e pelo cumprimento das normas disciplinadoras, impedindo

maus tratos e injúrias de qualquer ordem; transporte dos animais em veículos

apropriados e instalação de infraestrutura que garanta a integridade física deles

durante sua chegada, acomodação e alimentação e arena das competições e bretes

cercados com material resistente e com piso de areia ou outro material acolchoado

próprio para o amortecimento do impacto de eventual queda do peão de boiadeiro

ou do animal montado.185

Esse dispositivo legal determina ainda que os apetrechos técnicos utilizados

nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão causar

injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela

entidade representativa do rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas.186

Todavia, mesmo que essas regras fossem cumpridas literalmente, ainda

assim os animais utilizados nesses “espetáculos” apresentariam sofrimento e maus-

tratos.

Antes de se apresentarem os equinos e bovinos comumente empregados em

rodeios, são frequentemente provocados por choques elétricos ou mecânicos. Os

seus organizadores ainda utilizam o sedém ou sedenho, uma espécie de corda

trançada – de couro ou de fibra – enlaçada entre a bolsa escrotal e o pênis dos

animais que, sob o domínio da dor, forçam-nos a realizar saltos involuntários.

185

Art. 3º, incisos II, III e IV. 186

Art. 4º. Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não

poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela entidade

representativa do rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas.

§ 1o As cintas, cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas

para garantir o conforto dos animais.

§ 2o Fica expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que

cause ferimentos nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos.

§ 3º As cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal.

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114

Durante a apresentação, são forçados a práticas extremamente dolorosas,

consistindo em ser laçados e derrubados em alta velocidade, após a perseguição na

arena ou quando os garrotes são derrubados por um dos peões que seguram os

animais pelos chifres e os derrubam, contorcendo seu pescoço.

Outros métodos ainda utilizados consistem nas provas de selas. Nessas

provas, o peão ou cavaleiro faz movimentos com as pernas, devendo ser batidas

contra o corpo do animal. Muitas vezes são usadas esporas que proporcionam

diversas mutilações e dores.

Na prova de laço de garrote os animais recém-nascidos são perseguidos,

laçados e derrubados pelos peões, o que muitas vezes provoca lesões graves na

coluna vertebral do animal.

A prova de montaria em cavalos sem selas é realizada com uma alça apensa

à barriga do animal, o que provoca dor e sofrimento nele.

Por fim, existe ainda a montaria em cavalo sobre a qual o peão deve

permanecer por oito segundos. Ganha mais pontos aquele que golpear as esporas

com maior vigor e força na região do pescoço do animal.

Verifica-se com facilidade que não somente a prática do rodeio configura

maus-tratos, como também são empregados diversos instrumentos de estímulo,

que, de fato, são instrumentos de tortura.

Os maiores defensores dessas práticas cruéis afirmam que essa atividade faz

parte da cultura popular brasileira e que os métodos estimulantes utilizados, como o

sedém, por exemplo, não configuram maus-tratos.

Todavia, Irvênia Prada descreve sinais fisiológicos, facilmente evidenciáveis,

de dor e sofrimento em animais de rodeios, sendo um desses sinais a midríase

(estado de dilatação das pupilas) em presença de luz, quando o esperado seria a

ocorrência de miose (estado de constrição das pupilas, em resposta à presença de

luz natural ou artificial no ambiente).187 Afirma ainda que:

187

PRADA, Irvênia Luiza de Santis. et al. Bases Metodológicas e neurofuncionais da avaliação de ocorrência de

dor/sofrimento em animais. São Paulo: CRMV-SP, 2002, vol. 5, fascículo 1, p. 1-13.

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A midríase acontece na ausência de luz e, ainda, quando situações que caracterizam o to

fight or to flight, ou seja, o lutar ou fugir. Este sinal fisiológico (midríase), nessas

condições, é indicativo de vivência da Síndrome de Emergência de Cannon (Machado,

1993, p. 135), quando o sistema nervoso simpático é ativado, produzindo uma descarga

em massa na qual a medular da suprarrenal é também ativada, lançando no sangue a

adrenalina que age em todo o organismo. É uma reação de alarme.

Quando o ser humano ou animal se sente ameaçado, agredido, assustado, com medo ou

em pânico, automaticamente (de maneira involuntária e inconsciente), seu organismo é

preparado para essa situação de emergência. Acontece, então, a taquicardia (aumento da

frequência cardíaca), aumento da pressão arterial, dilatação dos brônquios para facilitar a

função respiratória, aumento do aporte sanguíneo para os músculos, pois eles serão

solicitados para ou lutar ou fugir, diminuição de sangue no território cutâneo (no ser

humano é mais fácil perceber-se isto, pela palidez), transformação rápida de glicogênio

em glicose (“combustível” energético para a ação dos músculos) e dilatação das pupilas

(midríase).

A ocorrência de midríase, nessa situação, não acontece sozinha, mas faz-se acompanhar

de outros sinais da Síndrome de Emergência de Cannon, sendo altamente indicativa, do

ponto de vista científico, de que os animais – no caso de rodeios, bovinos e equinos –

estejam vivenciando sofrimento.

No Estado de São Paulo, a Lei nº 10.359, de 30 de agosto de 1999, dispõe

sobre normas a serem observadas na promoção e fiscalização da defesa sanitária

animal quando forem realizados os rodeios. Todavia, referida lei não proibiu alguns

métodos de tortura que ocasionam dor a estes animais e apenas minimizam o uso

dos instrumentos.188

188

Artigo 8º. “Ficam especialmente proibidas as seguintes práticas lesivas às condições de sanidade dos

animais:

I- privação de alimentos;

II- uso, na condução e domínio dos animais, ou durante as montarias, dos seguintes equipamentos:

a) qualquer tipo de aparelho que provoque choques elétricos;

b) esporas com rosetas que contenham pontas, quinas ou ganchos perfurantes;

c) sedém fora de especificações técnicas, que cause lesão física ao animal;

d barrigueira que igualmente não atenda às especificações técnicas ora recomendadas.

Parágrafo único - Não haverá restrições à utilização de:

1- esporas segundo modelos não agressores, usados internacionalmente e aprovados por associações de rodeio

de outros países;

2- sedém confeccionado em material que não fira o animal. No sedém a ser usado em montaria, o segmento que

ficar em contato com a parte interior do corpo do animal deve ser de material macio (lã ou algodão), excluídos,

em qualquer caso, acessórios que importem em lesões físicas;

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116

O art. 10º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, por seu lado, diz

que nenhum animal deve ser explorado para divertimento do homem, e que as

exibições de animais e os espetáculos que os utilizem são incompatíveis com a

dignidade do animal.

Em termos econômicos, as atividades de rodeio são extremamente rentáveis,

pois incluem diversas atrações em seu entorno, tais como shows e parques de

diversão. Todavia, se a atividade pode ser considerada como uma manifestação

cultural – muito embora haja uma discussão acerca dessa questão – ao menos

poder-se-ia evitar os maus-tratos e crueldades com os seus animais.

4.3.6 Vaquejada

A vaquejada, tal qual como o rodeio, configura uma verdadeira crueldade

contra os animais utilizados. A sua origem vem do Estado de Pernambuco.

Essa modalidade “esportiva” consiste em que dois vaqueiros, o chamado

puxador e o chamado esteireiro, acompanhem montados em seus cavalos, um boi

na saída do box (a chamada sangra) até uma faixa delimitada no chão. Esses

vaqueiros devem derrubar o boi, arrastando-o brutalmente pelos rabos até

mostrarem as quatro patas. Caso o animal, ao cair, levante as quatro patas, são

dados pontos extras aos vaqueiros.

Na vaquejada, os animais são severamente feridos com os tombos a que são

forçados, tais como luxações, fraturas e hemorragia interna.

Infelizmente, dia após dia, essa modalidade vem ganhando novos adeptos,

sendo hoje apoiada e financiada por muitos empresários do ramo, bem como por

muitas prefeituras municipais do interior do nordeste.

3- barrigueira confeccionada em largura de, no mínimo 17,0 centímetros, que não cause desconforto ao animal

em montarias de modalidade „sela americana‟, „bareback‟ e „cutiano‟”.

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117

4.3.7 Rinhas de galo

Com aproximadamente um ano de idade, o galo está em condições de

participar de uma rinha à qual é severamente submetido. Todavia, para tanto, e para

que esteja apto para a briga, é necessário um processo de treinamento que dura

cerca de sessenta e nove dias.

Durante esse processo, o animal é “pelinchado”. São cortadas as penas do

pescoço, das coxas e debaixo das asas, além de ter as barbelas e as pálpebras

operadas.

É dado, então, início ao chamado “treinamento básico”, em que o treinador

arremessa o animal para cima, deixando-o cair para que tenha as suas pernas

fortalecidas. Outro procedimento consiste em puxá-lo pelo rabo, arrastando-o em

forma de oito, entre as pernas separadas.

Posteriormente, outra etapa do “treinamento” consiste em suspender o galo

pelo rabo para fortalecer suas unhas na areia, bem como empurrar o animal pelo

pescoço, fazendo-o girar em círculos, como um pião. Em seguida, o animal é

escovado para desenvolver a musculatura e avivar a cor das penas, além de ser

banhado em água fria e colocado ao sol até abrir o bico de tanto desgaste físico.189

Todos esses procedimentos são empregados para aumentar a resistência do

animal. Além de toda tortura e sofrimento a que é submetido durante a dura etapa

do treinamento inicial, é ainda obrigado a viver em uma curta gaiola; a circular em

espaços maiores apenas durante o período de treinamento, quando é colocado na

passadeira que, em regra, mede dois metros de comprimento por um metro de

largura.

O treinamento encerra-se quando o galo é obrigado a brigar com outro de sua

espécie, apenas como uma prática de ringue. Nesses casos, as esporas e as

biqueiras são acolchoadas para evitar o ferimento do animal.

Ao encerrar o treinamento, o animal é levado ao ringue calçando esporas de

metal e com bico de prata, que é utilizado para ferir mais ou para substituir o bico

que já fora perdido em lutas anteriores. As lutas têm a duração de uma hora e

189

DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 194.

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118

quinze minutos, com quatro descansos de cinco minutos. É considerado vencedor o

galo que deferir golpe mortal ou que nocautear o adversário por mais de um minuto.

Verifica-se, portanto, que as rinhas de galos, ao contrário do que ainda

defendem alguns adeptos dessa suposta modalidade esportiva, consistem em algo

extremamente cruel, além de sádico e perverso.

4.3.8 Touradas

O Brasil, felizmente, não possui as touradas portuguesas ou espanholas.

Todavia, tal fato se deve exclusivamente às leis protetivas aos animais existentes

em nosso ordenamento pátrio, uma vez que, por diversas oportunidades, tentaram

implantar essa brutalidade e crueldade contra os touros.

A primeira tentativa de se trazer a tourada para o Brasil ocorreu com a

comemoração do IV centenário do Rio de Janeiro. O projeto de Lei nº 763/50, que

previa a instituição da prática, foi derrotado no Senado Federal, com a pressão do

Instituto dos Advogados do Brasil, bem como das diversas associações protetoras

dos animais existentes à época.190

Posteriormente, em julho de 1984, a Tomazeli Indústria e Comércio de

Novidades Ltda., com sede em Lisboa (Portugal), pretendia também realizar uma

tourada à portuguesa, com o suposto interesse de divulgação no país dessa

diversão ibérica. A Procuradoria de Justiça e a Procuradoria do Estado do Rio de

Janeiro derrubaram essa absurda pretensão, com base no art. 3º, inc. XXIX, do

Decreto 24.645/34. Em 1996, a colônia espanhola realizou em São Paulo o I

Encontro Hispano-Brasileiro de Tauromaquia, com a nítida pretensão de alguns

espanhóis trazerem as touradas ao país.191

Verifica-se que, não somente em relação às touradas, mas em todos os tipos

de crueldade com os animais a cultura é uma das grandes justificativas que se

apresentam para as levianas pretensões. Entretanto, por trás do pretexto de uma

190

DIAS, Edna Cardozo. Op. cit. p. 214. 191

DIAS, Edna Cardozo. Op. cit. p. 214.

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119

suposta divulgação cultural, reside, na verdade, a pretensão e a intenção de obter

altos lucros com referidas atividades.

Edna Cardozo Dias descreve em detalhes os maus-tratos para a preparação

do boi para as touradas. A preparação consiste em introduzir tufos de papel molhado

em seus ouvidos, além do corte dos chifres para que o animal fique desorientado;

coloca-se vaselina nos olhos para ofuscar a visão; chumaços de algodão são

introduzidos nas narinas para obstrução da respiração; soluções irritantes são

passadas nas pernas para que o animal fique cambaleando; são inseridas agulhas

nos órgãos genitais; o chifre é lixado para que fique mais indefeso. Em seguida, o

boi é confinado em um local escuro para infligir terror, além de serem ministrados

laxantes na véspera e colocados sacos de areia na altura dos rins para que o animal

se enfraqueça.192

Ao adentrar a arena, o picador fere o pescoço do animal com um arpão que

penetra de três a onze centímetros, provocando, em alguns casos, uma hemorragia

abundante ou um ferimento no pulmão.

Dando continuidade à apresentação, os “banderillos” enterram afiados arpões

metálicos nas mesmas feridas ou próximas a elas, já abertas pelo picador. Essas

feridas e as “banderillas” impedem que o animal possa levantar a cabeça.

Após um “espetáculo” sangrento, o matador crava a espada próxima ao

coração ou a algum vaso sanguíneo importante. Como essa ação raramente ocorre

de forma eficiente, o animal é atingido no pulmão, sofrendo graves hemorragias e é

sufocado pelo vômito de seu próprio sangue. Como aduz Edna Cardozo Dias:

A essa altura, o touro já está quase morrendo, urinando descontroladamente, com suas

funções vitais em colapso. Ferozmente acossado, o aterrorizado animal cai não só

sangrando, mas chorando. Finalmente, é dado um golpe com o intuito de secionar a

medula espinhal. Se a medula não é secionada, mas apenas danificada, o animal fica

semiparalisado, ainda vivo. Isto não impede que sua orelha seja cortada, seu rabo cortado

e que seja arrastado ainda vivo para ser esquartejado.193

192

DIAS, Edna Cardozo. Op. cit. p. 217. 193

Op. cit. p. 218.

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120

Ao contrário de qualquer afirmação e alegação para a manutenção de uma

prática tão retrógrada e extremamente cruel para com esses animais, não se pode

justificar a sua manutenção com base na leviana argumentação de cultura.

4.3.9 Animais de estimação

O Código de Ética do médico veterinário, Resolução nº 722, de 16 de agosto

de 2002, prega um juramento de seus profissionais em que buscam uma

harmonização entre ciência e arte, aplicando os seus conhecimentos para o

“desenvolvimento científico e tecnológico em benefício da sanidade e do bem-estar

dos animais, da qualidade dos seus produtos e da prevenção de zoonoses, tendo

como compromissos a promoção do desenvolvimento sustentado, a preservação da

biodiversidade, a melhoria da qualidade de vida e o progresso justo e equilibrado da

sociedade humana”.

Portanto, os profissionais da medicina veterinária devem, necessariamente,

buscar os seus conhecimentos em prol do bem-estar animal, tendo como dever, a

denúncia às autoridades competentes contra qualquer forma de agressão aos

animais (art. 2º) e, no exercício profissional, usar procedimentos humanitários para

evitar o sofrimento e dor ao animal (art. 4º).

Atualmente, os animais domésticos são considerados por muitos, como

membros da própria família. Eles possuem grande valor para a sociedade como um

todo, uma vez que fazem companhias para as pessoas carentes e solitárias ou

mesmo agregam um ser a mais na própria família; servem como um processo de

educação para crianças e adultos nos tratos com os animais e os demais seres

vivos em geral; e servem como guias para as pessoas cegas e até como parte de

tratamento para crianças ou adultos com deficiência.194

194

A equoterapia é um método terapêutico e educacional que utiliza o cavalo dentro de uma abordagem

interdisciplinar, nas áreas de saúde, educação e equitação, buscando o desenvolvimento biopsicossocial de

pessoas portadoras de deficiência e/ou de necessidades especiais. Na equoterapia, o cavalo é utilizado como um

meio de se alcançar os objetivos terapêuticos. Ela exige a participação do corpo inteiro, de todos os músculos e

de todas as articulações.

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Todavia, o amor incondicional a esses animais pode provocar, também, um

sofrimento a eles, muitas vezes causado pelo enorme crescimento desse mercado e

pelos ditames estéticos impostos. As práticas mais corriqueiras são o corte de

orelhas (conchectomia) e o corte de caudas (caudectomia). Existem ainda a

subtração das cordas vocais (cordotomia)195 e a extração de unhas (onicectomia). O

art. 7º, da Resolução nº 877, de 15 de fevereiro de 2008, do Conselho Federal de

Medicina Veterinária assim dispõe acerca do presente tema:

Art. 7° Ficam proibidas as cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a

capacidade de expressão do comportamento natural da espécie, sendo permitidas apenas

as cirurgias que atendam as indicações clínicas.

§ 1°. São considerados procedimentos proibidos na prática médico-veterinária:

conchectomia e cordectomia em cães e, onicectomia em felinos.

§ 2°. A caudectomia é considerada um procedimento cirúrgico não recomendável na

prática médico-veterinária.

Assim, é vedada a prática de corte de orelhas (conchectomia) comumente

realizada e que causa imensa dor ao animal. Já a cirurgia de corte de caudas

(caudectomia) não é proibida, mas foi desaconselhada.

Assim como as orelhas, a cauda tem a função de equilíbrio no animal e,

atualmente, questiona-se o motivo estético para a referida mutilação.

Alguns países da Europa proibiram as cirurgias de conchectomia e

caudectomia, como a Inglaterra em 1985 (conchectomia) e em 1993 (caudectomia

para fins não terapêuticos). A Alemanha seguiu os mesmos passos e em 1997

proibiu o corte de orelhas e em 1998, o corte de caudas. Já a Suíça, desde 1997

proíbe as duas modalidades cirúrgicas.

195

No Estado de São Paulo, desde 10 de outubro de 2003, a Lei nº 11.488 proibiu a cirurgia de cordotomia em

cães e gatos.

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5. EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

5.1 Ética na Experimentação Animal e a Lei nº 11.794/2008

Os defensores do que se convencionou chamar libertação animal pregam a

sua liberdade plena. Em outros termos, afirmam que o animal não pode servir de

alimento, ser utilizado como vestuário, se prestar a experimentos científicos, ser

objeto de demonstração ao público em zoológicos. Alguns mais radicais defendem

até mesmo que não deve haver animais de estimação.

Os adeptos desse movimento não se contentam em combater o

comportamento antropocêntrico da sociedade. Eles também advogam como

justificativa para a não utilização dos animais em experimentação científica, o fato do

especismo para com esses seres, tal como ocorreu na Alemanha nazista em relação

aos judeus. Em outros termos, essa visão aponta que a experimentação científica

com animais seria também um preconceito sobre as chamadas “raças inferiores”.

Com esse argumento radical, eles não admitem as experiências científicas com

animais porque equiparam-se às experiências dos nazistas na tentativa de melhorar

as espécies.196

Todavia, apesar da argumentação em contrário – pela qual nutrimos respeito

e admiração em muitos pontos questionados –, não se pode negar que o avanço da

ciência deve-se em grande parte à experimentação animal. É de se esperar, com o

passar do tempo, que a ciência resolva definitivamente esta questão, seja pelo uso

de modelos virtuais ou pela criação de novas condições de testes laboratoriais,

como o da criação da pele artificial.

A ciência, ao lado da religião, da arte e da filosofia, é uma das formas de o

homem compreender o universo. A evolução dos conhecimentos científicos

transformou a concepção humana não somente em relação à visão histórica que o

196

Peter Singer é um dos grandes autores que entendem dessa maneira. Durante o período da Alemanha nazista,

muitos experimentos foram realizados em seres humanos, tais como a câmara de descompressão.

Posteriormente, outros experimentos foram realizados também com seres humanos sem os seus consentimentos,

como o caso do Alabama, com negros com sífilis sem o devido uso da penicilina e na Nova Zelândia em que

mulheres com câncer não tiveram o tratamento adequado, devido a uma experiência sem embasamento técnico.

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homem possuía do universo, como também mudou drasticamente o próprio modo de

vida em que vivemos.

Na área da saúde, seja ela humana, seja animal, os inúmeros avanços

tecnológicos e de conhecimento requereram, em sua grande parte, a utilização de

animais. Podemos citar como exemplos a evolução em diferentes áreas: a fisiologia,

a imunologia, a neurociência, a cardiologia, a farmacologia, dentre muitas outras.

As descobertas para a fisiologia do organismo humano ou não humano e a

relação do processo saúde-doença, a descoberta de vacinas e fármacos ou o

desenvolvimento de novos métodos diagnósticos, necessitavam ou necessitam,

evidentemente, de experimentos em seres vivos. Em razão de inúmeras questões

éticas, a utilização de seres humanos não é, em regra, permitida, motivo pelo qual

essa prática em seres não humanos foi, e continua sendo, largamente utilizada.

Como visto anteriormente, a questão da ética remete aos tempos dos antigos

filósofos. Naquela época a conduta ética era considerada ou aceita no contexto de

um determinado ponto de vista dentro de um conceito de “valor universal”. Ou seja,

ao se emitir um juízo ético, dever-se-ia extrapolar as preferências e aversões

pessoais em prol de um preceito universal que abrigasse os interesses de outros.

Todavia, explicar o conceito de ética não se resume, evidentemente, apenas

a um conceito de valor universal. Existem inúmeras teorias filosóficas para explicar e

conceituar o que seria certo e errado. Porém, inexiste um consenso ou aceitação

geral em relação a essas teorias.

O grande problema para estabelecer um consenso definitivo de teorias éticas

reside no fato de que a tentativa de descrever os valores universais – de tal modo

que construa uma ética particular – chegue a tal ponto de uma acusação e na

introdução das nossas próprias convicções éticas.

É possível que existam muitos casos de experimentos desnecessários,

repetitivos e completamente desprovidos de técnicas ou embasamento científico.

Porém, não se defende aqui a utilização animal para fins de aperfeiçoamento da

ciência e melhorias na saúde humana e não humana simplesmente sem a sua

devida regularização ou sem um eficaz controle ético-cientifico. Ao contrário, o

Conselho de Ética já existente, além de ser composto por cientistas, por acadêmicos

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124

e por pessoas ligadas à defesa e ao bem-estar animal,197 deve estar apto e

independente para avaliar a relação custo-benefício, não em termos econômicos,

mas, sim, o custo da vida animal e os benefícios da pesquisa a ser realizada.

Não se pode negar os inúmeros avanços alcançados com as experiências em

animais, principalmente no campo da medicina, com os remédios e as vacinas já

produzidos. Também não se nega que muitas drogas consideradas seguras após

testes em animais, mostraram-se completamente nocivas aos seres humanos,

como, por exemplo, a talidomida (droga teratogênica que provocava deformações

nos seres humanos), o remédio para artrite Opren (que levou a óbito mais de

sessenta pessoas e registrou cerca de 3.500 casos graves na Grã-Bretanha), o

remédio para cardiopatas Practolol (um beta bloqueador utilizado em arritmias

cardíacas e que causou cegueira em seus usuários) e o antitussígeno Zipeprol (que

provocou convulsões e coma em alguns doentes).

Há também o efeito inverso, ou seja, muitos medicamentos não representam

risco à saúde humana, mas provocam um severo dano e risco aos animais, como,

por exemplo, a insulina (que ocasionava deformidade em coelhos e camundongos) e

a morfina (que provocava frenesi nos ratos). Um argumento muito utilizado, no dizer

de Singer, diz que se a penicilina fosse julgada por sua toxicidade em cobaias,

jamais teria sido utilizada nos homens.198

Em parte, cumpre dizer, o avanço e o progresso humano no estágio em que

nos encontramos foi possível também com o somatório de outros fatores, tais como

melhoria nas condições sanitárias, melhor alimentação e cuidados com a saúde, e

não apenas com o avanço das experiências com animais.

A questão da ciência do bem-estar animal e da bioética surge a partir da

década de 1970 quando o cenário mundial inicia as discussões sobre o uso de

animais em experimentação. Concomitante a essa discussão, surgem as comissões

de éticas no uso de animais, as chamadas CEUAs, tendo sido criada primeiramente

na Suécia em 1979. Nas décadas seguintes, outros países seguiram o exemplo

197

O art. 4º da Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, criou o Conselho Nacional de Controle de

Experimentação Animal – CONCEA e o Decreto nº 6.899, de 15 de julho de 2009, regulamentou-o. 198

SINGER, Peter. Op. cit. p. 64.

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125

sueco. As comissões de éticas no Brasil foram criadas tardiamente, em meados da

década de 1990, com os intensos debates acerca do tema no cenário mundial.199

Posteriormente, no dia 8 de outubro de 2008 foi promulgada a Lei nº 11.794,

que estabeleceu procedimentos para o uso científico de animais. Após treze anos de

tramitação, o projeto de Lei nº 1.153, de 26 de outubro de 1995, do ex-deputado

Sérgio Arouca foi aprovado, dando ensejo à chamada Lei Arouca, já citada em

páginas anteriores.

A Lei Arouca revogou expressamente a Lei nº 6.638, de 8 de maio de 1979,

de igual modo referida anteriormente, que estipulava normas para a prática didática

e científica da vivissecção de animais. Como não existia legislação que

regulamentasse o assunto, a aprovação dessa lei beneficiou parcialmente a prática

da experimentação animal, muito embora os defensores da teoria abolicionista

animal a tivessem visto como um retrocesso, uma vez que ela acabou ampliando o

campo da experimentação animal.

De fato, a Lei nº 11.794/2008, ao permitir o uso de animais não somente no

ensino superior, mas também em estabelecimentos de nível médio, mesmo que em

caráter técnico profissional,200 ampliou demasiadamente os experimentos científicos

com animais, caminhando na contra mão da nova tendência mundial em reduzir

esses experimentos.

Alguns autores sustentam, inclusive, a inconstitucionalidade de um de seus

artigos. Trata-se, basicamente, do inciso II, § 1º, do art. 1º, que autoriza a utilização

de animais em atividades de ensino e pesquisa científica também em

estabelecimentos de educação profissional técnica de nível médio da área

biomédica. Esse artigo não deixa de ser um retrocesso na esfera da lei ambiental,

pois se a medida protetória anterior restringia apenas a utilização de animais na

experimentação no nível superior (art. 3º, inciso 5º da Lei 6.638/1979),201 o

199

TAMBOURGI, Denise V. et al. Manual prático sobre usos e cuidados éticos de animais de laboratório.

TAMBOURGI, Denise V. et al. (org.). São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2010, p. 3-5. 200

Art. 1º. “A criação e a utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica, em todo o

território nacional, obedecem aos critérios estabelecidos nesta Lei.

§ 1º. A utilização de animais em atividades educacionais fica restrita a:

I– estabelecimentos de ensino superior;

II– estabelecimentos de educação profissional técnica de nível médio da área biomédica”. 201

Art. 3º. “A vivissecção não será permitida:

V- em estabelecimento de ensino de 1º e 2º graus e em quaisquer locais frequentados por menores de idade”.

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retrocesso nos preceitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição

Federal, se violados, são inconstitucionais.202

Nas palavras de Phitan e Grey: “se atualmente já se discute quanto à real

necessidade da utilização de animais no ensino superior, como então sustentar essa

hipotética necessidade para estabelecimentos de ensino médio? A perspectiva é

inviável”.203

A chamada Lei Arouca possui ainda algumas outras impropriedades e

contrastes já enfatizadas por alguns autores. Um ponto de destaque refere-se ao

parágrafo único, inciso II, do art. 3º, quando afirma que não se considera

experimento científico: “o anilhamento, a tatuagem, a marcação ou a aplicação de

outro método com finalidade de identificação do animal, desde que cause apenas

dor ou aflição momentânea ou dano passageiro”.

Ora, pela lógica do pensamento se concluiria que métodos que provocassem

dor permanente ao animal seriam considerados experimentos científicos. Constata-

se uma incoerência do texto da lei, uma vez que a pretensão do artigo remete à

permissão da marcação em experimentos científicos, cujos novos métodos de

marcação sejam testados.

Outro ponto de crítica feita na lei em comento refere-se ao inciso IV, do art. 3º,

ao definir a morte por meios humanitários, como “a morte de um animal em

condições que envolvam, segundo as espécies, um mínimo de sofrimento físico ou

mental”. A crítica se refere à falta de definição do que seria um mínimo de sofrimento

físico ou mental, a ser considerado para o experimento a ser realizado; com efeito,

fica a dúvida quanto à possibilidade de não realizar referido experimento quando

puder ocasionar um excessivo sofrimento ao animal.

Todavia, a significativa inovação ou questão inerente à Lei Arouca se refere

ao Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA e às

Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs.

202

PITHAN, Lívia H.; GREY, Natália de Campos. Comentários sobre a evolução da legislação ambiental

concernente aos animais e às perspectivas quanto à Lei 11.794/2008. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos

Santos; BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na

Pesquisa e no Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 141. 203

Op. cit. p. 141.

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127

No tocante ao CONCEA, a expectativa surgida no art. 14 da Lei

nº 11.794/2008,204 situa-se na possibilidade e na capacidade de o referido órgão

vetar determinados experimentos científicos, caso se reconheça a dor excessiva a

ser infligida aos animais. A comunidade acadêmica e a Sociedade Protetora dos

Animais esperam que tal poder de veto possa ser efetivado.

Uma crítica muito interessante apresentada por Lívia H. Pithan e Natália de

Campos Grey refere-se à vinculação do CONCEA ao Ministério da Ciência e

Tecnologia (art. 6º, § 2º e art. 7º)205 e não ao Ministério do Meio Ambiente, apesar de

ele contar com um representante dentro desse colegiado.

Segundo referidas autoras,206 se a Lei nº 11.794/2008 possui em seu

preâmbulo o objetivo de regular o art. 225 da Constituição Federal (deveres

fundamentais em relação ao meio ambiente, por meio do qual os animais fazem

parte integrante, sendo vedadas praticas cruéis), o mais adequado seria que os

órgãos e as instituições por ela estabelecidos fossem vinculados em primeiro plano

ao Ministério do Meio Ambiente e não ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Por

mais respeitável que seja, esse ministério possui interesses diversos – e às vezes

opostos – quanto à proteção do meio ambiente e dos animais, tornando o

regulamento enfraquecido em seus objetivos.

Já em relação às Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs, a Lei

nº 11.794/2008 tornou obrigatória a sua existência, muito embora algumas

comissões de ética já existissem em diversas instituições antes da promulgação da

Lei Arouca.207 Essas comissões, se bem acompanhadas por parte dos educadores e

das sociedades protetoras dos animais, podem proibir as práticas de pesquisas que

204

Art. 14. O animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos

que constituem a pesquisa ou programa de aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber

cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA. 205

Art. 6º. “O CONCEA é constituído por:

(...)

§ 2º A Secretaria-Executiva é responsável pelo expediente do CONCEA e terá o apoio administrativo do

Ministério da Ciência e Tecnologia”.

Art. 7º. “O CONCEA será presidido pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia e integrado por:

(...)”. 206

PITHAN, Lívia H.; GREY. Natália de Campos. Op. cit. p. 143. 207

No Estado de São Paulo, a Lei Estadual nº 11.977, de 25 de agosto de 2005, que instituiu o Código de

Proteção aos Animais no Estado, determinava em seu art. 25 que: “É condição indispensável para o registro das

instituições de atividades de pesquisa com animais, a constituição prévia de Comissão de Ética no Uso de

Animais - CEUA, cujo funcionamento, composição e atribuições devem constar de Estatuto próprio e cujas

orientações devem constar do Protocolo a ser atendido pelo estabelecimento de pesquisa”.

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128

entenderem cruéis. É um poder extremamente importante quando posto em prática,

utilizado e respeitado eficazmente.

Muitas organizações abolicionistas e membros de entidades de proteção

animal entendem que o papel dos comitês de ética é apenas legitimar o uso de

animais, e não de controlar e proibir sua utilização. Dessa forma, opõem-se

severamente à existência desses comitês e se recusam a participar das suas

decisões.208

Todavia, tanto o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal –

CONCEA, quanto as Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs, enfrentarão

dificuldades na sua implementação. Na verdade, sendo formado por um grupo

multidisciplinar com a finalidade de orientar o uso de animais na experimentação,

deverão ser implantadas diversas mudanças, principalmente de cunho cultural, em

uma sociedade marcadamente antropocêntrica. Ou seja, antes de qualquer coisa,

deve-se ampliar a visão ética humana em relação aos demais seres vivos da

natureza.

A Lei nº 11.794/2008 possibilitou a participação de membros da Sociedade

Protetora dos Animais, tanto no Conselho Nacional de Controle de Experimentação

Animal – CONCEA (dois participantes), quanto nas Comissões de Ética no Uso de

Animais – CEUAs (um participante). Essa inovação, entretanto, não agradou nem os

cientistas, que contarão com a participação de membros radicalmente contrários a

utilização animal em experimentos científicos, ainda que justificados, e nem os

grupos abolicionistas, que buscam erradicar a participação dos animais em

experimentos científicos de qualquer maneira.

Todavia, entende-se que essa inovação foi extremamente positiva, uma vez

que agregou posições antagônicas, as quais, certamente, contribuirão para um

aprofundamento do assunto e enriquecimento no debate das questões animais.

Portanto, o parecer qualitativo das Comissões de Ética no Uso de Animais – CEUAs

em relação aos projetos de pesquisas e atividades práticas deverão considerar

todos os aspectos éticos pertinentes.

208

ALMEIDA SILVA, Tagore Trajano de. Antivivisseccionismo e direito animal: em direção a uma nova ética

na pesquisa científica. LECEY, Eladio; CAPPELLI, Sílvia (coords.). Revista de Direito Ambiental, ano 14, nº

53. São Paulo: RT, 2009, p. 286.

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5.2 Animais na Pesquisa e no Ensino

O problema da vivissecção animal é hoje um dos temas que polariza tanto a

comunidade científica quanto os defensores dos direitos dos animais. Um lado

pauta-se pela defesa e necessidade da ciência; o outro, questiona a ética envolvida

na vivissecção animal para a satisfação da necessidade humana.

Os movimentos voltados para a proteção animal tiveram notoriedade a partir

dos anos de 1970, quando se fortaleceu o debate sobre a necessidade e o

significado de sua utilização em experimentação. A ampliação do debate –

influenciado pelos movimentos sociais e pela pressão desses grupos sobre os

pesquisadores, as instituições e os órgãos governamentais – incrementou o

processo de controle da pesquisa biomédica. Os principais fenômenos dessa

conjectura que se apresentava com um caráter político, acarretaram no surgimento

de leis mais rigorosas em diversos países, no aparecimento de comitês institucionais

de ética no uso de animais em experimentação e o controle por parte de agências

de financiamento e novas políticas editorais.

A Lei nº 6.638, de 8 de maio de 1979, permitia a vivissecção somente em

instituições de ensino superior, sendo vedadas as práticas nos estabelecimentos de

1º e 2º graus.209 Como visto acima, a Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008,

permitiu a vivissecção em estabelecimentos de ensino técnico de 2º grau da área

biomédica.210 De acordo com o entendimento da advogada Geuza Leitão, tal

mudança significou “um retrocesso moral e científico, tendo em vista que a

experimentação animal no ensino já foi proibida em vários países”.211

O pensamento de muitos abolicionistas é de que o intuito do legislador, em

tese, foi aplicar o princípio dos 3Rs (replacement, reduction e refinement). 209

“Art. 3º: A vivissecção não será permitida:

(…)

V- em estabelecimento de ensino de 1º e 2º graus e em quaisquer locais frequentados por menores de idade”. 210

“Art. 1º A criação e a utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica, em todo o território

nacional, obedecem aos critérios estabelecidos nesta Lei.

§ 1º A utilização de animais em atividades educacionais fica restrita a:

I- estabelecimentos de ensino superior;

II- estabelecimentos de educação profissional técnica de nível médio da área biomédica”. 211

LEITÃO, Geuza. Lei Arouca. Disponível em: http://www.olaonline.com.br/arquivos/texto_geuza.doc. Apud

TINOCO. Isis Alexandra Pincella. Lei Arouca: Avanço ou Retrocesso? Disponível em:

http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/leiaroucaavanoouretrocesso.pdf. Acessado em 27 de outubro de

2010.

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130

Entretanto, ao permitir a vivissecção em ensino técnico de 2º grau (prática antes

proibida pela lei de 1979), está sendo feito justamente o oposto, ou seja, o número

dessas práticas agora tende a aumentar e não a reduzir.212

O principio dos 3Rs foi divulgado em 1959 por W.M.S. Russel e R.L. Burch,

no livro intitulado The Principle of Humane Experimental Technique o qual se refere

às siglas de três palavras em inglês: Replacement (Substituição), que determina a

substituição de animais vertebrados vivos e sencientes por qualquer método

científico que empregue material sem sensibilidade, isto é, a utilização de métodos

alternativos, sempre que possíveis; Reduction (Redução), que estabelece a redução

no número de animais usados na experimentação em uma quantidade mínima

necessária para se obter a informação de uma amostra com precisão; e Refinement

(Refinamento), a orientação de métodos adequados de anestésicos, sedação e

eutanásia, com o intuito de reduzir a dor e o desconforto, evitando ao máximo o

estresse dos animais.

Por motivos desconhecidos, o princípio dos 3Rs somente veio à tona em

meados de 1986 nas diretivas dos países europeus e na Convenção Europeia de

Proteção aos Animais. Atualmente, diversos países tentam pregar os conceitos dos

3Rs nas questões éticas que envolvem o uso de animais em experimentação.

A publicação desses conceitos foi oportuna na medida em que ocorreu antes

da divulgação do número de animais usados nos procedimentos científicos; número

este que aumentou consideravelmente com o desenvolvimento da indústria

farmacêutica e agroquímica e com a expansão das pesquisas acadêmicas nas

ciências médicas.213

O debate atual em torno do assunto demonstra que muitos avanços

ocorreram no campo da discussão ética envolvendo o uso de animais em

experimentação. Do mesmo modo o avanço da tecnologia permitiu a sua diminuição

e a não realização de diversos experimentos repetitivos e desnecessários no campo

científico. Todavia, muito ainda necessita ser feito, principalmente quando se trata

212

TINOCO, Isis Alexandra Pincella. Lei Arouca: Avanço ou Retrocesso? Disponível em:

http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/leiaroucaavanoouretrocesso.pdf. Acessado em 27 de outubro de

2010. 213

BRYAN, Howard. The three Rs and animal care and use. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos;

BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na Pesquisa e no

Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 110.

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131

de evitar a realização de experimentos que ocasionam dor ou sofrimento aos

animais.

Nos Estados Unidos e na Europa há uma forte tendência para abandonar o

uso de animais no ensino médico, substituindo-os pelo emprego de métodos

alternativos. No Brasil, vem crescendo o apelo por uma “educação humanitária”, que

consiste, sempre que possível, no uso alternativo de animais no ensino. Conforme

descrevem Fin e Rigatto,214 a utilização de animais seria realizada através do uso

responsável, pela observação dos animais vivos, intervindo positivamente nos

doentes e utilizando os corpos daqueles que tiveram morte natural. Modelos e

simuladores mecânicos, filmes e vídeos interativos, simulação computadorizada e

realidade virtual são alternativas disponíveis no mercado para auxiliar professores

em aulas práticas.

As citadas autoras informam que algumas instituições de ensino superior

vêm, passo a passo, aderindo a métodos alternativos, trazendo como exemplos:

A Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal de São Paulo

utiliza animais mortos e doados por clínicas veterinárias para aulas de técnica cirúrgica, a

partir de uma técnica especial de embalsamento de cadáveres que preserva textura natural

dos tecidos. Da mesma forma, a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul emprega manequins, em substituição aos animais, nas aulas de técnica

operatória. A Escola Paulista de Medicina adotou modelos de ratos feitos em PVC para o

treinamento de microcirurgias. A disciplina de Fisiologia da Fundação Universidade

Federal de Ciências da Saúde Porto Alegre adotou o uso de CDs, software, DVDs de

aulas práticas demonstrativas filmadas, além do Rato Virtual (Virtual Rat) em

substituição aos animais de laboratório.

Outros métodos alternativos215 podem ser citados: o uso de modelos

matemáticos e computadores; o emprego de organismos “inferiores” não protegidos

pela legislação, incluindo invertebrados, plantas e micro-organismos; uso de

214

FIN, Cyntia Alencar; RIGATTO, Katya Vianna. O uso de animais no ensino. Apud FEIJÓ, Anamaria

Gonçalves dos Santos; BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.).

Animais na Pesquisa e no Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 112. 215

PAIXÃO, Rita Leal; SCHRAMM, Fermin Roland. Experimentação animal razões e emoções para uma ética.

Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 37.

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estágios de desenvolvimento embrionário e fetal de vertebrados (até certas fases,

dependendo da espécie animal); o uso de métodos in vitro e estudos em humanos,

seja em voluntários, seja em estudos epidemiológicos, também são métodos

alternativos. Além de modelos, manequins, simuladores mecânicos, filmes e vídeos

interativos.

Há ainda outros métodos alternativos no uso de animais em experimentação,

como pontua Laerte Fernando Levai:216

1) Sistemas biológicos „in vitro‟ (cultura de células, de tecidos e de órgãos passíveis de

utilização em genética, microbiologia, bioquímica, imunologia, farmacologia, radiação,

toxicologia, produção de vacinas, pesquisas sobre vírus e sobre câncer);

2) Cromatografia e espectrometria de massa (técnica que permite a identificação de

compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de modo não invasivo);

3) Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no corpo);

4) Estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com base em

dados comparativos e na própria observação do processo das doenças);

5) Estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em populações

diversas);

6) Necropsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no

organismo humano);

7) Simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no ensino das

ciências biomédicas, substituindo o animal);

8) Modelos matemáticos (traduzem analiticamente os processos que ocorrem nos

organismos vivos);

9) Culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes cancerígenos e preparo de

antibióticos);

10) Uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica cirúrgica e testes

toxicológicos); e

11) Membrana corialantóide (teste CAME, que utiliza a membrana dos ovos de galinha

para avaliar a toxicidade de determinada substância).

216

LEVAI, Laerte Fernando. Direitos dos animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004, p. 67-68.

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133

Outra barreira a ser enfrentada, ainda no tocante à experimentação animal no

ensino superior, reside no próprio corpo docente de muitas instituições de ensino.

Com efeito, os professores ainda resistem à apresentação de métodos alternativos

em suas aulas práticas, tendo em vista a cultura tradicional vivisseccionista.

A substituição dos animais nos métodos alternativos demonstrou, em muitos

casos, desempenho semelhante aos métodos de grupos que ainda utilizam animais

nas aulas práticas.

Todavia, as alternativas, evidentemente, não substituem com precisão o

funcionamento e os aspectos de um corpo de animal ou do ser humano. Por outro

lado, deve-se levar em conta que algumas alternativas ainda exigem o investimento

de vultosa quantia para se obter a eficiência ideal.

A Escola Paulista de Medicina utiliza modelos de ratos para que os alunos

treinem a dissecção. Os modelos podem ser reutilizados durante um certo período

de tempo.217

A pesquisadora Sônia T. Felipe esclarece que há mais de sessenta métodos

substitutivos ao modelo de olho-de-coelho ou teste Draize,218 dentre eles o chamado

eytex219 e o matrex. Segundo apontado, foi criado uma córnea artificial, produzida

com células humanas e desenvolvidas com técnicas da engenharia genética,

semelhante a córnea natural. Consoante afirmado: “essas córneas, produzidas „a

partir de pequena amostra de células humanas‟, embora ainda não possam ser

implantadas em humanos, servem para a realização do Teste Draize, que mede a

sensibilidade dos olhos a medicamentos e produtos químicos”.220

217

O custo de um simulador de rato para treinamento das técnicas básicas em maio de 2011 era de R$ 2.800,00,

segundo informações obtidas com a empresa de anatomia e simuladores virtuais, Civiam. Disponível:

http://www.civiam.com.br/civiam/index.php/simulador-rato-para-treinamento-das-tecnicas-basicas.html#.

Acessado em 17 de maio de 2011. 218

Esse modo de experimentação já foi explicado em páginas anteriores e consiste na aplicação nos olhos dos

coelhos, sem qualquer sedativo para aliviar a dor, determinados produtos, em soluções concentradas. 219

Produzido pelo National Testing Corp em Palm Springs, Califórnia, o eytex é um procedimento in vitro (em

tubo de ensaio), que mede irritação dos olhos através de um sistema de alteração da proteína. A proteína vegetal

do “feijão jack” imita a reação da córnea a uma substância alienígena. Esta alternativa é utilizada pela Avon em

vez do teste cruel Draize de irritação dos olhos. Disponível em: http://www.animalport.com/animal-testing.html.

Acessado em 31 de julho de 2011. 220

FELIPE, Sônia T. A ética e experimentação animal. Fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da

UFSC, 2007, p. 77-78.

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Além dos modelos citados acima, a referida autora ainda cita como métodos

substitutivos os seguintes recursos audiovisuais: filmes e vídeos, modelos,

manequins e simuladores, simulação por computador e mídia, estudos em

cadáveres e tecidos obtidos de forma ética, trabalho clínico com pacientes animais e

voluntários, experimentos auto infligidos pelos próprios estudantes, laboratórios in

vitro e estudo de campo.221

Diversos países buscam meios alternativos para substituir o uso de animais

em experimentos de educação científica. Nesse sentido, temos a União Europeia,

com o chamado Centro Europeu para Validação de Métodos Alternativos (ECVAM),

os Estados Unidos, com o Comitê Organizador Interagências de Validação de

Métodos Alternativos (ICCVAM) e o Japão, com a Sociedade Japonesa de

Alternativas à Experimentação Animal (JSAAE). No Brasil, a discussão e os

resultados finais se encontram em estágio inicial.

5.3 A Dignidade da Vida e o Direito dos Animais

Como visto, a utilização do animal como objeto de experiência, em alguns

casos pode ser vista como um ato cruel, mas a submissão do animal nessas

circunstâncias, não se enquadra nas garantias constitucionais, pois a utilização a um

limite do necessário não implica a infração da Lei Maior ou dos demais preceitos

legais.

Não se discorre aqui sobre a utilização animal com motivos torpes ou fúteis.

Ao contrário, trata-se de sua justa utilização, seja na alimentação e subsistência

humana, seja na indústria farmacêutica, como produção de vacinas e meios de

facilitação para produzir remédios, seja também nos diversos campos da pesquisa

científica.

Muito embora se tenha tentado construir ao longo do presente trabalho uma

argumentação lógica capaz de demonstrar o direito da natureza e dos animais como

sujeitos de direitos no ordenamento jurídico, não se pode negar que o texto

221

Op. cit. p. 119.

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constitucional tem como preocupação a vida humana acima de qualquer outra

questão.

De igual modo, não se pretende negar que existe uma certa incoerência entre

imputar à natureza e aos animais o status de sujeitos de direitos e, ao mesmo

tempo, justificar a sua utilização para fins de interesses do homem. Aliás, a

discussão deste trabalho reside basicamente neste ponto. Com efeito, de um lado,

temos a visão antropocêntrica em sentido amplo; de outro, inúmeros ativistas em

prol dos direitos dos animais que pregam a sua liberação plena, inclusive de uma

forma radical, que envolve até os animais domésticos, excluindo a visão

antropocentrista.

A grande justificativa das experiências com animais é o progresso da ciência,

para a descoberta de curas e males que assolam a sociedade moderna. Em

contrapartida, são inúmeros os objetivos das experiências que utilizam os animais,

como já demonstrado, seja nas experiências de artefatos militares, seja na indústria

de cosmético. Em suma, uma gama e variedade de “justificadas utilizações”, apenas

com o mero intuito econômico que proporcionam vultosas quantias a quem se

beneficia desses experimentos.

A afirmação de que utilizar animais em experimentos científicos nada mais é

do que uma visão discriminatória com base na espécie, o chamado especismo, uma

vez que muitos desses animais possuem uma capacidade de sentir e sofrer maior

do que muitos seres humanos com diversos e graves problemas cerebrais ou de

crianças recém-nascidas e órfãs e, que, portanto, deveriam utilizá-los nesses

experimentos ao invés dos animais, é em parte verdade. Peter Singer explica muito

bem essa questão:

Se os experimentadores não estiverem preparados para usar um bebê humano, o fato de

estarem prontos para usar animais não humanos revela uma forma injustificável de

discriminação com base na espécie, uma vez que primatas, macacos, cães, gatos, ratos e

outros animais adultos são mais conscientes daquilo que ocorre com eles, mais

autônomos e, portanto, até onde podemos dizer, pelo menos tão sensíveis à dor quanto um

bebê humano. Esclareci que o bebê humano seria órfão para evitar as complicações dos

sentimentos dos pais. A especificação do caso nesses termos é, quando muito,

ultragenerosa com aqueles que defendem a utilização de animais não humanos na

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experimentação, uma vez que mamíferos destinados a experimentos são, em geral,

separados da mãe muito cedo, quando a separação causa angústia tanto para a mãe quanto

para o filhote.

Até onde sabemos, bebês humanos não possuem características moralmente relevantes

em grau mais elevado que animais adultos não humanos, a menos que se leve em conta as

potencialidades dos bebês como uma característica que torne errada sua utilização em

experimentos. Se essas características deveriam ser levadas em conta é algo controverso.

Se forem, deveríamos condenar o aborto juntamente com os experimentos em bebês, uma

vez que as potencialidades do bebê e do feto são as mesmas. Para evitar as complexidades

dessa questão, entretanto, podemos alterar um pouco nossa questão original e pressupor

que o bebê sofre de danos cerebrais irreversíveis tão graves que impedem qualquer

desenvolvimento mental além do nível de um bebê de seis meses de idade. Infelizmente,

há muitos bebês assim, encerrados em estabelecimentos especiais por todo o país, muitos

deles há muito abandonados pelos pais e outros parentes e, tristemente, às vezes, não

amados por ninguém. Apesar da sua deficiência mental, a anatomia e a fisiologia desses

bebês são, praticamente em tudo, idênticas a de bebês humanos normais. Se, portanto, os

obrigássemos a ingerir grandes quantidades de cera para assoalho ou pingássemos

soluções concentradas de cosméticos em seus olhos, teríamos indícios muito mais

confiáveis de segurança desses produtos para seres humanos do que ora obtemos tentando

extrapolar os resultados de testes sobre uma variedade de outras espécies. Os testes DL50,

os testes Draize nos olhos, os experimentos com radiação, os experimentos com

internação e muitos outros descritos anteriormente nesse capítulo poderiam nos dizer

mais sobre reações humanas a uma situação experimental se fossem realizados em seres

humanos com grave deficiência mental em vez de cães ou coelhos.222

Cumpre ressaltar que o citado autor não defende a realização de

experimentos em seres humanos com deficiência mental, como citado acima. Trata-

se apenas de uma exemplificação para um aprofundamento na discussão acerca

desse tema.

Assim, não se pode concordar com a utilização de seres humanos em

experimentos científicos pelo fato de se apresentarem com uma reduzida

capacidade de percepção da realidade (conceitos de moral, costumes e justiça), ao

contrário das pessoas que se apresentam como voluntárias mediante um

222

SINGER. Peter. Libertação animal. Marly Winckler (trad.). São Paulo: Lugano Editora, 2004, p. 90-91.

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esclarecimento prévio e cientes das consequências que poderão enfrentar. Nesses

casos, desde que os critérios éticos prevaleçam, é preciso concordar com a sua

utilização, tal qual como é feito com inúmeros medicamentos que chegam ao

mercado.

Já em relação aos animais – tema do presente trabalho – a proposta é

respeitar direitos morais básicos em relação aos não humanos; trata-se de um dever

direto de proteção, no mesmo nível de igualdade com os direitos dos seres

humanos.

A situação atual quanto aos direitos dos animais é, de muitas maneiras,

semelhante à dos escravos negros do século XIX. Assim como eles, os animais são

excluídos do senso comum da humanidade, que usa os mesmos argumentos para

justificar a sua exclusão social (ausência de alma e de uma moral ética, eram

considerados seres inferiores, um instrumento vivo) e, consequentemente, a mesma

negação de seus direitos sociais.

Com certeza iremos algum dia fazer justiça às espécies tidas como

“inferiores” no sentido de reconhecer que são sujeitos de direitos por integrar-se à

vida do planeta. Para tanto, temos que nos livrar da nossa articulada noção de que

existe um grande abismo que separa a humanidade e reconhecer o vínculo que a

une a todos os seres vivos em um tipo de irmandade universal.223

Trata-se, na verdade, de justiça e consideração com os demais seres

existentes na Terra. Não podemos outorgar de forma absoluta o direito aos homens

e negá-los aos animais. A dor, por exemplo, que é infligida ao ser humano, também

pode ocorrer com os animais e o sofrimento será o mesmo, guardada as devidas

proporções.

Os animais possuem direitos a uma vida natural que, por sinal, são inerentes

a qualquer espécie. Entretanto, esses direitos, em determinados casos, podem estar

limitados em decorrência de um interesse permanente da sociedade. Então, se um

animal tiver que ser morto, portanto privado do direito à vida, abatido ou utilizado em

um determinado experimento científico, que lhe seja assegurado, em primeiro lugar,

223

SALT, Henry Stephens. Los derechos de los animales. Trad. Carlos Martín y Carmen González. Madrid: Los

Libros de La Catarata (trad.), 1999, p. 35.

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a real e verdadeira necessidade de fazê-lo; se for feito, que seja com o menor

sofrimento possível.

É cediço que a fauna, ao lado dos demais recursos ambientais, exercem

relevante função na natureza e é essencial ao equilíbrio do ecossistema. Esse

equilíbrio faz com que cada componente do ecossistema cumpra sua finalidade para

mantê-lo estruturado e harmônico, constituindo-se em perfeito sistema de

interdependência.

Esse também é o pensamento de Edna Cardozo Dias quando afirma ainda

que os animais são sujeitos de direitos com representatividade, tal como os seres

relativamente incapazes ou totalmente incapazes, mas que, entretanto, são

reconhecidos como pessoas, apesar da incapacidade.224

Muitos defensores do direito animal apresentam seus argumentos com base

nas reações instintivas de um bebê recém-nascido. O recém-nascido não possui

uma sustentada consciência; nessa circunstância seus movimentos e gesticulação

são inferiores aos de um animal. Com efeito, os bebês choram apenas quando estão

com fome ou com dor, sem algum vínculo com o ambiente; ao passo que, em

relação aos animais, está comprovada cientificamente a interação desses animais

com os seres humanos, tendo todo o seu comportamento interagindo com o

ecossistema. Como, então, negar essa semelhança e não dar as mesmas condições

de direitos a esses seres vivos não humanos? Não seria este o motivo de precisar

proteger a criança recém-nascida, o fato de estar viva? Por que, então, haveria uma

diferença entre esses procedimentos?

Estes são os argumentos básicos colocados pelos defensores do

“abolicionismo animal”, uma vez que todos os seres vivos, em geral, dizem eles, têm

direito à vida, ao livre desenvolvimento da espécie, da integridade física e,

principalmente, ao não sofrimento.

A linha de argumentação e defesa em favor dos animais reside na seguinte

questão: não se discute a sua capacidade de falar ou de raciocinar, de legislar ou de

assumir deveres e obrigações; mas, o que está em jogo é a certeza de que são

capazes de sofrer, a evidência de que são seres sensíveis. Estes são os fatores

224

DIAS, Edna Cardozo. Os animais como sujeitos de direito. Apud SANTANA, Heron José de; SANTANA,

Luciano Rocha (coords.). Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador. Ano 1, nº 1, 2006, p. 120.

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preponderantes e vitais que conferem a um ser o direito de consideração igual aos

humanos.

Exemplos de atrocidades praticadas pelos seres humanos não faltam em

nosso cotidiano. Motivo suficiente para podermos imputar a eles a depreciativa

qualidade de seres “irracionais” ou de seres “inferiores” ou, até mesmo, no dito

popular, considerá-los “como uns animais”, com a ressalva de que o animal

irracional quando agride, o faz por instinto; o ser humano por maldade.

Infelizmente, por exemplo, os humanos, constituem a única espécie capaz de

destruir-se a si mesma, sem uma real necessidade física.

Portanto, negar aos animais direitos paritários pela simples alegação de que

não são sujeitos de deveres ou porque fazem parte da cadeia “inferior” da vida, são

argumentos levianos. Sua tutela é semelhante à de uma criança, que, bem vigiada,

não representa perigo, mas qualquer descuido pode ocasionar um verdadeiro

desastre.

Peter Singer traz uma passagem de Jeremy Bentham acerca da questão da

igualdade no que diz respeito à consideração de interesses como um princípio

moral. O texto de Bentham se refere à época em que os escravos negros haviam

sido libertados pelos franceses, mas eram tratados do mesmo modo como ainda

hoje os animais são tratados:

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que

jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já

descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja

irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se

reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro

são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino.

O que mais deveria traçar a linha instransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a

capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente

mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo

de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal

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fato? A questão não é „Eles são capazes de raciocinar?‟, nem „São capazes de falar?‟,

mas, sim: „Eles são capazes de sofrer?225

Destaca-se, contudo, que a “capacidade de sofrer” não se resume a um

sentimento da dor. A defesa dos animais também se baseia na sua constituição

psíquica que envolve a capacidade de sentir prazer ou felicidade.

Sempre convém repetir que no mundo dualista de René Descartes, matéria e

substância pensante (consciência exclusiva da humanidade) exclui o animal da

categoria dos seres sem alma; nesse seu mundo e segundo sua teoria de cunho

racionalista, os animais não possuem alma, logo, são privados de consciência e de

razão. Para Descartes, os animais não sentem, não pensam, não têm prazer, nem

qualquer outro tipo de sensação ou expressão. Eles são como um relógio, com

efeitos reflexos de mecanismos. Aliás, seu funcionamento é mais complexo do que

um relógio propriamente dito; isso porque, explica Descartes, uns são produtos

humanos e os outros uma obra divina.

A distinção entre homem e animal, dizem os que têm um conceito

reducionista do ser vivo, reside no fato de o homem ter o dom da palavra, com a

qual utiliza o discurso para exprimir o útil e o prejudicial. O homem é um ser livre, ao

passo que os animais não escapam às regras que lhes são prescritas, agindo

meramente por instinto. Porém, a etologia demonstrou o contrário: animais se

comunicam entre e com espécies diferentes. Os anuros, por exemplo, vocalizam em

diferentes situações como: defesa do território, atração sexual, alarme,

agressividade, início de atividade e de agregar a espécie. O mesmo ocorre com

todas as espécies e grupos animais capazes de emitir sons. A comunicação pode

ser intra e interespecífica.

E o que dizer da distinção entre homens e mulheres? O que se deve levar em

conta é a igualdade de direitos, não a igualdade de fato; a igualdade de

consideração e não a igualdade de tratamento.

Singer chega a sustentar ainda a diferença entre uma pessoa senil, uma

criança recém-nascida e um deficiente mental. Ele argumenta que, nesses casos, tal

225

SINGER, Peter. Libertação animal. Marly Winckler (trad.). São Paulo. Lugano Editora, 2004, p. 9.

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como os animais, a diferença reside basicamente no especismo puro e simples, ou

seja, um egoísmo de uma espécie por se considerar superior.

De fato, há uma proteção especial em relação a eles, principalmente em

razão da fragilidade em que se encontram.

François Ost226 destaca que o direito positivo não permite considerar o

animal, nem como objeto de direito, nem como um sujeito de direito. Deve-se, na

verdade, ser reinventado um estatuto jurídico que faça justiça ao animal, aquele ser

vivo que nos assemelha, porque, igual a nós, também é um ser vivo.

Nesse sentido, a Constituição Federal permite, de certa forma, a utilização

animal, ainda que esse ato represente a prática de atividades consideradas cruéis –

principalmente na questão dos direitos fundamentais da pessoa humana. Essas

práticas são autorizadas em prol de uma garantia da melhor qualidade de vida e

saúde dos seres humanos.227

Existem três correntes básicas e distintas que envolvem os direitos dos

animais. A primeira enfatiza o bem-estar animal; a segunda destaca os direitos dos

animais, tendo como Tom Regan seu principal defensor; a terceira salienta a

libertação animal, tendo Peter Singer como seu principal defensor. Nesse ponto de

vista, o bem-estar animal é geralmente visto como uma corrente “humanitária” em

defesa dos animais, por meio da qual se proíbe a crueldade desnecessária.

Segundo aponta Laerte Fernando Levai:

Aqueles que sustentam a visão antropocêntrica do direito constitucional, que veem o

homem como único destinatário das normas legais, que vinculam ao bem-estar da espécie

dominante o respeito à vida, que defendem a função recreativa ou cultural da fauna e que

consideram os animais ora coisas, ora bens ambientais, afastando sua realidade sensível,

rendem – deste modo – uma infeliz homenagem à intolerância, à insensatez e ao egoísmo.

Porque o Direito não deve ser interpretado como mero instrumento de controle social, que

garante interesses particulares e que divide bens. Deve projetar-se além da perspectiva

privada, buscando a retidão, a solidariedade e a virtude, para que se torne generoso e

justo. Nesse contexto, o próprio conceito de „educação ambiental‟ merece uma

226

OST, François. A natureza à margem da lei. A ecologia à prova do direito. Joana Chaves (trad.). Instituto

Piaget: Lisboa. 1995, p. 269. 227

Nesse sentido também: BECHARA, Erika. A Proteção da Fauna sob a Ótica Constitucional. São Paulo:

Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 69.

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interpretação mais profunda, livre do critério da utilidade que impregna as relações

humanas. Precisamos, na realidade, de uma outra metodologia de ensino. Um urgente

canto de despertar. Talvez buscando as lições do passado...228

A Associação Médica Veterinária Americana (American Veterinary Medical

Association – AVMA) defende que “bem-estar animal” e “direito dos animais” não

são sinônimos, e que a promoção do bem-estar é adotada como uma política oficial,

enquanto que a visão dos “direitos dos animais” não é endossada por essa entidade

por ser incompatível com a utilização responsável de animais para propósitos

humanos, tais como alimentação, companhia, recreação e pesquisas.

Por ora, entendemos que a melhor corrente para o caso posto em discussão

seja a mencionada por François Ost, em que deve ser reinventado um estatuto

jurídico, por meio do qual o animal seja tratado com dignidade e justiça, como ser

vivo integrante da natureza, em que a sua utilização não se relacione com a

diversão e torpeza humana.

5.4 Maus-tratos em Experimentos Científicos

O emprego de animais nos experimentos científicos – atualmente

questionável mediante os avanços tecnológicos que permitem, em alguns casos, a

sua substituição – é, sem dúvida, o procedimento onde os animais mais sofrem.

Segundo apontado por inúmeros pesquisadores, máxime no campo da

medicina – seja ela veterinária seja da saúde humana, a ciência e a tecnologia têm

avançado demasiadamente. Todavia e apesar dos avanços tecnológicos, até agora

não se chegou ao fim das práticas com a experimentação animal. Porém, a busca

por novos meios ainda se faz necessária, para que um dia a sociedade não mais

dependa desses seres vivos no campo da experimentação científica.

Nessa perspectiva, quaisquer métodos que inflijam dor aos animais nos

experimentos são condenáveis, tanto no plano ético – em relação aos nossos

228

LEVAI, Laerte Fernando. Direitos dos animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004, p. 138.

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deveres para com os seres vivos – como também no próprio campo da pesquisa a

ser realizada. Isso porque, ao impor medo e dor aos animais, há alterações em seu

metabolismo que podem alterar, inclusive, os resultados que se buscam nos

experimentos a serem feitos.229

Os tradicionais métodos de pesquisas que impeçam a utilização de

analgésicos e cuidados com os animais devem ser repelidos e abolidos das

comunidades científicas. Em inúmeros países, atualmente, é obrigatória por lei a

utilização de analgésicos em experimentação que ocasionar dor ou sofrimento aos

animais, quando puderem ser minimizados.

Nos dias de hoje, não se busca apenas eliminar a dor física na questão da

experimentação animal. É preciso frisar que existem outros fatores que contribuem

para o bem-estar animal, como as questões emocionais (felicidade e prazer),

condições físicas apropriadas (biotérios adequados com luminosidade e

temperatura), comportamento sexual, alimentação, meio ambiente e relação social

com os demais seres de sua espécie, etc.. Com certeza, esses fatores, quando

levados em conta, influem nos resultados da experiência.

As pesquisas científicas das empresas de cosméticos e da psicologia

comportamental são as que mais infligem sofrimento e dor aos animais de

experimentos. A indústria farmacêutica também é uma importante causadora de dor

e de sofrimento aos animais que utiliza.

Silvya Stuchi Maria-Engler e colaboradores da Faculdade de Farmácia da

USP desenvolveram a pele artificial que utilizada na indústria farmacêutica

minimizará, sobremaneira, os maus tratos a animais nesse campo, conforme segue:

229

O reconhecimento da dor em animais é tarefa extremamente árdua. Se nos seres humanos que são capazes de

falar e de se expressar mais facilmente do que os animais não humanos, o que dizer em relação a eles? Ademais,

muito embora a dor também seja um mecanismo de defesa, os animais tendem a “mascará-las”, evitando, assim,

meios de se tornarem presas fáceis.

Segundo artigo de Rivera (RIVERA, Ekaterina A. B. Analgesia, anestesia e eutanásia em roedores, lagomorfos,

cães e suínos. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos; BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo;

PITREZ, Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na Pesquisa e no Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto

Alegre: ediPUCRS, 2010, p. 199), “dentre os inúmeros estudos sobre a comprovação da dor em animais,

citamos como exemplo o de Colpaert (1980). Este demonstrou, por meio de um experimento com ratos, que os

animais sentem dor e tentam aliviá-la. Foram injetadas em ratos, bactérias que produzem artrite, sabendo que é

uma doença dolorosa em humanos. Foi oferecida aos animais a escolha entre água contendo medicamento

analgésico com péssimo sabor, e água açucarada e de bom sabor, normalmente aceita pelos ratos. Os ratos

escolheram a água contendo medicamento analgésico com péssimo sabor, e não a água açucarada e de bom

sabor, normalmente aceita pelos ratos. Os ratos escolheram a água com mau sabor, sinal de que a escolhiam

por suas propriedades analgésicas. Quando se recuperaram da artrite, voltaram a tomar água açucarada”.

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Até bem pouco tempo, apenas métodos in vivo empregando animais de laboratório eram

utilizados para este fim. Atualmente, as indústrias farmacêuticas e cosméticas são

forçadas a atingir objetivos sociopolíticos e humanitários de reduzir o número de animais

utilizados na pesquisa, enquanto que, simultaneamente, necessita diminuir custos e gerar,

de forma relevante, dados reprodutíveis espécie-específicos, eliminando a

experimentação animal e atendendo definitivamente o conceito “3R” (reduzir, reutilizar,

reciclar). Os avanços da ciência possibilitaram o desenvolvimento de métodos in vitro

que, ao mimetizarem sistemas biológicos complexos, possibilitam atingir a meta de

redução de uso de animais (ESKES et. al., 2007; SPIELMANN et al., 2007). Além de

sistemas compostos por células isoladas, o sistema biomimético, apresentado neste

projeto, permite recriar em laboratório peles com as características morfofuncionais da

pele humana, com resultados reprodutíveis e que se aproximam daqueles que seriam

realizados em animais. Além da vantagem de minimizar o uso de animais, a semelhança

com a pele humana aproxima os resultados da situação real de exposição que nem sempre

é a obtida com o uso de animais.230

Os experimentos da psicologia comportamental incluem desde a privação

materna e exclusão do grupo social de determinada espécie com diversos estímulos

de dor para, basicamente, chegar ao estudo e análise do medo e do comportamento

do animal em determinadas situações a que são induzidas, tais como choques

elétricos e estresse emocional. Existem ainda casos de retirada de parte do cérebro

para observação das alterações do comportamento, animais recém-nascidos que

têm os olhos costurados para observação comportamental de um cego, etc. Além

desses estudos comportamentais, são utilizadas drogas já conhecidas e

experimentais, tais como antidepressivos, soníferos, sedativos, estimulantes e

tranquilizantes.231

A indústria armamentista também utiliza animais em seus experimentos.

Esses seres são submetidos a radiações de armas químicas e biológicas, bem como

expostos a gases. Eles são treinados em simuladores de voos e a em diversos tipos

de armamentos. Após a submissão daquelas radiações e armas químicas, são

exaustivamente obrigados a retornarem aos simuladores e à utilização das armas,

230

ENGLER, Maria Silvya Stuchi, et al. II Congresso Brasileiro de Bioética e Bem Estar Animal (4 a 6 de

agosto de 2010), Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 118-125. 231

ROSA, Instituto Nina. Não Matarás. Os Animais e os Bastidores da Ciência. DVD. 65 min.

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seja para avaliação de um impacto desses componentes químicos em seres

humanos em guerra, seja para a própria utilização dos animais em situação de

guerra contra os homens. Todavia, além desses maus-tratos, não se justifica

comprometer a vida dos animais para uma guerra movida por interesses e

mesquinharia da espécie humana.

Os laboratórios de cosméticos com seus cremes e shampoos, como também

a indústria química (pesticida, herbicida e produtos de limpeza) empregam o

chamado método de “teste de Draize”, que surgiu em 1944, e é largamente utilizado

em coelhos.232 O método consiste em aplicar determinados produtos nos olhos dos

coelhos, sem qualquer sedativo para aliviar a dor, em soluções concentradas; eles

ficam em minúsculas caixas de contenção, com seu pescoço preso a ela para que

não possam se mexer ou se coçar.

Esse teste se presta para avaliar o grau de irritação ocular que pode ser

causada por determinadas substâncias. Ele é realizado em coelho, colocando-se a

substância a ser testada no saco conjuntival de apenas um olho. A observação do

outro olho serve como controle. A substância pode provocar alterações na córnea

conjuntiva e íris (ulceração, hemorragia, irritação, inchação e cegueira), que são

observadas e avaliadas de acordo com um padrão, para se verificar a segurança da

substância. Se não houver irritação após três dias, o teste está encerrado. Se

houver irritação, o estudo deve se estender até vinte e um dias, a fim de determinar

se as alterações são reversíveis.233

Alguns corantes e conservantes, além de pesticidas, cosméticos, drogas,

produtos de limpeza, são aplicados também em animais pelo método chamado de

“DL 50” para verificar neles a toxicidade desses produtos. Esse teste surgiu em 1927

e consiste em buscar a dose letal que levará à morte cinquenta por cento daquela

determinada amostra de animais. Frisa-se que boa parte dos animais – ou quase a

sua totalidade – utilizados neste método fica doente, vindo a falecer posteriormente.

Apenas uma pequena parcela se restabelece.234

232

Esse método foi inventado por John Draiz em 1944. 233

PAIXÃO, Rita Leal; SCHRAMM, Fermin Roland. Experimentação animal razões e emoções para uma ética.

Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 64. 234

Os sinais de envenenamento incluem lágrimas, diarreia, sangramento dos olhos e da boca e convulsões. Nesse

método, não se aplica nenhum tipo de anestésico ou sedativo.

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Há ainda os testes de toxicidade com bebidas alcóolicas e com o fumo, que,

apesar do conhecimento de seus malefícios, ainda assim alguns animais continuam

sendo forçados a inalar a fumaça e a se embriagarem para posterior análise de seus

organismos com a sua dissecação.

Nos nossos dias, algumas técnicas substitutivas têm sido testadas a fim de

identificar a dose letal de uma determinada substância química. Como a maioria das

reações tóxicas ocorre em tecidos humanos, os testes de citotoxicidade em células

humanas podem ser utilizados como métodos substitutivos do DL50. Técnicas de

cromatografia e espectrometria também têm sido empregadas como métodos

substitutivos da determinação in vivo da DL50.235

235

MORRONE. Fernanda Bueno; CALIXTO, João Batista; CAMPOS, Maria Martha. Farmacologia e

toxicologia. Apud FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos; BRAGA, Luisa Maria Gomes de Macedo; PITREZ,

Paulo Márcio Condessa (orgs.). Animais na Pesquisa e no Ensino: Aspectos éticos e técnicos. Porto Alegre:

ediPUCRS, 2010, p. 359.

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CONCLUSÃO

O presente trabalho procurou discutir as questões éticas e legais e do bem-

estar que envolve a utilização de animais em experiências de laboratórios e de

animais domésticos, sejam de companhia, sejam para o abate ou o denominado

lazer cultural.

De modo precípuo, a presente análise se baseou nos princípios da ecologia,

ciência que estuda as inter-relações entre os seres vivos e a natureza abiótica. Do

ponto de vista ecológico e sistêmico, a Terra é considerada um organismo vivo e a

relação das vidas existentes e do meio abiótico impõem, necessariamente, a

existência de um equilíbrio natural, que é a condição de sobrevivência de qualquer

ser vivo.

Na contramão desses princípios, a conveniência predatória do homem

sempre se pautou pela busca de todos os bens e pela exploração dos recursos

naturais para sua mera satisfação, sem qualquer racionalidade quanto às

consequências negativas para o meio ambiente.

Nessa visão antropocêntrica, os animais existem tão somente para servi-lo,

consoante a interpretação dada no livro do Gênesis, por meio da qual o homem

julgava-se, dono do mundo. Esse modo de pensar e de agir fez com que a

humanidade sempre se conduzisse pela busca de satisfação pessoal, à margem da

contrapartida do planeta, isto é, sem considerar “os direitos” da mãe Terra.

Como visto ao longo do presente trabalho, são inúmeras as questões éticas

que envolvem o uso de animais, seja em experimentos científicos, seja na sua

utilização em eventos tidos como culturais, seja para as necessidades humanas,

mas, que, carregam em sua essência uma série de abusos e maus-tratos para com

o ser.

A Constituição Federal assegura um meio ambiente ecologicamente

equilibrado, essencial a uma sadia qualidade de vida. Porém, não podemos justificar

meios cruéis que, comprovadamente imputam maus-tratos com os demais seres

vivos, por uma atividade que em nada acrescenta culturalmente, como por exemplo,

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a “farra do boi”, a vaquejada, as rinhas de galo, as touradas, os rodeios e também

com o excesso no uso de animais em experimentações científicas, etc.

Já em relação a indústria de cosméticos, é de conhecimento de que o seu

financiamento, decorre, basicamente, pela necessidade de satisfazer o ser humano

na conquista de uma beleza ideal cujo padrão é fortemente incentivado pela mídia

dos tempos atuais.

Para atender esse mercado, que cresce diariamente, dois são os métodos,

basicamente utilizados por essa indústria: o Draize e a ingestão forçada. O método

Draize, já visto anteriormente, consiste em injetar diversos produtos químicos nos

olhos de coelhos para se constatar a irritação em suas córneas (método de irritação

dos olhos ou draize eye irritancy). Há inda o método de irritação da pele, ou draize

patch test, em que os animais – basicamente coelhos e porcos-da-índia (preás) –

têm o pelo raspado para, depois, terem sob sua pele a pressão de uma fita adesiva

no local e retirada até a pele ficar extremamente sensível. Em seguida, acrescenta-

se o produto químico com o que se busca verificar a reação química daí proveniente.

A ingestão forçada é feita basicamente com batons, pó facial e make-ups, que os

animais são forçados a ingerir em grande quantidade. Seus órgãos internos são

rompidos ou queimados e, pelo método da DL 50, verifica-se a quantidade de animal

morto com essas substâncias.236 A maior crítica feita a esse experimento deve-se

não somente aos métodos cruéis e sofríveis que o animal é obrigado a passar, como

também em relação aos resultados dele obtidos, variando de indivíduo para

indivíduo que está sendo testado.

Na década de 1990, na Europa e nos Estados Unidos, a indústria de

cosméticos sofreu um dos maiores boicotes internacionais já realizados pelos

consumidores. Diversas empresas renomadas foram atingidas pelo apelo popular

para interromper a utilização de animais na indústria de cosméticos, tais como

L´Oreal, Lancôme, Garnier, Biotherm, Ralph Lauren, Giorgio Armani, Benetton.

Diversas empresas não mais utilizaram animas, tais como: Avon, Revlon, Benetton,

Yves Rocher, Roc Clarins, Givanchy, Yves-Saint-Laurent, Weleda, dentre outras.237

A Natura, empresa brasileira de cosméticos, a partir de dezembro de 2003,

deixou de utilizar animais em seus experimentos e, segundo consta no site da

236

DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 279. 237

DIAS, Edna Cardozo. Op. cit. p. 280-281. SINGER, Peter. Op. cit. p. 66; 280.

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empresa, desde dezembro de 2006 foram eliminados por completo os testes com

animais em todas as etapas de pesquisa e avaliação de matérias-primas

desenvolvidas exclusivamente para a Natura, seja internamente, seja com parceiros

externos.238

Nesse mesmo campo de atuação, a empresa O Boticário também deixou de

realizar testes em animais durante a pesquisa e desenvolvimento de seus

produtos.239

A organização não governamental PEA – Projeto Esperança Animal divulga

uma lista contendo os nomes de todas as empresas, nacionais e internacionais, que

não mais utilizam testes em animais.240

A indústria farmacêutica também possui um histórico de protestos pela a

utilização de animais em seus experimentos. Os remédios produzidos ao longo das

últimas décadas, aliado a um melhor controle de saúde e higiene, proporcionaram

um aumento na expectativa de vida do ser humano.

Não se discute o vasto poder político e econômico que a indústria

farmacêutica possui. Todavia, não se nega que a vida humana depende da

produção de remédios e vacinas para o combate de muitos males que assolam a

sociedade, muito embora adeptos da corrente vegana241 não utilizem nenhum

medicamento que tenha sido produzido ou testado em animais. Atualmente, há uma

severa crítica a essa indústria pela produção em massa de medicamentos voltados

ao mercado consumidor e não às necessidades humanas.

Nesse contexto geral, temos de um lado a corrente dos protetores dos

animais, que, em muitos casos, são indevidamente utilizados como descrito ao longo

do presente trabalho. De outro lado, temos a corrente que justifica a necessidade de

utilização de animais para a produção de medicamentos, como por exemplo, as

vacinas e os soros antiofídicos.

238

Disponível em: http://www2.natura.net/Web/Br/Inst/politicas/posicionamentos-natura/src/teste-em-

animais.asp. Acessado em 31 de julho de 2011. 239

Disponível em:

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Disponível em: http://www.pea.org.br/crueldade/testes/naotestam.htm. Acessado em 31 de julho de 2011. 241

A filosofia vegana consiste no boicote de toda a produção proveniente de um meio animal, seja como

vestuário, seja na alimentação, seja com produtos de higiene e limpeza, bem como de medicamentos e

cosméticos.

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Com esse pano de fundo, a experimentação animal sem qualquer meio de

controle, fere os princípios basilares da existência e da essência do ser.

A esse respeito, o crítico depoimento de Sônia T. Felipe, endossando a

proposta aqui apresentada:

Mas, para que a destruição de vidas animais pudesse ser justificada moralmente, o

resultado dos experimentos deveria representar, efetivamente, uma possibilidade de cura

do mal que assola humanos e animais. Experimentar por experimentar, combinar por

combinar e injetar para ver no que vai dar não caracterizam experiências científicas,

embora sejam experimentos. Ampliar o leque de produtos químicos oferecidos aos

consumidores para aumentar a concorrência, seguindo a lei do mercado, embora seja

economicamente justificável, não o é moralmente. Benefícios oferecidos a uns às custas

de danos, dor, sofrimento e morte de outros não alcançam justificativas éticas, ainda que a

moral em vigor esteja de acordo com tal prática. A moralidade de um povo expressa

apenas o que para essa gente tem sido costume praticar. A reflexão ética investiga e

desvela, na forma de princípios a serem considerados, o fundamento da moralidade

vigente. Se, pois, não aceitamos sofrer danos, dor e morte para benefício de outros –

princípio da não maleficência para benefício de terceiros, em outras palavras, o princípio

do não sacrifício, estabelecido pelo da igualdade moral de seres semelhantes – torna-se

eticamente inviável fundamentar um argumento moral baseado, por um lado, na defesa do

nosso direito de não sofrer danos, mas, por outro, no direito de os infligir a outros.242

Embora tardia e timidamente, a humanidade está tomando consciência e

tendo conhecimento de que grande parte – ou quase sua totalidade – dos males que

a afligem são decorrentes de condutas inadequadas em relação à vida humana e à

vida do planeta. Pode-se afirmar que boa parte desses malefícios poderiam ser

minimizados, se, ao invés da busca da cura de algumas doenças, procurássemos

evitá-las com a mudança nos hábitos alimentares e com a prática regular de

atividades físicas, por exemplo.

Para concluir, devemos entender que, em um contexto histórico, a existência

e a evolução do homem na Terra sempre esteve atrelada a utilização animal. No

início das eras, como fonte de alimentação e vestuário; atualmente, além dessas

242

FELIPE, Sônia T. A ética e experimentação animal. Fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da

UFSC, 2007, p. 320.

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151

fontes, como meio de pesquisa em nome do avanço científico e o bem-estar da vida

humana.

Assim, as considerações e análises aqui apresentadas buscaram aprimorar e

da mesma forma apresentar meios éticos relacionados ao bem-estar animal,

condizente com a característica e essência do próprio ser integrante de uma mesma

cadeia e de um mesmo elo ecológico que todos os seres vivos que habitam o

Planeta.

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