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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS LÚCIO HANAI VALERIANO VIANA OS MEGAEVENTOS NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO: ANÁLISE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (BRASIL) DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2018

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO …ºcio... · 2018. 6. 19. · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo programa de estudos pÓs-graduados em ciÊncias sociais

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS

    LÚCIO HANAI VALERIANO VIANA

    OS MEGAEVENTOS NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO:

    ANÁLISE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (BRASIL)

    DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

    SÃO PAULO

    2018

  • LÚCIO HANAI VALERIANO VIANA

    OS MEGAEVENTOS NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO:

    ANÁLISE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (BRASIL)

    DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

    SÃO PAULO

    2018

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

    Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais em

    cumprimento parcial dos requisitos para a obtenção

    do título de Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia

    Universidade Católica de São Paulo.

    Orientadora: Profa. Dra. Lucia Maria Machado Bógus

  • SÃO PAULO

    2018

  • “No fundo de nossa intranquilidade presente encontramos

    esta verdade simples: sabemos onde estão os erros de

    nosso desenvolvimento desordenado, sabemos que está a

    nosso alcance poder erradicá-los ou minorá-los, e temos

    consciência disso. Não é por outra razão que nos sentimos

    responsáveis e intranquilos.”

    Celso Furtado (A pré-revolução brasileira)

    Aos meus pais, Fernando e Tomoe, por terem

    orientado os meus passos.

    Aos meus irmãos e familiares, cujo incentivo

    e apoio sempre me foram certos.

    A Karine, minha esposa e companheira de

    todas as horas.

  • Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ) pela concessão da

    Bolsa de Estudo Integral (140058/2014-1) que permitiu a realização

    dessa pesquisa.

    Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ) pela concessão da Bolsa

    Taxa no ano de 2017 (88887.152228/2017-00).

    Ao Programa Erasmus Mundus (SMART² Project

    SmartCities & SmartGrids for Sustainable Development) pela Bolsa de

    Doutorado Sanduíche realizado em Lisboa - Portugal (Outubro de 2016 a

    Outubro de 2017).

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço em especial a minha querida orientadora Lucia Bógus pelas

    orientações, acolhimento e incentivo ao longo de cinco longos anos. Sem o

    seu integral apoio, este trabalho não se realizaria.

    Remerceio o meu amigo e professor Francisco Fonseca. Mais do que uma

    referência, um exemplo de competência e ética compromissada.

    Às professoras Angélica Alvim e Mônica de Carvalho sou grato pelas

    orientações prestadas em momentos cruciais deste trabalho. Meu especial e

    carinhoso agradecimento.

    Agradeço ao Professor José Geraldo a oportunidade do meu primeiro estágio

    durante o curso de Ciências Sociais na empresa Diagonal Urbana. Talvez ali

    tenha me despertado a sensibilidade para as questões sociais que hoje

    tornam-se objeto de estudo desta tese.

    A Cristina Lopez Villanueva um especial obrigado pela atenção e acolhimento

    no período enriquecedor na Universidade de Barcelona. Os valiosos

    conhecimento e contatos transmitidos foram fundamentais para a elaboração

    deste trabalho.

    Ao Professor Fernando Nunes da Silva pelo profícuo período no Instituto

    Superior Técnico de Lisboa e a sua inestimável secretária Rosa Nunes,

    sempre disposta a ajudar.

    Às professoras Marisa Borin e Suzana Pasternak por aceitarem, como

    suplentes, fazer parte de minha Banca Examinadora e por terem feito parte

    de minha trajetória. À Maria Amélia Corá pela disposição e pelo incentivo

    ates mesmo do início dessa jornada.

    Sou grato a todos os profissionais que me dedicaram tempo e atenção em

    longas entrevistas que por vezes se confundiram com prazerosas conversas:

    Jordi Borja (Arquiteto e urbanista – idealizador das Reformas Urbanas para

    os Jogos Olímpicos de Barcelona 1992); Marc Pradel Miquel (Professor do

    Departamento de Sociologia da Universidade de Barcelona); Xavier Roig

    (CEO e Consultor Jogos Olímpicos de Barcelona e Rio de Janeiro); Luís

    Vassalo Rosa (Arquiteto e urbanista - diretor dos serviços de planejamento e

    gestão urbanística da Expo'98 - Lisboa); Jorge Gonçalves (Coordenador e

  • professor do Mestrado em urbanismo e ordenamento do território do Instituto

    Superior Técnico de Lisboa) e Cerianne Robertson (Coordenadora de

    pesquisa e editora do RioOnWatch).

    Agradecimento mais do que especial à Katia Cristina da Silva e Rafael Diego

    Garcia, secretários do Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP. Mais

    do que funcionários, são pessoas que fazem a diferença no, por vezes

    pesado, cotidiano acadêmico.

    Sou grato a Ágata Nicolau e Ana Barbosa (secretárias do Programa Erasmus

    no Instituto Superior Técnico de Lisboa) pelo carinho e atenção dispensados

    ao longo de um ano.

    A todos os Professores do Programa de Ciências Sociais da PUC-SP, em

    especial ao Prof. Luiz Eduardo W. Wanderley, a Profa. Maura Pardini Bicudo

    Véras, a Profa. Vera Chaia e ao Prof. Rafael Araújo, por compartilharem os

    seus valiosos conhecimentos dentro e fora de sala de aula.

    Sou grato a todos os meu amigos e colegas da pós-graduação, em especial

    ao Edney Mota Almeida pela amizade fraterna ao longo de cinco anos; aos

    meus amigos Moisés de Freitas Cunha, Steve Batista Ramos, Natureza

    Vieira, Suellen Costa, Paula Calca, Roberta Abalen Dias, Rogério Tineu,

    Thaís Novais de Curtis, Janaina Dourado, Merilyn Escobar, Karen Marcelja e

    Lineu Francisco de Oliveira. Agradeço, em especial, a Elis e Silva de Lima

    pelos enriquecedores diálogos sobre temas tão importantes que por vezes

    nos escapam ao olhar.

    Aos meus irmãos Patrícia e Lívio por serem os meus exemplos ao longo da

    vida. Ao Srs. Hermínio Monteiro e Jason Gomes de Abreu (in memoriam)

    pelo carinho de sempre. A Fernanda Batista que ao longo dessa jornada nos

    presenteou com o nosso querido e amado Arthurzinho.

    Aos amigos Júlio e Sueli Kaplar pela amizade pacienciosa. Ao Fábio Lobão e

    Demilson Silva por toda a compreensão nos momentos de ausência.

    Por fim, agradeço o apoio e compreensão de todos os amigos e familiares,

    em especial ao Srs. Airton e Célia Rodrigues da Luz pelo incentivo, atenção e

    carinho no acompanhamento de minha trajetória.

  • Resumo

    Este trabalho analisa os efeitos sociais e econômicos em cidades que

    promoveram profundas reformas urbanas para sediar megaeventos de

    reconhecimento global, especialmente a cidade do Rio de Janeiro (Brasil).

    Para tanto, optou-se pela realização de entrevistas em profundidade com

    técnicos e especialistas envolvidos direta e indiretamente nas transformações

    urbanas ocorridas nas cidades de Barcelona (Espanha) por ter sediado os

    Jogos Olímpicos de 1992; na cidade de Lisboa, em função da Exposição

    Mundial de 1998 (Expo’98) e na cidade do Rio de Janeiro em virtude de sua

    experiência recente na realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Analisou-se

    a cidade do Rio de Janeiro, objeto desse estudo, notadamente quanto a sua

    agenda política, aqui considerada fundamental para o entendimento dos

    propósitos a serem alcançados pelas reformas urbanas demandadas pela

    realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Buscando responder aos objetivos

    de analisar o teor político e ideológico que circundam os megaeventos, esta

    pesquisa concentra sua análise nas relações de poder e interesses que

    circunstanciaram a candidatura e eleição da cidade carioca. Na mesma

    perspectiva, com vistas a identificar a influência do Comitê Olímpico

    Internacional (COI) na gestão de políticas urbanas associadas aos

    megaeventos, optou-se por analisar fontes documentais (Report of the 2016

    IOC Evaluation Commission, e Olympic Charter) com o intuito de averiguar a

    qualidade de suas demandas, contrapartidas e recomendações. Por se tratar

    de um tema multidisciplinar, o referencial teórico perpassa por diversas áreas

    do conhecimento. As abordagens teóricas concentram-se no campo da

    sociologia urbana, das políticas públicas. Constatou-se, do ponto de vista da

    administração pública, elevado interesse pela valorização imobiliária como

    forma de reaver as inversões empenhadas para a realização dos

    megaeventos. Esse tipo de gestão demonstrou a tendência à concentração

    espacial da renda fazendo agravar as desigualdades sociais na cidade.

    Percebeu-se forte influência de modelos urbanísticos forâneos, notadamente

    o Modelo de Barcelona, caracterizado pela apropriação de mais-valia

    fundiária e por transformar espaços públicos de uso misto em áreas restritas

    às classes sociais mais abastadas. Verificou-se que as estratégias para a

    realização de megaeventos obedecem a uma dinâmica padrão que

    condiciona o desenho das políticas públicas de intervenção urbana à lógica

    do “custo-benefício” (considerando apenas os aspectos quantitativamente

    mensuráveis) em detrimento dos interesses sociais. Revelou-se que as

    estratégias de realização de megaeventos são marcadamente voltadas aos

    interesses do mercado imobiliário e se apoiam em práticas gerenciais

    amplamente representadas pelo ideário neoliberal.

    Palavras Chave: Megaeventos; Jogos Olímpicos; políticas públicas urbanas;

    gestão pública.

  • Mega events in urban space production:

    analysis of the City of Rio de Janeiro (Brazil)

    Abstract

    This work analyzes the social and economic effects in cities that promoted

    deep urban changes to host mega events of global acknowledgement,

    especially in the City of Rio de Janeiro (Brazil). For this, the option was to

    conduct in-depth interviews with the technicians and experts directly and

    indirectly involved in the urban transformations which occurred in Barcelona

    (Spain) for having hosted the 1992 Olympic Games; in Lisbon, for the 1998

    Lisbon World Exposition (Expo’98) and in Rio de Janeiro due to its recent

    experience in hosting the 2016 Olympic Games. The City of Rio de Janeiro,

    object of this study, was analyzed notedly regarding its political agenda, here

    considered essential for understanding the goals to be attained by the urban

    changes demanded for hosting the 2016 Olympic Games. Seeking to meet

    the aims of analyzing the political and ideological contents surrounding the

    mega events, this research focuses on the analysis of the relations of the

    power and interests circumscribing the application and election of the city. In

    the same perspective, aiming to identify the influence of the IOC in the

    management of urban public policies associated to mega events, the option

    was to analyze documentary sources (Report of the 2016 IOC, Olympic

    Charter) aiming to investigate the quality of its demands, counterparts and

    recommendations. For being a multidisciplinary theme, the theoretical

    framework permeates different knowledge areas. The theoretical approaches

    are concentrated on the urban sociology field, on public policies and on the

    neoclassical economics theory. From the public administration viewpoint, a

    great interest for real estate valorization could be verified as a way of

    regaining the investments made for carrying out mega events. This kind of

    management demonstrated the trend of spatial concentration of income,

    causing an aggravation in the city social inequalities. A strong influence of

    foreign urban models was observed, notedly from the Barcelona Model,

    characterized by the appropriation of capital gains on land and for

    transforming mixed-use public spaces into areas restricted to the wealthier

    social classes. The strategies for promoting mega events were verified to

    follow a standard dynamic which conditions the design of public policies of

    urban intervention to the “cost-benefit” logic (solely considering the

    quantitatively measurable aspects) to the detriment of social interests. The

    strategies for carrying out mega events were revealed to be markedly turned

    to the interests of the real estate market supported on managerial practices

    widely represented by neoliberalism.

    Keywords: Mega events; Olympic Games; urban public policies; public

    management.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 – Esquematização - fluxos múltiplos de John Kingdon...................66

    Figura 2 – Avenida Diagonal – Barcelona (Espanha) ...................................81

    Figura 3 – Manifestação contra o turismo na cidade de Barcelona...............83

    Figura 4 – Zona Oriental da cidade de Lisboa (Antes da construção do

    Parque Expo’98) ...........................................................................................93

    Figura 5 – Porto Maravilha: antes e depois de revitalizado.........................129

    Figura 6 – Porto Maravilha: reconfiguração das áreas após a intervenção

    urbana para a realização dos J.O. 2016.......................................................131

  • LISTA DE MAPAS

    Mapa 1 – Avenida Diagonal – Barcelona (Espanha) ....................................80

    Mapa 2 – Principais edifícios da Expo’98 – Parque das Nações Lisboa

    (Portugal) ......................................................................................................96

    Mapa 3 – Porto Maravilha – situação fundiária............................................130

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 – Melhores Práticas versus Inovação...........................................74

    Quadro 2 – Chegadas turísticas em Barcelona (1991 – 2004).....................85

    Quadro 3 – Arranjo institucional-financeiro - Projeto Porto Maravilha.........134

  • LISTA DE GRÁFICOS

    Gráfico 1 – Participação dos setores da economia no

    emprego.........................................................................................................47

    Gráfico 2 – Realização dos Jogos Olímpicos por região do planeta entre o

    período de 1896 a 2028................................................................................103

    Gráfico 3 – Realização dos Jogos Olímpicos de Inverno por região do

    planeta entre o período de 1924 a 2022.......................................................104

    Gráfico 4 – Realização Copa do Mundo FIFA por região do planeta entre o

    período de 1930 a 2022................................................................................105

    Gráfico 5 – Orçamento total dos J.O. no R.J. por finalidade (em bilhões

    R$)................................................................................................................109

    Gráfico 6 – Orçamento previsto para a realização dos Jogos Olímpicos 2016

    nas cidades candidatas................................................................................123

    Gráfico 7 – Preço médio anunciado por cidade - venda (R$/ m²) em

    Dezembro/2016............................................................................................139

    Gráfico 8 – Evolução do preço médio anunciado no Rio de Janeiro - Venda

    (R$/ m²) 2011 - 2016.....................................................................................140

  • LISTA DE SIGLAS

    AID - Associação Internacional de Desenvolvimento

    ANCOP - Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa

    APO - Autoridade Pública Olímpica

    BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

    BIRD - Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

    BRIC’s - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (South Africa)

    CCJ - Comissão de Coordenação dos Jogos

    CCQ - Círculos de Controle da Qualidade

    CDURP - Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária

    CEF – Caixa Econômica Federal

    CLT - Consolidação das Leis do Trabalho

    COJO - Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos

    COI - Comitê Olímpico Internacional

    CON - Comitês Olímpicos Nacionais

    CO-RIO - Comitê Organizador dos Jogos Pan-Americano do Rio de Janeiro

    CEPAC – Certificado de Potencial Adicional de Construção

    IFC – Corporação Financeira Internacional

    Eco-92 - Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o

    Desenvolvimento

    EOM - Empresa Olímpica Municipal

    EUA - Estados Unidos da América

    Expo’98 - Exposição Mundial de 1998

    FIFA - Federação Internacional de Futebol

    FIPE – Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas

    FMI – Fundo Monetário Internacional

    GBM - Grupo Banco Mundial

    GM - Guerra Mundial

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

    IFs -International Sports Federations

    IOC – International Olympic Committee

    J.O. - Jogos Olímpicos

    LGC - Lei Geral da Copa

  • MARE - Ministério da Reforma do Estado

    NGA - National Governors Association

    NOCs - National Olympic Committees

    ODEPA - Organização Desportiva Pan-Americana

    OCOG - Organising Committees for the Olympic Games

    OGKM - Olympic Games Knowledge Management

    PD’s - Planos Diretores

    PDM - Plano Diretor Municipal

    PEM - Plano Estratégico Municipal

    PIB - Produto Interno Bruto

    PP’s - Planos Plurianuais

    PPPs - Parcerias Público-Privadas

    PAN 2007 - Jogo Pan-Americanos de 2007

    R.J. - Rio de Janeiro

    TOK - Transfer of Olympic Knowledge

    UPP – Unidade de Polícia Pacificadora

    ZAP – Zona de Adensamento Preferencial

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO....................................................................... 17

    Objetivo.................................................................................. 30

    Objetivos específicos............................................................. 30

    Informações metodológicas................................................... 30

    CAPÍTULO I........................................................................... 36

    1 ASPECTOS DO URBANISMO BRASILEIRO...................... 37

    1.1 Práxis da gestão pública urbana............................................ 37

    1.2 A cidade global e o modelo de acumulação flexível.............. 44

    CAPÍTULO II.......................................................................... 53

    2 POLÍTICAS PÚBLICAS E A CIDADE................................... 54

    2.1 O engodo das soluções modelares....................................... 54

    2.2 Difusão de políticas públicas e agenda política..................... 56

    2.3 Melhores práticas e inovação................................................ 69

    2.4 O Modelo de Barcelona......................................................... 76

    2.5 Lisboa: a experiência da Expo'98.......................................... 92

    CAPÍTULO III......................................................................... 101

    3 MEGAEVENTOS................................................................... 102

    3.1 Considerações iniciais........................................................... 102

    3.2 Políticas públicas de intervenção urbana.............................. 108

    3.3 O mercado imobiliário............................................................ 113

    3.4 A trajetória da cidade do Rio de Janeiro................................ 119

    3.5 Rio de Janeiro: o caso do Porto Maravilha............................ 128

    3.6 Análise dos documentos do COI........................................... 141

    3.6.1 Cata Olímpica (Olympic Charter)........................................... 142

    3.6.2 Relatório da Comissão de Avaliação do COI de 2016 (Report of the 2016 IOC Evaluation Commission)................. 145

    4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................. 149

    5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................... 155

    6 DOCUMENTOS CONSULTADOS........................................ 168

    7 SITES CONSULTADOS........................................................ 170

    8 ANEXO.................................................................................. 174

  • 16

    INTRODUÇÃO

    Este trabalho analisa os efeitos sociais, econômicos da realização dos

    Jogos Olímpicos realizados na cidade do Rio de Janeiro. Para isso, levou-se

    em consideração a experiência de algumas cidades que promoveram

    profundas reformas urbanas para sediar megaeventos de reconhecimento

    global, notadamente a cidade de Barcelona (Espanha). Os eventos de grande

    porte são conhecidos por renovar e reestruturar as cidades por onde passam.

    Esse movimento ganhou notoriedade a partir da década de 1960 com a

    ascensão de políticas urbanas neoliberais 1 nos países de capitalismo

    avançado. Nesse período desenvolveram-se conceitos relacionados ao

    “empreendedorismo urbano” associados a novas práticas de gestão de

    cidades (HARVEY, 1996).

    A realização de megaeventos prevê, entre outras coisas, a

    revitalização de áreas urbanas degradadas em regiões consideradas com

    potencial econômico a ser desenvolvido. Essa estratégia de intervenção

    consiste em transformar espaços públicos e privados para que se tornem

    atraentes ao capital financeiro, notadamente a especulação imobiliária. Para

    tanto, novas práticas de gestão foram criadas, Parcerias Público-Privadas

    (PPPs) ganharam força, e conceitos trazidos da administração de empresas

    passaram a ser incorporados na administração pública (HENRY, 1975). O

    surgimento dessa nova dinâmica se baseia na promoção e financiamento de

    novos modelos de negócios envolvendo, sobretudo, empresas do setor

    privado e esferas subnacionais de governo.

    O planejamento estratégico que se seguiu após o período militar no

    Brasil sofre fortes influências do cenário internacional em que prevalecia o

    Consenso de Washington2 como receituário para toda e qualquer estratégia

    1O significado do conceito de neoliberalismo, amplamente utilizado na literatura que analisa

    as doutrinas político-econômicas, está associado à crença de que as forças que operam nas mais diversas relações econômicas são capazes de autorregulação. O prefixo “neo” (novo) costuma distinguir o novo liberalismo por acreditar na importância do Estado como agente garantidor da livre-concorrência. Na atualidade, o termo costuma ser utilizado para indicar a livre atuação das forças do mercado, a abertura econômica e privatizações de empresas e serviços públicos (ver mais em: SANDRONI, 2008). Está pesquisa irá analisar a utilização do termo, bem como as suas práticas, nos capítulos que se sucedem. 2Segundo Couto (2002) o Consenso de Washington pode ser assim definido: um conjunto de

    preceitos a serem seguidos pelos países em desenvolvimento para realizar as suas reformas

  • 17

    de desenvolvimento. Seus efeitos são amplamente conhecidos na

    América Latina, especialmente pela austeridade fiscal, contenção de gastos

    públicos, privatizações, abertura e financeirização econômica, entre outros

    aspectos (BATISTA, 1994).

    Surge nesse contexto o conceito de “máquina urbana”, cuja finalidade

    volta-se sobremaneira ao atendimento de interesses dos grandes grupos

    econômicos, que visam transformar a cidade em uma arena comercial em

    busca de lucros (VAINER, 2000). Essa prática, pautada na teoria do

    desenvolvimento 3 , impõe a dinâmica do capital à administração pública

    fazendo dos instrumentos de gestão, ferramentas de ação a serviço dos

    grandes investidores. Maricato (2013), ressalta a apropriação do Plano

    Estratégico Municipal (PEM)4 de cidades sendo utilizado como dispositivo de

    desregulamentação cuja finalidade associa-se diretamente aos interesses

    privados, notadamente as grandes empresas do mercado imobiliário. Essa

    forma de gestão impinge às cidades um modelo de concorrência mútuo que

    contribui para agravar a segregação espacial já conhecida nas metrópoles

    brasileiras.

    Fruto desse contexto, a década de 1990 é marcada pela consolidação

    do ideário neoliberal nas políticas públicas brasileiras. Trata-se, em larga

    medida, da implementação estrutural e sistemática de uma forma de gestão

    cuja racionalidade dissocia o caráter social das relações econômicas. Essa

    lógica, que se estende aos dias atuais, tende a conceber o desenvolvimento

    econômicas. São diretrizes de referencial neoliberal. A ênfase é na economia de mercado. Essência: abertura econômica, desregulamentação, rígido controle da inflação e do déficit público, redução do tamanho e do papel do Estado, privatizações (Couto, 2002, p. 73).

    3A teoria do desenvolvimento está fortemente orientada na crença de que o aumento do nível

    de atividade econômica gera, por si mesmo, desenvolvimento social. Schumpeter já havia destacado o limite dessa concepção teórica ao afirmar que “Nem o mero crescimento da economia, representado pelo aumento da população e da riqueza, será́ designado aqui como um processo do desenvolvimento” (SCHUMPETER, 1978, p.63). A distinção entre crescimento econômico e desenvolvimento será retomada neste trabalho para fim de análise do cenário brasileiro a partir do pensamento de Celso Furtado.

    4Vale ressaltar que o PEM integra e concilia o Plano Diretor Municipal (PDM) e o Plano

    Plurianual Municipal (PPM) às políticas públicas. Constitui portanto um importante instrumento de gestão capaz de articular estratégias e ações entre a sociedade civil e as esferas de governo: federal, estadual e municipal.

  • 18

    social como resultado espontâneo do crescimento econômico. Contudo, a

    figuração do país entre as dez primeiras economias mundiais comprovou o

    distanciamento existente entre crescimento e desenvolvimento. Talvez a

    expressão mais nítida dessa incongruência esteja na disparidade social

    existentes nos grandes centros urbanos brasileiros.

    Apesar da criação de muitos instrumentos de gestão democrática,

    caso dos Planos Plurianuais (PP’s), Planos Diretores (PD’s), oriundo do

    Estatuto das Cidades, entre outros, o direito urbanístico que visa o interesse

    social é relegado a segundo plano. A busca por regularização do uso do

    espaço urbano em benefício da coletividade, parece perder fôlego diante de

    interesses estritamente econômicos. O poder público, em todos os seus

    níveis de governo, associado aos interesses do capital especulativo e à

    ideologia (neo)liberal, expõe o ordenamento urbano a toda sorte de

    possibilidades.

    Esse quadro amplamente complexo constitui a práxis urbana de

    muitas metrópoles brasileiras. Essa situação torna-se ainda mais intrincada

    ao se analisar o contexto em que se sucedeu a realização dos megaeventos

    esportivos no Brasil. Sobretudo ao se constatar a ascensão de um modelo de

    bem-estar social implementado pelo nível federal de governo a partir da

    primeira década do século XXI.

    Paradoxalmente ao que vem ocorrendo nas grandes metrópoles, o

    fortalecimento de políticas redistributivas, programas habitacionais para

    população de baixa renda, expansão do sistema público de saúde, entre

    outras políticas, demonstra certo dualismo do papel desempenhado pelo

    poder público em suas diferentes esferas de governo. A conquista de certa

    autonomia dos níveis subnacionais de governo, tendência à descentralização

    de políticas públicas iniciadas no período pós Constituição de 1988, tornou

    mais complexa as análises generalistas referentes à gestão pública bem

    como os resultados por ela alcançados (FARAH, 2006).

    Na conjuntura em que se sucedeu a realização dos megaeventos no

    Brasil foi possível observar a proeminência de políticas progressistas,

    idealizadas notadamente no nível federal, sendo implementadas

    paulatinamente pelas esferas subnacionais de governo. Em contraste,

    verificava-se na gestão local, sobretudo nas grandes metrópoles, conflitos

  • 19

    sociais claramente ligados à exclusão social. As desapropriações residenciais

    de inúmeras famílias, bem como a perseguição ao trabalho informal ganham

    notoriedade com a reestruturação urbana requerida pela realização de

    megaeventos no país.

    O conflito de interesses entre a esfera federal e os níveis

    subnacionais, especificamente quanto a análise dos megaeventos, revela em

    larga medida a luta de classes que se expressa no incentivo de práticas de

    livre-mercado em contraposição às políticas de bem-estar social. Essa

    realidade é referendada por muitos autores como uma relação de

    complementariedade entre Estado e mercado e que vem sendo denominada

    por “Keynesianismo neoliberal”5

    No âmbito nacional, são implementadas políticas neokeynesianas, que reconstroem as condições da circulação do capital e da força de trabalho, ao mesmo tempo, em que subordinam as decisões em torno da utilização dos recursos do fundo público à lógica do mercado e aos interesses dos grandes empresários. Além disso, são adotadas políticas de ativação da demanda efetiva, via a criação e a expansão do crédito ao consumidor, transferência de renda, aumento real do salário-mínimo, etc., expressando políticas redistributivas que incidem sobre as condições de reprodução social. No âmbito local é onde as políticas neoliberais parecem emergir com toda força, resultando no padrão aqui identificado como keynesianismo neoliberal (RIBEIRO; SANTOS JUNIOR, 2013, p.28).

    Nesse sentido, a realização dos megaeventos parece exprimir uma

    coalizão de interesses distintos estruturada, notadamente a partir do primeiro

    decênio do presente século, pelo governo federal. No entanto, a gama de

    atores envolvidos na realização de eventos de grande porte, bem como suas

    demandas, acabam por resultar em um novo padrão institucional na esfera

    local. Omena (2015) destaca cinco dos nove arranjos institucionais com

    caráter deliberativo criados em função das Olimpíadas de 2016: Autoridade

    5 John Maynard Keynes é reconhecidamente um dos mais importantes economistas do

    século XX. Sua principal obra The General Theory of Employment, Interest and Money (A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda) teve repercussão prática ao analisar a Crise de 1929 em que a bolsa de valores norte-americana sofre forte depressão. A ideia diretora dessa obra corresponde à constatação de que o mercado, notadamente em sua prática liberal (livre), não é capaz de autorregular-se. Isto é, o mercado pode sobreviver com elevadas taxas de desemprego e ainda assim estar em equilíbrio. Dessa forma, Keynes constata que o desemprego é fruto da insuficiência de investimentos na economia, cabendo ao Estado induzir e promover os investimentos necessários. (Ver: KEYNES, J. M. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Editora Nova Cultural Ltda. São Paulo-SP: 1996).

  • 20

    Pública Olímpica (APO), Empresa Olímpica Municipal (EOM),Companhia de

    Desenvolvimento Urbano da Região Portuária (CDURP), Comissão de

    Coordenação dos Jogos (CCJ) e o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos

    (COJO). Os três primeiros arranjos são governamentais, contudo, nenhum

    deles possui participação direta da sociedade civil. Essa situação, reflexo da

    ideologia que permeia os eventos em tela, expõe institucional e socialmente,

    o caráter das intervenções urbanas quanto à realização de megaeventos.

    De forma geral, eventos dessa magnitude representam uma “janela de

    oportunidades” para a realização de mudanças estruturais nas cidades. Com

    o apoio do governo federal e da iniciativa privada a administração pública é

    impelida a acreditar que o sucesso de suas atribuições está associado ao

    atendimento das demandas solicitadas para a realização do evento. Isso

    ocorre em função das profundas reformas urbanas que acompanham

    acontecimentos desse porte. Contudo, não é recente a percepção de que o

    acolhimento das demandas exigidas por eventos de grande envergadura

    ocorram com valorização do ambiente de negócios empresariais em

    detrimento dos interesses sociais.

    O Rio de Janeiro, por exemplo, tornou-se um canteiro de obras para a

    preparação da Copa do Mundo da Federação Internacional de Futebol

    (FIFA)6 e para os Jogos Olímpicos (Rio 2016). No entanto, a forma e o

    conteúdo das intervenções urbanas vêm sendo amplamente questionados

    em função de estratégias socialmente excludentes adotadas pelas

    autoridades públicas em consenso com os dirigentes e instituições

    internacionais.

    Há mais de três decênios que as diretrizes e condicionalidades de

    organismos e instituições internacionais orientam a gestão pública, em seus

    diversos níveis, a posicionar as grandes metrópoles na direção do circuito

    6O sítio virtual da instituição utiliza a nomenclatura em francês: Fédération Internationale de Football Association (FIFA). Esta federação, fundada em no dia 21 e Maio de 1904 em Paris, atualmente com sede em Zurique na Suíça, dirige as associações de futebol, futsal e o futebol de praia. Vale destacar que a FIFA está filiada ao Comitê Olímpico Internacional (COI) e congrega 209 organizações esportivas nos mais diversos países.

  • 21

    dos fluxos internacionais, particularmente aqueles ligados aos setores mais

    dinâmicos da economia globalizada. O resultado dessa estratégia se

    expressa nas diversas formas de atrair investimentos e capitais por meio da

    exaltação do potencial econômico dos espaços locais. Para essa finalidade, a

    de tornar as cidades viáveis, vendáveis e seguras aos diversos tipos de

    investimentos e investidores, são empenhados vultosos volume de recursos

    públicos, ainda que negligenciando demandas reais e legítimas dos citadinos

    locais. Essa lógica costuma contribuir para o aprofundamento das

    desigualdades socioespaciais na medida em encarece sobremaneira o

    espaço urbano.

    A estandardização dos espaços como estratégia de atração de

    investimentos privados costuma ser utilizada também para a promoção de

    megaeventos. No Brasil, os megaeventos esportivos aconteceram de forma

    associada a projetos urbanos de grande monta, isto é, reformas urbanas

    vinculadas a projetos de reestruturação de cidades.

    A Copa do Mundo FIFA e os Jogos Olímpicos no Brasil, mais

    especificamente na cidade do Rio de Janeiro, bem como ocorreu em algumas

    outras nações, identificam-se por sua magnitude e por seu impacto no

    ambiente urbano. Essa percepção ganha nitidez ao se analisar o orçamento,

    público e privado, disponibilizado para a realização das obras. As

    transformações urbanas assumem diversas frentes. Os parques esportivos,

    necessários para a realização dos Jogos, representam apenas algo

    necessário para justificar toda a transformação socioespacial incitada pela

    realização dos megaeventos.

    Avalia-se que a articulação de atores e escalas em torno desses projetos tem exigido expressivo investimento simbólico, como instrumento político privilegiado na disputa pelos eventos na busca dos meios necessários à sua atualização e afirmação. Efetivamente, as coalizões de atores (governamentais, privados e de agências internacionais) vinculados, por exemplo, ao projeto olímpico percebem e se utilizam do megaevento, um espetáculo em escala mundial, para chamar para si a atenção internacional, redirecionar investimentos e amalgamar um novo projeto hegemônico (SANCHÉZ, 2010, P.16).

    Assim como destacado por Sanchéz, o campo simbólico combinado

    aos megaeventos propõe situar as cidades ao nível do mercado global, isto é,

    torná-las atraentes ao capital internacional, ao turismo, aos grandes eventos,

  • 22

    entre outros. Nesse sentido, a representação simbólica, somada ao jogo de

    interesses políticos e econômicos, parece autorizar todo o tipo arbitrariedade

    que foi possível perceber no contexto brasileiro. Vainer (2014) destaca as

    diversas rupturas para a realização dos Jogos Olímpicos (J.O.) na cidade do

    Rio de Janeiro: institucional, legal, urbanístico, ambiental, social, entre outras.

    Nesse sentido, a coalizão de poder engendrada pelos megaeventos tende,

    portanto, à elitização de áreas “beneficiadas” pela dinâmica das reformas

    urbanas. Esse processo, no mais das vezes, se traduz em gentrificação.

    Esse fenômeno costuma expressar transformações sociais, econômicas e

    espaciais que transcendem a substituição do perfil populacional provocada

    pelas forças do capital nos espaços físicos da cidade.

    Dessa forma, o conceito de gentrificação, combinado às relações entre

    capitalismo e espaço urbano, implicam forte impacto nas dinâmicas

    territoriais e populacionais da cidade. Sabe-se que as grandes metrópoles

    brasileiras tendem a caminhar de forma concomitante à dinâmica capitalista e

    que os Jogos Olímpicos emprestam a ideia de legado urbano às cidades por

    onde passam. Segundo Santos Junior (2015), o legado atribuído aos

    megaeventos corresponde a projetos de renovação e reestruturação de

    cidades. Para o autor, os megaeventos realizados no Brasil representam a

    inauguração de um novo ciclo de mercantilização da cidade:

    [...] pode-se dizer que se está diante de um novo ciclo de mercantilização da cidade, traduzida na incorporação de determinadas áreas e de serviços urbanos parcialmente desmercantilizados aos circuitos de valorização do capital. Com efeito, percebe-se um processo de elitização da cidade. Esse processo ocorre pela transferência forçada de ativos sob a posse ou controle das classes populares para setores do capital imobiliário (SANTOS JUNIOR, 2015, p.29).

    Nesse sentido, é possível apontar a presença das relações capitalistas

    na disposição do espaço urbano em períodos históricos diversos; daí a ideia

    de “novo ciclo”. A dinâmica capitalista revela-se, em última análise, o ponto

    crucial para a compreensão do processo de gentrificação. Assim, é preciso

    analisar as intervenções urbanas relacionadas aos megaeventos de forma

    complexa levando em consideração as formas de apropriação da mais-valia

    urbana.

  • 23

    Os ciclos de intervenção no espaço urbano assumem uma polissemia

    de significados que, nos mais das vezes, buscam ocultar os ciclos de

    mercantilização da cidade o qual mencionou Santos Junior. Os processos de

    renovação, revitalização ou redesenvolvimento de áreas urbanas ganham

    notoriedade a partir da Segunda Guerra Mundial com a elevação do

    desemprego e a necessidade de reconstrução de regiões deterioradas das

    cidades (HARVEY, 2013). Harvey destaca o exemplo da cidade de Nova

    Iorque:

    A deterioração do centro das cidades provocada pela saída de empregos e pessoas gerou então uma forte, e, mais uma vez, subsidiada pelo governo, estratégia de renovação urbana através da demolição e reconstrução de centros urbanos mais antigos [...] o redesenvolvimento metropolitano de Nova York foi capaz de se inserir entre as fontes de fundos públicos e as exigências dos empreendedores privados com um efeito tão forte, refazendo toda a região metropolitana de Nova York por meio da construção de autoestradas e de pontes, do planejamento de parques urbanos e da renovação urbana (HARVEY, 2013, p.72).

    Assim, como bem descreveu Harvey, o redesenvolvimento de cidades,

    vale destacar a forte intervenção dos recursos públicos em benefício de

    setores privados, corresponde à práticas recorrentes no curso histórico.

    Contraditoriamente, o investimento em infraestrutura urbana tem levado a um

    processo de desapropriação e remoção de numerosa população. Vale

    ressaltar que tal processo é realizado, em boa parte dos casos, com

    autorização e recursos públicos, o que denota a leniência do Estado para

    com os empreendedores privados.

    A tentativa de revitalizar, ou mesmo redesenhar, espaços que ao longo

    do tempo foram perdendo dinamismo econômico, indica certa propensão ao

    fortalecimento das chamadas cidades globais. Segundo Ley (1981), a nova

    dinâmica do sistema de produção capitalista, sobretudo o processo de

    acumulação flexível, tende a concentrar profissionais altamente

    especializados em cidades centrais, isto é, aquelas que congregam capitais

    simbólicos, intelectuais, entre outros atributos.

    O fortalecimento desse tipo de centralidade costuma promover a

    elitização do espaço e a gentrificação como fenômeno reverso. Desse modo,

    a reestruturação da hierarquia urbana, promovida por esta nova divisão

  • 24

    social, impulsionada pela forma de como são realizados os megaeventos,

    promovem o surgimento de cidades fortemente marcadas pela segregação

    social. Esse cenário de reestruturação urbana não transforma apenas o

    aspecto estrutural das cidades, mas também, e sobretudo, das classes

    sociais, da produção e do consumo nas grandes metrópoles.

    Diante desse quadro, a cidade do Rio de Janeiro, no contexto dos

    megaeventos esportivos, notadamente os J.0, destaca-se como objeto de

    estudo em função de sua repercussão nacional e internacional não apenas

    referente às reformas urbanas, mas também no tocante à segurança pública

    e ao endividamento das esferas de governo municipal e estadual.

    Com o objetivo avaliar a influência exercida pelo COI (International

    Olympic Committee - IOC) em um conjunto de intervenções urbanas

    desenvolvidas pelo município da cidade do Rio de Janeiro, especificamente

    aquelas ligadas aos megaeventos esportivos, intentou-se identificar como as

    transformações urbanas ocorridas na cidade se sucederam e quais critérios

    foram adotados para a sua implementação.

    Para tanto, buscou-se problematizar o teor político e ideológico que

    nortearam as reformas urbanas ocorridas na cidade carioca, bem como,

    identificar os grupos sociais beneficiários de tal estratégia. No mais, se tentou

    averiguar a existência de modelos e padrões urbanísticos utilizados

    internacionalmente em megaeventos similares.

    A participação de megaeventos em países subdesenvolvidos vem se

    tornando mais frequente, sobretudo a partir do presente século. No caso dos

    J.O., sua importância se revela no chamado legado urbano deixado nas

    cidades após a realização do evento. Dessa forma, o COI passou a assumir

    protagonismo também nos espaços urbanos das cidades-sede dos eventos.

    Em contraste, os estudos que analisam a autonomia das esferas

    subnacionais de governo, notadamente diante de transformações urbanas de

    grande envergadura, são escassos frente à importância desse fenômeno. A

    maior parte desses estudos volta-se para a análise dos resultados, ignorando

    o seu processo e as razões pelas quais optou-se por determinada estratégia

    urbana. Desse modo, o presente trabalho pretende contribuir para um maior

    conhecimento e aprofundamento do papel exercido pelo COI na formulação

  • 25

    estratégica de políticas urbanas relacionadas aos J.O., especificamente na

    cidade do Rio de Janeiro.

    O município do Rio de Janeiro foi escolhido em razão de sua

    importância histórica, por suas peculiaridades culturais e diversidade social

    que aglutina dinamismo econômico com nítidas desigualdades sociais. Para

    tanto, analisou-se as estratégias de intervenção urbana impulsionadas para a

    realização dos megaeventos esportivos. Esta pesquisa concentra a sua

    análise no modus operandi da gestão pública, isto é, na forma de

    operacionalização que resultou no chamado legado urbano. Vale ressaltar

    que os megaeventos esportivos nos Rio de Janeiro geraram grandes

    repercussões na imprensa, sobretudo em função dos conflitos sociais

    envolvendo a segurança pública, as populações vulneráveis e a questão

    fiscal da cidade. (Note-se que a Lei de Responsabilidade Fiscal impedia o

    Munícipio de contrair novas dívidas, no entanto, por motivos diversos que não

    cabem aqui explorar, esta dívida foi contraída pelo Município em caráter

    excepcional em função dos Jogos).

    A análise da cidade do Rio de Janeiro pode ser considerada um caso

    relevante na medida em que a investigação se baseia em dados empíricos,

    notadamente quanto às reformas urbanas no Município carioca. No mais,

    essa estratégia de pesquisa possui potencial de generalização, pois, além de

    ser contemporânea – uma vez que o COI mantém a mesma concepção de

    “legado urbano” para as cidades – as regras estabelecidas pelo Comitê

    Olímpico são mantidas. Além disso, se averigua a tendência de atuação

    direcionada às cidades de países em desenvolvimento.

    A pesquisa aqui apresentada possui como característica o intuito de

    investigar um fenômeno contemporâneo em que os atores envolvidos

    impõem novas dinâmicas às cidades, muitas delas ainda em andamento.

    O tema de pesquisa proposto concentra-se na confluência de duas

    áreas que ainda permanecem pouco exploradas no Brasil: a influência do

    COI, como entidade multilateral sem autonomia para exercer papel político –

    ainda que o faça – e sua relação com a gestão pública nos diversos níveis de

    governo.

    Atenção especial será direcionada às políticas sociais, notadamente

    aquelas vinculadas ao processo de gentrificação. Esta questão se coloca ao

  • 26

    longo deste trabalho, abordada de diversas formas, e se concentra quando

    da análise da cidade do Rio de Janeiro, acompanhada do debate sobre a

    valorização imobiliária.

    O referencial teórico adotado nesta pesquisa baseia-se na teoria de

    políticas públicas, notadamente relacionada à análise do processo de difusão

    de políticas públicas, por meio de conceitos desenvolvidos por John Kingdon,

    e da reflexão acerca dos conceitos de melhores práticas (best practices); na

    sociologia urbana, a partir do conceito de cidade-mercadoria e, criticamente,

    o conceito de cidade-global. Por se tratar de um tema multidisciplinar, o

    referencial teórico perpassa por diversas áreas do conhecimento no que

    tange à investigação do megaevento em tela. A análise da literatura parte do

    princípio da existência de um conflito de interesses entre os diversos atores

    envolvidos no processo de renovação urbana – técnicos, especialistas,

    consultores, investidores, patrocinadores, movimentos sociais, entre outros –

    e procura, por meio da tentativa de exposição desses conflitos, explicitar os

    interesses envolvidos no modelo de cidade concebido pelo COI e seus

    apoiadores. Na mesma direção, busca-se trazer à luz o modo de operação da

    gestão que permitiu colocar em prática as transformações urbanas

    projetadas.

    Os Jogos Olímpicos realizados na capital do Estado do Rio de Janeiro

    configuram-se como uma oportunidade para se verificar o modelo de cidade

    emprestado ao Legado Urbano idealizado pelo COI. Além disso, torna-se

    oportuno revelar, reitera-se, o seu proceder. Ademais, a realização de obras

    de grande envergadura em um município do porte e complexidade do Rio de

    Janeiro, movimentando um volume de recursos dessa sorte, impõe a

    necessidade de trazer à tona os interesses envolvidos.

    A cidade do Rio de Janeiro constitui, portanto, uma oportunidade em

    que as circunstâncias para se avaliar COI, bem como o seu legado –

    vigência (e exceção) da Lei de Responsabilidade Fiscal, fortes manifestações

    sociais, entre outros aspectos – formam um quadro propício para a

    averiguação do papel exercido pelo COI, notadamente pelas reformas

    urbanas associadas aos megaeventos.

    Escolhido o lugar e o contexto, optou-se por realizar entrevistas em

    profundidade com alguns técnicos envolvidos direta ou indiretamente em

  • 27

    grandes eventos. No Rio de Janeiro, priorizou-se entrevistas com

    representantes de movimentos sociais: Cerianne Robertson7 (coordenadora

    de pesquisa e editora do RioOnWatch - Mestre em Sociologia St.

    Edmund'sCollege e graduada pela Universidade de Harvard).

    Na cidade de Barcelona entrevistou-se os seguintes especialistas e,

    por vezes, importantes atores envolvidos na elaboração do chamado Modelo

    de Barcelona: Jordi Borja8 (Geógrafo e urbanista. Professor da Universidade

    Aberta da Catalunia (UOC). Foi um dos principais idealizadores das reformas

    urbanísticas realizadas na cidade de Barcelona (Espanha) para a realização

    dos Jogos Olímpicos de 1992. Jordi Borja atua como consultor independente

    na área de gestão de cidades e urbanismo); Xavier Roig9 (CEO da Xavier

    Roig I associats. Participou do planejamento da cidade de Barcelona

    (Espanha) para a realização dos Jogos Olímpicos de 1992) e Marc

    PradelMiquel10 (Professor do Departamento de Sociologia da Universidade

    de Barcelona - Coordenador do núcleo de criatividade, inovação e

    transformação urbana).

    Na cidade de Lisboa limitaram-se a dois entrevistados: Jorge Manuel

    Gonçalves11 (Geógrafo, coordenador e professor do Mestrado em urbanismo

    e ordenamento do território do Instituto Superior Técnico de Lisboa) e Luís

    Vassalo Rosa (Arquiteto e urbanista - diretor dos serviços de planejamento e

    gestão urbanística da Expo'98 na cidade de Lisboa - Portugal).

    Realizou-se também a análise de fontes documentais (Report of the

    2016 IOC, Olympic Charter) com a finalidade de se identificar, na medida do

    7Pela própria definição, o RioOnWatch é um site de notícias trazendo atenção local e global para os pontos de vista oriundos das favelas do Rio de Janeiro perante as Olimpíadas. Pelo site www.RioOnWatch.org.br pode-se acompanhar publicações de matérias realizadas por jornalistas e lideranças comunitárias e observadores internacionais, sempre com foco no

    ponto de vista das favelas sobre as transformações acontecendo na cidade. O RioOnWatch.org, foi um importante veículo para a publicação das perspectivas dos organizadores comunitários, moradores, observadores internacionais e pesquisadores sobre as rápidas transformações urbanas que caracterizaram o Rio pré-Olímpico. 8Vale destacar a participação de Jordi Borja como um dos consultores das reformas urbanas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro. 9Xavier Roig atuou como consultor das reformas urbanísticas na cidade do Rio de Janeiro (Brasil) para a realização da Copa do Mundo FIFA (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016) 10Marc Pradel Miquel representa, em meio a seara de especialistas entrevistados na cidade de Barcelona, uma voz mais isenta, uma vez que não se envolveu diretamente com os megaeventos realizados na cidade. 11A oportunidade de entrevistar o Professor Jorge Manuel Gonçalves ocorreu em função do estágio de doutorado sanduíche no Instituo Superior Técnico de Lisboa realizado com o apoio do Programa Erasmus Mundus – Modalidade SMART2.

    http://www.rioonwatch.org.br/

  • 28

    possível, o tipo de linguagem, princípios, práticas e ideologias que norteiam

    as ações e recomendações do COI. Dessa forma, procurou-se elucidar os

    aspectos fundamentais para que os seu valores viessem à tona.

    Com o levantamento das informações adquiridas e fazendo uso das

    técnicas acima explicitadas, três aspectos distintos se destacaram. O

    primeiro corresponde aos critérios utilizados para a escolha das cidades-

    sede; o segundo remete à influência do COI nos modelos urbanos e, por fim,

    a análise da gestão pública no contexto dos megaeventos. O terceiro aspecto

    diz respeito à questão das práticas de gestão que é aqui colocada sob

    diversos aspectos com o intuito de fornecer um panorama mais amplo sobre

    as diversas frentes de atuação exigidas para a realização de eventos de

    grande envergadura.

    Os capítulos que se seguem são estruturados da seguinte maneira:

    No capítulo 1, problematizou-se, em linhas gerais, a teoria política do

    desenvolvimento econômico e sua relação com as política públicas,

    notadamente quanto ao seu modus operandi, isto é, a sua operacionalização.

    Posteriormente, problematiza-se o conceito de cidade global como referência

    a ser perseguida pelas grandes metrópoles. Nesse contexto, buscou-se

    relacionar o atual estágio do capitalismo contemporâneo e seus impactos

    sobre o ambiente urbano. É nessa conjuntura em se anuncia, ainda de forma

    incipiente, a ideia de modelos de cidade.

    O capítulo 2 está centrado na análise das políticas públicas e,

    sobretudo, nas estratégias de intervenção urbana a partir de modelos

    internacionais. A abordagem examina os megaeventos como agentes

    propulsores de soluções modelares problematizando, nessa sequência, as

    implicações da replicação e difusão de modelos preestabelecidos nas

    políticas públicas.

    Nessa continuidade, analisou-se as concepções referentes à

    formulação de agenda política, baseando-se notadamente nos conceitos de

    John Kingdon e, posteriormente, examinou-se a concepção de melhores

    práticas (best practices) confrontando-a com o conceito de inovação e seus

    efeitos nas políticas públicas.

    Após a realização da análise teórico-conceitual examina-se a

    experiência de Barcelona (Espanha) no período da realização dos Jogos

  • 29

    Olímpicos de 1992. Por se tornar uma referência internacional no que tange

    as intervenções urbanas de grande magnitude, fortemente referendada na

    literatura sobre megaeventos, a cidade catalã torna-se um paradigma no

    campo do urbanismo.

    Com o mesmo propósito, perscruta-se a cidade de Lisboa (Portugal)

    por ter sediado a Exposição Mundial de 1998 (Expo’98), e analisa-se os

    pontos de convergência e dissonância em relação aos aspectos teóricos

    referentes ao processo de difusão de políticas públicas e seus impactos na

    agenda política. A análise das experiências de Lisboa e Barcelona foram

    permeadas por entrevistas realizadas com importantes atores envolvidos

    direta e indiretamente na realização dos eventos em tela. As entrevistas

    foram analisadas a partir das discussões teóricas cotejadas nas etapas

    supracitadas.

    O capítulo 3 se inicia analisando os megaeventos em sua distribuição

    espacial, isto é, observando a frequência e as cidades por onde percorreu.

    Posteriormente, verifica-se como os eventos de grande magnitude impactam

    a configuração urbana por meio de políticas públicas direcionadas para a sua

    realização. Dessa forma, analisa-se o mercado imobiliário identificado como

    elemento indutor das intervenções urbanas e responsável, em larga medida,

    por seus efeitos sociais.

    Com a finalidade de aproximar a análise para uma situação concreta e

    contemporânea, analisa-se a trajetória histórica da cidade do Rio de Janeiro

    para conseguir o direito de sediar megaeventos de reconhecimento global,

    notadamente os Jogos Olímpicos. Com o mesmo intuito, averigua-se o caso

    do Porto Maravilha que tornou-se emblemático pelos conflitos políticos-

    institucionais envolvendo a sociedade civil e os propósitos por trás da

    realização de megaeventos no país. Em paralelo, analisa-se a questão

    imobiliária por meio de indicadores e pela voz de uma importante

    organização da sociedade civil, o RioOnWatch.

    Por fim, analisou-se algumas fontes documentais (Report of the 2016

    IOC e Olympic Charter) referente ao COI com o intuito de perceber o seu

    posicionamento diante das diversas percepções existentes em relação ao

    legado urbano preconizado pela organização.

  • 30

    Cabe dizer, por fim, que este estudo é exploratório e que os elementos

    analisados permitem algumas considerações que poderão ser aprofundadas

    por outros trabalhos.

    Objetivo

    Identificar se as intervenções urbanas para a realização de

    megaeventos buscam reproduzir modelos predefinidos.

    Objetivos Específicos:

    1. Identificar elementos que caracterizam a replicação de modelos

    urbanos no contexto de realização de megaeventos;

    2. Apontar a forma de operação (modus operandi) que identifica a

    influência dos megaeventos na gestão de políticas públicas;

    3. Apontar os impactos sociais decorrentes de transformações urbanas

    oriundas da realização dos megaeventos esportivos na cidade do Rio

    de Janeiro.

    Informações metodológicas

    A cidade do Rio de Janeiro passou por profundas transformações

    urbanas para atender às demandas necessárias para a realização da Copa

    do Mundo FIFA (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016). Esse feito, somado ao

    direito de realizar a Eco 92 e os Jogos Pan-americanos de 2007, revela a

    especificidade na cidade carioca no que tange à realização de megaeventos.

    As diversas tentativas de projetar a cidade no cenário internacional,

    notadamente a partir da década de 1990, suscitaram propostas urbanísticas

    que a vasta literatura sobre o tema define por agenda neoliberal. Esse

    diagnóstico tornar-se-ia mais evidente no primeiro Plano Estratégico

    apresentado em 1996, e posteriormente, na forma de gestão adotada pela

    cidade no momento de sua escolha para a realização dos recentes

    megaeventos.

  • 31

    Contudo, apesar do uso recorrente dessa terminologia, os trabalhos

    analisados não apresentaram aprofundamento conceitual e teórico. Ademais,

    a bibliografia referente a esta temática costuma enfocar os resultados, isto é,

    concentram-se nos efeitos urbanos pós realização dos eventos. A abordagem

    aqui suscitada buscou analisar a forma e o conteúdo de seu processo, ou

    seja, práticas e políticas públicas urbanas que delineiam os objetivos a serem

    alcançados.

    Vale lembrar que as organizações internacionais envolvidas em

    megaeventos, notadamente o COI, corresponde à uma organização não

    governamental, mas que atua politicamente na medida em que as exigências

    requeridas para a realização de eventos de grande envergadura podem

    exercer influencia, e muitas vezes determinar, a forma e o conteúdo das

    políticas públicas urbanas.

    Nesse contexto, a necessidade de analisar as razões do significativo

    aumento de megaeventos nos chamados países em desenvolvimento, no

    circuito dos eventos de grande porte internacionais, antes circunscritos às

    nações avançadas, torna-se premente.

    O contexto, criado para a realização dos megaeventos, faz da cidade

    do Rio de Janeiro um caso propício para a investigação, sobretudo quanto ao

    conhecimento dos mecanismos de gestão impelidos à transformar as cidades

    em nome do chamado legado urbano.

    O trabalho teve como referência a investigação das transformações

    urbanas na cidade de Barcelona – destacada como Modelo – no período em

    que esta foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos em 1992; a cidade de

    Lisboa, em função da Exposição Mundial de 1998 (Expo’98) e a cidade do

    Rio de Janeiro, objeto deste estudo, em virtude de sua experiência recente

    na realização da Copa do Mundo FIFA de Futebol e dos Jogos Olímpicos de

    2016.

    Por se tratar de momentos históricos distintos, o recorte temporal

    desta pesquisa não permite linearidade. Essa situação impõe ao estudo uma

    abordagem não comparativa do ponto de vista metodológico, contudo, as

    similitudes identificadas ao longo desta pesquisa podem contribuir para uma

    maior compreensão dos impactos de megaeventos em contextos urbanos

    diversos.

  • 32

    Permitiu-se neste trabalho uma interpelação quando da análise da

    cidade de Barcelona (Espanha). A cidade catalã surge como referência ao

    tornar-se um paradigma na literatura. A partir do momento em que foi

    escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 1992, a cidade passou por

    profundas transformações urbanísticas que a tornaram referência de sucesso

    no que tange a realização de megaeventos. O Modelo de Barcelona, assim

    conhecido, é frequentemente utilizado como exemplo bem-sucedido de

    intervenção urbanística por grande parte das agências internacionais de

    desenvolvimento. Não obstante, a literatura crítica caracteriza este Modelo

    por privilegiar exclusivamente os aspectos comerciais e turísticos definindo-o

    como socialmente excludente e gentrificador.

    A experiência de Barcelona vem sendo difundida, não apenas por

    seus idealizadores, arquitetos e urbanistas que se tornaram mundialmente

    conhecidos, como também por agências internacionais que encontram no

    modelo catalão uma referência a ser seguida.

    A difusão de políticas públicas, mais especificamente a replicação de

    modelos de gestão urbana, tem sido assunto recorrente nos países

    periféricos propensos à aceitação de experiências oriundas de realidades

    economicamente avançadas. A reconfiguração urbana constitui apenas o

    resultado último dos processos transformadores. Daí a necessidade de

    perscrutar as fases que a antecedem, notadamente sua ideologia e seus

    mecanismos operacionais. Essa temática constitui ainda uma lacuna na

    compreensão dos megaeventos em nível global. Para maior entendimento do

    Modelo de Barcelona, entrevistou-se técnicos e especialistas envolvidos em

    sua idealização e implementação.

    Na direção oposta, a cidade Lisboa surge como um contraexemplo no

    que tange a realização de megaeventos. Apesar da existência de muitas

    críticas, notadamente quanto ao volume de recursos empenhados, a Expo’98

    ocorreu em uma vasta área (cerca de 330 hectares) de uma zona pouco

    habitada da cidade. Apesar disso, o projeto rendeu muitas contestações,

    sobretudo por atender demandas estruturais sem necessidade eminente e

    por privilegiar práticas empresariais de gestão.

    No entanto, o contraponto da Expo’98 parece residir no fato de que a

    cidade ganhou novas áreas públicas. O Parque das Nações tornou-se um

  • 33

    novo espaço na cidade lusitana. A construção do Parque Expo é visto como

    uma experiência exitosa: o evento contou com a representação de mais de

    160 países, um recorde de participação em exposições mundiais até então.

    Cerca de 12 milhões de pessoas dos cinco continentes se dirigiram ao país.

    Por essa e outras razões, a experiência de Lisboa merece ser destacada.

    Desse modo, a experiência portuguesa distingue-se, ainda que de

    forma controversa, por salvaguardar o domínio público e o uso comunitário

    do espaço na realização de um megaevento internacional. Trata-se,

    indubitavelmente, de um exemplo alternativo de intervenção urbana visando

    a recuperação e revalorização de áreas marginalizadas, degradadas e

    monofuncionais para o interesse público. Daí a importância dos profissionais

    entrevistados para esta pesquisa.

    Levantamento Bibliográfico

    Com o intuito de analisar as transformações urbanas decorrentes dos

    megaeventos, notadamente os J.O., analisou-se considerável bibliografia

    referente aos diversos impactos urbanos, econômicos e sociais. A ampla

    discussão a respeito do tema permitiu referendar a literatura relativa ao

    pensamento econômico liberal, bem como o seu antitético, a bibliografia

    latino-americana nacional desenvolvimentista.

    Com o objetivo de perscrutar o modus operandi do COI frente aos

    governos locais, analisou-se a bibliografia referente à difusão de políticas

    públicas. Esse viés foi escolhido por entender, com base na literatura

    pertinente aos megaeventos, que a replicação de modelos urbanos ocorre

    pari passu à realização de eventos internacionais de grande magnitude.

    Por fim, analisou-se os efeitos das intervenções urbanas nas cidades

    de Barcelona, Lisboa e, sobretudo, no Rio de Janeiro. Para cumprir com os

    objetivos propostos, analisa-se aqui as referências bibliográficas específicas

    aos megaeventos, mais especificamente, aquela relacionada à cidade do Rio

    de Janeiro.

    Análise de fontes documentais

  • 34

    Diversas fontes documentais referente à temática megaevento foram

    analisadas. Embora o objetivo do presente estudo não seja analisar

    diretamente o aspecto esportivo, fontes documentais oficiais foram

    consultadas. Documentos como o Report of the 2016 IOC Evaluation

    Commission e Olympic Charter foram minuciosamente analisados com o

    intuito de caracterizar a forma de atuação do COI, bem como os seus

    reflexos no ambiente urbano e na gestão pública.

    Analisa-se, dessa forma, as seguintes fontes documentais:

    - Relatórios e documentos oficiais das instituições e organizações

    envolvidas na realização dos megaeventos, inclusive organizações da

    sociedade civil;

    - Publicações, websites e periódicos (oficiais e extra oficiais);

    - Projetos, plantas e materiais fotográficos.

    Entrevistas em profundidade

    Entrevistas em profundidade foram realizadas com técnicos

    responsáveis pela implementação de políticas públicas das três cidades

    analisadas: Rio de Janeiro, Barcelona e Lisboa. As entrevistas foram

    importantes para entender, sobretudo na visão do gestor público, o papel e o

    peso de sediar eventos internacionais de tamanha magnitude e visibilidade.

    As entrevistas foram realizadas pessoalmente levando em

    consideração suas vantagens em relação a outras formas de abordagem que

    possivelmente dificultam o aprofundamento do conteúdo. Além disso, os

    depoimentos coletados contribuíram para uma visão pouco explicitada na

    análise de documentos. No mais, como não houve a necessidade de grande

    quantidade de entrevistas, esta alternativa foi possível de se realizar.

    Destacam-se alguns benefícios das entrevistas face a face:

    1) respostas mais precisas permitindo maior conforto e liberdade de

    expressão. O contato visual é um fator importante; 2) permissão de respostas

    mais abertas e ao mesmo tempo de forma mais aprofundada; 3) maior

    efetividade em assuntos complexos. Neste caso, como se trata de um tema

    muitas vezes controverso, a liberdade e naturalidade de uma entrevista face

    a face são importantes; 4) respostas mais elaboradas. Estudos demonstram

  • 35

    que as pesquisa por telefone levam a respostas menos reflexivas; 5)

    resultados mais precisos pois a entrevista por telefone é mais cansativa do

    que a entrevista pessoal; 6) as entrevistas face a face permitem

    clareamentos inusitados que costumam surgir (GUBRIUM e HOLSTEIN,

    2003).

  • 36

    CAPÍTULO I

  • 37

    1. ASPECTOS DO URBANISMO BRASILEIRO

    1.1 Práxis da gestão pública urbana

    Nos países de capitalismo tardio, como na América Latina, o processo

    de urbanização engendrou, ao longo do tempo, distorções estruturais difíceis

    de serem interpretadas a partir de teorias e conceitos generalistas. O

    hibridismo de tais realidades implicam o desafio crítico desse quadro

    conceitual como consequência do falso universalismo do desenvolvimento

    econômico orientado pela teoria neoclássica12 e difundido sob a égide da

    globalização.

    A análise das questões envolvendo os aspectos qualitativos do

    conceito de desenvolvimento, levando em consideração as relações de poder

    que atuam no espaço urbano, ganha importância na medida em que os

    instrumentos de gestão democrática entram em conflito com interesses

    diversos que se apoiam nos princípios de mercado, isto é, pautados na

    ideologia do liberalismo econômico como estratégia de desenvolvimento.

    Existe uma óbvia disseminação das regras de mercado, como a privatização dos mercados imobiliários em países ex-comunistas, por exemplo. As transições de bairro decorrentes são acompanhadas, ou mesmo, por vezes, lideradas, por um neoliberalismo expansionista nas políticas públicas que muitas vezes acentua as divisões sociais entre os agentes gentrificadores e a população deslocada. (ATKINSON; BRIDGE, 2005, p. 2, tradução

    nossa)13.

    12O pensamento econômico (neo)clássico baseia-se na concepção da autorregulação do

    mercado. Fracois Quesnay, John Stuart Mill, Adam Smith, David Ricardo, entre outros autores consolidam a doutrina liberal como leis naturais e imutáveis. Nesse sentido, apenas com a ausência das intervenções do Estado se poderia alcançar o máximo lucro com o mínimo esforço (SANDRONI, 2008). 13There is the obvious spread of market discipline, such as the privatisation of housing

    markets in ex-communist countries for example. The neighbourhood transitions that result are accompanied, or indeed sometimes led by, an expansionist neo-liberalism in public policy that often accentuates the social divisions between gentrifiers and the displaced.

  • 38

    Como bem destacaram Atkinson e Bridge, a expansão do mercado

    imobiliário ocorre de forma atrelada às políticas públicas. A característica

    neoliberal a que se referem os autores consiste em sua forma gentrificadora

    de atuação, isto é, substituindo a população original por uma de novo perfil

    social, nitidamente mais abastada.

    O aprimoramento dos instrumentos de gestão pública tal como o

    Estatuto das Cidades, o Plano Diretor, entre tantos outros, demonstram a

    possibilidade da gestão democrática para a reversão do degradado ambiente

    urbano de grande parte das cidades brasileiras. Contudo, a disputa

    assimétrica pela apropriação do espaço urbano faz das políticas públicas, no

    mais das vezes, instrumento de representação dos interesses de grupos

    dominantes.

    Assim sendo, o aparelho administrativo passa a desempenhar,

    contraditoriamente, papel fundamental na preservação da atual estrutura de

    poder. A reprodução dessa práxis que configura o desenvolvimento urbano

    brasileiro é também perceptível nas regiões afastadas onde se concentram

    as populações sem acesso e direito à cidade. Savage e colaboradores

    (2003), Lees e colaboradores (2007), bem como Harvey (2008), destacam a

    transformação cultural decorrente do fortalecimento das práticas neoliberais

    sobre as cidades pós-industriais. Segundo os autores, o paulatino

    enfraquecimento das políticas de bem-estar social (Welfare State),

    notadamente nos países de economias centrais, está diretamente

    relacionado à redução da carga tributária, à transferência das

    responsabilidades públicas à iniciativa privada e, consequentemente, à

    redução dos gastos públicos como um todo.

    Amparada pela ideologia do pensamento econômico neoclássico, isto

    é, pela crença de que o desenvolvimento social ocorre como consequência

    espontânea do crescimento do nível de atividade econômica14, a atual práxis

    14 Segundo Celso Furtado, “[...] o processo de desenvolvimento dos países atualmente

    subdesenvolvidos não pode alcançar espontaneamente seu ritmo ótimo. A tendência a aumentar a propensão a consumir, resultante das disparidades internacionais de renda real, determina redução progressiva no ritmo do crescimento espontâneo dos países que ficaram atrasados no processo de desenvolvimento” (FURTADO, 1952, p. 328). Assim sendo, as estratégias econômicas inspiradas nos países de economias avançadas – (neo)liberais – não podem responder às necessidades de países economicamente atrasados mas com realidades sociais complexas; caso do Brasil. Bresser-Pereira (1977) irá aprofundar essa

  • 39

    do desenvolvimento tende a permanecer socialmente excludente na medida

    em que as grandes cidades segregam suas populações por critério de renda.

    Além disso, a tecnocracia incorporada à critérios para a implementação de

    políticas públicas, sobretudo aquelas pautadas na concepção do custo-

    benefício, isto é, voltadas exclusivamente ao retorno quantitativo dos

    investimentos, inclina-se ao atendimento dos interesses do mercado.

    O debate sobre a gestão de políticas públicas buscando examinar seu

    modus operandi apontou avanços, limites e desafios no que tange à adoção

    de modelos forâneos em realidades distintas. Desenvolvida originalmente no

    contexto inglês e norte-americano, o gerencialismo constitui uma resposta às

    novas características flexíveis do capitalismo moderno (HARVEY, 2013).

    Essa forma de gestão passou a ser incorporada na América Latina na medida

    em que se fortalecia a reestruturação produtiva em escala planetária

    (BAGGULEY, 1991).

    Essa prática, orientada por forças internacionais, demonstrou forte

    incompatibilidade à realidade brasileira, notadamente no período de sua

    implementação marcado pela criação do Ministério da Reforma do Estado

    (MARE). A chamada nova administração pública se distingue da

    administração pública burocrática notadamente por seu caráter gerencialista,

    isto é, pautado na profissionalização e no uso de boas práticas do setor

    privado (BRESSER-PEREIRA, 1996). Como será analisado mais adiante, as

    boas práticas gerenciais (best practices) nem sempre se identificam com os

    interesses do conjunto da coletividade.

    Essa problemática, suscitada no contexto de realização de

    megaeventos, demonstrou, uma vez mais, as prioridades mercantis em

    detrimento dos interesses sociais. Nesse sentido, os esforços passam a se

    concentrar na reestruturação do espaço urbano voltado aos interesses do

    grande empresariado, notadamente aqueles ligados ao mercado imobiliário,

    que vislumbram novas oportunidades de investimentos.

    Ocorre que, em cidades com elevada concentração de renda, o

    perímetro urbano costuma aglutinar as mais diversas classes sociais,

    sobretudo em suas regiões centrais onde áreas degradadas se misturam com

    questão ao analisar a realidade brasileira em seu livro: Estado e subdesenvolvimento industrializado.

  • 40

    espaços modernizados. De forma geral, são zonas beneficiadas por

    infraestrutura de transporte público, o que contribui para a concentração das

    mais diversas formas de atividade econômica. Esse conjunto de

    características costuma tornar as regiões centrais objeto de disputa entre os

    diversos estratos sociais que compõem o ambiente urbano.

    Molotch (1976) já destacava o passivo social das intervenções que

    intentam transformar a ordem urbana como forma de intensificar os fluxos de

    capitais. Essa concepção, base do pensamento econômico neoclássico,

    tende a beneficiar parcela circunscrita da população, o que contribui para

    agravar problemas estruturais preexistentes, uma vez que conduz à

    concentração social e espacial da renda.

    Tendências emergentes tendem a enervar as máquinas de crescimento da localidade. A primeira é a crescente suspeita de que em muitas áreas, em muitos momentos históricos, o crescimento beneficia apenas uma pequena proporção de moradores locais. Crescimento quase sempre traz consigo os problemas óbvios de aumento da poluição do ar, da água, congestionamento de tráfego e sobretaxação de amenidades naturais (MOLOTCH, 1976, p. 318 – Tradução livre).

    De fato, a ideia de transformar as grandes cidades em “máquinas de

    crescimento” está relacionada ao conceito de mercantilização do espaço

    urbano. Segundo Harvey (2005), os investimentos que se mostraram

    rentáveis em determinado momento histórico exigem novas inversões para

    torná-los novamente lucrativos.

    Tais investimentos, especialmente quando são do tipo especulativo, invariavelmente requem novas ondas de investimento se a primeira onda se provou rentável [...] Assim, há um elemento de causa circular e cumulativa em funcionamento na dinâmica dos investimentos na área metropolitana [...] Eis o que frequentemente são máquinas de crescimento urbano em todas as partes: a orquestração da dinâmica do processo de investimento e a provisão de investimentos públicos chave, no lugar e tempos certos, para fomentar o êxito na competição interurbana e inter-regional. (HARVEY, 2005, p. 231).

    É nesse contexto que os megaeventos surgem como uma janela de

    oportunidades para uma nova rodada de mercantilização da cidades que tem

    na elitização do espaço urbano, bem como a gentrificação, como

    consequência eminente (SANTOS JUNIOR, 2015). A instauração de

    reformas urbanas, fundamentadas por supostas necessidades estabelecidas

  • 41

    por padrões contemporâneos de riqueza, parecem justificar toda sorte de

    intervenções urbanísticas. No entanto, a tipologia das reformas urbanas

    requeridas para o sucesso de eventos de grande magnitude, alcança apenas

    uma pequena fração da sociedade. Assim, a reestruturação do espaço

    acontece de forma a privilegiar, quase que exclusivamente, a classe

    empresarial. Sánchez (2010) denomina esse processo de empresariamento

    da cidade.

    No receituário imposto para o atendimento das demandas

    ocasionadas pelos megaeventos realizados no Brasil, notadamente o evento

    FIFA e os J.O., não havia menção a qualquer tipo de participação social

    difusa ou local. Esse fato não apenas ignora qualquer tipo de gestão

    democrática como também corrobora para o desrespeito às leis fundamentais

    do direito urbano estabelecido no país.

    A participação da sociedade na elaboração em todas as fases que

    envolvem as políticas públicas, da agenda à avaliação, notadamente a partir

    do Estatuto da Cidade15, proposto na Constituição de 1988, constitui uma das

    diretrizes gerais da política urbana nacional. A participação social, garantida

    pela Constituição, é imprescindível para uma gestão verdadeiramente

    democrática, pois permite à sociedade atuar diretamente na realidade a qual

    pertence apontando novas demandas e soluções para o enfrentamento de

    problemas muitas vezes ignorados pelo poder público.

    O Plano Diretor Municipal (PDM), respaldado pela Lei Federal do

    Estatuto de Cidades, visa a promoção e garantia de uma administração

    pública democrática por meio do uso de instrumentos de gestão que buscam,

    entre outras coisas, o desenvolvimento e o ordenamento do espaço urbano

    fazendo respeitar o seu caráter social, notadamente aquele relacionando à

    função social da cidade e da propriedade urbana.

    As normas e diretrizes estabelecidas no Plano Diretor são obrigatórias,

    portanto, devem ser cumpridas pelo poder público e também por toda a

    15 Lei No 10.257, DE 10 de Julho de 2001: “Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei,

    denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que

    regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar

    dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” Acessado em 15/12/2014. Disponível em:

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm

  • 42

    sociedade, tendo em vista o desenvolvimento sustentável em seus múltiplos

    aspectos. A ordenação e o desenvolvimento planejado das funções sociais

    das cidades e da propriedade em benefício do bem-estar coletivo conjugados

    com o equilíbrio ambiental e sustentável, podem ser concretizados apenas a

    partir de uma gestão democrática em que participação dos atores sociais dão

    legitimidade a toda e qualquer estratégia de planejamento e desenvolvimento

    que se venha implementar. Daí a importância do Conselho das Cidades16

    como instrumento de gestão que garante a participação popular - através de

    seus delegados eleitos e de gestores públicos – em torno de temas

    relevantes que levem em consideração as particularidades locais. Entre

    outros objetivos, o Conselho busca sensibilizar e mobilizar a sociedade para

    o estabelecimento de agendas, planos e metas de ação para as questões

    urbanas, além de promover a interlocução entre autoridades e gestores

    públicos com representantes de entidades representativas.

    Contudo, Villaça destaca, sem ilusões, a realidade da participação

    social na gestão pública brasileira:

    Não existe “a população”. O que existe são classes sociais ou setores ou grupos da população. A classe dominante sempre participou seja dos planos diretores seja dos planos e leis de zoneamento. Quem nunca participou foram – e continuam sendo – as classes dominadas, ou seja, a maioria. Até agora foram essas classes as grandes ausentes. Portanto, quando se fala em Plano Diretor Participativo, como sendo uma novidade e se referindo aos planos diretores do presente, essa ênfase na “participação” só pode ser referir à maioria dominada, já que a minoria dominante sempre participou, embora raramente de forma ostensiva (VILLAÇA, 2005, p. 49).

    O Plano Diretor constitui instrumento obrigatório para municípios com

    mais de vinte mil habitantes e também para aqueles que integram regiões

    16“Art. 1o. O Conselho das Cidades - ConCidades, órgão colegiado de natureza deliberativa e consultiva, integrante da estrutura do Ministério das Cidades, tem por finalidade estudar e propor as diretrizes para a formulação e implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, bem como acompanhar e avaliar a sua execução, conforme dispõe a Lei N o. 10.257, de 10 de Julho de 2001 – Estatuto da Cidade. Art. 2o. O ConCidades é responsável por propor as diretrizes gerais para a formulação e implementação da Política nacional de Desenvolvimento Urbano, em consonância com as resoluções aprovadas pela Conferência Nacional das Cidades.” - Acessado em 15/12/2014 .Disponível em: http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Publicacoes/Decretos/decreto-5790-2006.pdf

    http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Publicacoes/Decretos/decreto-5790-2006.pdfhttp://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosCidades/ArquivosPDF/Publicacoes/Decretos/decreto-5790-2006.pdf

  • 43

    metropolitanas de grande densidade populacional. Os municípios devem

    cumprir o prazo de cinco anos - a partir da promulgação da Lei em 2006 -

    para atender a obrigação constitucional de elaboração de PD, fixado pelo

    artigo 50 do Estatuto da Cidade, promovendo revisões e ajustes a cada

    decênio. Ademais, os municípios estão obrigados a elaborar planos diretores

    para que o poder público atue de forma legítima no enfrentamento de

    problemas próprios de ambientes urbanos complexos, tais como: a

    ociosidade da propriedade urbana, (re)ocupação especial de interesse

    turístico, áreas de influência de empreendimentos ou atividades com

    significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.

    Nesse sentido, o Plano Diretor constitui instrumento fundamental da

    gestão pública brasileira. Contudo, sua apropriação por parte das elites que

    visam a exploração da mais-valia fundiária, notadamente pelo rentismo,

    minam as possibilidades de transformar as cidades brasileiras na direção da

    construção de um ambiente urbano democrático.

    Nossa sociedade está encharcada da ideia generalizada de que o Plano Diretor (n