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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE DOUTORADO EM DIREITO DO TRABALHO
Arnaldo Boson Paes
NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA:
ABORDAGEM CRÍTICA DO MODELO BRASILEIRO
A PARTIR DO PARADIGMA ESPANHOL
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE DOUTORADO EM DIREITO DO TRABALHO
Arnaldo Boson Paes
NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA:
ABORDAGEM CRÍTICA DO MODELO BRASILEIRO
A PARTIR DO PARADIGMA ESPANHOL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito do Trabalho, sob a orientação do Professor Doutor Renato Rua de Almeida.
SÃO PAULO
2013
Arnaldo Boson Paes
NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA:
ABORDAGEM CRÍTICA DO MODELO BRASILEIRO
A PARTIR DO PARADIGMA ESPANHOL
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito do Trabalho, sob a orientação do Professor Doutor Renato Rua de Almeida.
Aprovada em São Paulo, / /
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Professor Doutor Renato Rua de Almeida
(Orientador)
________________________________________________________
2º Examinador
________________________________________________________
3º Examinador
________________________________________________________
4º Examinador
________________________________________________________
5º Examinador
DEDICATÓRIA
Aos meus pais Agnelo e Lourdes,
à minha esposa Fátima
e aos meus filhos Arnaldo Júnior e Taís.
AGRADECIMENTOS
Esta tese é fruto de longos anos de estudos e reflexões, idealizada e
concretizada por meio do incentivo e apoio de muitas instituições e pessoas. Por essa razão
aproveito esta ocasião para expressar meus agradecimentos àqueles que, por diversas formas,
contribuíram para sua consecução.
Inicialmente agradeço à Universidad de Castilla La Mancha e ao
Professor Doutor Antonio Baylos, que me conduziram aos primeiros estudos na Espanha
sobre o tema, concluídos com a realização de Mestrado e Doutorado.
Destaco o agradecimento à Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, e em especial ao Professor Doutor Renato Rua de Almeida, pela atenciosa orientação,
pelo apoio constante e pela admiração e amizade construída ao longo desta jornada.
Sou grato ainda ao Professor Doutor Tércio Sampaio Ferraz Júnior,
pela honra de ter sido seu aluno e de poder compartilhar importantes reflexões filosóficas, e
aos colegas do Doutorado na PUC/SP, pela convivência fraterna.
Devo agradecer o apoio que recebi da FAP TERESINA,
principalmente de sua direção e dos colegas professores, pelo apoio necessário, em especial
pela compatibilização das atividades docentes.
Agradeço igualmente ao Tribunal Regional do Trabalho da 22ª.
Região, sobretudo aos meus colegas desembargadores, que compreenderam e ajustaram
minhas férias e pautas de modo que eu não precisasse me afastar das funções jurisdicionais.
De modo especial agradeço aos servidores do gabinete, que, com o
apoio permanente e a inestimável colaboração, permitiram que eu me dedicasse ao curso,
assegurando assim a continuidade do trabalho, o cumprimento de todos os prazos e metas e
garantindo de forma ininterrupta a prestação jurisdicional.
E, por último, quero agradecer a toda minha família, e muito
especialmente à Fátima e aos meus filhos Arnaldo Júnior e Taís, pelo sacrifício durante estes
anos e, sobretudo, pelo incondicional carinho, apoio e compreensão.
“[...] Los derechos humanos no son categorías previas ni a la acción
política ni a las prácticas económicas. La lucha por la dignidad humana
es la razón y la consecuencia de la lucha por democracia y por la justicia.
No estamos ante privilegios, meras declaraciones de buenas intenciones o
postulados metafísicos de una naturaleza humana aislada de las
situaciones vitales. Por el contrario, los derechos humanos constituyen la
afirmación de la lucha del ser humano por ver cumplimentados sus
deseos y necesidades en los contextos vitales en que está situado.”
Joaquín Herrera Flores
LISTA DE ABREVIATURAS
ADIn Ação Direta de Inconstitucionalidade
AGE Administração Geral do Estado
AN Audiência Nacional
BOE Boletim Oficial do Estado
CC.AA Comunidades Autônomas
CE Constituição da Espanha
CF Constituição Federal de 1988
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
EBEP Estatuto Básico dos Empregados Públicos
EC Emenda Constitucional
EE.LL Entes Locais
ET Estatuto do Trabalhador
LMRFP Lei de Medidas de Reforma da Função Pública
LOLS Lei Orgânica da Liberdade Sindical
LORAP Lei de Órgãos de Representação, Determinação das Condições de Trabalho e Participação do Pessoal ao Serviço das Administrações Públicas
LOTC Lei Orgânica do Tribunal Constitucional
LRJCA Lei Reguladora da Jurisdição do Contencioso Administrativo
LRJAP Lei do Regime Jurídico das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum
MI Mandado de Injunção
MNNP Mesa Nacional de Negociação Permanente
MPOG Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
TEM Ministério do Trabalho e Emprego
OIT Organização Internacional do Trabalho
OJ Orientação Jurisprudencial
RDL Real Decreto Lei
RJU Regime Jurídico dos Servidores Civis da União
SAN Sentença da Audiência Nacional
SDC Seção de Dissídios Coletivos
STS Sentença do Tribunal Supremo
SSTC Sentenças do Tribunal Constitucional
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
STC Sentença do Tribunal Constitucional
SUS Sistema Único de Saúde
TC Tribunal Constitucional da Espanha
TS Tribunal Supremo
TST Tribunal Superior do Trabalho
RESUMO Boson Paes, Arnaldo. Negociação coletiva na função pública: abordagem crítica do modelo brasileiro a partir do paradigma espanhol. São Paulo. 2013. 251 p. Tese de Doutorado - Programa de Direito do Trabalho, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
A investigação aborda a temática da negociação coletiva na função pública, fazendo uma
abordagem crítica do modelo brasileiro a partir do paradigma espanhol. Pretende assim
analisar os pontos de aproximação e de divergência entre as duas experiências, considerando a
necessidade de implementação no Brasil de um sistema democrático de relações coletivas de
trabalho no regime jurídico-administrativo. Com esta perspectiva, o trabalho está dividido em
três partes, sendo a primeira destinada à análise dos marcos teórico e normativo necessários
ao reconhecimento do direito à negociação coletiva na função pública. Aqui são examinadas a
natureza do vínculo que se estabelece no regime jurídico-administrativo e os instrumentos
normativos da OIT destinados à regulação da participação dos servidores na determinação das
condições de trabalho na Administração Pública. Na segunda parte, analisa-se o modelo
brasileiro de não negociação coletiva, a partir do exame do aparato normativo constitucional,
da legislação instituidora do regime jurídico-administrativo, do precedente paradigmático
sobre a matéria do Supremo Tribunal Federal, da jurisprudência dos tribunais que se
consolidou posteriormente em relação aos direitos coletivos dos funcionários e da ratificação
pelo Brasil da Convenção 151 da OIT. Na terceira parte, é analisado o sistema espanhol de
negociação coletiva, com destaque para a análise do modelo constitucional e legal que se
consolidou progressivamente, apreciando de modo mais circunstanciado a questão da eficácia
jurídica dos instrumentos resultantes da negociação coletiva e o papel dos tribunais para a
garantia do exercício pleno e efetivo dos direitos coletivos pelos funcionários públicos. Ao
longo da tese, considerando a semelhança dos contornos normativos e jurisprudenciais que
envolveram o tema nos dois países, procura-se demonstrar a importância do aproveitamento
pedagógico e do progresso observado no direito espanhol para conformar e implementar no
Brasil um sistema de negociação coletiva na função pública compatível com o
reconhecimento constitucional dos direitos coletivos dos servidores públicos e com a
proclamação de um Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Negociação Coletiva. Função Pública – Brasil e Espanha.
ABSTRACT
Boson Paes, Arnaldo. Negociação coletiva na função pública: abordagem crítica do modelo brasileiro a partir do paradigma espanhol. São Paulo. 2013. 251 p. Tese de Doutorado - Programa de Direito do Trabalho, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). This research addresses the issue of collective bargaining in the public sector, and it has a
critical approach of the Brazilian model from the Spanish paradigm. Thus, the aim is to
examine the points of convergence and divergence between the two experiences, considering
the need of implementing in Brazil of a democratic system of collective labor relations in the
legal and administrative systems. With this perspective, the study is divided in three parts; the
first one has as its purpose to analyze the theoretical and normative frameworks which are
necessary in order to recognize the right to collective bargaining in the public service. In this
first part we also examine the nature of the bond established in the legal and administrative
regime and the regulatory tools of the ILO intended to regulate the participation of public
servant in determining working conditions in the public service. The second part analyzes the
Brazilian model with no collective bargaining, from the examination of the normative
constitutional apparatus of the legislation which established the legal-administrative regime,
also from the paradigmatic precedent on the subject of the Supreme Court, and also from the
case law that subsequently consolidated itself in relation to the collective rights of employees
and the Brazilian ratification of the 151st Convention 151 ILO. The third part analyzes the
Spanish system of collective bargaining, with emphasis on examining the legal and
constitutional model that gradually consolidated itself, assessing in more detail the question of
the effectiveness of the legal tools which result from collective bargaining and the role of the
courts to guarantee the full and effective exercise of the collective rights for public
employees. Throughout the thesis, we analyzed the similarities of the normative and of the
jurisprudential contours surrounding the issue in both countries, and we did so as we tried to
demonstrate the importance of making good use of the learning process and of the progress
observed in Spanish law to conform in and implement in Brazil a system of collective
bargaining in the public sector which is consistent with constitutional recognition of collective
rights of public servants and the proclamation of a democratic state.
Keywords: Collective Bargaining. Public sector - Brazil and Spain.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15
PARTE I
MARCOS TEÓRICO E NORMATIVO PARA O RECONHECIMENTO DO DIREITO
À NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA
2 MARCOS TEÓRICOS PARA O RECONHECIMENTO DO DIREITO À NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA ...................................... 23
2.1 CONFLITOS COLETIVOS NA FUNÇÃO PÚBLICA: OBJEÇÕES À NEGOCIAÇÃO COLETIVA .............................................................................. 24
2.2 CONCEPÇÃO UNILATERALISTA DA FUNÇÃO PÚBLICA: POSTULADOS BÁSICOS................................................................................................................. 31
2.3 REVISÃO DOS POSTULADOS DA CONCEPÇÃO UNILATERALISTA: AFIRMAÇÃO DA CONTRATUALIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA ........... 35
2.4 CONTRATUALIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA: ABERTURA À NEGOCIAÇÃO COLETIVA .............................................................................................................. 48
2.5 MODELOS DE PARTICIPAÇÃO NA DETERMINAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO NA FUNÇÃO PÚBLICA: CONSULTA E NEGOCIAÇÃO COLETIVA............................................................................................................... 55
3 MARCOS NORMATIVOS SOBRE LIBERDADE SINDICAL E NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA NO DIREITO INTERNACIONAL ........ 60
3.1 LIBERDADE SINDICAL E NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA NO DIREITO INTERNACIONAL ....................................................................... 62
3.1.1 Atividade normativa da Organização Internacional do Trabalho. Defesa e promoção da liberdade sindical e da negociação coletiva............................................................. 62
3.1.2 Convenção nº 87. O reconhecimento com caráter geral da liberdade sindical a todos os trabalhadores............................................................................................................ 68
3.1.3 Convenção nº 98. O significado da negociação coletiva e o dever de cumprimento dos instrumentos normativos ......................................................................................... 70
3.1.4 Convenção nº 151. Exigência de procedimentos de negociação para determinação das condições de trabalho na Administração Pública .................................................... 74
3.1.5 Convenção nº 154. A negociação coletiva como elemento essencial da liberdade sindical ................................................................................................................... 75
3.2 PRECEDENTES DA OIT SOBRE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS E INTERFERÊNCIAS LEGISLATIVAS..................................................................................................... 78
3.3 RELAÇÃO ENTRE LIBERDADE SINDICAL E NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA NO DIREITO INTERNACIONAL ................................... 82
PARTE II
SISTEMA BRASILEIRO DE NÃO NEGOCIAÇÃO COLETIVA: PREVALÊNCIA DA UNILATERALIDADE NA FUNÇÃO PÚBLICA
4 CONFLITOS COLETIVOS NA FUNÇÃO PÚBLICA: PREVALÊNCIA DA UNILATERALIDADE ............................................................................................. 89
4.1 SINDICALIZAÇÃO E NEGOCIAÇÃO COLETIVA DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ................................... 89
4.2 NEGAÇÃO DO DIREITO À NEGOCIAÇÃO COLETIVA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DA ADIN 492-DF ..................... 93
4.3 REPERCUSSÃO DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADIN 492-DF NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS ............................... 100
4.4 RECONHECIMENTO DO DIREITO DE GREVE DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SEUS EFEITOS EM RELAÇÃO À NEGOCIAÇÃO COLETIVA...................................................... 104
5 INICIATIVAS TENDENTES À INSTITUCIONALIZAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA ................................................................... 107
5.1 RATIFICAÇÃO PELO BRASIL DA CONVENÇÃO Nº 151 DA OIT: EXIGÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA .................................................................................................................. 107
5.2 CRIAÇÃO DA MESA NACIONAL DE NEGOCIAÇÃO PERMANENTE: OS PARÂMETROS NORMATIVOS DO DECRETO Nº 7.674/2012 ..................... 109
5.3 INICIATIVAS PARA REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO À NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA .................................................................. 112
5.3.1 A proposta de regulamentação elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.. 112
5.3.2 A proposta de regulamentação elaborada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão..................................................................................................................... 116
PARTE III
SISTEMA ESPANHOL DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA:
EFICÁCIA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS
6 FUNÇÃO PÚBLICA E NEGOCIAÇÃO COLETIVA: TENDÊNCIA À HOMOGENEIZAÇÃO DOS REGIMES JURÍDICOS LABORAL E FUNCIONARIAL .................................................................................................... 124
6.1 MARCOS NORMATIVOS HISTÓRICOS: SUPERAÇÃO PROGRESSIVA DA UNILATERALIDADE ........................................................................................... 125
6.2 JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL: INTERPRETAÇÃO ORIENTADA PELA UNILATERALIDADE ............................................................................... 129
6.3 SISTEMA CONSTITUCIONAL: CONFORMAÇÃO INTERPRETATIVA DA CONTRATUALIDADE ......................................................................................... 132
6.4 TENDÊNCIA À HOMOGENEIZAÇÃO DOS REGIMES JURÍDICOS LABORAL E FUNCIONARIAL ............................................................................................... 140
6.5 IMPLICAÇÃO SOBRE A FUNÇÃO PÚBLICA EM FACE DO SISTEMA DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA ADOTADO PELA LEI Nº 7/2007 (EBEP)........ 145
7 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA. O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO ...................................................................... 151
7.1 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA: PROBLEMAS DECORRENTES DE SEU RECONHECIMENTO COMO DIREITO DE CONFIGURAÇÃO LEGAL ................................................................................ 151
7.2 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA EM NÍVEL CONSTITUCIONAL. O FUNDAMENTO DO DIREITO .............................. 155
7.2.1 A infundada incompatibilidade entre o regime estatutário e a negociação coletiva 155
7.2.2 A falsa indiferença constitucional em face da negociação coletiva na função pública 157
7.2.3 Inaplicabilidade do artigo 37.1 CE como fundamento da negociação coletiva na função pública ..................................................................................................................... 159
7.2.4 A insuficiência da integração da negociação coletiva no conteúdo adicional da liberdade sindical dos funcionários públicos .......................................................................... 163
7.2.5 A necessária integração da negociação coletiva no conteúdo essencial da liberdade sindical dos funcionários públicos .......................................................................... 168
8 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA EM NÍVEL LEGISLATIVO. A CONFIGURAÇÃO DO DIREITO........................................................................ 172
8.1 SISTEMA DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA INSTITUÍDO PELA LEI Nº 9/1987 (LORAP), MODIFICADA PELA LEI Nº 7/1990 ............ 172
8.2 SISTEMA DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA INSTITUÍDO PELA LEI Nº 7/2007 (EBEP) .................................................................................. 175
8.2.1 A regulação intervencionista e minuciosa contida na Lei nº 7/2007 (EBEP) ......... 176
8.2.2 Reconhecimento legal da negociação coletiva conjunta de funcionários e trabalhadores .......................................................................................................... 182
8.2.3 O exercício do direito de negociação coletiva na função pública na Lei nº 7/2007 (EBEP)..................................................................................................................... 186
8.2.3.1 Âmbito subjetivo da negociação coletiva............................................................. 187
8.2.3.2 Estrutura da negociação coletiva: as Mesas ......................................................... 188
8.2.3.3 Sujeitos negociadores: a composição das Mesas.................................................. 193
8.2.3.4 Conteúdo da negociação coletiva: matérias incluídas e excluídas da negociação 197
8.2.3.5 Procedimento da negociação coletiva. O dever de negociar de boa-fé. ............... 199
8.2.3.6 Conclusão da negociação coletiva: acordos e desacordos.................................... 204
9 EFICÁCIA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS............................................ 211
9.1 NATUREZA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS: CONTRATOS COLETIVOS NORMATIVOS ........................................................................ 212
9.2 EFICÁCIA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS: DELIMITAÇÃO DOS EFEITOS DO DESCUMPRIMENTO DOS INSTRUMENTOS NEGOCIADOS 217
9.3 POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL DE SUSPENSÃO OU MODIFICAÇÃO DO CUMPRIMENTO DOS PACTOS E ACORDOS: EXIGÊNCIA DE NOVO PROCEDIMENTO DE NEGOCIAÇÃO ............................................................ 224
9.4 ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DO DIREITO DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA .......... 230
10 CONCLUSÃO............................................................................................................ 240
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 245
15
1 INTRODUÇÃO
Os sistemas democráticos de relações coletivas de trabalho vêm
reconhecendo a legitimidade e a necessidade de os funcionários participarem na formação das
normas que regulam suas condições de trabalho na função pública.1 Incursão história nas
democracias contemporâneas demonstra que gradualmente passou-se de um sistema de não
negociação para um sistema de negociação formal, intercalado por uma realidade de
negociação informal. E, na evolução desse processo de institucionalização da negociação
coletiva, tem exercido papel decisivo a existência de movimento sindical organizado,
reforçado por sucessivas lutas sindicais, que ensejou a consolidação de técnicas de tutela dos
direitos sindicais, como a liberdade sindical e o direito de greve, levando os sindicatos “[...] a
tomar conciencia de que corresponde a ellos el ejercicio de la autotutela de sus intereses
laborales, cayendo, así, uno de los grandes obstáculos que se interponían en el camino hacia el
pleno reconocimiento de la autonomia colectiva de los sindicatos de empleados públicos.”2
Nesse sentido, progressivamente os métodos e procedimentos
incorporados pelo Direito do Trabalho passam a exercer forte influência sobre a
institucionalização da negociação coletiva no âmbito da função pública, na medida em que,
com o reconhecimento constitucional dos direitos sindicais dos funcionários públicos, passa a
existir uma “[...] integración de los funcionarios públicos em el Derecho Coletivo del
Trabajo”3. Nesse aspecto, por meio das experiências já consolidadas no âmbito do Direito do
Trabalho, observa-se em muitos sistemas jurídicos uma tendência à renovação, oxigenação e
democratização do Direito Administrativo, que passa por uma erosão de suas bases e de seus
princípios fundamentais. O Brasil, no entanto, não se encontra no rol dos países em que a
negociação coletiva constitui instrumento democrático de participação dos funcionários no
1 Envolvendo o estudo dois sistemas jurídicos, ao longo do texto as expressões “servidor público”, “funcionário
público”, “trabalhador público” e “empregado público” são utilizadas indistintamente para designar aqueles trabalhadores que mantém com o Estado uma relação de natureza jurídico-administrativa. No Brasil, no entanto, o termo “servidor estatutário” designa apenas o servidor sujeito ao regime “estatutário” e ocupante de cargo público e o termo “empregado público” refere-se exclusivamente ao servidor contratado pela legislação trabalhista e ocupante de emprego público. Na Espanha, o trabalhador sujeito ao regime jurídico-administrativo é designado “funcionário público, embora a Lei nº 7/2007 (EBEP), seguindo a terminologia da OIT, tenha unificado o termo “empleado público” para designar qualquer trabalhador da Administração Pública.
2 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 209. 3 DEL REY GUANTER. Estado, sindicatos y relaciones colectivas en la función pública, 1986, p. 25.
16
processo decisório, estando completamente afastada a figura da negociação e de seus
instrumentos. Em face da decisão paradigmática proferida pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 492-DF, que cristalizou a ideia de que
não sendo possível “[...] a Administração Pública transigir no que diz respeito à matéria
reservada à lei, segue-se a impossibilidade de a lei assegurar ao servidor público o direito à
negociação pública”, a Administração Pública brasileira ainda encontra-se presa a concepções
teóricas já superadas, preservando práticas autoritárias que determinam unilateralmente as
normas que regulam as relações de trabalho na função pública e negando aos funcionários
públicos o pleno e efetivo dos direitos coletivos que lhes são reconhecidos pela Constituição
Federal de 1988 (CF).
O Direito Comparado, por sua vez, vem demonstrando a necessidade
da adequação do modelo brasileiro de função pública à nova realidade sociopolítica que as
experiências jurídicas democráticas consagram. Exemplos nesse sentido são numerosos, mas,
para o âmbito desta investigação, é suficiente referir ao sistema espanhol de negociação
coletiva na função pública. Conquanto apresente algumas deficiências, a Espanha, pela
aproximação quanto ao sistema jurídico e de similitude quanto ao perfil da Administração
Pública, constitui importante modelo a ser considerado para efeito de comparação das
relações coletivas de trabalho na função pública. Na Espanha, como no Brasil, a possibilidade
de negociação coletiva sofreu inicialmente forte restrição dos tribunais, mas ali houve
significativo avanço, evoluindo e abrindo espaço para que fosse construído novo
entendimento, até o reconhecimento do direito à negociação coletiva. Em razão dessa
similaridade de trajetória, parece evidente a importância desse estudo, com identificação dos
pontos de contato e de divergência entre os dois sistemas jurídicos. Deve ser considerado,
ademais, que o método comparativo é instrumento valioso para a compreensão do direito
nacional, pois os estudos comparativos têm a virtude de permitir adquirir conhecimentos
sobre outro sistema, mas também de fazer melhor compreender nosso próprio Direito.
Diante desse contexto, este estudo examina os modelos adotados no
Brasil e na Espanha no tocante à negociação coletiva na função pública. O trabalho está
dividido em três partes, sendo a primeira dedicada à análise dos marcos teórico e normativo
para o reconhecimento do direito à negociação coletiva na função pública. A segunda parte
trata do modelo brasileiro de não negociação coletiva, com ênfase sobre as consequências da
17
prevalência do modelo baseado na definição unilateral pelo Poder Público das condições de
trabalho e sobre as práticas informais de negociação coletiva, apreciando ainda os efeitos
decorrentes da recente ratificação pelo Brasil da Convenção 151 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) e as propostas tendentes à institucionalização da participação dos
funcionários na determinação de suas condições de trabalho. A terceira parte é dedica à
análise do sistema espanhol de negociação coletiva na função pública, identificando seus
avanços e suas limitações, que podem ser considerados como experiência consolidada com
possibilidade de seu aproveitamento pedagógico pelo Brasil.
A parte I do trabalho, que trata dos marcos teórico e normativo sobre
a negociação coletiva na função pública, compõe-se de dois capítulos.
O capítulo 2 é dedicado à investigação da natureza jurídica do liame
que une o funcionário público ao Estado. Inicia com a análise do aparecimento e consolidação
dos conflitos coletivos na função pública, com a demonstração de sua natureza essencialmente
conflituosa e prossegue com a sistematização das principais objeções à negociação coletiva.
Como desdobramento, aprecia as bases teóricas acerca da natureza da relação jurídico-
administrativa, buscando inicialmente identificar os postulados básicos da concepção
unilateralista e, em seguida, apresentar os aportes que justificam sua superação. Revisados os
postulados da concepção unilateralista, são apresentadas as bases para concebê-la como
vínculo de natureza bilateral, consensual, em que se afirma sua contratualidade, cuja
concepção propicia espaço para a negociação coletiva. No final, são apontados os meios de
participação dos funcionários na determinação de suas condições de trabalho, demonstrando a
importância da evolução de um modelo de simples consulta para o de negociação coletiva.
O capítulo 3 aborda o processo de reconhecimento e consolidação dos
direitos coletivos dos funcionários públicos no Direito Internacional. Busca demonstrar que os
direitos coletivos transcendem as fronteiras do Estado nacional e por isso não podem ser
apreciados exclusivamente na perspectiva dos ordenamentos jurídicos internos. Com esse
propósito, faz uma descrição e análise dos instrumentos normativos internacionais e procura
realçar o papel que eles exercem na interpretação e aplicação do sistema normativo que regula
os direitos coletivos dos funcionários públicos. Examina as principais convenções da OIT, na
18
ideia de que suas normas continuarão orientando e influenciando a política social no mundo e
na convicção de que seus instrumentos normativos constituem um piso para o qual ou sobre o
qual há de evoluir o direito interno dos países. Em seguida são examinados precedentes da
OIT sobre limitações orçamentárias e interferências legislativas na negociação coletiva. Na
etapa final, a partir das normas internacionais, busca estabelecer a relação entre liberdade
sindical e negociação coletiva dos funcionários públicos.
A parte II examina o modelo brasileiro de não negociação coletiva.
O capítulo 4 focaliza o tratamento conferido aos direitos coletivos dos
funcionários pela CF, seguindo uma análise crítica do acórdão do STF proferido na ADIn
492-DF, que reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 240, alínea d, da Lei nº 8.112/90,
que assegurava aos funcionários o direito de negociação coletiva. Nesse ponto, aprecia os
efeitos provocados por esse precedente no universo jurídico e nas práticas administrativas. A
importância dessa análise reside na circunstância de que, em razão daquela decisão
paradigmática, prevalece, tanto no âmbito da Administração Pública, como no da
jurisprudência dos tribunais, a recusa à participação dos funcionários na definição de suas
condições de trabalho. Em seguida, o estudo procura demonstrar que isso é fruto de uma visão
autoritária de Estado, em que a negociação coletiva aparece como instrumento incompatível
com a função pública. Em continuação, o capítulo analisa de que forma o precedente do STF
no julgamento do Mandado de Injunção (MI) 708/DF e do MI 712/PA, que admitiu o direito
de greve dos servidores públicos mediante a aplicação por analogia da Lei nº 7.783/89,
repercute e autoriza sua institucionalização por meio de legislação regulamentadora.
O capítulo 5 trata das iniciativas tendentes à institucionalização no
Brasil da negociação coletiva na função pública. Aborda inicialmente a importância da
ratificação da Convenção nº 151 da OIT e sua repercussão no debate pela concretização de
sua regulamentação. Em seguida, depois de uma breve análise de algumas experiências
informais de negociação, o estudo examina o modelo de diálogo em curso no âmbito do Poder
Executivo Federal, inclusive a novel regulamentação levada a efeito pelo Decreto nº
7.674/2012. Na parte final do capítulo, são examinadas as propostas de regulamentação da
negociação coletiva elaboradas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), apontando as perspectivas em
19
relação à evolução dos debates e à possibilidade de adoção no Brasil de um modelo
democrático e efetivo de negociação coletiva entre os funcionários e a Administração Pública.
A parte III da investigação aborda o sistema espanhol de negociação
coletiva na função pública.
O capítulo 6 faz uma abordagem constitucional e legislativa sobre a
tendência na Espanha à homogeneização dos regimes jurídicos laboral e funcionarial.
Inicialmente realiza um escorço histórico sobre os marcos normativos, identificando o
processo contínuo em direção à superação progressiva da unilateralidade e afirmação da
contratualidade. Examina a mudança absoluta e transcendental operada na tradição espanhola
com a Constituição de 1978, sobretudo com a proclamação do Estado Social e Democrático
de Direito (artigo 1º, Constituição da Espanha-CE) e com o reconhecimento dos direitos
coletivos dos funcionários (artigo 28.1 CE). Demonstra que não há um único modelo de
função pública e que o legislador ordinário tem a possibilidade de conformar o regime
jurídico dos funcionários segundo a opção política de cada momento concreto, respeitados os
demais princípios e valores constitucionais. Nesse propósito, analisa a interpretação do
modelo de função pública levado a efeito pelo Tribunal Constitucional da Espanha (TC),
indicando a necessidade de sua revisão de modo a assegurar a plena eficácia dos direitos
coletivos dos funcionários. Segue a constatação de que na Espanha há uma forte tendência
legislativa de homogeneização dos regimes jurídicos laboral e funcionarial, examinando
inclusive a implicação sobre a negociação coletiva em face da regulação conjunta dos dois
regimes na Lei nº 7/2007 (EBEP - Estatuto Básico do Empregado Público).
O capítulo 7 versa sobre o tratamento constitucional conferido ao
tema a partir das decisões do TC. Aborda inicialmente os problemas decorrentes do
reconhecimento da negociação coletiva como direito de simples configuração legal. Em
seguida, examina se o direito à negociação dos funcionários públicos extrai-se de forma direta
e imediata da CE, considerando o direito à liberdade sindical estatuído no artigo 28.1 CE, o
direito à negociação coletiva dos trabalhadores em geral disciplinado no artigo 37.1 CE e o
disposto no artigo 103.3 CE, que trata do “estatuto de los funcionarios públicos” e que dispõe
sobre “las peculiaridades del ejercicio de su derecho a sindicación”. O tema é analisado a
20
partir da interpretação contida na Sentença do Tribunal Constitucional (STC) 57/1982,
importante precedente que ainda hoje exerce forte influência na conformação da negociação
coletiva dos funcionários na Espanha. Na parte final, são apreciadas as decisões mais recentes
do TC acerca do fundamento do direito.
O capítulo 8, considerando a prevalência na jurisprudência espanhola
da negociação como direito de exclusiva configuração legal, é dedicado ao estudo das leis que
regulam a matéria. Diante da importância histórica que representou, é feito um breve estudo
da Lei nº 9/1987, com as alterações promovidas pela Lei nº 7/1990, que dispôs sobre os
Órgãos de Representação, Determinação das Condições de Trabalho e Participação do Pessoal
ao Serviço das Administrações Públicas (LORAP). Em seguida é realizado exame mais
aprofundado da Lei nº 7/2007, de 12 de abril, que dispõe sobre o EBEP, que veio a substituir
a legislação anterior. Esta parte é reservada ao estudo do novo marco normativo da
negociação coletiva na função pública, abordando seus aspectos mais fundamentais, incluindo
o âmbito subjetivo, estrutura da negociação, sujeitos negociadores, conteúdo, procedimento e
conclusão da negociação. Em diversos momentos são apreciados os aspectos da
obrigatoriedade da negociação e o dever de negociar de boa-fé.
O capítulo 9 é destinado à análise da eficácia jurídica dos Pactos e
Acordos. Para tanto, examina a natureza desses instrumentos, tendo como ponto de partida
sua assimilação aos convênios coletivos. Segue a abordagem propriamente da eficácia dos
Pactos e Acordos, enfocando, quanto a ambos, sua vinculação para a Administração Pública e,
em relação aos Acordos, a possível vinculação para o Parlamento quando se tratar de
negociação pré-legislativa. Aborda também a eficácia negativa da negociação coletiva,
buscando estabelecer as consequências jurídicas decorrentes do descumprimento pela
Administração Pública do dever de negociar. Trata ainda da previsão contida no EBEP de
suspensão ou modificação dos Pactos e Acordos, com especial referência à apreciação dos
aspectos jurídicos do Real Decreto-Lei (RDL) nº 8/2010, que em decorrência da recente crise
financeira espanhola promoveu a redução de salários já objeto de regulação por meio de
instrumento coletivo. Na última parte, aborda a atuação dos tribunais como instrumento de
garantia e concretização do direito à negociação coletiva e da eficácia dos instrumentos dela
resultantes.
21
O capítulo 10 é dedicado à sistematização das conclusões.
22
PARTE I
MARCOS TEÓRICO E NORMATIVO PARA O RECONHECIMENTO DO DIREITO
À NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA
23
2 MARCOS TEÓRICOS PARA O RECONHECIMENTO DO DIREITO À
NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA
Este capítulo pretende aportar pressupostos teóricos suficientes para
fundamentar o reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários públicos, em especial o
direito à negociação das condições de trabalho, considerado integrante do conteúdo essencial
da liberdade sindical. O desenvolvimento busca estabelecer as linhas gerais da liberdade
sindical e da negociação coletiva, sem se reportar a ordenamento jurídico específico, na
convicção de que a conformação do direito faz-se segundo as opções históricas de cada
sistema normativo, devidamente contextualizado e vinculado à realidade de cada sociedade.
Conquanto a conformação do direito esteja condicionada por razões temporais e espaciais,
impõe-se a observância de seu núcleo essencial, considerando sua consagração nos
ordenamentos jurídicos democráticos e nos instrumentos normativos internacionais que tratam
da liberdade sindical e da negociação coletiva das condições de trabalho.
Procura-se verificar o processo de aparecimento dos conflitos na
função pública e indicar as principais objeções teóricas ao reconhecimento da negociação
coletiva como instrumento de solução desses conflitos. Como desdobramento, demonstra-se a
natureza contratual da relação de função pública, pressuposto para justificar a relevância da
negociação como instrumento adequado para solucionar os conflitos coletivos aí surgidos.
Evidencia-se a contratualidade da função pública e, para tanto, faz-se necessária a revisão dos
postulados da concepção unilateralista e a superação de dogmas da doutrina administrativista
tradicional. O objetivo é demonstrar que a natureza contratual, bilateral, consensual, constitui
uma exigência do Estado Democrático de Direito, na medida em que este reconhece aos
funcionários o direito de liberdade sindical e produz uma considerável erosão dos princípios
autoritários próprios do sistema estatutário dos funcionários públicos. Essa nova concepção
oferece abertura à autonomia coletiva e melhor se ajusta ao modelo de relações coletivas
democráticas, em que haja efetivo protagonismo da negociação coletiva. Na parte final,
examina as formas de participação na determinação das condições de trabalho, distinguindo o
modelo de simples consulta do modelo de negociação coletiva.
24
2.1 CONFLITOS COLETIVOS NA FUNÇÃO PÚBLICA: OBJEÇÕES À
NEGOCIAÇÃO COLETIVA
No setor privado, foi árdua e penosa a luta pela conquista dos direitos
coletivos dos trabalhadores.4 Brevemente, pode-se pontuar que, objetivando evitar a pressão
dos grupos organizados em detrimento da liberdade individual consagrada pela Revolução
Francesa, a Lei Le Chapelier (1791) proibiu a coalizão de cidadãos, impedindo assim toda
reunião de patrões e trabalhadores. Ficava então vedada a organização com o fim de
pressionar pela implementação ou modificação de condições de trabalho. Nesse período de
repressão, estavam em pleno vigor os princípios fundamentais do liberalismo e as leis puniam
severamente a associação para fins reivindicatórios, instituindo o delito de coalizão. Somente
em 1871, na Inglaterra, surgiu a primeira lei afirmativa do direito de sindicalização, mas foi a
partir da Lei Waldeck-Rousseau, no ano de 1884, na França, que diversos países passaram a
reconhecer o direito de sindicalização.5
Progressivamente, o conflito trabalhista moderno expande-se para
além dos limites da fábrica e da empresa privada, ingressando de forma paulatina no antes
impermeável âmbito da função pública. Com o incremento do número de trabalhadores a
serviço da Administração Pública e com a sucessiva deterioração das condições de trabalho,
entre 1880 e 1890, surgiram as primeiras associações sindicais inicialmente na Inglaterra.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a aglutinação de funcionários em associações sindicais
4 Esses direitos, frutos de processos históricos de luta pela dignidade humana, como adverte HERRERA
FLORES em Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os direitos humanos como produtos culturais, 2009, p. 195, não podem ser compreendido como algo já conseguido, estabelecido de uma vez por todas e cuja problemática residiria em colocá-los em prática, como se a efetividade de um direito fosse algo neutro, independente das relações de poder. Segundo esse autor, os direitos são “algo que existe como prática e, sobretudo, como potência, como algo a conseguir, a conquistar, a construir por meio de práticas sociais”.
5 Para uma consulta histórica: PALOMEQUE LÓPEZ. Derecho Sindical Español, 1991. p. 48-55; DE LA CUEVA. Derecho Mexicano del Trabajo, 1967, p. 238-25; SUSSEKIND; MARANHÃO; VIANNA; TEIXEIRA. Instituições de Direito do Trabalho II, 1999, p. 960-975; RUPRECHT. Relações coletivas de
trabalho, 1995, p. 59-76; NASCIMENTO. Compêndio de Direito Sindical, 2000, p. 37-60.
25
ganhou proporções consideráveis, quando, com o advento de novas constituições, os
principais países europeus avançaram no campo democrático, sendo hoje assente que o
sindicalismo de qualquer espécie é essencial às democracias. Na atualidade,
independentemente do regime jurídico que seja aplicado aos agentes do Estado, estes são
considerados, antes de tudo, prestadores de serviços em troca de certa remuneração e, como
todo e qualquer trabalhador, pretendem que as condições de trabalho sejam melhores e mais
justas possíveis.6
No passado, era inconcebível a ocorrência de conflito coletivo entre a
Administração e os funcionários. A própria noção de conflito era incompatível com o
princípio de autoridade e com a natureza unilateral que envolvia as relações entre o Estado e
seus funcionários. E a visão de um método de solução da controvérsia por parte de um
terceiro importaria uma delegação de poderes inteiramente inadmissível, quando não uma
abdicação da autoridade. Com efeito, a função pública é conquista da modernidade, na
medida em que, antes do advento do Estado moderno, os membros da função pública
encontravam-se a ele vinculados por especial relação de poder, no exercício da qual
desempenhavam um munus publicum, auferindo, em compensação, alguns privilégios. Não se
compreendia o funcionário público como um trabalhador que realizava um labor e em
compensação percebia uma remuneração para garantia de seu sustento próprio e familiar. O
ganho auferido correspondia à simples compensação pela impossibilidade de trabalhar para o
âmbito privado e pela dedicação à realização do interesse público. Nessa época, seria inviável
reconhecer qualquer conflito entre o Estado e seus agentes, assim como seria incogitável a
proclamação de direitos coletivos aos funcionários públicos.7
As transformações operadas no mundo das relações de trabalho no
setor público implicaram a noção de que não era possível excluir a existência de conflitos
6 O processo de surgimento e desenvolvimento do sindicalismo na função pública é apresentado por ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 52-80; e RASNEUR. Los servicios públicos y el movimiento sindical, en AA.VV., Administración Pública y Sindicalismo, 1988, p. 15-23.
7 Análise crítica da concepção clássica de emprego público, com abordagem da evolução de sua natureza, sua estrutura e seus pressupostos é formulada por LIBERAL FERNANDES. Autonomia colectiva dos
trabalhadores da Administração: crise do modelo clássico de emprego público, 1995, p. 73/101; ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 29-43; CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 26-66; e PINTO E NETTO. A contratualização da função pública: da insuficiência da teoria estatutária no Estado Democrático de Direito, Dissertação de Mestrado em Direito Administrativo, Universidade Federal de Minas Gerais, 2003; ARAÚJO. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos, 2011, p. 103-177.
26
coletivos de trabalho e, de fato, eles não somente ocorrem frequentemente, como se
multiplicam em toda parte, gerando a necessidade de encontrarem-se métodos de composição
paralelos ao incremento da prática de negociação coletiva destinada à determinação das
condições de trabalho na função pública. De um modo geral, a trajetória do sindicalismo na
função pública observou três fases distintas, compreendendo uma primeira de proibição
absoluta, que incidia sobre todos os funcionários; uma segunda fase de proibição atenuada, na
qual foi permitida a sindicalização de uma parcela dos agentes que prestam serviços ao
Estado, especialmente aqueles ligados à exploração de atividades econômicas; e uma terceira
fase, quando se deu o reconhecimento genérico, com vedações a apenas alguns segmentos,
notadamente às Forças Armadas e às polícias, buscando-se também estabelecer a distinção
entre funcionários com autoridade e funcionários de administração, estes compreendidos
como exercentes de simples funções burocráticas.
Efetivamente, as razões que levaram os funcionários a sindicalizar-se
e a deflagrar conflitos coletivos são as mesmas que motivaram os trabalhadores privados. Em
ambas as situações, as preocupações convergem e objetivam a definição de salários e
vantagens econômicas, segurança no trabalho, igualdade de tratamento e procedimentos de
solução de conflitos coletivos, porquanto em todo caso uma pessoa concorre com seu labor
para a formação de uma relação de trabalho. Para a defesa de seus interesses coletivos,
adotam os mesmos métodos de organização e luta dos demais trabalhadores, surgindo os
sindicatos de funcionários públicos, que organizam manifestações, deflagram greves e
instauram outras formas de expressão dos conflitos entre os funcionários públicos e o Estado,
com a finalidade de fortalecer suas posições no âmbito da reivindicação de novas e melhores
condições de trabalho.
Assim como ocorreu no âmbito do setor privado, a postura dos
sistemas jurídicos em relação à sindicalização na função pública evoluiu desde a fase de
27
intensa repressão à tolerância dessas formas de organização e reivindicação, alcançando então
o reconhecimento como instrumentos essenciais ao regime democrático, expandindo-se e
generalizando-se pelos países do espectro democrático. Com efeito, nos Estados em que a
democracia política está consolidada, os conflitos coletivos no âmbito da função pública, a
organização sindical e os movimentos de pressão para a defesa de reivindicações a serem
solucionadas através do diálogo social constituem elementos integrados aos sistemas jurídicos
e às regras do jogo democrático. Hoje, a sindicalização na função pública não apenas está
assegurada nos sistemas jurídicos dos países ocidentais, como as taxas de filiação nesse
segmento superam os índices praticados nos setores privados. 8
Na realidade, o reconhecimento legal das organizações sindicais de
trabalhadores a serviço do Estado, da legitimidade que tais entidades possuem para atuar na
defesa dos direitos e interesses coletivos daqueles que representam e da negociação coletiva
como instrumento mais democrático e adequado à solução dos conflitos coletivos de trabalho
constitui condição indispensável ao fortalecimento de relações coletivas de trabalho
democráticas, assim reconhecidas pelos países de democracia consolidada e fomentadas pela
Organização Internacional do Trabalho.
Hoje, as relações coletivas de trabalho na função pública constituem,
na generalidade dos países, objeto de regulação através de normas constitucionais e
infraconstitucionais. Até recentemente os governos eram refratários à institucionalização
dessa espécie de negociação coletiva, pretendendo, assim, manter o poder unilateral que
tinham a respeito da matéria e continuar fixando livremente as condições de trabalho na
Administração Pública. Mas, progressivamente, os ordenamentos jurídicos de um modo geral
passaram a admitir, na disciplina das relações de trabalho estabelecidas entre o Estado e seus
funcionários, a introdução de institutos até então exclusivos do setor privado.
De seu turno, a negociação coletiva nas relações de trabalho vem
sofrendo profundas modificações em face dos impactos provocados pela economia no mundo
8 Para um estudo de direito comparado, constituem referenciais importantes as seguintes obras: CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 67-247; MACEDO DE BRITO PEREIRA. La negociación colectiva en la función pública: una aproximación constitucional, p. 135-249; ARAÚJO. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos, 2011, p. 247-337.
28
do trabalho. Diversos fatores têm gerado a redução da importância dos convênios coletivos no
âmbito do setor privado; entretanto, no tocante à função pública, presencia-se um acentuado
crescimento. Esse fenômeno consolidou-se e expandiu-se na década de 60 e, hoje, não
obstante haja paulatino acolhimento da negociação no setor público, com adoção em muitos
países, há ainda muitas objeções de caráter conceitual e legal, sobretudo em razão das
peculiaridades da atividade pública.
Hodiernamente, mesmo nos países que consagram um modelo sindical
plural e democrático, com o protagonismo da negociação coletiva como sistema de solução
dos conflitos coletivos, as entidades sindicais reclamam que o direito à negociação na função
pública na prática inexiste, porquanto os governos, a pretexto de respeito à supremacia do
parlamento e de dificuldades orçamentárias, impõem unilateralmente a regulação das
condições de trabalho, negando aos funcionários o direito de participar da tomada de decisão
em temas que lhes são essenciais.
Muitos são os argumentos contrários à negociação coletiva na
Administração Pública. Os governos sempre se mostraram relutantes em aceitar as limitações
quanto à sua faculdade de determinar as condições de trabalho dos funcionários públicos, pois
consideram que o Estado, nesse ponto, detém poder discricionário. Ademais, as limitações ao
direito de negociar coletivamente e desfrutar de outros direitos acessórios também se
justificavam em virtude da “doutrina do privilégio”, segundo a qual o cargo público não é um
direito, mas um privilégio que se concede discricionariamente, podendo o governo impor aos
seus funcionários as restrições que considere necessárias para proteger sua autoridade.
Além da desigual relação de força entre os funcionários públicos e o
Estado e da natureza hierárquica e autoritária do regulamento de pessoal no âmbito da função
pública, há outras objeções para a aceitação da negociação coletiva. A natureza jurídica do
vínculo que se estabelece entre o funcionário e o Estado seria enquadrada como regime unilateral,
legal, estatutário, integralmente previsto em lei. Esse regime seria unilateralmente definido pelo
Estado, modificável na medida das necessidades de compatibilizá-lo com a realização do
interesse público, sem que a essas alterações possa se opor o funcionário. O modelo jurídico
29
estatutário, unilateral, não contratual seria o único capaz de ajustar-se adequadamente à relação
de função pública.
Justificam essa concepção os postulados incorporados pela doutrina da
supremacia do interesse público, da subordinação qualificada do funcionário perante o Estado,
da impossibilidade de existência de interesses controversos entre o Estado e seus funcionários
e da possibilidade de fixação e alteração unilaterais do regime jurídico pelo Estado. Esse
conjunto de ideias vincula-se a uma concepção autoritária de função pública e em torno dele
nega-se a importância da consensualidade para ajustar as condições de trabalho, rechaçando-
se a negociação coletiva dos funcionários públicos ou, quando menos, estabelecendo-se
profundas restrições ao ajuste coletivo. Além desses postulados, menciona-se ainda a
existência de um estatuto com regulamentação detalhada dos direitos, deveres e condições de
prestação dos serviços; a necessidade de as despesas com remuneração encontrarem-se
previamente definidas no orçamento público, com prévia manifestação do Parlamento; a
dificuldade de que a vigência dos convênios coletivos coincida com o período adotado na lei
do orçamento público; e a exigência de acertamento de matérias sujeitas à negociação e de
outras que devam estar excluídas.
A esses aspectos de natureza conceitual lançam-se outras objeções
contra a negociação coletiva na função pública. Afirma-se, frequentemente, que a posição
social e a situação econômica dos funcionários públicos, comparando-se à realidade dos
trabalhadores do setor privado, não estimulam a introdução de procedimentos de negociação
na Administração Pública. Diz-se, ainda, que a estabilidade, os padrões elevados de
remuneração, uma carreira que propicia sucessivas promoções com aumentos salariais e
aposentadoria vantajosa, dentre outras garantias, são circunstâncias que desautorizam a
participação dos funcionários públicos na definição de suas condições de trabalho.
Ocorre que, a despeito de tais objeções, presencia-se o declínio do
poder do Estado de definir de modo unilateral e exclusivo as condições dos funcionários
sujeitos ao regime jurídico-administrativo. Essa mudança de perspectiva tem causas múltiplas
e nos diversos países apresenta-se com forma, amplitude e profundidade distintas. De uma
maneira geral, sem se ater às peculiaridades de qualquer sistema jurídico, é possível eleger
30
alguns fatos que determinaram a fragilização do poder unilateral dos governos de fixar as
condições de prestação dos serviços no setor público. Razões de ordem econômica, social e
política, assim como o reconhecimento e fortalecimento das entidades sindicais
representativas dos funcionários públicos são pré-requisitos básicos dessa tendência. Outros
fatores devem ser alinhados, a saber, a expansão das funções do Estado, com a substituição da
ideologia do Estado abstencionista pela do welfare state, implicando o crescimento do número
de funcionários, a relativa deterioração das condições de trabalho no serviço público e a
crescente intensificação das exigências das entidades sindicais de uma maior participação no
processo de decisão.
Hoje existem importantes fatores que corroem cada vez mais o poder
unilateral de decisão das Administrações Públicas. A negociação coletiva tem sofrido
profundas transformações em decorrência da reestruturação econômica e internacionalização
da economia, ensejando a redefinição do papel do Estado, a redução do setor público e a
crescente autonomia dos sindicatos. O novo contexto implicou o agravamento das condições
de trabalho dos que prestam serviços aos órgãos públicos, transformando o Estado em
péssimo patrão, proletarizando a função pública, aviltando salários e suprimindo direitos,
configurando “[...] patente homogeneización paulatina de las condiciones sociales [...], hasta
disminuir o borrar esa situación de ventaja em la que se colocaba el funcionário.”9
Nesse cenário, surgem dois fenômenos importantes, que a doutrina
denomina “privatización de la relación de empleo público” e “penetración del Derecho del
Trabajo en la Función Pública”.10 Disso resulta um processo de igualização entre o
funcionário e o trabalhador do setor privado, o reconhecimento da contratualidade da função
pública e a progressiva harmonização entre os regimes jurídicos de Direito Público e de
Direito Privado, desaparecendo a diferença entre o empresário privado e o Estado. Desse
modo, torna-se inarredável a introdução da negociação coletiva na Administração Pública,
fazendo com que os sindicatos deixem de ser instituições de simples consulta ou colaboração,
passando a participar ativamente das decisões, que agora são adotadas de forma bilateral,
através da negociação coletiva.
9 BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 35. 10
BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 37.
31
Nesse quadro, emerge a contratualização na função pública,
implicando a aceitação e institucionalização do conflito de trabalho também dentro da
Administração Pública. Esse fenômeno
supone la consolidación de un proceso de contra-argumentaciones jurídicas que erosionan la teorización precedente sobre la imperatividad del respeto a la voluntad legal en la fijación de las condiciones de empleo de los funcionarios públicos. Ciertamente, la concepción autoritaria e imperativa de la Administración está siendo sustituida por la introducción de procedimientos de participación y de negociación incluso en el nivel de la formación de las normas.11
2.2 CONCEPÇÃO UNILATERALISTA DA FUNÇÃO PÚBLICA: POSTULADOS
BÁSICOS
O reconhecimento da negociação coletiva na função pública implica a
superação de algumas concepções autoritárias de Estado e a revisão de postulados básicos
sobre o vínculo que envolve o Poder Público e seus funcionários. Na visão tradicional, está
assentada a ideia de que a manifestação volitiva do Estado realiza-se geralmente de forma
unilateral, tendo em vista o interesse estatal como expressão de todo o interesse público. A
função pública sujeita-se a um regime jurídico-administrativo no qual a formação da vontade
somente existe na constituição do ato jurídico, sendo que todos os direitos e obrigações daí
resultantes estão regulamentados por ato estatal unilateral, sem intervenção do outro sujeito da
relação jurídica. A vontade do Estado decorre de uma imposição autoritária no cumprimento
de poderes que lhe são próprios, destinados à consecução do bem comum.
Essas ideias estão incorporadas na doutrina que define a natureza
jurídica da relação entre os funcionários e a Administração Pública com base na teoria da 11 BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales,1987, p. 43.
32
relação unilateral. Nesse horizonte, o Estado encontra-se em posição de autoridade, de
comando, em relação aos particulares, podendo instituir obrigações por meio de ato unilateral,
assim como detém o direito de modificar, também unilateralmente, relações já constituídas.
Essa superioridade jurídica decorre da necessidade de gerir interesses públicos. Conquanto a
concepção de Estado varie de um para outro sistema jurídico, podendo haver uma feição mais
autoritária ou outra mais próxima dos valores democráticos, o regime jurídico-administrativo
que vincula funcionários e a Administração ainda hoje está preso a teses autoritárias.
A teoria unilateralista assenta-se em toda uma tradição jurídica e
sustenta-se a partir de alguns postulados básicos, dentre os quais estão a impossibilidade de
acordo contratual devido à desigual posição jurídica das vontades, a indisponibilidade para o
comércio do objeto do contrato, a regulação por lei do conteúdo da relação jurídica, a posição
de supremacia da Administração Pública e a retroatividade dos efeitos da relação ao momento
do ato de nomeação. Esses postulados rechaçam a possibilidade do estabelecimento de
vínculos contratuais em relações entre desiguais. 12
Além do predomínio do aspecto unilateral e hierárquico, há a
identificação da pessoa física com a função externa desempenhada pela Administração, a
garantia ao funcionário opera-se através da lei, tornando-se inviável qualquer aspecto
contratual, pois este depende da vontade, sendo impossível equiparar a vontade política à
vontade privada. Inadmissível a distinção entre os interesses dos funcionários e os da
Administração, pois esta, sendo portadora do interesse geral, não pode aceitar a existência de
interesses particulares. Esses argumentos são manejados para justificar que a Administração
Pública e a negociação coletiva constituem termos excludentes, inexistindo na função pública
qualquer espaço para o processo negociador. 13
12
APARICIO TOVAR, em La contratación colectiva de los funcionarios públicos en AA.VV., Jurisprudencia
constitucional y relaciones laborales, 1983, p. 295-315, logo após a vigência da Constituição da Espanha de 1978, já constatava que “la indudable tendência de homoneización de las condiciones de trabajo en los sectores público y privado”, daí por que àquela época concluía que “para nuestra Constitución la negociación colectiva es una emanación de la acción sindical, es el elemento fundamental en la configuración del sindicato. Si recordamos que los funcionarios públicos son titulares del derecho de sindicación aunque con determinadas peculiaridades en su ejercicio, tendríamos que admitir, en principio, que esas peculiaridades no pueden ser de tal calibre que hagan imposible la negociación colectiva”
13 Na Espanha, a doutrina sobre a natureza da função pública encontra-se dividida em dois blocos com suas posições bem delimitadas. De um lado coloca-se a doutrina administrativista que acolhe majoritariamente a visão tradicional, estatutária, unilateral e não contratual. Do outro lado perfilha a doutrina trabalhista que
33
Esses postulados têm como pressuposto axiológico a ideia de que o
Estado-Administração é a encarnação do interesse público em sua totalidade. Nessa vertente,
nega-se uma esfera de vontade ao funcionário, atribuindo-se ao ente estatal uma esfera de
vontade ilimitada, sendo esta uma concepção ideológica de Estado, o qual passa a ser
apresentado como detentor perene do interesse público, reforçando no imaginário social a
ideia do Estado do bem-comum. O Estado é, então, compreendido como um ser unitário,
transcendente e dotado de uma vontade onipotente, sendo os funcionários reduzidos à
condição de meio, de instrumento, a quem se nega a condição de sujeito de direitos e a quem
se atribui garantias tão-somente em face do interesse da coletividade.14
Nessa linha, a relação funcionarial é objeto de tutela jurídica apenas
em atenção aos “interesses coletivos”, e não tendo em vista a dignidade do trabalho humano,
sendo irrelevante a condição de cidadão-trabalhador. A seu turno, perseguindo o Estado-
Administração a satisfação de interesses gerais, estão aí compreendidos os interesses dos
funcionários. Não há possibilidade de surgir qualquer conflito na função pública, porquanto
os interesses dos funcionários encontram-se naturalmente satisfeitos pelo atendimento dos
interesses da coletividade. Ainda que se admita a existência do conflito, os interesses
classistas dos funcionários devem sempre ceder ao interesse público. 15
Essa concepção nega a natureza contratual da função pública, ao
considerar que o ato administrativo de nomeação é causa suficiente para a constituição do
vínculo jurídico. O assentimento do nomeado tem caráter apenas secundário e acessório,
influindo unicamente sobre a eficácia do ato administrativo. Essa relação é individualizada
predominantemente agasalha a tese que considera que a função pública não possui natureza estatutária e pressupõe consensualidade, bilateralidade e contratualidade. No Brasil, por sua vez, o modelo de função pública compreendido como estatutário, unilateral, não contratual, se consolidou e se projetou principalmente por meio da doutrina administrativista de BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo, 2002. p. 41-49.
14 No Brasil, essa concepção de Estado recebeu fortes críticas em COELHO. A relação de trabalho com o
Estado: uma abordagem crítica da doutrina administrativa da relação de função pública, 1994, p. 45-49. Para um estudo mais completo e aprofundado sobre essa visão ideológica de Estado e seus efeitos sobre a relação de trabalho com os funcionários públicos, cf. VILHENA. O contrato de trabalho com o Estado, 2002.
15 Na Espanha, importante teórico dessa vertente é PARADA VÁZQUEZ. La degeneración del modelo de función pública, Revista de Administración Pública, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, núm. 150, 1999, p. 421 e ss. Este autor desenvolve semelhante ideia no livro Derecho Administrativo II.
Organización y empleo público, 2005, p. 405 e ss.
34
pela circunstância de estar adstrita à realização do interesse geral, podendo uma das partes, no
caso a Administração Pública, decidir de forma absoluta sobre todo o conteúdo da relação
jurídica. Nessa direção, a função pública constitui uma relação de especial dependência
hierárquica, sujeita a uma disciplina fixada inteiramente por via legal ou regulamentar. O
Estado define todo o conteúdo da relação, podendo-a modificar a qualquer momento, sem
necessidade de assentimento do funcionário. Essa definição unilateral afasta a natureza
contratual da relação, significando que, não obstante o trabalhador manifeste sua vontade
quanto à constituição do vínculo, o consentimento diz respeito tão-somente a sua sujeição à
determinada situação imposta pelo Estado.
Haveria uma diferença substancial entre o trabalho público e o
privado, fundada no tipo de interesses perseguidos pela Administração Pública, atuando a
entidade como titular do poder de soberania, e os funcionários agiriam como instrumentos da
própria autoridade pública. O trabalho prestado ao Estado constituiria gênero diverso do
trabalho prestado aos entes privados porque, enquanto a atividade do empregador privado tem
finalidades econômicas, a atividade estatal objetiva a persecução do interesse público, além
do que o funcionário seria um órgão do Estado, ou seja, uma parte da Administração, a sua
expressão física.
A consolidação desses postulados unilateralistas importa negar
qualquer traço de contratualidade no momento da formação do vínculo jurídico, assim como
ao longo do desenvolvimento da relação funcionarial, justificando, assim, a instituição de um
regime jurídico distinto para os funcionários públicos, do tipo estatutário e de natureza
pública, em que é estabelecido o conjunto de direitos, deveres e responsabilidades impostos
abstrata, genérica e obrigatoriamente a quem nele se enquadre. A previsão legal de um
estatuto, em que o regime da função pública deriva da lei ou do regulamento, significa a
acentuação do caráter autoritário e de reconhecimento de prerrogativas exorbitantes para a
Administração, daí a natural exclusão dos funcionários dos direitos coletivos assegurados a
todo e qualquer trabalhador do setor privado.
A vedação do exercício de direitos coletivos objetiva impedir a
formação de centros organizados de poder, evitando-se, assim, a institucionalização do
35
conflito e a instrumentalização da defesa dos interesses de grupos, que constituem limites à
soberania, comprometem a autoridade do Estado, sacrificam a supremacia da Administração
Pública, fragilizam a hierarquia administrativa, prejudicam a continuidade dos serviços e
negam o caráter unilateral do regime jurídico-administrativo. Dentro desse panorama, negam-
se os direitos coletivos, evitando a luta de classes no âmbito da organização administrativa e
impedindo a autotutela coletiva dos funcionários.
2.3 REVISÃO DOS POSTULADOS DA CONCEPÇÃO UNILATERALISTA:
AFIRMAÇÃO DA CONTRATUALIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA
Os teóricos tradicionais do Direito Administrativo, quase à
unanimidade, defendem a natureza estatutária, unilateral, pontificando a inexistência de
consensualidade no vínculo, entendendo ser suficiente o ato de nomeação para que a pessoa já
seja inserida na relação de sujeição às regras gerais e abstratas, unilateralmente impostas, que
compõem o regime estatutário, legal. Entendem que os funcionários de cargos submetem-se a
um regime especificamente concebido para reger esta categoria. Tal regime é estatutário ou
institucional; logo, de índole não contratual. Nessa visão, existe um ajuste de vontade
exclusivamente quanto à constituição do liame, mas o consentimento limita-se à aceitação de
ser regido pelas normas preestabelecidas, em nada podendo modificar, portanto, o conteúdo
da relação jurídica. Enfim, a previsão legal de todo o conteúdo, a possibilidade de alteração
unilateral e a posição de supremacia estatal, entre outros argumentos, impedem que se
reconheça a contratualidade da função pública e também impõem sérios óbices à negociação
coletiva. 16
16
Os postulados da concepção unilateralista de função pública foram objeto de crítica sistematizada nas seguintes obras: LIBERAL FERNANDES. Autonomia colectiva dos trabalhadores da Administração: crise
do modelo clássico de emprego público,1995, p. 73-108; CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre
estatuto funcionarial y contrato labora,. 2001, p. 25-66; ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de
los funcionarios públicos, 1983, p. 29-51; e BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 29-34.
36
No Direito do Trabalho, “[…] la visión dogmática que hoy predomina
en el estúdio de la relación jurídica individual de trabajo es la del contrato”.17 Portanto, há
muito se encontra superada a doutrina que nega o caráter contratual da relação jurídica
estabelecida entre empregado-empregador, assim como hoje está inteiramente ultrapassado o
modelo liberal dos contratos, baseado na plena autonomia das partes, em que estas estipulam
livremente as cláusulas, com a mínima regulação estatal possível. De fato, “[...] nenhum texto
ou princípio de direito exige, para a validade de um acordo de vontades, que o conteúdo seja
estabelecido pelas duas partes ou tenha sido objeto de negociações e discussões
preliminares”.18 Portanto, a manifestação de vontade, pressuposto do trabalho livre, tem sido a
base da doutrina justrabalhista que na atualidade, com unanimidade, afasta as teorias
anticontratualistas e reconhece a natureza contratual do vínculo formado entre empregado e
empregador.19
Apesar da natureza assimétrica do contrato de trabalho, em que um
dos contratantes, no caso o empregador, neste aspecto, detém superioridade jurídica, com
extenso e profundo conjunto de prerrogativas, com elevado poder de conformação do
contrato, podendo alterar, inclusive unilateralmente, as condições de trabalho, importa
reconhecer que o ajuste que dá origem à relação de emprego implica o reconhecimento da
existência de um complexo de direitos e deveres entre os contratantes. Desde as principais
concepções que justificam uma contratação com contornos diversos daqueles incorporados
pelo modelo civilista, observa-se uma profunda alteração na forma de manifestação do poder
do empregador no contrato de trabalho, desde concepções mais assimétricas, unilaterais e
hierárquicas, até novas formas baseadas em relações mais equilibradas, dialéticas e
democráticas.
Esse fundamento decorre do reconhecimento de que o contrato de
trabalho está inserido em um âmbito no qual uma das partes, o empregador, detém a
prerrogativa de organizar o sistema de produção de bens e serviços, manifestando-se na
capacidade de organizar, regulamentar, fiscalizar e exercer o poder hierárquico. Nesse
sentido, possui o empregador o poder de organizar e ordenar o trabalho, definindo o conteúdo
17
PALOMEQUE LÓPEZ; ÁLVAREZ DE LA ROSA. Derecho de Trabajo, 2004. p. 467. 18
SUSSEKIND; MARANHÃO; VIANNA; TEIXEIRA. Instituições de Direito do Trabalho I, 1999, p. 225. 19
DELGADO. Curso de Direito do Trabalho, 2002, p. 313-316.
37
e forma da prestação dos serviços. Na realidade, poder de direção e subordinação jurídica são
os dois lados da mesma moeda. Pela subordinação jurídica, o trabalhador obriga-se a acolher
a direção do empregador no modo de realização da prestação dos serviços, constituindo tal
subordinação o polo reflexo e combinado, na relação de emprego, do poder de direção. Não se
trata, por certo, de um estado de sujeição pessoal do trabalhador, mas de subordinação jurídica
da atividade, que passa a ser dirigida, controlada e fiscalizada pelo empregador no interesse
do empreendimento.20
Na ótica do Direito do Trabalho, embora se reconheça ainda forte
assimetria na relação de trabalho, impende reconhecer os seus aspectos dinâmico e evolutivo,
que tendem à superação da forma despótica, hierárquica e assimétrica de gestão empresarial,
em que as condições de trabalho são ditadas de forma unilateral e autoritária pelo empregador.
Nessa nova perspectiva, acentua-se o processo de democratização interna da empresa, com
adoção de decisões negociadas, seja pela participação dos sindicatos, seja pela intermediação
dos órgãos de representação nos locais de trabalho. Dentro desse espírito, hoje é significativa
a tendência de criação de mecanismos e processos de bilateralização ou multilateralização da
dinâmica do exercício do poder. Isso decorre da necessidade de democratizar o exercício do
poder no âmbito do contrato de trabalho, a fim de que possa adquirir legitimidade. Na
realidade, para que o poder seja legitimado, deve ficar assegurada a possibilidade de
participação efetiva e adequada de todos aqueles que sejam afetados pelo seu exercício.
Portanto, para que o poder empregatício seja democrático e legítimo, faz-se necessária a
instituição de procedimentos de diálogo e de participação.21
Do ponto de vista da relação entre funcionário-Estado, observa-se que
a teoria estatutária, unilateral, prende-se a um substrato autoritário de Estado, vinculado ainda
a instituições do Estado absolutista e do Estado liberal, que propicia a manutenção, no
contexto da Administração Pública, de práticas tipicamente autoritárias, em que restringe a
participação coletiva dos trabalhadores na definição do conteúdo da relação jurídica. Ao
vincular-se a instituição do regime estatutário à necessidade de proteger o interesse público, 20 Uma nova compreensão da bilateralidade do contrato de trabalho, com profundas modificações referentes ao
poder diretivo empresarial, está formulada em SANTOS FERNÁNDEZ. El contrato de trabajo como limite al
poder del empresário, 2005. 21 Sobre a democratização interna da empresa nas suas relações com seus empregados, há no Brasil o seguinte
estudo integral formulado a partir da doutrina alemã: SILVA. Co-gestão no estabelecimento e na empresa, 1991.
38
que está integralmente previsto na lei, resultante única e exclusivamente do exercício de um
poder estatal, no caso o Poder Legislativo, essa concepção procura apresentar o Estado como
onipresente, gigante, que monopoliza a atividade de determinação e efetivação do interesse
público. Com a consolidação do Estado Social, em que este assume não apenas serviços
públicos, mas também atividades econômicas, com o crescimento da máquina estatal para
atender ao extenso e variado rol de atribuições assumidas ao longo das décadas, parece
necessário reavaliar a ideia de que a proteção ao interesse público encontra-se totalmente
concentrada na figura estatal.
Com efeito, a privatização de empresas públicas e a incorporação de
domínios da esfera pública pela esfera privada têm provocado alterações substanciais na
distinção entre o público e o privado, modificando inclusive a própria relação entre Estado e
sociedade, configurando um processo de “privatização do público e publicização do
privado”.22 23 Portanto, urge a necessidade de se reequacionar a dicotomia interesses
público/privado, sendo importante reconhecer a influência e a legitimidade de entidades
privadas, devidamente organizadas, incluindo-se aqui as associações sindicais de funcionários
públicos, de atuarem junto ao Estado, participando, por esta via, da definição do interesse
público.24 Ora, a efetiva previsão e a concretização da participação da sociedade civil no
exercício do poder constituem-se exigência do Estado Democrático de Direito. Destarte, não 22 Sobre o sentido dessas expressões, Elody Nassar de Alencar esclarece: “Com a dinâmica intervencionista o
Estado passou a atuar em esferas antes tidas como reservadas à autonomia privada, em especial no setor econômico e social, do que resultou o processo denominado de publicização do privado, de outro lado ocorreu também o fenômeno da privatização do público.” De outro lado, o público “[...] se privatiza progressivamente, já que, por um lado, o Estado é tomado pelas empresas e, por outro, as ações individuais se dissolvem à homogeneidade social mínima e necessária.” (ALENCAR. Aspectos gerais do fenômeno da publicização do
direito privado e da privatização do direito público, jul./dez., 2001). 23 A aproximação entre o trabalho público e o trabalho privado foi assim apreendida por SUPIOT. El trabajo y la
oposición público-privado, Revista Internacional del Trabajo, núm. 6, 1996, p. 718.: “La aleación de lo público y lo privado es ante todo inevitable desde el punto de vista de los derechos de la persona que trabaja. La oposión entre um derecho laboral, cuyo âmbito sería el derecho privado, y un derecho de la función pública, que formaria parte del derecho público, es a este respecto más que imprecisa. Desde hace un siglo, asistimos a un doble movimiento de penetración del derecho laboral por normas de carácter público y del derecho de la función pública por las normas que protegen a la persona privada. El Estado no puede desinteresarse totalmente del trabajo en el sector privado, pues las condiciones em que ese trabajo se realiza, su volumen y su calidad repercuten directamente en el estado físico, moral y econômico de la nación. A la inversa, el Estado ya no puede, en uma Constitución democrática, negar a SUS agentes determinados derechos y liberdades que ampara en el âmbito privado (liberdade sindical, igualdad entre los sexos, etc.)
24 Objetivando apresentar uma (re)construção da base teórica para a distinção entre o público e o privado, Maria Tereza Fonseca Dias observa que tal distinção não pode se explicar a partir tão-somente da norma jurídica, daí por que considera importante a superação dos paradigmas tradicionais do direito que estabelecem uma distinção e uma separação profunda entre as noções do público e do privado. (DIAS, M. T. Fonseca. Direito
Administrativo pós-moderno. 2003, p. 140). Uma visão igualmente superadora da dicotomia clássica público-privado é exposta em PIRES. Direito adquirido e ordem pública: segurança jurídica e transformação
democrática, 2005, p. 353-404.
39
se pode negar às entidades sindicais de funcionários a possibilidade de participar ativamente
para determinação das condições de trabalho no setor público, contribuindo para legitimar o
poder estatal.
Falacioso é o argumento que contrapõe o interesse público aos
interesses coletivos dos funcionários, partindo-se da falsa ideia de que, se há proteção do
interesse de grupo, o interesse público restaria prejudicado. Nesse aspecto, não se justifica o
discurso tradicional de pretender que a Administração Pública exerça monopólio na proteção
do interesse público. De fato, numa sociedade aberta, democrática e plural, o interesse público
deve resultar de consenso e não de imposição unilateral, autoritária. E é exatamente nessa
visão de que o interesse público é resguardado exclusivamente pelo Estado que o funcionário
é compreendido como simples instrumento de realização dos fins estatais, postergando-se a
relação de trabalho contida no exercício da função pública. Ora, esta relação envolve um
vínculo de natureza permanente e profissional, que tem por objeto o trabalho humano, daí a
necessidade de uma perspectiva ponderada e equilibrada de tutela simultânea dos fins estatais
e dos direitos coletivos dos funcionários. Portanto, parece não apenas possível, mas condição
indispensável no Estado Social e Democrático de Direito, conciliar os interesses públicos e os
interesses da coletividade dos funcionários, tutelando-se de forma concomitante e ponderada
os fins estatais e a prestação subordinada de trabalho.
Por seu turno, a ideia de que o funcionário público, no exercício de
suas atribuições, encarna o próprio Estado, conduz a conclusões desarrazoadas, fundadas
sobretudo na premissa de que ambos formam uma única realidade. Nessa visão, ao considerar
os agentes públicos “servidores da comunidade”, e não trabalhadores que prestam
determinados serviços em troca de uma remuneração, passa-se a exigir deles uma conduta
“ascética, imparcial, sem qualquer possibilidade de comprometimento político ou
ideológico”.25 Tal concepção justificou, até meados do século XX, negativa de existência de
conflito de interesses entre os funcionários e o Estado, assim como havia a proibição
generalizada dos sindicatos de funcionários, o exercício da greve e a participação na
formulação das condições de prestação de serviços. Superada está na atualidade esta visão
extremada, posto que se operou a generalização dos conflitos coletivos no seio da
25 PINTO E NETTO. A contratualização da função pública: da insuficiência da teoria estatutária no Estado
Democrático de Direito. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo), 2003, p. 112.
40
Administração Pública. Hoje não subsiste a vertente radical de que funcionários e Estado
formam uma única realidade, com interesses sempre coincidentes, sendo essencial “[...]
reconocer la existência de intereses propios y contrapuestos”.26
Nesse sentido, ao ocupar determinado “lugar” na estrutura
administrativa, o agente público não passa a fazer “parte” da Administração, mas,
simplesmente, exerce competências legais que são atribuídas a um órgão. Adequada a
equiparação efetuada por Antônio Álvares da Silva entre cargo e emprego, no sentido de que
ambos indicam um “lugar” em determinada estrutura, desaconselhando, portanto, que se fale
em “cargo” como elemento presente somente na relação de função pública. Na perspectiva do
autor, não há diferença de ordem substancial entre os conceitos de cargo e emprego,
considerando que este consiste em um
lugar criado na iniciativa privada com designação própria e atribuições específicas, exercido em caráter profissional por um titular, que recebe salário. [...] Não se estrutura nenhuma organização sem estabelecer a unidade mínima a que se atribuirão funções necessárias ao funcionamento da engrenagem.27
Observando a relação funcionário-Estado do ponto de vista externo,
reconhece-se que o agente efetivamente age como sendo o próprio Estado, manifesta-se nesta
condição, desempenhando as atribuições que lhe são conferidas pela investidura, portanto, a
vontade por ele manifestada é a vontade do próprio Estado. Nessa direção, permanece a ideia
de que o agente público, por meio da investidura, torna-se parte do Estado, sendo por ele
absorvido, devendo defender, de maneira incondicional, os interesses estatais. E assim foi
construída toda a doutrina administrativista, enfocando-se prioritariamente os efeitos externos
da relação entre o funcionário e o Estado. Quanto à relação interna que se forma no contexto
da organização administrativa, ou seja, no tocante ao aspecto da relação de trabalho
estabelecida, pouca atenção vem sendo dedicada. No entanto, vista a relação de seu ângulo
interno, mantém o funcionário sua personalidade e sua qualidade de sujeito de direitos, o qual
não se confunde com a pessoa jurídica estatal, sendo evidente a necessidade de se conferir
26
BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 41. 27 SILVA. Os servidores públicos e o Direito do Trabalho, 1993, p. 48-49.
41
menor relevância ao agente como instrumento do Estado e maior importância ao funcionário
sujeito de direitos, realçando-se sua vontade e seus interesses.
Noutra vertente, a doutrina tradicional afasta a natureza contratual da
função pública a partir da ideia de “dever de fidelidade”, que coloca o funcionário em
situação mais gravosa, de inferioridade jurídica, sujeito a maiores limitações, apresentando
uma visão subjetiva de subordinação do agente público. No Direito do Trabalho, essa visão
encontra-se superada pela concepção objetiva da subordinação, em que não incide sobre a
pessoa do trabalhador, mas sobre a forma de prestação de trabalho. Diferentemente do âmbito
trabalhista, onde se revela inconcebível falar em sujeição pessoal do empregado, na doutrina
jurídico-administrativa remanesce a ideia de subordinação do funcionário em sua relação com
o Estado, em que o agente é colocado em situação de inferioridade, de total sujeição às
determinações do Estado. Decorre tal posicionamento da suposição de que a relação
caracteriza-se pela desigualdade entre os sujeitos, permanecendo o ente estatal em posição de
constante superioridade, em que o agente público, assim como os administrados, permanecem
à mercê dos atos administrativos unilaterais, exercidos com fundamento no ius imperii do
Estado.
Essa teoria desconhece que, com o declínio do Estado Liberal,
marcado pela intervenção mínima na sociedade, em que sua atuação restringia-se basicamente
ao exercício da soberania estatal, o Estado Social passa a diversificar e intensificar cada vez
mais sua atuação, de modo que não se justifica mais a afirmação de que o Estado sempre
comparece às relações com as prerrogativas de Poder Público, passando a atuar, em algumas
circunstâncias, nas mesmas condições que os particulares. Portanto, cumpre desmistificar que
o funcionário não se encontra em situação de subordinação, de especial sujeição frente ao
Estado, posto que o vínculo estabelece uma subordinação estritamente jurídica, tal como se dá
no Direito do Trabalho. E não pode ser diferente. Em ambas as situações o objeto da relação
jurídica é o mesmo, ou seja, o trabalho humano, sendo que o elemento “subordinação”
representa aspecto comum não apenas aos regimes trabalhista e estatutário, mas a toda e
qualquer relação de trabalho sucessivo.
42
Nesse ponto, merece especial referência a contribuição de Paulo
Emílio Ribeiro de Vilhena acerca da natureza da subordinação do trabalho com o Estado.
Segundo o autor, quanto maior a indeterminação das prestações de uma relação jurídica,
maior o estado de subordinação na qual se encontra o contratado.28 De fato, nessa situação
encontra-se o trabalhador, tanto o privado como o público, porquanto em ambas as hipóteses
está envolvida uma relação de trato sucessivo, com prestações indeterminadas. Portanto, a
subordinação na relação de função pública deve ser entendida não como peculiaridade do
regime público, mas como característica própria a toda relação jurídica que tenha conteúdo
indeterminado. Contrato e subordinação jurídica não são categorias inconciliáveis, haja vista
que a subordinação jurídica presente nas relações trabalhistas não afasta sua natureza
contratual. No âmbito da função pública, por possuir a relação conteúdo indeterminado, é
crucial que, ao longo da execução das atividades, algumas alterações sejam promovidas no
tocante à prestação dos serviços, mas esse fato não justifica que o trabalhador, por travar uma
relação com o Estado, esteja submetido a maiores restrições.
Por sua vez, quanto à fixação e alteração unilaterais do regime público
com expressa recusa à existência de direito adquirido a regime jurídico, tudo a justificar a
ausência de contratualidade na função pública, parece que tal concepção parte de pressuposto
equivocado. Com efeito, apresenta Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena uma visão dualista do
Estado, tendo por fundamento o clássico princípio da separação dos poderes, segundo o qual
Estado-ordem-jurídica não se confunde com o Estado-sujeito-de-direito.29 Destarte “o Estado
ao criar e estruturar relações jurídicas, não o faz como sujeito de direito e muito menos como
parte nelas, mas como ordem jurídica. E é esta que pontua o tônus com que ele, Estado, como
sujeito de direitos, participa das relações jurídicas.”30
Nesse aspecto, a doutrina administrativista confunde categorias
jurídicas distintas. Quando se fala em Estado-ordem-jurídica, não existe propriamente um
sujeito de direito, de tal sorte que não pode atribuir natureza de “relação jurídica” a uma
relação à qual o Estado compareça nessa condição. “Ao disciplinar a relação de função
pública através de um estatuto, o Estado não o faz como sujeito de direitos e muito menos
28 VILHENA. O contrato de trabalho com o Estado, 2002, p. 92-95. 29 VILHENA. O contrato de trabalho com o Estado, 2002, p. 91. 30 VILHENA. O contrato de trabalho com o Estado, 2002, p. 18.
43
como parte nela, mas como ordem jurídica.”31 Apresentando-se como “ordem jurídica”,
mostra-se inviável sua presença em um dos polos de determinada relação jurídica, posto que
uma norma jurídica não é parte na relação. O uso indevido do Estado-ordem-jurídica como
Estado-sujeito-de-direito coloca o trabalhador em posição de subordinação face ao Estado
entendido nesta última categoria.
Ora, quando se faz referência ao Estado, em se tratando de relação de
função pública, vê-se apenas o Estado-ordem-jurídica, criador do direito, a quem compete
estabelecer as normas, bem como alterá-las. Em nenhum momento essa doutrina procura
examinar a questão colocando o Estado como sujeito de direitos e, consequentemente,
subordinado à ordem jurídica. Essa confusão entre categorias jurídicas distintas gera sérias e
graves consequências referentes aos direitos dos funcionários públicos. Parece evidente que o
regime jurídico-administrativo é determinado pelo Estado-ordem-jurídica e não pelo Estado-
sujeito-de-direito, daí resultando equivocada a compreensão de que constitui peculiaridade
desse regime o fato de ser estabelecido e alterado unilateralmente pelo Estado. A regulação da
função pública, em virtude do princípio da legalidade, necessita estar sempre fundada na lei,
em sentido estrito. No entanto, o regime jurídico é uma emanação da ordem jurídica a que
está submetido o Estado-sujeito-de-direito, na mesma medida em que o trabalhador que lhe
presta serviços, daí por que não se pode afirmar que um dos sujeitos da relação dita unilateral
e livremente o sistema de direitos e obrigações do regime jurídico.
Por outro lado, quanto à reduzida função do elemento “vontade” na
configuração do vínculo de função pública, deve-se, desde longo, pontuar que, na hodierna
compreensão dos contratos, não se exige que seu conteúdo decorra única e exclusivamente da
vontade dos contratantes. Se na doutrina tradicional a centralidade do contrato residia na
doutrina da autonomia das partes e no dogma da liberdade contratual, inspirados no
liberalismo econômico e na autonomia da vontade, nos últimos tempos tal concepção mudou
profundamente e isso se deu em função da necessidade de intervenção estatal para a regulação
dos contratos. Exemplo mais eloquente dessa transformação deu-se no que tange ao contrato
de trabalho, em que seu conteúdo passou a ser imposto por normas de ordem pública,
inderrogáveis pela vontade das partes. Hoje, o Direito do Trabalho encontra-se quase que 31
COELHO. A relação de trabalho com o Estado: uma abordagem crítica da doutrina administrativa da
relação de função pública, 1994, p. 37.
44
inteiramente regulado e não subsiste mais a ideia de que o contrato importa ampla liberdade
de estipulação de cláusulas.32
Presencia-se progressiva redução da função cumprida pela autonomia
da vontade no âmbito das relações jurídicas. Na atualidade, tal autonomia desempenha função
bastante reduzida, cingindo-se, na maioria das situações, a permitir que o sujeito aceite ou não
receber uma qualificação jurídica. Configurada a “involução do conceito de vontade, como
objeto de regulamentação jurídica”33, deve-se compreender a manifestação não mais nos
termos do pensamento liberal, em que a interferência estatal nas relações jurídicas é
praticamente nula, mas tendo em conta todo o processo de regulação pelo Estado das mais
diversas relações sociais, como forma de promover a pacificação e o desenvolvimento das
relações sociais.
Desse modo, cumpre reconhecer a existência de vários planos de
autonomia, mais ou menos amplos, definidos em função dos interesses a serem juridicamente
tutelados. Significa que, quanto mais relevante o interesse, mais intensa a tutela jurídica,
podendo haver progressiva limitação à autonomia da vontade, mas nunca sua total e completa
eliminação.34 Não se trata de reconhecer o aspecto volitivo apenas no momento da formação
da relação de função pública, mas admitir que a consensualidade deve estar presente no seu
desenvolvimento, notadamente através do diálogo permanente entre o ente estatal e as
entidades representativas dos funcionários públicas.
No Direito do Trabalho, o fato de a relação jurídica encontrar-se
amplamente regulada pela lei, em que é bastante reduzida a autonomia dos contratantes, não
afasta a natureza contratual dessa relação. No contrato de trabalho, assim como na relação de
função pública, onde há intensa regulação legislativa, que estabelece não apenas a forma, mas
também o seu conteúdo, permanece o acordo de vontades como elemento essencial à
32
Acerca do estreito espaço para a autonomia da vontade no contrato de trabalho, cf. PALOMEQUE LÓPEZ; ÁLVAREZ DE LA ROSA. Derecho de Trabajo, 2004, p. 468; SUSSEKIND; MARANHÃO; VIANNA; TEIXEIRA. Instituições de Direito do Trabalho I, 1999, p. 241-242.
33 VILHENA. O contrato de trabalho com o Estado, 2002, p. 64. 34 VILHENA. O contrato de trabalho com o Estado, 2002, p. 68.
45
constituição e à manutenção do liame jurídico. Restrita aplicação da autonomia da vontade
nas duas espécies de relação jurídica não tem o efeito de negar a contratualidade.
De seu turno, tem-se afirmado que, sendo o estatuto unilateralmente
determinado e alterado pelo Estado, com a suposta inexistência de direito adquirido ao regime
jurídico, há óbice intransponível ao reconhecimento da contratualidade da função pública.35
Ocorre que essa possibilidade de alteração unilateral também está presente nos regimes
contratuais, constituindo prerrogativa essencial à adequação da forma de execução da
prestação objeto do contrato, notadamente quando envolve relação jurídica em que há
indeterminação no seu objeto e quando se trata de liame de trato sucessivo, em que a
permanência do vínculo exige frequentes adequações. Nesse sentido, no âmbito do Direito do
Trabalho, considerando o poder diretivo conferido ao empregador, este detém o jus variandi,
podendo promover alterações contratuais, com as restrições que a legislação impõe. Nesse
sentido, no Brasil, o artigo 468 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e, na
Espanha, o artigo 41 do Estatuto dos Trabalhadores (ET), ao estabelecer que “La dirección de
la empresa, cuando existan probadas razones econômicas, técnicas organizativas o de
produción, podrá acordar modificaciones sustanciales de las condiciones de trabajo”. Estes
dois dispositivos guardam correlação com o artigo 38.10 do EBEP da Espanha, que trata de
alteração substancial das circunstâncias econômicas como justificativa para excepcionar o
cumprimento dos pactos e acordos.
Portanto, a previsão de alteração unilateral não é característica
exclusiva do regime público. Nesse ponto, quanto às modificações introduzidas nesse âmbito,
tratando-se de regime integralmente disciplinado por lei, é necessário deixar claro que as
alterações não decorrem de ato unilateral de nenhuma das partes, mas decorrem diretamente
de alterações legislativas, portanto, todas as modificações derivam de alterações legais.
Fenômeno idêntico dá-se no plano do contrato de trabalho, em que as normas jurídicas
incidem imediatamente sobre as situações jurídicas constituídas. Em outros termos, as
cláusulas contratuais incorporam ao patrimônio jurídico dos trabalhadores, mas o mesmo não
ocorre no tocante às normas jurídicas. No espectro da função pública, não se trata de
existência ou não de direito adquirido a regime jurídico, mas da imediata aplicação das
35
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 2002, p. 228-229.
46
normas que alteram a ordem jurídica. Significa que, tanto no âmbito trabalhista, como no
plano do Direito Administrativo, uma vez alterada a lei, modificam-se imediatamente as
relações jurídicas a ela submetidas, sendo a alteração unilateral de determinada situação
jurídica decorrência da superveniência de lei nova, ressalvadas, no entanto, as garantias do
artigo 5º, XXXVI, CF, e do artigo 33.3 CE. Parece claro que a concepção unilateralista
prende-se a ideias autoritárias, que remanescem ao Estado Liberal, incompatíveis com as
novas exigências do Estado Democrático de Direito, nas quais se afirma inequivocamente a
contratualidade da função que se estabelece entre o funcionário e o Estado.
Noutro aspecto, quando se nega a contratualidade na função pública,
diz-se que os cargos públicos não se encontram à venda, faltando, pois, o objeto do contrato.
O equívoco desse raciocínio está em que admitir o aspecto contratual não importa a
negociação de cargo público, mas a contratação da prestação de serviços profissionais tendo
como contrapartida a remuneração, assegurando-se ao funcionário a retribuição econômica
pelo fato de colocar sua força de trabalho a serviço da organização estatal.36 Por sua vez, não
se pode compreender o funcionário como parte integrante nem completamente identificado
com a organização administrativa, mas como um trabalhador a mais que realiza suas tarefas
no âmbito da Administração Pública, em troca de uma remuneração, não existindo, portanto,
uma diferença ontológica entre a atividade laboral do funcionário e a de um trabalhador
privado.
O certo é que o liame estabelecido entre o ente público e seus
funcionários contém todos os elementos substanciais do contrato de trabalho, ou seja,
prestação subordinada de trabalho e retribuição. Os benefícios emergentes do vínculo não
constituem meros reflexos legais ou vantagens conferidas no interesse da consecução dos
objetivos do serviço, configurando, por certo, autênticos direitos subjetivos dos funcionários.
Os salários não constituem simples compensação pelo exercício do cargo, mas relacionam-se
com a quantidade e qualidade do trabalho, configurando uma relação sinalagmática, em que a
remuneração tem natureza de contraprestação regular e periódica pelo trabalho realizado.
36 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 33.
47
Portanto, envolve o vínculo uma relação de serviço em que a “[...] contratación de servicios
profesionales a cambio de uma remuneración econômica está perfectamente justificada”.37
Enfim, a natureza jurídica da função pública não tem caráter
estatutário, unilateral, não contratual, uma vez que integra a categoria jurídica dos contratos,
na espécie contrato de direito público. Portanto, a concepção clássica de função pública está
superada pela doutrina contratualista, que reconhece a essencialidade do consentimento do
nomeado à formação do vínculo jurídico, possuindo a manifestação de vontade do funcionário
valor idêntico à declaração do ente estatal. Para essa teoria, a definição do enlace jurídico
funda-se no encontro de vontades do qual derivam obrigações recíprocas para as duas partes,
na existência de uma autonomia jurídica do funcionário no confronto com o Estado-
Administração, no reconhecimento da diferenciação de interesses das partes e na proposição
de equiparação entre o trabalho público e o trabalho privado. De fato, não há como negar o
aspecto contratual na relação de serviço entre o funcionário e a Administração, caracterizada
pelo intercâmbio de prestações por um salário, onde a vontade do trabalhador constitui
elemento determinante. 38
A superação da concepção unilateralista de função pública justifica-se
plenamente com o advento do Estado Democrático de Direito, no qual se exige a participação
ativa para a formação das decisões adotadas nas esferas públicas. Nessa perspectiva, impõe-se
o aprofundamento do Estado Democrático de Direito, reconhecendo-se que o recurso a
mecanismos jurídicos de matriz consensual é mais ajustado ao atendimento do interesse
público do que os de base autoritária. Nesse sentido, progressivamente consolida-se a
incorporação de institutos próprios do Direito do Trabalho no regime jurídico-administrativo,
especialmente os relacionados aos direitos coletivos dos funcionários públicos. Essa nova
37 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 34. 38
Em conclusão semelhante, Josefa Cantero Martinez pondera que “[…] no tiene sentido actualmente seguir manteniendo la exlusividad de la naturazela funcional y su caráter autoritário o unilateral, al menos desde el exclusivo punto de vista de su distinta naturaleza jurídica, pues hemos visto que los postulados clásicos que constituían los pilares básicos de esta concepción han ido derrumbándose poco a poco [...]. Esta nueva regulación, dada la identidad efectiva y sustancial que existe entre la relación laboral y la funcionarial no puede ser otra que la establecida para el resto de los trabajadores, o que viene a ser lo mismo, una regulaión contractual en la que se conceda a la voluntad del funcionario el papel que realmente tiene, no sólo en el momento de la perfección de la relación, sino durante la vigencia de la misma, a través de una mayor participación en la determinación de sus condiciones de trabajo mediante el instrumento de la negociación colectiva.” (CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 308).
48
feição permite o reconhecimento dos conflitos coletivos no âmbito da Administração Pública
e a abertura para que sejam solucionados através de fórmulas consensuais, sobressaindo na
atualidade a negociação coletiva na função pública.
2.4 CONTRATUALIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA: ABERTURA À NEGOCIAÇÃO
COLETIVA
A concepção unilateralista nega as vias consensuais, rechaçando a
negociação coletiva, na medida em que, considerando a exigência de persecução do interesse
público, não há razão para o Estado colocar-se em acordo com os sujeitos coletivos sobre
interesses que só a ele incumbem, partindo-se do raciocínio de que tais interesses encontram-
se resguardados pela indisponibilidade, sendo incontornável óbice às formas consensuais. A
seu turno, a contratualidade da função pública importa afirmar que sua disciplina é fruto de
consenso e não de imposição. Essa perspectiva tem a vantagem de buscar democratizar a
criação de normas que disciplinam a relação de função pública, dentro da ideia de que aos
funcionários deve-se assegurar a participação na determinação dos conteúdos jurídicos que
regem a prestação de trabalho ao Estado.
Na realidade, a fixação consensual das normas constitui uma
exigência do Estado Democrático de Direito, no qual direitos coletivos são reconhecidos aos
funcionários públicos, incluindo-se os instrumentos coletivos como vias adequadas para a
participação efetiva na definição das normas jurídicas que regulam as condições de trabalho.
Não se nega que determinados espaços normativos encontram-se reservados à regulação
heterônoma, no entanto deve-se assegurar algum conteúdo para a disciplina autônoma. Nesse
sentido, a contratualidade da função pública viabiliza e estimula o reconhecimento dos
49
direitos coletivos, implicando substancial modificação da forma de determinação das normas
que regulam a relação entre o trabalhador e a Administração Pública.39
O reconhecimento da contratualidade é campo propício para o efetivo
exercício de direitos coletivos pelos funcionários, por meio dos quais se lhes assegura a via da
participação na fixação das normas aplicáveis à função pública. Na concepção unilateral,
estatutária, não há espaço adequado para o desenvolvimento de uma concepção direcionada
para o efetivo exercício de direitos coletivos. Ora, sendo estes espécies de direitos políticos, a
participação constitui uma exigência do princípio democrático. Hoje, a tendência é a
denominada Administração concertada, através da participação dos sujeitos envolvidos nas
decisões administrativas, na busca do consenso, objetivando mais aceitação que imposição. A
atividade da Administração Pública não deve esgotar-se em formas unilaterais, impositivas,
devendo, pois, estruturar-se por meios de coordenação, em que a impositividade é substituída
pela consensualidade.40
A Administração deixa de corresponder ao modelo de poder
exclusivamente unilateral e impositivo e passa a se configurar como administração orientada
pela consensualidade. Essa administração concertada privilegia a participação na medida em
que se buscam soluções consensuais com os destinatários da atividade administrativa,
reforçando-se a legitimidade.41 A consensualidade possui a vantagem de aumentar a
39
A afirmação da contratualidade tem forte influência sobre as relações coletivas na função pública e no ponto observa BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 43: “Resalta el significado profundo de este proceso de contractualización del conflicto de trabajo también, como aceptación e institucionalización del conflicto de trabajo también dentro de la administración pública. De esta forma, la acción sindical se introduce en el área de la organización administrativa, con lo que ello supone de transformación del Poder Público y de la propria posición de la burocracia en el esquema tradicional de equilibrio y funcionalidad de poderes dentro del Estado. En efecto, el progresivo afianzamiento de estas técnicas – junto con otras más que se podían traer a colación, especialmente las que flexibilizan el corsé presupuestario en materia de retribuciones del personal – supone la consolidación de un proceso de contra-argumentaciones jurídicas que erosionan la teorización precedente sobre la imperatividad del respeto a la voluntad legal en la fijación de las condiciones de empleo de los funcionarios públicos. Ciertamente, la concepción autoritaria e imperativa de la Administración está siendo substituida por la introducción de procedimientos de participación y de negociación incluso en el nivel de la formación de las normas.”
40 Nessa direção, escrevem Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernández: “Desprovida de sua equívoca mística inicial, a ‘Administração acordada’ marca um caminho que será forçoso recorrer ou, pelo menos, explorar nos próximos anos, posto que já não cabe seguir ignorando por mais tempo que a Administração negocia e que a negociação se converteu em um instrumento imprescindível na tarefa de administrar.” (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ RODRÍGUEZ. Curso de Direito Administrativo, 1991, p. 593). Luísa Cristina Pinto e Netto discorre sobre esse tema em PINTO E NETTO. Interesse Público e Administração Concertada, Revista Brasileira de Direito Municipal, num. 12, 2004, p. 173-182.
41 MOREIRA NETO. Direito da Participação Política, 1992, p. 15.
50
governabilidade do sistema, haja vista que os sujeitos participantes da solução negociada
sentem-se mais comprometidos a observar e a defender as normas conveniadas, tudo a
fortalecer a democracia participativa. Portanto, resta evidente a necessidade de superação do
modelo de atuação administrativa unicamente unilateral, dando-se ênfase a formas
consensuais, do que é exemplo a negociação coletiva na função pública.
Em um Estado Democrático de Direito, o poder deve ser cada vez
mais exercido com a intermediação de seus destinatários, buscando-se, sempre que possível,
para as decisões públicas, caminhos concertados, ao invés de optar-se por vias unilaterais,
autoritárias. As soluções obtidas pelo diálogo devem ser priorizadas, pois representam a
forma mais adequada de definição do bem-comum, do interesse público. Na realidade, no
Estado Democrático de Direito, próprio de sociedades abertas e pluralistas, o bem-comum
deve ser compreendido como compromisso entre os interesses dos diversos grupos sociais,
devendo, portanto, ser perseguido por processos efetivamente democráticos. Não há, a priori,
oposição entre interesse comum e interesse da coletividade dos funcionários. O essencial é
que o princípio democrático reclama mais autonomia que heteronomia.
Parece evidente que a negociação coletiva é categoria jurídica
indispensável ao Estado Democrático de Direito. Com efeito, este não traduz simples
limitação jurídica ao poder político, uma vez que exige uma legitimação democrática do
mesmo poder, de sorte que esteja organizado e seja exercido democraticamente. Nesse
sentido, diz-se que num Estado Democrático de Direito exige-se mais do que a sujeição dos
órgãos e autoridades à ordem jurídica constituída, exigindo-se, cumulativamente, a efetiva
previsão e concretização da participação dos titulares e destinatários do poder no processo do
seu exercício.
Nessa perspectiva, a participação do exercício do poder estatal
envolve, necessariamente, dois aspectos complementares, a saber, a atitude participativa e a
institucionalização de formas de participação. Pouco significa a simples atitude do cidadão
voltada a participar sem que haja a previsão de formas de participação, bem como a
instituição da participação sem tal atitude a mantém como simulação de democracia, que
representa mero adereço formal. Portanto, mostra-se indispensável a conjugação dos dois
51
aspectos, implicando a possibilidade normativa de participação, aliada à existência de
mecanismos para que os destinatários do poder possam atuar eficazmente.42
Nesse ponto, para que a relação entre os funcionários e o Estado
estabeleça-se e desenvolva-se democraticamente, deve-se garantir a participação dos
interessados na determinação das condições de trabalho. Respeitado o espaço de disciplina
heterônoma, impõe-se a configuração de um espaço normativo mínimo entregue à regulação
autônoma. Essa participação, embora possa ser exercitada de forma individual e isoladamente,
obtém robustez e vigor no plano coletivo, sendo absolutamente indispensável que no âmbito
da função pública existam processos participativos mediados por sindicatos representativos do
conjunto dos funcionários públicos. A justificar essa ideia deve-se entender os funcionários
não como objeto do poder, não como súditos do poder ou de seus superiores hierárquicos, mas
compreendidos como cidadãos e trabalhadores, titulares de direitos. Nesse sentido, a
disciplina da relação de função pública não deve ser determinada, em sua integralidade,
unilateralmente, devendo haver espaço para que algumas matérias possam resultar do acordo
voluntário da vontade das partes, e não decorrer de mera imposição de uma parte sobre a
outra.
Essa exigência decorre da circunstância de que, no Estado
Democrático de Direito, a pluralidade é tida como princípio estrutural e, assim, somente a
participação possibilita a adequada avaliação dos interesses envolvidos. Não é demais afirmar
que uma norma com caráter consensual possui maior legitimidade, uma vez que discutida e
acordada, o que torna seu cumprimento de mais fácil obtenção. Disso resulta que a teoria
unilateralista não atende às exigências democráticas de participação dos funcionários na
criação de normas contratuais que devem regular suas relações. Portanto, o modelo contratual
torna-se mais efetivo na garantia da capacidade dos funcionários de influir no conteúdo das
normas que regem sua prestação de trabalho ao Estado. Nessa direção, pretende-se romper o
monopólio estatal no que tange à determinação das normas aplicáveis à função pública.
No modelo contratual, a negociação coletiva exerce papel
fundamental, havendo espaço para que as normas sejam criadas consensualmente. Não se
42 MOREIRA NETO. Direito da Participação Política, 1992, p. 12.
52
nega que a participação possa ocorrer no modelo unilateralista de função pública, mas, nesse
caso, a negociação tem finalidade meramente consultiva, cabendo a decisão final
exclusivamente ao Estado. Diversamente, na perspectiva da contratualidade da função
pública, a negociação pode assumir um caráter vinculante, com maior significação e conteúdo
democrático.43
Na linha da contratualidade, os sistemas jurídicos democráticos
reconhecem os direitos coletivos dos funcionários públicos, que, por sua natureza,
pressupõem espaço para a autonomia coletiva e justificam a disciplina consensual da relação
de trabalho mantida com o Estado. Nesse sentido, o reconhecimento dos direitos coletivos
importa a aceitação do fato de que há conflitos nas relações de função pública. Efetivamente,
os conflitos são inerentes a toda forma de organização social e não há qualquer razão para que
não exista conflituosidade nas relações estabelecidas entre o Estado e os funcionários
públicos. Não sendo possível encobrir o dado real da existência de conflitos nas relações de
função pública, ao invés de negá-los ou buscar meios para simplesmente extirpá-los, deve-se
encontrar meios para preveni-los e solucioná-los de forma justa e democrática. E nesse
aspecto a negociação coletiva deve desempenhar função estratégica, servindo para a
prevenção e diminuição da conflituosidade ínsita à relação de função pública.
De outra parte, é preciso considerar que a autonomia coletiva ocupa
uma especial dimensão no Direito do Trabalho, constituindo uma das suas mais importantes
fontes de produção normativa e exerce o importante papel de democratizar as relações de
trabalho. De fato, a vontade sempre foi uma fonte produtora de direitos e obrigações como
expressão da liberdade do ser humano para regulamentar os seus próprios interesses, sendo
que o termo “autonomia” significa, em suma, o poder atribuído a alguém de regulamentar e
governar os próprios interesses. A autonomia coletiva é a pedra angular em matéria de
43
Nesse ponto, advertem Miguel Rodríguez-Piñero y Bravo Ferrer em Ley y negociación colectiva en la función pública, en Relaciones Laborales, núm. 14, 1997 p. 8-9: “Una cosa es que exista un espacio negociador protegido, por la existencia de una obligación legal de negociación, en la elaboración por el Gobierno [...] de Anteproyectos legislativos o de Proyetos reglamentarios, y otra que a ello haya de reducirse la negociación funcionarial; su papel sería entonces bastante limitado y marginal. Un proceso de contractualización no puede consistir en añadir una fase procedimental previa en la elaboración de las normas [...]. Se ha de establecer un nuevo reparto de papeles entre la norma legal y la norma colectiva, pues sin deslegalizar y desreglamentar espacios normativos no podrá existir un margen de contractualización de la regulación jurídica de la relación de empleo público, aunque el convenio no llegue a ocupar la centralidad y espacio propios de le nagociación colectiva laboral”.
53
relações coletivas do trabalho e através dela procura-se estabelecer as bases da organização
sindical fundamentada na liberdade e na democracia.44
A autonomia coletiva, numa concepção mais ampla, corresponde ao
princípio que fundamenta não só a negociação coletiva, mas também a liberdade sindical e a
autotutela dos trabalhadores, constituindo, desse modo, o poder de instituir normas e
condições de trabalho – poder normativo, portanto, como liberdade para organizar associações
sindicais independentemente de autorização prévia do Estado e sem interferências deste, nelas
ingressando ou delas saindo, e também como permissão para que, pela paralisação do trabalho
ou outros atos coletivos legítimos, possam os trabalhadores promover a defesa dos seus
direitos ou interesses. Destarte, a autonomia coletiva importa “[...] o reconhecimento de
organizações sindicais livres e independentes, mas também o da negociação coletiva como
processo normativo originário e, ainda, o reconhecimento das faculdades de autotutela
simbolizadas pela greve.”45
A negociação coletiva é o procedimento de concretização da
autonomia coletiva e os contratos coletivos de trabalho são o resultado da sua elaboração,
portanto, o instrumento que expressa e corporifica a autonomia coletiva.46 De fato, a locução
“negociação coletiva”, na concepção já consagrada pelo Direito do Trabalho, compreende o
processo através do qual se alcança o consenso no tocante a determinados aspectos da relação
trabalhista, resultando em instrumento normativo, fonte formal de normas trabalhistas.47 A
negociação fundamenta-se no princípio da autonomia coletiva, expressão do pluralismo
jurídico do qual resulta um poder normativo dos grupos para realizarem a
autorregulamentação dos seus interesses e direitos mediante a livre e direta negociação entre
as suas representações legitimadas, geralmente os sindicatos de trabalhadores e os
44 Estudo sobre a negociação coletiva como fonte do direito é realizado por CORREA CARRASCO. La
negociación colectiva como fuente (formal) del Derecho del Trabajo, 1997. 45
BAYLOS GRAU. Direito do trabalho: modelo para armar, 1999, p. 129. 46 Renato Rua de Almeida realça a importância da negociação coletiva na atualidade a partir do fenômeno da
procedimentalização do direito, “como resultado do caminho da regulamentação (normas heterônomas) para a regulação (normas autorreguladas pelos sujeitos das relações jurídicas).” (ALMEIDA. Negociação coletiva e
boa-fé objetiva. Revista LTr, v. 74, n. 04, abr 2010, p. 393-396,). 47 Antonio Ojeda Avilés identifica o conteúdo essencial da negociação coletiva com “la libertad para regular las
condiciones de trabajo mediante instrumentos colectivos que tengam preferência en esta matéria sobre la regulación pública y supremacia sobre la regulación individual”. Esse núcleo seria intangível pelo legislador, daí por que este “[…] no puede deformar el derecho a la negociación colectiva hasta el punto de hacerle perder el perfil antevisto”. (OJEDA AVILÉS. Compendio de derecho sindical,1998, p. 280-281).
54
empregadores ou associações que os representam, para pactuar convenções coletivas de
trabalho ou, até mesmo, pactos sociais.
A locução “negociação coletiva” é vinculada frequentemente às
relações coletivas no setor privado, mas o instituto, apesar das resistências iniciais, já passou a
integrar as relações coletivas de trabalho na função pública, exigindo, no entanto, inflexões
necessárias, plasmadas a partir das peculiaridades da Administração Pública, considerando a
impossibilidade de transplantar para o setor público todas as consequências práticas que
decorrem do reconhecimento da autonomia coletiva no âmbito do setor privado. Exatamente
por isso se admitem procedimentos diferenciados em comparação com as relações trabalhistas
privadas, sem distinções que desnaturem o instituto da negociação coletiva, mas concebendo-
se modelo de negociação específico. O movimento de institucionalização da negociação tem-
se generalizado pelos países que adotam modelo democrático de relações coletivas de
trabalho, ensejando a adoção de um processo negociador influenciado pelas experiências
acumuladas no setor privado, ainda que com algumas variações importantes.
Na busca de um processo previsível e eficaz, a negociação coletiva
tem sido estruturada respeitando-se as condições especiais do serviço público. A
regulamentação decorre da natureza peculiar da Administração Pública como tomadora dos
serviços, da necessidade de conciliar o processo de negociação com os interesses envolvidos
no processo negociador e considerando a necessidade de harmonizar o resultado da
negociação com a supremacia legislativa exercida pelo parlamento. Portanto, deve-se
respeitar as peculiaridades da função pública, mas cumpre reconhecer a natureza própria do
instituto da negociação coletiva, cuja essência reside na circunstância de tratar-se de processo
participativo voltado ao estabelecimento das condições de trabalho. É a negociação meio
essencial, dinâmico e eficaz de regular as relações entre os funcionários e o Estado, que tem
revelado grande vitalidade para democratizar as relações coletivas que aí se travam.
É certo que a necessidade de estruturação específica da negociação
coletiva na função pública não pode constituir abertura para invocar particularidades de fato
inexistentes nem autoriza fixar condições para adoção de falsa negociação. É preciso que a
estruturação dê-se considerando a seriedade e a boa-fé que devem presidir o processo
55
negocial, permitindo-se a fixação de limites e controles adequados, sem, contudo,
desconsiderar que a negociação coletiva corresponde à categoria geral do direito que tem seus
contornos já assentados, mas que a ele podem ser agregados traços específicos, de acordo com
o ramo jurídico em que atue. O fenômeno da negociação coletiva goza hoje de ampla
aceitação, mas não com todas as consequências decorrentes da contratação coletiva no âmbito
da função pública, na medida em que subsistem fortes resistências em face das especialidades
do regime estatutário dos funcionários, sobretudo no que diz respeito à eficácia jurídica dos
seus instrumentos normativos.
2.5 MODELOS DE PARTICIPAÇÃO NA DETERMINAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE
TRABALHO NA FUNÇÃO PÚBLICA: CONSULTA E NEGOCIAÇÃO
COLETIVA
Examinando os procedimentos de participação dos funcionários na
determinação de suas condições de trabalho, constata-se que os modelos são definidos em
razão dos condicionamentos históricos e isso conduz às especificidades dos ordenamentos
jurídicos. De um modo geral, há sistemas que negam qualquer eficácia jurídica aos ajustes,
outros admitem eficácia bastante limitada e existem ainda aqueles em que a negociação
coletiva ocupa espaço central, resultando dos ajustes eficácia jurídica direta. Os sistemas que
negam a eficácia jurídica aos ajustes não rechaçam inteiramente a possibilidade de diálogo
entre os agentes públicos e o Estado, mas essa mínima abertura às tratativas não caracterizam
negociação coletiva. Geralmente, há meras consultas, acertos informais e entendimentos para
encerrar conflitos, não havendo, enfim, como tendência, disposição do Poder Público para
entabular a negociação coletiva. Quanto aos sistemas jurídicos que adotam a participação
efetiva dos funcionários na determinação de suas condições de trabalho, pode-se apontar a
seguinte tipologia: consulta ou negociação coletiva; negociação coletiva geral ou específica; e
negociação coletiva permanente ou temporária.
56
O modelo de simples consulta é próprio dos regimes de função
pública em que subsiste a prerrogativa unilateral do Poder Público de determinar as condições
de trabalho, referindo-se, desse modo, à concepção tradicional de regime estatutário,
admitindo, porém, a possibilidade de audiência dos representantes dos funcionários antes da
proclamação unilateral das normas. Já a negociação coletiva corresponde ao procedimento
através do qual é possível alcançar consenso entre os funcionários e a Administração Pública,
visando à regulamentação das condições por ato bilateral, resultando um instrumento
normativo no qual se formalize o conteúdo do consenso e que seja dotado de eficácia jurídica.
Um modelo de consulta não exclui o de negociação coletiva, no entanto o primeiro é mais
insuficiente, razão por que há tendência de progressiva superação da consulta por um modelo
de negociação coletiva, ainda que para determinadas matérias a negociação seja pré-
legislativa ou de legislação negociada. Essa inclusive foi a solução adotada na Espanha por
meio do EBEP, que transformou as matérias que na LORAP eram objeto de consulta em
normas de obrigatória negociação.
Por consulta entende-se as tratativas que não levam à formação de
instrumento normativo, podendo a Administração Pública depois de ouvir os representantes
dos funcionários adotar as medidas que julgar adequadas, caso possua competência para fazê-
lo, ou enviar ao parlamento o respectivo projeto de lei contendo as normas que entender. A
consulta pressupõe o poder discricionário do Poder Público para aceitar ou não as
reivindicações dos funcionários, mas tal discricionariedade não reduz a consulta a simples
audiência ou pedido de informações às entidades dos funcionários. O fato de não haver
formalização de instrumento com eficácia jurídica diminui bastante a importância da consulta,
embora não se possa negar inteiramente sua validade, uma vez que, em certos contextos,
pode-se instituir mecanismos para que o Poder Público leve em consideração as
reivindicações apresentadas pela coletividade dos funcionários. Mesmo em temas em que está
excluída a negociação, não há razão para impedir de modo absoluto a possibilidade de os
representantes dos funcionários apresentarem opiniões e sugestões em assuntos a princípio
excluídos do diálogo social.
Portanto, a consulta pode ter como finalidade a formulação de atos
administrativos de regulamentação da situação dos funcionários ou objetivar a elaboração de
projetos de lei a serem remetidos ao parlamento, sendo que, nesta última hipótese, tratando-se
57
de simples consulta, não há obrigação de o ente público encaminhar o projeto nos termos em
que foi ajustado. É certo que a natureza consultiva não pode reduzir a obrigatoriedade e
seriedade do procedimento, cabendo à Administração Pública, ao acolher ou recusar as
reivindicações, proferir ato fundamentado, apresentando razões objetivas e razoáveis tanto aos
funcionários como à opinião pública.
Na negociação coletiva pretende-se alcançar o consenso entre a
Administração e os funcionários, visando à regulamentação das relações por meio de ato
bilateral e formalizado através de instrumento normativo. Por este contrato coletivo de
trabalho negociado, a Administração Pública e as entidades representativas dos funcionários
pactuam, nos limites definidos em lei, as normas que regularão as condições de prestação de
trabalho. Atingido o acordo, este é devidamente formalizado no respectivo instrumento
coletivo, podendo estar sujeito à aprovação pela esfera competente do Poder Público, situação
em que a homologação somente será recusada se o pactuado na mesa de negociação estiver
em desconformidade com o estabelecido em lei ou com o conteúdo possível da negociação,
ficando, em consequência, a Administração vinculada àquilo que foi ajustado entre os sujeitos
da negociação. Admissível ainda a negociação pré-legislativa, quando envolver matéria
sujeita à reserva da lei, situação em que a eficácia jurídica é mais restrita, porquanto, embora
vinculante para a Administração Pública, não o é para o Parlamento, cuja soberania não está
condicionada ou limitada no momento de elaborar e aprovar o projeto de lei.
De outra parte, a negociação pode ter por objeto aspectos gerais da
função pública, atingindo todos os funcionários de um ente estatal, caracterizando, desse
modo, a negociação geral. Em seguida, ou concomitamente, podem ocorrer negociações
específicas, por setor de trabalho, em processo descentralizado que visam ao atendimento de
reivindicações de funcionários e interesses dos órgãos estatais. Essas negociações específicas
têm a virtude de permitir flexibilizar a gestão administrativa, contemplando o acordo geral
apenas as linhas básicas das relações coletivas de trabalho, ficando aos níveis menores a
competência para, conforme as peculiaridades, estabelecer as demais normas sobre condições
de trabalho.
58
Em outro sentido, quanto à frequência das negociações, estas podem
ser instituídas de forma permanente ou em caráter temporário, conforme o interesse das partes
e da natureza dos assuntos envolvidos na negociação, com a possibilidade de fixar a
negociação em períodos diversos, mas sendo recomendável a configuração de um processo
permanente de diálogo social.
Para contextualizar os modelos de participação dos funcionários na
determinação de suas condições de trabalho, em uma primeira aproximação, observa-se que
no Brasil não há autêntica negociação. Existem meros diálogos informais, por meio de
métodos inadequados e reuniões vazias, em que quase sempre os governos impõem
unilateralmente as condições de trabalho. Na realidade, não existem concessões recíprocas e
os governos simplesmente apresentam sua proposta. Aceita a proposta pelos funcionários
públicos, os governos encaminham ao Parlamento um Projeto de Lei. Recusada a proposta,
encaminham mesmo assim, conduzindo à deflagração de greves, que surgem como a única
forma possível de a categoria se contrapor às decisões unilaterais impostas pelos governos. Os
novos paradigmas indicam que se faz necessária urgentemente a institucionalização no Brasil
de um sistema de negociação coletiva, de modo que se assegure o pleno e efetivo exercício
dos direitos coletivos pelos funcionários e que a negociação coletiva seja instrumento
adequado e eficiente para a resolução dos conflitos coletivos na função pública.
Diferentemente do Brasil, na Espanha existe um modelo de
negociação institucionalizada, em que a Constituição admite e inclusive exige um espaço
negocial na função pública, que pressupõe a transformação do modelo jurídico de função
pública, com o reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários e a passagem de um
modelo unilateral e autoritário para um modelo democrático e bilateral, com a proclamação de
uma certa contratualização da função pública. No entanto, o lento e difícil desenvolvimento
legislativo vem gerando deficiências que ainda hoje impedem a consolidação de um modelo
democrático e de efetiva autonomia coletiva no plano das relações de trabalho com a
Administração Pública. Apesar de estar bem à frente do Brasil, análise mais recente da
experiência em curso na Espanha demonstra que ali se presencia ultimamente um forte ataque
ao sistema de negociação coletiva envolvendo os funcionários públicos, fazendo com que
consistente parte da doutrina espanhola questione se existe realmente o direito à negociação
coletiva na função pública. Essa questão ganha maior destaque diante de decisão unilateral
59
recente adotada pelo Governo da Espanha no sentido de recusar-se ao cumprimento dos
instrumentos coletivos resultantes da negociação coletiva.
Por sua vez, a adequada interpretação e aplicação do modelo de
negociação dos funcionários públicos consagrado nos ordenamentos jurídicos do Brasil e da
Espanha passa pela análise dos instrumentos internacionais sobre a matéria, uma decorrência
de que o reconhecimento e o exercício de direitos coletivos pelos funcionários públicos
transcendem as fronteiras nacionais, na medida em que “debe tomarse consciencia de la
interdependencia de los trabajadores y debe asentarse una visión común del progreso
social”.48 Em consequência, passa-se no capítulo seguinte à análise das normas internacionais
sobre a matéria, com enfoque sobre a atividade normativa e os precedentes da OIT, buscando
ao final estabelecer a relação entre liberdade sindical e negociação coletiva dos funcionários
públicos. No Brasil, essa análise ganha maior transcendência em face da recente ratificação da
Convenção nº 151 da OIT, standart fundamental do Direito Internacional em matéria de
negociação coletiva entre os funcionários e o Estado.
48 BREITENFELLLNER. El sindicalismo mundial, un posible interlocutor, Revista Internacional del Trabajo,
núm. 4, 1997, p. 575.
60
3 MARCOS NORMATIVOS SOBRE LIBERDADE SINDICAL E NEGOCIAÇÃO
COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA NO DIREITO INTERNACIONAL
Os direitos coletivos dos trabalhadores sempre foram concebidos na
perspectiva do Estado moderno, vinculados e dotados de eficácia no âmbito de cada
ordenamento jurídico. Quando objeto de regulação pelo Direito Internacional, ainda assim o
conteúdo e a eficácia sujeitavam-se ao processo de internalização segundo os critérios e
procedimentos definidos na legislação de cada país. E essa conformação determinava que a
atuação dos sindicatos operava-se essencialmente dentro dos Estados. Esse quadro mudou
substancialmente e na contemporaneidade não é possível conceber o reconhecimento e a
atuação sindical nos limites estreitos do Estado nacional. Determinante para a modificação
desse cenário foi a nova concepção sobre os direitos fundamentais que brotou sobre os
escombros da II Grande Guerra e o processo amplo e intenso de mundialização da economia,
a exigir o reconhecimento e a efetivação dos direitos coletivos dos trabalhadores para além
das fronteiras nacionais.
Essa tendência confirma o processo histórico que orienta o esforço do
movimento sindical desde seus primórdios de superar as fronteiras nacionais. E o cenário
atual de mundialização econômica fortalece a necessidade de um sistema de tutela sindical
que conduza à solidariedade internacional e supranacional, conquanto isto seja ainda
fortemente limitado pelas legislações nacionais e por regimes de direitos coletivos com
amplas e profundas diversidades. Nesse aspecto, torna-se essencial, ainda que em linhas
gerais, analisar os principais instrumentos normativos sobre liberdade sindical e negociação
coletiva dos funcionários públicos no Direito Internacional. A abordagem tem como ponto de
partida a análise da possibilidade das normas aí consagradas constituírem fonte de legitimação
da ordem jurídica e de vinculação das condutas por elas abrangidas.
Nesta etapa, a necessidade da análise do Direito Internacional
justifica-se diante da circunstância de que, na nova ordem mundial, em que o Direito vai
adquirindo transcendência e ultrapassando os limites das fronteiras nacionais, suas normas
61
não integram tão-somente uma ordem moral. De fato, suposta falta de juridicidade não pode
basear-se na ausência de uma ordem coativa que garanta seu cumprimento, porquanto seu
caráter vinculante não se sujeita à existência de um sistema de sanções segundo os
paradigmas do direito interno. Na contemporaneidade, há o reconhecimento de que a
exigência de suas normas é considerada obrigatória, existe uma pressão internacional em
favor de sua obediência, pretensões e reconhecimentos se baseiam nessas normas e considera-
se que sua transgressão justifica não somente exigência de reparação como também
represálias e medidas de retaliação.49 Portanto, além do aspecto da vinculação jurídica, o
Direito Internacional constitui fonte de legitimação dos sistemas internos, na medida em que
seus instrumentos normativos aportam destacado valor como meio de argumentação e o
caráter fundamental dos princípios e direitos que consagram indicam que representam
exigências indispensáveis e mínimas para que as relações jurídicas possam desenvolver-se
dentro de um marco de respeito a standarts universalmente reconhecidos.
A relevância deste estudo fundamenta-se no fato de que no Brasil os
tratados e convenções internacionais podem ser incoporados com status ordinário (CF, artigo
49, I) ou com status constitucional (CF, artigo 5º, § 3º), ao passo que na Espanha o artigo 10.2
CE estabelece que as normas relativas aos direitos fundamentais e às liberdades se interpretam
em conformidade com os tratados internacionais ratificados pela Espanha. Pesa também a
circunstância de que as normas de Direito Internacional, em especial aquelas produzidas pela
OIT, desfrutam de grande força moral e poder de convencimento, porquanto são originárias
de órgão especializado, imparcial e que goza de enorme prestígio internacional. Ademais, as
normas de Direito Internacional, observado o processo de internalização, constituem normas
internas, com natureza vinculante e obrigatória, servindo inclusive de parâmetro para o
controle de constitucionalidade.
O objetivo do exame do Direito Internacional é formular ampla
interpretação da liberdade sindical, avançando no sentido de concebê-la em termos gerais sem
significativas distinções entre trabalhadores públicos e privados, na consideração de que a
diferença entre trabalho público e privado não está na atividade em si, mas tão-somente no
plano normativo. Procura-se demonstrar que a negociação coletiva integra o conteúdo
49 HART. O conceito de direito, 2009, p. 284.
62
essencial da liberdade sindical dos funcionários públicos e que a existência de peculiaridades
do exercício do direito de sindicalização desses trabalhadores não se refere à extensão do
direito, mas apenas ao modo de exercê-lo, admitindo-se apenas alguns ajustes para
harmonizá-lo com outros valores constitucionais.
3.1 LIBERDADE SINDICAL E NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA
NO DIREITO INTERNACIONAL
Neste tópico, faz-se a análise das normas de Direito Internacional que
dispõem sobre a liberdade sindical e a negociação coletiva dos funcionários públicos. Numa
primeira aproximação, aprecia-se a atividade normativa da OIT, sobretudo sua intensa atuação
no sentido de defender e promover tanto a liberdade sindical como a negociação coletiva.
Como desdobramento, o estudo é dedicado à análise dos principais instrumentos normativos
da OIT sobre a temática, buscando verificar de que forma se realiza a conformação dos
direitos coletivos dos funcionários no âmbito das normas internacionais e o papel que essas
normas exercem na ordem jurídica interna.
3.1.1 Atividade normativa da Organização Internacional do Trabalho. Defesa e promoção da
liberdade sindical e da negociação coletiva
A expansão do sindicalismo tornou-se um dos fatos sociais mais
marcantes da história contemporânea. E por isso desde sua criação a OIT tem desenvolvido
uma ação fecunda e pertinaz em favor da liberdade sindical, consagrando-a já no seu ato
constitutivo de 1919. Em 1944, a Conferência da Filadélfia adotou a Declaração referente aos
63
fins e objetivos da OIT, sufragando a ideia de que a liberdade de associação é essencial para a
continuidade do progresso, firmando a obrigação solene de fomentar, entre todas as nações do
mundo, programas que permitam alcançar o reconhecimento efetivo do direito de negociação
coletiva e proclamando que esse princípio é plenamente aplicável a todos os povos. Desde
então houve intensa atividade normativa da OIT com a aprovação de uma série de
convenções, resoluções e recomendações sobre direitos sindicais. Essa atividade
[...] através do conteúdo de suas normas e dos princípios arraigados por seus órgãos de controle, contribuiu para a consolidação com caráter universal das coordenadas que devem enquadrar a negociação coletiva para que esta seja viável, eficaz e mantenha sua capacidade de adaptabilidade ao meio em que se realiza e às mudanças de índole econômica.50
A “Libertad sindical es una fórmula lingüística que debe su carácter
universal a la OIT”.51 De fato, na perspectiva da OIT, o direito de associação e os princípios
da liberdade sindical são reconhecidos como condições básicas para que os trabalhadores
possam reivindicar direitos, obter novas conquistas e, de maneira geral, promover a defesa
daqueles direitos já conquistados. Nesse sentido, a liberdade sindical condiciona outras
liberdades e direitos fundamentais, tais como o direito à negociação coletiva e o direito de
greve. É uma “liberdade-condição”, porquanto sem a liberdade de associação e a liberdade
sindical não é exagero considerar que vários direitos dos trabalhadores, numerosos elementos
do sistema de relações profissionais, não passam de normas de fachada, regras desprovidas de
qualquer aplicação prática. E, sem dúvida, de maneira geral e essencial, existe uma
interdependência evidente entre, de um lado, as referidas liberdades, e, de outro, a efetividade
dos direitos fundamentais, na medida em que “[...] la tutela de la libertad sindical por la OIT
aparece como una de las formas más conspícuas y modélicas em la proteción internacional de
los derechos humanos”.52 Assim, a liberdade sindical constitui elemento fundamental para o
associativismo dos trabalhadores, condição essencial para a defesa de seus direitos e ademais
50
GERNIGON; ODERO; GUIDO. A negociação coletiva: normas da OIT e princípios dos órgãos de controle, A
negociação coletiva na Administração Pública brasileira. OIT, 2002, p. 19. Para uma consulta sobre a atuação normativa da OIT, conf. VALTICOS. La Organización Internacional del Trabajo: Cincuenta años de actividades normativas, Revista Internacional del Trabajo, núm. 3-4, 1996. Trabalho mais abrangente e detalhado é apresentado por SUSSEKIND. Direito Internacional do Trabalho, 2000.
51 ROMAGNOLI. La libertad sindical, hoy, en Revista de Derecho Social, núm. 4, 2001, p. 10.
52 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. OIT, derechos humanos e libertad sindical, en Relaciones
Laborales, tomo 1999-I, p. 20.
64
“es un derecho añadido que acentúa la protección y agrava el incumplimiento de otros
derechos fundamentales de la persona”. 53
A importância do reconhecimento do direito de sindicalização e da
negociação coletiva dos funcionários públicos repousa no fato de que um dos objetivos da
OIT é o de ser agente universalizador das condições fundamentais das relações de trabalho
subordinado, através da normatização homogênea por todos os seus países membros. Esse
aspecto se acentua no contexto de uma economia mundializada, em que os direitos coletivos
dos trabalhadores consagrados nas normas de Direito Internacional já não podem depender
exclusivamente do processo de internalização por cada ordenamento jurídico. E nesse quadro
faz-se necessário repensar a exigência de intermediação do Estado nacional como condição
para sua eficácia jurídica, na medida em que as normas internacionais sobre liberdade sindical
constituem exigências indispensáveis e mínimas para que as relações coletivas de trabalho
possam desenvolver-se adequadamente.54
De outra parte, mesmo na concepção clássica de Direito Internacional,
no que concerne à incorporação dos tratados no direito interno, prevalece a interdependência
entre a ordem jurídica internacional e a nacional, razão por que suas normas se condicionam e
se influenciam mutuamente, constituindo esferas da mesma ordem jurídica geral. Corrobora
essa assertiva a tendência das constituições contemporâneas de buscarem a harmonização
entre suas normas, que é facilitada com o reconhecimento de que os tratados, logo após sua
ratificação, passem imediata e automaticamente a produzir efeitos na ordem interna. Ainda
assim, são frequentes controvérsias jurídicas a respeito da força normativa das normas
internacionais e sua posição na estrutura hierárquica nas fontes jurídicas. E a origem das
controvérsias está no clássico debate sobre a soberania nacional e os princípios democráticos.
De toda sorte, no que diz respeito especificamente à liberdade sindical, não pode reduzir o
53 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. OIT, derechos humanos e libertad sindical, en Relaciones
Laborales, tomo 1999-I, p. 23. 54 Nessa direção observa MACEDO DE BRITO PEREIRA. La negociación colectiva en la función pública: una
aproximación constitucional, 2004, p. 78-79: “Estos instrumentos de derechos humanos formalizados en tratados no se restringen a un problema de relación entre los Estados. Por medio de ellos son previstos derechos y libertades que deben incidir inmediatamente em la situación jurídica de los indivíduos y grupos. Su eficacia directa, con tal de que el Estado sea miembro de la Organización correspondiente o haya firmado un tratado internacional, no debe depender de medidas adicionales. Eso es posible jurídicamente, incluso, mediante el reconocimiento de la obligación ante la comunidad internacional del Estado que ratifica um convenio internacional de derechos humanos de adoptar las providencias para su aplicación”.
65
valor jurídico das normas internacionais que a consagra a simples enunciados morais, mas a
reconhecer como “parte integrante de los derechos humanos fundamentales y una piedra
angular de las disposiciones que tratan de asegurar la defensa de los derechos de los
trabajadores”.55
Ademais, é preciso considerar que os tratados internacionais,
compreendidos como acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vinculantes,
constituem a principal fonte de direitos e obrigações do Direito Internacional. O termo tratado
abrange convenções, pactos e declarações e significa acordo internacional firmado entre
Estados e sua efetividade pode na concepção clássica estar condicionada à aprovação do
órgão legislativo e posterior ratificação pela autoridade do órgão executivo. Nessa concepção,
a ratificação constitui ato necessário para que o tratado passe a ter obrigatoriedade no âmbito
internacional e interno. A ratificação tem o efeito de obrigar diretamente os Estados, assim
como gerar direitos subjetivos nas relações entre particulares. Há, assim, a incorporação
automática de suas normas, independente da existência de um ato legislativo complementar
para a sua exigibilidade e implementação, que gere como consequência a integração direta e
imediata das normas à ordem jurídica interna.56
No Brasil, o § 2º do artigo 5º, CF prevê que os direitos e garantias
expressos no texto constitucional não excluem outros decorrentes dos tratados de que o País
seja parte. A partir da Emenda Constitucional (EC) nº 45/2004, observada a norma do § 3º, os
tratados e convenções internacionais alçaram status constitucional. No entanto, nada impede
que seja observado o procedimento comum de internacionalização dos tratados e convenções
internacionais, hipótese em que as normas vigoram com status infraconstitucional. O próprio
STF, em precedentes posteriores à EC nº 45/2004, atribui aos tratados internacionais status
normativo supralegal, mas infraconstitucional. Nesse sentido, considera a Suprema Corte que
aos instrumentos internacionais é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico,
estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. Nesse sentido, conclui o
STF que esse status normativo supralegal dos tratados subscritos pelo Brasil torna inaplicável 55 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. La libertad sindical y el Convenio 87 (1948) OIT, en Relaciones
Laborales, tomo 1999-I, p. 14. 56 As normas de Direito Internacional do Trabalho podem ser utilizadas pelos tribunais de cada país com diversas
funções: para solucionar diretamente um conflito; para interpretar dispositivos do direito interno; como fonte de inspiração para o reconhecimento de um princípio jurídico; e também para fortalecer uma decisão baseada no direito interno.
66
a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de
raficiação.57
Por outro lado, na Espanha, o artigo 96.1 CE prevê que os tratados
internacionais, validamente celebrados, depois de publicados, passam a integrar o
ordenamento jurídico interno. Nesse sistema, adota-se a teoria da recepção plena e
automática. A ratificação está condicionada à aquiescência (artigo 63.2 CE), sujeita à prévia
manifestação das “Cortes Generales” (artigo 94 CE), materializada através de lei orgânica
(artigo 93 CE). Satisfeitos esses requisitos, o instrumento normativo passa a integrar a ordem
interna, adquirindo assim a qualidade de normas vinculantes e obrigatórias para os poderes
públicos e particulares, observando que “Sus disposiciones sólo podrán ser derogadas,
modificadas o suspendidas en la forma prevista en los propios tratados o de acuerdo con las
normas generales del Derecho internacional” (artigo 96 CE). Os tratados ratificados têm a
mesma natureza e hierarquia das leis, devendo obviamente conformação à Constituição
(artigos 93 e 95 CE). Portanto, efetivada a publicação, os tratados passam a formar parte do
ordenamento, sem qualquer outro requisito. Desse modo, suas normas tornam-se vinculantes e
obrigatórias, gerando direitos e obrigações para os cidadãos, autoridades e Tribunais.
Abordada brevemente a função que as normas internacionais do
trabalho exercem na ordem jurídica, cumpre agora assinalar que a liberdade sindical
representa elemento essencial e constitui a pedra angular sobre a qual se estrutura a própria
OIT. A Organização reiteradamente vem afirmando que a liberdade sindical faz parte dos
direitos humanos fundamentais, sendo meio indispensável para a defesa dos direitos dos
trabalhadores. Do mesmo modo, objetivando cumprir uma de suas principais missões, que
consiste no fomento à negociação coletiva, a OIT tem fixado um conjunto de princípios para
regular o processo negocial, que passa pela observância de um mínimo de regras e de
consensos básicos, a começar pelo respeito à palavra dada e aos compromissos assumidos.
Entre esses princípios está o reconhecimento de que os interlocutores têm interesses,
convicções e aspirações divergentes e a consciência e a convicção de que os sindicatos de
trabalhadores são essenciais numa sociedade democrática, posto que através deles são
57 Esta conclusão consta do julgamento proferido no HC 88.240, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 24-10-2008.
67
canalizadas necessidades e reivindicações específicas de setores representativos da
sociedade.58
Com essa premissa, passa-se a analisar as sucessivas convenções da
OIT. Aqui os direitos coletivos dos funcionários são abordados sob duas perspectivas
normativas distintas. De um lado, como direito assegurado a todos os trabalhadores, cujas
normas tutelam de forma genérica o direito de sindicalização e de negociação coletiva e
consequentemente alcançam de forma derivada a categoria específica dos funcionários. De
outra parte, as normas específicas que dispõem diretamente sobre os direitos coletivos dos
funcionários, abrangendo os direitos de liberdade sindical e negociação coletiva. Desse modo,
o tratamento aborda esses dois tipos de normas, reconhecendo desde já a interdependência e a
influência recíproca dessas normas para a conformação no plano internacional dos direitos
coletivos no âmbito da função pública.
Apresentados esses aportes acerca dos tratados internacionais,
observa-se que no âmbito da elaboração normativa da OIT destacam-se as convenções, típicos
tratados internacionais, autênticas fontes formais de direito, constituindo regras gerais e
obrigatórias, que uma vez ratificadas passam a criar uma rede de obrigações internacionais,
seguidas de medidas de controle. Diferentemente das recomendações, estas com função
indicativa atuando como fontes materiais de direito e servindo de inspiração e modelo para a
atividade legislativa, autênticos meios de aproximação das legislações dos Estados que
aceitem no todo ou em parte incorporar suas orientações na ordem jurídica interna, as
convenções são instrumentos de uniformização do direito nos Estados que as ratifiquem.
O estudo abrange quatro convenções fundamentais que tratam da
liberdade sindical e da negociação coletiva: a) Convenção nº 87 de 1948, sobre a liberdade
sindical e a proteção ao direito sindical; b) Convenção nº 98 de 1949, sobre a aplicação dos
princípios do direito de sindicalização e de negociação coletiva; c) Convenção nº 151 de
58 Realçando a função da liberdade sindical como “direito de ação coletiva dos trabalhadores organizados”,
materializada “na concreção do direito de participação”, como “resultado de uma legislação instrumental e procedimental”, Renato Rua de Almeida apresenta uma visão histórica da liberdade sindical no plano internacional e no direito interno. (ALMEIDA. Visão histórica da Liberdade Sindical, Revista LTr, v. 70. n. 03 , mar 2006, p. 363-366).
68
1978, sobre a proteção do direito de sindicalização e procedimentos para definir as condições
de emprego no serviço público; e d) Convenção nº 154 de 1981, sobre a promoção da
negociação coletiva. Esses instrumentos de homogeneização da proteção dos direitos sindicais
têm forma e conteúdo genéricos, abstratos e flexíveis, de modo que possam ser absorvidos
pelas legislações nacionais, respeitadas as peculiaridades locais. Essas normas não
representam o que de mais avançado possa haver em vigor, mas, ao contrário, constituem tão-
somente um parâmetro mínimo dentro do qual se podem considerar satisfeitos os princípios e
regras fundamentais pertinentes à liberdade sindical e à negociação coletiva na função
pública.
3.1.2 Convenção nº 87. O reconhecimento com caráter geral da liberdade sindical a todos os
trabalhadores
A Convenção nº 87 continua sendo o marco normativo básico da OIT
em matéria de liberdade sindical, servindo os instrumentos subsequentes como meios para
reforçar seu papel e vigência. Constitui referência para determinar o padrão de exigência de
liberdade sindical em uma sociedade democrática. Representa o primeiro documento
internacional a ocupar-se da liberdade sindical e da proteção dos direitos sindicais dos
funcionários públicos, reconhecendo o direito de sindicalização a todos os trabalhadores e
empregadores, sem qualquer distinção. Fixa o standard de que a liberdade sindical deve estar
garantida sem distinção e sem discriminação de nenhuma espécie, inclusive em decorrência
do tipo de ocupação. Por suas disposições não se pode negar o direito à liberdade sindical em
razão da profissão ou atividade do trabalhador. Examinando as prescrições do artigo 2º,
quando garante aos trabalhadores, sem distinção de qualquer espécie, sem nenhuma espécie
de discriminação, a liberdade constitutiva e associativa, reconhece amplamente a titularidade
dos direitos sindicais dos trabalhadores, abrangendo, por certo, os funcionários públicos.
Destarte, os trabalhadores da Administração Pública, observadas as limitações quanto às
forças armadas e às polícias, na forma do artigo 9º, § 1º, podem criar organizações sindicais.
De fato, não é equitativa estabelecer diferenciação entre os assalariados da atividade privada e
69
os trabalhadores da Administração Pública, posto que uns e outros devem ter a possibilidade
de assegurar, através de sua organização, a defesa de seus interesses. Conclui-se que aos
demais trabalhadores do serviço público está garantida a liberdade sindical59.
A negativa do reconhecimento do direito de sindicalização dos
funcionários é contrário à Convenção nº 87, porquanto todos os trabalhadores da
Administração Pública têm assegurado o direito de constituir e filiar-se a sindicatos,
abrangendo os prestadores de serviços em todas as esferas de governo, independentemente da
natureza da relação jurídica. Esse convênio exerce um papel fundamental para o
reconhecimento e garantia do direito de sindicalização dos funcionários públicos, colocando-
se radicalmente contra a discriminação que alguns sistemas jurídicos fazem entre essa
categoria e os demais trabalhadores. Constitui um marco fundamental para proteger a
liberdade sindical dos funcionários públicos, na medida em que “ha sido una punta de lanza
fundamental para el reconocimiento de la libertad sindical a los funcionarios públicos,
rompiendo un viejo prejuicio existente sobre todo em los países continentales que separan
radicalmente el tratamiento de los funcionarios y de los demás trabajadores”.60
O termo liberdade sindical exige uma compreensão abrangente. A
expressão compreende o direito de exercitar as funções próprias do sindicato, seja frente aos
poderes públicos, seja frente aos empresários, envolvendo um conjunto de ações de
reivindicação e participação, no qual está incluído evidentemente o direito de deflagração do
conflito coletivo e o direito à negociação coletiva para solucioná-lo, de modo que se atribui ao
sindicato o poder de decidir, programar e levar adiante as atividades, sem interferências de
quem quer que seja, utilizando os meios que considere necessários para a defesa das
reivindicações.61 Nessa vertente, no plano das normas internacionais, predomina o
59 O Brasil não ratificou a Convenção nº 87 da OIT e essa posição macula sua imagem perante a comunidade
internacional, e, ainda mais importante, dificulta a modernização de sua estrutura sindical, impedindo assim o fim da hierarquização, monopólio e contribuição compulsória. Com essa mesma perspectiva, o modelo sindical brasileiro foi objeto de recente crítica, em que é apresentado o processo evolutivo necessário para que se chegue ao “modelo sindical pós-corporativista”, por ALMEIDA. O modelo sindical brasileiro é corporativista, pós-corporativista ou semicorporativista? LTr: Revista Legislação do Trabalho. São Paulo, v. 77, n. 01, p. 7-15, jan/2013. A Espanha, por sua vez, ratificou esta convenção em 13 de abril de 1977 (BOE 11.5.1977).
60 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. La libertad sindical y el Convenio 87 (1948) OIT, en Relaciones
Laborales, tomo 1999-I. 61 Acerca do sentido atual da expressão “liberdade sindical”, escreve ROMAGNOLI. La libertad sindical, hoy,
en Revista de Derecho Social, núm. 4, 2001: “[…] libertad sindical es una fórmula linguística abreviada de la
70
entendimento de que o direito à negociação coletiva integra o conteúdo essencial da liberdade
sindical, resultando daí que aquele direito configura-se como um processo destinado à
celebração de um acordo coletivo, com caráter normativo, obrigatório e vinculante.
Conforme será visto oportunamente, esse talvez seja um dos aspectos
mais controvertidos na jurisprudência. No Brasil, o STF, por ocasião do julgamento da ADIn
492-DF, entendeu que na liberdade sindical não compreende o direito à negociação coletiva,
adotando como um dos fundamentos a falta de referência no § 2º do artigo 39, CF (atualmente
o § 3º) aos acordos e às convenções coletivas. Na Espanha, o entendimento tem variado de
uma posição inicialmente excludente para em seguida admitir que integra o conteúdo
essencial da liberdade sindical o direito à negociação coletiva. Majoritariamente o TC
considera compreendido dentro da liberdade sindical o direito à negociação coletiva, à greve e
à abertura de procedimento de conflito coletivo, chegando em algumas situações a admitir que
“ella abarca cualquier actividad o acción que signifique defensa de los trabajadores”.62 No
entanto, em relação aos funcionários prevalece uma posição restritiva, reconhecendo ser a
negociação coletiva mero conteúdo adicional da liberdade sindical. Essa orientação conduz o
TC à conclusão de que a negociação coletiva dos funcionários é um direito de configuração
legal, entendimento este totalmente contraditório à Convenção nº 87 e à jurisprudência
constitucional espanhola que considera a negociação coletiva laboral como parte do conteúdo
essencial do direito fundamental de liberdade sindical.
3.1.3 Convenção nº 98. O significado da negociação coletiva e o dever de cumprimento dos
instrumentos normativos
que nadie podía sospechar su exuberancia semántica. La libertad sindical engendra el derecho a regular las condiciones de trabajo mediante la negociación y el derecho a condicionar su dinámica recurriendo a la huelga. Engendra el derecho al pluralismo organizativo y concurrencial a la vez que el derecho al autogobierno del mismo. Engendra el derecho de los individuos a ejercitarla (la así llamada libertad positiva) junto a la de no ejercitarla (libertad negativa) y los derechos del sindicato a la vez que los derechos de los representados dentro del sindicato y respecto de él”.
62 OJEDA AVILÉS. Compendio de derecho sindical, 1998, p. 35.
71
A Convenção nº 98 objetiva garantir a autonomia e a liberdade de
ação do sindicato de trabalhadores perante o empregador, cuidando especialmente da
negociação coletiva. Almeja também estabelecer igualdade de condições nas negociações,
deixando claro que os sindicatos devem gozar de uma efetiva proteção, que aniquile
eficazmente os atos de ingerência praticados por organizações patronais ou empregadores
considerados individualmente, tudo com a finalidade de preservar a autonomia e a liberdade
de ação coletiva dos trabalhadores. Prevê o artigo 4º que, de acordo com as necessidades e
condições de cada nação, devem ser adotadas medidas apropriadas para encorajar e promover
o pleno desenvolvimento e utilização de processos de negociação coletiva voluntária e direta,
entre patrões e suas organizações, por um lado, e as organizações de trabalhadores, por outro,
com a intenção, por meio das convenções que daí resultem, de regular as condições de
trabalho63.
Nesta convenção, negociação coletiva corresponde a toda reunião de
esforços em conversações e diálogos, desenvolvida entre um empregador, um grupo de
empregadores ou uma associação ou várias associações de empregadores, quando não tratar
de situações específicas das Administrações Públicas, de uma parte e, de outra, uma
organização ou várias organizações de trabalhadores, cujo propósito é a fixação das condições
de trabalho ou de emprego ou a regulamentação das relações entre empregadores e
trabalhadores ou destes com as Administrações. Embora o referido convênio não defina
contrato coletivo, estabelece seus aspectos fundamentais ao indicar os seus sujeitos e ao
dispor que a negociação coletiva tem por objeto regulamentar, por meio de contratos
coletivos, as condições de emprego, tendo como finalidade estimular e fomentar o pleno
desenvolvimento e uso de procedimentos de negociação voluntária.64
A aplicação dessa convenção no setor público mostra-se mais
complexa. O artigo 8º exclui de seu campo de aplicação os funcionários públicos, ao passo
que o artigo 6º dispõe que o instrumento não trata da situação dos funcionários que trabalham
na administração do Estado, não podendo ser interpretado de sorte a prejudicar seus direitos
ou o contido no estatuto respectivo. Por sua vez, o artigo 5º estabelece que a legislação de 63 No Brasil, a Convenção nº 98 foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 49/1952 e ratificada por meio do
Decreto nº 33.196/1953. Na Espanha, esta convenção foi ratificada em 13 de abril de 1977 (BOE 11.05.1977). 64 GERNIGON; ODERO; GUIDO. A negociação coletiva: normas da OIT e princípios dos órgãos de controle, A
negociação coletiva na Administração Pública brasileira, OIT, 2002, p. 25.
72
cada país deve determinar o alcance das garantias que prever no tocante às forças armadas e
às polícias. Conquanto possa parecer que a aplicação da Convenção nº 98 não se estenda à
sindicalização e à negociação coletiva na função pública, prevalece o entendimento de que
sua exclusão refere-se tão-somente àqueles funcionários que exercem poder político, cujas
funções estão diretamente relacionadas à Administração do Estado, não abrangendo, portanto,
aqueles que exercem atividades estatais auxiliares. Essa tem sido a direção adotada pela
Comissão de Peritos da OIT, ao estabelecer que “[...] la exclusión del campo de aplicación del
Convenio de las personas empleadas por el Estado o en el sector público, pero que no actúan
como órganos de Poder Público [...] es contraria al sentido del Convenio”.65
A falta de inclusão expressa dos trabalhadores públicos na Convenção
nº 98 não teve o propósito de excluí-los ou assegurar-lhes tratamento diferenciado. Essa
circunstância decorreu mais da dificuldade de obtenção de consenso acerca de como
contemplar os funcionários públicos em geral com os direitos coletivos, sem que antes fossem
definidos os contornos exatos de seu exercício, tendo em vista as peculiaridades do trabalho
no âmbito da Administração Pública. Essas dificuldades provocaram a realização de intenso
debate coordenado pela OIT, do qual resultou o entendimento de ser imprescindível a
formulação de instrumento normativo que garanta aos trabalhadores públicos meios de
participação na definição das condições de trabalho, a ser concretizado através da Convenção
nº 151.
Tratando a Convenção nº 98 sobre negociação coletiva, faz-se
necessário examinar a definição e o objeto dado a esse instrumento nas normas da OIT. Há
uma clara distinção entre consulta e negociação coletiva. Para a OIT, a negociação coletiva é
compreendida como atividade ou processo com a finalidade de encerramento através de um
contrato ou acordo coletivo. O instrumento coletivo corresponde ao negócio jurídico através
do qual sindicatos ou outros sujeitos devidamente legitimados regulamentam, criam e
estipulam condições de trabalho. É certo que a Convenção nº 98 não define contrato coletivo,
entretanto delimita seus aspectos nucleares, ao fixar que a negociação tem por “objeto de
reglamentar, por medio de contratos colectivos, las condiciones de empleo” e ao pretender
“estimular y fomentar entre los empleadores y las organizaciones de empleadores, por una
65 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 82.
73
parte, y las organizaciones de trabajadores, por otra, el pleno desarrollo y uso de
procedimientos de negociación voluntaria” (artigo 4º).
A OIT através da Recomendação nº 91 (1951), que dispõe sobre os
contratos coletivos, estabelece a definição desses instrumentos: “la expresión contrato
colectivo comprende todo acuerdo escrito relativo a las condiciones de trabajo y de empleo,
celebrado entre un empleador, un grupo de empleadores o una o varias organizaciones de
empleadores, por una parte, y, por otra, una o varias organizaciones representativas de
trabajadores o, en ausencia de tales organizaciones, representantes de los trabajadores
interesados, debidamente elegidos y autorizados por estos últimos, de acuerdo con la
legislación nacional” (parágrafo 2º, alínea 1). O caráter vinculante é expressamente afirmado
ao estabelecer que “Todo contrato colectivo debería obligar a sus firmantes, así como a las
personas en cuyo nombre se celebre el contrato” (parágrafo 3º, alínea 1).
Conquanto não conste expressamente desta convenção, a OIT tem
destacado a boa-fé como condição para que a negociação coletiva possa desenvolver-se
eficazmente. O respeito ao princípio exige das partes que mantenham negociações verdadeiras
e construtivas, fundada na confiança recíproca, tendo como propósito alcançar um acordo.
Compreende assim o respeito mútuo aos compromissos assumidos, de modo que possam ser
cumpridos e aplicados de boa-fé. A exigência do cumprimento do acordo foi ressaltado na
Recomendação nº 91 (parágrafo 3), ao estabelecer que “Todo contrato colectivo debería
obligar a sus firmantes, así como a las personas en cuyo nombre se celebre el contrato”. Esta
é a orientação do Comitê de Liberdade Sindical: “Los acuerdos deben ser de cumplimiento
obligatorio para las partes.”66 No mesmo sentido: “El respeto mutuo de los compromisos
asumidos en los acuerdos colectivos es un elemento importante del derecho de negociación
colectiva y debería ser salvaguardado para establecer relaciones laborales sobre una base
sólida y estable”.67
66
Recopilación de decisiones y principios del Comité de Libertad Sindical del Consejo de Administración de la OIT, parágrafo 939.
67 Recopilación de decisiones y principios del Comité de Libertad Sindical del Consejo de Administración de la OIT, parágrafo 940.
74
3.1.4 Convenção nº 151. Exigência de procedimentos de negociação para determinação das
condições de trabalho na Administração Pública
A Convenção nº 151 garante o direito de sindicalização aos
funcionários públicos, reafirmando a liberdade sindical desse segmento de trabalhadores que
já havia sido assegurada como um direito em amplo sentido através da Convenção nº 87,
sendo possível afirmar que a verdadeira base jurídica da liberdade sindical dos funcionários
encontra-se nas Convenções nº 87 e nº 151 da OIT. Esta convenção abrange todas as pessoas
que trabalham para os órgãos da Administração Pública, na medida em que não lhes sejam
aplicadas disposições mais favoráveis de outras convenções internacionais do trabalho. A
garantia do direito de sindicalização dos trabalhadores do serviço público, considerados de
uma forma genérica, sem restrições, aparece no artigo 4º desse convênio. Este preceito
resguarda aos funcionários, em seu conteúdo, o gozo de uma proteção adequada contra todos
os atos discriminatórios que signifiquem uma conduta antissindical, pretendendo o resguardo
e a manutenção do cargo ou emprego público durante o exercício da liberdade sindical.
Acompanhando este mesmo objetivo, preconiza o artigo 5º que as organizações desses
trabalhadores não podem sofrer ingerências e nem prejuízos, de qualquer tipo, por parte da
autoridade pública, qualquer que seja. O artigo 6º concede facilidades aos representantes dos
trabalhadores do serviço público para o rápido e eficaz desempenho de suas funções, inclusive
durante as horas de trabalho. Os artigos 7º e 8º valorizam a negociação coletiva e a solução de
conflitos entre os funcionários e as Administrações Públicas68.
A adoção de medidas apropriadas para estimular e fomentar o
aproveitamento de procedimentos de negociação de modo pleno entre as autoridades públicas
e as organizações de funcionários públicos, naquilo que se referir às condições de trabalho,
está expressamente regulada pelo artigo 7º. Por esse preceito, a negociação pode se realizar
por quaisquer métodos que permitam aos representantes dos funcionários participar na
determinação das condições de trabalho. Por sua vez, o artigo 8º trata da solução dos conflitos
68 No Brasil, a Convenção nº 151 foi promulgada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº
206 (DOU 8.4.2010), cujos desdobramentos e efeitos de sua aprovação serão analisados adiante em tópico específico. Na Espanha, esta convenção foi ratificada em 12 de junho de 1984 (BOE 12.12.1984).
75
advindos daqueles procedimentos de negociação. Segundo esse dispositivo, o fim dos
conflitos de trabalho nesse setor deve ser obtido através da negociação entre as partes ou por
meio de outros instrumentos, os quais apresentem independência e imparcialidade na tomada
das decisões, exemplificando com a solução através da mediação, conciliação e arbitragem.
Portanto, a Convenção nº 151 dá um grande passo ao exigir que os
Estados devem adotar medidas de fomento e estímulo à negociação coletiva na Administração
Pública, instituindo procedimentos de negociação para que os funcionários possam participar
da determinação de suas condições de trabalho. Estabelece que devem ser adotadas medidas
adequadas para estimular e fomentar o pleno desenvolvimento e utilização de procedimentos
de negociação ou quaisquer outros métodos independentes e imparciais que permitam aos
funcionários públicos participar da determinação de suas condições de trabalho. Esse
convênio aplica-se a todas as pessoas que trabalham para a Administração Pública, sendo que
as únicas categorias que podem ser excluídas, além das forças armadas e da polícia, são os
funcionários de alto nível que, pela natureza de suas funções, possuam poder decisório ou
desempenhem cargos diretivos ou, então, quando realizam atividades altamente confidenciais.
Objetivando definir o sentido e alcance da negociação coletiva,
El Comité ha estimado útil recordar los términos del Convenio sobre las relaciones de trabajo en la administración pública, 1978 (núm. 151), cuyo artículo 7 prevé que «deberán adoptarse, de ser necesario, medidas adecuadas a las condiciones nacionales para estimular y fomentar el pleno desarrollo y la utilización de procedimientos de negociación entre las autoridades públicas competentes y las organizaciones de empleados públicos acerca de las condiciones de empleo, o de cualesquiera otros medios que permitan a los representantes de los empleados públicos participar en la determinación de dichas condiciones».69
3.1.5 Convenção nº 154. A negociação coletiva como elemento essencial da liberdade sindical
69 Recopilación de decisiones y principios del Comité de Libertad Sindical del Consejo de Administración de la
OIT, parágrafo 888.
76
A negociação coletiva, um componente essencial da liberdade
sindical, foi consagrada, expressamente, além da referência que ganhou no artigo 4º da
Convenção nº 98, na Convenção nº 154 da OIT. Este convênio, aplicável a todos os ramos de
atividade, já no seu preâmbulo estabelece que seu objetivo é reforçar as normas existentes
sobre negociação coletiva e que de suas normas devem resultar medidas destinadas a fomentar
a negociação coletiva livre e voluntária. Prevê seu artigo 1º que, no tocante ao serviço
público, modalidades especiais de aplicação podem ser estabelecidas por leis ou regulamentos
nacionais ou pela prática nacional. Considerando que o instrumento referido trata
especificamente da negociação coletiva, nesse sentido não se compreende o simples método
de consulta aos representantes dos trabalhadores, posto que ela tem como objetivo, dentre
outros, o de fixar as condições de trabalho e emprego70.
As mais significativas medidas, previstas na Convenção nº 154, cuja
meta é promover a negociação coletiva, deve: a) abranger todos os empregadores e todas as
categorias de trabalhadores; b) ser estendidas às condições de trabalho e emprego e à
regulamentação das relações entre empregadores e trabalhadores; c) encorajar e desenvolver
regras de procedimentos consensualmente ajustadas entre as organizações de empregadores e
as organizações de trabalhadores; d) evitar e não causar o entrave ou a interrupção das
negociações por insuficiência e impropriedade das normas que lhes forem pertinentes ou pela
inexistência de regras que disciplinem a negociação. Ainda, as medidas que forem adotadas
pelas autoridades, após a prévia consulta às partes interessadas, não poderão, em nenhuma
hipótese, prejudicar a liberdade de negociação coletiva.
A OIT, por essa convenção, certifica o grande valor da negociação
coletiva, reconhecendo sua essencialidade em um modelo sindical plural e democrático,
deixando evidente que a negociação deve merecer maior atenção de todos os interessados e
dos legisladores, sendo necessário que em todos os âmbitos as negociações coletivas devem
ser motivadas e facilitadas, inclusive nos locais de trabalho e no âmbito da Administração
Pública. Na realidade, a Convenção nº 154 foi instituída com a finalidade de fomentar 70 A Convenção nº 154 da OIT foi aprovada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 22/1992, com sua
ratificação promulgada através do Decreto nº 1.256/1994. Na Espanha, esta convenção foi ratificada pela em 26 de julho de 1985 (BOE 9.11.1985).
77
programas que importem o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva,
estabelecendo que sua aplicação abrange todos os ramos de atividade, podendo a legislação
ou a prática de cada país determinar até que ponto as normas nela previstas aplicam-se às
forças armadas ou às polícias, sendo possível igualmente que no âmbito da Administração
Pública sejam estabelecidas modalidades peculiares para sua aplicação.
Do exposto, resulta inequívoco que na doutrina da OIT a negociação
coletiva é elemento essencial da liberdade sindical, circunstância reconhecida pelo Comitê de
Liberdade Sindical ao fixar que
El derecho de negociar libremente con los empleadores las condiciones de trabajo constituye un elemento esencial de la libertad sindical, y los sindicatos deberían tener el derecho, mediante negociaciones colectivas o por otros medios lícitos, de tratar de mejorar las condiciones de vida y de trabajo de aquellos a quienes representan, mientras que las autoridades públicas deben abstenerse de intervenir de forma que este derecho sea coartado o su legítimo ejercicio impedido.71
As fontes normativas da OIT sobre liberdade sindical e negociação
coletiva constituem importante guia de interpretação do direito interno, cuja adequada
interpretação e aplicação pode ter importantes consequências na formação da jurisprudência
de cada ordenamento jurídico. Nesse contexto, o entendimento de que o direito à negociação
coletiva dos funcionários não integra o conteúdo essencial da liberdade sindical deve ser
reexaminado sob a perspectiva de que tanto o Brasil como a Espanha ratificaram as
Convenções 151 e 154. Logo, na especificação do significado e do âmbito da liberdade
sindical dos funcionários públicos, que consta do artigo 37, VI, CF, e do artigo 28.1 CE, deve
optar a jurisprudência desses países pela interpretação mais coerente com os tratados
internacionais ratificados, o que deve levar à conclusão de que o direito de negociação
coletiva dos funcionários públicos tem fundamento constitucional, fazendo parte do conteúdo
essencial da liberdade sindical.
71 Recopilación de decisiones y principios del Comité de Libertad Sindical del Consejo de Administración de la
OIT, parágrafo 881.
78
3.2 PRECEDENTES DA OIT SOBRE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO
PÚBLICA. LIMITAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS E INTERFERÊNCIAS
LEGISLATIVAS
Não obstante o conjunto normativo produzido pela OIT acerca da
defesa e promoção da liberdade sindical e da negociação coletiva dos funcionários públicos, a
análise de modelos concretos indica a configuração de entraves ao desenvolvimento de um
sistema adequado de negociação. No estudo “Principios de la OIT sobre la negociación
colectiva”, Bernard GERNIGON, Alberto ODERO y Horacio GUIDO observam que os
órgãos da OIT têm diagnosticado esses problemas, que podem ser assim sintetizados:
regulação quase exaustiva das condições de trabalho no estatuto, deixando pouco espaço para
o processo negocial; óbices econômicos diante das dificuldades de harmonização das despesas
resultante das negociações com os orçamentos públicos, fixados sem a participação dos
funcionários e sem que o próprio negociador em nome do Poder Público tenha algum controle
sobre os limites orçamentários; e determinação de matérias possíveis de negociação e sua
distribuição entre os diversos níveis em uma complexa estrutura organizacional, territorial e
funcional, com a agravante da definição dos sujeitos negociadores nos diversos níveis.72
Segundo esses autores, inexiste solução definitiva no âmbito da OIT para esses graves
problemas práticos. As manifestações sobre essas questões são orientadas para o apelo às
organizações sindicais e às Administrações Públicas para que encontrem soluções adaptadas e
eficazes, a partir de um processo criativo, de modo a compatibilizar a negociação coletiva
com a existência de legislação que regula parte das condições de trabalho e com a existência
de legislação orçamentária que define o gasto público.
Essas especificidades da negociação coletiva na função pública fazem
com que os organismos da OIT admitam alguns ajustes, sem que isso impeça os negociadores
de chegarem a um acordo e igualmente garantir o cumprimento daquilo que foi pactuado. No
primeiro aspecto, parece evidente a necessidade de que a legislação definidora da função
pública deixe espaço para o desenvolvimento da negociação coletiva. No segundo aspecto,
72 GERNIGON; ODERO; GUIDO. Princípios de la OIT sobre la negociación colectiva, Revista Internacional
del Trabajo, núm. 1, 2000.
79
que diz respeito às limitações orçamentárias, conforme consta de “Principios de la OIT sobre
la negociación colectiva”, de Bernard GERNIGON, Alberto ODERO y Horacio GUIDO, a
OIT considera compatíveis com a negociação coletiva disposições legislativas que conferem
ao Parlamento ou organismo competente para deliberar sobre questões orçamentárias a
possibilidade de fixar limites salariais que sirvam de bases às negociações, ou “establecer una
«asignación» presupuestaria global fija en cuyo marco las partes pueden negociar las
cláusulas de índole pecuniaria o normativa”. Em todo caso,
Es fundamental, empero, que los trabajadores y sus organizaciones puedan participar plenamente y de manera significativa en la determinación de este marco global de negociación, lo que implica, en particular, que dispongan de todas las informaciones financieras, presupuestarias o de otra naturaleza que les sirvan para evaluar la situación con pleno conocimiento de causa.73
Nesse aspecto, é interessante observar que no Brasil o artigo 37, X,
CF estabelece que a remuneração e os subsídios dos servidores públicos somente podem ser
fixados ou alterados por lei específica, enquanto o artigo 169 e seus parágrafos dispõem que a
despesa com pessoal deve constar do orçamento público. Na Espanha, igualmente, as
retribuições estão condicionadas pelas leis de orçamento público por expressa disposição do
artigo 21 da Lei nº 7/2007 (EBEP), ao estabelecer que
Las cuantías de las retribuiciones básicas y el incremento de las cuantías globales de las retribuiciones complementarias de los funcionarios, así como el incremento de la masa salarial del personal laboral, deberán reflejarse para cada ejercicio presupuestario en la correspondiente Ley de Presupuestos.
Ademais, o mesmo artigo dispõe que “No podrán acordarse
incrementos retributivos que globalmente supongan un incremento de la masa salarial
superior a los lítimes fijados anualmente en la Ley de Presupuestos Generales del Estado para
el personal”. Constata-se então que os dois sistemas jurídicos reconhecem as limitações da
negociação coletiva em face do orçamento público, mas na Espanha o próprio sistema já
oferece solução para as limitações, impondo à Administração Pública o dever de inserir no
orçamento as previsões necessárias para cumprimento do objeto da negociação.
73 GERNIGON; ODERO; GUIDO. Princípios de la OIT sobre la negociación colectiva, Revista Internacional
del Trabajo, núm. 1, 2000.
80
No tocante a essa questão, os organismos da OIT têm consciência de
que a negociação coletiva no setor público sujeita-se à disponibilidade dos recursos e isso está
condicionado pelas leis que estabelecem as bases do orçamento público. Isso faz com que a
negociação coletiva tenha que considerar as graves dificuldades financeiras e orçamentárias a
que estão sujeitos os governos, sobretudo em situações de paralisação econômica geral e
duradoura. Obviamente um quadro de déficit orçamentário repercute na negociação, mas isso
não elimina a busca do equilíbrio que resguarde a autonomia negocial das partes e a
necessidade de adoção de medidas pelo governo para enfrentamento das dificuldades.
Especialmente nesses cenários adversos prevalece o entendimento de que as autoridades
devem priorizar a negociação coletiva, compatibilizando a satisfação das medidas imperiosas
para o enfrentamento das dificuldades orçamentárias com a preservação na medida do
possível da negociação coletiva. Na inviabilidade de compatibilização, as medidas devem ser
adotadas com tempo delimitado, resguardando os interesses dos trabalhadores mais afetados,
depois de amplo procedimento de negociação, em que fique assegurada a plena e efetiva
participação das organizações sindicais.
De outra parte, conforme registrado por Bernard GERNIGON,
Alberto ODERO y Horacio GUIDO, a OIT considera que as competências orçamentárias
asseguradas ao Parlamento não podem ter como consequência impedir o cumprimento daquilo
que foi pactuado. De fato, a definição do orçamento público, bem como situações adversas
não podem constituir fundamento para negar o cumprimento dos acordos realizados ou anular
o direito de liberdade sindical, da qual faz parte a negociação coletiva. No entendimento do
Comitê de Liberdade Sindical, “las facultades presupuestarias reservadas a la autoridad
legislativa no deberían tener por resultado impedir el cumplimiento de los convenios
colectivos celebrados directamente por esa autoridad o en su nombre”.74 Da mesma forma, o
exercício de prerrogativas da autoridade pública em questões financeiras que conduzam ao
impedimento ou limitação do cumprimento dos acordos e pactos não é compatível com o
princípio da liberdade da negociação.
74 Recompilação de decisões do Comitê de Liberdade Sindical da OIT, ano 1996, nºs 894 e 895.
81
Ademais, o Comitê considera não ser passível de objeção que, ante a
dependência da Administração Pública em relação aos orçamentos do Estado, depois de
ampla consulta entre os sujeitos interessados, sejam fixados tetos salariais nas leis
orçamentárias do Estado ou que a autoridade competente possa emitir relatório previamente
ao início das negociações objetivando o respeito aos respectivos tetos salariais. No entanto,
não se harmoniza com o princípio da liberdade sindical a circunstância de que, durante o
processo negocial, exija-se prévio pronunciamento das autoridades financeiras, e não da
instituição pública, sobre os projetos de acordo coletivos e os gastos consequentes. Na
hipótese de exigência de manifestação das autoridades financeiras, deve estar previsto
mecanismo que assegure às organizações o direito de serem consultadas e de expressarem
suas opiniões às autoridades referidas. De qualquer sorte, independente da opinião expressada
pelas autoridades financeiras, ainda assim deve assegurar aos sujeitos da negociação o direito
de concluírem livremente um acordo. No entendimento do Comitê de Liberdade Sindical, se
isto não estiver assegurado, tal procedimento é incompatível com o princípio da liberdade de
negociação coletiva.
Invocando a flexibilidade resultante da Convenção nº 154, Bernard
GERNIGON, Alberto ODERO y Horacio GUIDO consideram que suas disposições ajustam-
se à diversidade de regimes e procedimentos orçamentários, de modo a garantir o respeito ao
princípio da liberdade de negociação coletiva na função pública.75 O certo é que os problemas
e as especificidades reconhecidos pela OIT no tocante às questões orçamentárias e legislativas
não constituem obstáculos insuperáveis para a eficácia do direito à negociação coletiva dos
funcionários. De qualquer forma,
75 GERNIGON; ODERO; GUIDO. Princípios de la OIT sobre la negociación colectiva, Revista Internacional
del Trabajo, núm. 1, 2000: “Por lo que respecta a las cláusulas de los acuerdos colectivos relativas a remuneraciones y a condiciones de empleo en la administración pública que implican gastos económicos, uno de los principios fundamentales (...) es que los acuerdos colectivos deben ser respetados por las autoridades legislativas y administrativas. Este principio es compatible con los distintos sistemas presupuestarios si se reúnen ciertas condiciones y, en particular, puede acomodarse tanto con los sistemas en que los acuerdos colectivos resultantes de la negociación se concluyen antes del debate presupuestario (siempre y cuando los presupuestos respeten en la práctica el contenido de los acuerdos) como con los sistemas en que los acuerdos se negocian después de los presupuestos, siempre y cuando tengan la flexibilidad suficiente. Esta flexibilidad presupuestaria puede lograrse de varias maneras: permitir un reajuste interno de las partidas; trasladar al ejercicio siguiente la deuda generada por gastos no previstos derivados de los acuerdos colectivos; arbitrar leyes complementarias posteriores o prever en los presupuestos un espacio suficiente para la negociación, fijando topes al porcentaje de aumento salarial o a la masa remunerativa global una vez celebradas consultas significativas y de buena fe con los sindicatos.”
82
Es indispensable la interacción entre Parlamento, Administración y trabajadores, orientada por el principio de la buena fe, de manera que no sólo los acuerdos, a partir de esa flexibilidad, puedan ajustarse a las diretrices generales de la política económica, sino que también se busque uma cierta flexibilidad presupuestaria, con el fin de preservarse el cumplimiento de los acuerdos.76
3.3 RELAÇÃO ENTRE LIBERDADE SINDICAL E NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA
FUNÇÃO PÚBLICA NO DIREITO INTERNACIONAL
Formulados os aportes através de instrumentos internacionais acerca
da liberdade sindical e da negociação coletiva, cumpre definir a conexão que há entre essas
duas categorias jurídicas. Pretende-se verificar se o direito de negociar livremente com o
tomador dos serviços as condições de trabalho constitui um elemento essencial da liberdade
sindical, assegurando-se aos sindicatos o direito de ajustar melhores condições de vida e de
trabalho daqueles que representam, utilizando-se para tanto da negociação coletiva com o fim
de celebrar instrumentos normativos. Em outros termos, questiona-se se liberdade sindical e
negociação coletiva são institutos estanques, em que o direito de negociar e de celebrar
convênios coletivos é distinto do direito de liberdade sindical ou, ao contrário, se aquela
integra necessariamente o conteúdo essencial da liberdade sindical.
O objetivo aqui é apontar alguns parâmetros que possam contribuir
para a crítica à jurisprudência constitucional contemporânea, sugerindo uma reinterpretação
do artigo 37, V, CF, e do artigo 28.1 CE em relação à liberdade sindical dos funcionários
públicos, caminhando no sentido de reconhecer que, tal como se dá com a negociação coletiva
laboral, a negociação coletiva dos funcionários também faz parte do conteúdo essencial da
liberdade sindical. Essa reinterpretação faz-se necessária a partir das conclusões extraídas dos
instrumentos normativos internacionais, considerando o disposto no artigo 5º, § 3º, CF, e no
76
MACEDO DE BRITO PEREIRA. La negociación colectiva en la función pública: una aproximación
constitucional, 2004, p. 105.
83
artigo 10.2 CE, que dispõem sobre a função dos tratados internacionais como fontes
normativas dos ordenamentos jurídicos nacionais.
Os instrumentos internacionais, ao tratarem da relação entre liberdade
sindical e negociação coletiva, reconhecem a interdependência entre essas categorias
jurídicas, fazendo derivar da liberdade sindical um direito à negociação coletiva. Nesse ponto,
a OIT tem edificado sólida doutrina na direção de integrar na liberdade sindical todo tipo de
atividade sindical necessária à defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, incluindo-se
o direito de participar de reuniões, efetuar manifestações, realizar publicações e,
concretamente, também considera essencial à liberdade sindical o direito à negociação
coletiva e o direito de greve. Excluir a negociação desse núcleo essencial tem como
consequência converter a liberdade sindical em mero direito de associação profissional, sem
as prerrogativas que lhe são inerentes.
O acompanhamento da aplicação dos tratados internacionais corrobora
esse entendimento. Com efeito, tanto o Comitê de Liberdade Sindical como a Comissão de
Peritos têm reafirmado que o direito de negociação coletiva deduz-se como corolário
indispensável da liberdade sindical. Nesse sentido a doutrina firme e pacífica dos organismos
internacionais foi construída na direção de integrar no princípio da liberdade sindical todo e
qualquer tipo de atividade sindical relacionada à defesa dos direitos e interesses dos
trabalhadores, de forma abrangente e sem limitações ou restrições. De forma específica, nas
normas internacionais integra a negociação coletiva o conteúdo essencial da liberdade
sindical.77
E essa tem sido a concepção prevalecente nos modelos democráticos
de relações coletivas de trabalho. Considera-se que a liberdade sindical, no tocante ao seu
conteúdo essencial, é um direito complexo, constituído por um conjunto de direitos e
77 Confirma essa perspectiva abrangente o seguinte precedente do Comitê de Liberdade Sindical, extraído de
Recopilación de decisiones y principios del Comité de Libertad Sindical del Consejo de Administración de la
OIT, 1996, nº 782: “el derecho de negociar libremente con los empleadores las condiciones de trabajo con los empleadotes constituye un elemento esencial e la libertad sindical, y los sindicatos deberían tener el derecho, mediante negociaciones colectivas o por otros medios licitos, de tratar de mejorar las condiciones e vida y de trabajo de aquellos a quienes representan, mientas que las autoridades públicas deben abstenerse e intervenir de forma que este derecho sea coartado o su legítimo ejercicio impedido”.
84
faculdades. A complexidade do conteúdo faz com que nele esteja incluído o direito de
atividade sindical, individual ou coletiva, compreendendo o direito à negociação coletiva.78
De fato, a face coletiva da liberdade sindical é a autodeterminação do sindicato, baseada no
princípio da autonomia privada coletiva, no qual repousa a ideia de determinação autônoma,
bilateral e coletiva das condições de trabalho. E a negociação é da essência da liberdade
sindical, na medida em que as categorias “sindicato”, “greve” e “convênio” coletivo
encontram-se em regime de complementaridade, sendo que a ausência de quaisquer deles
rompe o sistema coletivo de relações de trabalho.
Nessa mesma visão, Pinho Pedreira refere-se ao pensamento de Mário
de La Cueva, que constrói uma perspectiva triangular do direito coletivo do trabalho. Para o
jurista mexicano, a doutrina poderia ser representada graficamente como um triângulo
equilátero, cujos ângulos, todos idênticos em graduação, seriam o sindicato, a negociação e
contratação coletivas e a greve, de tal maneira que nenhuma das três figuras da trilogia
poderia faltar porque desapareceria o triângulo. Donde resulta falsa e enganosa a afirmação de
que a associação profissional é possível na ausência do direito à negociação e contratação
coletivas ou da greve, pois se o direito do trabalho assegura a vida dos sindicatos é para que
lutem pela realização dos seus fins.79
Nas relações coletivas privadas, mostra-se incontrastável considerar o
direito de negociação coletiva como conteúdo essencial do direito de sindicalização.
Entretanto, quanto à liberdade sindical dos funcionários públicos, remanesce ainda uma
concepção ideológica de considerá-la necessariamente diferenciada da liberdade sindical dos
trabalhadores em geral. Essa vertente continua vinculada ao modelo clássico de função
pública, refratária às significativas mudanças verificadas nas últimas décadas, em que se
passou de um modelo unilateral e autoritário para uma concepção democrática e bilateral,
78
Conforme ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 319, “uno de los elementos del contenido esencial de este derecho, lo constituye el empleo de médios e instrumentos que históricamente han mostrado su aptitude para actualizar y hacer efectiva la defensa y promoción de los interesses que los sujetos sindicales incorporan. Estos instrumentos forman parte, en realidad, del fin para el cual ha sido concebido el derecho de sindicación y no cabría negar su existencia, pues, de otro modo, el derecho quedaría en una mera abstracción. Uno de los instrumentos típicos para la defensa y promoción de los intereses de los trabajadores es, precisamente, el de la negociación colectiva de las condiciones de empleo.
79 DE LA CUEVA, 1979 apud SILVA. A problemática da negociação coletiva dos servidores públicos. Revista
LTr, v. 54, núm. 3, 1990, p. 269-279.
85
com o reconhecimento da natureza contratual da função pública, em que se reconhece a
existência de espaços para a autotutela e formas de autonomia coletiva. Procura-se justificar
também a diferenciação a pretexto de resguardar as peculiaridades que lhe são inerentes, mas
tal aspecto não pode afetar o conteúdo essencial do direito de liberdade sindical, cuja extensão
deve estar preservada, admitindo-se regulação específica tão-somente no que diz respeito ao
modo do seu exercício, como forma de preservar certos valores constitucionais.
No ponto, resulta evidente que, cabendo ao sindicato não só a defesa
dos interesses e direitos atuais, mas também a melhoria deles, é natural que tenha de tratar
com a Administração, negociar com ela, para obter a reparação de uma arbitrariedade ou o
melhoramento dos direitos dos funcionários públicos. Ademais, essa vocação pela negociação
se reforça, na medida em que os funcionários públicos podem suspender coletivamente a
prestação dos seus serviços para sustentar suas reivindicações. Decorre daí que o direito de
greve é inconcebível e até mesmo absurdo sem a possibilidade de negociar um acordo que
possa pôr termo ao conflito.80
Nessa linha, parece irrefutável que a negociação coletiva é uma
decorrência necessária do direito de sindicalização. Adotando semelhante raciocínio, ao
reportar-se à Constituição da Espanha, que reconhece aos funcionários públicos apenas o
direito à sindicalização, silenciando-se sobre o direito de greve e sobre a negociação coletiva,
Salvador Del Rey Guanter observa: “Seria ilógico desde todo punto de vista que la
Constitución protegiera la formación de sindicatos de funcionarios públicos y que
contemplara la posibilidad de que a los mismos pudiera reducírseles juridicamente a la más
completa inactividad.”81
Certamente, os direitos coletivos dos funcionários, constituindo
direitos, têm seus limites configurados, como quaisquer outros direitos. Isso porque
80 SILVA. A problemática da negociação coletiva dos servidores públicos. Revista LTr, v. 54, núm. 3, 1990, p.
274. 81 DEL REY GUANTER. Estado, sindicatos y relaciones colectivas en la Función Pública, 1986, p. 122.
86
El funcionario, em el uso de estos derechos, tendrá las limitaciones que deriven de la necesaria acomodación al ejercicio de otros derechos reconocidos igualmente en la norma fundamental; o de una manera media o indirecta por la necesidad de proteger otros derechos y bienes constitucionalmente protegidos. Estos limites son comunes a todos los ciudadanos en cuanto al ejercicio de sus derechos constitucionales. 82
Nesse aspecto, o desafio do Direito reside na garantia do exercício dos
direitos de organização e reivindicação dentro de uma organização social marcadamente
plural e naturalmente conflituosa, mas que deve observar um mínimo de consenso e limites à
atuação dos grupos sociais, com sua multiplicidade de interesses, a fim de preservar o
interesse global da comunidade, sem que isso importe negar ou sufocar os movimentos
reivindicatórios que se estabelecem no âmbito da sociedade e da própria organização estatal.83
Nesse ambiente, impõe-se o reconhecimento de que os funcionários
devem ser compreendidos como cidadãos que prestam serviços em troca de remuneração
como meio de garantir uma existência digna, com interesses comuns, de natureza coletiva,
mas que devem ser entendidos à luz das especificidades que os diferenciam dos demais
trabalhadores, não tendo em consideração uma discriminação pessoal a priori, decorrente de
postulados presos à concepção unilateralista de função pública, derivada de arcaica razão de
Estado ou levando em consideração a superada ideia de interesse público. Na realidade, a
forma peculiar de exercício dos direitos coletivos dos funcionários deve-se basear em
elementos objetivos, relacionados à natureza das tarefas que são instados a realizar e da
natureza material própria das pessoas estatais.84
Nesse aspecto, resulta imprescindível o tratamento interdisciplinar do
tema da negociação coletiva na função pública. Impõe-se o reconhecimento das
peculiaridades e especificidades que a matéria envolve. Entretanto, mostra-se irrecusável o
82 GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 39. 83
Sobre as peculiaridades do exercício do direito de sindicalização dos funcionários na Espanha, cf. PALOMEQUE LÓPEZ. Administración Pública y derechos sindicales en la Administración del Estado: las
libertades sindicales, en AA.VV. Administración Pública y sindicalismo, 1988, p. 45-50. 84 Nesse mesmo sentido, ROQUETA BUJ. La negociación colectiva en la Función Pública, 1996, p. 42: “Así,
las peculiaridades de la libertad sindical de los funcionarios públicos no pueden afectar al contenido essencial, no autorizan a restringir los derechos complementarios de negociación, de huelga y de planteamiento de conflictos colectivos, sino que con esta expresión se trata más bien de adpatar su ejercicio a las especialidades objetivas de la prestación de trabajo em la función pública y de la Administración como empleadora.”
87
subsídio de categorias já consolidadas do Direito Coletivo do Trabalho, ramo do
conhecimento jurídico no qual já foram pensados e sistematizados os instrumentos e métodos
adequados à solução dos conflitos coletivos de trabalho.
Portanto, os diversos instrumentos internacionais induvidosamente
reconhecem de forma generalizada os direitos coletivos a todos os trabalhadores que prestam
serviços subordinados, em caráter pessoal, com remuneração, independente da natureza do
regime jurídico que os vincula ao tomador dos serviços. Não há nesse conjunto normativo
tratamento substancialmente distinto em relação ao exercício do direito de sindicalização e
negociação coletiva entre trabalhadores públicos e privados, conquanto se reconheça neles a
possibilidade de o exercício sujeitar-se a peculiaridades. Isso, no entanto, conforme será visto
adiante, sem limitações ou, mesmo ainda, sem exceções ao exercício dos direitos coletivos
pelos funcionários. As peculiaridades, por certo, devem ser interpretadas em sentido restritivo,
como simples “modalización o modulación de la libertad sindical”. 85
Em arremate a esta primeira parte da investigação, considerando os
aportes teóricos e normativos até aqui desenvolvidos, torna-se irrecusável o reconhecimento
de que há fundamentos suficientes para a transformação paradigmática do modelo de função
pública e de garantia da efetiva participação dos funcionários no processo de criação das
normas que regulam suas condições de trabalho. Sendo assim, cumpre agora verificar a
extensão e a profundidade da influência dessas bases teóricas e normativas sobre as
experiências em matéria de negociação coletiva no Brasil e na Espanha. Nesse aspecto,
conforme se demonstrará adiante, o silêncio da CE sobre o direito dos funcionários à
negociação coletiva não impediu ali o reconhecimento e o desenvolvimento do direito por
meio de progressiva construção jurisprudencial. No Brasil, diante do mesmo silêncio, mas
desconsiderando que a negociação coletiva integra o conteúdo da liberdade sindical, a
jurisprudência impediu o reconhecimento do direito e ainda hoje a negociação não se
constitui instrumento de conquista e concretização de direitos para os funcionários. Como
desdobramento dos aportes aqui formulados, as duas partes seguintes da investigação
examinará como se desenvolve o processo de conformação da negociação coletiva entre os
funcionários e o Estado nos modelos brasileiro e espanhol.
85 VALDES DAL-RÉ. Los derechos de negociación colectiva y de huelga de los funcionarios públicos en el
ordenamiento jurídico español: una aproximación, en REDT , núm. 86, 1997, p. 841.
88
PARTE II
SISTEMA BRASILEIRO DE NÃO NEGOCIAÇÃO COLETIVA:
PREVALÊNCIA DA UNILATERALIDADE NA FUNÇÃO PÚBLICA
89
4 CONFLITOS COLETIVOS NA FUNÇÃO PÚBLICA NO BRASIL: PREVALÊNCIA
DA UNILATERALIDADE
Este capítulo aborda o tema da negociação coletiva na função pública
no Brasil, tendo como ponto de partida a análise na perspectiva constitucional e o tratamento
a ele conferido pela jurisprudência nacional. Considera inicialmente a pretensão da
Constituição de 1988 de formação de um Estado Democrático de Direito e de um modelo
democrático de relações coletivas de trabalho, a partir do reconhecimento dos direitos
coletivos dos funcionários públicos. Como desdobramento, enfoca a jurisprudência que se
consolidou a partir do julgamento pelo STF da ADIn 492-DF e seus reflexos na
jurisprudência dos tribunais e nas práticas da Administração Pública. Examina a possibilidade
de reformulação dessas bases jurisprudenciais, propondo a construção de um entendimento
diverso a partir da dinâmica social que demonstra a generalização dos conflitos na função
pública e a necessidade da institucionalização da negociação coletiva como procedimento
legítimo, válido, adequado e eficiente para sua resolução. Para finalizar, analisa os efeitos do
reconhecimento pelo STF do direito de greve dos funcionários em relação à negociação
coletiva e a possibilidade de sua regulamentação.
4.1 SINDICALIZAÇÃO E NEGOCIAÇÃO COLETIVA DOS FUNCIONÁRIOS
PÚBLICOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
No Brasil, até a promulgação da atual Constituição, não existia
consagração de liberdade sindical para os funcionários públicos.86 As constituições anteriores
86 Resgate retrospectivo no constitucionalismo brasileiro indica que, anteriormente à Constituição de 1988,
existia um traço marcadamente autoritário no tocante à possibilidade de os funcionários intervirem na relação de trabalho com o Estado, inexistindo canais de comunicação com a Administração Pública, seja por meio da
90
não se reportavam a esse direito e havia expressa vedação pelo art. 566 do Decreto-Lei nº
5.452, de 1º de maio de 1943, que instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), esta
de forte concepção corporativista e autoritária, promulgada sob o influxo da Constituição de
1937, inspirada pela Carta del Lavoro de 1927. Esse dispositivo estabelecia que “Não podem
sindicalizar-se os servidores do Estado e os das instituições paraestatais.” Com a
redemocratização do país, a Constituição Federal de 1988 assegurou a plena liberdade de
associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar (CF, artigo 5º, XVII), garantindo
aos trabalhadores em geral a liberdade profissional ou sindical (artigo 8o, caput), considerando
obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho (artigo 8º, VI)
e assegurando o direito de greve (artigo 9º, caput).
Com a Constituição de 1988, a liberdade sindical foi expressamente
atribuída aos funcionários públicos civis, conforme disposto no art. 37, VI, ficando,
entretanto, expressamente vedado qualquer direito sindical aos militares, vedação que abrange
de forma expressa o direito de greve (CF, artigo 42, § 5o, com a redação anterior à EC nº
18/1998). Também assegurou aos funcionários o direito de greve, a ser exercido nos termos e
nos limites definidos em lei específica (CF, artigo 37, VII, com a redação dada pela EC nº
19/1998). No tocante à negociação coletiva, em relação aos trabalhadores em geral, a
Constituição reconheceu expressamente os acordos e convenções coletivas de trabalho (artigo
7o, XXVI), adotando ainda um modelo de flexibilização das relações de trabalho vinculado à
negociação coletiva no que concerne à redução salarial e à jornada de trabalho (artigo 7o, VI e
XIII). Quanto aos funcionários, a CF, ao assegurar o direito à livre associação sindical,
implicitamente reconhece aos sindicatos que os representam o poder de negociar condições de
trabalho, na medida em que erige como obrigatória a participação dos sindicatos nas
negociações coletivas (artigo 8o, VI).
O fato de a Constituição, ao tratar dos direitos dos funcionários no
artigo 39, § 2o (atual § 3º, EC nº 19/1998), não incluir entre os incisos do artigo 7o, que cuida
dos direitos dos trabalhadores em geral, o inciso XXVI, que disciplina o reconhecimento das
convenções e acordos coletivos de trabalho, em nada afeta o direito à negociação coletiva na
sindicalização, da greve ou de negociação coletiva. Para uma breve análise da evolução normativa, que comprova a ausência de tratamento constitucional, pode-se conferir em DEMARI. Negociação coletiva no
serviço público, 2007, p. 20-21.
91
função pública. A Constituição não veda ao sindicato de funcionários a possibilidade de
celebrar convenções e acordos coletivos, haja vista que, quando pretende proibir o exercício
de algum direito coletivo, fá-lo expressamente, tal como ocorreu com a expressa vedação de
sindicalização e deflagração de greve pelos militares (artigo 42, § 5o, com a redação anterior à
EC nº 18/1998). Desse modo, ao reconhecer expressamente o direito de sindicalização dos
funcionários (artigo 37, VI), a CF estava automaticamente dispensada de proclamar o
reconhecimento das convenções e acordos coletivos em favor dos funcionários, pois, ao
repetir tal previsão, estaria incorrendo em bis in idem.
Portanto, ao assegurar expressamente a livre associação sindical e o
direito de greve e ao se referir no artigo 39, § 3o (com a redação da EC nº 19/1998), aos
incisos VI e XIII, do artigo 7o, estes tratando da negociação coletiva em matéria de
flexibilização de remuneração e de jornada de trabalho, resulta inequívoco que a negociação
coletiva na função pública emerge como condição essencial para o desenvolvimento de
relações coletivas de trabalho democráticas. Nessa linha, parcela expressiva da doutrina
administrativista e juslaboralista passou a sustentar a possibilidade, viabilidade e eficácia
jurídica de negociação coletiva na função pública, dentro de um quadro normativo adequado.
Entende essa doutrina que a não remissão expressa do artigo 39 CF, ao inciso XXVI do artigo
7o, não é suficiente para excluir o reconhecimento das convenções e acordos coletivos do
âmbito da função pública, até por que inconcebível um sistema de relações coletivas de
trabalho que assegure a liberdade sindical e garanta o direito de greve sem que esteja
institucionalizada a negociação coletiva como via adequada para a resolução dos conflitos
coletivos daí emergentes.87
Além desses aspectos, milita ainda em favor da tese da afirmação da
negociação o fato de o país ter sido concebido como Estado Democrático de Direito. Neste,
impõe-se a participação ativa e operante na coisa pública não através de simples instituições
87 Segundo Luiz de Pinho Pedreira da Silva, “aos servidores públicos estatutários confere o art. 37 da
Constituição, desde que o faz sem exceção a todos os servidores civis, o direito à livre associação sindical (n. VI) e, como já vimos, a negociação coletiva integra o conteúdo essencial da liberdade sindical. Se isso não bastasse para o reconhecimento da capacidade convencional coletiva dos funcionários públicos, teríamos de proclamá-la com fundamento na combinação do par. 2o. do art. 39 da Constituição com os ns. VI e XIII do art. 7o., que aquele preceito lhes manda aplicar. Um autoriza a celebração de convenções e acordos coletivos para redução de salários e o outro para compensação de jornadas. Como negar possam os funcionários negociar coletivamente se lhes faculta o estatuto fundamental a estipulação de convenções e acordos?” (SILVA. Negociação coletiva. In: ROMITA (Coord.). Curso de Direito Constituiconal do Trabalho 7, 1991. p. 65.
92
representativas, mas mediante o reconhecimento da centralidade da participação na formação
das decisões, institucionalizando-se normas jurídicas destinadas a propiciar a expressão e a
negociação direta dos interesses em confronto. Com efeito, no Estado Democrático de Direito,
os funcionários públicos conquistam os direitos inerentes à cidadania plena, vendo
reconhecida pelo direito a sua esfera de vontade, que se manifesta sob a forma de autonomia
coletiva. Na realidade, transigência, bilateralidade e negociação constituem aspectos
plenamente inseridos no modelo de Administração Pública própria do Estado Democrático de
Direito, cumprindo ao legislador infraconstitucional estabelecer os contornos que atendam às
especificidades e peculiaridades da função pública, sem de qualquer modo negar eficácia ao
modelo constitucional que consagra a negociação coletiva como condição necessária à
democratização das relações entre os agentes e o Poder Público.88
Conquanto desnecessária a regulação dos direitos coletivos no âmbito
da função pública, uma vez que a norma constitucional que os consagra é dotada de eficácia
plena, o tema foi objeto de disciplina através da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que
dispõe sobre o Regime Jurídico dos Servidores Civis da União (RJU). O artigo 240 previu o
direito à livre associação sindical e declinou outros direitos coletivos, tendo a alínea d se
referido expressamente ao direito à negociação coletiva. Esse dispositivo foi vetado pelo
Presidente da República sob o fundamento de inconstitucionalidade, mas, submetido o veto à
votação pelo Congresso Nacional, o mesmo foi rejeitado e o texto foi promulgado pelo
Presidente do Congresso em 18 de abril de 1991, prevalecendo a redação que estabelecia de
forma expressa o direito à negociação coletiva na função pública. O certo é que o legislador
ordinário brasileiro terminou regulamentando alguns aspectos dos direitos coletivos dos
funcionários públicos, prevendo o direito à livre associação sindical e referindo
expressamente a outros direitos, dentre os quais está o de negociação coletiva, previsto na
alínea d, e o de ajuizamento, individual e coletivamente, diante da Justiça do Trabalho,
consagrado na alínea e. Desse modo, tanto o constituinte originário quanto o legislador
ordinário consagraram uma tendência moderna, solidificada por diversos instrumentos
normativos da OIT e acolhida pela maioria dos ornamentos jurídicos nacionais.
88
Essa mesma ideia é defendida por ROCHA. Princípios constitucionais dos servidores públicos, 1999, p. 349-357.
93
4.2 NEGAÇÃO DO DIREITO À NEGOCIAÇÃO COLETIVA PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DA ADIN 492-DF
As alíneas d e e do art. 240 da Lei nº 8.112/90 (RJU) foram objeto da
ADIn 492-DF, ajuizada pelo Procurador-Geral da República perante o STF, para que este
exercesse o controle concentrado sobre a constitucionalidade dos dispositivos citados. Na
ocasião, o STF concedeu medida cautelar para suspender a eficácia da alínea d e da expressão
“e coletivamente” da alínea e. A decisão quanto ao provimento cautelar implicou a
Suspensão cautelar da eficácia das disposições inscritas na alínea "d" do art. 240 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 ("regime único" dos servidores públicos civis da União) e da locução "e coletivamente" da alínea "e" do mesmo artigo, que asseguram ao servidor público civil da União os direitos de negociação coletiva (alínea "d") e de ajuizamento de dissídio coletivo frente a Justiça do Trabalho.89
Em seguida, o STF resolveu a matéria em caráter definitivo, decidindo
pela inconstitucionalidade da alínea d do artigo 240 da lei nº 8.112/90, que havia consagrado a
negociação coletiva dos funcionários públicos.90 No julgamento, o relator conduziu seu voto
fundamentando-se essencialmente na concepção unilateralista de função pública, entendendo
que as relações entre os funcionários e o Poder Público são regidas por normas legais, porque
sujeitas ao princípio da legalidade e invocando diversos dispositivos constitucionais que se
referem à lei como instrumento de regulação de direitos no âmbito da relação jurídico-
administrativa. No acórdão, o STF declarou que a relação de trabalho entre os funcionários e
o Estado é de natureza estatutária, o que justifica a impossibilidade de a mesma ser regulada
89 Estudos sobre o contexto e os fundamentos adotados na decisão do STF foram realizados por SILVA. Os
servidores públicos e o direito do trabalho, 1993; MOREIRA NETO. O Estado no direito do trabalho, 1996; DEMARI. Negociação coletiva no serviço público, 2007; e STOLL. Negociação coletiva no setor público, 2007.
90 O acórdão está assim ementado: CONSTITUCIONAL. TRABALHO. JUSTIÇA DO TRABALHO. COMPETÊNCIA. AÇÕES DOS SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS. C.F., ARTS. 37, 39, 40, 41, 42 E 114. LEI N. 8.112, DE 1990, ART. 240, ALINEAS "D" E "E". I - SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS: DIREITO A NEGOCIAÇÃO COLETIVA E A AÇÃO COLETIVA FRENTE A JUSTIÇA DO TRABALHO: INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.112/90, ART. 240, ALINEAS "D" E "E". II - SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS: INCOMPETENCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA O JULGAMENTO DOS SEUS DISSIDIOS INDIVIDUAIS. INCONSTITUCIONALIDADE DA ALINEA "e" DO ART. 240 DA LEI 8.112/90. III - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. (ADI 492, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 12/11/1992, DJ 12-3-1993).
94
por instrumento coletivo e de ser admitido o ajuizamento do dissídio coletivo para solucionar
os conflitos daí emergentes.
Para considerar incompatível o direito à negociação coletiva com o
regime jurídico-administrativo, o Relator, Ministro Carlos Velloso, invocou diversos
argumentos, assim sintetizados: o vínculo jurídico-administrativo é de direito público,
decorrendo daí que essa relação é regida por normas unilaterais, que estão materializadas em
normas positivadas no Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União; impossível a
equiparação entre os funcionários públicos e os trabalhadores da iniciativa privada,
impossibilitando os primeiros de interferirem no conteúdo da relação que mantêm com o
Estado; a negociação coletiva trata precipuamente de questões remuneratórias, matérias estas
condicionadas à expressa disposição legal, impedindo assim sua definição por meio da
negociação coletiva; a negociação relaciona-se intrinsecamente com o dissídio coletivo e com
o poder normativo da Justiça do Trabalho, conflitando desse modo com o princípio da
legalidade que deve reger a relação jurídico-administrativa; a norma do inciso XXVI do artigo
7º CF, que reconhece os acordos e convenções coletivas de trabalho, não foi estendido aos
funcionários públicos; a Administração Pública vincula-se ao princípio da legalidade,
circunstância que a impede de transigir em relação aos direitos e deveres decorrentes da
relação jurídico-administrativa; frustrada a negociação, adviria daí o ajuizamento do dissídio
coletivo, atraindo o exercício do poder normativo pelos tribunais, situação incompatível com
a unilateralidade da função pública.
Portanto, conforme se extrai do voto condutor do julgamento, não foi
discutido o direito à sindicalização e à greve, muito menos o direito explícito à negociação
coletiva (artigo 7º, incisos VI e XIII) e implícito na própria natureza da liberdade sindical dos
funcionários. E este certamente era o ponto nuclear a ser discutido pelo STF, na medida em
que, conforme proclamado por sucessivos instrumentos normativos internacionais, a liberdade
sindical é um direito de conteúdo complexo, integrado por diversos outros direitos, dentre os
quais está o direito à negociação coletiva das condições de trabalho. O que se observa,
portanto, é que o STF limitou-se a chancelar a teoria de que os funcionários mantêm com o
Poder Público uma relação de natureza eminentemente estatutária, incorporando e levando às
últimas consequências a doutrina administrativa brasileira, presa a um modelo de Estado
autoritário, inteiramente incompatível com a pretensão do constituinte de 1988 de consolidar
no Brasil um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
95
Na ocasião do julgamento, divergiu o Ministro Marco Aurélio,
apontando a tendência natural de as relações humanas afastarem-se cada vez mais do
autoritarismo, para realizarem, numa visão ampla, sem temor, a negociação e a busca do
entendimento. No seu voto, considerou que “[...] paradoxal é a existência de norma
constitucional expressa prevendo a sindicalização e, mais do que isto, o direito à greve, para, a
seguir, em interpretação de preceito constitucional diverso, dizer-se que o Estado está
protegido pela couraça de proibição de dialogar”. Concluiu entendendo
que a negociação coletiva está assegurada pela própria CF, quer implicitamente, ao prever o direito à sindicalização e à greve, quer por remissão expressa – incisos VI e VII do art. 7º, no que dispõem que os salários e a jornada de trabalho podem ser reduzidos, desde que isto ocorra mediante acordo coletivo – § 2º do artigo 39.
Nessa linha, os argumentos do voto divergente são assim resumidos:
no cenário internacional, a partir da II Guerra Mundial, com a promulgação de constituições
democráticas, principalmente com o reconhecimento do direito de sindicalização dos
funcionários, a concepção clássica de função pública foi paulatinamente superada, admitindo
a legitimidade e abrindo mais espaço para a atuação das entidades de funcionários públicos; o
direito comparado indica experiências que não recusam a possibilidade de intervenção dos
funcionários em suas condições de trabalho, existindo em alguns países formas de
participação, seja por meio de simples consulta, seja através da celebração de acordos
coletivos; a utilização do termo “servidor público” sugere uma ruptura com o modelo de
Estado autoritário e favorece a valorização social do trabalho como fundamento do Estado
Democrático de Direito; a unificação do regime jurídico, prevista na CF, autoriza a adoção da
CLT como regime único, decorrendo que nele não está implícito o regime estatutário; a Lei nº
8.112/90 não contém um regime estatutário de todo incompatível com a contratualidade; a CF
assegura aos funcionários o direito à negociação coletiva, quer implicitamente, ao garantir aos
mesmos o direito à sindicalização e à grave, quer expressamente, por remissão do § 2º do
artigo 39 aos incisos VI e VII do artigo 7º, que admitem a possibilidade de redução de salários
e jornada por meio de acordo coletivo; embora as negociações coletivas com a Administração
Pública não tenham o mesmo alcance da negociação coletiva privada, elas não são
incompatíveis com a Constituição, do qual decorrem; a proibição do estabelecimento de
canais de negociação é incompatível com o direito à sindicalização e à greve; a negociação
coletiva, admitida pelas Convenções nº 151 e nº 154 da OIT, não encontra óbice
96
intransponível no artigo 169 CF, pois a) as negociações alcançam temas e resultados
superiores à concessão de benesses; b) eventuais limitações, derivada da atuação vinculada da
Administração Pública, podem ser superadas com o envio do conteúdo acordado ao
Congresso Nacional; e c) a negociação coletiva é instrumento de pacificação social.
Análise comparativa dos dois votos referidos indica claramente que o
debate travado parte de duas lógicas bem distintas e chegam naturalmente a soluções opostas.
O voto condutor do julgamento está impulsionado pela concepção de Estado autoritário e pela
doutrina administrativista clássica, assentada na teoria do regime estatutário, unilateral e
impermeável à participação dos funcionários na formação das normas que regulam suas
condições de trabalho. Por outro lado, o voto divergente funda-se nas experiências
contemporâneas de relações coletivas de trabalho democráticas, na redução do direito à
negociação coletiva dos funcionários públicos extraído da própria CF, seja pelo
reconhecimento do direito à sindicalização, à greve e pela remissão ao dispositivo que trata da
possibilidade de redução de salários e jornada de trabalho por meio de acordo coletivo, seja
pela consagração do Estado Democrático de Direito. Na decisão do STF prevaleceu, portanto,
uma visão retrospectiva, com base em paradigmas já superados e desconsiderando a realidade
de então de generalização dos conflitos coletivos na função pública, com forte dimensão
política e inevitáveis consequências jurídicas. De certo modo, conforme se verá adiante, o
STF seguiu trajetória semelhante à do TC da Espanha, que em decisão paradigmática de 1982
negou o direito de negociação coletiva dos funcionários e que depois foi incorporado ao
sistema jurídico espanhol por meio da legislação promocional, ratificada pela jurisprudência
dos tribunais.
A decisão do STF confirma a tendência dos juristas pretenderem
compreender o presente com as lentes do passado, aprisionando-se a paradigmas construídos
em outro momento histórico. Com esse olhar retrospectivo, o acórdão terminou sufragando a
tese da já superada concepção unilateralista de função, sem considerar o moderno
desenvolvimento do tema, as afirmativas da OIT, o direito comparado e, principalmente, sem
ter em conta
o objeto da nova organização do serviço público que, dotado de instrumentos negociais, teria muito mais condições de cumprir a missão e exercer o papel que dele espera uma sociedade diversificada, problemática, exigente, onde
97
os desafios e dificuldades estão longe de compatibilizar-se com soluções autoritárias e unilaterais.91
Assim, o STF aviltou o novo panorama surgido com a Constituição de
1988, que buscou redefinir a correlação de forças no embate entre funcionários e
Administração Pública, assegurando a sindicalização, o direito de greve e o direito à
negociação coletiva, desconsiderando a íntima integração, conexão e correlação entre esses
três institutos fundamentais do Direito Coletivo do Trabalho, de onde são originários. Faltou,
portanto, uma interpretação adequada e prospectiva, alinhada com a ideia de que o direito e os
tribunais devem atuar no interesse e a serviço da democratização e da transformação da
sociedade.
A solução conferida ao tema no Brasil pelo STF, assim como ocorreu
em relação à primeira decisão na Espanha do TC, decorreu da falta de adequada compreensão
do sistema de função, o que somente seria possível mediante sua apreciação na perspectiva da
nova hermenêutica constitucional. Com efeito, numa sociedade complexa, plural,
heterogênea, fragmentada em classes e grupos, dotados de interesses diversos e contraditórios,
é natural que a Constituição seja firmada sob a forma de compromisso ou pacto. Isso
determina a existência de constituições principiológicas, cujas normas se expressam em
textura aberta, resultando uma ampla margem de conformação por seus intérpretes. Assim, os
métodos clássicos da velha hermenêutica são insuficientes para compreender o sentido da
Constituição, que, ao lado de ostentar uma dimensão jurídica, tem também uma dimensão
política, abarcando uma plêiade de valores decorrentes das opções políticas de cada momento
histórico concreto.92
Desse modo, possuindo a Constituição uma textura aberta, igualmente
aberta deve ser sua interpretação. E, como documento político, também política deve ser sua
interpretação. Nesse aspecto, tem especial significado o método concretista de interpretação
da “Constituição aberta”, desenvolvido por Peter Häberle. Ao teorizar sobre esse método de
interpretação constitucional, o autor alemão tem como pressuposto o pluralismo democrático
91
SILVA. Os servidores públicos e o direito do trabalho, 1993, p. 153. 92 Para um estudo sobre o sentido da interpretação da Constituição, conf. PÉREZ LUNO. Derechos Humanos,
Estado de Derecho y Constitución, 2005, p. 255-289.
98
da sociedade aberta.93 E uma das virtudes desse método é o reconhecimento da força
produtiva do pluralismo, a partir do jogo alternativo do dissenso e do consenso, permitindo
melhor ajustar por via interpretativa a mudança constitucional, adaptando a Constituição às
exigências de cada época. Nesse ponto, esse método de interpretação, por sua flexibilidade,
pluralismo e abertura, ao invés de consagrar uma visão estática, voltada à manutenção do
status quo, conservando velhas instituições, procura aproximar Constituição e realidade,
abrindo espaços para o futuro e suas transformações.
De fato, o pluralismo é um elemento da sociedade contemporânea e,
também, uma característica do Estado Democrático de Direito, que deve contemplar direitos e
garantias que preservem os diversos grupos que a formam. Exatamente por isso as
Constituições são escritas com termos imprecisos, abertos, incompletos, de modo que possam
ajustar-se à dinâmica social. Consequentemente, a Constituição não pode ser entendida como
um sistema fechado, mas como um sistema aberto para o mundo da vida, dinâmico, sujeito a
evoluções que permita acompanhar as mudanças nos projetos e valores vigentes na sociedade.
Com essa textura aberta, o texto constitucional requer para sua
realização que seja interpretado. Essa interpretação não pode ser descontextualizada, haja
vista que corresponde a um fenômeno histórico, situado e datado. Isso faz com que o sentido
que se dá à Constituição varie no contexto histórico sujeitando-se às mais diversas
circunstâncias de cada época. Portanto, a Constituição deve ser entendida como um contínuo
processo de interpretação e atualização do seu texto. Essa nova hermenêutica parece que
melhor se adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito e à concretização dos
direitos fundamentais, especialmente os direitos coletivos, em relação aos quais a velha
hermenêutica resiste em efetivamente levá-los a sério.94
93 HÄBERLE. Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos interpretes da Constituição: contribuição
para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, 1997. 94
Esse aspecto histórico e dinâmico em relação aos direitos humanos, de que são espécies os direitos coletivos, foi ressaltado por HERRERA FLORES. Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os direitos humanos como
produtos culturais, 2009, p. 207-208, ao sustentar que as normas e instituições jurídicas que as garantem não surgem do vazio, “não são estruturas prévias à ação social, mas surgem das lutas sociais pela dignidade e, desse modo, devem tender a potenciar a inesgotável capacidade humana de fazer e desfazer mundos”, daí defender que normas e instituições devem servir “para garantir a continuidade de tal dinâmica, propiciando para isso mecanismos horizontais e paritários de participação e decisão democráticos”.
99
Com esses aportes, impõe-se reconhecer o profundo impacto
determinado pela nova ordem constitucional sobre a interpretação de suas normas e sobre a
compreensão das antigas instituições. O princípio basilar que orienta a atividade hermenêutica
radica na exigência de que o ordenamento jurídico deve ser interpretado conforme a
Constituição. Essa consequência deriva de seu valor normativo, significando que ela constitui
o contexto necessário de todas as leis e normas do ordenamento jurídico, exige-se a
interpretação integrativa para suprir insuficiências dos textos legais, as normas constitucionais
são dominantes diante das demais na concretização do sentido geral do ordenamento, a
interpretação de suas normas deve considerar a variação social e dos tempos e também deve
levar em conta o caráter normativo de seus princípios.95
O STF, ao formular uma interpretação retrospectiva, baseada nos
paradigmas da velha hermenêutica constitucional, limitou-se a reproduzir antigos valores da
doutrina administrativista. Essa postura confirma a assertiva de que “os operadores jurídicos
continuam prisioneiros dos paradigmas construídos sob a égide da Constituição adotada pelo
regime autoritário”.96 Portanto, faltou na análise da temática uma interpretação adequada e
prospectiva, a partir das conquistas democráticas de 1988. No precedente, o STF
desconsiderou a ruptura constitucional em relação à clássica concepção de função pública,
“revelada justamente pela institucionalização de mecanismos que instrumentalizam a
participação ativa do funcionalismo público nos rumos da Administração, permitindo a
oxigenação dessa através das ideias, informações e pretensões entre ela e o seu corpo
funcional”.97
Com a decisão do STF na ADIn 492-DF, proferida em sede de
controle concentrado de constitucionalidade, que opera efeitos erga omnes, de natureza
vinculante, foram provocadas sérias e graves consequências sobre o sistema de relações
coletivas na função pública. Seus efeitos podem ser assim sintetizados: a) as entidades
representativas dos funcionários públicos não podem firmar convenção coletiva ou qualquer
outro instrumento coletivo com o Estado; b) o direito à livre associação sindical e o direito à
greve, previstos no artigo 37, VI e VII, foram na prática revogados, uma vez que estão
formalmente proclamados, porém não possuem eficácia; c) não podendo negociar nem firmar
95 GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ RODRÍGUEZ. Curso de Derecho Administrativo I, 2005, p. 111-
113. 96 CLÈVE. A atividade executiva do poder legislativo no Estado contemporâneo, 2000, p. 159. 97
DEMARI. Negociação coletiva no serviço público, 2007, p. 95.
100
convenção coletiva, os sindicatos de funcionários perdem o objeto; e d) não podendo negociar
coletivamente, também o direito de greve perde o objeto, na medida em que, se os servidores
públicos entrarem em greve, ela será considerada ilegal, pois não pode ter por objeto forçar o
Estado a negociar e transigir, já que é vedada a negociação coletiva. Enfim, por força do
acórdão do STF, o direito à sindicalização e o direito à greve, conquistas dos funcionários,
foram sumariamente extirpados da Constituição.98
4.3 REPERCUSSÃO DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA
ADIN 492-DF NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
O entendimento do STF, adotado em 1992, vem sendo reafirmado
pela jurisprudência constitucional e ainda hoje prevalece nos tribunais brasileiros e nas
práticas da Administração Pública. De fato, na ADIn 554, em julgamento proferido em 2006,
ficou assentado que “A celebração de convenções e acordos coletivos de trabalho
consubstancia direito reservado exclusivamente aos trabalhadores da iniciativa privada”,
tendo por fundamento que “A negociação coletiva demanda a existência de partes
formalmente detentoras de ampla autonomia negocial, o que não se realiza no plano da
relação estatutária.” Na ocasião, considerou-se que
A Administração Pública é vinculada pelo princípio da legalidade. A atribuição de vantagens aos servidores somente pode ser concedida a partir de projeto de lei de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, consoante dispõe o art. 61, § 1º, inciso II, alíneas "a" e "c", da Constituição, desde que supervenientemente aprovado pelo Poder Legislativo. 99
O mesmo entendimento foi reafirmado agora em 2012, tendo o
acórdão praticamente se limitado a transcrever os fundamentos adotados na ADIn 554.100
98 SILVA. Os servidores públicos e o direito do trabalho, 1993, p. 222-223. 99 ADI 554, Relator Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 15/2/2006, DJ 5/5/2006. 100 ARE 647436 AgR, Relator Min. AYRES BRITTO, 2ª. Turma, julgado em 3/4/2012, DJe de 26/4/2012.
101
A matéria já integra a jurisprudência sumulada do STF, conforme se
extrai da Súmula 679, ao dispor que “A fixação de vencimentos dos servidores públicos não
pode ser objeto de convenção coletiva”. O precedente, adotado há mais de vinte anos, quando
ainda não se tinha a compreensão da mudança paradigmática decorrente da opção
constitucional por um Estado Democrático de Direito e pelo reconhecimento dos direitos
coletivos dos funcionários, ainda hoje produz sérias e graves consequências nas relações de
trabalho na função pública. Isso porque o imaginário coletivo incorpora a ideia de que o STF
havia “revelado” a intenção do legislador, tornando definitiva e inquestionável a
impossibilidade de negociação coletiva dos funcionários públicos. Daí em diante os tribunais
limitaram-se à mera reprodução do julgamento proferido na ADIn 492-DF, rechaçando não
apenas o direito à negociação coletiva, mas também o direito de greve. Com essa orientação,
o STF desconheceu que os direitos não são estranhos à ação política nem às práticas
econômicas e terminou dificultando ou mesmo inviabilizando a luta dos funcionários para
conquistar mais e melhores direitos.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mesmo depois do
julgamento do MI 708/DF e do MI 712/PA, que admitiu a greve dos funcionários públicos,
prevalece o entendimento consagrado pelo STF, subsistindo o entendimento da
impossibilidade de negociação coletiva na função pública. Julgando dissídio de greve de
servidores públicos, o STJ adota como razões de decidir a tese de que termo de acordo
firmado com a Administração Pública não tem força vinculante, não gera direito adquirido
nem configura ato jurídico perfeito, haja vista a incidência dos princípios da separação e da
autonomia dos Poderes e da reserva legal, na forma do que dispõem os artigos 2º, 61,
parágrafo 1º, inciso II, alíneas a e c, e 165 CF. 101
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) consolidou seu entendimento
por meio da Orientação Jurisprudencial (OJ) nº 5 da Seção de Dissídios Coletivos (SDC), que
atualmente possui a seguinte redação: “Em face de pessoa jurídica de direito público que
mantenha empregados, cabe dissídio coletivo exclusivamente para apreciação de cláusulas de
natureza social. Inteligência da Convenção nº 151 da OIT, ratificada pelo Decreto Legislativo
nº 206/2010”. Mesmo sob o regime da CLT, o TST vinha sustentando a impossibilidade da
negociação coletiva no âmbito da Administração Pública direta. Recentemente aprimorou sua
101 Pet 7.884/DF, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, 1ª. Seção, julgado em 22/9/2010, DJe de 7/2/2011.
102
jurisprudência, seguindo as experiências contemporâneas de relações coletivas democráticas,
avançando no sentido de reconhecer a possibilidade de julgamento de cláusulas sociais em
dissídio coletivo em que figurem entes da Administração Pública direta. Reconhece agora que
a limitação se restringe à análise das cláusulas de natureza econômica, ou seja, que contêm
reivindicações referentes às vedações do artigo 169 CF, que no parágrafo 1º, I e II, condiciona
a concessão de qualquer vantagem ou aumento da remuneração do pessoal ativo ou inativo à
existência de prévia dotação orçamentária e de autorização específica na lei de diretrizes
orçamentárias.
A posição do TST baseia-se na ideia de que
Emerge do disposto no § 3º do art. 39 c/c com o art. 7º, XXVI, da CF, que não se reconhece, regra geral, à Administração Pública, a possibilidade de firmar convenção ou acordo coletivo de trabalho sobre verbas de cunho essencialmente econômico-financeiro, resguardada a negociação coletiva na área pública à seara eminentemente social (cláusulas sociais).
Nessa visão, “Ainda por imposição da Constituição Federal, compete
à lei, em sentido estrito, a fixação de limites do gasto com pessoal, sendo imprescindível a sua
previsão em lei orçamentária (art. 169) e sua iniciativa pelo Poder Executivo (art. 61, § 1º, II,
‘a’, CF)”. Concluiu então o TST que “o ente público encontra-se proibido de firmar
convenção coletiva sobre vantagens remuneratórias, já que não possui autonomia para dispor
sobre despesas, salvo se expressamente autorizado por lei e respeitados os limites nela
previstos.” 102
Portanto, a posição do STF, seguida por todos os tribunais brasileiros,
ainda hoje produz graves consequências sobre o modelo de relações coletivas de trabalho na
função pública. Essa orientação está arraigada na doutrina administrativista vigente nos
primórdios do Estado Moderno e fica a reboque das tendências atuais praticadas nas
democracias consolidadas. Preserva a organização de um sistema de função pública
exclusivamente unilateral, estatutário, sem considerar as complexas necessidades do Estado
contemporâneo, as múltiplas exigências de uma sociedade democrática e plural, a
multiplicidades de interesses a serem coordenados e as próprias peculiaridades do serviço
102 RR 161400-48.2006.5.02.0061, Relator Min. Mauricio Godinho Delgado, 3ª Turma, julgado em 29/8/2012,
DJ-e de 31/8/2012.
103
público. Ao agasalhar a concepção unilateral de função pública, mantém o modelo de regime
jurídico rígido e inflexível, estruturado a partir de concepções de há muito já superadas, não
compreendendo que as exigências de formas dialogais, concertadas, constituem uma
necessidade para a adequada organização da função administrativa, para a correta execução
dos serviços públicos e para a efetivação dos direitos coletivos dos funcionários, essenciais à
conformação de um Estado Democrático de Direito.
No Brasil, frequentemente, inúmeras greves eclodem, nos diversos
setores da Administração Pública, inclusive em atividades essenciais. E sem o canal de
negociação coletiva, constata-se cotidianamente negociações informais, procedimentos não
previstos legalmente, que são adotados pela Administração Pública brasileira para alcançar
acordos com as entidades sindicais que representam o conjunto dos funcionários públicos,
inclusive pondo fim a movimentos grevistas. A negociação de fato tem sido restrita ao âmbito
administrativo, visando à preparação dos termos de futuro ato normativo unilateral que
regulamentará direitos e deveres dos funcionários. Quando este ato se consubstancia em lei
formal, é encaminhado à apreciação do Parlamento. Nessa linha, acordos são frequentemente
subscritos, embora considerados como simples compromissos políticos, sem força de lei, mas
que têm servido de base para a confecção de futuros projetos de lei, que depois são remetidos
à apreciação do Congresso Nacional.
O certo é que, sem poder negociar e sem poder exercer o direito de
greve, os funcionários foram conduzidos a um sistema marginal e clandestino de relações
coletivas de trabalho. Logo, resulta evidente que o acórdão do STF dissocia-se inteiramente
da realidade, apresentando uma grave disfuncionalidade do modelo jurídico sustentado a
partir de um dever-ser que na prática não existe mais. Segue-se, então, que a decisão, além de
negar os conflitos existentes e ignorar os procedimentos informais adotados na prática, gera
uma séria disfuncionalidade no sistema jurídico, fazendo com que, ao lado da atividade
administrativa legalmente conduzida, seja praticada uma negociação através de
procedimentos não previstos. Isso faz surgir um sistema de negociação de fato, mas com a
predominância do sistema oficial de determinação unilateral das condições de trabalho dos
funcionários.
104
4.4 RECONHECIMENTO DO DIREITO DE GREVE DOS FUNCIONÁRIOS
PÚBLICOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SEUS EFEITOS EM
RELAÇÃO À NEGOCIAÇÃO COLETIVA
Recentemente o STF começa a sinalizar timidamente no sentido do
reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários públicos. De fato, em diversas
oportunidades considerou que o inciso VII do artigo 37 CF (“[...] o direito de greve será
exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”) encerraria norma de eficácia
limitada, entendendo que a exigência de lei complementar para o exercício do direito de greve
pelos funcionários públicos impediria a aplicação analógica da Lei nº 7.783/89, que trata da
greve dos trabalhadores em geral.103 No entanto, no ano de 2007, por ocasião do julgamento
do MI 708/DF e do MI 712/PA, com o objetivo de ser autorizado o exercício do direito de
greve, bem como de compelir o Congresso Nacional a regulamentar, dentro do prazo de trinta
dias, o inciso VII do artigo 37 CF, decidiu que, enquanto não suprida a lacuna legislativa,
deve ser aplicada a Lei nº 7.783/89, assegurando assim o exercício do direito de greve pelos
funcionários.
Com esse precedente, houve uma substancial mudança na
jurisprudência do STF, que, para muito além de constituir o Poder Legislativo em mora,
assegura desde logo o exercício do direito de greve pelos funcionários públicos. Não é
exagero afirmar que o precedente do STF tem a potencialidade de provocar uma
transformação paradigmática nas relações coletivas de trabalho na função púbica, sinalizando
na direção do reconhecimento pleno dos direitos coletivos, compreendendo aí a plena
liberdade sindical, a deflagração de conflitos coletivos e a negociação coletiva.104
Essa nova perspectiva, a partir da decisão do STF, decorre da
circunstância de as categorias “sindicato”, “greve” e “negociação” encontrarem-se em regime
103 Esta foi a decisão adotada pelo STF no MI 20-DF, figurando como relator o Ministro Celso de Mello, que
negou a auto-aplicabilidade da norma, ao fundamento de que “o preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público constitui norma de eficácia meramente limitada, [...] razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição.”
104 Uma análise completa dessa decisão do STF é realizada por SILVA. Greve no serviço público depois da
decisão do STF, 2008.
105
de complementaridade, haja vista que a face coletiva da liberdade sindical é a
autodeterminação, baseada no princípio da autonomia coletiva. Logo, tendo o STF
reconhecido o direito de greve, deriva daí como consequência necessária e imediata o direito à
negociação coletiva, pois o direito de greve é inconcebível e até absurdo sem a possibilidade
de negociar um acordo que possa pôr termo ao conflito. Ademais, a negociação, assim como a
greve, integra o conteúdo essencial da liberdade sindical, na medida em que impossível a
existência de sindicato de servidores na ausência da greve ou da negociação, pois se o direito
assegura a vida dos sindicatos é para que lutem pela realização de seus fins.
O precedente do STF, além de reconhecer o direito à greve, deve ser
entendido como uma ruptura do modelo de não negociação para um sistema de negociação
coletiva no serviço público. A nova perspectiva impõe o reconhecimento da negociação
coletiva como instrumento essencial para a definição das condições de trabalho no setor
público. Com esse novo modelo de função pública, passa-se de uma concepção unilateral,
estatutária, autoritária, a um modelo contratual, bilateral, consensual, em que as condições de
trabalho passam a ser fixadas prioritariamente através da negociação coletiva com a efetiva
participação dos sindicatos dos servidores públicos.
Nesse sentido, impõe-se reconhecer que no modelo democrático de
relações coletivas de trabalho não se trata de negociação meramente consultiva, pré-
legislativa, destinada à elaboração compartilhada de anteprojeto de lei, preservando a
discricionariedade do Poder Público. Conquanto admissível esse tipo de negociação para
certas matérias, é possível conceber a implementação de um modelo de negociação
vinculante, em que a Administração e os servidores alcançam o consenso visando à regulação
das condições de trabalho por meio de ato bilateral, formalizado através de contrato coletivo,
com eficácia jurídica plena, que passa a integrar a ordem jurídica independente da intervenção
superveniente do Parlamento. O contrato coletivo daí resultante deve ser dotado de efeitos
normativos e obrigacionais, que vinculem tanto a Administração como os servidores,
desfrutando de eficácia geral, com as características de imediatidade, imperatividade e
inderrogabilidade.
Com a nova orientação do STF, admitida a negociação coletiva,
observa-se que os direitos coletivos dos servidores têm seus limites configurados, sujeitando-
se a peculiaridades e especificidades. Necessário, portanto, a definição da estrutura negocial
106
básica, de modo que a negociação possa desenvolver-se dentro de marcos previamente
assentados. Deve então haver a institucionalização do processo negocial através da definição
de fases e procedimentos próprios, contemplando os tipos, sujeitos, matérias, procedimentos,
resultados, efeitos dos instrumentos e sistema de composição dos conflitos. Esta estruturação
deve-se adequar às peculiaridades e especificidades do serviço público, mas não pode
desvirtuar o conteúdo essencial da negociação coletiva. Nesse aspecto, mostra-se útil ao
aproveitamento pedagógico a experiência espanhola, que desde 1987 regulamentou e pratica a
negociação coletiva entre os funcionários e a Administração Pública.
107
5 INICIATIVAS TENDENTES À INSTITUCIONALIZAÇÃO NO BRASIL DA
NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA
Com a ratificação pelo Brasil da Convenção nº 151 da OIT,
reacenderam-se os debates em torno da urgente necessidade de adequação da legislação e
consequente institucionalização da negociação coletiva. Conquanto o direito à negociação
coletiva dos funcionários seja extraído de forma direta e imediata da CF, a existência de
legislação promocional desempenha papel fundamental para sua conformação e garantia de
sua eficácia. Nesse aspecto, é importante a existência de regulamentação que disponha sobre
solução de conflitos coletivos de trabalho na função pública, considerando as peculiaridades
inerentes à natureza e especificidades do serviço público, mas que deve considerar que a
negociação coletiva é categoria fundamental do Direito Coletivo do Trabalho e da própria
Teoria Geral do Direito, que deve ser preservada em seu conteúdo essencial, no qual se insere
a eficácia jurídica dos instrumentos dela resultantes. Objetivando regulamentar o modo de
tratamento dos conflitos coletivos na função pública, bem como questões a eles diretamente
relacionados, está em curso no Brasil amplo debate, já incorporado em propostas de
regulamentação. Nesse sentido, este capítulo enfoca as iniciativas tendentes à
institucionalização da negociação, examina brevemente algumas experiências brasileiras,
aborda o tratamento da matéria no âmbito do Governo Federal e analisa as principais
propostas em andamento de regulamentação.
5.1 RATIFICAÇÃO PELO BRASIL DA CONVENÇÃO Nº 151 DA OIT: EXIGÊNCIA
DE REGULAMENTAÇÃO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO
PÚBLICA
108
A Convenção nº 151 da OIT, conforme já analisado, é o documento
internacional mais importante sobre o direito de sindicalização e relações coletivas de
trabalho na Administração Pública. Aprovada em 1978, o tratado entrou em vigor no plano
internacional em 1981. O Brasil, embora tenha ratificado em 1992 a Convenção nº 154 de
1981, que trata do fomento à negociação coletiva, cujo instrumento também é aplicável à
Administração Pública, não havia ainda ratificado a Convenção nº 151, que assegura a
promoção e a defesa dos interesses dos trabalhadores na função pública. A falta de ratificação
da Convenção nº 151 deixava o país em posição bastante adversa na comunidade
internacional, tornando-o um dos poucos países democráticos que não havia ratificado o
documento e que não aplicava os princípios da convenção em sua legislação nem ajustava
suas práticas nacionais. A ratificação era de fundamental importância para a democratização
das relações de trabalho no setor público, impondo-se agora a necessidade de sua
regulamentação para assegurar e promover a negociação das condições de trabalho de
trabalho na função pública entre as organizações de trabalhadores e a Administração Pública.
A inércia do Brasil em relação à ratificação da Convenção n° 151 foi
rompida com sua aprovação em outubro de 2009 pelo Congresso Nacional. Depois de
aprovado o documento internacional pelo parlamento brasileiro, teve início o processo de sua
ratificação, o que ocorreu através do Decreto Legislativo nº 206, de 7 de abril de 2010. Na
ocasião, procedeu-se a ratificação, com ressalvas, dos textos da Convenção nº 151 e da
Recomendação nº 159, da OIT. As ressalvas dizem respeito ao sentido da expressão “pessoas
empregadas pelas autoridades públicas”, que abrange tanto os empregados concursados da
Administração Pública regidos pela CLT como os servidores públicos, das três esferas de
governo, regidos por legislação específica. A outra ressalva refere-se ao conceito de
“organização de trabalhadores”, que se limita às organizações sindicais, assim consideradas
aquelas constituídas na forma do artigo 8º CF. Com essa ratificação da Convenção nº 151,
renovam-se as expectativas em torno da democratização das relações coletivas de trabalho na
Administração Pública, obrigando assim a instituição dos princípios e procedimentos
contemplados naquele instrumento internacional, ensejando a adoção de uma legislação
promocional e a reformulação das práticas nacionais, com instituição de verdadeira
negociação coletiva entre os servidores e a Administração Pública.
109
Depois da ratificação da Convenção nº 151, sua regulamentação
deveria realizar-se no prazo de um ano, prorrogável pelo mesmo prazo, daí a necessidade de
adequação da legislação ter ocorrido até junho de 2012. Até agora, no entanto, não se
procedeu à regulamentação e hoje se constata a configuração de um impasse em relação às
tratativas tendentes à institucionalização da negociação coletiva. As posições quanto à
iniciativa, ao formato e ao conteúdo dessa regulamentação são as mais díspares e
contraditórias, seja no âmbito da Administração Pública, seja no âmbito das organizações
sindicais. À falta de regulamentação, continua o Brasil sem instrumentos e procedimentos de
solução dos conflitos coletivos no setor público, resultando em graves prejuízos aos
servidores, à Administração e à sociedade. Dada a ausência de legislação instituidora da
negociação coletiva, procede-se em seguida à análise das experiências de diálogo adotadas na
Administração Pública Federal, bem como das principais propostas em curso visando à sua
regulamentação.
5.2 CRIAÇÃO DA MESA NACIONAL DE NEGOCIAÇÃO PERMANENTE: O
DECRETO Nº 7.674/2012
As experiências brasileiras em torno da participação dos funcionários
públicos na determinação de suas condições de trabalho são fenômeno recente e ainda estão
em fase embrionária. No âmbito dos Estados e Municípios constatam-se a partir dos anos
oitenta alguns canais informais e incipientes de interlocução, marcados por diversas e
profundas contradições e dificuldades.105 Realizadas ainda sob os escombros do modelo
autoritário de Estado, as tratativas estavam muito distante da conformação de um modelo
democrático de relações coletivas de trabalho no serviço público. No âmbito nacional,
experiência relevante envolve a Mesa Nacional de Negociação do Sistema Único de Saúde
(SUS), criada pela Resolução nº 52, de 6 de maio de 1993, e pela Portaria nº 1.713, de 28 de
105 Uma visão histórica sobre as primeiras experiências de diálogo entre os servidores e a Administração Pública
está disponível em CRUZ. Saudações a quem tem coragem. Dez experiências de negociação sindical no
setor pública, 2001.
110
setembro de 1994, tendo por objetivo estabelecer um fórum permanente de diálogo entre o
Poder Público e os servidores vinculados ao SUS. No âmbito federal, essa prática tomou
forma e consistência com a instituição do Sistema de Negociação Permanente da
Administração Pública Federal, criado em 12 de junho de 2003, resultando, por força da
Portaria nº 1.132, de 21 de julho de 2003, fundada no artigo 27 do Decreto nº 4.638, de 21 de
março de 2003, na instalação da Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP).
Essa iniciativa objetivou fomentar o diálogo e instituir instrumentos
de composição de conflitos de trabalho na função pública, com atribuições restritas ao âmbito
do Poder Executivo Federal, composta pela Bancada do Governo e pela Bancada Sindical. Ao
lado de Mesa Nacional, constituiu também Mesas Setoriais e Comissões Temáticas, estas para
tratar de questões relacionadas à Política Sindical, Seguridade Social, Diretrizes de Planos de
Carreira e Política Salarial. Conquanto bastante abrangente a agenda estabelecida pela
MNNP, com possibilidade de discussão dos mais amplos e variados temas relacionados aos
direitos e deveres dos funcionários públicos e à melhoria da qualidade dos serviços públicos,
tem sido muito limitado o alcance prático de suas discussões e deliberações, o que se deve em
grande medida às restrições decorrentes da observância do princípio da reserva legal e da falta
de eficácia jurídica do resultado dos entendimentos aí celebrados. O certo é que, embora
pertinentes as críticas contra o desenvolvimento do processo negocial nesse âmbito, a
iniciativa proporcionou alguma abertura na tentativa de institucionalizar o diálogo entre os
funcionários públicos e o Estado.
Recentemente, como desdobramento das atividades realizadas no
âmbito da MNNP, por meio do Decreto nº 7.674, de 20 de janeiro de 2012, foi criado o
Subsistema de Relações de Trabalho no Serviço Público Federal, com a finalidade de
“organização do processo de diálogo com vistas ao tratamento dos conflitos nas relações de
trabalho no âmbito do Poder Executivo Federal”. O texto propositadamente evita o uso da
expressão “negociação coletiva”, referindo-se apenas à “negociação de termos e condições de
trabalho”, indicando como objetivo “a democratização das relações de trabalho e a busca da
solução dos conflitos por meio da redefinição das condições de trabalho”. O Subsistema
criado compreende o órgão central, representado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão (MPOG), órgãos setoriais, com a participação de departamentos ou outras unidades
nos Ministérios e nos órgãos da Presidência da República, e órgãos seccionais, representados
111
por departamentos ou outras unidades nas autarquias e fundações. Ao órgão central incumbe
fazer a interlocução com as entidades sindicais e associações representativas dos servidores,
participando os órgãos setoriais em relação às propostas para a solução dos conflitos em
relação ao seu âmbito de atuação.
De acordo com a regulamentação do Decreto nº 7.674/2012, ao
Subsistema de Relações de Trabalho no Serviço Público Federal compete principalmente
exercer a competência normativa em matéria de negociação de termos e condições de trabalho
e solução de conflitos; exercer a interlocução com os servidores públicos, por meio de
procedimentos de negociação de termos e condições de trabalho; propor a formulação de
políticas e diretrizes que garantam a democratização das relações de trabalho; propor medidas
para a solução, por meio do diálogo institucional, de conflitos surgidos em razão da fixação de
condições de trabalho, direitos e benefícios dos servidores públicos, mas sujeitas às diretrizes
da Presidência da República; articular a participar dos órgãos e entidades administrativas nos
procedimentos de diálogo surgidos em decorrência da fixação de condições de trabalho;
difundir e fomentar a democratização das relações de trabalho no setor público; e registrar, em
conjunto com as entidades, os consensos resultantes do processo negocial.
Conquanto do ponto de vista normativo a regulamentação vigente
possa sugerir uma participação ativa dos funcionários na determinação de suas condições de
trabalho, a prática revela que as tratativas são meramente formais e sem resultados concretos.
Essa circunstância é confirmada pela generalização e longa duração das greves. De fato, não
existe autêntica negociação, o diálogo não flui adequadamente, as reuniões são vazias, as
autoridades públicas limitam-se a invocar genericamente argumentos econômicos, não há
entendimento acerca da necessidade de revisão periódica do poder de compra dos salários
nem existe compreensão da valorização do funcionário como instrumento de aprimoramento
dos serviços públicos. Como consequência da falta de um sistema de negociação, a
Administração Pública apresenta sua proposta e tenta impor as condições de trabalho aos
funcionários. Aceita a proposta, encaminha o projeto de lei ao Congresso Nacional. Recusada
a proposta, envia mesmo assim, forçando os funcionários à deflagração das greves, que se
arrastam indefinidamente à falta de instrumento adequado de composição dos conflitos
coletivos. Por isso, torna-se urgente a institucionalização de um sistema democrático e efetivo
de negociação coletiva na função pública.
112
5.3 INICIATIVAS PARA REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO À NEGOCIAÇÃO
COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA
No âmbito legislativo, em nível nacional, algumas proposições de
emenda constitucional e de lei ordinária foram apresentadas com vistas à regulamentação do
direito à negociação coletiva dos funcionários públicos. Algumas propostas apenas
tangenciam a questão da negociação coletiva, centrando-se propriamente no regramento do
direito de greve, aspecto que se tornou central ultimamente em razão da generalização dos
conflitos coletivos no âmbito da Administração Pública. Em razão da diversidade de
propostas, não parece oportuno nem necessário analisá-las. Pretende-se abordar apenas
aquelas que foram formatadas a partir de amplo debate nacional, que contou com a
participação de diversas entidades sindicais nos grupos de trabalho, resultando a formulação
de propostas pelo MTE e pelo MPOG, que de algum modo sintetiza as discussões e sinaliza o
modelo de negociação coletiva em vias de implantação na dinâmica das relações entre os
servidores públicos e o Estado.
5.3.1 A proposta de regulamentação elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego
Embora o debate esteja apenas iniciando, com possibilidade de ampla
reformulação das propostas contidas nos projetos, parece adequado a análise, ainda que em
linhas gerais, da forma e do conteúdo das propostas em andamento. Existem intensas
divergências em relação à condução da questão, circunstância que vem gerando impasse em
torno do encaminhamento que está sendo dado. A divergência envolve desde a iniciativa para
propor a legislação, como também alcança o formato e o conteúdo da regulamentação. Essa
circunstância está clara na acirrada disputa entre o MPOG e o MTE, posto que, apesar dos
esforços de unificação dos grupos de estudo e das propostas, ambos elaboraram e
113
encaminharam separadamente propostas de regulamentação da matéria. Dada a relevância dos
debates e da perspectiva de um desfecho breve quanto à definição do modelo de negociação
coletiva para os funcionários públicos, passa-se então a examinar os aspectos gerais das
propostas, considerando-as como direito em expectativa que permite uma primeira
aproximação com o possível sistema de negociação coletiva a ser implantado no Brasil.
O projeto de lei elaborado no âmbito do MTE, aplicável nas três
esferas de governo, dispõe sobre a organização sindical no setor público, afastamento de
dirigentes sindicais, negociação coletiva, aplicação do direito de greve e sobre o custeio da
organização sindical. Esse projeto trata da solução dos conflitos, do direito de greve, da
liberação de dirigentes sindicais, submete a organização dos funcionários ao sistema
confederativo, ao princípio da unicidade sindical e à mesma forma de financiamento das
entidades sindicais dos trabalhadores do setor privado, instituindo contribuições compulsória
e facultativa. Por sua vez, a proposta do MPOG está materializada em três minutas de projetos
de lei, que compreende um texto de caráter geral, aplicável nos três níveis de governo, que
dispõe sobre a democratização das relações de trabalho, o tratamento dos conflitos e
estabelece as diretrizes básicas da negociação coletiva dos servidores públicos. Foram
elaborados ainda dois textos específicos para a União, sendo um para disciplinar de forma
minuciosa o afastamento de dirigentes sindicais e outro para disciplinar a negociação coletiva
e o funcionamento do Sistema Nacional de Negociação Permanente no âmbito do Poder
Executivo Federal.
A minuta de projeto elaborado pelo MTE trata da organização
sindical no setor público, nas três esferas de governo, adotando o sistema confederativo,
organizando os servidores por categorias, prevendo a unicidade sindical e criando o Conselho
Nacional de Relações de Trabalho do Setor Público. Dispõe também sobre o afastamento de
dirigentes sindicais dos cargos, empregos ou funções exercidas, assegura a estabilidade e a
inamovibilidade do dirigente sindical até um ano após o término do mandato e estabelece que
o ônus do afastamento do servidor para o desempenho de mandato classista é de
responsabilidade do órgão ou ente público ao qual está vinculado o servidor. Reconhece o
direito de greve dos servidores, competindo a estes decidir livremente sobre a oportunidade de
exercê-lo e sobre os interesses que devam, por meio dele, defender, estabelece que a greve
somente pode ser deflagrada após a frustração da negociação, prevê que a participação em
114
greve não poderá ser motivo para punição, dispõe que durante o período de greve não haverá
suspensão de salários, sendo a reposição das atividades paralisadas negociada ao final do
movimento grevista, veda a substituição de trabalhadores grevistas e confere à Justiça do
Trabalho a competência para decidir sobre a greve no âmbito da Administração Pública106.
Finalmente, regula o custeio da organização sindical, prevendo o financiamento compulsório
e facultativo, adotando regime similar ao dos trabalhadores do setor privado, instituindo a
mensalidade devida pelos filiados, a contribuição sindical obrigatória e a contribuição
assistencial dos servidores representados na negociação e a ser definida em assembleia geral.
Em relação ao sistema de negociação coletiva, a minuta do projeto de
lei do MTE dispõe que a Administração Pública deverá assegurar, como dever do Estado e
direitos dos servidores públicos, entre outros, o diálogo social e o fortalecimento das
negociações coletivas com as entidades sindicais, os mecanismos e procedimentos de
negociação, com observância de especificidades de órgãos e carreiras, prerrogativa de
instauração pelas partes da negociação coletiva e a negociação coletiva, ainda que desta não
resulte acordo. Prevê também que a negociação coletiva poderá ser provocada por qualquer
das partes, pode envolver questões gerais, específicas ou setoriais e deve-se realizar por meio
de sistema permanente mediante a observância dos princípios da boa-fé, reconhecimento das
partes e do respeito mútuo. Dispõe que são partes da negociação os representantes da
Administração Pública e as entidades sindicais representativas de determinada categoria
dotadas de personalidade sindical. A proposta assegura à entidade sindical o estabelecimento
da pauta de negociação, a ser aprovada pela assembleia geral, estabelece que a assinatura do
acordo coletivo depende de anuência de deliberação da assembleia geral da categoria e impõe
a participação dos sujeitos coletivos na negociação coletiva sempre que convocada pela outra
parte.
106 A previsão no projeto de manutenção do pagamento dos salários durante a greve ajusta-se à compreensão da
greve como direito fundamental dos trabalhadores. Isso porque a greve não é contrária ao direito, mas um direito à luta pelo direito, daí inexistir ilicitude na greve, mas o exercício regular de um direito, necessário e legítimo, reconhecido por todas as democracias. Nessa situação, o exercício regular do direito à greve não pode comprometer o mais básico de todos os direitos, que é o direito à própria sobrevivência. Assim, o seu exercício somente se torna real e efetivo quando assegurado o pagamento dos salários durante o período de paralisação. Logo, o projeto adequadamente prevê que o exercício do direito de greve não autoriza a supressão dos salários e a reposição das atividades será objeto de negociação ao final do movimento grevista.
115
A minuta produzida pelo MTE realça o princípio da boa-fé objetiva,
enumerando em caráter exemplificativo algumas condutas que devem ser observadas na
negociação coletiva, cuja violação configura prática antissindical. Incluem-se entre essas
condutas o dever de participar da negociação coletiva, de formular e responder as propostas e
contrapropostas, prestar informações, definidas de comum acordo, no prazo e com o
detalhamento necessário, de forma leal e com honestidade e preservar o sigilo das
informações recebidas com esse caráter. Ademais, considera como conduta de boa-fé objetiva
a de obter autorização da assembleia para propor negociação coletiva, celebrar acordo
coletivo de trabalho e provocar a atuação da justiça competente ou de mediação para solução
do conflito coletivo de interesses, bem como estabelece o dever de cumprir aquilo que foi
pactuado na mesa de negociação.
Estabelece ainda a proposta que compete à Administração Pública
adotar as medidas administrativas necessárias à efetivação do acordo e, tratando-se de
negociação sobre matérias sujeitas à deliberação do Parlamento, deve encaminhar, no prazo
máximo de trinta dias, as propostas normativas que disciplinem o acordado para a apreciação
do Poder Legislativo. De outra parte, os sindicatos devem promover o depósito do acordo
coletivo junto ao MTE para fins de registro e publicidade. O instrumento resultante da
negociação deverá conter a designação das partes, prazo de vigência, categorias de servidores
abrangidas, condições ajustadas para regular as relações individuais de trabalho durante sua
vigência e formas e prazos para encaminhamento pela Administração Pública de propostas
normativas que disciplinem o acordado para deliberação pelo Poder Legislativo. Por fim,
dispõe a minuta que, após assinado e depositado, o acordo derivado da negociação coletiva é
irrevogável e irretratável.
O texto produzido no âmbito do MTE possui avanços importantes,
como o estabelecimento do dever de negociar de boa-fé, com detalhamento de condutas
antissindicais, e ao prever a eficácia jurídica vinculante do acordado em relação à
Administração Pública, embora não avance ao ponto de estender essa mesma eficácia no
tocante ao Parlamento, o que parece até compreensível em razão da supremacia do poder de
legislar. Questão relevante diz respeito ao estabelecimento de negociação sindical, recusando
assim capacidade negocial a entes sem personalidade sindical, solução esta que guarda
conformidade com o sistema constitucional e evita a atomização da negociação coletiva.
116
Conquanto não trate propriamente da negociação coletiva, mas a ela afete diretamente, o
projeto apresenta graves equívocos, sobretudo por manter o sistema confederativo, a
unicidade sindical e a contribuição compulsória, o que impede a ratificação pelo Brasil da
Convenção nº 87 da OIT e afasta o seu sistema sindical de um modelo de plena liberdade
sindical, preservando assim os seus resquícios autoritários e impedindo a efetiva
democratização das relações coletivas de trabalho.
5.3.2 A proposta de regulamentação elaborada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão
A regulamentação dos direitos coletivos dos funcionários públicos
proposta pelo MPOG compreende três minutas de anteprojeto de lei, que corresponde a uma
minuta de caráter geral, abrangendo a União, Estados e Municípios, suas autarquias e
fundações públicas, e duas minutas específicas para a União, dispondo uma sobre afastamento
de dirigentes sindicais, e a outra tratando da negociação coletiva e do funcionamento do
Sistema Nacional de Negociação Permanente no âmbito do Poder Executivo Federal. Passa-se
então a analisar os aspectos gerais das três minutas, com enfoque para a questão da
negociação coletiva.
O anteprojeto de lei do MPOG dispõe sobre a democratização das
relações de trabalho, o tratamento dos conflitos e estabelece diretrizes da negociação coletiva
dos servidores públicos no âmbito da Administração Pública direta, autárquica ou fundacional
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. O texto considera
indissociáveis do processo de democratização das relações de trabalho na função pública as
categorias jurídicas liberdade sindical, negociação coletiva e greve. A proposta reforça esse
tripé do Direito Coletivo do Trabalho, estabelecendo que a liberdade e a autonomia sindical
no setor público pressupõem o direito à negociação coletiva, sobretudo como instrumento de
solução dos conflitos nas relações de trabalho. Nesse sentido, propõe a instituição da
117
negociação coletiva em âmbito permanente, que deve ser organizado em todos os poderes e
nas três esferas de governo. Esse sistema deve ser integrado por órgão moderador de
conflitos, com atribuições direcionadas à garantia da transparência nas negociações. Dispõe o
anteprojeto que a greve será exercida na forma da lei que a regulamenta, submetido o
exercício do direito ao juízo de proporcionalidade e razoabilidade.
A proposta regulamenta os direitos coletivos fundamentais dos
servidores púbicos, tratando sucessivamente da liberdade sindical, negociação coletiva e
greve. No tocante à livre associação sindical, após prever que esse direito é assegurado a
todos os servidores públicos, dispõe que o servidor não pode ser prejudicado, beneficiado,
isento de um dever ou privado de um direito em face do exercício do direito de liberdade
sindical. Ademais, com a finalidade de permitir o livre exercício da atividade sindical, o texto
contempla o afastamento do servidor para o exercício de mandato classista, observada a
proporcionalidade prevista na lei que regulamenta o regime jurídico dos servidores públicos.
A proposta também assegura às entidades sindicais a livre divulgação dos movimentos
grevistas e o direito à arrecadação de fundos de greve. Observa-se, no tocante à regulação da
liberdade sindical, o texto não impõe a obrigatoriedade de obtenção de registro sindical, não
estabelece base mínima, não define categoria profissional, não trata de financiamento
compulsório por meio da contribuição sindical e não adota o modelo confederativo de
organização sindical. Em certa medida, a proposta direciona-se para um sistema de maior
liberdade sindical, aproximando-se do modelo concebido pela Convenção nº 87 da OIT.
Em relação à greve, o anteprojeto de lei assegura esse direito, nos
termos e limites definidos pela lei, remetendo aos servidores públicos a decisão quanto à
oportunidade e aos interesses que devem defender por meio da greve. Depois de definir a
greve como a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, da prestação de
serviços ou atividades, o anteprojeto assegura aos grevistas o emprego de meios pacíficos
destinados a persuadir os trabalhadores a aderirem à greve, a arrecadação de fundos e a livre
divulgação do movimento. No período da greve deve ficar garantido o atendimento das
necessidades inadiáveis da comunidade. Vedada a greve às forças policiais armadas, o texto
contém significativo avanço no sentido de estabelecer que o exercício do direito de greve será
autorregulamentado pelas entidades sindicais e submetido ao acolhimento do Observatório
das Relações de Trabalho no Serviço Público. Além disso, ainda quanto à greve, a proposta
118
dispõe que as faltas ao trabalho dela decorrentes são objeto de negociação, prevendo-se plano
de compensação dos dias parados e/ou trabalho não realizado, implicando a falta de ajuste em
perda de remuneração no tocante aos dias parados. O texto traz algumas inconsistências, entre
as quais estão a vedação de greve aos policiais civis e o julgamento dos conflitos de greve
pela Justiça Comum.
O anteprojeto de lei, no que diz respeito à negociação coletiva,
considera-a processo de diálogo para tratamento dos conflitos de trabalho, com observância
dos princípios da boa-fé, reconhecimento das partes e respeito mútuo, que deve ser instituída
em caráter permanente, de forma a assegurar os princípios básicos da Administração Pública e
o da liberdade sindical. Prevê a organização de sistemas de negociação com o objetivo de
oferecer mecanismos eficazes ao tratamento dos conflitos, definir procedimentos para a
explicitação dos conflitos e firmar compromissos para compartilhamento entre as
representações de defesa do interesse público e da melhoria da qualidade dos serviços
públicos, atendidos os princípios da solidariedade e da cooperação. Pela proposta, entidade
não sindical pode participar da negociação, desde que representativa, não havendo, portanto,
necessidade de que o ente esteja registrado no MTE. Ademais, o texto também não contém
normas dispondo sobre deveres relacionados à boa-fé objetiva, embora se trate de princípio da
Teoria Geral do Direito, aplicável em todas as relações jurídicas, abrangendo certamente a
negociação coletiva.
A proposta estabelece que a negociação coletiva é exercida
exclusivamente através de Mesas de Negociação Permanente, a ser instituída no âmbito dos
três poderes e em todas as esferas de governo. Na atuação das Mesas deve ficar assegurado a
liberdade de pauta dos participantes, o direito à apresentação formal das reivindicações, o
estabelecimento de prazos e o acesso amplo e irrestrito a procedimentos de defesa de direitos,
interesses ou demandas. Na composição das Mesas estão os representantes da Administração
Pública e das entidades representativas da categoria interessada ou envolvida, sendo os
trabalhos acompanhados pelo Observatório das Relações de Trabalho no Serviço Público. Do
lado da representação dos servidores públicos, devem ser atendidos critérios para aferição da
representatividade sindical. Os acordos resultantes da negociação são formalizados e
publicados, devendo os respectivos instrumentos conter, no mínimo, a abrangência, a
aplicabilidade, os prazos e a vigência do conteúdo acordado. Os acordos firmados são
119
bilaterais, comprometendo as partes ao cumprimento das providências para sua efetivação e
ao zelo para sua manutenção. Dispõe também que cabe ao titular do respectivo Poder
homologar ou aditar as proposições apresentadas pelo sistema de negociação permanente. O
texto não estabelece prazo para encaminhamento do acordado na negociação.
O anteprojeto de lei do MPOG também institui os Observatórios das
Relações de Trabalho no Serviço Público, no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios. O Observatório é considerado órgão permanente e de
relevância pública, tendo como objetivo atuar como observador, instância consultiva e
mediadora nos eventuais conflitos advindos das Mesas de Negociação Coletiva, avaliar
projetos de autorregulamentação de greve com vistas ao seu acolhimento e desenvolver
estudos e pesquisas nas áreas das relações de trabalho no serviço público.
A proposta que dispõe sobre a negociação coletiva e o funcionamento
do Sistema Nacional de Negociação Permanente do Governo Federal regula exclusivamente
as relações coletivas de trabalho entre os servidores públicos e o Poder Executivo Federal,
tendo por objetivo a promoção de sua democratização e da busca da melhoria contínua dos
serviços públicos. Segundo o anteprojeto, o Sistema, composto de uma Mesa Nacional e de
Mesas Setoriais, pauta-se pelos princípios da legalidade, finalidade, indisponibilidade do
interesse público, moralidade, publicidade, transparência e liberdade sindical. Como
decorrência desses princípios, na forma que consta da proposta, os processos de diálogos
devem ser pautados por princípios fundamentais, a saber: boa-fé, reconhecimento das partes e
respeito mútuo; democracia por modelo e o diálogo por instrumento; respeito à pluralidade
de concepções políticas e ideológicas; liberdade de expressão inconteste e incondicional;
reconhecimento da liberdade sindical e associativa de modo amplo, geral e irrestrito, sendo
vedada ao Governo Federal a intervenção; reconhecimento da existência de interesses
coorporativos e dos conflitos decorrentes das relações de trabalho; liberdade de pauta dos atos
pertinentes aos servidores públicos; promoção do intercâmbio e a incorporação do
conhecimento sobre os servidores públicos; reconhecimento do direito de greve; e
participação dos usuários dos serviços públicos e da sociedade civil.
120
O anteprojeto do MPOG estabelece um rol de “preceitos
democráticos” que, junto com outros princípios e garantias fundamentais, devem ser
observados no processo de negociação coletiva, que estão assim relacionados: autonomia das
partes; ética e boa-fé; liberdade do exercício do mandato sindical para representação da
coletividade dos servidores públicos; legitimidade da representação sindical com respeito à
vontade soberana da maioria dos representados; e indisponibilidade do interesse púbico.
Segundo a proposta de constituição do Sistema Nacional de
Negociação Permanente do Governo Federal, a MNNP é formada por duas bancadas, sendo
uma governamental e a outra sindical, bem como pelo Observatório das Relações de Trabalho
na Administração Pública Federal. A Coordenação Executiva cabe à Secretaria de Recursos
Humanos do MPOG e cada bancada é coordenada por um representante eleito entre os seus
pares, sendo vedada qualquer interferência. A bancada governamental é composta pela
referida Secretaria de Recursos Humanos e pela representação dos órgão (s) e/ou ministério
(s), considerando a pertinência temática quanto ao objeto da negociação. Já a bancada sindical
é integrada por entidades representativas dos servidores públicos de âmbito geral, com
representação nacional e que reúnam o maior número de servidores do Poder Executivo
Federal. Junto ao Sistema, como órgão permanente e de relevância pública, atua também o
Observatório das Relações de Trabalho na Administração Pública Federal, para atuar como
observador, instância consultiva e moderadora nos eventuais conflitos oriundos das mesas de
negociação, analisar projeto de autorregulamentação de greve com vistas ao seu acolhimento
e desenvolver estudos e pesquisas na área das relações de trabalho no serviço público. O
Observatório tem composição plural de representantes da bancada sindical e do governo e por
membros da sociedade civil organizada.
A proposta, depois de definir a negociação coletiva como processo de
diálogo que se estabelece com vistas ao tratamento dos conflitos nas relações de trabalho,
indica os conteúdos possíveis de deliberação no âmbito da MNNP. Os conteúdos abrangem
condições de trabalho, política salarial, saúde, previdência, benefícios, direitos coletivos,
melhora do serviço público, plano de carreiras e necessidades funcionais coletivas. Como se
constata, o modelo de negociação coletiva proposto possui conteúdo bastante abrangente,
sugerindo a ideia de que toda e qualquer matéria pode ser objeto de apreciação pela Mesa, não
havendo, portanto, matérias em princípio excluídas da negociação. O anteprojeto contempla
121
os objetivos da Mesa, que incluem o tratamento dos conflitos decorrentes das relações de
trabalho, a definição de procedimentos para explicitação dos conflitos e o estabelecimento de
compromissos em que as representações compartilhem a defesa do interesse público e que
propiciem a melhoria dos serviços públicos, tendo como premissa os princípios da
solidariedade e da cooperação. Além disso, na negociação é assegurada a liberdade de pauta,
o direito à apresentação formal de reivindicações, a fixação prévia de prazos e o acesso amplo
e irrestrito a procedimentos de defesa de direitos, interesses ou demandas.
O anteprojeto busca também definir ritos e procedimentos da Mesa
Nacional, que inclui a apresentação de pauta conjunta de reivindicações e temas para debate,
observância em relação às reivindicações dos ritos orçamentários e prazos legais, deliberação
em trinta dias sobre as reivindicações, manutenção de arquivo com a definição das
reivindicações e o respectivo andamento e competência do Presidente da República para
homologar ou aditar proposições apresentadas pelo Sistema Nacional de Negociação
Permanente. A Mesa Nacional é composta também por Comissões Temáticas para elaboração
de estudos, insumos científicos e subsídios aos debates e negociações. As três Comissões
Temáticas compreendem Comissão de Saúde, Previdência e Benefícios do Servidor,
Comissão do Orçamento e Comissão de Diretrizes das Carreiras. Estas Comissões são
integradas por profissionais com conhecimento na área temática, indicados pelas respectivas
bancadas de governo e sindical e pelo Observatório das Relações de Trabalho. O anteprojeto
prevê ainda a promoção de intercâmbios e parcerias com governos, entidades sindicais e
associações de outros entes e âmbitos, inclusive internacional e/ou estrangeiro.
Em relação ao anteprojeto que trata do afastamento de dirigente
sindical, a proposta dá nova redação ao artigo 92 da Lei nº 8.112/90 e inclui os artigos 92-A,
92-B, 92-C, 92-D e 92-E. O texto trata de modo minucioso a respeito do afastamento de
servidores públicos para o exercício de mandado junto a entidades de classe ou fiscalizadoras
de exercício profissional, especificando o número de dirigentes liberados, considerando a
dimensão do número de cargos da categoria e o número total de associados nas bases das
entidades filiadas. Dispõe também sobre os requisitos para autorização do funcionamento,
seja em relação à entidade, que deve estar registrada no registro competente e ter por objetivo
a representação de servidores do Poder Executivo Federal ou a fiscalização profissional de
categorias do serviço público federal, seja no tocante ao servidor, que deve ser estável e ter
122
sido eleito e empossado no cargo de direção da entidade. Estabelece também que o servidor
afastado perceberá remuneração integral, não pode ser exonerado, continuará contribuindo
para o regime previdenciário do servidor público e o período de afastamento será considerado
de efetivo exercício.
Examinadas as principais propostas de regulamentação,
compreendidas como direito em expectativa, impõe-se reconhecer a relevância e a urgência
das propostas de regulamentação, sobretudo por decorrerem mais de vinte anos desde a
promulgação da CF, que reconheceu os direitos coletivos dos funcionários públicos. No
entanto, apesar do amplo debate em torno da matéria, constata-se a configuração de um
impasse, impedindo assim a evolução nas tratativas no tocante à institucionalização da
negociação coletiva. Com o impasse, os trabalhadores ficam privados de instrumentos e
procedimentos para canalização de suas reivindicações, o governo brasileiro fica sujeito a
sanções da comunidade internacional por falta de adequação da legislação e de suas práticas à
Convenção nº 151 e fica prejudicada também a sociedade pela falta de meios para solucionar
as greves que se generalizam e se arrastam indefinidamente, com potencialidade de causar
danos aos serviços públicos, inclusive nas atividades essenciais. Dada a experiência já
consolidada na Espanha, mostra-se adequado conhecer e refletir sobre o processo
desenvolvido naquele país que culminou com a institucionalização e regulamentação da
efetiva participação dos servidores na determinação de suas condições de trabalho. Este será o
objeto da terceira parte desta investigação.
123
PARTE III
SISTEMA ESPANHOL DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA:
EFICÁCIA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS
124
6 FUNÇÃO PÚBLICA E NEGOCIAÇÃO COLETIVA: TENDÊNCIA À
HOMOGENEIZAÇÃO DOS REGIMES JURÍDICOS LABORAL E
FUNCIONARIAL
Nesta parte da investigação são aportados alguns parâmetros acerca da
conformação da função pública na Espanha, a partir de uma perspectiva constitucional e legal,
buscando traçar as linhas evolutivas de distinção e aproximação dos regimes de trabalho
público e privado. Para tanto, faz-se necessário um breve escorço histórico sobre sua
normatização, apontando os principais instrumentos que regularam a matéria. Importante
também examinar o modelo de função pública que emergiu da Constituição de 1978, cuja
compreensão passa pela análise de alguns pronunciamentos específicos do Tribunal
Constitucional. O objetivo é demonstrar a necessidade de revisão das bases jurisprudenciais
sobre a temática, indicando alguns elementos que contribuam para a mudança do paradigma
hermenêutico, de modo que se conceba um novo modelo de função pública, capaz de ajustar-
se e corresponder às novas exigências históricas, à luz dos novos princípios e valores
consagrados na Constituição de 1978.
Identificadas as bases constitucionais da nova função pública, será
verificado de que forma a evolução legislativa está caminhando no sentido do progressivo e
inevitável processo de aproximação entre os regimes jurídicos laboral e funcionarial. A
análise será feita considerando o impacto provocado pelas Leis nºs 30/1984 (Medidas para la
Reforma de la Función Pública), 11/1985 (Libertad Sindical), 9/1987 (Órganos de
Representación, Determinación de las Condiciones de Trabajo y Participación del Personal al
Servicio de las Administraciones Públicas), 7/1990 (Negociación Colectiva y Participación en
la Determinación de las Condiciones de Trabajo de los Empleados Públicos) e 7/2007
(Estatuto Básico del Empleado Público). Na parte reservada ao estudo específico da
negociação coletiva, retomam-se os estudos desses marcos normativos, identificando a
contribuição deles para a construção do modelo atual de relações coletivas de trabalho na
função pública. Na parte final, examinam-se os efeitos da introdução da negociação coletiva
sobre o modelo de função pública e especialmente sua virtualidade e eficácia no sentido da
assimilação dos regimes laboral e funcionarial.
125
O estudo do sistema adotado na Espanha constitui paradigma
importante para a compreensão dos problemas e dificuldades para incorporação da prática
da negociação coletiva na função pública no Brasil. Conforme se verá adiante, naquele país
igualmente foram opostos óbices normativos, doutrinários e jurisprudenciais ao
reconhecimento do direito de negociação coletiva, tendo o TC rechaçado essa
possibilidade, mas progressivamente fez evoluir sua jurisprudência, embora ainda com
algumas limitações, no sentido do reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários,
incluído o direito à negociação. Em face da semelhança dos contornos jurídicos conferidos
ao tema entre os dois países, mostra-se relevante e pertinente a abordagem. A análise dos
dois sistemas não envolve propriamente um estudo de direito comparado, na medida em
que almeja tão-somente realçar seus pontos de aproximação e de divergência, verificando
tanto a evolução dos debates como a possibilidade de aproveitamento pedagógico do
desenvolvimento observado no modelo espanhol.
6.1 MARCOS NORMATIVOS HISTÓRICOS. SUPERAÇÃO PROGRESSIVA DA
UNILATERALIDADE
Assim como no Brasil, a Espanha demorou a reconhecer o direito de
negociação coletiva dos funcionários. Essa recusa inicial deu-se em grande medida à
concepção não contratual de função pública. Essa base teórica remonta às iniciativas de
fixação das bases do serviço público. O modelo espanhol, tal como o modelo brasileiro, foi
fortemente influenciado pela experiência histórica francesa, que estabeleceu os primeiros
contornos desse regime. Na França, deve-se a Napoleão a ideia de criação de um conjunto de
órgãos permanentes e hierarquizados, dotados de estatutos singulares, seguindo o exemplo das
carreiras militares. Em torno desse modelo construiu-se um direito próprio, com um conjunto
de princípios e garantias para os funcionários, configurando-a como relação não contratual,
estatutária, suscetível de ser modificada unilateralmente pela Administração Pública, com o
126
pressuposto de que os direitos e obrigações dos funcionários são fixados em função das
necessidades do serviço.107
Visão retrospectiva conduz à conclusão de que o sistema espanhol de
função pública vem evoluindo de um modelo fechado para um modelo aberto, que a doutrina
tradicional denomina privatización, laboralización ou despublificación.108
No entanto,
conforme se verá adiante, essa transição ainda não se aperfeiçoou, na medida em que o atual
regime oferece severas limitações à configuração de um modelo contratual, especialmente
quanto à efetiva participação dos funcionários na determinação de suas condições de trabalho.
O modelo em vigor é fruto de uma longa evolução histórica, conformada pelas opções
políticas vitoriosas em cada momento concreto. Essa evolução tem início na metade do
Século XIX e chega até a recente Lei nº 7/2007, que “tiene por objeto establecer las bases del
régimen estatutario de los funcionarios públicos incluidos en su ámbito de aplicación”.
O primeiro instrumento legal a dispor sobre a matéria, que teve a
virtude de promover a passagem de uma concepção de funcionário do absolutismo para o
funcionário liberal, foi o Real Decreto de 17 de fevereiro de 1827 (Estatuto de López
Ballesteros). Esse documento foi sucedido pelo Estatuto de Bravo Murillo, de 18 de julho de
1852, que buscou sistematizar em um conjunto normativo o regime jurídico dos funcionários
públicos. Dele resultou a conformação de um modelo distinto de regulação das condições de
trabalho dos funcionários públicos em relação aos demais trabalhadores privados. Com o Real
Decreto de 4 de março de 1866, é aprovado o Regulamento Orgânico das Carreiras Civis da
Administração Pública (Estatuto de O’Donnell), que promoveu mudanças pontuais e na
essência seguiu os aspectos gerais definidos no Estatuto de Bravo Murillo. O Real Decreto de
7 de setembro de 1918, aprovou a Ley de Bases de los Funcionarios del Estado, de 22 de
julho (Estatuto de Maura). Estavam então consagrados “los elementos cardinales de un
sistema de función pública”, que, segundo a doutrina tradicional, teve a vantagem de
assegurar hierarquia, disciplina, imparcialidade, objetividade e especialização de funções.109
107 Uma visão histórica da evolução do regime jurídico de função pública na Espanha encontra-se em PARADA
VÁZQUEZ. Derecho Administrativo II. Organización y empleo público, 2005, p. 437-471; PALOMAR OLMEDA. Derecho de la función pública. Régimen jurídico de los funcionarios públicos, 2003, p. 161-222; ARENILLA SÁEZ. La negociación colectiva de los funcionarios, 1993, p. 121-124.
108 PARADA VÁZQUEZ. Derecho Administrativo II. Organización y empleo pública, 2005, p. 467. 109 PARADA VÁZQUEZ. Derecho Administrativo II. Organización y empleo público, 2005, p. 467-468.
127
Com o novo perfil social e econômico do Estado, decorrente da
assunção de novos e variados serviços antes entregues à iniciativa privada, tornou-se urgente
na Espanha a necessidade de reformulação da Administração Pública. Com o Decreto 315, de
7 de fevereiro de 1964, que aprova a Ley articulada de Funcionarios Civiles del Estado,
criou-se um regime próprio para a função pública, distinto do regime jurídico aplicável aos
demais trabalhadores, dispondo expressamente que a relação jurídica sujeitava-se ao Direito
Administrativo. Este instrumento normativo, ao tempo em que consagrou a concepção não
contratual, desde já sinalizou no sentido do abandono da concepção clássica, iniciando seu
processo de “desvirtualización”.110
Na Espanha, a descaracterização do modelo tradicional pode ser
constatada em vários aspectos, mas para o objeto desta análise destaca-se o rompimento da
exclusividade do sistema de função pública. Assim, reconhece-se a possibilidade de
coexistência do regime jurídico público com outras formas de vinculação de pessoal com a
Administração, surgindo em consequência os funcionários eventuais ou de confiança política,
os contratados sob o regime de Direito Administrativo e os sujeitos ao regime laboral. Essa
regulação implica uma nova conformação da função pública, na medida em que admite a
coexistência de dois regimes jurídicos distintos, a saber, um de Direito Público e outro de
Direito Privado, mas para a disciplina da mesma prestação de serviços à Administração
Pública, demonstrando assim que as diferenças entre os dois modelos não estão na forma de
execução do trabalho, mas no plano meramente normativo. A coexistência dos dois modelos
permitirá a aproximação dos dois regimes jurídicos, inclusive em relação ao reconhecimento
dos direitos coletivos dos funcionários e à participação destes na elaboração das normas que
regularão as condições de trabalho.
No tocante à negociação coletiva dos funcionários públicos, o estudo
das relações coletivas de trabalho na Espanha mostra interessante processo em que, no lapso
de apenas uma década após o final da ditadura de Franco, evolui-se do modelo unilateralista e
autoritário para frutífero esforço de democratização e participação na fixação das normas na
função pública. No Brasil, no entanto, essa evolução tem sido extremamente lenta e penosa,
110 PARADA VÁZQUEZ. Derecho Administrativo II. Organización y empleo público, 2005, p. 447-448
128
haja vista que, decorridos mais de vinte anos da promulgação da Constituição Federal de
1988, ainda subsiste o modelo autoritário de função pública, continuando os funcionários sem
o direito à participação na determinação de suas condições de trabalho.
Na Espanha, no começo do século XX, podem ser constatados alguns
canais, bastante frágeis, de interlocução entre a Administração e os funcionários, instituídos
por decretos reais que previam procedimentos de informação, coleta de propostas e realização
de consultas como antecedentes da fixação de regras relativas à função pública. Entre a
proclamação do regime republicano e a vitória das forças franquistas houve efêmero
incremento da participação de representantes eleitos pelos funcionários em órgãos instituídos
com essa finalidade, a maioria dos quais seria suspensa ou dissolvida com a derrota dos
republicanos. A proibição de se formarem sindicatos de funcionários públicos foi imposta por
decreto de janeiro de 1936 e, durante a longa ditadura de Franco, esta vedação foi mantida,
sendo que, ainda no ano de 1971, a Lei Sindical reafirmava a restrição à liberdade sindical dos
trabalhadores da Administração Pública. “En los últimos años de la época franquista, no solo
no podía apreciarse una mínima manifestación de libertad sindical, sino que en lo que a los
funcionarios se refiere, por no existir, no exístia ni la posibilidad de sindicarse en el particular
sistema sindical entonces vigente”.111
Em 1976, foi regulamentada a associação profissional dos
funcionários civis do Estado e a participação destes nos órgãos de regulação e gestão de
pessoal, o que se fez através dos Reais Decretos nº 1839/1976 e 3006/1976. “Las regulacionas
contenidas en las normas estaban muy lejos de identificar una situación de libertad sindical, y
en general, de reconocimiento de los derechos colectivos de los funcionarios”.112 Essas
normas não alcançaram eficácia, uma vez que, por seu caráter de tutela do Estado sobre as
organizações representativas dos funcionários, foram por estes rechaçadas, reclamando-se o
reconhecimento de autêntica liberdade sindical.
Por sua vez, já no ano de 1977, o Decreto Real 1522, de 17 de junho,
estabeleceu normas sobre o exercício da atividade sindical na função pública. Entre outros
111 GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 53. 112 GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 56.
129
aspectos, dispôs que as organizações sindicais poderiam participar na determinação de suas
condições de trabalho por meio de procedimentos de consulta e colaboração. “La
característica más importante de esta nueva regulación estriba en el acercamiento del régimen
jurídico del derecho de asociación sindical de los empleados públicos a la normativa del
sector privado”.113 Porém, por ausência da regulação dos procedimentos que instituiu,
manteve-se inacessível para os funcionários a sua efetivação. No ano seguinte foi promulgada
a nova Constituição, que provocou profundas modificações no tratamento da matéria ao
proclamar os direitos coletivos dos funcionários públicos.
O breve escorço histórico até aqui realizado indica desde já que na
Espanha paulatinamente o sistema de função pública há muito vem abandonando o parâmetro
clássico baseado na natureza unilateral, estatutária e não contratual. Desse modo, cumpre
verificar o impacto sobre a matéria provocado pelo advento da Constituição de 1978 e de que
forma a jurisprudência vinculou-se àqueles padrões que davam sinais de esgotamento. Essa
análise demonstrará que na Espanha, do mesmo modo que viria depois a ocorrer no Brasil,
prevaleceu a força da tradição jurídica e a prática da interpretação retrospectiva, com a
reafirmação pelos tribunais dos dois países de velhos padrões que a instituição de um Estado
Democrático de Direito, tanto no Brasil, como na Espanha, pretendeu superar. A abordagem
será realizada no tópico subsequente, cujos estudos indicarão de que forma as primeiras
interpretações constitucionais levadas a efeito pelo TC e pelo STF no Brasil aproximam-se e
conduzem à concepção unilateral de função pública e à restrição do exercício dos direitos
coletivos pelos funcionários públicos.
6.2 JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL: INTERPRETAÇÃO ORIENTADA
PELA UNILATERALIDADE
113 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 90.
130
O estudo do modelo de função pública contemporâneo envolve
necessariamente a análise do sistema concebido pela Constituição da Espanha de 1978.
Predomina o entendimento de que o constituinte originário optou por determinado regime de
função pública. Essa visão decorre de uma interpretação isolada do artigo 103.3 CE quando
este se refere ao estatuto dos funcionários públicos, supondo assim que as normas que
regulam as condições de trabalho devem estar definidas de forma unilateral pelos poderes
públicos, sem admitir qualquer participação do conjunto dos funcionários. Dessa interpretação
resulta uma concepção tradicional de função pública, considerando-a verdadeira instituição,
dotada de certas características essenciais, não sujeitas à conformação do legislador ordinário
e impermeáveis à negociação coletiva. Desse modo, reconhecida a existência de um núcleo
básico e essencial, há o acolhimento de um modelo único de função pública. Nesse modelo
não existe espaço para a participação dos funcionários na definição de suas condições de
trabalho e estaria comprometido o exercício dos seus direitos coletivos.
O objeto da investigação aqui é verificar se o constituinte originário
espanhol definiu um único modelo de função pública ou se houve abertura para a construção
flexível de um regime jurídico aplicável aos funcionários que pudesse variar no tempo,
ajustando-se às circunstâncias históricas determinadas pela correlação das forças políticas e
pelas exigências de cada momento concreto. Desconsiderando outros princípios e valores
consagrados constitucionalmente, a jurisprudência tem invocado de forma isolada o artigo
103.3, que estabelece que “la ley regulará el estatuto de los funcionarios públicos”,
concluindo que a expressa referência ao termo “estatuto” indica uma clara opção
constitucional pelo regime estatutário, unilateral, não contratual. E este pressuposto servirá de
fundamento para vincular o regime dos funcionários à visão clássica de função pública. Nesse
aspecto, chama atenção a lógica semelhante adotada pelo STF no julgamento da ADIn 492-
DF. Dez anos após a decisão do TC, o STF invoca os mesmos fundamentos para negar o
direito de negociação, sustentando que o vínculo jurídico é de direito público, de regência
unilateral e consolidada em um estatuto, o que afasta a equiparação entre os trabalhadores
público e privado e assim impossibilita que os servidores interferiram nos rumos da relação de
trabalho que mantém com o Estado.
Na Espanha, preso a essa concepção clássica, considerando
isoladamente as bases fixadas pelo artigo 103.3 CE e decidindo em conflito de competência
131
que envolve a competência do Estado para definir as bases do regime jurídico dos
funcionários públicos e por consequência a obrigação da Comunidade Autônoma submeter-se
a esse regime, o TC adota como ponto de partida para sua argumentação a existência na
Constituição de 1978 de uma relação estatutária que vincula o funcionário à Administração
Pública. Na ocasião, o TC acolheu a concepção clássica ao consagrar na Sentença do Tribunal
Constitucional (STC) nº 57/1982, de 27 de julho, que uma das características da relação de
função pública é sua natureza estatutária, estando definida inteira e unilateralmente por textos
legais e regulamentares, com as seguintes consequências:
1) poder ser modificado el estatuto funcionarial todo momento, sin que, por tanto, tengan los funcionarios públicos derecho alguno adquirido al mantenimiento de aquél; 2) estar la situación de los funcionarios fijada de manera general e impersonal por los textos, y carecer, pues, de valor un convenio que se celebrara entre la Administración y sus funcionarios; y 3) ser el acto de nombramiento, que determina la incorporación a la relación de servicios (sin perjuicio de la posibilidad de no aceptación por el funcionario), un acto de autoridad, no contractual.
Interessante observar que o STF, ao decidir a ADIn 492-DF,
praticamente adota as mesmas razões de decidir, resultando claro que os dois tribunais partem
das mesmas bases teóricas, sujeitam-se à mesma lógica e chegam à conclusão idêntica quanto
à recusa ao reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários públicos.
Esse mesmo entendimento foi reafirmado na STC 99/1987, de 11 de
junho, ao decidir o TC sobre algumas normas da Lei nº 30/1984 (LMRFP- Lei de Medidas de
Reforma da Função Pública). Interpretou o Alto Tribunal que a Constituição de 1978 elegeu
claramente o regime estatutário, compreendendo-o explicitamente como sujeito aos contornos
conferidos pelo modelo unilateral, expressando que optou “la Constitución por un régimen
estatutario, con carácter general, para los servidores públicos (artigos 103.3 y 149.1.18).” O
sentido e conteúdo do regime jurídico são definidos de forma categórica pelo TC a partir da
concepção clássica de função pública, compreendendo que
el funcionario que ingresa al servicio de la Administración Pública se coloca en una situación objetiva, definida legal y reglamentariamente y, por ello, modificable por uno u otro instrumento normativo de acuerdo con los principios de reserva de ley y de legalidad, sin que, consecuentemente,
132
pueda exigir que la situación estatutaria quede congelada en los términos en que se hallaba regulada al tiempo de su ingreso, o que se mantenga la situación administrativa que se está disfrutando o bien, en fin, que el derecho a pensión, causado por el funcionario, no pueda ser incompatibilizado por ley, en orden a su disfrute por sus beneficiarios, en atención a razonables y justificadas circunstancias, porque ello se integra en las determinaciones unilaterales lícitas del legislador, al margen de la voluntad de quien entra al servicio de la Administración, quien, al hacerlo, acepta el régimen que configura la relación estatutaria funcionarial.
Essa conclusão a que chegou o TC é reflexo de uma leitura apressada,
estanque, do artigo 103.3, que conduz inevitavelmente à ideia da existência de uma
supremacia especial na função pública, contida num estatuto inteiramente peculiar, baseado
na concepção clássica. Esta leitura desconhece a experiência histórica e desconsidera que a
visão tradicional “estaba decididamente influida por el principio de obediencia, el ejercicio de
la autoridad y el pleno sometimiento político a la idea del Estado, contemplado este desde una
perspectiva autoritaria”.114 Na realidade, essa posição do TC desconhece os diversos
elementos contidos no texto constitucional que, não apenas buscou construir uma nova
Administração Pública, mas igualmente objetivou configurar um novo tipo de Estado.
Portanto, a correção dessa perspectiva somente se torna possível considerando o novo
desenho constitucional inaugurado na Espanha a partir de 1978. No mesmo sentido, faltou
também ao STF, no julgamento paradigmático referido, a compreensão da ruptura com os
padrões constitucionais anteriores e o surgimento de um novo modelo de Estado e de
Administração Pública determinado pela Constituição Federal de 1988.
6.3 SISTEMA CONSTITUCIONAL: CONFORMAÇÃO INTERPRETATIVA DA
CONTRATUALIDADE
Na Espanha, assim como deveria ter ocorrido no Brasil, a
interpretação do sistema constitucional haveria de se realizar no sentido e em conformidade
114 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 44.
133
com o novo modelo de Estado e de função pública que a nova ordem constitucional buscou
concretizar. Essa é uma decorrência da mudança absoluta e transcendental operada sobre a
tradição constitucional, na medida em que “la Constitución ha operado em nuestro sistema
normativo y judicial una verdadera revolución jurídica de uma extraordinária
significación”.115 Isso porque, no novo desenho constitucional, a função pública não pode ser
compreendida segundo o paradigma anterior, na medida em que “Este régimen de prestación
de servicios no há podido quedar al margen de las modificaciones operadas por la norma
fundamental”.116 Importa compreendê-la a partir dos novos parâmetros fixados pela
Constituição de 1978, ao estabelecer que o regime jurídico dos funcionários está orientado
pela consagração constitucional de um Estado Social e Democrático de Direito (artigo 1º) e
pelo reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários (artigos 28 e 37).
Na Espanha, definido o Estado como “social y democrático de
direito”, observa Luis Ortega que “Ello arrastra consigo toda la serie de contenidos insertos en
conceptos, tales como “Estado social”, “Estado democrático” y “Estado de Derecho”,
contenido que, a su vez, deben ser interpretados en función del concepto integrador que
resulta de su enunciación conjunta.”117 Uma das consequências dessa interpretação
integradora radica no exercício equilibrado entre poder e direitos e liberdades, de tal sorte que
“el Estado exista y actúe sin necessidad de lesionar o menoscabar estas garantias y derechos”
e assim “la Administratición se presente ante la sociedad como una organización que tienda a
integrar en su actuación las voluntades plurales y participativas de los ciudadanos”118.
Portanto, resulta incompatível com esse modelo de Estado a ideia de regulação autoritária da
função pública.
Ademais, na Espanha, ao buscar a edificação de um Estado Social e
Democrático de Direito, a ordem constitucional espanhola atribui ampla margem de
discricionariedade para que cada vertente política ao assumir o poder possa desenvolver um
programa amplo e variado, segundo as múltiplas possibilidades e de acordo com os marcos
definidos constitucionalmente. Isso significa que não há um modelo determinado e exclusivo
de função pública, daí por que ele pode ser conformado segundo a opção política vitoriosa em 115 GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ RODRÍGUEZ. Curso de Derecho Administrativo I, 2005, p. 113. 116 GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 42. 117 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 44. 118 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 45.
134
cada momento concreto. Semelhante fenômeno se dá em relação ao Brasil, porquanto a
construção de um Estado Democrático de Direito deve ser compreendida como uma obra
coletiva e sujeita a diversas possibilidades, que se ajusta à evolução da vida social e política,
compatibiliza a lei com a autonomia coletiva e instrumentaliza mecanismos de participação
ativa dos funcionários nos rumos da Administração, permitindo a oxigenação dessa através
das idéias, informações e pretensões entre ela e o seu corpo funcional.119
De fato, não tem sentido a adoção de um determinado e invariável
modelo, incapaz de ser conformado pelo legislador ordinário, segundo as opções políticas da
sociedade e em consonância com as novas exigências históricas.120 Pode-se então concluir que
não há no texto constitucional espanhol, assim como também não existe no texto
constitucional brasileiro, sequer a preferência por um determinado regime jurídico aplicável
aos funcionários, muito menos opção prévia pelo modelo clássico. Inexistindo um modelo
imutável de função pública, cabe ao legislador fazer sua conformação, sujeitando-se às bases
jurídicas fixadas constitucionalmente.121 Na realidade, a Constituição limita-se a referir à
existência de um estatuto sujeito ao princípio da reserva da lei, conferindo assim abertura ao
legislador ordinário para, atendendo às circunstâncias históricas, fixar através de normas
legais seu conteúdo concreto. Exatamente por isso
el texto constitucional no hace alusión a todas las materias que han de constituir ese estatuto y, ni muchísimo menos, al sentido en el que an de venir reguladas cada una de las instituciones básicas que lo compongan, lo cual permitirá eventualmente un importante grado de acercamiento hacia el Derecho laboral.122
Outro aspecto a considerar é que o TC, nas Sentenças do Tribunal
Constitucional (SSTC) nº 57/1982 e 99/1987, ao definir o regime jurídico dos funcionários
como estatutário e unilateral, optando pelo modelo clássico de função pública, fê-lo numa
interpretação retrospectiva, considerando os velhos paradigmas doutrinários e
jurisprudenciais, procedimento este semelhante àquele adotado pelo STF no julgamento da
ADIn 492-DF. Decidindo assim, o TC trilha o caminho do artigo 103.3, ao estabelecer que
119
DEMARI. Negociação coletiva no serviço público, 2007, p. 95. 120
CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 263. 121 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001 p. 270. 122 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 273.
135
“La ley regulará el estatuto de los funcionarios públicos...”, compreendeu a função pública
como uma garantia institucional. Esse entendimento estaria vinculado à convicção de que a
mesma é concebida
como institución de Derecho público que debe preservarse en sus rasgos fundamentales (profesionalidad, regulación mediante normas generales, jerarquización, etc), de tal manera que permita reconocer su esencia y su status. Esta garantía se traduciría en la existencia de unos contenidos materiales que sería necesario mantener para preservar la Función Pública según la opción constitucional por el régimen estatutario al que ha hecho referencia el Tribunal Constitucional.123
Na Espanha, assim como no Brasil, parte da doutrina compreende a
função pública como autêntica instituição dotada de especial garantia. O termo traduz a ideia
de assegurar a permanência da instituição, impedindo eventual supressão ou
descaracterização, com o objetivo de preservar o mínimo de substantividade ou
essencialidade, que compreende precisamente o núcleo que não deve ser atingido nem
violado, o que se ocorresse implicaria o desaparecimento ou esfacelamento da instituição que
goza de proteção constitucional.124 A garantia institucional, portanto, tem a finalidade de
resguardar seu mínimo intangível, sua essência, de sorte a evitar sua modificação, erosão,
desnaturação ou esvaziamento, o que corresponderia mesmo à sua destruição completa e
existencial.
Ocorre que, ainda que se reconheça a existência dessas garantias
institucionais, não parece legítimo invocá-las em caráter absoluto, com total supremacia, a
pretexto de justificação de razões de Estado. Concluir diferentemente é admitir a precedência
das garantias institucionais sobre os demais direitos e garantias fundamentais. No ponto
específico, sob o argumento de tutela da função pública, é possível o sacrifício dos direitos
coletivos dos funcionários publicos, favorecendo-se a supremacia abusiva do Estado. O valor
e o sentido que lhes são atribuídos sujeitam-se a variações temporais, de modo a conformar-se
com as determinações históricas de cada momento concreto. Parece claro que deve variar no
tempo o grau, a extensão e a profundidade da segurança que é proporcionada. Ademais, não
123 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 274-
275. 124 Teoria constitucional das garantias institucionais foi sistematizada por BONAVIDES. Curso de Direito
Constitucional, 2000, p. 491-500.
136
se pode entender a função pública nos termos e sob os condicionamentos fixados por antigas
concepções de Estado. O perfil autoritário que envolve o modelo clássico, com inspiração
política e filosófica já inteiramente superada, não pode subsistir num cenário em que a nova
ordem constitucional desloca o eixo do poder, transferindo-o do Estado para a sociedade, com
o reconhecimento do protagonismo de outros núcleos de poder.
Assim percebida a garantia institucional, o problema suscita outros
questionamentos para os quais não são apresentadas respostas satisfatórias. A questão
principal é definir o alcance e extensão da competência conferida ao legislador ordinário para
configurar o conteúdo do regime jurídico dos funcionários. Entender a função pública como
instituição garantida constitucionalmente suscita complexas questões, como a identificação do
núcleo básico ou conteúdo mínimo que a constitui, se na essência da instituição está
concebida a ideia de determinação unilateral das condições de trabalho e da identificação dos
interesses dos funcionários com os da Administração e envolve também o efeito sobre a
instituição o reconhecimento constitucional dos direitos coletivos dos funcionários.125
Colocadas essas questões, parece impossível insistir na ideia de existência de um núcleo
essencial ou conteúdo mínimo que esteja excluído da conformação do legislador ordinário.
Assim, conclui-se que “Las pruebas de la inexistencia de una garantía institucional de la
Función Pública resultan, pues, paladinas.”126
De mais a mais, a denominação “estatuto de los funcionarios
públicos” não significa que exista no texto constitucional uma prévia determinação ou
preferência por qualquer modelo de função pública. Na realidade, o termo “estatuto” não tem
sentido unívoco, constituindo expressão plurívoca, com textura aberta, com amplas margens
de densificação, de modo a comportar diversas possibilidades interpretativas e assim sujeita à
conformação discricionária pelo legislador ordinário. Não se trata, por certo, de uma
conformação inteiramente livre, na medida em que a própria Constituição da Espanha já
estabelece alguns parâmetros, mas não se pode deixar de reconhecer a evolução progressiva
do sentido e alcance da expressão. O contexto histórico atual é inteiramente distinto daquele
no qual se forjou o modelo clássico e isso impede que a Constituição seja interpretada pelo
125 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 275-
277. 126 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 277.
137
contexto já superado. Nesse aspecto, a solução dada pelo TC assemelha-se à decisão que dez
anos depois veio a ser adotada no Brasil, quando o STF julgou procedente a ADIn 492-DF,
negando aos servidores o direito à negociação coletiva.
De outro modo, reconhecidos aos funcionários determinados direitos
coletivos, como o direito de sindicalização (artigo 28.1) e o direito de greve (artigo 28.2),
além de outros direitos e liberdades que lhes são aplicáveis, isso importa necessariamente a
reformulação do conceito de função pública. Em certas circunstâncias é possível atenuar ou
restringir os direitos coletivos dos funcionários, desde que não alcance seu conteúdo essencial
(artigo 53 CE), daí resultando igualmente que a presença desses direitos coletivos tem
também o efeito de atenuar ou restringir o modelo de função pública.127 Logo, se a
Constituição “recoge y ampara sin distinción alguna ciertos derechos individuales y
colectivos, hay que concluir que, en coherencia con el principio democrático, debe tenderse a
la expansión de las consecuencias de estos derechos.”128 O acórdão do STF na ADIn nº 492-
DF, nesse ponto, sequer discute a questão do direito à sindicalização e à greve que a
Constituição Federal assegura aos servidores, indicando que os tribunais dos dois países não
compreenderam a mudança significativa operada na ordem constitucional em decorrência do
reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários.
Impõe-se então considerar que a proclamação dos direitos coletivos
dos funcionários produz amplas e profundas mudanças na função pública, de tal modo que o
seu regime não pode ser concebido tal como era visto antes da Constituição. E uma das
consequências reside no fato de que
la unilateralidad que ha caracterizado tradicionalmente a la relación estatutaria debe quedar desprovista de sus tintes autoritarios. La revisión del modelo estatutario debe dejar paso a la autonomía colectiva, y la participación a través de un sistema de negociación peculiar debe tender a ser tan eficaz como la que existe en el ámbito de las relaciones laborales privadas.129
127 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 47. 128 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 50. 129 GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 47-48.
138
Percebe-se claramente que esses mesmos fundamentos poderiam ter
sido adotados no Brasil para o reconhecimento de modo direto e imediato do direito à
negociação coletiva entre os funcionários públicos e o Estado.
O efeito daí decorrente é que o sistema de função pública deve-se
ajustar de forma que os direitos coletivos dos funcionários resultem eficazes e para tanto não
há como deixar de reconhecer a ocorrência de uma substancial erosão dos seus princípios
específicos. Nesse sentido, observa-se que esses direitos não se harmonizam com a relação de
supremacia e com o viés autoritário que marca a visão tradicional de função pública, exigindo
assim uma harmonização entre o modelo de função pública e o exercício dos direitos
coletivos. Os parâmetros para a harmonização são proporcionados pela própria Constituição,
na medida em que admite peculiaridades para o exercício dos direitos coletivos.
Evidentemente não se cogita do reconhecimento de direito absoluto para os funcionários, na
medida em que há limites impostos por outros direitos e bens constitucionais, assim como
pelos limites impostos que decorrem da consecução dos fins a que está obrigada a
Administração Pública, que compreendem a tutela dos interesses gerais (artigo 103.1), cujo
conceito e alcance são definidos pela própria Constituição.130
Esses aspectos conduzem à conclusão de que o artigo 103.3 CE não
pode ser interpretado de forma isolada. Na realidade, interpretação sistemática da
Constituição, especialmente pela consagração do Estado Social e Democrático de Direito e o
reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários, assim como pelo reconhecimento de
outros princípios e valores constitucionais, implica inexoravelmente na prevalência da
natureza contratual da função pública. De fato,
es preciso partir de una visión global, del conjunto de derechos aplicables (...) que reconoce el texto constitucional en el marco del nuevo modelo de Estado social y democrático que se instaura. Se impone, pues, realizar también una interpretación sistemática de la Constitución que no tenga en cuenta únicamente el artigo 103.3, sino también su conexión con otros preceptos y con importantes valores y principios que aparecen consagrados en el texto constitucional.131
130 GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 48. 131 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral, 2001, p. 283-
284.
139
Conclui-se então que a Constituição de 1978 determinou a superação
do modelo clássico de função pública. No novo desenho constitucional há uma clara
aproximação entre os regimes dos funcionários públicos e dos trabalhadores privados, de
modo que existe uma interdependência e influência recíproca entre categorias jurídicas típicas
de um e de outro regime.132
Por tudo isso, o regime público está condicionado pela incorporação
dos direitos coletivos do artigo 28.1 CE, devendo ajustar-se de modo que esses direitos
estejam preservados no seu conteúdo essencial e resultem plenamente eficazes. Assim, não há
como compreender o novo regime jurídico dos funcionários sem a aceitação plena e integral
da coexistência do direito à deflação de conflitos coletivos e também do direito à negociação
coletiva como meio para solucioná-los. Resulta, portanto, inevitável a consolidação da
natureza contratual da função pública, que melhor se ajusta ao cumprimento dos objetivos
almejados pela Administração Pública e responde ao reconhecimento da existência de
interesses contrapostos entre os funcionários e a organização à qual prestam serviços, tudo
isso implicando a “privatización de la relación de empleo público”, uma decorrência da
“penetración del Derecho del trabajo en la Función pública”.133 Desse modo, “la concepción
autoritaria e imperativa de la Administración está sendo sustituida por la introducción de
procedimientos de participación y de negociación incluso en el nivel de la formación de las
normas.”134
Logo, a interpretação levada a efeito pelo TC desconhece as
consequências que a aproximação entre os dois regimes jurídicos exerce sobre o modelo de
conformação da função pública. Nesse novo contexto,
132 Com razão conclui ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto
básico, 2008, p. 58-59 que “la interpretación jurisprudencial deve laborizarse, entender que la negociación colectiva es, hoy, una pieza más del sistema que debe encajar en el mismo y que por esso, construcciones laboradas cuando esa pieza no formaba parte del sistema, no son ya actuales ni admisibles. En definitiva, no puede hacerse una interpretación tan rígida del Estatuto de los Empleados Públicos que lleve a olvidar que la negociación colectiva es un derecho que también forma parte de ese Estatuto.”
133 BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 38. 134 BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 43.
140
el innegable proceso de acercamiento de trabajadores y funcionarios supone también la obsolescencia de esa interpretación inicial dominante de la Constitución como consagración y fortalecimiento del modelo tradicional de la Función Pública, como “mundo aparte” del trabajo privado. La Constitución también puede ser entendida como un marco que establece nuevos principios, objetivos y métodos para la corrección y revisión de ese modelo tradicional.135
Em conclusão, deve a jurisprudência constitucional espanhola, assim
como a jurisprudência constitucional brasileira, evoluir no sentido de afastar o caráter
autoritário, unilateral e não contratual do regime de função pública, reconhecendo a tendência
em direção à sua contratualização, laboralização e regulação homogênea das condições de
trabalho, embora preservadas algumas especialidades, potencializando os direitos coletivos
dos funcionários e proclamando a negociação coletiva como integrante do conteúdo essencial
da liberdade sindical dos funcionários, assegurando-lhe sobretudo a eficácia jurídica dos
instrumentos normativos resultantes. Diante dessa perspectiva, faz-se necessário analisar a
tendência à homogeneização dos regimes jurídicos, seguindo a apreciação do impacto que sua
regulação conjunta na Lei nº 7/2007 (EBEP) provocou na negociação coletiva dos
funcionários públicos.
6.4 TENDÊNCIA À HOMOGENEIZAÇÃO DOS REGIMES JURÍDICOS LABORAL
E FUNCIONARIAL
Pretende-se aqui captar o movimento na Espanha no sentido da
progressiva e inexorável aproximação dos regimes laboral e funcionarial. A possibilidade
dessa tendência de homogeneização foi inicialmente negada ante a circunstância de a
Constituição de 1978 indicar a existência de estatutos jurídicos distintos para regular o
trabalho prestado sob o regime de Direito Público ou sob o regime de Direito Privado (CE,
artigos 103.3 e 35.2). A previsão desses “estatutos” sugeria a inexistência de contato entre os
135 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. Trabajo privado y trabajo público, en Relaciones Laborales,
núm. 6, 1989, p. 44.
141
dois regimes, fato que levou o TC a afirmar na STC 57/1982 a especialidade da relação
funcionarial. Na ocasião, o TC distinguia inteiramente os dois regimes jurídicos, concluindo
pela existência de um princípio básico que exigia “tratamiento no unitario por diferenciado
entre funcionarios públicos e personal laboral” a serviço das Administrações Públicas. Essa
interpretação, conforme já assinalado, desconsiderou o processo de desvirtuamento a que foi
submetido o regime funcionarial pela legislação então vigente, caracterizado pela figura do
funcionário generalista, quebra da hierarquia e rompimento com a exclusividade do sistema
de função pública136.
Com a transição democrática e a entrada em vigor da Constituição de
1978, tem início na Espanha a tendência à homogeneização dos regimes laboral e
funcionarial. A Lei nº 30/1984, de 2 de agosto (LMRFP), “acentúa aún más la separación de
la función pública española del modelo de función pública cerrada o de corporativismo de
servicio”.137 Essa lei, editada já sob as novas bases da Constituição de 1978, pretende
construir um novo sistema de função pública, marcado pelo desvirtuamento dos elementos
essenciais do modelo fechado que tradicionalmente regulava o regime jurídico dos
funcionários e pela tendência de regulação de forma unitária de alguns pontos que vão reger
uniformemente as relações de funcionários e pessoal laboral a serviço da Administração
Pública. Para o objeto deste estudo, merece destaque o reconhecimento expresso que o artigo
3.2.b da Lei nº 30/1984 faz ao direito dos funcionários de negociar coletivamente certos
aspectos de suas condições de trabalho138. Destarte, conquanto esse dispositivo apenas trate de
atribuição de competência, possui a virtualidade de ser a primeira norma legal a reconhecer,
ainda que implicitamente, a possibilidade de negociação coletiva na função pública. Trata-se
de modesto reconhecimento do direito, uma vez que não admite a eficácia normativa dos
instrumentos e contempla a recuperação automática do poder unilateral da Administração
Pública na hipótese de fracasso da negociação coletiva. No entanto, esse dispositivo rompe o
136 PARADA VÁZQUEZ. Derecho Administrativo II. Organización y empleo público, 2005, p. 447. Estudo
sobre a homogeneização das relações de trabalho na função pública foi realizado por MARTÍNEZ ABASCAL. La regulación homogénea de las relaciones de trabalho dependiente en la funcion pública, en Revista de Derecho Social, núm. 7, 1999, p. 213-220, que sistematiza os pressupostos para uma regulação homogênea da relação de emprego público.
137 PARADA VÁZQUEZ. Derecho Administrativo II. Organización y empleo público, 2005, p. 449. 138 A Lei nº 30/1984, no artigo 3.2.b, estabelece que compete ao Governo “Determinar las instrucciones a que
deberán atenerse los representantes de la Administración del Estado cuando proceda la negociación con la representación sindical de los funcionarios públicos de sus condiciones de empleo, así como dar validez y eficacia a los Acuerdos alcanzados mediante su aprobación expresa y formal, estableciendo las condiciones de empleo para los casos en que no se produzca acuerdo en la negociación.”
142
unilateralismo na função pública e com as bases teóricas em que se fundamentou a STC
57/1982.
A Lei nº 30/1984 sinaliza na direção da homogeneização dos dois
regimes jurídicos ao fazer referência pela primeira vez ao direito de greve dos funcionários
públicos (artigo 31 e Disposição Adicional 12ª). Essa norma legal, ao dispor sobre o direito de
greve, já reconhecido aos funcionários públicos (CE artigo 28.2), conduz à conclusão de que
não fazem sentido e estão inteiramente superadas as teses da plena identificação do
funcionário com a Administração Pública e da inexistência de interesses opostos entre eles.
Portanto, a greve, categoria tipicamente laboral, ingressa na função pública, sendo
expressamente reconhecido na lei a existência de interesses distintos e até contrapostos entre
os funcionários e a Administração Pública.
Ademais, o processo de laboralização da função pública também é
marcado pelo abandono do sistema de carreira, com a consequente substituição pelo sistema
de emprego. A formulação clássica baseia-se na organização de todos os funcionários em
estruturas hierarquizadas, formando uma carreira administrativa orientada pelos princípios
basilares de hierarquia e disciplina. De fato, com a Lei nº 30/1984, a organização
administrativa adota o sistema de emprego ou postos de trabalho como instrumento para
ordenação do pessoal. Logo, não se reconhece graus ou categorias hierárquicas entre os
funcionários dos diversos corpos administrativos, sendo estruturada a organização mediante a
sucessiva ocupação dos postos de trabalho, observados os princípios de mérito e capacidade.
Por certo não se trata de abandonar inteiramente o sistema de carreira clássico, mas o novo
modelo que emerge com a Lei nº 30/1984 está profundamente marcado pelos matizes do
sistema laboral, centrado nos postos de trabalho.
De outra parte, antes do advento da LMRFP, o regime laboral no
âmbito da Administração possuía caráter excepcional. A única referência a esse regime na
legislação da época dizia respeito à possibilidade de incorporação de pessoal laboral à
Administração Pública (Lei de 1964, artigo 7º). Esta lei “va a incluir por vez primera al
personal laboral dentro de su âmbito de aplicación, normalizando de esta manera y en parte su
143
situación como personal habitual de las Administraciones Públicas”.139 Mesmo prevendo
distinta regulação das relações de trabalho nos dois regimes jurídicos, a nova lei, ao tempo em
que confere uma regulação paralela, em certas matérias estabelece um tratamento unitário.
Portanto, partindo da premissa da possibilidade de dualidade de regimes jurídicos, o
legislador busca mecanismos úteis e eficazes para estabelecer algumas aproximações e
mesmo identificação em aspectos concretos entre os dois regimes. Essa convergência de
tratamento pode ser encontrada em relação à negociação coletiva, racionalização da estrutura
de funcionários e pessoal laboral, oferta pública de emprego, existência de registro geral de
pessoal, determinação de dotações orçamentárias, relação dos postos de trabalho, previsão de
critérios de acesso à Administração Pública e competência dos órgãos superiores para dispor
sobre ambas as formas de incorporação de trabalhadores na Administração Pública.140
No Brasil, em relação à aproximação dos regimes jurídicos dos
trabalhadores da Administração Pública, observa-se um processo bem distinto daquele
ocorrido na Espanha. De fato, a Constifuição Federal de 1988, na redação original do artigo
39, caput, previa a instituição de “regime jurídico único e planos de carreira para os
servidores”. Com a redação da EC nº 19/1998, o artigo 39, caput, não falou mais em “regime
jurídico único”, prevendo apenas a instituição de “conselho de político de administração e
remuneração de pessoal”. Nesse ponto, o legislador constituinte derivado, captando a
tendência verificada no Direito Comparado e também a orientação normativa da OIT, permite
à Administração Pública escolher a solução mais adequada, que pode ser o regime
“estatutário”, o “trabalhista” ou mesmo o regime híbrido. No entanto, o STF, na ADIn 2.134-
A suspende a eficácia do novo dispositivo constitucional, desconsiderando que “o regime
estatutário não seria mais suficiente para esgotar sozinho a grande e diversificada amplitude
do trabalho que, tanto na iniciativa privada quanto pública, já exigia combinações,
adaptações, composições que só poderiam operar-se num regime de maior flexibilidade.”141
Diferentemente do Brasil, na Espanha passo significativo no
tratamento unificado das relações de caráter laboral e administrativo foi dado no tocante à
regulação dos direitos coletivos. O artigo 28.1 CE constitui o núcleo comum que sugere a 139 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral. 2001, p. 358. 140 CANTERO MARTÍNEZ. El empleo público: entre estatuto funcionarial y contrato laboral. 2001, p. 358-
361. 141 SILVA. Greve no serviço público depois da decisão do STF, 2008.
144
unificação dos direitos coletivos entre trabalhadores públicos e privados. Seguindo o novo
caminho marcado pela Constituição, a Lei Orgânica nº 11/1985, que regulamenta a Liberdade
Sindical, tem o mérito de conferir um tratamento unificado em um texto legal único aos
direitos coletivos, estabelecendo de forma abrangente que “Todos los trabajadores tienen
derecho a sindicarse libremente para la promoción y defensa de sus intereses económicos y
sociales.” (artigo 1º). Confere-se aos direitos coletivos um tratamento homogêneo, no mesmo
instrumento normativo, sem distinção em face da natureza pública ou privada das atividades
realizadas. Objetivando esclarecer qualquer controvérsia sobre o tratamento unificado, dispôs
que “A los efectos de esta Ley, se consideran trabajadores tanto aquellos que sean sujetos de
una relación laboral como aquellos que lo sean de una relación de carácter administrativo o
estatutario al servicio de las Administraciones públicas.” (artigo 1.2). 142
O tratamento unificado está expressamente justificado na Exposição
de Motivos, ficando assentado que
La Ley orgánica pretende unificar sistemáticamente los precedentes y posibilitar un desarrollo progresivo y progresista del contenido esencial del derecho de libre sindicación reconocido en la Constitución, dando un tratamiento unificado en un texto legal único que incluya el ejercicio del derecho de sindicación de los funcionarios públicos a que se refiere el artículo 103, 3, de la Constitución y sin otros límites que los expresamente introducidos en ella.
Portanto, da Lei Orgânica da Liberdade Sindical (LOLS) fica evidente
a pretensão do legislador orgânico de obter uma inicial equiparação entre essas categorias de
trabalhadores, sem prejuízo do reconhecimento de diferenças pontuais no que concerne ao
desenvolvimento e exercício das atividades respectivas. Esta aproximação no tratamento dos
direitos coletivos entre trabalhadores públicos e privados foi tentada no Brasil por meio da Lei
nº 8.112/90, artigo 240, alíneas d e e, mas que terminou sendo rechaçada pelo STF na ADIn
492-DF.
142 Estudo que enfoca a liberdade sindical como direito unitário para trabalhadores e funcionários públicos é
realizado por MARÍN ALONSO. La negociación colectiva conjunta del personal laboral y funcionarial en
la administración pública. Los acuerdos mixtos, 1999.
145
Na Espanha, ressalvadas as exclusões e limitações de determinadas
categorias já previstas constitucionalmente, reiteradas no artigo 1º da LOLS, a análise deste
instrumento normativo indica em diversos dispositivos o tratamento unificado na inclusão dos
funcionários públicos no sistema de relações coletivas de trabalho. Embora o artigo 28.1 CE
autorize a lei a regular as peculiaridades do exercício do direito de liberdade sindical pelos
funcionários, a LOLS não trata dessas peculiaridades, na medida em que seu artigo 2º, ao
dispor sobre o conteúdo essencial da liberdade sindical, contempla a igualdade de tratamento,
inclusive no que diz respeito à ação sindical. O tratamento unificado em matéria de direitos
coletivos sugere a homogeneização em relação aos direitos individuais. Os aportes até aqui
realizados demonstram os esforços legislativos no sentido dessa assimilação. Nesse processo
de convergência a negociação coletiva constitui instrumento útil e eficaz, de sorte a superar as
irrazoáveis e injustificadas distinções que se estabelecem entre trabalhadores que realizam
idênticas atividades, para o mesmo tomador dos serviços.
6.5 IMPLICAÇÃO SOBRE A FUNÇÃO PÚBLICA EM FACE DO SISTEMA DE
NEGOCIAÇÃO COLETIVA ADOTADO PELA LEI Nº 7/2007 (EBEP)
O estudo desenvolvido indica a configuração de um processo de
introdução progressiva de categorias jurídicas próprias do Direito do Trabalho no sistema de
função pública, tendência que conduz à convergência na Espanha dos regimes laboral e
funcionarial. Esse processo, demonstrado a partir da evolução legislativa e dos aportes
constitucionais realizados sobre o modelo de função, leva ao reconhecimento da laboralização
da função pública. O fenômeno significa o desvirtuamento dos elementos considerados
essenciais e característicos do modelo tradicional de função pública. Esse processo é marcado
pelo crescente movimento no sentido da incorporação de categorias próprias do Direito do
Trabalho no regime jurídico que estabelece as bases da função pública. Tem como corolário a
aproximação dos regimes laboral e funcionarial, reduzindo a dicotomia entre trabalho público
e privado. Essa tendência foi absorvida pela Lei nº 7/2007 (EBEP) ao adotar o conceito
unificador de “empleado público” e disso resulta a visão de que o funcionário mantém com a
146
Administração Pública que o emprega uma relação profissional de trabalho e que essa
circunstância sugere a necessidade de uma tutela jurídica semelhante àquela destinada aos
demais trabalhadores.
Antes de verificar o impacto sobre a conformação da função pública
da introdução da negociação coletiva no seu âmbito, parece adequado examinar brevemente o
efeito resultante do reconhecimento do direito de greve aos funcionários públicos. A doutrina
tradicional sustentou durante muito tempo que a greve seria inaplicável à função pública,
compreendendo que “huelga y servicio público son nociones antinômicas”.143 Mas o certo é
que “el ejercicio del derecho de huelga se presenta como el instrumento que en mayor medida
convulsiona la concepción autoritaria de la relación de empleo público”.144 De fato, a
Constituição de 1978, ao consagrar o direito de greve no artigo 28.2, fê-lo de forma ampla,
assegurando-o a todos os trabalhadores que auferem uma remuneração decorrente do trabalho
subordinado. Trata-se de direito que se exercita e legitima não apenas contra o empregador
como parte numa relação jurídica privada ou pública, alcançando igualmente toda situação em
que a ação sindical seja necessária para se contrapor ao poder como forma de defesa dos
interesses dos trabalhadores.
Superados hoje os matizes autoritários do modelo tradicional de
função pública, resulta que a relação entre greve e função pública não é apenas de
compatibilidade, mas de condição necessária para o pleno e efetivo exercício da ação sindical
pelos funcionários. 145 Isso porque “se a greve é direito fundamental de natureza instrumental
e arma eficaz de que dispõem os trabalhadores, era natural que o trabalhador público dela
também se servisse para sua luta”.146 A greve dos funcionários, mais do que um direito que
serve como instrumento para potencializar a força dos trabalhadores para a negociação
coletiva, determina a própria conformação no modelo de função pública e da organização
administrativa. Isso porque o reconhecimento da greve dos funcionários tem o efeito de gerar
crise na própria definição de Direito Administrativo, estruturado tradicionalmente a partir do
143 PALOMAR OLMEDA. Derecho de la función pública. Régimen jurídico de los funcionarios públicos, 2003,
p. 588. 144 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 112. 145 Estudo completo para superação do esquema ideológico que defende a incompatibilidade entre greve e função
pública encontra-se em BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 29-46. 146 SILVA. Greve no serviço público depois da decisão do STF, 2008.
147
dogma da continuidade dos serviços públicos, para ceder lugar ao princípio da manutenção
dos serviços essenciais.147
O fenômeno da laboralização da função pública acentua-se com a
introdução da negociação coletiva. Conforme já reiterado, a formulação clássica da teoria
estatutária considera “impensable aludir a la posibilidad de una determinación bilateral de las
condiciones de trabajo”.148 Essa formulação pressupõe a determinação unilateral das
condições de trabalho, circunstância que releva a impossibilidade de fixação consensual das
normas que regulam as relações entre Administração Pública e seus funcionários. Daí o
entendimento de que
la negociación colectiva es una figura incompatible con la formulación estricta de la teoría estatutaria, ya que en ésta la esencia se encuentra en la determinación unilateral de las condiciones e trabajo, por lo cual, en pura esencia, podría concluirse el silogismo negando la mayor, esto es, su aplicación a los funcionarios públicos.149
Não obstante o enorme esforço teórico em manter os pilares que
estruturam a formulação clássica, a doutrina tradicional finalmente sucumbe diante da
realidade que se impôs, admitindo que “el fenómeno de la participación en en ejercicio de las
funciones públicas es tan imparable que negar-lo aquí sería volver a las cavernas”.150 De fato,
um novo estado de coisas implanta-se no tocante à função pública, importando sua própria
redefinição. Essa nova realidade foi determinada por práticas informais de negociação
coletiva e levaram à incorporação de novos paradigmas sociológicos e políticos que
emergiram com a transição democrática e foram consagrados pela Constituição de 1978.
Irrecusável que, com a Constituição da Espanha de 1978, a teoria
clássica da relação estatutária é profundamente modificada, rompendo com sua feição nuclear
e essencial, que consiste na determinação unilateral das relações de trabalho. Essa
147 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 120. 148 PALOMAR OLMEDA. Derecho de la función pública. Régimen jurídico de los funcionarios públicos, 2003,
p. 589. 149 PALOMAR OLMEDA. Derecho de la función pública. Régimen jurídico de los funcionarios públicos, 2003,
p. 633. 150 PALOMAR OLMEDA. Derecho de la función pública. Régimen jurídico de los funcionarios públicos, 2003,
p. 637.
148
modificação substancial é determinada pelo reconhecimento constitucional dos direitos
coletivos dos funcionários, caracterizados pela indissolubilidade das categorias sindicalização,
greve e negociação coletiva. O efeito disso é que “la determinación de la voluntad
administrativa administrativa en la fijación de le relación de servicio funcionarial debe
instrumentalizarse a través de categorías contractuales y no mediante el ejercicio de
potestades formativas”.151
Como corolário da introdução da negociação coletiva, os ingredientes
autoritários que marcam a formulação clássica da função pública sofrem profunda erosão. A
consequência é o surgimento de uma nova função pública, com características bem distintas
daquelas que matizaram o modelo tradicional. O primeiro ponto a considerar diz respeito ao
estabelecimento do dever de negociar pela Administração Pública. Conforme adiante será
demonstrado, a negociação coletiva funcionarial constitui direito assegurado
constitucionalmente, que deriva de forma direta e imediata da liberdade sindical (artigo 28.1
CE). Esse dever constitucional de negociar ganha sentido e concretude com o disposto no
artigo 37.1 EBEP, ao estabelecer que “Serán objeto de negociación, en su ámbito respectivo y
en relación con las competencias de cada Administración Pública” um conjunto determinado
de matérias. O dever de negociar significa a obrigação de deliberar sobre os temas reservados
à fixação bilateral das condições de trabalho.
Isso significa que em relação aos conteúdos indicados está excluída a
possibilidade de regulação unilateral das condições de trabalho. Mesmo na hipótese de
configurar o fracasso da negociação, ainda assim a Administração Pública não dispõe de
forma automática da possibilidade de determinar as condições de trabalho. Com efeito, no
texto do artigo 38 EBEP, quando o ajuste obtido não for ratificado, havendo recusa na sua
incorporação ao projeto de lei ou quando não se produza um acordo na negociação, ainda
assim não está habilitada a Administração a determinar unilateralmente as relações de
trabalho. Nessas situações, há ainda a necessidade de proceder à renegociação ou à
possibilidade de proceder à solução extrajudicial do conflito, mediante procedimentos de
mediação e arbitragem. Somente fracassando essas alternativas pode a Administração Pública
determinar unilateralmente as condições de trabalho. O efeito disso é o de praticamente
151 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 323.
149
esvaziar o poder de regulação unilateral em relação aos conteúdos reservados à negociação.
Na hipótese de intervenção unilateral quando inobservado o dever de negociar ou quando haja
regulação contrariamente àquilo que foi acordado, tal circunstância tem a consequência de
gerar a nulidade do ato normativo.
A laboralização da função pública na Espanha revela-se também
quando se examina a eficácia dos instrumentos normativos frutos da negociação coletiva. O
objetivo aqui não é examinar a eficácia jurídica vinculante dos instrumentos normativos
resultantes da negociação. Remete-se para o momento oportuno este estudo. Por ora, basta
examinar as consequências que a eficácia dos pactos e acordos geram sobre a formulação
clássica de função pública. Com efeito, celebrados os pactos sobre as matérias que lhes
correspondam, esses instrumentos são aplicados de forma direta em relação ao pessoal do
âmbito respectivo (38.2 EBEP).152 Assim, subscritos os pactos, estes são vinculantes, geram
direitos e obrigações para aqueles que estão compreendidos em seu âmbito, sendo dotados de
eficácia geral e prevalecem sobre os atos normativos anteriores, assim como não podem ser
alterados ou privados de efeitos por normas posteriores. Sendo os pactos vinculantes, durante
sua vigência a Administração Pública está impedida de atuar unilateralmente. Portanto, estão
inteiramente excluídas as possibilidades de regulação unilateral pela Administração no
tocante aos temas objeto da pactuação. Na suposição de haver disciplinamento heterônomo,
essa invasão normativa implica nulidade do ato respectivo por desrespeito ao conteúdo do
pacto celebrado.
No tocante à eficácia dos acordos, satisfeita a exigência de ratificação
pelos órgãos competentes e não se tratando de negociação pré-legislativa, tem natureza
vinculante e possui a mesma eficácia própria dos instrumentos coletivos normativos.153 Do
mesmo modo que opera em relação aos pactos, a Administração Pública fica impossibilitada
de regular unilateralmente as condições de trabalho. Somente recupera sua capacidade de
152 Dispõe o artigo 38.2 EBEP: “Los Pactos se celebrarán sobre materias que se correspondan estrictamente con
el ámbito competencial del órgano administrativo que lo suscriba y se aplicarán directamente al personal del ámbito correspondiente.”
153 Dispõe o artigo 38.3 EBEP: “Los Acuerdos versarán sobre materias competencia de los órganos de gobierno de las Administraciones Públicas. Para su validez y eficacia será necesaria su aprobación expresa y formal por estos órganos. Cuando tales Acuerdos hayan sido ratificados y afecten a temas que pueden ser decididos de forma definitiva por los órganos de gobierno, el contenido de los mismos será directamente aplicable al personal incluido en su ámbito de aplicación, sin perjuicio de que a efectos formales se requiera la modificación o derogación, en su caso, de la normativa reglamentaria correspondiente.”
150
determinação unilateral depois de esgotados os procedimentos de solução extrajudicial (artigo
38.7 EBEP). Como resultado disso, a eficácia jurídica vinculante dos acordos conduz à erosão
do modelo clássico, retirando qualquer poder regulamentar da Administração Pública a
respeito dos temas objeto da negociação. Desafiadora e complexa mostra-se a justificação da
eficácia vinculante dos acordos em relação aos parlamentos. O artigo 38.3 EBEP parece negar
a eficácia jurídica direta dos acordos. De certo modo, conforme será analisado adiante, este já
era o entendimento consagrado na jurisprudência. No entanto, essa mitigação da eficácia não
tem a virtualidade da negociação e menos ainda retira o impacto da negociação sobre a função
pública. Primeiro, porque a eficácia jurídica subsiste em relação à obrigação de a
Administração Pública encaminhar o projeto de lei nos termos acordados e no prazo ajustado.
Segundo, porque, mesmo na hipótese de ausência de eficácia jurídica, na medida em que “su
contenido carecerá de eficacia directa”, não há como deixar de reconhecer a eficácia sócio-
política da negociação.
Portanto, a presença da negociação coletiva na Administração Pública
acarreta a inevitável e progressiva erosão dos pilares que sustentam a formulação clássica de
regime estatutário e conduz ao expresso, paulatino e concreto processo de convergência entre
trabalhadores e funcionários, independente da natureza privada ou pública do trabalho
realizado. Como consequência disso, importa então reconhecer a virtualidade e eficácia da
negociação coletiva como instrumento para superação das irrazoáveis e injustificáveis
distinções que continuam marcando os regimes laboral e funcionarial, apesar dos contínuos
esforços legislativos realizados no sentido da convergência dos dois regimes jurídicos. No
Brasil, no entanto, seja no plano normativo, seja no plano jurisprudencial, persiste a ideia de
distinção substancial entre os dois regimes jurídicos, desconhecendo a tendência
contemporânea de sua aproximação. De outra parte, impõe-se agora a análise do tratamento
constitucional conferido na Espanha ao tema da negociação coletiva dos funcionários,
sobretudo quanto à sua conexão com a liberdade sindical, de modo a identificar a sede
material desse direito e as implicações jurídicas daí decorrentes.
151
7 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA. O FUNDAMENTO
CONSTITUCIONAL DO DIREITO
Procede-se agora à análise do sistema de negociação coletiva na
função pública na Constituição da Espanha de 1978. O ponto de partida é o tratamento
constitucional conferido ao tema, considerando que aquele país, após a transição legal do
modelo corporativista, buscou consagrar um sistema democrático de relações de trabalho,
essencial à edificação de um Estado Social e Democrático de Direito (CE, artigo 1º). O
objetivo é identificar a sede material do direito à negociação dos funcionários públicos. Para
tanto, faz-se necessária a revisão das posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre a temática,
assim sintetizadas: incompatibilidade entre estatuto e negociação coletiva; indiferença
constitucional; previsão no artigo 37.1 CE; integração no conteúdo adicional da liberdade
sindical; e integração no conteúdo essencial da liberdade sindical dos funcionários públicos. A
importância da análise decorre do predomínio na jurisprudência constitucional da tese de que
a Constituição não reconhece nem impede o direito à negociação coletiva, remetendo a
matéria ao tratamento que lhe for conferido pela legislação regulamentadora.
7.1 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA: PROBLEMAS
DECORRENTES DE SEU RECONHECIMENTO COMO DIREITO DE
CONFIGURAÇÃO LEGAL
A prática da negociação coletiva na Administração Pública, não obstante
os avanços obtidos nos sucessivos instrumentos legislativos, ainda enfrenta na Espanha diversos
problemas para o seu adequado e efetivo desenvolvimento. De certo modo a Lei nº 7/2007
(EBEP) intentou solucionar parte dos problemas existentes, a maioria deles decorrentes do
deficiente tratamento conferido pela Lei nº 9/1987, modificada pela Lei nº 7/1990. Os problemas
152
diagnosticados na regulação da matéria no marco normativo que precedeu a atual Lei nº 7/2007
(EBEP) fizeram com que expressivo segmento da doutrina científica questionasse se a
negociação coletiva dos funcionários correspondia a um verdadeiro direito. A origem desses
problemas reside na circunstância de o TC continuar compreendendo a negociação coletiva dos
funcionários como um direito de simples configuração legal. Conforme já ressaltado, esse
entendimento foi firmado pioneiramente na STC 57/1982 e reafirmado nas SSTC 80/2000,
224/2000 e 85/2001. Como consequência desses pronunciamentos, firmou-se a jurisprudência
constitucional no sentido de que a negociação coletiva dos funcionários integrava apenas o
conteúdo adicional da liberdade sindical, de estrita configuração legal. No primeiro momento
entendia-se que a negociação deveria aguardar a lei que a regulamentasse. Posteriormente
compreendeu-se que a negociação deveria ser desenvolvida nos termos e limites definidos pela
legislação regulamentadora. Disso tudo resultaram diversos problemas para o desenvolvimento
adequado e efetivo da negociação coletiva dos funcionários públicos, problemas estes que ainda
remanescem, sobretudo no tocante à eficácia dos instrumentos normativos dela resultantes.
Influenciado pela jurisprudência pioneira da STC 57/1982, o Tribunal
Supremo (TS) da Espanha, através da Sala do Contencioso-Administrativo, desenvolveu uma
jurisprudência reiteradamente negadora da negociação coletiva como direito dos funcionários.
Primeiramente considerou possível a negociação coletiva desde que em tudo ajustado à legislação
vigente, negou validade aos acordos celebrados sob o fundamento de inobservância de requisitos
formais e declarou a nulidade de acordos locais entendendo impossível a negociação nesse
âmbito. Nas decisões proferidas nas STS 14-7-1994 (RA 6017), 4-10-1994 (RA7846), 20-1-1995
(RA 609) e em outras subsequentes o TS consigna que os sindicatos dos funcionários não teriam
por si mesmos direito à negociação. Portanto, a STC 57/1982 exerceu influência restritiva sobre a
jurisprudência ordinária. Esta então passa a valer-se de diversos argumentos para rechaçar a
negociação coletiva dos funcionários, sempre buscando negar validade aos acordos e chegando
ao extremo de reconhecer os perigos de seu reconhecimento154.
Diversos problemas decorrem dessa jurisprudência constitucional e
ordinária restritiva da negociação coletiva no regime jurídico-administrativo. No regime da
legislação anterior, os problemas decorrentes da configuração legal do direito diziam respeito à
154 MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los funcionarios públicos en la Constitución,
2002, p. 78.
153
possibilidade de negociação além dos limites traçados pela Lei nº 9/1987, modificada pela Lei nº
7/1990, negociação conjunta de funcionários e trabalhadores da Administração Pública, distinção
entre negociação coletiva e outros instrumentos de participação na determinação das condições de
trabalho pelos funcionários, compreensão do verdadeiro significado da negociação coletiva dos
funcionários, identificação da natureza e reconhecimento da eficácia jurídica dos acordos
resultantes da negociação, relações entre negociação coletiva e lei e delimitação dos espaços
próprios da negociação coletiva e o poder de auto-organização da Administração Pública155. Por
certo, apesar das modificações no tratamento da matéria levadas a efeito pelo EBEP, continua
relevante e atual o debate acerca do fundamento da negociação coletiva dos funcionários,
justificando assim a revisão da jurisprudência do TC de sorte a compreender a negociação
coletiva como parte integrante do conteúdo essencial da liberdade sindical dos funcionários
públicos.
Mantido o entendimento da configuração legal do direito, como mero
conteúdo adicional da liberdade sindical dos funcionários públicos, resulta que o EBEP, apesar
dos avanços pontuais, não tem o condão de resolver todos os problemas que ainda remanescem
na negociação coletiva dos funcionários. De fato, conforme será melhor examinado adiante, o
artigo 31.5 preceitua que “El ejercicio de los derechos establecidos en este artículo se garantiza y
se lleva a cabo a través de los órganos y sistemas específicos regulados en el presente Capítulo,
sin perjuicio de otras formas de colaboración entre las Administraciones Públicas y sus
empleados públicos o los representantes de éstos.” A limitação da negociação ao modelo legal é
reafirmado no artigo 31.7, ao contemplar que “El ejercicio de los derechos establecidos en este
Capítulo deberá respetar en todo caso el contenido del presente Estatuto y las leyes de desarrollo
previstas en el mismo.” Como consequência, não obstante a tendência à homogeneização dos
regimes jurídicos na Administração Pública e mesmo tendo consagrado o EBEP negociação
conjunta entre trabalhadores e funcionários da Administração Pública, subsiste ainda notável
distinção no tocante à negociação coletiva dos demais trabalhadores, na medida em que esta
constitui direito de configuração constitucional, com fundamento nos artigos 28 e 37 CE.
Por certo, não se trata de equiparação dos dois modelos de negociação
coletiva. Mas é certo igualmente que não corresponde a dois sistemas totalmente diferentes. Os
155 MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los funcionarios públicos en la Constitución,
2002, p. 18.
154
trabalhadores públicos em geral submetem-se aos mesmos regramentos quanto aos incrementos
fixados pelas leis que dispõem sobre o orçamento público e nesse aspecto não faz sentido atribuir
tratamento diferenciado quanto ao efeito da negociação coletiva conforme a natureza da relação
jurídica. Em todo o caso, assim como na negociação laboral, quando se tratar de negociação na
função pública, o acordo, “una vez aprobado, vincula y tiene eficacia propia de un contrato
colectivo normativo”.156 Não se pode, sob pena de violação do princípio da igualdade e de
afetação da liberdade sindical dos funcionários, admitir natureza vinculante para os convênios
coletivos e retirar esse efeito quando a negociação envolver funcionários públicos.
Nesse aspecto, o advento do EBEP traz consigo enormes expectativas de
aperfeiçoamento e esclarecimento de diversas questões pertinentes à negociação coletiva dos
funcionários. A prática da negociação indica se os objetivos referidos pela Exposição de Motivos
de “clarificar los principios, el contenido, los efectos y los límites de la negociación colectiva y
para mejorar su articulación” terão sido de fato alcançados. De toda sorte, sem a revisão da
jurisprudência constitucional do fundamento do direito de negociação coletiva dos funcionários,
subsistem os problemas relacionados ao não reconhecimento da negociação coletiva fora da
regulamentação legal, sendo inviáveis as negociações similares àquelas que conduzem aos
convênios extra-estatutários no âmbito laboral e não se atribui natureza jurídica às formas de
negociação coletiva que não se ajustem aos termos legais157. Além desses problemas, outros
emergem da configuração legal do direito e compreendem o dever de negociação de boa-fé da
Administração Pública e em especial a eficácia vinculante dos resultados da negociação, a fim de
que estes “gocen eficacia directa, de modo imperativo e inderogable frente a todos los poderes
públicos responsables de su cumplimiento, así de uma eficacia personal erga omnes para todos
los empleados públicos comprendidos en su âmbito de aplicación”.158
156 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p.
43. 157 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p.
11. 158 LANDA ZAPIRAIN; BAYLOS GRAU. La negociación colectiva en el marco de las administraciones
publicas: los problemas de su configuracion legal atual. Texto produzido para o workshop “La negociación
de las condiciones de trabajo de los empleados públicos al servicio de las Administraciones públicas vas,
realizado na Universidad de Oñati no período de 24 a 25 de abril de 2001, com a coordenação do Instituto de Sociologia Jurídica de Oñati.
155
7.2 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA EM NÍVEL
CONSTITUCIONAL. O FUNDAMENTO DO DIREITO
Questão polêmica e ainda não resolvida na doutrina espanhola diz
respeito ao fundamento da negociação coletiva dos funcionários públicos. Trinta anos depois
da entrada em vigor da Constituição, permanece vivo e intenso o debate acerca de seu
fundamento. As posições doutrinárias dividem-se em dois grandes grupos, o primeiro
negando a existência de fundamento constitucional para a negociação coletiva dos
funcionários, ao passo que o segundo sustenta a sede constitucional do direito. Em relação ao
primeiro grupo, parte da doutrina afirma que a opção constituinte pelo regime estatutário
(artigo 103.3 e artigo 149.1.18) rechaça a negociação e outra parte considera que nesse
aspecto existe indiferença constitucional, que não autoriza nem impede a negociação. De
outro lado, a doutrina que sustenta o fundamento constitucional diverge quanto à sede
material, sendo que uma parte radica o direito no artigo 37.1, sendo aplicável aos funcionários
públicos, enquanto outra parte fundamenta o direito no artigo 28.1, que compreende a
negociação como integrante do conteúdo da liberdade sindical. Esta última corrente divide-se
entre aqueles que sustentam que a negociação coletiva dos funcionários faz parte do conteúdo
adicional da liberdade sindical e aqueles que compreendem a negociação coletiva como parte
integrante do conteúdo essencial da liberdade sindical. Passa-se à análise dessas doutrinas.
7.2.1 A infundada incompatibilidade entre o regime estatutário e a negociação coletiva
Doutrina minoritária considera impossível a negociação coletiva dos
funcionários públicos, porquanto a “condición estatutaria, definida unilateralmente por leys y
156
reglamentos, no podría, al menos teoricamente, ser modificada por convenio colectivo”159.
Como consequência, “la Constitución no reconoce a los funcionarios públicos el derecho a la
negociación de las condiciones de empleo, ni de forma autónoma ni derivada de la libertad
sindical que consagran los artículos 28.1 y 37.1”160. Com esses argumentos, sustenta que
la admisión de la negociación colectiva de los funcionarios públicos resulta imposible, puesto que en ningún caso la autonomía colectiva podrá modificar los preceptos legales en las materiais que están reservadas a la ley, y em las demás, la negociación va en contra de la unilateralidad de la definifición del estatuto funcionarial que proclaman los artículos 103.2 y 149.1.18.161
Fundando-se na natureza estatutária, essa doutrina pondera que “La
negociación colectiva es un elemento contingente, no necesario”.162 Essa posição doutrinária
invoca a STC 57/1982 para justificar que, conforme decidiu o TC, a sindicalização dos
funcionários não tem como única via para a defesa de seus interesses a negociação coletiva,
embora não tenha afirmado a sua ilicitude, circunstância que autorizou o desenvolvimento
legislativo da negociação coletiva. O STF, no julgamento da ADIn 492-DF, termina
consagrando a tese da incompatibilidade, seguindo a orientação da doutrina administrativista
espanhola mais conservadora.
A superação desse entendimento minoritário foi demonstrada quando
se abordou as objeções à negociação coletiva e sustentou a revisão dos postulados que
sustentam a natureza estatutária e unilateral. Nesse aspecto, ao pretender consagrar um
modelo democrático de relações coletivas de trabalho, o constituinte conduziu à superação da
concepção clássica através do reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários,
decorrendo daí a natureza contratual da função pública. Logo, a negociação coletiva torna-se
elemento complementar à regulação das condições de trabalho através da lei. Isso decorre do
fato de que “la Constitución no impide, sino que incluso exige, que esa ley, y, en su caso, los
159
DEL SAZ. Contrato laboral y función pública (Del contrato laboral para trabajos manuales al contrato
blindado de alta dirección), 1995, p. 101. 160
DEL SAZ. Contrato laboral y función pública (Del contrato laboral para trabajos manuales al contrato
blindado de alta dirección), 1995, p. 103. 161
DEL SAZ. Contrato laboral y función pública (Del contrato laboral para trabajos manuales al contrato
blindado de alta dirección), 1995, p. 102. 162 PARADA VÁZQUEZ. Derecho Administrativo II. Organización y empleo público, 2005, p. 572.
157
reglamentos, tenga en cuenta la fuente colectiva, no agotando todos los posibles espacios de
regulación, y diseñando sus normas en relación dialéctica con la fuente colectiva, dejándole
espacios reguladores o asignándole”163. O próprio TC reforça essa compatibilidade ao
estabelecer que “la participación de los funcionarios en la fijación de sus condiciones de
trabajo a través de órganos de representación se integra en el régimen estatutario de los
mismos” (STC 165/1986, F. J. 3).
7.2.2 A falsa indiferença constitucional em face da negociação coletiva na função pública
Parte da doutrina espanhola defende a indiferença constitucional no
tocante à negociação coletiva dos funcionários públicos, sustentando que a Constituição não
proíbe nem reconhece o direito, mas simplesmente o ignora. O direito à negociação coletiva
na função pública não se encontra reconhecido na Constituição, nem no artigo 28.1 nem no
artigo 37.1. Esse segmento conclui que a negociação coletiva não existe até que a lei
reconheça o direito, daí por que compete ao legislador livremente escolher entre regulamentar
ou não o exercício da negociação coletiva na Administração Pública. Diante da indiferença
constitucional, o legislador pode reconhecer ou proibir a negociação. Logo, enquanto não
reconhecido pela lei, inexiste o direito à negociação coletiva na função pública.
Diferentemente da posição anterior, essa corrente não considera que o estatuto referido pelo
artigo 103.3 CE seja impedimento à negociação. Essa postura está fortemente influenciada
pela STC 57/1982, F.J. 12, ao concluir que “la Constitución no reconoce a los funcionarios
públicos el derecho a la negociación colectiva de sus condiciones de empleo”.
A tese da ausência de tratamento constitucional indica que “la
Constitución ni prohíbe ni reconoce el derecho de negociación colectiva funcionarial, por lo
163 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. Ley y negociación colectiva en la función pública, en
Relaciones Laborales, núm. 14, 1997, p. 6.
158
tanto o tolera”164. Como consequência, “la negociación colectiva de los funcionarios es parte
de su Estatuto. Su establecimiento o negación se debe realizar en la ley”.165 Remetida a
questão do reconhecimento do direito para o legislador, este tem ampla margem no momento
de regular o estatuto dos funcionários, dispondo da discricionariedade de reconhecer ou negar
o direito à negociação dos funcionários. Para chegar a essa conclusão, considera que o direito
não pode ser deduzido da liberdade sindical assegurada pelo artigo 28.1 CE nem do artigo
37.1, que trata da negociação coletiva laboral e nela encontram-se incluídos os trabalhadores
sujeitos ao Estatuto a que se refere o artigo 35.2 CE, e não os funcionários sujeitos ao Estatuto
referido pelo artigo 103.3 CE.
O Alto Tribunal da Espanha sufragou essa tese na STC 57/1982 ao
concluir pela ausência de nexo entre a liberdade sindical dos funcionários públicos e a
negociação coletiva. Considerou que do direito de sindicalização dos funcionários não
derivava como consequência necessária a negociação coletiva, porquanto a atividade sindical
podia ser desenvolvida através de outros procedimentos e por outras vias, tudo a depender da
configuração legal do direito. Segundo o TC, “el legislador puede optar en amplio espectro
por diferentes medidas de muy distinto contenido, que resuelvan adecuadamente la
participación de los órganos representativos de los funcionarios en la fijación de las
condiciones de empleo” (STC 57/1982, F. J. 9).
Essa postura que consagra a indiferença constitucional descarta a
aplicação dos artigos 28.1 e 37.1 CE, construindo uma doutrina que confere autonomia entre
os direitos de sindicalização e de negociação coletiva dos funcionários públicos, entendendo o
primeiro como direito constitucional fundamental e o segundo como simples direito sujeito à
configuração legal. Essa doutrina foi consagrada a partir do modelo clássico de função
pública, a partir dos paradigmas pré-constitucionais, sem considerar os próprios parâmetros
definidos pela nova ordem constitucional, especialmente em decorrência da pretensão de
edificação de um Estado Social e Democrático de Direito (artigo 1º) e do reconhecimento dos
direitos coletivos dos funcionários públicos (artigo 28.1 e artigo 103.3). Editada em 1982,
muito antes do desenvolvimento da própria jurisprudência constitucional acerca do conteúdo 164 BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía colectiva en la función pública, 2005, p.
59. 165
PALOMAR OLMEDA. Derecho de la función pública. Régimen jurídico de los funcionarios públicos, 2003, p. 609.
159
essencial da liberdade sindical, essa jurisprudência deve sofrer uma releitura, de modo a
ajustar-se ao novo modelo de função pública que progressivamente tem sido conformado
pelas novas exigências históricas.
7.2.3 Inaplicabilidade do artigo 37.1 CE como fundamento da negociação coletiva na função
pública
Parte da doutrina espanhola sustenta a existência de fundamento
constitucional para a negociação dos funcionários públicos, radicando a sede material desse
direito no artigo 37.1 CE, ao dispor que “La ley garantizará el derecho a la negociación
colectiva laboral entre los representantes de los trabajadores y empresarios, así como la fuerza
vinculante de los convenios”. Esse segmento sustenta que “nuestra Constitución admite y
garantiza el derecho de negociación colectiva para laborales y funcionarios en el art. 37 de la
misma.”166 Destarte, “la negociación colectiva de los funcionarios reposa en el artículo 37.1
de la Constitución”167. Essa doutrina considera que
el hecho de que el Estatuto de los Trabajadores haya regulado la negociación colectiva del sector privado no implica que un desarrollo similar del art. 37 no se pueda efectuar cuando se apruebe el Estatuto de los funcionarios públicos. Incluso, sin contar con el desarrollo legal del art. 37 CE, los funcionarios poseen una cierta capacidad negocial, aunque no gocen de los efectos que la Ley da a los convenios colectivos168. Ahora bien, que el art. 37 sea aplicable al empleo público, no quiere decir que lo sea en la misma forma que opera en el sector privado.169
166 MARÍN ALONSO. La negociación colectiva conjunta del personal laboral y funcionarial en la
administración pública. Los acuerdos mixtos,1999, p. 45. 167 SANTIAGO REDONDO. A vueltas con el modelo de la negociación colectiva: titularidad y contenidos, en
REDT, núm. 85, 1997, p. 759. 168 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 326. 169 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 326.
160
Para justificar a aplicação do artigo 37.1 à negociação coletiva dos
funcionários públicos, esse setor doutrinário sustenta que o termo “trabajadores” deve ser
interpretado em consonância com o artigo 7º CE, em sentido amplo, abrangendo funcionários,
e que o termo “laboral” delimita o conteúdo da negociação coletiva, não se referindo ao
âmbito subjetivo do direito170.
A inserção ou não da negociação dos funcionários no artigo 37.1 CE
não envolve um falso debate, haja vista os importantes efeitos práticos que daí podem
resultar. O primeiro aspecto a considerar é se a própria Constituição reconhece de forma
direta um sistema de negociação coletiva com a força vinculante dos convênios ou se apenas
constitui um mandamento ao legislador para que o desenvolva. O segundo ponto implica
verificar se a Constituição estabelece um sistema de negociação coletiva único para
trabalhadores e funcionários, com a consequência do reconhecimento indistinto da força
vinculante dos convênios. No setor privado já está suficientemente equacionado que o
preceito referido constitui um sistema de negociação coletiva, com reconhecimento direto e
imediato da força vinculante dos convênios. O mandato ao legislador tem o significado de
determinar que a lei desenvolva esse sistema já constituído, de forma que a lei possa conferir
máxima potencialidade e efetividade ao comando constitucional. Com isso não se afirma que
a negociação coletiva dos trabalhadores tem por fundamento o artigo 37.1 CE, mas o artigo
28.1 CE, conforme já decidiu o TC na STC 108/1989, ao considerar integrada “en la libertad
sindical garantizada por el art. 28 C.E. la facultad de los sindicatos, como representación
institucional de los trabajadores para la negociación colectiva”.
170
APARICIO TOVAR. La contratación colectiva de los funcionarios públicos. en AA.VV., Jurisprudencia
constitucional y relaciones laborales, 1983, nega fundamento da negociação coletiva dos funcionários no artigo 37.1 CE, indicando seu fundamento no artigo 28.1 e 103.3 CE: “no es posible buscar fundamento constitucional para la contratación colectiva en la función pública en el artículo 37.1 de la Constitución porque la contratación allí regulada se refiere exclusivamente a la contratación colectiva laboral, utilizando esta palabra en su exacta y precisa acepción técnico-jurídica. De lo que no hay ninguna duda, pues inmediatamente se habla de los representantes de los trabajadores y empresarios, con lo que se está calificando la negociación desde el punto e vista subjetivo de sus protagonistas, con lo que no cabe la posibilidad de que pueda extraerse de esta norma el apoyo constitucional reconocedor el derecho de negociación colectiva para los funcionarios públicos. Pero ello no quiere decir que no exista fundamentación constitucional a la negociación colectiva en este sector, pues de lo anterior se ha deducido con claridad que ese derecho para los funcionarios públicos debe extraerse directamente como consecuencia inevitable del derecho e sindicación”.
161
Interpretação literal do artigo 37.1 CE conduz à exclusão desde logo
de sua aplicação à negociação coletiva dos funcionários públicos, seja pelo aspecto subjetivo,
seja pelo aspecto objetivo. Por força dessa interpretação literal, nos termos “trabalhadores” e
“empresários” não estão compreendidos os funcionários públicos e as Administrações
Públicas. De certo modo, essa dicotomia entre trabalhadores e funcionários parece dar sinais
de esgotamento, na medida em que os termos estão sendo substituídos pela expressão
“empleado público”, que identifica todo trabalhador, público ou privado, que presta serviços a
um ente público qualquer. Nesse sentido, o EBEP, ao consagrar a expressão “empleado
público” para se referir indistintamente a trabalhadores e funcionários sugere a superação
dessa distinta denominação. Essa inclusive tem sido a terminologia usualmente adotada pelas
normas internacionais, conforme se constata na Carta Social Europeia e nas Convenções nº
151 e 154 da OIT. Não parece certo, portanto, conferir interpretação demasiadamente
restritiva ao termo “trabalhador” a que se refere o artigo 37.1 CE, o que seria incompatível
com a mesma terminologia adotada em outras normas constitucionais, a exemplo daquelas
contidas nos artigos 7, 28.2 e 149.1.7171.
Ademais, o fato de o artigo 37.1 CE ter optado pela expressão
“empresário” não leva necessariamente à exclusão da Administração Pública do âmbito de
aplicação do preceito constitucional. Concluir diferentemente é o mesmo que negar o direito à
negociação coletiva dos funcionários da Administração Pública. Conquanto seja evidente que
os objetivos perseguidos pela empresa e pela Administração sejam distintos, parece
irrecusável, conforme já demonstrado quando se tratou da tendência à homogeneização das
condições de trabalho em ambos os setores, a inexistência de diferença substancial nas
condições de prestação dos serviços. Igualmente não há óbice à aplicação do preceito aos
funcionários públicos em face da diferença entre liberdade sindical de trabalhadores e
funcionários, porquanto, conforme ficará demonstrado, o conteúdo essencial do direito
contido no artigo 28.1 é idêntico para ambos os coletivos, o que não seria afetado pelas
peculiaridades referidas no artigo 103.3 CE.
Portanto, o óbice para a inclusão da negociação dos funcionários no
artigo 37.1 CE não reside nos aspectos subjetivos, mas se relaciona com a impossibilidade da
171 MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los funcionarios públicos en la Constitución,
2002, p. 140.
162
absoluta equiparação da negociação coletiva entre funcionários e Administração Pública com
a negociação coletiva que se deve garantir entre trabalhadores e empresários. Isso porque a
Constituição contempla estatutos distintos para trabalhadores (35.2 CE) e funcionários (artigo
103.3 CE). Logo, não resulta possível extrair da Constituição modelo único de negociação
coletiva que inclua trabalhadores e funcionários. Da mesma forma, do artigo 37.1 CE não
resulta mandamento ao legislador para conformar sistema uniforme de negociação coletiva
para as duas categorias de trabalhadores. De fato, a negociação coletiva dos funcionários
exige a compatibilização dos artigos 28.1 e 103.3 CE. Corretamente, a doutrina majoritária
posiciona-se no sentido de que “la inclusión o no de los funcionarios en el artigo 37.1 no es
tan transcedente, pues esa inclusión sólo podría significar la plena identidad del convenio
colectivo “laboral” y “funcionarial” en su naturaleza y efectos, lo que es muy
cuestionable”172.
Encontrar fundamento da negociação coletiva dos funcionários
públicos no artigo 37.1 CE, além de desconsiderar o sentido objetivo do termo “negociación
colectiva laboral”, tem o grave equívoco de pretender conferir tratamento unitário e integral
assimilação dos dois modelos de negociação. De fato, embora a consagração da liberdade
sindical dos funcionários implique necessariamente a transformação da concepção de função
pública, essa mudança paradigmática operada a partir de 1978 não tem o efeito de gerar a
completa e total uniformização dos dois regimes jurídicos, seja no plano das relações
individuais, seja no plano das relações coletivas. O importante é que
Se ha de establecer un nuevo reparto de papeles entre norma legal y la norma colectiva, pues sin deslegalizar y desreglamentar espacios normativos no podrá existir un margen de contractualización de la regulación jurídica de la relación de empleo público, aunque el convenio no llegue a ocupar la centralizad y espacio proprios de la negociación colectiva laboral.173
172 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. Ley y negociación colectiva en la función pública, en
Relaciones Laborales, núm. 14, 1997, p. 4. 173 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. Ley y negociación colectiva en la función pública, en
Relaciones Laborales, núm. 14, 1997, p. 8-9.
163
7.2.4 A insuficiência da integração da negociação coletiva no conteúdo adicional da liberdade
sindical dos funcionários públicos
O Tribunal Constitucional da Espanha através de sua jurisprudência
vem delimitando o conjunto de faculdades e direitos que conformam a liberdade sindical nas
vertentes individual e coletiva. Nessa atividade distingue o conteúdo essencial do conteúdo
adicional da liberdade sindical. O conteúdo essencial do direito é integrado pelo seu núcleo
mínimo ou indisponível, no qual estão inseridas aquelas faculdades sem as quais o direito
perde sua peculiaridade. “El contenido esencial del derecho genérico de libertad sindical está
integrado naturalmente por cuantos derechos y facultades identifican o hacen reconocible el
ejercio del mismo”174. Certamente, a definição desse conteúdo essencial faz-se através de um
processo hermenêutico em que se assegure a unidade da Constituição, através de uma
interpretação integradora orientada pelos novos princípios e valores constitucionais. Esse não
foi o caminho seguido pelo TC, que terminou definindo o conteúdo da liberdade sindical dos
funcionários a partir do paradigma constitucional já superado.
Com efeito, na STC 9/1988, o TC assim conforma o conteúdo
essencial da liberdade sindical:
Según ha precisado reiteradamente este Tribunal, el art. 28.1 de la Constitución integra, como derechos de actividad, los de negociación colectiva, huelga e incoación de conflictos, medios de acción que contribuyen a que el sindicato pueda desenvolver la actividad a que es llamado por el art. 7 de la Constitución. Los derechos citados son un núcleo mínimo e indisponible de la libertad sindical.
Portanto, não é exaustiva ou limitativa, mas meramente explicativa, a
relação específica de direitos e faculdades referidas no artigo 28.1 CE, daí por que não esgota
todo o conteúdo essencial da liberdade sindical175.
174
PALOMEQUE LÓPEZ. Derecho Sindical Español, 1991, p. 113. 175 Estudo sobre o conteúdo da liberdade sindical encontra-se em PALOMEQUE LÓPEZ. Derecho Sindical
Español, 1991, p. 113-161; OJEDA AVILÉS. Compendio de derecho sindical, 1998, p. 34-93
164
Já o conteúdo adicional do direito está integrado por faculdades ou
direitos de criação legal, que passam a integrar o seu conteúdo. Nesse sentido, observa o TC
na STC 9/1988 que “es evidente que los sindicatos pueden ostentar facultades o derechos
adicionales, atribuidos por normas infraconstitucionales, que pasan a integrar el contenido del
derecho”. Dichas facultades o derechos adicionales pueden quedar remitidos por la
Constitución, a efectos de su regulación, a la normativa legal o, en su caso, reglamentaria que
la crea, no teniendo, «per se», carácter de derechos fundamentales o constitucionales con
sujeto determinado”.
Esses direitos e faculdades adicionais, mesmo instituídas por
determinação da Constituição, não adquirem a natureza constitucional ou fundamental. No
entanto, conforme consignado na STC 9/1988,
El reconocimiento o creación legal o reglamentaria de un medio de acción sindical, adicional a los mínimos indispensables, y que atribuye facultades o derechos también adicionales a los sindicatos, impide alegar que afectan al contenido esencial de la libertad sindical los actos singulares, de aplicación o inaplicación - en su caso - de la norma, con efecto impeditivo, obstaculizador o limitador del ejercicio de tales facultades o derechos, del desenvolvimiento legítimo de tal medio de acción. Pero, al integrarse tales facultades en el núcleo de la libertad sindical, dichos actos contrarios a las mismas sí pueden calificarse de vulneradores del derecho fundamental, integrado no sólo por su contenido esencial, sino también por esos derechos o facultades básicas que las normas crean y pueden alterar o suprimir, por no afectar al contenido esencial del derecho.
O TC, modificando a jurisprudência contida na STC 57/1982, deu um
pequeno passo adiante através da STC 80/2000 ao reconhecer que a negociação coletiva
integra o conteúdo adicional da liberdade sindical dos funcionários públicos:
en la medida en que una ley (en este caso de la Ley 9/1987, modificada por la Ley 7/1990) establece el derecho de los Sindicatos a la negociación colectiva en ese ámbito, tal derecho se integra como contenido adicional del de libertad sindical, por el mismo mecanismo general de integración de aquél derecho en el contenido de éste, bien que con la configuración que le
165
dé la ley reguladora del derecho de negociación colectiva [art. 6.3 b) y c) LOLS], siendo en ese plano de la legalidad donde pueden establecerse las diferencias entre la negociación colectiva en el ámbito laboral y funcionarial y el derecho a ella de los Sindicatos, no así en el de la genérica integración del referido derecho en el contenido del de libertad sindical.
Portanto, nesse precedente o TC sujeitou o direito à configuração dada
pela lei, negando assim a integração do direito no conteúdo essencial da liberdade sindical.
Na STC 224/2000, o TC assentou que
aun cuando el ejercicio del derecho de libertad sindical en el ámbito funcionarial admite constitucionalmente una modulación que atienda a las peculiaridades propias de aquél, y que del reconocimiento de su titularidad a los funcionarios no deriva como consecuencia necesaria el derecho a la negociación de este colectivo (STC 57/1982), ello no significa que, aun configurada legalmente aquélla (Ley 9/1987 en su redacción vigente), no quede integrada en el contenido del derecho de libertad sindical. Y ello por más que en el plano de la legalidad se establezcan así las diferencias entre la negociación colectiva en el ámbito laboral y en el de la función pública, diferencias que no alcanzan a la referida comprensión de ambos en el art. 28.1 CE.
Em outra oportunidade, na STC 85/2001, o TC manteve o
entendimento restritivo e reafirmou tratar-se de direito de configuração legal. Nesse
precedente, o TC refere-se às SSTC 57/1982 e 80/2000, pontuando que
El hecho de tratarse de un derecho esencialmente de configuración legal implica, entre otras cosas, según continuábamos diciendo en esta Sentencia, que los funcionarios y los Sindicatos titulares del mismo, así como las Administraciones públicas en las que éste se desarrolla, no son libres para ejercerlo de modo incondicionado, pues «la Ley 9/1987, modificada por la Ley 7/1990, no deja la configuración de la negociación colectiva a la plena libertad de los Sindicatos y de las Administraciones públicas concernidas, sino que establece por sí misma los órganos de negociación, el objeto de ésta y las líneas generales del procedimiento.
Portanto, o TC não considera a negociação coletiva dos funcionários
públicos integrada no conteúdo essencial da liberdade sindical, mas apenas no seu conteúdo
adicional. Nesse aspecto, o TC revela-se contraditório ao conferir tratamento diferenciado
166
para o mesmo direito, entendendo-o de modo distinto em relação aos trabalhadores em geral e
aos funcionários. No tocante aos primeiros, embora inicialmente tenha negado integrar a
negociação o conteúdo essencial da liberdade sindical (SSTC 51/1984, F. J. 3, e 98/1985, F. J.
3), posteriormente passa a considerar que a negociação coletiva integra o conteúdo da
liberdade sindical garantida pelo artigo 28.1 CE (STC 108/1989, F. J. 2). Portanto, em relação
aos trabalhadores em geral, o conteúdo essencial da liberdade sindical está integrado por um
núcleo duro e indisponível de direitos, de natureza constitucional e fundamental, do qual faz
parte a negociação coletiva.
No caso dos funcionários, a negociação coletiva integra apenas o
conteúdo adicional, de configuração legal e que não compõe o conteúdo essencial do artigo
28.1 CE. Esse conteúdo adicional é uma criação da legislação promocional, com a limitação
de que
las normas infraconstitucionales pueden desarrollar el derecho de libertad sindical en clave de promoción, añadiendo al contenido esencial derechos o facultades de actuación sindical adicionales. Tales derechos, al no trascender al contenido esencial de la libertad sindical, no operan como límite de la actuación legislativa. En otras palabras, más allá del contenido esencial, el legislador dispone de un amplio margen de maniobra que le permite crear medios adicionales de promoción de la actividad sindical pero también configurarlas y limitarlas y, en el futuro, modificarlas o suprimirlas (STC 173/1992, F. J. 3).
Contraditoriamente, continua o TC tratando a negociação como
simples direito de reconhecimento e configuração exclusivamente legal, adotando um modelo
de liberdade sindical distinto entre os funcionários e os demais trabalhadores. Essa posição
mostra-se igualmente contraditória em face do tratamento conferido pela Lei nº 11/1985
(LOLS). Nesta, confere-se “un tratamiento unificado” em um texto legal único que inclue o
exercício dos direitos a que se refere o artigo 103 da CE, “sin otros limites que los
expresamente introducidos en ella”. De acordo com a LOLS, são trabalhadores para efeito de
livre sindicalização todos aqueles sujeitos a uma relação de caráter administrativo ou
estatutário a serviço da Administração Pública (artigo 1º.2). O direito à livre sindicalização
implica o direito à atividade sindical (artigo 2º.d), que compreende “el derecho a la
negociación colectiva, al ejercicio del derecho de huelga, al planteamiento de conflictos
167
individuales y colectivos y la presentación de candidaturas para la elección […] de los
correspondientes órganos de las Administraciones Públicas” (art 2º, 2.d). A LOLS reconhece
o direito à negociação coletiva dos funcionários públicos ao determinar, através do artigo
6.3.c, que os sindicatos mais representativos gozam de capacidade representativa em todos os
níveis territoriais e funcionais para participar como interlocutores na determinação das
condições de trabalho nas Administrações Públicas mediante oportunos procedimentos de
consulta ou negociação. Na mesma linha, o artigo 8.2.b dispõe que as seções sindicais dos
sindicatos mais representativos e dos que tenham participação nos órgãos de representação
que se estabeleçam nas Administrações Públicas têm direito à negociação coletiva, nos termos
estabelecidos na sua legislação específica. Nesse aspecto, enquanto a LOLS exerce
adequadamente sua função promocional da negociação coletiva dos funcionários, o TC
mantém-se preso a concepções já superadas, confinando a negociação dos funcionários aos
marcos definidos pela lei, não reconhecendo as práticas negociais à margem e mesmo contra a
lei.
Dessa jurisprudência constitucional espanhola resulta injustificável
limitação da liberdade sindical dos funcionários, negando-se a um direito fundamental sua
eficácia imediata (artigo 53 CE). Sem a integração da negociação coletiva dos funcionários no
preceito do artigo 28.1 CE, seu reconhecimento fica condicionado à iniciativa do legislador.
Logo, segundo essa jurisprudência constitucional, o direito não existe até que seja regulado
por lei. Mas os problemas da configuração legal do direito não se resolvem com a legislação
regulamentadora, na medida em que predomina a postura de considerar válida exclusivamente
a negociação realizada nos termos e condições definidas pela lei. Além desses aspectos,
reconhecer a configuração constitucional do direito “implica por parte de la Administración la
obligación inexcusable de negociar la determinación de las condiciones de trabajo de sus
empleados públicos con caracter previo a cualquier decisión al respecto”176. No Brasil, a
solução dada pela jurisprudência foi ainda mais drástica, porquanto, mesmo assegurada a
liberdade sindical e apesar da regulamentação da Lei nº 8.112/90, o direito à negociação
coletiva dos funcionários foi extirpado pelo STF.
176 LANDA ZAPIRAIN; BAYLOS GRAU. La negociación colectiva en el marco de las administraciones
publicas: los problemas de su configuracion legal atual. Texto produzido para o workshop “La negociación
de las condiciones de trabajo de los empleados públicos al servicio de las Administraciones públicas vas,
realizado na Universidad de Oñati no período de 24 a 25 de abril de 2001, com a coordenação do Instituto de Sociologia Jurídica de Oñati.
168
7.2.5 A necessária integração da negociação coletiva no conteúdo essencial da liberdade
sindical dos funcionários públicos
O artigo 28.1 CE, depois de assegurar que “Todos tienen derecho a
sindicarse libremente [...]”, autoriza que a lei “[...] regulará las peculiaridades de su ejercicio
para los funcionarios públicos”. Nessa linha, o artigo 103.3 dispõe que o estatuto dos
funcionários públicos regulará “[...] las peculiaridades del ejercicio de su derecho a
sindicación”. Sobre o conteúdo da liberdade sindical, esta “[...] puede ser calificada como
derecho fundamental de contenido complejo.”177 De fato, o direito de livre sindicalização
implica o reconhecimento da existência de um núcleo essencial, intocável, sob pena de
desfiguração do próprio direito à liberdade sindical, razão por que abalizada doutrina vem
considerando integrado nesse núcleo o direito à negociação coletiva dos funcionários
públicos. A jurisprudência constitucional não consagra essa conclusão, embora admita que a
modulação da liberdade sindical dos funcionários e a configuração legal da negociação
coletiva não signifique que esta “no quede integrada en el contenido del derecho de libertad
sindical” (STC 224/2000, F. J. 8). Apesar desse passo à frente, o TC não avança o suficiente
no sentido de reconhecer o direito de negociação coletiva como parte do núcleo mínimo e
indisponível do direito constitucional de liberdade sindical.
A doutrina majoritária espanhola entende que o direito à negociação
coletiva dos funcionários públicos deriva do direito de liberdade sindical do artigo 28.1 CE,
integrando seu conteúdo essencial. Rodriguez-Piñero considera que, ao integrar o direito à
negociação coletiva o conteúdo essencial da liberdade sindical, “[...] no puede ser suprimido
de forma absoluta como uma peculiaridad propia del derecho de sindicación de los
177
MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los funcionarios públicos en la
Constitución, 2002, p. 130.
169
funcionarios”.178 No mesmo sentido, observa Luis Ortega Álvarez que “[…] la negociación
colectiva, al ser un elemento esencial para la obtención del fin de tutela colectiva inherente a
la sindicación, constituye un derecho de los funcionarios derivado de la aplicación directa de
la Constitución y, en concreto de su art. 28.1.”179. Na mesma direção opina Casas Baamonde,
para quem, na função pública, “el derecho de los funcionarios a negociar colectivamente con
las Administraciones públicas sus condiciones de trabajo se obtiene de su derecho
fundamental de libertad sindical del art. 28.1, ejerciéndose, en consecuencia, a través de
representantes sindicales conforme a las ‘peculiaridades’ de su régimen estatutario que el
legislador fije.180
Logo, o direito à negociação coletiva dos trabalhadores em geral e dos
funcionários tem o mesmo fundamento constitucional e a sede material reside precisamente
no artigo 28.1 CE, formando parte do conteúdo essencial da liberdade sindical. No caso do
Brasil, o direito à negociação coletiva tem sede material no artigo 37, VI, CF, que assegura ao
servidor público “o direito à livre associação sindical”. De fato, o direito de negociação dos
funcionários públicos constitui uma decorrência direta do seu direito à livre sindicalização,
haja vista que a negociação, assim como a greve são manifestações inseparáveis da atividade
sindical. Essa doutrina mais se justifica considerando que o funcionário, nesta condição, não
perde sua qualificação de trabalhador e cidadão, daí por que, em nome da especificidade e da
natureza do regime jurídico que o vincula com a Administração Pública, não pode sofrer
outras limitações ao exercício de seus direitos, além daquelas estritamente necessárias.
Justifica esse entendimento também a circunstância de que, sendo a liberdade sindical um
direito fundamental, o conteúdo essencial deve ser o mesmo para todos os seus titulares.
Destarte, consagrado aos funcionários o direito de liberdade sindical, tal como está
assegurado aos demais trabalhadores, a sujeição a peculiaridades não pode implicar limitação
ou exclusão do direito.
Com efeito, “Las peculiaridades no son excepciones o limitaciones al
derecho fundamental, sino, exclusivamente, modalizaciones para adaptar el contenido de la
178 RODRIGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER apud PALOMEQUE LÓPEZ. Derecho Sindical Español, 1991,
p. 334. 179 ORTEGA ÁLVAREZ. Los derechos sindicales de los funcionarios públicos, 1983, p. 319. 180
CASAS BAAMONDE. apud MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los
funcionarios públicos en la Constitución, 2002, p. 131.
170
libertad sindical a las especialidades objetivas de la función pública”181. Sendo assim, conclui-
se que o mandamento constitucional ao legislador para regular as peculiaridades não importa
autorização para afetar a titularidade do direito nem limitar o conteúdo essencial da liberdade
sindical dos funcionários, “sino a las condiciones de ejercicio de las diferentes facultades que
componen la libertad sindical, condiciones de ejercicio que no tendrán porqué ser las mismas
para os unos y los otros”182. Logo, não se pode, em nome das peculiaridades, afetar o
conteúdo essencial do direito, do qual faz parte o núcleo mínimo e indisponível. Em outros
termos, considerar a negociação dos funcionários como simples parte do conteúdo adicional
da liberdade sindical, remetendo-a à configuração que lhe for dada pelo legislador, importa
admitir mandamento para limitar ou excepcionar direito fundamental. Essas peculiaridades a
serem reguladas pelo legislador relacionam-se com especialidades para o exercício do direito,
razão por que se afirma que a intervenção da lei deve ser branda e em nenhuma hipótese pode
afetar o complexo de faculdades inerentes à liberdade sindical, mas tão-somente o modo de
seu exercício.
Isso não significa afirmar que a negociação coletiva na função pública
tenha a mesma amplitude, extensão ou alcance da negociação coletiva laboral. É certo que
ambas se extraem do artigo 28.1 CE, reforçado pelas disposições do artigo 7º CE, entretanto a
esta se agrega as potencialidades do artigo 37.1 CE, enquanto àquela se impõe as
peculiaridades do artigo 103.3. Resulta desse conjunto normativo que a autonomia individual
e coletiva manifesta-se distintamente nos regimes jurídicos laboral e administrativo. E assim
deve ser em face do regime constitucional diferenciado a que está sujeita a Administração
Pública, como resulta evidente das normas que lhe atribui poder regulamentar e de direção
(artigo 97 CE), delegação de elaboração de leis (artigo 82 CE) e iniciativa legislativa e
elaboração de projetos de leis (artigos 87, 88 e 134 CE). Além do mais, impende considerar o
papel distinto que a lei ocupa nos dois regimes jurídicos. Com efeito, quando se fala
de reserva de ley y Administración pública o de sometimiento de ésta al principio de legalidad, se trata fundamentalmente de subrayar la imperatividad de la norma (F. J. 3º STC 99/1987), lo cual habrá de afectar necesariamente al ámbito propio de la negociación colectiva así como la
181
LAHERA FORTEZA. La titularidad de los derechos colectivos de los trabajadores y de los funcionarios, 2001, p. 177-178.
182 MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los funcionarios públicos en la Constitución, 2002, p. 111.
171
función que la misma ha de cumplir, no tanto en cuanto revolución del sistema de fuentes formativas del Derecho administrativo como en el sistema e fuentes de la relación obligatoria que une al funcionario público con la Administración.183
183
MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los funcionarios públicos en la
Constitución, 2002, p. 111-112.
172
8 NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA EM NÍVEL LEGISLATIVO.
A CONFIGURAÇÃO DO DIREITO
Na jurisprudência constitucional espanhola subsiste a negociação
coletiva como direito de estrita configuração legal, ainda que integrada ao conteúdo adicional
da liberdade sindical dos funcionários públicos. Como consequência dessa interpretação
restritiva, hodiernamente prevalece o entendimento de que o direito à negociação não existe
fora da conformação legal, daí por que a negociação realizada fora dos parâmetros legais não
existe juridicamente, não tem natureza obrigatória e não possui eficácia jurídica. Destarte,
tratando-se de direito com configuração exclusivamente legal, faz-se necessário verificar o
tratamento que lhe foi conferido pelos sucessivos instrumentos normativos, cabendo, neste
ponto, a advertência de que toda regulação é ao mesmo tempo uma restrição, uma vez que o
exercício de um direito implica excluir desse exercício aquilo que a regulação deixar de fora.
A legislação regulamentadora foi paulatinamente dando conformação
ao direito, através de lento processo de aproximação em alguns pontos entre a negociação
coletiva dos funcionários e a dos demais trabalhadores. Esse processo tem início com a Lei nº
9/1987 (LORAP), modificada pela Lei nº 7/1990, e culminou com a Lei nº 7/2007 (EBEP),
que, apesar de manter os aspectos essenciais já definidos na regulação anterior, apresenta
algumas novidades, especialmente no tocante à regulação da negociação conjunta de
funcionários e trabalhadores. Passa-se ao exame da configuração legal do direito à negociação
coletiva dos funcionários, considerando que a experiência espanhola pode constituir
referencial relevante no momento em que está em curso no Brasil amplo debate objetivando a
regulamentação da matéria, sobretudo após a ratificação da Convenção nº 151, tornando mais
urgente e fundamental a institucionalização da negociação coletiva.
8.1 SISTEMA DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA INSTITUÍDO
PELA LEI Nº 9/1987 (LORAP), MODIFICADA PELA LEI Nº 7/1990
173
Na Espanha, a negociação coletiva na função pública foi
pioneiramente sistematizada na Lei nº 9, de 12 de maio de 1987, que dispunha sobre
“Órganos de Representación, Determinación de las Condiciones de Trabajo y Participación
del Personal al Servicio de las Administraciones Públicas (LORAP).184 O artigo 1º.1 definia o
âmbito de aplicação da LORAP, restrito ao pessoal vinculado às Administrações Públicas
através de uma relação de caráter administrativo ou estatutário. O artigo 2º.1 excluía
expressamente da incidência da LORAP os membros das Forças Armadas; os juízes,
magistrados e fiscais; os corpos e forças de segurança e o pessoal laboral sujeito ao regime de
Direito do Trabalho.
O Capítulo III tratava da negociação coletiva e da participação na
determinação das condições de trabalho, as quais o artigo 30 afirmava que deveriam realizar-
se mediante a capacidade representativa reconhecida às organizações sindicais pela LOLS,
além do previsto no citado Capítulo. Em sua redação original, este Capítulo tratava apenas de
participação na determinação das condições de trabalho, cuidando de processos meramente
consultivos que deveriam anteceder a definição das regras pertinentes à função pública pela
Administração. Mas a Lei nº 7, de 19 de julho de 1990, veio alterar a LORAP, dando ao
Capítulo III nova redação, que se traduzia na inclusão dos sistemas de negociação e consulta,
estabelecendo “[...] un modelo de participación fuertemente formalizado y centralizado que,
en principio, no permite fórmulas de participación informal o ‘extra legem’. Su configuración
legal determina la observância obligatoria de las formas de participación establecidas”.185
A LORAP concebia três processos de determinação das condições de
trabalho para a função pública: 1) negociação; 2) consulta; e 3) determinação unilateral. O
artigo 32 da LORAP dispunha sobre as hipóteses de negociação. A determinação unilateral
184
A negociação coletiva instituída pela Lei 9/1987 foi objeto de estudo específico pelos seguintes autores: GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionários, 1994; FENANDEZ DOMÍNGUEZ; RODRÍGUEZ ESCANCIANO. La negociación colectiva de los funcionarios públicos, 1996; ROQUETA BUJ. La negociación colectiva en la Función Pública, 1996; ARENILLA SÁEZ. La negociación colectiva
de los funcionarios, 1993. 185
GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 276.
174
ocorria para as matérias mencionadas no artigo 34.1. O artigo 34.2 previa a consulta às
organizações sindicais toda vez que “[…] las decisiones de las Administraciones Públicas que
afecten a sus potestades de organización al ejercicio del derecho de los ciudadanos ante los
funcionarios públicos”. Nesse aspecto, embora as posições externadas pelos sindicatos no
procedimento de consulta não vinculassem a Administração, tratava-se de trâmite obrigatório
cuja inobservância determinava a nulidade de pleno direito da disposição administrativa.
No sistema da LORAP, a teor do artigo 35, da negociação poderia
resultar a confecção de acordos ou pactos, observando que os pactos se celebrariam sobre
matérias que corresponderiam estritamente ao âmbito de competência do órgão administrativo
que o subscrevesse e vinculariam diretamente as partes, ao passo que os acordos versariam
sobre matérias da competência do Conselho de Ministros, Conselhos de Governo de
Comunidades Autônomas ou órgãos correspondentes das entidades locais. Quanto aos
acordos, para sua validez e eficácia, seria necessária a aprovação expressa e formal destes
órgãos em seu âmbito respectivo.
Segundo Fernando Valdés Dal-Ré, considerando o texto contido na
LORAP, os acordos correspondem a regulamentos negociados, representando um produto
normativo de caráter estatal, “[…] en relación al cual la negociación colectiva constituye
exclusivamente un trámite preceptivo y vinculante cuya inobservancia determina la nulidad de
la decisión”. Por sua vez, os pactos versam sobre matérias cuja decisão é dotada “[…] de una
vinculabilidad directa entre las partes, pues no necesitam ulterior acto de aprobación, y
desarrollando una eficácia jurídica normativa al estilo de los convenios colectivos
laboraes”.186 Portanto, na LORAP, a confecção dos acordos correspondem ao modelo da
negociação consultiva, enquanto a dos pactos, ao da negociação vinculante.
Considerando exclusivamente os paradigmas anteriores, parece que a
LORAP importou considerável avanço na configuração do direito à negociação coletiva dos
funcionários. No entanto, analisada com a lente dos novos paradigmas constitucionais,
sobretudo com a proclamação do Estado Social e Democrático de Direito e do
186
VALDES DAL-RÉ. Los derechos de negociación colectiva y de huelga de los funcionarios públicos en el
ordenamiento jurídico español: una aproximación, en REDT, núm. 86, 1997, p. 856-857.
175
reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários públicos (CE, artigos 1.1 e 28.1),
impende reconhecer que realmente a LORAP consagrou um modelo limitado, “una
negociación de tono menor, desvaluada”187. Conquanto reconheça alguns aspectos positivos
na regulação levada a efeito pela LORAP, a doutrina majoritariamente sustenta que esse
instrumento normativo poderia ter ido além e regulado melhor a matéria, “se hubiera partido
de uma regulación común y como peculiaridades se hubieran añido las especialidades propias
derivadas del âmbito funcionarial y de la Administración Pública”.188
Com efeito, considerando que os pactos, verdadeiros contratos
coletivos de imediata eficácia, possuem reduzido alcance, e que os acordos, de mais ampla
incidência, não geram efeitos senão quando adotados por atos regulamentares estatais,
constata-se que no sistema da LORAP a negociação coletiva encontra-se a meio caminho
entre o modelo de função pública de natureza estatutária, unilateralista, e o rompimento total
com este modelo, baseado na bilateralidade, com o protagonismo da autonomia coletiva na
determinação das condições de trabalho. De fato, a ruptura total teria ocorrido com a
assimilação dos acordos coletivos aos convênios do setor laboral, ou seja, com o
reconhecimento de plena eficácia normativa aos acordos coletivos da função pública, sem
sujeição a um controle de oportunidade algum, senão somente a um controle de legalidade
limitado, como ocorre no setor laboral.189
8.2 SISTEMA DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA INSTITUÍDO
PELA LEI Nº 7/2007 (EBEP)
187 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico. Disponível
em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010. 188 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico. Disponível
em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010. 189 CARRERA ORTIZ. Naturaleza y eficacia jurídicas de la negociación colectiva en la función pública en
España, en REDT, núm. 38, 1989, p. 271.
176
Cumpre agora examinar o atual regime jurídico da negociação coletiva
dos funcionários públicos introduzido pela Lei nº 7/2007, que regula o Estatuto Básico do
Empregado Público (EBEP). A análise aqui será mais detalhada, considerando que o marco
normativo em vigor na Espanha apresenta aportes significativamente úteis à
institucionalização do processo negocial no Brasil. Aqui não se procede a um exame de todos
e cada um dos aspectos da regulação, mas tão-somente os pontos com estreita conexão com a
eficácia do produto da negociação, com destaque para o âmbito subjetivo, a estrutura
negocial, os sujeitos negociadores, o conteúdo, o procedimento e a conclusão da negociação,
com enfoque para as situações de acordos e desacordos e suas consequências jurídicas. Em
diversos momentos aborda o tema do dever de negociar, com ênfase na singularidade do
caráter obrigatório da negociação para as Administrações Públicas, derivando daí a eficácia
negativa da negociação coletiva dos funcionários. Ademais, o estudo aprecia o princípio da
boa-fé negocial e sua implicação quanto à eficácia dos instrumentos resultantes da
negociação.
8.2.1 A regulação intervencionista e minuciosa contida na Lei nº 7/2007 (EBEP)
A Lei nº 7/2007, de 12 de abril, publicada no dia seguinte no Boletim
Oficial do Estado (BOE), que aprovou o EBEP, embora tenha um caráter continuista, na
medida que manteve os aspectos centrais do modelo até então em vigor, trouxe consideráveis
avanços, sobretudo por suprir diversas ambiguidades e vazios normativos contidos na
legislação anterior. A nova lei substitui a LORAP (Lei nº 9/1987, modificada pela Lei nº
7/1990), produz alterações parciais no Estatuto dos Trabalhadores – ET (RDL nº 1/1995) e
incorpora as modificações introduzidas pela Lei nº 21/2006. A mudança mais significativa é
certamente o reconhecimento da possibilidade de negociação conjunta entre funcionários e o
pessoal laboral.
177
Outros aspectos positivos são ressaltados pela doutrina: reconhece o
direito de negociação coletiva como direito individual de exercício coletivo, outorga maior
eficácia direta e autônoma ao acordo alcançado, deixa para trás a concepção de negociação
como mera participação na elaboração de regulamentos e outras disposições normativas, dá
um passo à frente ao substituir a consulta pela negociação e reduz a discricionariedade
administrativa e o recurso ao unilateralismo em caso de não se chegar ao acordo ou quando
não se procede à sua ratificação, potencializando assim a via negocial ou os procedimentos
pacíficos de solução dos conflitos.190
Apesar de o Estatuto conter avanços e aperfeiçoamentos importantes
para a concretização do direito de negociação coletiva, merece crítica no ponto em que regula
de forma exaustiva e totalizadora a matéria, deixando pouco espaço para sua conformação
pelas Administrações territoriais e para que os sujeitos coletivos possam dispor sobre alguns
aspectos da negociação. Com essa observação, passa-se à análise do modelo de negociação
coletiva definido pelo Estatuto Básico, verificando inicialmente seu objeto, o âmbito de
aplicação e os princípios gerais que norteiam o novel sistema de negociação coletiva.
O EBEP “tiene por objeto establecer las bases del régimen estatutario
de los funcionarios públicos incluidos en su ámbito de aplicación”, bem como “tiene por
objeto determinar las normas aplicables al personal laboral al servicio de las Administraciones
Públicas” (artigo 1.1 e 1.2). O âmbito de aplicação compreende o “personal funcionario y en
lo que proceda al personal laboral al servicio” das Administrações Públicas nominadas no
artigo 2.1., com as especificidades elencadas nos outros dispositivos do artigo 2. Os artigos 3,
4 e 5, respectivamente, regulam o alcance em relação ao “personal funcionario de las
Entidades Locales”, ao “personal con legislación específica porpria” e ao “Personal de la
Sociedad Estatal Correos y Telégrafos”. Ademais, dispõe o artigo 7 que “El personal laboral
al servicio de las Administraciones Públicas se rige, además de por la legislación laboral y por
las demás normas convencionalmente aplicables, por los preceptos de este Estatuto que así lo
dispongan.”
190 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 11.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
178
No tocante à negociação coletiva, as ideias centrais que norteiam a
elaboração normativa estão assim sintetizadas na Exposição de Motivos:
En esta materia se ha hecho un importante esfuerzo, de acuerdo con las recomendaciones de los expertos, para clarificar los principios, el contenido, los efectos y los límites de la negociación colectiva y para mejorar su articulación, a la vista de la experiencia de los últimos años y de la doctrina legal establecida por el Tribunal Constitucional y por el Tribunal Supremo.
Nesse aspecto, o EBEP elenca um conjunto de direitos individuais dos
empregados públicos que se exerce de forma coletiva, entre os quais está “la negociación
colectiva y a la participación en la determinación de las condiciones de trabajo” (artigo 15.b),
direito este reafirmado pelo EBEP ao estabelecer que “Los empleados públicos tienen
derecho a la negociación colectiva, representación y participación institucional para la
determinación de sus condiciones de trabajo” (artigo 35.1). De fato, o direito à negociação é
regulado em dois momentos distintos, primeiramente no Título III, Capítulo I, quando trata
dos direitos dos empregados públicos, referindo-se expressamente aos direitos individuais de
exercício coletivo. No mesmo Título III, dedica o Capítulo IV ao direito de negociação
coletiva, representação e participação institucional e ao direito de reunião. Esse conjunto
normativo, mesmo suprindo algumas ambiguidades e carências da regulação anterior, na
essência mantém o sistema próprio e peculiar de negociação coletiva.
Com efeito, o Estatuto possui a natureza de norma básica, significando
que seu conteúdo compreende as normas que são comuns ao conjunto de empregados de todas
as Administrações Públicas, correspondendo assim a uma síntese do sistema normativo que
diferencia o trabalho público do trabalho privado. O caráter básico indica também a
necessidade de posterior conformação pelas distintas Administrações territoriais, observadas
as competências respectivas e os princípios gerais que constam do próprio EBEP, bem como
indica a necessidade de assegurar espaço próprio para a negociação coletiva. Nesse sentido, a
natureza básica exige que a lei não regule de forma completa e detalhada todo o regime de
função pública, daí por que é imperativo constitucional que haja contenção normativa, com
regulação apenas das grandes diretrizes e dos aspectos fundamentais, de modo que exista
179
espaço tanto para a conformação pelas Administrações territoriais como para o exercício do
direito de negociação coletiva.
Nesse ponto, é preciso considerar que a natureza básica não foi
observada na regulação da negociação coletiva, pois o legislador não se limitou a traçar os
seus aspectos mínimos. De fato, o modelo de negociação que emerge do Estatuto
éamplamente intervencionista, na medida em confere à matéria um tratamento exaustivo,
totalizador, esgotando sua regulação e deixando reduzido espaço para sua conformação pelas
Administrações ou pela autonomia coletiva. Portanto, se o EBEP tem o mérito de suprir
lacunas, carências, ambiguidades e deficiências contidas na LORAP, a disciplina rígida e
completa teve o grave defeito de impedir a correção de suas incoerências e inadequações. Isso
porque o artigo 31.7 inclui entre os princípios gerais que a negociação coletiva “deberá
respetar en todo caso el contenido del presente Estatuto y las leyes de desarrollo previstas en
el mismo”.
Destarte, o Estatuto consagra um sistema fortemente intervencionista,
fechado e uniforme para todos os âmbitos, auto-suficiente e suscetível de aplicação imediata,
constituindo um marco necessário e indisponível para a própria negociação coletiva. De fato,
o novo sistema regula todos os aspectos da negociação, abrangendo estrutura, sujeitos,
conteúdo, procedimento, efeitos dos acordos e sistemas de solução extrajudicial dos conflitos
coletivos. “No deja espacios de negociación ni procedimientos de negociación fuera del
mismo, ni siquiera informal, ni permite su alteración por la propia autonomía colectiva, que
no existiría fuera del marco legal”191. É certo que a regulação circunstanciada possui a
vantagem de proporcionar segurança jurídica à negociação, mas incide no grave risco de
comprometer o próprio exercício da autonomia coletiva.
De outra parte, o Estatuto deveria se limitar a definir os princípios
gerais a respeito da função pública, sem detalhamento nem esgotamento da regulação, de
modo que ficasse assegurado o exercício do poder regulamentar pelas diversas
191 LOPEZ GANDIA, J. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 4.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
180
Administrações territoriais e o exercício da autonomia coletiva. Esta é uma exigência do
próprio desenho constitucional, daí por que
Se ha de establecer un nuevo reparto de papeles entre la norma legal y la norma colectiva, pues sin deslegalizar y desreglamentar espacios normativos no podrá existir un margen de contractualización de la regulación jurídica de la relación de empleo público, aunque el convenio no llegue a ocupar la centralizad y espacio de la negociación colectiva laboral192.
A minuciosa regulação da função pública pelo EBEP apresenta
profunda limitação para a negociação coletiva. A natureza básica do Estatuto reside na
consideração de que “Si la ley no debe regularlo todo, ni de forma cerrada, tampoco la ley y
su complemento regulamentario pueden hacerlo”193. Isso decorre do fato de que
la Constitución no impide, sino que incluso exige, que esa ley, y, en su caso, los reglamentos, tengan en cuenta la fuente colectiva, no agotando todos los posibles espacios de regulación, dejándole espacios reguladores o asignándole, como hace el Estatuto de los Trabajadores, funciones y cometidos reguladores específicos, también para promocionarla o favorecerla 194.
O EBEP não apenas regula de forma exaustiva e totalizadora o
modelo de negociação coletiva, como também já conforma os aspectos substanciais do
estatuto da função pública, deixando pouco espaço para a autonomia coletiva. É certo que o
artigo 37.1 especifica as matérias objeto da negociação, entretanto muitos dos conteúdos já
estão previamente regulados, de modo que “Algunas materias susceptibles de negociación,
por tanto, ya están reguladas en el Estatuto básico, unas de manera abierta, como mínimas,
otras de manera dispositiva, o supletoria, pero la mayoría de manera cerrada y
autosuficiente”195. Mesmo as normas de direito mínimo não são necessariamente conformadas
192 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. Ley y negociación colectiva en la función pública, en
Relaciones Laborales, núm. 14, 1997, p. 9. 193 RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. Ley y negociación colectiva en la función pública, en
Relaciones Laborales, núm. 14, 1997, p. 6. 194 DEL REY GUANTER; LUQUE PARRA. Criterios jurisprudenciais recientes sobre la negociación colectiva
de los funcionarios públicos, em Relaciones Laborales, núm. 4, 1997, p. 23. 195 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 8.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
181
pela autonomia coletiva, uma vez que há de ser observada a repartição constitucional de
competências, daí por que frequentemente os vazios normativos devem ser preenchidos pelo
poder regulamentar das Comunidades Autônomas ou a das entidades locais.
Outro ponto a considerar diz respeito à relação entre lei e negociação
coletiva. Aqui é inaplicável o princípio da norma mais favorável, um dos princípios
definidores e mais característicos da hierarquia de fontes no Direito do Trabalho. Neste, as
normas atuam como um mínimo para a negociação coletiva (ET, artigo 3.3), cuja função
básica é incrementar os direitos assegurados na legislação, sendo muito raras as normas de
direito necessário absoluto, não suscetível à conformação pela autonomia coletiva. Na função
pública a situação é distinta, porquanto as normas são concebidas em termos de direito
necessário absoluto. Logo, a negociação coletiva há de observar sua peculiar forma de
inserção no esquema de fontes do ordenamento jurídico-administrativo, informado pelos
princípios de competência, hierarquia e reserva de lei.
Assim,
A diferencia de la negociación colectiva laboral la negociación colectiva no se sitúa en un espacio añadido a la ley y los reglamentos, sino en el interior de las fuentes, como condicionante de la propia regulación estatutaria. No se trata por tanto de si caben los convenios junto al bloque de legalidad sino cómo se relacionan con el mismo, cuál es el esquema de fuentes de regulación. La negociación colectiva funcionarial no es una fuente añadida al régimen estatutario sino la fuente de regulación del mismo, mediante la negociación prelegislativa, lo que no quiere decir que los acuerdos negociados sean absorbidos por estas196.
Como corolário, “la reserva de ley ya no afecte sólo directamente a la
negociación [...] sino también al propio resultado de la misma y al alcance de su eficacia
196 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 9.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
182
vinculante, al distinguirse a efectos del contenido y eficacia de la negociación colectiva entre
materias de reserva de ley y las demás”197.
8.2.2 Reconhecimento legal da negociação coletiva conjunta de funcionários e trabalhadores
Considera-se aqui o âmbito subjetivo da negociação regulada pelo
EBEP. Conquanto essa normativa regule de um modo geral o regime jurídico dos empregados
públicos, conforme espectro antes delineado, essa mesma abrangência não se aplica à
negociação coletiva. Com efeito, mesmo após o EBEP subsistem dois sistemas de negociação
coletiva no âmbito das Administrações Públicas, um reservado aos funcionários e o outro
destinado ao pessoal laboral, submetidos a dois regimes jurídicos distintos. Embora a
expressão “empleados públicos” compreenda os funcionários públicos e também o pessoal
estatutário e laboral, o direito à negociação coletiva nos termos e condições do EBEP abrange
tão-somente o pessoal sujeito ao regime jurídico-administrativo. O pessoal laboral mantém o
direito à negociação coletiva regido pelo Título III do ET, não lhe sendo aplicável o Capítulo
IV do Título III do EBEP, haja vista o disposto no artigo 32, segundo o qual “La negociación
colectiva, representación y participación de los empleados públicos con contrato laboral se
regirá por la legislación laboral, sin perjuicio de los preceptos de este Capítulo que
expresamente les son de aplicación”. O sistema de negociação coletiva do EBEP somente é
aplicável ao pessoal laboral em se tratando de negociação conjunta, conforme a previsão do
artigo 36.3.
Essa é uma das grandes novidades introduzidas no sistema de
negociação coletiva nas Administrações Públicas. 198 Mesmo diante da insegurança jurídica
197 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 10.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
198 Obra completa sobre negociação coletiva conjunta foi produzida por MARÍN ALONSO. La negociación
colectiva conjunta del personal laboral y funcionarial en la administración pública. Los acuerdos mixtos, 1999. Análise breve da negociação conjunta no EBEP é realizada por ALFONSO MELLADO. Los derechos
183
por falta de previsão na LORAP e apesar da jurisprudência do TS que negava viabilidade da
negociação conjunta, o certo é que os fatos suplantaram a rigidez normativa, e a articulação
unitária da negociação tornou-se uma experiência frequente nas relações coletivas envolvendo
os empregados e as Administrações Públicas. Eram negociações informais, destituídas de
eficácia legal, mas que terminaram sendo amplamente adotadas. As objeções à negociação
comum baseavam-se principalmente na circunstância de que o direito estava regulado por
normas distintas, o dos funcionários pela LORAP, enquanto a dos trabalhadores pelo ET.
Apontava-se também o inconveniente de que os acordos dos trabalhadores possuíam eficácia
imediata, enquanto em relação aos funcionários a eficácia jurídica estava condicionada à
aprovação expressa e formal. Indicava-se também o distinto grau de autonomia entre os dois
modelos de negociação, bem assim invocavam-se as distintas formas e meios de impugnação
dos acordos e convênios coletivos.
Além de tudo isso, a jurisprudência aponta outro fator complicador e
que diz respeito à distinta relação entre lei e negociação coletiva nos dois regimes jurídicos.
De fato, conforme já assinalado, nas relações sujeitas ao ET, as normas legais que estipulam
condições de trabalho constituem direito mínimo, ao passo que nas relações sujeitas ao regime
jurídico-administrativo as normas legais geralmente constituem direito necessário, abertas à
negociação coletiva nos termos e limites definidos pela própria lei. E esse foi o principal
fundamento adotado pelo TS para rechaçar a negociação conjunta. De fato, a jurisprudência
considerou que as cláusulas ajustadas que importavam melhoria das condições de trabalho,
conquanto válidas para os empregados regidos pelo ET, não possuíam validade jurídica em
relação aos funcionários. O problema residia na circunstância de que a normativa básica
aplicável aos funcionários não representava limites mínimos, mas limites máximos e assim
não franqueados à majoração pela autonomia coletiva.
Como corolário dessa jurisprudência, negava-se eficácia jurídica
própria à negociação conjunta, tornando necessário a adoção de procedimento de negociação
distinto para celebração dos respectivos instrumentos normativos, na forma rigidamente
definida pelas normas específicas. Na prática, frequentemente ocorria a negociação conjunta,
mas o resultado era materializado em instrumentos distintos e formalmente separados, através
colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 18-24; ROQUETA BUJ. El derecho de
negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público. 2007, p. 91-97.
184
da celebração de Pactos e Acordos, no caso dos funcionários, e de convênios coletivos, no
caso dos trabalhadores. Essa exigência não levava em conta que a negociação unitária
resultava em economia e eficiência, na medida em que viabilizava o ajuste sobre matérias
comuns envolvendo funcionários e trabalhadores. Desse modo, considerando especialmente a
prática já consagrada e objetivando reduzir o grau de insegurança então existente, decorrente
da falta de regulação na LORAP, o EBEP passava a reconhecer um espaço para uma
abordagem comum e unitária da negociação de funcionários e trabalhadores. Com esse
propósito, o artigo 36.3 previa a constituição de uma Mesa geral de negociação em cada
âmbito da Administração. O reconhecimento legal da negociação conjunta supria o vazio
normativo, consagrando juridicamente uma prática generalizada, mas trazia consigo alguns
problemas, cuja solução haveria de ser construída com o próprio desenvolvimento da
negociação.
O primeiro ponto a considerar diz respeito ao caráter facultativo ou
obrigatório da constituição da Mesa geral de negociação unitária. A expressão “se constituirá”
sugere um comando, razão pela qual é razoável uma interpretação no sentido de reconhecer o
caráter obrigatório da constituição da Mesa geral e assim obrigatória igualmente seria a
negociação unitária. No entanto, essa não parece ser a melhor interpretação, levando em conta
a necessidade de conferir maior abertura à negociação, especialmente em face do princípio da
autonomia coletiva. Destarte, o termo “se constituirá” deve ser interpretado no sentido de que,
optando os sujeitos coletivos pela negociação unitária, impõe-se a observância do
procedimento definido no Estatuto Básico, não sendo possível conduzir negociação informal à
margem da lei. Em outros termos, a simples existência de matérias e condições de trabalho
comuns não impõe a negociação unitária, cabendo aos sujeitos coletivos a decisão de negociar
conjuntamente ou de forma isolada.
Em relação à legitimidade para a negociação conjunta, o EBEP
consagra o monopólio sindical como critério legitimador da negociação coletiva. Desse modo,
optando os trabalhadores por essa modalidade especial de negociação, a legitimação não
observa o critério da negociação laboral, mas aquela definida no próprio Estatuto Básico.
Tratando-se o artigo 36.3 do EBEP de norma especial, nesse aspecto prevalece sobre a norma
geral do artigo 87 do ET, daí por que na negociação conjunta fica excluída a representação
unitária. Logo, somente os sindicatos estão legitimados para a negociação conjunta.
185
O Estatuto Básico indica as matérias objeto da negociação e aquelas
que estão excluídas (artigo 37). No tocante à negociação conjunta, não há a mesma
especificação. De certo modo, o próprio dispositivo já sugere as matérias e condições de
trabalho que são comuns e assim podem ser objeto de negociação unitária. Isso se dá
exemplificativamente com as letras a e m, que envolvem “La aplicación del incremento de las
retribuciones del personal al servicio de las Administraciones Públicas” e os temas que
“afecten a condiciones de trabajo de los empleados públicos”. Em relação a outras matérias
versadas no artigo 37.1, não se distingue desde logo se concernem exclusivamente aos
funcionários públicos ou se podem ser objeto de abordagem comum. Diante da falta de
clarificação na lei, cabe aos sujeitos coletivos a definição das matérias comuns objeto de
negociação, observados os critérios definidos na normativa básica.
Outro ponto sensível diz respeito às matérias excluídas da negociação
conjunta. No artigo 37.2 há matérias que se referem exclusivamente aos funcionários, mas
outras alcançam igualmente funcionários e trabalhadores, incluindo neste último caso, entre
outras, as decisões que afetem os poderes de administração e os direitos dos cidadãos e
usuários. Outras matérias estão excluídas apenas da negociação dos funcionários, mas que
podem ser objeto de negociação coletiva laboral, quando se trata, por exemplo, dos poderes de
direção e controle próprios da relação hierarquia (artigo 38.2.d). Nesse tema não é possível a
negociação conjunta.
De outro modo, também suscita questionamentos a possibilidade de o
instrumento normativo poder regular condições específicas para os funcionários ou para os
trabalhadores. Importa considerar que a nova regulação tem o propósito de legalizar práticas
habituais, em que já se consagram a negociação unitária, mas seu resultado tem que ser
materializado em instrumentos distintos. Nessa perspectiva, parece que não é possível a
negociação em aspectos que não sejam comuns aos dois coletivos. No entanto, apesar de o
resultado do ajuste coletivo ser formalizado em um mesmo instrumento, não parece haver
óbice legal que se contemple especificidades em relação ao âmbito do conjunto de
funcionários ou trabalhadores. De todo modo, conforme se abordará adiante no tocante aos
conteúdos incluídos e excluídos da negociação coletiva, a interpretação deve-se orientar para
186
potencializar o direito de negociação, ampliando conteúdos possíveis para a negociação, o que
implica a necessidade de interpretar-se extensivamente o artigo 38.1 e restritivamente o artigo
38.2. Essa interpretação indica a possibilidade de o instrumento conjunto abordar aspectos
específicos para um determinado segmento de empregados públicos.
Recorrendo as partes à solução extrajudicial, as normas aplicáveis não
são as mesmas, haja vista que nessas situações aplicam-se as normas específicas para
funcionários e trabalhadores, nos termos do artigo 45 EBEP e dos artigos 85.1 e 91 ET.
Tratando-se de suspensão ou modificação dos instrumentos, “cuando excepcionalmente y por
causa grave de interés público derivada de una alteración sustancial de las circunstancias
econômicas” (artigo 38.10), essa situação implica solução uniforme para funcionários e
trabalhadores. No entanto, quando houver impugnação judicial, a questão assume maior
complexidade em face da possibilidade de decisões contraditórias considerando a diversidade
de competência jurisdicional. Desse modo, anulada a negociação em relação a um dos
coletivos de empregados públicos, não é possível estender os efeitos da decisão ao outro
coletivo, mas para preservar a coerência e garantir a uniformidade de regulação, ideia que
permeia o espírito da negociação conjunta, o certo deve ser a renegociação.
8.2.3 O exercício do direito de negociação coletiva na função pública na Lei nº 7/2007
(EBEP)
Integrando o direito à negociação coletiva dos funcionários agora de
forma clara e expressa o EBEP, que deve observar em todo caso as normas nele previstas
(artigo 37.1), faz-se necessário analisar os aspectos centrais da regulação implementada pela
Lei nº 7/2007. Isso porque o Estatuto Básico disciplina o direito à negociação coletiva de
forma intervencionista, abrangente e exaustiva, de modo que é preciso considerar em sua
integralidade o sistema próprio e peculiar da negociação coletiva dos funcionários. Sendo
assim, a compreensão dos limites e possibilidades da negociação somente se torna possível a
187
partir do exame da regulação levada a efeito pelo EBEP acerca do âmbito subjetivo, estrutura,
sujeitos, conteúdo, procedimento e terminação da negociação. O tema da eficácia e seus
aspectos correlatos constituem o objeto central desta investigação e por isso serão apreciados
no capítulo seguinte.
8.2.3.1 Âmbito subjetivo da negociação coletiva
No tocante ao âmbito subjetivo, o direito à negociação coletiva está
assegurado a todos os funcionários públicos que têm reconhecida a liberdade sindical, mas
seu exercício se dá de forma coletiva (artigo 31.1), através dos órgãos e sistemas específicos.
Nos termos do artigo 31 EBEP, apesar de o direito ser reconhecido aos “empleados públicos”,
a negociação coletiva do pessoal laboral das Administrações Públicas rege-se pelo Título III
do Estatuto dos Trabalhadores, não lhes sendo aplicáveis as normas do Capítulo IV do Título
III, EBEP (artigo 32). Essa exclusão funda-se na diversidade de regimes jurídicos e justifica
um tratamento não uniforme para a negociação coletiva, na medida em que há uma distinção
na relação entre lei e instrumento coletivo para essas duas categorias de trabalhadores
públicos. De fato, no âmbito laboral, a lei constitui um mínimo para a negociação, sendo
excepcionais as normas de direito necessário em relação às quais não há espaço para a
engociação. No âmbito da função pública, as normas não constituem um mínimo para a
negociação, sujeitando-se ao princípio da competência reguladora, no sentido de que a
negociação deve incidir sobre matérias negociáveis e assim mesmo observado o âmbito
respectivo. Nada obstante, tratando-se de negociação conjunta, as normas do EBEP
constituem indiretamente disposições especiais em relação ao Estatuto dos Trabalhadores.
Consagrando o EBEP a expressão “funcionários” para referir-se às
categorias abrangidas pela negociação coletiva, resulta que o termo abrange os funcionários
de carreira (artigo 9º), os funcionários interinos (artigo 10) e o pessoal estatutário (artigo 2.4).
Compreende a negociação essas categorias integrantes da Administração Geral do Estado, das
188
Administrações das Comunidades Autônomas e das Cidades de Ceuta e Mellila, das
Administrações das Entidades Locais, dos Órgãos Públicos, Agências e demais Entidades de
Direito Público com personalidade jurídica própria, vinculadas ou dependentes de quaisquer
das Administrações Públicas, assim como das Universidades Públicas. De outra parte, estão
excluídas da negociação as categorias que envolvem o pessoal eventual (artigo 12) e o pessoal
diretivo (artigos 13 e 37.2.c). Estão excluídos das disposições do EBEP, salvo remissão
expressa, e da negociação coletiva por ele regulada as categorias sujeitas à legislação
específica (artigo 4º)199. Ainda, o pessoal da Sociedade Estatal de Correios e Telegráfos
também se rege por normas específicas e apenas supletivamente são aplicadas as normas do
EBEP (artigo 5º).
8.2.3.2 Estrutura da negociação coletiva: as Mesas
Quanto à estrutura da negociação, há diferença substancial do modelo
“livre” adotado pelo ET, na medida em que o EBEP institui órgãos específicos e adota um
esquema “rígido” em torno das Mesas previamente criadas pela lei como órgãos estáveis que
preexistem e subsistem a cada negociação, cuja composição também está determinada
legalmente, sem que os sujeitos negociadores detenham capacidade de ajustar a estrutura
negocial. Resulta então que, diferentemente do que ocorre no setor privado, a autonomia
coletiva na função pública está delimitada por uma prévia regulação legal que determina de
forma necessária e inalterável a estrutura da negociação. La negociación colectiva no es [...]
constituyente y soberana sino que está ya constituida y determinada por la ley. No es libre
como en el ámbito laboral, para eligir las unidades de negociación sino que éstas vienem
199
Às categorias que seguem somente se aplica o EBEP quando a legislação específica expressamente assim dispuser: “a) Personal funcionario de las Cortes Generales y de las Asambleas Legislativas de las Comunidades Autónomas. b) Personal funcionario de los demás Órganos Constitucionales del Estado y de los Órganos Estatutarios de las Comunidades Autónomas. c) Jueces, Magistrados, Fiscales y demás personal funcionario al servicio de la Administración de Justicia. d) Personal militar de las Fuerzas Armadas. e) Personal de las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad. f) Personal retribuido por arancel. g) Personal del Centro Nacional de Inteligencia. h) Personal del Banco de España y Fondos de Garantía de Depósitos en Entidades de Crédito.”
189
predeterminadas por la ley, como una realidad anterior a la propria negociación y de la que no
cabe disponer”200. Trata-se assim de uma negociação muito peculiar, ajustada à própria
estrutura administrativa e imposta por via legal que “obedece a la idea de homogeneidad e
igualdad en la determinación de las condiciones de trabajo, de manera que se evite la
fragmentación, sea territorial, [...] sea funcional o personal por cuerpos o categorías, esto es,
se trataba de prevenir hasta donde fuera posible el corporativismo en este ámbito”201.
O EBEP estrutura a negociação através de mesas de negociação,
verdadeiras peças de sua engrenagem estrutural202, instituídas como instrumentos através dos
quais se deve realizar a negociação. Análise comparativa entre a LORAP e o EBEP indica que
as modificações substanciais introduzidas em relação às unidades negociadoras são assim
sintetizadas: a) cria uma Mesa Geral de Negociação das Administrações Públicas,
compreendendo a Administração Geral do Estado (AGE), as Comunidades Autônomas
(CC.AA) e as Entidades Locais (EE.LL) e as organizações sindicais; b) prevê a criação de
Mesas de negociação comum para os funcionários e os trabalhadores a serviço de uma mesma
Administração Pública; c) atribui aos membros das Mesas de negociação a competência para
determinar a data de início das negociações e as matérias a negociar, extinguindo assim as
denominadas “supermesas gerais”; d) elimina a relação de Mesas setorias de criação
obrigatória na AGE e amplia as possibilidades das Mesas gerais de negociação no momento
de constituição das Mesas setoriais; e e) admite a negociação de âmbito supramunicipal e
prevê a adesão a Acordos celebrados na área territorial de cada Comunidade Autônoma.203
O estudo das unidades de negociação estabelecidas pelo EBEP indica
algumas características da estrutura negocial: a) intervencionismo legislativo e a fixação
heterônoma das unidades negociadoras; b) estrutura centralizada das unidades de negociação,
excepcionada apenas pela possibilidade de criação de Mesas setoriais; c) estrutura vertical das
200 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 13.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
201 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 14.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
202 BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía colectiva en la función pública, 2005. 203 ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p.
114.
190
unidades de negociação; e d) interdependência entre as unidades de negociação.204 Essas
características geralmente são atribuídas à peculiaridade da liberdade sindical dos
funcionários públicos a que se refere a CE, artigo 28.1, daí resultando a necessidade de
adaptação da estrutura negocial à organização das Administrações Públicas, de modo que a
estrutura administativa termina condicionando a estrutura da negociação coletiva dos
funcionários. Reforça esse modelo a circunstância de que as competências são irrenunciáveis
e devem ser exercidas exatamente pelos órgãos administrativos nelas investidos por
delimitação constitucional.
Passa-se à análise das Mesas de negociação, que constituem o
instrumento técnico através do qual se deve canalizar a negociação coletiva dos funcionários.
No primeiro nível, está constituída a Mesa Geral de Negociação de todas as Administrações
Públicas, com representação de todas elas, tendo por objetivo conferir ampla participação das
administrações autônomas e aos entes locais na negociação de matérias que de todo modo o
Estado adotaria diante de sua natureza básica ou então por afetar os padrões remuneratórios
ou os limites estabelecidos na lei orçamentária do Estado (artigo 36.2). As matérias objeto da
negociação neste nível são geralmente próprias da regulação estatal e em regra configuram
uma negociação pré-legislativa. A Mesa Geral é especialmente relevante e se justifica “en la
medida en que las bases del régimen estatutario y el incremento de las retribuiciones acaban
afestando a las demás Administraciones Públicas y no sólo a la del Estado”205. As matérias
negociáveis são aquelas que “resulten susceptibles de negulación estatal con caráter de norma
básica”, que alcança exclusivamente os funcionários, na forma da CE, artigo 149.1.18. A
negociação desenvolvida deve respeitar as competências normativas em matéria de função
pública das CC.AA, posto que a negociação deve-se realizar “sin perjuicio de los acuerdos a
que puedan llegar las Comunidades Auónomas en su correspondiente ámbito territorial en
virtud de sus competencias exclusivas y compatidas en materia de Función Pública” (artigo
36.2).
204 ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p.
126. 205 LOPEZ GANDIA, J. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 15.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
191
Não obstante as matérias objeto da negociação nesse nível serem de
competência do Estado, justifica-se a participação de todas as Administrações Públicas. Isso
se dá porque as bases do regime jurídico-administrativo, assim como os incrementos salariais,
terminam afetando não somente o Estado, mas igualmente as Administrações das CC.AA e
dos EE.LL. A negociação desenvolvida não regula exclusivamente as condições de trabalho
sujeitas ao regime da função pública, eis que alcançam também o pessoal laboral, tal como se
constata da legitimação negocial e das matérias inseridas nesse nível de negociação (artigos
36.2 e 37). No ponto, insere-se na atribuição da Mesa a determinação do incremento global
das retribuições do pessoal de todas as Administrações Públicas, a ser incorporada ao projeto
de lei orçamentária do Estado. Essa circunstância por certo limita a própria negociação
coletiva laboral. O Acordo firmado não se materializa em convênio coletivo nem possui a
eficácia do artigo 83 ET, sujeitando-se ao regime e ao instrumento que dispõe sobre a
negociação dos funcionários.
Nesse aspecto, “Los topes retributivos se negocian en este marco no
porque sea una materia básica, que no lo son [...], sino por tratar-se de medidas coyunturales
sobre el gasto público, una variable de la política económica, que por razones de igualdad y
solidaridad se aplican a todos los empleados públicos”206. Esse foi o entendimento consagrado
na STC 148/2006, de 9 de maio. 207 O reconhecimento da estreita conexão entre política
econômica e retribuição dos trabalhadores públicos por certo implicava a aceitação de que a
negociação coletiva está sujeita aos limites legais, não podendo concluir acordos, pactos ou
convênios coletivos que resultem crescimento da massa retributiva ou da massa salarial global
superior ao autorizado pela lei orçamentária (artigo 37.1.a). Muito diferente disso é admitir
que o governo possa descumprir acordos já firmados a pretexto de imperiosa necessidade de
206 LOPEZ GANDIA, J. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 15.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
207 Assim consta da STC 148/2006: “En el caso que nos ocupa, y teniendo en cuenta la directa relación que existe entre la fijación de la política económica general por parte del Estado y la decisión de congelar las retribuciones del personal al servicio de todas Administraciones públicas, también cabe aceptar el carácter básico de esta última decisión, puesto que se trata de una medida coyuntural que el legislador estatal considera necesaria para conseguir los objetivos de política económica general que se explicitan en el preámbulo de la Ley de presupuestos generales del Estado para 1997: crecimiento económico y convergencia real y nominal con los países que integran la Unión Europea. El indudable impacto de las retribuciones del personal al servicio de todas las Administraciones públicas en las magnitudes macroeconómicas y el hecho de verse acompañada por otras decisiones en el mismo sentido, como la restricción en la oferta de empleo público durante el mismo ejercicio, deben conducir a aceptar, teniendo en cuenta los límites de este Tribunal en el control de estas decisiones macroeconómicas, La legitimidad competencial de la congelación salarial prevista en el art. 17 de la Ley de presupuestos generales del Estado.”
192
ajustes econômicos. Isso porque qualquer medida nessa direção importa violação da função da
Mesa geral de negociação das Administrações Públicas e do direito de negociação coletiva
reconhecido na CE, no EBEP e no ET.
No segundo nível, encontra-se a Mesa Geral de negociação em cada
Administração, encarregada da negociação coletiva das condições de trabalho dos
funcionários públicos em cada um dos seguintes âmbitos: AGE, cada uma das CC. AA.,
Ceuta, Melilla e em cada Entidade Local. O âmbito de atuação das respectivas unidades
negociadoras está previamente delimitado segundo a repartição de competências normativas
em matéria de função pública entre os três níveis territoriais. A delimitação de competências
não implica que as relações entre as distintas mesas sejam estanques, porquanto entre elas há
implicações recíprocas. Isso ocorre quando a negociação se dá em determinado âmbito e o
objeto adquire transcendência para alcançar também funcionários de outras Administrações
Públicas. De outra parte, o Estatuto Básico permite estruturas de negociação em âmbito
supramunicipal, na medida em que “reconoce la legitimación negocial de las asociaciones de
municípios, así como la de las Entidades Locales de ámbito supramunicipal” (artigo 34.2).
Por fim, no terceiro nível, encontram-se as Mesas setoriais, que
podem ser instituídas “en atención a las condiciones específicas de trabajo de las
organizaciones administrativas afectas o a las peculiaridades de sectores concretos de
funcionarios públicos y a su número” (artigo 34.4). Esta é a maior novidade introduzida pelo
EBEP em relação à estrutura negociadora, adotando no ponto um modelo descentralizado e
flexível, na medida em que as mesas setoriais não são mais determinadas legalmente, posto
que sua constituição é flexivelmente decidida pelas Mesas gerais, seja em relação ao âmbito
pessoal, seja em relação ao conteúdo material (artigo 34.5). De fato, o artigo 31.1 LORAP
estabelecia que, formada a Mesa geral, constituíam-se mesas setoriais para a negociação
coletiva nos setores específicos que o próprio texto legal relacionava, fixando-se assim uma
série de mesas setoriais.
Ao suprimir a lista de mesas setoriais de constituição obrigatória, o
Estatuto Básico confere maior protagonismo à autonomia coletiva, aproximando-se em
alguma medida do sistema de negociação laboral, haja vista que a criação das mesas setoriais
193
e as matérias que podem negociar já não dependem da lei, mas da Mesa geral correspondente.
É certo que o próprio EBEP já estabelece critérios para a criação das mesas setoriais, como a
observância “al número y peculiaridades de sectores concretos de funcionarios públicos”,
assim como deve considerar “condiciones específicas de trabajo de las organizaciones
administrativas afectas”. Embora no novo modelo haja ampla margem de discricionariedade
para a criação das mesas setorais, “parece que en su creación siguen excluidos los criterios
personales, de cuerpos o categorías, aunque no las peculiaridades de sectores concretos o
incluso de centros de trabajo, pero siempre que afecten a todos los cuerpos y categorías
presentes en los mismos”208.
8.2.3.3 Sujeitos negociadores: a composição das Mesas
Diferentemente do sentido objetivo, em que as Mesas constituem
unidades negociadoras, por meio das quais se desenvolve a negociação, o sentido subjetivo
aqui examinado indica que as Mesas são órgãos de composição mista, institucionalizados,
bipartites, dos quais participam representações da Administração Pública correspondente e
dos sindicatos legitimados, cada qual portadora de interesses próprios e naturalmente
conflitantes. Por certo, as mesas não possuem capacidade nem legitimidade negocial,
entendidas estas expressões, respectivamente, como “aptitude abstracta para ser parte en la
negociación colectiva” e como indicação dos “sujeitos habilitados para actuar en el âmbito de
cada mesa negociadora concreta”209. Destarte, passa-se à análise dos aspectos centrais
relacionados à capacidade e legitimação quanto às duas partes da negociação, com enfoque
sobre as alterações introduzidas pelo EBEP.
208 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 16.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
209 BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía colectiva en la función pública, 2005, p. 115.
194
Da parte dos funcionários, o EBEP mantém o modelo fundado no
monopólio sindical da negociação e na capacidade negocial reconhecida exclusivamente às
organizações sindicais mais representativas e suficientemente representativas, baseada em
“una titularidad sindical seleccionada”210. Reafirma-se a opção do legislador por um modelo
legal sindicalizado, que é “producto de una política coherente enraizada en la potenciación del
sindicato como único agente de la acción sindical”211, e em certa medida melhor se ajusta às
características das Administrações Públicas. Por tratar-se de regulação de caráter básico, o
modelo de negociação sindicalizada impede sua modificação através de lei das CC.AA ou da
autonomia coletiva, assim como exclui a possibilidade de que outros entes coletivos sem
personalidade sindical possam participar da negociação. Coerente com a negociação
sindicalizada, o EBEP continuou negando capacidade negociadora aos órgãos de
representação legal dos funcionários (Delegados de Pessoal e Juntas de Pessoal). A exclusão
alcança também a negociação conjunta de funcionários e laborais, solução considerada
constitucional, posto que a representação unitária tem configuração legal e por isso nada obsta
que outra norma legal possa excluir essa representação de processos específicos de
negociação. O modelo tem sido justificado na ideia de que, “además de ser una legítima y
constitucional opción de política legislativa, es coherente con la estructura de la negociación
colectiva en la función pública porque los ámbitos de las juntas y delegados de personal no
coinciden, geralmente, con el ámbito de las Mesas de negociación”212. Essa opção pela
negociação sindicalizada se ajusta ao sistema brasileiro, na medida em que a Constituição
Federal de 1988 impõe a obrigatoriedade de participação dos sindicatos na negociação
coletiva, o que afasta a possibilidade de entes sem personalidade sindical participarem do
processo negocial.
Além de manter o monopólio sindical, o Estatuto Básico preserva a
capacidade negocial exclusivamente aos sindicatos mais representativos ou suficientemente
representativos, apurada a representatividade na forma dos artigos 6 e 7 LOLS (EBEP, artigo
33.1 e 35.2). As grandes organizações sindicais restaram fortalecidas, em prejuízo de outras
de menor representatividade. O modelo peculiar adotado faz com que a condição de ente 210 LAHERA FORTEZA. La titularidad de los derechos colectivos de los trabajadores y de los funcionarios,
2001, p. 277. 211 LAHERA FORTEZA. La titularidad de los derechos colectivos de los trabajadores y de los funcionarios,
2001, p. 304. 212 LAHERA FORTEZA. La titularidad de los derechos colectivos de los trabajadores y de los funcionarios,
2001, p. 278.
195
sindical não garanta por si a integração na Mesa negociadora, na medida em que o legislador
optou por um monopólio sindical qualificado, que põe à margem do processo negocial
aqueles sindicatos que não atingem percentuais mínimos para a obtenção da
representatividade. Essa opção, no entanto, no entender do TC, não importa violação à
liberdade sindical, tal como afirmado na STC 224/2000, haja vista que
resulta, sin duda alguna, compatible con la configuración legal del ejercicio del derecho a negociar, restringiendo la legitimación para formar parte de la comisión negociadora a las organizaciones sindicales que acrediten un cierto nivel de representatividad allí donde el legislador ha querido dotar al acuerdo resultante de unos determinados y específicos efectos jurídicos, como sucede en el caso de la negociación laboral estatutaria o en el ámbito de la función pública.213
A exigência de um mínimo de representatividade está também em
discussão no Brasil e a experiência espanhola já demosntra que se trata de solução
constitucional, legítima e necessária.
A legitimidade negocial está previamente definida no Estatuto Básico
e corresponde aos sujeitos legitimados para intervir diretamente nas distintas mesas
negociadoras. A matéria é de ordem pública, razão pela qual a outra parte não detém poder
para atribuir ou negar a condição de sujeito legitimado para negociar, assim como essa
matéria está excluída de qualquer disponibilidade através da autonomia coletiva. Da parte dos
funcionários, a legitimação é conferida às organizações sindicais mais representativas a nível
estatal ou de comunidade autônoma e às organizações sindicais com representatividade de
10% na unidade correspondente (EBEP, artigo 33.1). O critério para apurar a
representatividade é a denominada “audiencia electoral”, obtida diretamente ou por irradiação
entre as organizações sindicais. Em todo caso,
213 ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p.
217, considera “que la redución de la legitimación negocial en favor de los sindicatos representativos encuentra su justificación constitucional en la eficacia general de los Pactos y Acuerdos y en la necesidad de garantizar la eficacia y el buen funcionamiento de la Administración, y que dicha limitación constituye una peculiaridad de la libertad sindical de los funcionarios, pues los sindicatos que no ostentan una mínima representatividad, a diferencia de lo que sucede en el ámbito privado, no tienen otras vías de participación o negociación alternativas”.
196
Las variaciones en la representatividad sindical, a efectos de modificación en la composición de las Mesas de Negociación, serán acreditadas por las Organizaciones Sindicales interesadas, mediante el correspondiente certificado de la Oficina Pública de Registro competente, cada dos años a partir de la fecha inicial de constitución de las citadas Mesas (artigo 35.2).
O Estatuto, além dos aspectos relacionados à constituição e
composição da Mesa negociadora, impõe que as “organizaciones sindicales representen, como
mínimo, la mayoría absoluta de los miembros de los órganos unitarios de representación en el
ámbito de que se trate” (artigo 35).
Do lado administrativo, em termos gerais, o Estado é quem figura
como parte contratante na negociação coletiva. O termo “Estado” possui dimensão genérica e
corresponde a qualquer administração territorial, dotada de personalidade jurídica e que se
obriga ao cumprimento do que ajustado na Mesa negociadora. Todas as Administrações
Públicas territoriais possuem competências normativas sobre as condições de trabalho dos
seus respectivos funcionários. Destarte, nas Mesas de negociação “estarán legitimados para
estar presentes los representantes de la Administración Pública correspondiente” (artigo 33.1),
o que é reforçado com o estabelecimento de que “los representantes de las Administraciones
Públicas podrán concertar Pactos y Acuerdos con la representación de las Organizaciones
Sindicales legitimidas a tales efectos (artigo 38.1). Nesse sentido, a capacidade contratual
corresponde à AGE, às CC.AA e aos EE.LL, que
podrán encargar el desarrollo de las actividades de negociación colectiva a órganos creados por ellas, de naturaleza estrictamente técnica, que ostentarán su representación en la negociación colectiva previas las instrucciones políticas correspondientes y sin perjuicio de la ratificación de los acuerdos alcanzados por los órganos de gobierno o administrativos con competencia para ello (artigo 33.2).
Considerando a pluralidade de órgãos que compõem as
Administrações Públicas, aclara-se que a condição de parte contratante radica na
Administração Pública em sentido formal e somente pode firmar ajuste o órgão nela integrado
e investido na respectiva competência normativa em matéria de pessoal. A regulação da
matéria deve-se inserir na competência da Administração, o que inclui as hipóteses em que,
mesmo sujeitas à reserva da lei ou por exigências de disponibilidades orçamentárias, deva ao
197
final serem deliberadas pelo Parlamento. Nessas situações, a Administração possui
capacidade negocial em relação às matérias, havendo distinção apenas quanto ao
procedimento a ser observado, posto que o acordo alcançado nas matérias de competência do
legislador deve ser previamente apreciado pelo órgão de governo respectivo, seguindo-se a
elaboração, aprovação e remessa do projeto de lei ao órgão legislativo, segundo o conteúdo e
prazo acordado (artigo 38.3). Ademais, existindo competências normativas concorrentes, o
ajuste deve corresponder à esfera de atribuições próprias da Administração em que o órgão
esteja integrado, do mesmo modo, dentro de cada Administração, a negociação deve ser
realizada pelo órgão que detém competência hierárquica, em razão da matéria e territorial214.
8.2.3.4 Conteúdo da negociação coletiva: matérias incluídas e excluídas da negociação
O EBEP procura melhor delimitar o conteúdo da negociação,
estabelecendo mais claramente as matérias de negociação obrigatória e aquelas excluídas da
negociação coletiva. O enunciado normativo indica o propósito de ampliar o rol de matérias
negociáveis, mas as múltiplas referências ao termo “criterios generales”, a ausência da
cláusula residual do artigo 32, letra k, do artigo 32 LORAP, e a referência a novas matérias
excluídas da obrigatoriedade da negociação podem ensejar uma compreensão mais restritiva
quanto às condições de trabalho negociáveis. Por certo, o alcance da negociação na função
pública é mais limitado que no âmbito das relações privadas e isso resulta do cotejo entre o
artigo 85.1 ET215 e o artigo 37 EBEP216. No entanto, a compreensão adequada do conteúdo da
negociação somente se torna possível com a análise evolutiva do tratamento legislativo.
214 ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p.
225. 215 ET, artigo 85.1: “Dentro del respeto a las leyes, los convenios colectivos podrán regular materias de índole
económica, laboral, sindical y, en general, cuantas otras afecten a las condiciones de empleo y al ámbito de relaciones de los trabajadores y sus organizaciones representativas con el empresario y las asociaciones empresariales, incluidos procedimientos para resolver las discrepancias […]”
216 De acordo com o artigo 37.1 EBEP são objeto de negociação coletiva obrigatória as seguintes matérias: “a) La aplicación del incremento de las retribuciones del personal al servicio de las Administraciones Públicas que se establezca en la Ley de Presupuestos Generales del Estado y de las Comunidades Autónomas. b) La determinación y aplicación de las retribuciones complementarias de los funcionarios. c) Las normas que fijen los criterios generales en materia de acceso, carrera, provisión, sistemas de clasificación de puestos de
198
Com efeito, quando instituída a negociação coletiva através da Lei nº
9/1987, seu conteúdo era mais restritivo, mas a modificação introduzida pela Lei nº 7/1990
tem nítido objetivo de ampliação das matérias negociáveis. E é a partir dessa perspectiva
histórica que deve ser interpretado e aplicado o artigo 37 EBEP e nesse aspecto a textura
aberta e imprecisa do artigo 37 faz da interpretação uma atividade fundamental no momento
de definir se determinada matéria deve ou não ser objeto de negociação, de sorte que a
interpretação mais restritiva ou mais ampliativa pode potencializar ou mitigar a negociação
coletiva. No ponto, a interpretação não pode partir da pré-compreensão de que a regra seja a
natureza absolutamente imperativa das normas estatais sobre função pública. Ao contrário,
“habrará que entender que em todas esas matéria cabe la negociación y que, por ello, los
derechos en ellas reconocidos pueder ser interpretados como mínimos susceptibles de
negociación”. Em todo caso, ressalvadas as normas claramente imperativas e
inequivocamente excluídas da negociação, a interpretação deve ser orientada no sentido de
que a imperatividade das normas que regulam a função pública “no puede ser tan extrema que
ahogue o haga inexistente el la práctica la negociación colectiva”217.
Apontadas as premissas interpretativas, em relação ao conteúdo
possível da negociação coletiva, considerando a relação entre lei e autonomia coletiva, o
Estatuto Básico consagra normas de distinta natureza, assim sintetizadas: a) normas de direito
trabajo, y planes e instrumentos de planificación de recursos humanos. d) Las normas que fijen los criterios y mecanismos generales en materia de evaluación del desempeño. e) Los planes de Previsión Social Complementaria. f) Los criterios generales de los planes y fondos para la formación y la promoción interna. g) Los criterios generales para la determinación de prestaciones sociales y pensiones de clases pasivas. h) Las propuestas sobre derechos sindicales y de participación. i) Los criterios generales de acción social. j) Las que así se establezcan en la normativa de prevención de riesgos laborales. k) Las que afecten a las condiciones de trabajo y a las retribuciones de los funcionarios, cuya regulación exija norma con rango de Ley. l) Los criterios generales sobre ofertas de empleo público. m) Las referidas a calendario laboral, horarios, jornadas, vacaciones, permisos, movilidad funcional y geográfica, así como los criterios generales sobre la planificación estratégica de los recursos humanos, en aquellos aspectos que afecten a condiciones de trabajo de los empleados públicos.” De outra parte, o artigo 37.2 exclui da negociação as seguintes matérias: “a) Las decisiones de las Administraciones Públicas que afecten a sus potestades de organización. Cuando las consecuencias de las decisiones de las Administraciones Públicas que afecten a sus potestades de organización tengan repercusión sobre condiciones de trabajo de los funcionarios públicos contempladas en el apartado anterior, procederá la negociación de dichas condiciones con las Organizaciones Sindicales a que se refiere este Estatuto. b) La regulación del ejercicio de los derechos de los ciudadanos y de los usuarios de los servicios públicos, así como el procedimiento de formación de los actos y disposiciones administrativas. c) La determinación de condiciones de trabajo del personal directivo. d) Los poderes de dirección y control propios de la relación jerárquica. e) La regulación y determinación concreta, en cada caso, de los sistemas, criterios, órganos y procedimientos de acceso al empleo público y la promoción profesional.”
217 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 58.
199
necessário absoluto, em relação às quais não há espaço para a negociação coletiva e entre
estas estão as normas do artigo 37.2; b) normas de direito necessário, que estabelecem limites
máximos e mínimos para a negociação, como a norma que fixa os limites para incremento das
quantias globais das retribuições complementares dos funcionários (artigo 21.1), a norma
sobre duração de férias (artigo 21.1) e a norma sobre licenças (artigo 49); c) normas de
natureza dispositiva, que contêm regulação normal e diretamente aplicável, mas que podem
ser objeto de regulação distinta e independente de ser mais ou menos favorável aos
funcionários, tal como a licença a que se refere o artigo 48; e d) normas de direito básico, que
apresentam conteúdo incompleto e cuja efetivação depende da complementação através da
negociação coletiva. A inclusão da matéria em uma dessas classes deriva da análise
sistemática das normas contidas no artigo 37 e de outras contempladas em diversos
dispositivos do EBEP, mas o adequado enquadramento deve ser no sentido de limitar as
hipóteses de normas de direito necessário absoluto.
8.2.3.5 Procedimento da negociação coletiva. O dever de negociar de boa-fé.
O procedimento definido pela LORAP apresentava enormes e
importantes carências e lacunas, que conduziam a graves problemas de interpretação e
reforçavam a própria supremacia da Administração Pública. Apesar desses vazios normativos,
a LORAP estabelecia em linhas gerais o regime das reuniões, o enquadramento material e
temporal, a constituição das Mesas, o desenvolvimento da negociação e a conclusão do
procedimento com a adoção de acordos e pactos (LORAP, artigos 31.3, 33, 35, 36 e 37). O
Estatuto Básico intenta superar as limitações presentes no regime anterior e busca fortalecer o
direito à negociação coletiva. Nesse aspecto, contém regramento específico sobre o
procedimento de constituição e atuação das Mesas, procurando-lhes conferir caráter
permanente, estabelece na hipótese de ausência de ajuste prazo para o início das negociações
e aporta alguns critérios gerais para a regulação do comportamento dos sujeitos negociadores,
dispondo que a negociação coletiva submete-se aos princípios de “obligatoriedad, buena fe
negocial, publicidad y transparencia” (artigo 33.1).
200
Cumpre analisar os aspectos principais do procedimento da
negociação regulado no EBEP e que possuem estreita conexão com o tema da eficácia
jurídica dos pactos e acordos.
No tocante à abertura do procedimento, prevê o mútuo acordo entre a
representação sindical e o Poder Público, estabelecendo o artigo 34.6 que “El proceso de
negociación se abrirá, en cada Mesa, en la fecha que, de común acuerdo, fijen la
Administración correspondiente y la mayoría de la representación sindical.” Não se exige
mais unanimidade quanto à deliberação da representação sindical, assim entendida aquela
constituída na forma dos artigos 33.1 e 35.1 EBEP. O acordo precisará a data de início e as
matérias objeto da negociação, embora seja possível reconhecer que o Estatuto não estabeleça
como requisito ou condição para a constituição da Mesa a prévia indicação das matérias, bem
assim é possível reconhecer que novas matérias sejam incluídas durante o desenvolvimento
do procedimento. A recusa à negociação somente pode dar-se quando houver causa legal ou
negociada que a justifique e entre essas razões não se encontram a falta de indicação das
matérias, a ausência de acordo em relação às mesas ou por considerá-las não sujeitas à
negociação. Necessário reconhecer que “nada impediria añadir nuevas matérias a las
inicialmente propuestas conforme avance el proceso negociador o uma vez constituida la
Mesa sin que por ello el procedimiento resulte viciado”218. Os sujeitos da negociação são
livres para definição das matérias objeto da negociação, mas devem observar o âmbito de
competência da respectiva Mesa de negociação. Não há exigência para que o procedimento
tenha caráter anual, cabendo às partes decidirem livremente o período de desenvolvimento das
negociações.
O EBEP prevê mecanismo de salvaguarda diante da negativa expressa
ou da recusa tácita à abertura da negociação, dispondo o artigo 34.6 que “A falta de acuerdo,
el proceso se iniciará en el plazo máximo de un mes desde que la mayoría de una de las partes
legitimadas lo promueva, salvo que existan causas legales o pactadas que lo impidan.” Desse
modo, inexistindo acordo quanto à abertura do procedimento, a negociação começará por
218 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 33.
Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
201
iniciativa da Administração ou pela maioria da representação sindical. Constituída a Mesa,
devem ser convocadas todas as partes legitimadas, recaindo o encargo da convocação sobre a
Administração. Esse e outros dispositivos do EBEP (artigos 33.1 e 37.1) estabelecem o
caráter obrigatório da negociação coletiva, independente de que se obtenha ou não o consenso
ao seu término. A obrigatoriedade da negociação é reforçada pela disposição do artigo 38.7
que condiciona a regulação unilateral das condições de trabalho às hipóteses em que não se
obtenha acordo na negociação ou quando não alcance a aprovação expressa e formal do
acordo pelo órgão de governo da correspondente Administração e desde que tenham sido
esgotados os procedimentos de solução extrajudicial dos conflitos.
A configuração do procedimento de negociação tem como
consequência o fato de que, uma vez iniciado, impõe-se o dever de negociar. Correlato a esse
direito, surge para os interessados o direito de participar ativamente do seu desenvolvimento,
competindo à Administração impulsioná-lo de ofício e garantir sua expressa resolução (Lei do
Regime Jurídico das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum -
LRJAP, artigo 74.1 e artigo 42.1). Nesse sentido, há uma reserva de lei para a negociação
coletiva em relação às matérias definidas no artigo 37.1 EBEP. O exercício da atividade
normativa pela Administração, seja em relação às matérias sujeitas ao poder regulamentar,
seja em relação às matérias sujeitas ao processo legislativo, está condicionado à negociação
coletiva real ou efetivamente tentada. Logo, pretendendo a Administração Pública regular
quaisquer das matérias aludidas no artigo 37.1, deve promover o processo de negociação.
Cumpre então verificar as consequências decorrentes da inobservância do dever de negociar.
Os efeitos são distintos conforme o descumprimento do dever ocorra por iniciativa da
representação sindical ou da Administração.
O EBEP não dispõe de forma expressa quanto aos efeitos do
descumprimento da obrigação de negociar. A omissão legal não sugere inexistência de
consequências jurídicas. Exaurido o diálogo direto, pode a parte interessada recorrer à
mediação, mecanismo pouco eficiente para forçar a negociação. Outra possibilidade é a
utilização de procedimento extrajudicial de solução do conflito. De qualquer forma,
descumprida a obrigação de negociar, as partes podem adotar soluções diversas. No caso de a
recusa partir da representação sindical, pode a Administração dispor unilateralmente das
condições de trabalho, ditando pelo órgão de governo competente o respectivo instrumento
202
normativo (EBEP, artigo 38.7). Nesse ponto, há supremacia em favor do Poder Público, pois a
ele compete decidir se houve ou não descumprimento da obrigação pelo sindicato e ao mesmo
tempo fixar de forma unilateral as condições de trabalho. Essa supremacia é defendida pela
doutrina “cuando no se haya alcanzado un acuerdo, puede ser aceptada en la medida en que
las partes, cumpliendo con el deber de negociar y haciéndolo de buena fe, no han llegado a
concluir um acuerdo satisfatorio.”219 E essa solução é justificada a pretexto da necessidade de
garantir a continuidade do funcionamento dos serviços públicos.
Os efeitos do descumprimento do dever de negociar assumem maior
complexidade quando a recusa se dá por iniciativa da Administração. Aos sindicatos
legitimados resta a via judicial, quando então procurarão demonstrar o descumprimento do
dever jurídico e assim obter uma sentença acolhendo a pretensão. O ato judicial verificará o
descumprimento do dever, sua desconformidade com o Direito e a consequência será a
anulação da resolução administrativa da denegação da negociação coletiva (LRJCA- Lei
Reguladora da Jurisdição do Contencioso Administrativo, artigo 71.1). Em todo o caso, como
o provimento judicial corresponde ao cumprimento de obrigação de fazer, o problema subsiste
quando a Administração não o cumpre voluntariamente. A natureza da sentença impede sua
efetivação coercitiva e nessa situação resta converter a execução em obrigação de perdas e
danos, que na prática traduzirá poucos resultados para a efetivação da obrigação de negociar.
Como medida última para forçar o cumprimento do dever de negociar, resulta evidente a
possibilidade de deflagração da greve, que se legitima e será juridicamente válida.
O dever de negociar significa que, iniciado o procedimento, surge para
os legitimados o direito de participar ativamente de seu desenvolvimento, competindo ainda à
Administração o dever de impulsioná-lo até sua resolução (LRJAP, artigo 74.1). O EBEP
enumera as causas que eximem as partes do cumprimento do dever de negociar, dispondo que
o mesmo não se observa quando “existan causas legales o pactadas que lo impidan” (artigo
34.6). Entre as “causas legales” estão a falta de competência, legitimação ou outro requisito
formal, como comunicação de início das negociações. Entre as “causas pactadas” inserem-se
o não cumprimento dos compromissos assumidos previamente pelas partes na forma dos
parágrafos 4 e 8 do artigo 38 EBEP ou quando se pretende revisar um Pacto ou Acordo que
219 GOMEZ CABALLERO. Los derechos colectivos de los funcionarios, 1994, p. 335.
203
esteja em vigor. O estabelecimento da obrigação legal de negociar, que não inclui obviamente
a obrigação de chegar a um acordo, tem como consequência que somente as partes
legitimadas possuem a faculdade para excluir, através de ajuste bilateral, alguma ou algumas
das matérias sobre as quais se projeta a obrigação de negociar. Logo, a Administração não
pode unilateralmente excluir da negociação quaisquer das matérias incluídas na obrigação
legal de negociar.
Além da obrigatoriedade da negociação, que tem como consequência
o dever de negociar, impende considerar que esse dever deve ser presidido pelo princípio da
boa-fé, que agora encontra expressa referência no artigo 33.1 EBEP, ao estabelecer a “buena
fe negocial” como um dos princípios da negociação coletiva, e no artigo 34.7, ao dispor que
as “partes estarán obligadas a negociar bajo el principio de la buena fe y proporcionarse
mutuamente la información que precisen relativa a la negociación.” Embora a LORAP tenha
sido omissa a respeito, a doutrina já exigia que a boa-fé deveria presidir todo o procedimento
de negociação. E a sede material do princípio já era radicada na CE, precisamente nos artigos
9.1 e 103.1.220 O princípio da boa-fé é exigível em todas as fases do procedimento, razão por
que deve ser observado antes, durante e após a conclusão da negociação. Por força do
princípio, as partes devem atuar com lealdade recíproca, com vistas a “realizar un esfuerzo
sincero de aproximación mutua para obtener un acuerdo”221, mas o princípio “debe presidir
también las relaciones de las partes una vez se han firmado y aprobado los Pactos y Acuerdos,
respectivamente, con el fin de resolver los conflictos que se puedan plantear com
posterioridad”.222
220 ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p.
403, independente de a LORAP o consagrar, já defendia o dever de boa-fé como uma exigência constitucional, destacanto “que el art. 9.1 de La Constitución dispone La sujeción general de los poderes públicos y, por tanto, de la Administración, que es uno de ellos, a la Constitución y al resto Del ordenamiento jurídico. Es más, el art. 103.1 del citado texto, que no es sino una especificación de este presupuesto fundamental de la Constitución, proclama explícitamente para esta última el “sometimiento
pleno a la ley y al Derecho”. De este modo, los princípios generales del Derecho y, entre ellos, el de la buena fe vinculan plenamente toda la atividad de la Administración”. A exigência de boa-fé ainda no regime da LORAP também já era defendida por BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía
colectiva en la función pública, 2005, p. 155-158. 221 ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007 p.
405. 222 ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p.
404.
204
Aspecto fundamental e que será apreciado mais adiante refere-se à
existência do dever de negociação para invocação da cláusula rebus sic stantibus do artigo
38.10 EBEP. Uma primeira aproximação conduz à assertiva de que o estabelecimento do
dever de negociar não autoriza o Poder Público a eximir-se do cumprimento de obrigações
ajustadas coletivamente sem que antes proceda à reabertura do procedimento de negociação.
A consecução da medida excepcional há de ser previamente comunicada às organizações
sindicais e a partir daí dar início a nova negociação coletiva para que seja buscado um acordo.
Ora, se na hipótese de o acordo não ser ratificado e não se transformar em projeto de lei
(artigo 38.3), exige-se o procedimento de renegociação, com mais razão tal procedimento se
impõe quando existe acordo firmado, ratificado e transformado em lei. Sendo assim, a parte
que pretenda a modificação do ajuste coletivo deve buscar sua revisão através da Mesa de
negociação. O exaurimento da renegociação, com a demonstração inequívoca da frustração de
novo acordo, é condição essencial para que a Administração possa modificar unilateralmente
as condições de trabalho antes ajustadas.
8.2.3.6 Conclusão da negociação coletiva: acordos e desacordos
Na Espanha, o procedimento de negociação coletiva pode resultar em
acordo ou desacordo. Configurado o entendimento, dois instrumentos resultam do processo de
negociação, a saber, os Acordos e os Pactos, ambos com a finalidade de determinar as
condições de trabalho dos funcionários públicos. Na hipótese de desacordo, o Estatuto Básico
não legitima um terceiro nem institui procedimento específico para deliberação acerca do
fracasso da negociação. 223 A finalização do procedimento pode-se dar por ajuste entre as
partes ou por iniciativa de qualquer delas, mas geralmente a interrupção do procedimento
223 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p.
72, sugere em caráter excepcional a arbitragem obrigatória como alternativa à atuação unilateral da Administração Pública, ponderando que “la misma se hubiese sustituido por una regulación arbitral de las condiciones de trabajo sobre las que hubiese desacuerdo, arbitraje que, aunque en este caso fuese obligatorio, no creo que tuviese problemas de constitucionalidad en cuanto que para los entes públicos deriva de la ley, a la que deben someterse, y para los empleados es mejor, por ser más objetivo e imparcial, que la alternativa de la regulación unilateral por parte de la propia Administración”.
205
ocorre por deliberação da Administração Pública, que conserva o poder de determinar o fim
da negociação, de sorte a regular unilateralmente a matéria. É certo que essa deliberação sobre
o fim da negociação pode ser impugnada judicialmente, mas o fato é que o controle sobre a
decisão administrativa ocorre posteriormente, quando já definidas as condições de trabalho de
forma unilateral, circunstância que prejudica enormemente a eficácia da negociação.
Obviamente somente é possível falar em desacordo quando haja uma efetiva tentativa de
negociação e desde que as partes tenham negociado de boa-fé, exigindo assim tanto a
constituição da Mesa negociadora como também que os sujeitos ajam com vistas a alcançar o
acordo.
Configurado o desacordo, o artigo 38.7 EBEP estabelece as
alternativas para os sujeitos negociadores. Segundo o referido dispositivo, “En el supuesto de
que no se produzca acuerdo en la negociación o en la renegociación prevista en el último
párrafo del apartado 3 del presente artículo y una vez agotados, en su caso, los procedimientos
de solución extrajudicial de conflictos, corresponderá a los órganos de gobierno de las
Administraciones Públicas establecer las condiciones de trabajo de los funcionarios con las
excepciones contempladas en los apartados 11, 12 y 13 del presente artículo.” Os
procedimentos de solução extrajudicial estão contemplados também no artigo 45, ao prever
que os sujeitos da negociação “podrán acordar la creación, configuración y desarrollo de
sistemas de solución extrajudicial de conflictos colectivos.” Esses procedimentos
correspondem à mediação e à arbitragem voluntária (artigo 45.3), esta admitida quando não se
tratar de matéria sujeita à reserva de lei. A mediação é obrigatória sempre que uma das partes
assim requeira, ao passo que a arbitragem facultativa está condicionada à existência de acordo
entre as partes, que firmam o compromisso de aceitação da resolução levada a efeito pelo
árbitro. Existe expressa previsão de que o acordo resultante da mediação ou o laudo arbitral
possuem a mesma tramitação e eficácia jurídica dos Pactos e Acordos, sujeitando-se
naturalmente a requisitos de legitimação e comportando a respectiva impugnação (EBEP,
artigo 45.4).
Na negociação coletiva na função pública, tal como ocorre na
negociação envolvendo os demais trabalhadores, deve-se priorizar o ajuste direto, em que as
partes interessadas devem solucionar o conflito por negociação apenas entre elas, sem a
interferência de terceiros. No entanto, se as partes não obtêm o entendimento direto e por
206
concessões recíprocas, devem ser adotados os procedimentos previstos em lei. Esses
procedimentos são a mediação e a arbitragem. A mediação é compreendida como prática pela
qual o terceiro procura instigar e levar as partes ao consenso em torno da proposta por ele
formulada, ainda que independente das posições anteriores por elas externadas. A arbitragem
acentua ainda mais a participação do terceiro na solução do conflito e através desse
procedimento é estabelecida decisão vinculativa para as partes. O EBEP contempla apenas a
arbitragem voluntária, afastando a possibilidade de instituição de arbitragem obrigatória. As
partes somente podem ser instadas à arbitragem se assim convencionam.
De fato, a arbitragem compulsória inibe a negociação coletiva.
Quando as partes sabem de antemão que, em caso de desacordo, devem recorrer
obrigatoriamente à arbitragem e também sabem que o árbitro divide equitativamente as
recíprocas pretensões em procedentes e improcedentes, certamente conservam suas
reivindicações o mais próximo possível de suas posições iniciais, sem realizar concessões, a
fim de obter do árbitro uma decisão favorável. A consequência prática é que a negociação se
estiola, converte-se em mero procedimento formal. A arbitragem compulsória cria um hábito,
de sorte que, em caso de controvérsia, as partes já se acham condicionadas a dela valer-se,
com tendência à destruição do caráter negocial. Portanto, quanto aos meios de solução dos
conflitos, parece que não deve haver regras especiais para a solução dos conflitos coletivos,
mas apenas a especialização e ajuste nos meios já disponíveis aos conflitos privados, a fim de
que melhor possa atender à nova finalidade, dando-se preferência à vontade dos próprios
interessados. A solução do EBEP de consagrar a mediação obrigatória e a arbitragem
facultativa parece a mais adequada, ainda que remanesçam problemas quanto à determinação
do fracasso da negociação, sujeita à deliberação exclusiva da Administração Pública. Esta foi
a solução dada no Brasil pela EC nº 45/2005, com a nova redação dada ao artigo 114, § 2º,
CF, que fixou a obrigatoriedade do comum acordo como pressuposto para o ajuizamento do
dissídio coletivo de natureza econômica, configurando típica arbitragem pública facultativa.
Destarte, em relação à composição de conflitos coletivos na função
pública, a negociação há de ser o meio e o diálogo deve ser sua forma de exteriorização. A
arbitragem obrigatória, por ser elemento que inibe e desestimula a negociação coletiva, deve
ser evitada, adotando-se para as situações necessárias instrumentos intermediários, tais como
a mediação e a arbitragem voluntária. O certo é que o processo negocial há de importar para
207
os sindicatos de funcionários a obrigação de seriedade e responsabilidade na elaboração das
propostas, assim como deve implicar para a Administração o dever de negociar, escusando-se
à negociação com medidas unilaterais e arbitrárias, relegando a negociação a simples
formalidade, sem conteúdos práticos e efetivos, que impede o entendimento e a estabilidade
nas relações travadas entre os trabalhadores e o Poder Público.
No âmbito da função pública, muito diferente do que se dá no plano
das relações privadas, o efetivo fracasso da negociação e dos mecanismos extrajudiciais de
solução de conflitos faz com que a Administração Pública recupere a capacidade de regular
unilateralmente as condições de trabalho, salvo quando houver previsão normativa em Pacto
ou Acordo anterior contemplando sua ultra-atividade até que seja celebrado novo instrumento
coletivo.224 Conquanto previsto no artigo 37.8 EBEP, o recurso à regulação unilateral não se
insere na discricionariedade administrativa, constituindo uma faculdade normativa subsidiária
cujo exercício exige que previamente tenha sido efetivamente tentada a negociação. A
inobservância dessa exigência comporta impugnação administrativa e judicial, esta perante a
jurisdição do contencioso-administrativo através de procedimento ordinário.
É assim porque, na esteira da STC 57/1982, prevalece o equivocado
entendimento de que o exercício do direito à negociação coletiva dos funcionários é matéria
de mera legalidade ordinária, cuja violação não afeta o conteúdo essencial da liberdade
sindical. No ponto, a contradição é manifesta, porquanto a negação do direito à negociação a
um sindicato legitimado configura violação ao direito fundamental de liberdade sindical, mas
o mesmo não ocorre com a negação do direito de negociar a todos os sindicatos com a fixação
unilateral das condições de trabalho. Ora, ainda que não se admita a integração da negociação
no conteúdo essencial da liberdade sindical dos funcionários (CE, artigo 28.1), há de
prevalecer a tese de que a configuração legal do direito, com seu reconhecimento na LOLS e
no EBEP, implica admitir que sua violação significa lesão ao direito fundamental de liberdade
sindical.
224
Em favor da ultra-atividade posicionam-se ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los
empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 71 e LOPEZ GANDIA. La negociación de los
funcionários públicos trás el Estatuto Básico, p. 37. Embora o EBEP não contemple o princípio da ultra-atividade, a exemplo do que dispõe o artigo 86 do ET, parece possível aplicá-lo com fundamento no artigo 38.12, ao preceituar que “La vigencia del contenido de los Pactos y Acuerdos una vez concluida su duración, se producirá en los términos que los mismos hubieren establecido.”
208
A impugnação à recusa à negociação pode ocorrer antes ou depois do
exercício unilateral da atividade normativa. No primeiro caso, a impugnação pode objetivar
provimento jurisdicional que imponha medidas que assegure o pleno exercício do direito à
negociação coletiva. No segundo caso, a impugnação pode pleitear a nulidade do ato
unilateral de fixação das condições de trabalho. A legitimação processual está assegurada aos
sindicatos detentores de legitimação para participar da negociação. Em quaisquer das
situações, impondo a ordem jurídica obrigatoriedade da negociação, sua inobservância
constitui ato contrário ao Direito e assim eivado de nulidade.225
Em todo caso, importa considerar que a regulação unilateral com
fundamento no artigo 38.7 EBEP não se equipara à regulação resultante da negociação, daí
por que não possui a mesma natureza nem a eficácia jurídica dos Pactos e Acordos. O ato
administrativo tem natureza regulamentar quando se tratar de matéria da competência da
Administração Pública e natureza de projeto de lei quando a matéria for objeto de
competência do legislador. A vigência não obedece aos mesmos critérios dos Pactos e
Acordos, na medida em que tem duração indefinida até que seja substituído por instrumento
normativo negociado. Por certo na vigência da regulação unilateral podem as partes abrir uma
nova negociação, sem necessidade de que sejam denunciadas as normas instituídas
unilateralmente. Cumpre advertir, ademais, que
El fracaso de la negociación no hace recuperar la facultad de regulación unilateral sine die, ni autorizaría modificaciones unilaterales posteriores de la norma en cuestión al margen de la negociación, sino cualquier modificiación deberá exigir de nuevo la apertura del procedimiento de negociación aunque el anterior hubiera fracasado.226
225 Nesse sentido, dispõe a Lei 30/1992 (LRJAP), artigo 62.2, que “También serán nulas de pleno derecho las
disposiciones administrativas que vulneren la Constitución, las leyes u otras disposiciones administrativas de rango superior, las que regulen materias reservadas a la Ley, y las que establezcan la retroactividad de disposiciones sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales.”
226 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico, p. 37-38. Disponível em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010.
209
Em outro sentido, quando frutifica o procedimento negociador, tem-se
então a regulação concertada das condições de trabalho. O instrumento jurídico resultando do
entendimento pode revestir a forma de Pacto ou de Acordo. Essa dualidade de instrumentos
normativos resulta das peculiaridades da Administração Pública, que limitam o exercício de
seu poder normativo. De qualquer forma, ambos os instrumentos cumprem a mesma função, a
saber, a determinação das condições de trabalho dos funcionários públicos, decorrendo essa
assertiva do próprio conceito de negociação coletiva a que alude o artigo 31.2 do Estatuto
Básico. A diferença central diz respeito ao tipo de matérias objeto de concertação coletiva. O
Acordo corresponde ao instrumento contratual que versa sobre matérias cuja competência
corresponde ao órgão de governo das Administrações Públicas, estando condicionada sua
validade e eficácia à aprovação expressa e formas dos órgãos em seus âmbitos respectivos,
aprovação esta que lhe dota de força normativa para obrigar, conferindo-lhe, portanto, a
natureza de norma jurídica. Uma vez ratificados e quando digam respeito a temas de
competência exclusiva do órgão de governo, é diretamente aplicável ao pessoal incluído no
seu âmbito de aplicação (EBEP, artigo 38.3). Os acordos também podem compreender
matérias cuja competência final recai sobre o Parlamento, quando se tratar de matérias
sujeitas à reserva de lei, circunstância em que a competência do órgão de governo limita-se ao
encaminhamento do respectivo projeto de lei.
Os Pactos versam sobre matérias cuja decisão final corresponde ao
órgão administrativo que negocia e os subscreve em nome da respectiva Administração
territorial. O instrumento daí resultante dispensa ulterior ato de aprovação e é dotado de uma
vinculabilidade direta entre as partes, possuindo uma eficácia jurídica normativa no modelo
dos convênios coletivos privados (ET, artigos 82 e seguintes). Desse modo, os Pactos
aplicam-se automaticamente e com caráter imperativo às relações jurídicas entre a
Administração Pública e os funcionários afetados. Os Pactos tratam sobre questões
consideradas de menor transcendência jurídica, na medida em que a maior parte das
competências está reservada aos órgãos de governo, que sobre elas deliberam diretamente ou
através de encaminhamento de projeto de lei.227 Do mesmo modo e pela mesma razão, do
227 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p.
34.
210
ponto de vista quantitativo, são mais frequentes os consensos em forma de Acordo do que de
Pacto.228
No que diz respeito à vigência dos Pactos e Acordos, independente da
duração, devem indicar a forma, prazo de pré-aviso e condições de denúncia (artigo 38.4).
Cabe às partes definir o âmbito temporal, resultando então a livre possibilidade de ajuste de
início e fim da vigência. Conclui-se que não há delimitação de duração mínima ou máxima
para os Pactos e Acordos, podendo inclusive ser convencionada duração por prazo indefinido,
embora para algumas matérias, tal como se dá para as questões com impactos orçamentários,
seja natural a determinação da duração. De outra parte, segundo as normas do artigo 38, itens
11,12 e 13, ressalvada a hipótese de acordo em sentido contrário, os instrumentos normativos
são prorrogados a cada ano quando ausente denúncia expressa de quaisquer das partes.
Ademais, a vigência dos respectivos conteúdos, uma vez exaurido o prazo de duração,
ocorrerá nos termos em que tenha sido estabelecido nos instrumentos. Por último, o
surgimento de novo Pacto ou Acordo implica a derrogação integral da regulação
convencionada anteriormente, salvo em relação aos pontos que as partes tenham acertado
expressamente a manutenção. O tema da suspensão ou modificação do cumprimento dos
Pactos e Acordos a que se refere o artigo 38.10, dada a estreita conexão com a questão da
eficácia jurídica dos instrumentos da negociação, será objeto de análise no capítulo seguinte.
228 BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía colectiva en la función pública, 2005, p.
164.
211
9 EFICÁCIA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS
Esta parte final da investigação destina-se a apreciar a eficácia jurídica
da negociação coletiva dos funcionários públicos, em especial dos instrumentos dela
resultantes. A atualidade do tema na Espanha reside na circunstância de que, conquanto se
trate de prática há bastante tempo consagrado, constatam-se não raramente iniciativas
governamentais que não apenas negam o direito à negociação, mas reiteradamente
descumprem seus instrumentos normativos, inclusive promovendo reduções de salários
pactuados coletivamente, como ocorreu recentemente através do RDL nº 8/2010, que, a
pretexto da crise financeira global, reduziu salários do funcionalismo público espanhol,
descumprindo aquilo que havia sido objeto de negociação. Nesse cenário, questiona-se na
Espanha se o sistema de relações coletivas no setor público contempla autêntico direito à
negociação e como desdobramento indaga-se se a eficácia jurídica da negociação conduz à
aproximação entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social, com garantia da
aplicabilidade, exigibilidade e executoriedade do aparato normativo que prevê o direito à
negociação coletiva. Esta é uma questão central em relação à negociação coletiva dos
funcionários e a experiência espanhola pode representar importante aprendizado a ser
considerado por ocasião da institucionalização do procedimento negocial no Brasil.
Impõe-se então abordar a natureza jurídica dos instrumentos que
derivam da negociação coletiva, procurando verificar em que medida eles se aproximam dos
convênios coletivos laborais. Nessa perspectiva, e tendo como objeto de análise o RDL nº
8/2010, examina-se a questão da eficácia jurídica propriamente dos Pactos e Acordos, com
enfoque para os efeitos decorrentes do descumprimento dos instrumentos negociados e sobre
a eficácia negativa da negociação. Em seguida, passa-se ao estudo da norma do artigo 38.10
do EBEP que contempla a possibilidade de suspensão ou modificação do cumprimento do
ajuste coletivo diante de circunstâncias excepcionais, destacando-se nesse aspecto os aspectos
formais que devem ser observados, inclusive quanto à necessidade de reabertura da
negociação. Na parte final, realiza-se breve análise da atuação dos tribunais e em que medida
esses órgãos exercem ou não o papel que lhes cabe na garantia e concretização da negociação
212
coletiva, sobretudo considerando a crescente judicialização dos conflitos coletivos de trabalho
envolvendo os funcionários e a Administração Pública.
9.1 NATUREZA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS: CONTRATOS
COLETIVOS NORMATIVOS
A temática da natureza dos Pactos e Acordos relaciona-se de forma
direta com a eficácia jurídica deles decorrente. Esse aspecto é altamente controvertido, as
posições doutrinárias são as mais diversas e as principais podem ser assim sistematizadas: a)
contratos administrativos com eficácia obrigacional limitada às partes contratantes, com
eficácia apenas contratual, sem caráter normativo; b) regulamentos negociados, constituindo
etapa do procedimento de elaboração de disposição administrativa regulamentar; e c)
contratos normativos, produtos da autonomia coletiva dos funcionários, com eficácia jurídica
normativa e fonte de Direito objetivo, à semelhança dos convênios coletivos.229 Por certo, a
investigação da natureza jurídica dos Pactos e Acordos tem como premissa a assimilação da
natureza dos convênios coletivos firmados no âmbito laboral. Em função disso, acentua-se o
caráter normativo, tendo como substrato a autonomia coletiva, destinado à criação de direito
impessoal e abstrato, sem referência a destinatários considerados de forma individual e
concreta, cujos preceitos normativos não se exaurem com o seu cumprimento, mas que se
afirmam e se consolidam em cada aplicação determinada das condições de trabalho.230 O
produto da negociação, enquanto norma jurídica, integra-se plenamente “en un sistema de
fuentes con capacidad para plasmar, em el plano normativo, el pluralismo social y político
229 Acerca do debate sobre a natureza jurídica dos instrumentos finais da negociação coletiva dos funcionários
remete-se para as seguintes: ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del
empleado público, 2007, p. 469-479; BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía
colectiva en la función pública, 2005, p. 165-188. 230 BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía colectiva en la función pública, 2005, p.
168.
213
que define la organización jurídica que se plasma em los actuales modelos
constitucionales”.231
Destacado o aspecto normativo, não parece razoável pretender
enquadrar os Pactos e Acordos na categoria de contratos administrativos ou mesmo de
contratos privados, muito menos enquadrá-los como simples direito de participação ou
consulta na elaboração de disposições gerais ou de caráter regulamentar. Essas orientações
constituem resquícios da concepção de supremacia da Administração Pública e de certo modo
procuram anular a autonomia coletiva assegurada às partes na função pública. O
enquadramento das relações coletivas nesse âmbito melhor se ajusta através de categorias
contratuais, com inequívoco caráter normativo, derivado do direito de negociação coletiva,
cujo fundamento reside no direito de liberdade sindical dos funcionários públicos (CE, artigo
28.1). Nesse sentido, os Pactos e Acordos, “Al igual que el convenio colectivo en el ámbito
privado, son contratos normativos: contratos por su origen, norma por su eficácia jurídica”.232
A natureza jurídica, portanto, está determinada pelo contexto de sua origem e pelo perfil das
normas que consagra, daí sua adequada inserção na categoria de contratos coletivos
normativos.
Esse enquadramento ajusta-se aos elementos que lhe integram e lhe
conferem seus contornos e especificidades, a saber, a vinculação direta, a eficácia normativa,
os efeitos sobre terceiros, estes compreendidos pelos funcionários abrangidos pelo âmbito de
aplicação, e a exclusão da capacidade de regulação unilateral pela Administração Púbica pelo
menos até o esgotamento da negociação.233 Essa orientação reconhece a transcendência da
negociação como fenômeno de produção normativa, cuja eficácia não pode se sujeitar
exclusivamente ao papel que lhe é atribuído pela norma estatal, porquanto sua normatividade
“es inmanente a su naturealeza de acto emanado por uma fuente material del derecho, la
231
Isso porque “la autonomía colectiva debe quedar configurada como el poder originario juridicado que fundamenta la negociación colectiva en tanto como fuente material del derecho y referente inmediato del covenio colectivo en el plano de la positividad (fuente formal). Como normativa positiva, por tanto, el convenio goza de una eficacia propia, no derivada de la ley, para imponerse a las relaciones de trabajo.” (CORREA CARRASCO. La negociación colectiva como fuente (formal) del Derecho del Trabajo, 1997, p. 189).
232 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 35.
233 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 36.
214
negociación colectiva, a la que el ordenamiento jurídico, no la ley, confiere tal virtualidad”.234
Especificamente quanto aos Pactos, o aspecto normativo é reforçado pelo artigo 38.2 do
Estatuto Básico, ao dispor que “se aplicarán diretamente al personal del âmbito
correspondiente”. Além da eficácia normativa que lhes é inerente, os Pactos e Acordos
ostentam também eficácia obrigacional interpartes, vinculando assim as partes que os
celebram.
Inadequado pretender conferir natureza diversa aos Acordos em
relação aos Pactos ante a exigência para sua validade e eficácia de aprovação expressa e
formal pelo órgão de governo respectivo (artigo 38.3).235 A necessidade de ratificação não
modifica a natureza de contrato coletivo normativo dos Acordos, porquanto se justifica como
condição para que o órgão de governo manifeste seu consentimento a respeito de matéria que
se insere no âmbito de sua competência formal. Trata-se de “un elemento adjetivo, elemento
peculiar del proceso negociador en la función pública, y necesario complemento de la
autonomía colectiva, origen sustantivo de la eficacia normativa”.236 O ato de aprovação “es
similar al procedimiento del preacuerdo y posterior ratificación” utilizado na negociação
coletiva laboral.237 Reforça essa interpretação a circunstância de o artigo 38.3 dispor que nos
Acordos ratificados seu conteúdo “será directamente aplicable al personal incluido en su
ámbito de aplicación, sin perjuicio de que a efectos formales se requiera la modificación o
derogación, en su caso, de la normativa reglamentaria correspondiente”. Fica evidente a
natureza de contrato coletivo normativo dos Acordos e sua não dissolução em regulamentos
negociados.
Posta a questão nesses termos, surge então o problema da delimitação
do controle que o órgão de governo exerce sobre os Acordos. Nesse aspecto, não parece
razoável admitir-se a possibilidade de juízo de discricionariedade para aprovação ou
desaprovação do produto da negociação. Isso porque os critérios de oportunidade hão de ser
234 CORREA CARRASCO. La negociación colectiva como fuente (formal) del Derecho del Trabajo, 1997, p.
186. 235 Para um debate acerta da distinção natureza entre Pactos e Acordos, conf. ROQUETA BUJ. El derecho de
negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p. 469/479. 236 BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía colectiva en la función pública, 2005, p.
177. 237
ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p 40.
215
apreciados anteriormente, quando forem estabelecidas pelo órgão de governo as instruções
para observância por seus representantes durante o procedimento negociador. Parte da
doutrina científica considera que as hipóteses de não ratificação são bastante reduzidas,
cingindo-se basicamente à não observância das instruções (EBEP, artigo 33.2), quando
existem problemas de legalidade ou quando haja produzido uma mudança substancial das
circunstâncias, com aplicação da cláusula rebus sic stantibus.238
Outra parte da doutrina, mais consentânea com a potencialização da
eficácia da negociação, nega a possibilidade de qualquer controle no ato de ratificação. No
tocante à primeira hipótese, a restrição decorre da aplicação do princípio da boa-fé negocial,
na medida em “es la parte pública la responsable y no puede ser juez y parte”. Quanto ao
segundo caso, nega-se a recusa à ratificação, na medida em que a Administração Pública “ya
podía haberse tenido em cuenta a la hora de alcanzar el próprio Acuerdo y no haberlo
suscrito”. No que concerne à invocação da cláusula rebus sic stantibus, conforme se verá
adiante, o Estatuto Básico prevê a solução, estabelecendo que a situação justifica sua
suspensão ou modificação, não sendo hipótese de não ratificação do acordo (artigo 38.10).239
De qualquer modo, a não ratificação não autoriza desde logo a regulação unilateral pela
Administração, impondo agora o Estatuto Básico que “se deberá iniciar la renegociación de
las materias tratadas”, o que de certo modo relativiza a importância do controle exercido no
ato de ratificação. Em consequência, a regulação unilateral somente é possível em caso de
desacordo, e não mais por falta de ratificação. Configurada esta hipótese, somente após o
esgotamento da renegociação, em que fique caracterizado o seu fracasso, é possível a
determinação unilateral das condições de trabalho.
238 Em favor da defesa tão-somente de controle de legalidade posicionam-se ALFONSO MELLADO. Los
derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 42. BENGOETXEA ALKORTA. Negociación colectiva y autonomía colectiva en la función pública, 2005, p. 177-178. ROQUETA BUJ. El derecho de negociación colectiva en el Estatuto Básico del empleado público, 2007, p. 455, amplia as hipóteses de controle do Acordo, sustentando que “el órgano de gobierno podrá llevar a cabo un control de legalidad y de oportunidad sobre el Acuerdo a la horade decidir si lo aprueba o no”.
239 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico. Disponível
em <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em 8.ago. 2010, p. 40, pondera que “la reratificación no puede tener un alcance revisor del acuerdo ni servir para un control de legalidad o d oportunidad d lo que se ha negociado y acordado, sino un mero acto de trámite ya que la parte pública que representa la Administración al actuar por delegación, incluso de manera técnica no tiene poderes de comprometer formalmente a la parte que representa en la negociación. De ahí que el órganos de gobierno lo que lleve a cabo es ratificar “formalmente” el acuerdo, no fiscalizar su contenido”.
216
De outro modo, quando se tratar de Acordos sobre “materias
sometidas a reserva de Ley” (artigo 38.3), o produto da negociação não possui natureza
normativa, assumindo o perfil de anteprojeto de lei. Uma vez ratificado, o instrumento
negociado, converte-se em projeto de lei, caracterizando, portanto, a negociação pré-
legislativa. Nesse caso, compete ao órgão de governo remeter o Acordo-projeto de lei ao
Parlamento, a quem compete aprovar, modificar ou recusar o Acordo convertido em projeto
de lei. A configuração de legislação negociada resulta agora claramente do artigo 38.3 do
Estatuto Básico, ao dispor que somente são determinadas com caráter definitivo após a
deliberação do órgão legislativo correspondente, sem o que seu conteúdo carece de eficácia
direta. Isso não transforma a negociação em simples consulta não vinculante, posto que,
embora o seu conteúdo não vincule diretamente o Parlamento, irrecusável reconhecer sua
eficácia em relação ao órgão de governo, que fica obrigado a encaminhar o projeto de lei nos
termos e condições ajustados.
Questão mais complexa diz respeito às consequências da
inobservância pelo órgão de governo do Acordo no momento da elaboração do projeto de lei.
Tratando-se de negociação de matéria de reserva de lei, ainda assim está-se diante de
negociação obrigatória, diferente do que se passa no âmbito da negociação laboral, marcada
pelo caráter facultativo, o que conduz à conclusão de que a inobservância do conteúdo do
Acordo legitima a impugnação do projeto de lei por vício de procedimento. Na ausência de
impugnação do projeto de lei viciado, que se converte em lei, parece mais difícil sua
impugnação por esse fundamento, conquanto se possa afirmar que “la soberania parlamentaria
no habría convalidado o sanado los vícios de origen”.240 Nesse ponto, conclui-se que os
Acordos ratificados, assim como os Pactos possuem a natureza de contrato coletivo
normativo, embora haja distinção quanto à eficácia jurídica de ambos, na medida em que,
conforme se verá adiante, os últimos aproximam-se dos convênios coletivos laborais, ao passo
que os primeiros afastam-se dessa similitude ao possuírem eficácia direta apenas em relação
aos órgãos de governo, configurando uma legislação negociada, “pero no una auténtica
negociación colectiva em sentido estricto”.241
240 LOPEZ GANDIA. La negociación colectiva de los funcionarios publicos tras el estatuto basico. Disponível
em: <http://www.aedtss.com/Ponencia%20III%20J%20LOPEZ%20GANDIA.doc>. Acesso em: 8 ago. 2010, p. 43.
241 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 45.
217
9.2 EFICÁCIA JURÍDICA DOS PACTOS E ACORDOS: DELIMITAÇÃO DOS
EFEITOS DO DESCUMPRIMENTO DOS INSTRUMENTOS NEGOCIADOS
Uma das questões que mais tem despertado discussões na negociação
coletiva dos funcionários públicos diz respeito à eficácia jurídica dos instrumentos daí
resultantes.242 Parte da doutrina sustenta que deve haver um tratamento inteiramente distinto
entre a negociação entabulada no setor privado e aquela estabelecida na função pública,
pretendendo que, em relação a esta, os efeitos sejam meramente obrigacionais, dependendo
sua eficácia de incorporação ao ordenamento jurídico através de ato formal proveniente da
esfera executiva ou legislativa, haja vista a necessidade de harmonizar a negociação com a
competência constitucional dos Poderes Legislativo e Executivo para regular as condições de
trabalho prestado sob o regime jurídico-administrativo.
Para esse segmento da doutrina, a negociação constitui mera etapa do
procedimento legislativo ou administrativo de adoção do ato regulamentar, atribuindo ao
processo negocial um valor de compromisso moral ou político, considerando que as
disposições relativas ao direito de negociação dos sindicatos somente conferem a estes uma
satisfação simbólica, sem afetar o sistema estatutário e unilateralista da legislação sobre o
regime jurídico-administrativo. Essa é uma perspectiva em que se procura reconhecer aos
ajustes coletivos uma eficácia mais política do que jurídica, que termina prestigiando a
unilateralidade em detrimento da bilateralidade que deve pautar a fixação das condições de
242 Observa PALOMEQUE LÓPEZ. Derecho Sindical Español, 1991, p. 316-318, que o tema da eficácia
jurídica da negociação coletiva é fonte de ambiguidades e confusões, daí a necessidade de sua delimitação em três perspectivas: 1) eficácia normativa, relacionada à virtualidade jurídica que o ordenamento atribui ao instrumento coletivo; 2) eficácia pessoal, que diz respeito ao âmbito de aplicação pessoal ou subjetivo; e 3) eficácia contratual, pertinente aos efeitos entre as partes negociadoras. O aspecto normativo resulta de sua natureza de norma jurídica, ostentando assim as características de direito objetivo, aplicam-se de forma automática, estão marcados pela inderrogabilidade de suas normas, o não cumprimento enseja a responsabilização da parte descumpridora das obrigações e o instrumento posterior derroga o anterior.
218
trabalho na função pública. 243Acerca desse problema não existe uniformidade de abordagem
no direito comparado. Alguns sistemas sequer admitem a celebração de instrumento formal e
em outros a aplicação do instrumento ao fim e ao cabo depende sempre de uma decisão
unilateral do Poder Público. Essa vertente considera que os instrumentos normativos
celebrados não têm efeitos vinculantes, porquanto geralmente necessitam de aprovação e/ou
promulgação de um ato de autoridade competente.
No entanto, parece evidente que, pela negociação coletiva, não se
pretende apenas limitar o poder discricionário de que dispõe a Administração nem pode
cingir-se a simples obrigação assumida pelo Poder Público de transformar o ajuste em lei ou
em regulamento. Negar eficácia jurídica direta e imediata ao que foi ajustado seria reduzir a
negociação coletiva a um expediente de mera consulta, razão pela qual deve prevalecer, como
tendência, que os instrumentos coletivos aplicam-se diretamente, independente de aprovação
ou incorporação a um texto legislativo, embora se admita que cada sistema jurídico poderá
definir contornos específicos, podendo inclusive consagrar a exigência de ratificação do ajuste
pelo Poder Executivo ou configurando um modelo de negociação pré-legislativa, em que a
decisão final sobre o ajuste cabe ao Parlamento. Em todo o caso, o reconhecimento da eficácia
jurídica, do que resulta a obrigação de cumprimento do produto negociado, deve-se constituir
base sólida e estável para a configuração de um sistema democrático de relações coletivas de
trabalho na função pública.244
243 A mitigação da eficácia jurídica da negociação dos funcionários públicos parte de uma lógica que se
estrutura a partir das seguintes perspectivas: “por la exacerbación del poder de los órganos estatales; por la ampliación del margen decisorio según criterios de conveniencia y oportunidad, con la elevación del poder discrecional; por la restrición de los derechos, mediante, por un lado, el encuadramiento de varios de ellos como mera directriz, y, por otro, la interpretación restrictiva de los derechos individuales y colectivos, que parte del supuesto de que los intereses por ellos tutelados están en constante choque con los intereses generales. Esa lógica encuentra su representación adecuada en la expresión “imperio de la ley”, que, llevado al extremo de su contenido semántico, resulta en la primacía del Derecho con relación a los derechos y un sistema normativo rígido y jerarquizado, basado en una producción vertical de normas, con reducido espacio para la participación”. (MACEDO DE BRITO PEREIRA. La negociación colectiva en la función pública: una aproximación constitucional, 2004, p. 227-228).
244 Esse sistema possui uma lógica pluralista e nele “se admite la apertura a los más variados valores y su protección se hace de modo no excluynte; los intereses más generales sólo son concebidos en la medida en que se observan los derechos individuales y colectivos en su amplia extensión. El sistema normativo es basado en la producción horizontal de normas, dándose preferencia a las formas negociadas y a la intensificación del diálogo.” (MACEDO DE BRITO PEREIRA. La negociación colectiva en la función
pública: una aproximación constitucional, 2004, p. 228)
219
Desde logo, e seguindo a sistematização de Antonio Ojeda Avilés,
formulada considerando o modelo instituído pela LORAP (Lei nº 9/1987, modificada pela Lei
nº 7/1990), extraem-se algumas assertivas a respeito da eficácia da negociação coletiva na
função pública. Os instrumentos resultantes da negociação devem importar a produção de
efeitos normativos e obrigacionais, que obrigam tanto a Administração Pública como os
sindicatos, desfrutando de eficácia geral, com efeitos erga omnes, aplicando-se a todos os
funcionários no âmbito correspondente. Nesse sentido, caracterizam os instrumentos
normativos: a) a imediatidade, pois, uma vez publicados, são self-executing, adquirindo força
de obrigar sem necessidade de edição de norma posterior, tendo, por si, caráter normativo e
aplicando-se automaticamente, independente de qualquer conduta seguinte da Administração
Pública; b) a imperatividade, significando que carecem em princípio de natureza dispositiva e
desse modo não permitem uma regulação discrepante, decorrendo do princípio da boa-fé que
deve orientar as atividades dos negociadores, daí por que, firmado o ajuste coletivo, não pode
a Administração atuar de forma distinta nem lhe é permitido modificá-lo posteriormente de
maneira unilateral; e c) a inderrogabilidade absoluta, resultando que no prazo de sua vigência
há de ser respeitado, sendo que um “[...] reglamento no puede intervenir ni siquiera para
mejorar el acuerdo o pacto, mientras este se halle em vigor”.245
Nada obstante esses aspectos gerais, impende reconhecer que uma das
especialidades da negociação coletiva na função pública concerne à eficácia jurídica dos seus
instrumentos. Configura-se uma eficácia especial quando comparada à negociação coletiva no
âmbito laboral. O primeiro aspecto diz respeito à circunstância de que, diferentemente do que
se dá na negociação laboral, que admite ajustes coletivos extra-estatutários, na negociação
coletiva dos funcionários, por tratar-se de direito de simples configuração legal, segundo a
jurisprudência constitucional ainda prevalecente, não se reconhece eficácia jurídica à
negociação extralegal. Logo, as negociações assim estabelecidas não possuem a eficácia que
deriva do Estatuto Básico, não sendo obrigatórias e não podendo prevalecer frente à
negociação coletiva regulada legalmente246. Esse quadro muda substancialmente com a
245
OJEDA AVILÉS. Compendio de derecho sindical, 1998, p. 400. 246
ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 11.
220
evolução da jurisprudência constitucional no sentido de reconhecer a integração genérica da
negociação coletiva no conteúdo essencial da liberdade sindical dos funcionários.247
Diante da limitação da eficácia jurídica da negociação aos
instrumentos legalmente reconhecidos, impõe-se analisar os efeitos da negociação conforme o
procedimento se encerre com a celebração de Pactos ou Acordos.
Os Pactos, sendo contratos coletivos normativos, possuem eficácia
jurídica muito similar à dos convênios coletivos do âmbito laboral, compreendendo assim a
vinculação direta, a eficácia normativa, os efeitos sobre os funcionários compreendidos no
âmbito de aplicação e a exclusão da capacidade de regulação unilateral pela Administração
Pública.248 Os Pactos prevalecem sobre os regulamentos anteriores, assim como não podem
ser alterados ou privados de efeitos total ou parcial por normas regulamentares posteriores, na
medida em que a regulação unilateral pela Administração somente pode ser exercida quando
efetivamente configurado o fracasso da negociação coletiva e depois de exaurido o
procedimento de solução extrajudicial (EBEP, artigo 38.7) .249
Por sua vez, os Acordos, antes da ratificação “no vincula más allá de
la obligación, propia de uma negociación de buena fe, de someterlo em plazo razonable a la
aprobación del Órgano de Gobierno respectivo”. 250 Uma vez aprovados, vinculam da mesma
forma e nos mesmos termos em que se passa com os Pactos, salvo se envolver negociação
pré-legislativa, hipótese em que se faz necessária a elaboração e o encaminhamento do
respectivo projeto de lei. Nessa situação, a Administração está obrigada a negociar o texto que
encaminhará ao órgão legislativo correspondente, cuja eficácia jurídica direta dependerá da
247 LANDA ZAPIRAIN; BAYLOS GRAU. La negociación colectiva en el marco de las administraciones
publicas: los problemas de su configuracion legal atual. Texto produzido para o workshop “La negociación
de las condiciones de trabajo de los empleados públicos al servicio de las Administraciones públicas vas,
realizado na Universidad de Oñati no período de 24 a 25 de abril de 2001, com a coordenação do Instituto de Sociologia Jurídica de Oñati.
248 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 36.
249 ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p.
36. 250
ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p.
43.
221
circunstância de o projeto converter-se em lei. Isso não afasta a eficácia jurídica do próprio
Acordo, porquanto, apesar de o Parlamento possuir liberdade para aprovar ou não o projeto,
podendo inclusive realizar as modificações que considere necessárias, prevalece a eficácia em
relação ao órgão de governo respectivo, que não pode deixar de remeter o projeto nem pode
encaminhá-lo sem observar o conteúdo negociado e ratificado.
Definidas as bases acerca da eficácia jurídica dos Pactos e Acordos,
cumpre então verificar os efeitos decorrentes do descumprimento do produto da negociação.
Quando se tratar de descumprimento em relação a matérias não sujeitas à reserva de lei, a
questão é menos problemática. Possuindo suas normas caráter imperativo, com eficácia
imediata e claramente vinculante, incidem de forma cogente em relação aos órgãos
administrativos e aos funcionários afetados, não podendo a Administração modificá-las ou
alterá-las para ajuste a situações singulares, salvo a hipótese do artigo 38.10 do Estatuto
Básico. Firmado o ajuste coletivo, quaisquer das partes afetadas pelo descumprimento podem
acionar judicialmente para reclamar o cumprimento dos direitos que lhes corresponda. Nesse
sentido, pode o funcionário diretamente ou a organização sindical legitimada reclamar contra
a Administração Pública na via do contencioso-administrativo.
Tratando-se de descumprimento de Acordos ratificados em matérias
sujeitas à reserva de lei, a questão assume maior complexidade. Recusando-se a
Administração Pública a encaminhar o projeto de lei ou procedendo ao encaminhamento com
inobservância das condições ajustadas, em qualquer caso resta caracterizado o
descumprimento, gerando consequências jurídicas, na medida em que os Acordos ratificados
vinculam juridicamente o órgão que os aprova. O descumprimento “podrá generar acciones en
reclamación de responsabilidad a la Administración, en un caso por omisión de una conducta
exigible, en el otro por acción”.251 Não se convertendo o Acordo em lei, surge o problema
quanto à possibilidade de os funcionários reclamarem direitos com fundamento no
instrumento coletivo ratificado. Anteriormente à edição do Estatuto Básico, que no artigo
38.3, ao dispor sobre os Acordos em matéria de reserva de lei, estabelece que “su cotenido
carecerá de eficacia directa” antes de sua aprovação pelo Parlamento, o tema foi objeto de
251 ALFONSO MELLADO. La negociación de los funcionarios públicos. Algunas cuestiones a propósito de la
sentencia de la Audiciencia Nacional de 7 de noviembre de 2000, en RDS, núm.13, 2001, p. 25.
222
intenso debate em vários segmentos da sociedade, conduzindo à reflexão sobre a importância
do reconhecimento da eficácia da negociação coletiva dos funcionários públicos.
Na Espanha, a questão assume grandes dimensões com o
reconhecimento pela Sala do Contencioso-Administrativo da Audiência Nacional (AN),
através da Sentença da Audiência Nacional (SAN) de 7 de novembro de 2000, do direito ao
incremento das retribuições previsto no Acordo firmado entre a Administração e os Sindicatos
para o período de 1995-1997. O Acordo foi cumprido em relação aos anos de 1995 e 1996,
mas para o ano de 2007 o Governo decidiu não proceder ao incremento ajustado, decorrendo
daí a não inclusão para esse fim dos recursos na Lei Orçamentária Geral do Estado. Ao
encaminhar o projeto de lei orçamentária sem os recursos necessários para garantir o
cumprimento do Acordo, o Governo promoveu um congelamento salarial. Em face disso, foi
promovida ação judicial com a pretensão de cumprimento do disposto no acordo coletivo. A
SAN concluiu pelo reconhecimento da eficácia direta do instrumento normativo ante a
previsão de incremento automático das retribuições para o ano de 1997, adotando como
razões de decidir o direito fundamental de liberdade sindical dos funcionários e o dever de a
Administração negociar de boa-fé, potencializando assim a negociação coletiva e atribuindo
efeitos jurídicos concretos ao produto negociado.252 Conquanto a sentença tenha sido anulada
pelo TS253, teve o mérito de chamar atenção para a necessidade de fortalecer o caráter
vinculante dos Pactos e Acordos, que é “no solo deseable sino consustancial con una sociedad
política basada en valores como la participación, el diálogo y el acuerdo” 254.
252 A sentença acolhe a pretensão do sindicato demandante, reconhece a desconformidade com o Direito da
resolução impugnada e proclama sua nulidade, reconhecendo aos funcionários incluídos no âmbito de aplicação do acordo coletivo o direito “a percibir el incremento en su retribuición según la previsión presupuestuaria del crecimiento del IPCen el año 1997, más las cantidades dejadas de percibir durante los años sucesivos como consecuencia de la inaplicación del señalado incremento, y ordenamos a la Administración que proceda a llevar a efecto en el menor plazo posible negociaciones sobre el incremento retributivo”.
253 Na sentença de 21 de março de 2002, o Tribunal Supremo, a pesar do desfecho negativo, firmou precedente quanto ao dever de reabertura da negociação: “En definitiva, la Administración no excluyó de manera unilateral el incremento retributivo en la negociación, ni vulneró el principio de obligatoriedad de negociar de buena fe. Lo que ocurrió fue que no se consiguió llegar a un acuerdo” […] “En el caso examinado, no existió una exclusión unilateral de la negociación sobre la materia relativa al incremento retributivo en la negociación de 1996, sino un desacuerdo sobre la materia entre las partes negociadoras y porque no existió el acuerdo sobre el eventual incremento de la retribuciones correspondía al Gobierno.” […] “Existió un esfuerzo para alcanzar un acuerdo (art. 7 del Convenio OIT nº 151) y se negoció reconociendo el papel central que el constitucionalismo del Estado social otorga a los Sindicatos y a los mecanismos de participación en la fijación de las condiciones del empleo público.”
254 ALFONSO MELLADO. La negociación de los funcionarios públicos. Algunas cuestiones a propósito de la
sentencia de la Audiciencia Nacional de 7 de noviembre de 2000, en RDS, núm.13, 2001, p. 32.
223
Aspecto muito relevante diz respeito à eficácia negativa da negociação
coletiva dos funcionários públicos. Distingue-se neste ponto entre a eficácia do produto da
negociação e a eficácia da obrigação de negociar. No caso, dada a natureza obrigatória da
negociação na função pública, sua inobservância deve ensejar a nulidade da decisão ou ato
administrativo adotado sem que antes tenha se submetido ao procedimento de negociação
obrigatório. Existindo o dever de negociar, obviamente seu descumprimento gera
consequências jurídicas, com a possível nulidade do ato administrativo adotado
unilateralmente sem negociação prévia ou produzido mediante procedimento viciado. O
problema assume maior complexidade quando se trata de negociação pré-legislativa e o
projeto de lei é aprovado sem prévia negociação. Nesse caso é possível admitir que ato
legislativo supre os vícios precedentes, dificultando a postulação da nulidade da lei. Isso, no
entanto, não obstaculiza a responsabilização da Administração Pública por descumprimento
do dever de negociar, circunstância que justifica um pedido de indenização em favor das
organizações sindicais legitimadas por violação ao direito fundamental de liberdade sindical,
do qual faz parte o direito à negociação coletiva.255
No tocante à eficácia da negociação coletiva conjunta, o Estatuto
Básico mantém a dualidade de regimes jurídicos para o acordo misto e o faz no pressuposto
da existência de modelos diferentes de negociação coletiva, decorrentes de graus distintos de
autonomia coletiva (artigos 32 e 7º). Para os funcionários, a eficácia dos Pactos e Acordos
obedece às especificidades do EBEP, enquanto para os contratados sob regime laboral a
eficácia segue o modelo do ET, posto que sujeitos à aplicação da legislação laboral, inclusive
às normas sobre convênios coletivos. Nesse sentido, o artigo 83 ET confere concretude ao
mandamento constitucional do artigo 37.1 CE, que determina que “La ley garantizará el
derecho a la negociación colectiva laboral [...], así como “la fuerza vinculante de los
convenios”. Esta norma não se aplica à negociação coletiva dos funcionários, daí por que a
força vinculante dos Pactos e Acordos, assim como dos Acordos mistos, no que diz respeito à
função púbica, extrai-se do artigo 28.1 CE, que reconhece o direito genérico de negociação
255
ALFONSO MELLADO. Los derechos colectivos de los empleados públicos en el estatuto básico, 2008, p. 49.
224
coletiva dos funcionários, do que deriva para a Administração Pública o dever de negociar de
boa-fé e também a força vinculante do produto da negociação.256
A eficácia dual para a negociação conjunta gera problemas de caráter
substancial e processual. Para os contratados sob o regime do ET, tratando-se de acordo
misto, a eficácia imediata deve seguir os mesmos termos dos convênios coletivos, embora a
doutrina condicione sua eficácia à ratificação também para o âmbito laboral. Envolvendo o
acordo misto matéria de reserva de lei, a eficácia direta está condicionada à aprovação pelo
órgão legislativo. Ademais, surge o problema da competência para a impugnação dos acordos
mistos, cindida entre a jurisdição do contencioso-administrativo e a jurisdição do social,
circunstância que pode conduzir a perplexidades e contradições nos julgamentos a respeito de
uma mesma cláusula. Não parece razoável pretender a extensão dos efeitos da sentença ao
outro segmento coletivo a pretexto de resguardar a unidade da negociação. Melhor solução
seria a inserção de cláusulas de garantia, de sorte a contemplar a vinculação total do
instrumento coletivo, procedendo-se à renegociação de cláusulas anuladas por um dos órgãos
da jurisdição.
9.3 POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL DE SUSPENSÃO OU MODIFICAÇÃO DO
CUMPRIMENTO DOS PACTOS E ACORDOS: EXIGÊNCIA DE NOVO
PROCEDIMENTO DE NEGOCIAÇÃO
O Estatuto Básico no artigo 38.10 introduz a possibilidade
excepcional de suspensão ou modificação de cumprimento dos Pactos e Acordos, conferindo
poderes exorbitantes e extraordinários aos órgãos de governo das Administrações Públicas,
256
Esta é a conclusão de MARTÍNEZ GAYOSO. El derecho de negociación colectiva de los funcionarios
públicos en la Constitución, 2002, p. 218, ao observar que “la eficacia inmediata, imperativa e inderogable del convenio sobre las relaciones individuales es inherente al reconocimiento de la negociación colectiva y, por lo tanto, predicable también sobre la negociación colectiva de los funcionarios públicos, derivada de la libertad sindical (artigo 28.1 CE).
225
quando houver “causa grave de interés público derivada de una alteración sustancial de las
circunstancias económicas”. Abre-se assim a via para a quebra da eficácia jurídica vinculante
e da própria vigência dos instrumentos da negociação, afetando de forma ampla e profunda a
negociação coletiva. O tema tornou-se central na Espanha e que deixou de ter um componente
apenas jurídico, assumindo projeções políticas, econômicas e sociais. A questão é complexa e
ainda não foi suficientemente equacionada, exigindo uma manifestação mais conclusiva da
doutrina científica e jurisdicional. A atualidade do debate dá-se especialmente em razão da
edição do RDL nº 8/2010, de 20 de maio, através do qual se adota medidas extraordinárias
para redução do déficit público, incluindo a redução dos salários dos empregados públicos na
ordem de 5%, atingindo assim o Acordo firmado entre Governo e Sindicatos para a função
pública no marco do diálogo social 2010-2012, que previa um incremento da massa salarial da
ordem de 0,3% para o ano de 2010, além de uma cláusula de revisão que tinha por objetivo
manter o poder aquisitivo dos funcionários.
Antes da análise da questão de fundo, relacionada à aplicação do RDL
nº 8/2010, impõe-se previamente fazer uma abordagem acerca do conteúdo da norma do
artigo 38.10 EBEP, de modo a definir os seus contornos e suas possibilidades interpretativas.
A inserção do dispositivo decorreu de problemas resultantes de acordos de vigência plurianual
que previam o incremento de retribuições dos empregados públicos para os anos de 1995,
1996 e 1997, tendo o Governo deixado de proceder ao cumprimento do ajustado em relação
ao último ano, fato que ensejou a não inclusão dos recursos necessários na Lei de Orçamento
Geral do Estado. A questão foi submetida à apreciação da AN, do TS e do TC e, nada
obstante o âmbito debate estabelecido, faltou um pronunciamento conclusivo sobre a base
constitucional do direito de negociação coletiva dos funcionários, que teria importantes
consequências em relação à eficácia jurídica dos Pactos e Acordos. O vazio normativo e a
divergência de pronunciamentos jurisdicionais foram determinantes para a previsão da
cláusula rebus sic stantibus257
, cujo conteúdo aberto e impreciso exige uma interpretação
sistemática e integradora da qual possa resultar a superação de ambiguidades e omissões do
EBEP e a potencialização da negociação coletiva e da eficácia jurídica dos seus instrumentos.
257 A cláusula rebus sic stantibus autoriza a resolução contratual pela onerosidade excessiva, cuja aplicação
requer a coexistência de três pressupostos: 1) estipulação de um contrato de duração; 2) superveniência de acontecimento que gere onerosidade excessiva para uma das partes; e 3) acontecimento extraordinário qualificado por sua imprevisibilidade. O pressuposto da onerosidade excessiva exige um brutal rompimento da equivalência originária da pactuação, motivada pelo surgimento de uma situação de desequilíbrio econômico, transformando drasticamente o panorama contratual.
226
Os Pactos e Acordos devem ser resultado do equilíbrio entre os
interesses e posições das partes em um momento determinado e tendo em vista certas
circunstâncias. Alteradas estas de forma substancial, configurando profundo e extenso
desequilíbrio contratual, admissível a reabertura da negociação de sorte a restabelecer o
equilíbrio gravemente alterado. Essa possibilidade, por força do artigo 38.10 EBEP, abre-se
tanto para as Administrações Públicas, assim como para as organizações sindicais, que podem
recorrer à greve como meio de pressão para modificar ou revisar o acordo vigente. A
invocação da cláusula rebus sic stantibus pelas Administrações Públicas somente se justifica
“excepcionalmente” e unicamente “por causa grave de interés público derivada de una
alteración sustancial de las circunstancias económicas”. A referência no texto ao dever de as
Administrações Públicas informarem as causas da suspensão ou modificação não conduz à
dispensa da reabertura do procedimento negociador. A interpretação sistemática desse texto
com o disposto no artigo 38.7 impõe a conclusão de que, sendo a matéria objeto de
obrigatória negociação, a suspensão ou modificação do acordo deve ser também negociada.
Decisão unilateral das Administrações Públicas somente cabe na hipótese de não se produzir
novo ajuste coletivo258.
Apreciando agora a polêmica atual acerca da juridicidade do RDL nº
8/2010, não se discute aqui a presença ou não dos pressupostos de extraordinária e urgente
necessidade para a adoção das medidas pelo Governo sob a forma de Decreto-Lei referido no
artigo 86.1 CE, uma vez que os argumentos gerais e específicos utilizados como justificativas
parecem atender às exigências constitucionais, embora a opção política adotada não se revele
a mais adequada.259 Cabe aqui verificar se o RDL nº 8/2010 passa no filtro de
constitucionalidade quanto à vedação de não poder “afectar al ordenamiento de las
258 Nesse sentido, BAYLOS GRAU. Sobre la reducción salarial de los empleados públicos, ao sustentar que
“Esta vía excepcional de alteración de lo pactado implica una denuncia ante tempus del convenio y la apertura de un proceso de negociación nuevo, pero nunca puede sustituirse el proceso de negociación que está en la base de un sistema de regulación de las condiciones de trabajo y de empleo de los funcionarios públicos garantizado por al Constitución, reconocido en convenios internacionales y desarrollado en el EBEP, y que conecta directamente, como se ha dicho, con el derecho de libertad sindical.” Disponível em: <http://www.fsc.ccoo.es/webfsc/menu.do?Actualidad:Opinion:80780>. Acesso em: 26 jul. 2011.
259 Convém anotar, no entanto, que, no marco da crise do Estado Social e Democrático de Direito, as violações aos direitos fundamentais, em especial dos direitos sociais, geralmente são praticadas através de excepcionais procedimentos de “urgência”, baseados em razões de “interesse geral” ou por força de “imperativos econômicos” e sem possibilitar os controles através da justificação e discussão que envolvem a tramitação junto ao Parlamento.
227
instituciones básicas del Estado, a los derechos, deberes y liberdades de los ciudadanos
regulados en el Título I, al régimen de las Comunidades Autonómicas ni al Decrecho electoral
general”. Questiona-se, portanto, se o ato unilateral do governo de redução dos salários e o ato
legislativo que o aprovou implicaram afetação ao direito fundamental de liberdade sindical
dos funcionários públicos (artigo 28.1), integrado pela negociação coletiva e do qual resulta a
eficácia jurídica dos respectivos instrumentos normativos.
Com efeito, segundo o disposto no EBEP, artigo 37.1, letras a, b e k,
combinado com o disposto no artigo 36.2 e no artigo 38.3, a matéria referente às retribuições
dos empregados públicos deve ser objeto de obrigatória negociação coletiva na Mesa Geral
das Administrações Públicas, cujo Acordo ratificado deve ser transformado em projeto de lei
e incluído na Lei de Orçamento Geral do Estado. Constituindo as retribuições matérias de
obrigatória negociação coletiva e uma vez vigente a lei orçamentária que incorporou as
condições ajustadas coletivamente, resulta evidente que sua suspensão também deve ser
objeto de negociação. Reforça essa conclusão o disposto no artigo 38.7, ao estabelecer que,
tratando-se de matéria de obrigatória negociação, que abrange as retribuições dos empregados
públicos, as Administrações somente podem regular unilateralmente as condições de trabalho
quando não se produza o acordo na negociação ou na renegociação. Inequívoco, portanto, que
em matéria envolvendo retribuições não cabe decisão unilateral sem prévio esgotamento da
negociação coletiva na Mesa Geral das Administrações Públicas.
A edição do RDL nº 8/2010 não foi precedida da negociação
obrigatória, limitando-se o Governo a proceder à comunicação da decisão adotada
unilateralmente às organizações sindicais legitimadas. O descumprimento do dever de
negociar previamente é admitido de forma expressa na Exposição de Motivos, ao dispor que
en cumplimiento de lo dispuesto en el artículo 36. 2 párrafo segundo y el 38.10 de la Ley del Estatuto Básico del Empleado Público, se ha reunido la Mesa General de negociación de las Administraciones Públicas el día 20 de mayo del presente año con el fin de informar a las Organizaciones Sindicales tanto de la suspensión del Acuerdo de 25 de septiembre en los términos manifestados, como de las medidas y criterios que recoge el presente Real Decreto-ley en este ámbito.
228
Naturalmente a simples comunicação não supre o dever de negociar,
porquanto o Governo, antes de adotar as medidas unilateralmente, deveria ter convocado a
Mesa Geral das Administrações Públicas e ali sustentar a “alteración sustancial de las
circunstancias econômicas”, de modo a obter a celebração de um novo acordo, incorporando
as novas condições pactuadas ao decreto-lei ou então em projeto de lei a ser encaminhado ao
Parlamento. Por força do artigo 38.7, somente com a configuração do fracasso da negociação
coletiva pode ser adotado unilateralmente o ato normativo. Como o RDL nº 8/2010 foi
promulgado sem prévia convocação da Mesa Geral das Administrações Públicas e
logicamente sem esgotamento da negociação coletiva, restou violado o direito de negociação
coletiva dos funcionários públicos.
Essa conclusão decorre da circunstância de que, conforme a regulação
do EBEP, as retribuições dos funcionários públicos são matéria objeto de negociação coletiva
(artigo 37.1, letras a, b e k), razão pela qual está a Administração Pública obrigada a negociá-
las com as organizações sindicais legitimadas (artigos 37.1, 33.1 e 38.7). Isso é reforçado pelo
reconhecimento do direito de negociação coletiva na função pública que se extrai do artigo
28.1CE, na medida em que o mesmo integra o conteúdo essencial da liberdade sindical dos
funcionários públicos, assim como do reconhecimento legal desse direito, seja pelo artigo
2.2.d LOLS, seja pelo artigo 33.1 EBEP. Acrescente-se que, ao dispor imperativamente o
artigo 33.1 EBEP que “serán objeto de negociación”, seguindo-se a relação das matérias de
obrigatória negociação, entre as quais estão as retribuições dos empregados públicos (artigo
37.1), resulta vedada a regulação unilateral pela Administração Pública, ressalvada
exclusivamente a hipótese em que configurado o fracasso da negociação (artigo 38.7).
No tema das retribuições dos funcionários, estabelece ainda o artigo
36.2 EBEP que compete à Mesa Geral de negociação das Administrações Públicas definir o
incremento global que deve ser incluído no projeto de lei do orçamento geral do Estado de
cada ano. Claro então que eventual redução salarial, que derive da modificação da lei
orçamentária, depende igualmente da abertura de um novo procedimento de negociação. No
caso específico, a falta de renegociação não restou suprida com a convocação da Mesa Geral
das Administrações Públicas, haja vista que não se configurou concretamente a renegociação,
mas simples informação às organizações sindicais legitimadas das medidas dotadas
unilateralmente, comunicação esta que se deu no mesmo dia da promulgação do RDL nº
229
8/2010 e não teve naturalmente nenhuma intenção de chegar a um acordo. Ademais, os
argumentos gerais e específicos utilizados para justificar as razões de extraordinária e urgente
necessidade por si não são suficientes para justificar o descumprimento do dever de negociar.
Cabe, diante das circunstâncias, proceder à urgente convocação e dar início a um breve
procedimento negociador, que muito provavelmente termine sem acordo, mas que confere
fundamento jurídico às medidas adotadas unilateralmente e assegure efetividade ao direito de
negociação coletiva dos funcionários.
Cumpre então verificar os efeitos jurídicos do descumprimento da
obrigação de negociar. No âmbito da função pública, a negociação coletiva possui uma
eficácia negativa, da qual poderá resultar a nulidade do ato normativo editado sem
observância da negociação obrigatória. No caso do RDL nº 8/2010, diante da concretização
das medidas unilaterais, que importou reduções nos salários dos funcionários públicos sem
prévia negociação coletiva, esse fato gera consequências jurídicas, que não estão claramente
previstas no Estatuto Básico. Conquanto se reconheça a possibilidade de modificação das
normas jurídicas aplicáveis aos funcionários, isso deve ser feito observando a ordem jurídica
vigente, com respeito aos direitos adquiridos. No caso, os direitos já estavam incorporados ao
patrimônio jurídico dos funcionários, o que se deu não em razão da ratificação do Acordo
alcançado entre Governo e Sindicatos para o período 2010-2012, mas porque as retribuições
já estavam definidas no Orçamento Geral do Estado através da Lei nº 26/2009. A modificação
da lei vulnera diretamente o artigo 33.3 CE, segundo o qual "Nadie podrá ser privado de sus
bienes y derechos, sino por causa de utilidad pública o interés social, mediante la
correspondiente indemnización y de conformidad con lo dispuesto por las leyes". Afetada a
esfera jurídica dos funcionários, com privação dos direitos adquiridos, isso legitima
reclamações individuais ou coletivas para obtenção das diferenças salariais.
Além da pretensão reparatória individual ou coletiva em relação às
retribuições indevidamente suprimidas, a situação justifica igualmente a impugnação judicial
do ato normativo, com sua consequente anulação, por descumprimento do dever de negociar e
assim por afastar-se da legalidade vigente. A convalidação do ato normativo pelo Parlamento
implica maiores dificuldades para a anulação, haja vista a incidência da soberania parlamentar
para apreciar livremente os acordos coletivos ratificados previamente. Resta então a
possibilidade de as organizações sindicais legitimadas pleitearem indenização por danos e
230
prejuízos decorrentes do descumprimento da obrigação de negociar, do qual resulte a
impossibilidade de exercício da atividade sindical e violação ao direito fundamental de
liberdade sindical, como consequência de sua relação direta com o direito à negociação
coletiva.
9.4 ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DO
DIREITO DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA FUNÇÃO PÚBLICA
Na contemporaneidade, múltiplos diagnósticos são realizados acerca
da influência crescente que a justiça exerce sobre a vida coletiva. O juiz francês Antoine
Garapon, em Les Gardien des promesses, fala em “sociedade judicializada e despolitizada”,
“democracia governada pelo direito”, “declínio da política e do crescimento do jurídico” e
conclui que a “colonização do mundo pelo direito faz do Judiciário o último refúgio para
sociedade”.260 Esse fenômeno indica que questões de grande repercussão política passam a ser
decididas pelos juízes e tribunais, ensejando necessariamente a revisão do princípio da
separação dos poderes, com o consequente deslocamento do poder político do Legislativo e
do Executivo para o Judiciário. De fato, antes periférico, passivo, com a tarefa de dizer o
direito, o Poder Judiciário tem assumido novos papéis, tornando-se o centro do debate de
múltiplas e diversificadas insatisfações e reivindicações dos mais amplos e variados setores da
sociedade.
Matérias que antes eram de responsabilidade de outros Poderes,
passaram à arena do Poder Judiciário. Com isso as decisões judiciais ganharam as manchetes
dos jornais, ocupando os juízes e tribunais espaço central na agenda pública, tornando-os mais
260
O juiz francês Antoine Garapon, em Le gardien des promesses, aborda a judicialização da política e seu impacto nas democracias contemporâneas, observando que “O controle crescente da justiça sobre a vida coletiva é um dos maiores fatos políticos. Nada mais escapa ao controle do juiz. As últimas décadas viram o contencioso explodir e as jurisdições crescerem e se multiplicarem, diversificando e afirmando, cada dia um pouco mais, sua autoridade. Os juízes são chamados a se manifestar em um número de setores da vida social cada dia mais extenso” (GARAPON. O juiz e a democracia: o guardião das promessas, 2001).
231
presentes e visíveis na sociedade e na mídia. O novo perfil do Judiciário decorre de múltiplos
fatores, mas pesa principalmente a crescente crise de representatividade, legitimidade e
funcionalidade das instituições políticas. A função jurisdicional não se limita mais a resolver
conflitos de interesses, envolvendo agora a resolução de conflitos de valores. E ao se
defrontar com oposição entre valores, o magistrado faz escolhas, assume posições, expressa
convicções. Nesse novo papel, deve assumir de forma plena e efetiva o papel que lhe cabe no
desenho constitucional das democracias contemporâneas, atuando de forma ampla e intensa
na concretização dos direitos fundamentais e na efetivação dos princípios democráticos.
A exigência de adequada e efetiva atuação dos tribunais impõe-se na
medida em que “los derechos constitucionales no puede dejarse librada a la benevolencia, a la
autorregulación o a la mera auto-limitación de un legislador “virtuoso” o de un poder político
“bueno”. 261 E isso mais se justifica em um cenário em que os Poderes Executivo e
Legislativo têm sido paulatinamente esvaziados no exercício de suas prerrogativas de efetiva
intervenção política e econômica, sujeitando-se a modelos impostos e orientados para a
decomposição das bases que estruturam o Estado do Bem Estar Social. Nesse sentido, a via
jurisdicional constitui importante instrumento de expansão do controle sobre os demais
poderes, cujo exercício pelos tribunais somente se legitima quando dirigida a maximizar os
direitos, sobretudo para assegurar sua concretização ou reparar suas violações. Esclareça,
entretanto, que a garantia e a concretização dos direitos evidentemente não podem fundar-se
exclusivamente na atuação dos tribunais, posto que “todo proyecto garantista constreñido a
operar en el contexto de sociedades complejas no puede sino descansar en la articulación, no
ya unitária, pero si plural, de actores sociales capaces de recoger, perfeccionar y profundizar
una cultura constitucionalista en matéria de derechos sociales.” 262
Nesse contexto insere-se a judicialização dos conflitos coletivos de
trabalho. Esse aspecto mostra-se especialmente relevante, na medida em que o fenômeno
jurídico não se restringe ao momento de sua produção, sendo essencial captá-lo quando de sua
aplicação e/ou operacionalização. Em decorrência, os sujeitos coletivos elegeram a arena
judicial como espaço importante de conformação da negociação coletiva. “Os tribunais são,
261 FERRAJOLI. Derechos fundamentales, en Derechos y garantía, 1999. 262 PISARELLO. El Estado Social como Estado Constitucional: mejores garantías, más democracia, en
Abramovich, V. Añón, JM., y Courtis, Ch., Derechos Sociales, instrucciones de uso, 2003, p. 45-46.
232
então, o lugar das disputas entre representantes do capital e do trabalho pela interpretação da
norma legal. São palco da luta de classes [...] loci de pressões de toda ordem de agentes
interessados”263. Cumpre então verificar o papel desempenhado pela jurisprudência na
construção e reconstrução dos sentidos das normas constitucionais e legais que dispõem sobre
a autonomia coletiva na função pública, de modo a apreender a tendência da política judiciária
quanto à potencialização ou não da negociação coletiva e dos instrumentos dela resultantes.
Para esta análise, será necessário apreciar a proteção jurisdicional do direito de negociação
coletiva dos funcionários em sua relação com o direito fundamental de liberdade sindical,
seguindo breve consideração sobre alguns precedentes dos tribunais.
No âmbito da função pública, o sistema de tutela jurisdicional da
negociação coletiva faz-se considerando sua relação com o direito fundamental de liberdade
sindical dos funcionários (artigo 28.1 CE). Singulariza esse sistema o reiterado e equivocado
reconhecimento pela jurisprudência constitucional de que a negociação forma parte do
conteúdo adicional da liberdade sindical, constituindo direito de simples configuração legal,
cujo exercício se dá nos termos e condições definidos pela lei. O TC, conquanto não lhe
atribua por si e isoladamente a natureza de direito fundamental, “cuando se trata del derecho
de negociación colectiva de los sindicatos se integra em el de libertad sindical, como una de
sus facultades de acción sindical” (STC 80/2000), entendimento este reiterado com o
reconhecimento da inconstitucionalidade de decisão judicial que concluiu pela inexistência de
direito à negociação coletiva como direito que acompanha a liberdade sindical do sindicato de
funcionários públicos (STC 224/2000). Como desdobramento, na jurisprudência
constitucional, a negociação não se constitui direito fundamental com as consequências que a
ordem constitucional contempla, resultando dessa interpretação restritiva que o direito não
dispõe de um sistema de garantias privilegiado e reforçado, tal como se dá com os direitos
fundamentais e liberdades públicas. No entanto, quando está em jogo a atividade do sindicato
e em questão a violação ao direito de liberdade sindical, prevalece o entendimento de que
essa circunstância legitima a tutela especial mediante o recurso de amparo perante o TC e
também através do amparo ordinário perante os tribunais ordinários.
263 CARDOSO. O sindicalismo no Brasil: breve excurso sobre mudanças e permanências. Cadernos Adenauer,
v. 3, núm. 2 , 2002, p. 11-34.
233
Muito recentemente, por força da edição do RDL nº 8/2010, uma vez
mais os tribunais espanhóis foram convocados para o cumprimento do dever de reparar a
vulneração do direito de negociação coletiva, cuja decisão poderá impulsionar e expandir esse
direito ou então negá-lo ou mitigá-lo até o limite de sua desfiguração. Os debates nos
tribunais direcionam-se para reafirmação de uma posição jurisdicional restritiva,
descumprindo assim os tribunais o dever, e não apenas a faculdade, que lhes cabe nas
democracias contemporâneas de exercício do controle jurídico sobre os demais poderes e de
maximização dos direitos fundamentais e dos princípios democráticos. Em certa medida, a
atuação dos tribunais espanhóis assemelha-se muito às práticas dos tribunais brasileiros em
relação às greves, quase sempre rechaçando obstaculizando ou mesmo negando o exercício
desse direito fundamental dos trabalhadores.264
Com efeito, através do RDL nº 8/2010, que adota medidas
extraordinárias para a redução do déficit público e promove reduções salariais da ordem de
5% sobre o conjunto dos empregados públicos, as garantias jurisdicionais, a cargo dos
tribunais, podem constituir instrumentos concretizadores de direitos violados pelas medidas
legislativas e administrativas. Nesse contexto, os tribunais estão diante da enorme tarefa de
exercer um papel ativo na definição do conteúdo e da garantia dos direitos de liberdade
sindical e de negociação coletiva dos funcionários públicos. Nesse cenário, é irrecusável o
protagonismo judicial como instrumento de garantia no marco constitucional das condições de
exercício dos direitos fundamentais e igualmente de delimitação dos limites dentro dos quais
haverá de atuar o Poder Público para observância do seu conteúdo essencial. Nesse sentido,
la justicia estará puesta a prueba, y en este particular dominio la actitud del juez será decisiva. El juez, ciertamente, no puede cambiar la norma, pero debe partir siempre del paradigma democrático que legitima su función en
264 De fato, em relação às greves, as decisões dos tribunais brasileiros indicam a formação de uma mentalidade
que considera a greve recurso último, medida extrema, uma transgressão, um mal que deve ser evitado. Nessa perspectiva, concessão de interditos proibitórios para impedir a mobilização, fixação de níveis mínimos de funcionamento de serviços essenciais, estabelecimento de multas pesadas contra sindicatos e grevistas, determinação de corte de ponto e desconto nos salários, decretação de ilegalidade e imposição de imediato retorno ao trabalho são medidas usualmente adotadas para enfraquecer e abortar o exercício do direito de greve. Nessa linha, a migração dos conflitos coletivos do trabalho para dentro dos tribunais possui um efeito devastador. Os tribunais, ao invés de cumprirem o papel estratégico e fundamental de salvaguarda dos direitos e garantias e de limitação dos poderes públicos e privados, converteram-se em palco em que sobressai o lamentável espetáculo da negação e da repressão do direito de greve. Configura-se nessa atuação espécie de ativismo judicial às avessas, impedindo que por meio da greve direitos possam ser construídos e efetivados.
234
tanto que reconoce el rol dirigente y encauzador del derecho sobre la desigualdad y la violencia de los mercados y de la competición económica sobre las condiciones de existencia digna de las personas y de la preservación de un trabajo decente como obligación constitucional.265
Inexiste solução jurisdicional, ainda que provisória, no âmbito da
ordem do Contencioso-Administrativo em relação aos funcionários públicos. Diante da falta
de pronunciamento do órgão competente para apreciação dos conflitos decorrentes do regime
jurídico-administrativo, apreciam-se aqui os debates travados em relação aos empregados
públicos submetidos ao regime laboral, haja vista que, embora se trate de regimes de
negociação coletiva diferentes, inclusive com aplicação do efeito vinculante dos convênios
derivados do artigo 37.1 CE, combinado com o artigo 82 ET, de algum modo a questão da
eficácia jurídica dos instrumentos normativos guarda muitos aspectos comuns. Frise-se,
portanto, a existência de especificidades em relação ao pessoal laboral diante das regras do
artigo 82.3 e do artigo 41.1.d ET, que impõem procedimento próprio para a renegociação dos
convênios coletivos quando isso se justifique em razão de situação econômica da empresa,
particularidade esta que gera a inaplicação, no âmbito das relações tipicamente privadas, da
regra do artigo 38.10 EBEP.266 Passa-se então a analisar de que forma deliberou a Sala do
Social da Audiência Nacional, adotando-se como objeto de análise o Auto nº 63/2010.
No Auto de 28 de outubro de 2010, a AN, através da Sala do Social,
conclui que
265
BAYLOS GRAU. Notas sobre la función de los jueces ante las políticas de recorte de derechos sociales. Disponível em: <http://baylos.blogspot.com/2010/12/notas-sobre-la-funcion-de-los-jueces.html>. Acesso em: 27 ago. 2011.
266 A diversidade de modelos de negociação está claramente exposta no Auto 63/2010: “[…] estamos ante dos regímenes de negociación colectiva totalmente diferentes, aunque tengan un rasgo común dominante, consistente en que funcionarios y laborales están sometidos a los incrementos de la masa salarial establecida anualmente en las Leyes de Presupuestos Generales del Estado”. […]aunque sea cierto que el personal funcionario y el personal laboral están obligados a negociar conjuntamente los incrementos retributivos globales que deben incluirse dada anualidad en la Ley de Presupuestos Generales del Estado, mediante un Acuerdo conjunto de los previstos en el Art. 38 EBEP, no es menos cierto que dicho Acuerdo produce efectos jurídicos diferenciados para uno y otro colectivo, puesto que el Acuerdo suscrito conjuntamente, al igual que cualquier otro que, de conformidad con lo establecido en el Art. 37, contenga materias y condiciones generales de trabajo comunes al personal funcionario y laboral, tendrá la consideración y efectos previstos en el propio artículo 38 EBEP para los funcionarios, mientras que producirá los efectos del Art. 83 del Estatuto de los Trabajadores para el personal laboral, que son exactamente los mismos de cualquier otro convenio colectivo, a tenor con lo dispuesto en el Art. 83, 3 ET, de conformidad con lo dispuesto en el Art. 38.8 EBEP.”
235
el derecho a la negociación colectiva forma parte del contenido esencial del derecho a la libertad sindical en su vertiente funcional, porque la negociación colectiva es un medio necesario para el ejercicio de la acción sindical que reconocen los arts. 7 y 28, 1 y porque la libertad sindical comprende inexcusablemente también aquellos medios de acción sindical (entre ellos la negociación colectiva) que contribuyen a que el sindicato pueda desenvolver la actividad a la que está llamado por la Constitución, habiéndose entendido así por la doctrina constitucional, en la que se ha defendido que la libertad sindical se integra por los derechos de actividad y los medios de acción que, por contribuir de forma primordial a que el sindicato pueda desarrollar las funciones a las que es llamado por el Art. 7 CE EDL1978/3879, constituyen el núcleo mínimo e indispensable de la libertad sindical.
Com a conclusão de que o direito de negociação coletiva integra o
núcleo duro do direito de liberdade sindical e invocando a natureza jurídica da eficácia
vinculante do convênio coletivo, que forma parte do conteúdo essencial da negociação
coletiva, tudo isso fundado em farta jurisprudência constitucional, a Sala do Social da AN, à
unanimidade, suscita questão de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional, de
modo a definir
si la redacción de los artículos 22, 4 y 25 de la Ley 26/2009, de 23 de diciembre, de Presupuestos Generales del Estado para 2010, promovida por el artículo 1 del RDL 8/2010, de 20 de mayo, por el que se adoptan medidas extraordinarias para la reducción del déficit público, ha vulnerado o no al contenido esencial del derecho de libertad sindical, regulado en los artículos 7 y 28, 1 CE, en relación con el derecho de negociación colectiva, regulado en el artículo 37, 1 CE, puesto que entendemos que dichos preceptos son aplicables al caso y el fallo depende de su validez, no siendo posible, acomodar por otra vía interpretativa dichos preceptos al ordenamiento constitucional.
De fato, a intervenção estatal realizada por meio do RDL nº 8/2010
afeta mortalmente o direito de negociação coletiva, atingindo seu núcleo essencial, que reside
precisamente na retribuição. Isso porque a matéria salarial constitui o ponto fulcral, o núcleo
ou coração da negociação coletiva, na medida em que é com o trunfo da remuneração,
abdicando de aspectos dela ou permitindo avanços mais lentos na mesma, que os
trabalhadores alcançam outras vantagens, ou os tomadores dos serviços, mediante ofertas
mais generosas em matéria da retribuição, conseguem outros benefícios. Por isso se diz que a
pedra de toque da negociação é a remuneração. Nesse sentido, resulta evidente que a
interferência legislativa, ao solapar a eficácia jurídica dos instrumentos negociados, produz a
236
eliminação do equilíbrio obtido através da negociação e atinge o próprio conteúdo essencial
da negociação coletiva, afetando, por via de consequência, o conteúdo essencial da liberdade
sindical dos funcionários públicos.
Possuindo a negociação coletiva uma dimensão constitucional,
obviamente não se trata de direito completamente disponível ao legislador. Isso também não
sugere dotá-la de supremacia sobre a lei ou de configurá-la como direito absoluto que não
possa sofrer modulações. Caracterizada a colisão de interesses, de um lado a necessidade de
resguardar os interesses públicos, de outro a necessidade de proteger a negociação coletiva, a
solução passa por um juízo de ponderação, mediante a aplicação da máxima de
proporcionalidade, de sorte a encontrar uma medida adequada, necessária e proporcional,
preservando o conteúdo essencial da negociação coletiva.267 E essa ponderação de interesses
encontra na renegociação o instrumento idôneo e eficaz, de modo que os sujeitos coletivos
possam amplamente debater e solucionar a colisão dos interesses, buscando equacionar o
montante global da redução salarial e a forma de alcançar os distintos segmentos de
empregados públicos, considerando os respectivos níveis salariais. Ausente o procedimento
de renegociação, e privando a Administração unilateralmente o produto negociado dos seus
efeitos, inclusive já incorporados à ordem jurídica vigente, resta inequivocamente
caracterizada a inconstitucionalidade da redução salarial levada a efeito pelo RDL nº 8/2010.
Nessa perspectiva, a deliberação da AN de suscitar a questão de
inconstitucionalidade em relação ao RDL nº 8/2010 constitui iniciativa dotada de especial
significado e relevância ao sinalizar pela violação do direito de liberdade sindical, na medida
em que considera que o ato governamental de redução dos salários dos empregados públicos
267 Na solução de colisão de interesses protegidos constitucionalmente, a exemplo da colisão entre interesses
públicos e negociação coletiva, necessário fazer a ponderação de bens, objetivando sacrificar o mínimo possível os interesses em jogo. Essa ponderação faz-se pela utilização dos cânones da unidade da Constituição, da concordância prática e da máxima de proporcionalidade. Nesse processo a Constituição deve ser compreendida como unidade, o que implica reconhecer que suas normas não existem isoladas uma das outras, exigindo-se que sejam vistas como integrantes de um sistema, com conexão entre todos os elementos e em situação de interdependência. O procedimento para resolução dos conflitos não obedece a uma hierarquia normativa pré-estabelecida de valores constitucionais, pois todos os valores ocupam o mesmo patamar, não sendo possível pura e simplesmente sacrificar um deles em favor do outro. Considerando que todos os bens constitucionais possuem o mesmo valor, impõe-se a proteção de todos eles a fim de sejam coordenados para que conservem sua identidade. No caso, o resultado das medidas adotadas pelo RDL 8/2010 não passa no controle de adequação, justificação, proporcionalidade e idoneidade, posto que impostas sem a necessária renegociação e assim atingiram o conteúdo essencial da negociação coletiva, do qual faz parte a eficácia jurídica dos seus instrumentos.
237
esvazia o conteúdo do direito de negociação coletiva e nega eficácia jurídica aos instrumentos
dela derivados. O Auto de 28 de outubro de 2010, a exemplo da Sentença de 7 de novembro
de 2000, ambos da AN, embora de órgãos jurisdicionais distintos e com competências
diversas, representa importante e adequado manejo das garantias jurisdicionais, atuando como
salutar instrumento de questionamento de legitimidade e validade de decisões políticas
claramente violadoras dos direitos fundamentais de liberdade sindical e negociação coletiva,
cujo conteúdo mínimo e indisponível institui vínculos e limites não apenas para o legislador e
para a Administração Pública, mas também para os tribunais, que devem atuar sempre com a
finalidade de potencializar os direitos.
Instado a decidir sobre a questão de constitucionalidade no momento
em que as bases do Estado Social e Democrático de Direito estão sob forte ataque de poderes
públicos e privados, o TC, no Auto de 7 de junho de 2011, omitindo-se no cumprimento de
seu dever de guardião dos direitos fundamentais, suscita um defeito processual inexistente
para extinguir sumariamente uma questão de grande relevância constitucional e que afeta
ampla e profundamente a liberdade sindical, a negociação coletiva e a força vinculante dos
convênios coletivos (CE, artigos 28.1 e 37). Além de exigir indevidamente que na questão de
constitucionalidade haja expressa indicação do dispositivo infringido (Lei Orgânica do
Tribunal Constitucional - LOTC, artigo 35), o TC subverte os termos da questão e parte da
premissa equivocada de que a solução do incidente passa pela decisão quanto à submissão ou
não do convênio coletivo à lei orçamentária. O equívoco evidencia-se ao observar o TC que
“del art. 37.1 CE no emana ni deriva la supuesta intangibilidad o inalterabilidad del convenio
colectivo frente a la norma legal, incluso aunque se trate de una norma sobrevenida”,
acrescentando que “es el convenio colectivo el que debe respetar y someterse no sólo a la ley
formal, sino, más genéricamente, a las normas de mayor rango jerárquico y no al contrario”.
Ora, esse aspecto era inteiramente incontroverso, posto que o Auto nº 63/2010 claramente
afirmou que “el Convenio Colectivo es una norma que sólo tiene fuerza vinculante y
despliega su eficacia en el campo de juego que la Ley señala”, razão por que conclui “que la
Administración no está vinculada a los convenios suscritos, que contradigan la ley”.
A questão posta era outra e consistia em definir se, uma vez aprovada
a lei orçamentária e firmado o convênio coletivo nos termos e limites definidos por essa
mesma lei, poderia a Administração Pública interferir no seu conteúdo, descumprindo aquilo
238
que foi ajustado coletivamente e promovendo redução dos salários. Nesse caso, além de se
questionar a necessidade de assegurar a própria força vinculante do convênio coletivo, que
integra o conteúdo essencial da negociação coletiva e também da liberdade sindical, direitos
estes com expresso reconhecimento constitucional e legal, caberia também conferir
efetividade às convenções internacionais da OIT, às quais está submetido o ordenamento
jurídico espanhol por força do artigo 96 da Constituição. Por tudo isso, conclui-se que o Auto
do TC, ao abordar a questão em termos completamente inexatos e distintos daqueles
realmente postos pela AN, gerou uma surpreendente e incompreensível mudança de sua
jurisprudência, que agora passa a ser determinada pela conveniência de políticas econômicas
de governos, disso tudo resultando efeitos extremamente prejudiciais à ação sindical e à
negociação coletiva e com sérias e graves consequências sobre o modelo de Estado Social e
Democrático de Direito.
A breve análise da atuação dos tribunais indica que na Espanha, assim
como no Brasil, a via jurisdicional está muito longe de corresponder às imensas aspirações de
exercício adequado e eficiente de controle dos demais poderes e de concretização dos direitos
coletivos. Destarte, conquanto seja essencial o labor dos atores institucionais, como o
legislador, a Administração e os tribunais, impõe-se reconhecer que o aparato constitucional e
legal resulta incompleto, irreal e ineficiente sem a existência e permanente promoção de
múltiplos espaços em condições de garantir socialmente a eficácia das normas consagradoras
dos direitos. Fica evidente que a concretização do direito de negociação coletiva dos
funcionários públicos passa também pela atuação de uma pluralidade de atores sociais na
formulação e ativação das garantias institucionais (legais, administrativas e jurisdicionais),
mas também por meio da autotutela, sobretudo através da greve, valioso instrumento à
disposição dos trabalhadores por meio do qual podem participar e pressionar no sentido de
garantir a concretização dos direitos fundamentais e princípios democráticos consagrados na
Constituição. Por tudo isso impende concluir que essa tarefa somente se realiza
en la constante articulación de contrapoderes democráticos, políticos e sociales, no ya como un simple complemento de la estrategia de los derechos, sino como la única alternativa realista para garantizar su efectividad. En ese sentido, no se exagera si se afirma que la lucha por los
239
derechos, como nunca antes, sólo puede prosperar como construcción colectiva y conflictiva, de los sujetos de los derechos.268
268 PISARELLO. El Estado Social como Estado Constitucional: mejores garantías, más democracia, en
Abramovich, V. Añón, JM., y Courtis, Ch., Derechos Sociales, instrucciones de uso, 2003, p. 50.
240
10 CONCLUSÃO
O fim do trabalho de produção científica é sempre o começo de novas
investigações. A sistematização que segue à guisa de conclusão não tem a pretensão de
encerrar o debate em torno da negociação coletiva dos funcionários no Brasil e na Espanha.
As linhas que seguem almejam tão-somente terminar a investigação, sem a concluir, haja vista
que o tema continua aberto a novas abordagens, considerando que o direito é um conceito
interpretativo e por isso mesmo dinâmico, mutável, fruto de experiências jurídico-sociais e
que expressa um complexo de relações de poder. A construção de um modelo de negociação
coletiva na função pública continua a desafiar a capacidade dos mais diversos operadores no
sentido de promover a abertura de novos caminhos, a criação de novos sentidos e a
articulação de novas perspectivas que façam da negociação coletiva um direito real e efetivo
para o conjunto dos funcionários da Administração Pública.
O estudo realizado indica que, no Estado Democrático de Direito, a
contratualidade corresponde à teoria mais adequada às soluções consensuais e que conferem
especial abertura ao desenvolvimento da negociação coletiva na função pública. A tese
contratualista não só enseja a aceitação radical dos direitos coletivos, como favorece o
reconhecimento dos interesses coletivos dos funcionários, não se satisfazendo com a simples
participação em processos meramente consultivos, exigindo um plus, o consenso, o acordo,
transformando-se em vinculante a participação dos funcionários na definição das normas que
regulam o regime jurídico-administrativo. Longe de contentar-se com a negociação apenas
consultiva, que garante a participação, sem assegurar o acordo, ficando a decisão final sempre
dependente do Estado, importa reconhecer que um modelo de função pública contratual,
consensual, democrático, exige a negociação real e efetiva, cujo resultado deve comportar
eficácia jurídica vinculante.
A previsão, nos sistemas democráticos contemporâneos, da
sindicalização dos funcionários públicos importa uma transformação paradigmática na forma
de organização administrativa e nas relações que se estabelecem entre a coletividade dos
241
trabalhadores públicos e o Estado, implicando a própria modificação do regime jurídico de
função pública. Verifica-se, hodiernamente, uma tendência à aproximação entre os regimes
público e privado de trabalho, sendo possível afirmar que o termo “estatutário” não significa
necessariamente disponibilidade unilateral, pelo Estado, acerca das relações jurídicas. Não se
nega a complexidade desse processo em direção à negociação coletiva, na medida em que,
conquanto esteja garantida a autonomia coletiva dos funcionários, os textos constitucionais de
um modo geral mantêm um conteúdo essencial para a função pública, tudo isso a exigir “[...]
la compatibilidad y convivência com el régimen estatutario funcionarial de origen legal y
reglamentario que la Constitucione impone, con la libertad sindical y la autonomia colectiva
de los funcionarios que la Constitución, al miesmo tiempo, les reconoce”.269
Os direitos coletivos dos trabalhadores sempre foram concebidos na
perspectiva do Estado moderno, vinculados e dotados de eficácia no âmbito de cada
ordenamento jurídico. No entanto, esse cenário mudou substancialmente e na
contemporaneidade não é possível conceber o reconhecimento e a atuação sindical nos limites
estreitos do Estado nacional. Em consequência, intensa atividade normativa no plano
internacional foi realizada no sentido de promover e fortalecer a liberdade sindical e a
negociação coletiva, entendida esta, assim como seu fruto, o instrumento normativo, como
meios essenciais para promoção dos interesses dos trabalhadores privados e públicos, que os
Estados devem não apenas respeitar, abstendo-se de ingerências ou interferências, mas
proteger e promover, daí a existência para os Estados de uma obrigação positiva de facilitar o
exercício dos direitos coletivos. Nos instrumentos internacionais não há tratamento
substancialmente distinto em relação ao exercício do direito de sindicalização e negociação
coletiva entre trabalhadores públicos e privados, conquanto se reconheça neles a possibilidade
de o exercício sujeitar-se a peculiaridades, que deverão ser interpretadas em sentido restritivo,
como simples “modalización o modulación de la libertad sindical”. 270
Análise comparativa indica a diversidade de modelos entre Brasil e
Espanha. Conquanto o legado histórico e as bases constitucionais sejam semelhantes, as
269
RODRÍGUEZ-PIÑERO; BRAVO FERRER. Ley y negociación colectiva en la función pública, en Relaciones Laborales, núm. 14, 1997.
270 VALDES DAL-RÉ. Los derechos de negociación colectiva y de huelga de los funcionarios públicos en el ordenamiento jurídico español: una aproximación, en REDT , núm. 86, 1997, p. 841.
242
experiências recentes indicam trajetórias diversas. O Brasil e a Espanha demoraram a
reconhecer o direito de sindicalização aos funcionários públicos, somente o fazendo com as
Constituições de 1988 e 1978, respectivamente. Em relação à negociação coletiva, ambos os
textos constitucionais mantiveram-se silentes, ensejando inicialmente a formatação de um
modelo muito semelhante entre os dois países. Na Espanha, decisão paradigmática proferida
em 1982 negou o direito de negociação coletiva aos funcionários públicos (STC 57/1982), o
que viria a ocorrer igualmente no Brasil em 1992 (ADIn 492-DF). No entanto, a partir da
adoção de uma legislação promocional da negociação coletiva (Leis nº 11/1985, 9/1987,
7/1990 e 7/2007) e do reconhecimento pela jurisprudência de que a negociação coletiva dos
funcionários integra o conteúdo da liberdade sindical, o modelo espanhol assume uma
trajetória diferente daquela praticada no Brasil, de modo a consolidar um processo de
democratização das relações coletivas de trabalho, resultando daí que o funcionalismo público
espanhol participa ativamente na determinação de suas condições de trabalho.
O estudo do modelo predominante no Brasil revela que prevalece
ainda uma interpretação pelos tribunais e uma prática administrativa calcada em paradigmas
já superados, contrariando o próprio modelo democrático que a Constituição de 1988
pretendeu implantar, ao assegurar aos funcionários públicos os direitos de sindicalização e
greve, reportando, inclusive, aos acordos e convenções coletivas como instrumentos
adequados para a solução de conflitos coletivos de interesses na função pública. No Brasil o
tema não se encontra suficientemente equacionado, havendo vias negociais puramente
informais, com prevalência da unilateralidade, revelando profundo descompasso com outras
experiências jurídicas que já consolidaram a negociação coletiva como caminho necessário
para a superação dos conflitos coletivos de trabalho no contexto de uma sociedade plural,
democrática e participativa. Nesse sentido, impõe-se a adoção de uma legislação promocional
da negociação coletiva, servindo a experiência espanhola como modelo pedagógico a ser
considerado no momento da regulamentação.
De outro modo, o estudo do sistema espanhol demonstra que esse
país, diferentemente do que vem ocorrendo no Brasil, já superou os entraves comumente
colocados como impeditivos da negociação coletiva, seja em relação às questões
orçamentárias, seja em razão da sujeição da Administração Pública ao princípio da legalidade.
No tocante ao primeiro aspecto, sua superação deu-se com a obrigação de o governo, nos
243
diversos níveis, apresentar a proposta de lei orçamentária já com a reserva de verbas
destinadas ao cumprimento daquilo foi acordo por meio da negociação coletiva. Em relação à
incidência do princípio da legalidade, a superação operou-se com a previsão expressa das
normas excluídas e incluídas na negociação. Quanto a estas, tratando-se de matérias de maior
complexidade, geralmente aquelas reservadas à lei específica, as mesmas serão objeto da
negociação e, uma vez obtido o consenso, o ajuste coletivo, cuja validade e eficácia dependem
da aprovação final do órgão destinatário das matérias acordadas. O produto da negociação
tem eficácia jurídica em relação à Administração Pública, que deve encaminhar a proposta de
lei observando rigorosamente aquilo que foi ajustado, embora o Parlamento, em face de sua
supremacia, detenha liberdade para deliberar.
A interpretação sistemática dos modelos constitucionais brasileiro e
espanhol, que nesse aspecto se aproximam substancialmente, especialmente pela consagração
do Estado Democrático de Direito e o reconhecimento dos direitos coletivos dos funcionários,
assim como de outros princípios e valores constitucionais, implica a aceitação de que no novo
desenho constitucional há uma clara aproximação entre os regimes dos funcionários públicos
e dos trabalhadores privados, com uma interdependência e influência recíproca entre
categorias jurídicas típicas de um e de outro regime, levando à “privatización de la relación de
empleo público”, uma decorrência da “penetración del Derecho del Trabajo en la Función
Pública”.271 Por conta disso, e apesar do tímido avanço já alcançado tanto no Brasil, por meio
do julgamento dos MI nº 708/DF e nº 712/PA, como na Espanha, através das SSTC 80/2000,
224/2000 e 85/2001, deve a jurisprudência dos tribunais dos dois países ir além, passando a
compreender que a negociação coletiva na função pública faz parte do conteúdo essencial da
liberdade sindical dos funcionários públicos, que deriva de forma direta e imediata do artigo
37, § 5º, CF, e do artigo 28.1 CE, com todas as consequências políticas, jurídicas, econômicas
e sociais daí decorrentes.
Dessa conclusão resulta que a negociação coletiva possui uma
dimensão constitucional, daí por que não está sujeita à livre disponibilidade do legislador. Isso
não sugere dotá-la de supremacia sobre a lei ou de configurá-la como direito absoluto que não
possa sofrer modulações. No entanto, as limitações ou restrições ao direito de negociação
271 BAYLOS GRAU. Derecho de huelga y servicios esenciales, 1987, p. 38.
244
coletiva devem ser adequadas, necessárias e proporcionais. Na colisão entre interesses
públicos e negociação coletiva, impõe-se sua discussão por meio do próprio procedimento de
negociação coletiva, de modo que os sujeitos coletivos possam amplamente debater e
solucionar a colisão dos interesses, buscando assim conservar o conteúdo essencial tanto dos
interesses públicos como o da negociação coletiva, preservando, na medida do possível, o
coração da negociação coletiva, representado pela eficácia jurídica dos seus instrumentos.
Apreciando o papel dos tribunais no Brasil e na Espanha na
concretização dos direitos coletivos dos funcionários, observa-se que a via jurisdicional está
muito longe de corresponder às imensas aspirações de exercício adequado e eficiente de
controle dos demais poderes e de realização dos direitos. Nesse sentido, embora seja essencial
o labor dos atores institucionais, como o legislador, a Administração e os tribunais, impõe-se
reconhecer que o aparato constitucional e legal resulta incompleto, irreal e ineficiente sem a
existência e permanente promoção de múltiplos espaços em condições de garantir socialmente
a eficácia das normas consagradoras de direitos. Por isso mesmo, a concretização do direito
de negociação coletiva dos funcionários públicos passa pela atuação de uma pluralidade de
atores sociais na formulação e ativação das garantias institucionais (legais, administrativas e
jurisdicionais), mas também por meio da autotutela, sobretudo através da greve, valioso
instrumento à disposição dos trabalhadores por meio do qual podem participar e pressionar no
sentido de buscar a concretização dos direitos fundamentais e princípios democráticos, na
convicção de que “la construción de un Estado social constitucional ha de verse también
como un proceso abierto, inacabado, cuya interpretación y desarollo incumbe no solo a los
operadores jurídicos formalmente autorizados sino también a los propios ciudadanos”.272
272 PISARELLO. El Estado Social como Estado Constitucional: mejores garantías, más democracia, en
Abramovich, V. Añón, JM., y Courtis, Ch., Derechos Sociales, instrucciones de uso, 2003, p. 48.
245
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