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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
SANDRA MARIA BARBOSA FARIAS
O MONSTRO DO MEDO E A LEITURA NA ESCOLA
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
SANDRA MARIA BARBOSA FARIAS
O MONSTRO DO MEDO E A LEITURA NA ESCOLA
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira.
SÃO PAULO
2013
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus. Se não fosse de Sua vontade, jamais teria chegado aqui.
Aos meus pais, primeiros mestres e modelos supremos.
À minha filha. Motivo de eterna vontade pelo conhecer, descobrir, saber.
Às minhas amigas, Claudia e Maria de Lourdes. O que seria de nós se Deus não
permitisse os anjos a nos socorrer nos momentos difíceis?
Às professoras Ana Lúcia Magalhães e Vanda Maria da Silva Elias pelas
contribuições e aprimoramentos tão docemente concedidos a esse trabalho.
Às diretoras da escola Oswaldo Sammartino, Ana Maria e Alexsandra. Quando
temos quem acredita no nosso trabalho tudo fica mais fácil, mais tranquilo, mais
prazeroso.
À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo pela bolsa concedida para
realização dessa pesquisa.
Ao mestre dos mestres. Ao meu querido orientador, professor Dr. Luiz Antonio
Ferreira que, na sua paciência de educador, fez-me entender a importância da
pesquisa. Mas foi sua compreensão de amigo que me possibilitou ser uma
profissional mais sensível aos apelos de quem quer aprender.
RESUMO
Por meio de estudos realizados para a compreensão do que vem a ser texto hoje,
realizamos atividades de leitura e questionários objetivos entre alunos do Ensino
Fundamental II de uma escola pública estadual da grande São Paulo para
descobrirmos que importância tem a leitura na escola, e se existe algum tipo de mal
que desencadeie os números registrados pela Secretaria de Educação do Estado de
São Paulo quanto ao baixo rendimento da competência leitoras desses alunos no
ano letivo de 2011. Ao concordar com autores que veem a leitura como uma
interação entre autor, texto e leitor; queremos saber que tipo de relação existe entre
esses alunos e os textos propostos por seus professores de Língua Portuguesa em
sala de aula. Se constatado, por meio de pesquisa realizada pela Secretaria de
Educação, que o aluno apresenta dificuldades em sua competência leitora,
queremos descobrir por que a escola não vem desenvolvendo, com competência,
seu papel de ensinar as estratégias para a realização de uma leitura prazerosa e
proficiente. Para tanto, fomos buscar na retórica, arte de argumentar, arte de
persuadir pelo discurso, indícios que comprovem o medo nas atividades de leitura
realizadas em sala de aula como inibidor do processo de aprendizagem da leitura na
escola, visto ser uma paixão que perturba e traz desgosto, preocupação com um mal
eminente, danoso ou penoso.
Palavras-chave: Medo. Retórica. Leitura. Escola.
ABSTRACT
Through studies for understanding what comes to text today, we conducted reading
activities and quizzes goals among elementary school students of a public school in
Sao Paulo in order to discover how important is reading in school, and what
unleashes the numbers registered by the Education Department of the State of São
Paulo as the low efficiency of competence reading of these students in the year
2011. By agreeing to authors who see reading as an interaction between author, text
and reader, we want to know what kind of relationship exists between these students
and the texts proposed by the Portuguese teachers in the classrooms. If found,
through research conducted by the Education Department, the student presents
difficulties in their reading competence, we do not find out why the school has been
developing, with competence, its teaching strategies to achieve a pleasant and
proficient reading. And we get the rhetoric, the art of arguing, the art of persuasion
through discourse, to evidence the presence of fear in reading activities conducted in
the classroom as an inhibitor of the process of learning to read in school.
Keywords: Fear. Rhetoric. Reading. School.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 09
1. A LEITURA NA PERSPECTIVA DA LÍNGUÍSTICA TEXTUAL 17
1.1 Antes da sociocognição 18
1.2 A partir a cognição 21
1.3 Perspectivas para o ensino 25
2. RETÓRICA, LEITURA E PAIXÕES 44
2.1 As paixões 51
2.2 O medo 55
3. A LEITURA E O MEDO NA ESCOLA 59
3.1 O aluno, o medo e a leitura 72
3.2 A escola de ontem e a escola de hoje 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS 100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 111
ANEXOS 114
ANEXOS
ANEXO A – Respostas de alunos do 6º e 8º anos à questão “Como você aprendeu a
ler?”.
ANEXO B – Respostas de dois alunos não alfabetizados do 8º ano à questão “Como
você aprendeu a ler?”.
ANEXO C – Respostas positivas dos alunos do 6º ano à questão “Você gosta de
ler?”.
ANEXO D – Respostas positivas dos alunos do 6º ano à questão “Você gosta de
ler?”.
ANEXO E – Respostas positivas dos alunos do 7º e 8º anos à questão “Você gosta
de ler?”.
ANEXO F – Respostas positivas dos alunos do 7º e 8º anos à questão “Você gosta
de ler?”.
ANEXO G – Respostas negativas de alunos do 8º ano com dificuldades de leitura à
questão “Você gosta de ler?”
ANEXO H – Respostas negativas de alunos do 7º ano com dificuldades de leitura à
questão “Você gosta de ler?”
ANEXO I – Resposta positiva de aluno do 8º ano à questão “Você gosta de ler?”
ANEXO J – Respostas de alunos do 6º, 7º e 8º anos à questão “Como você acha
que seu professor deveria conduzir as aulas de leitura?”
ANEXO K – Respostas de alunos do 6º, 7º e 8º anos à questão “Como você acha
que seu professor deveria conduzir as aulas de leitura?”
ANEXO L – Indicação dos alunos às leituras que lhes dão prazer.
9
INTRODUÇÃO
A escola é o local propício para a fomentação do hábito da leitura. Mas, se
assim o é, por que há alunos com tantas dificuldades para interpretar o que leem, ou,
ainda pior, alunos que não sabem realmente ler?
Nas falas dos professores da escola em que atuo na coordenação
pedagógica, constata-se que muitos alunos parecem não gostar de ler e sequer se
esforçam para a compreensão dos textos propostos pelos professores. Ainda, de
acordo com os registros da coordenação, constatou-se que pouquíssimos alunos
procuram os livros disponíveis na escola para leitura por livre e espontânea vontade.
Entre os meses de fevereiro de 2011 e junho de 2012, a coordenação pedagógica da
escola conseguiu contabilizar apenas cinco alunos num universo de
aproximadamente mil e duzentos, que procuraram livros para leitura em suas casas.
Um menino chamou-nos mais a atenção por pegar um livro por semana. Os demais
alunos leram por imposição do professor de Língua Portuguesa.
Essa impressão primeira traz outras interrogações e alavanca a pesquisa que
pretendemos empreender nesta dissertação: será que, verdadeiramente, os alunos
não gostam de ler na escola ou há outros elementos interferentes no processo? Se
existem, tais elementos são capazes de camuflar o desejo de leitura em ambientes
escolares? Será que a chamada má vontade para a leitura é reflexo externo de uma
insegurança muito potente que se traduz primeiramente em vergonha e mais
profundamente em medo? Se o medo de fato existe, como estado de espírito, será
componente exponencial para a baixa produção de leitura na escola?
Observando a questão por um ângulo mais amplo, a Secretaria de Educação
do Estado de São Paulo realiza, anualmente, estudos baseados nos resultados do
SARESP - Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo -
sobre a competência leitora do aluno dos Ensinos Fundamental e Médio. Para
buscar respostas quanto ao discurso do senso comum de que o aluno não gosta de
ler na escola, nos pautaremos, primeiramente, nos resultados dos estudos realizados
pelo SARESP 2011.
O SARESP avalia anualmente todas as escolas da rede estadual de ensino
regular que oferecem Educação Básica e as escolas municipais, técnicas e
particulares que manifestam interesse em participar da avaliação. Os resultados que
apresentam anualmente permitem à escola analisar o seu desempenho e, com o
10
apoio da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, melhorar a qualidade da
aprendizagem de seus alunos e da gestão escolar.
Os pontos da escala de proficiência foram agrupados no SARESP em quatro
níveis – Abaixo do básico, Básico, Adequado e Avançado – definidos a partir das
expectativas de aprendizagem (conteúdos, competências e habilidades)
estabelecidos para cada ano/série e disciplina do Currículo do Estado de São Paulo.
Essa classificação se apresenta com a seguinte descrição:
CLASSIFICAÇÃO NÍVEL DESCRIÇÃO
Insuficiente Abaixo do Básico Os alunos, neste nível, demonstram domínio insuficiente dos conteúdos, competências e habilidades desejáveis para o ano/série escolar em que se encontram.
Suficiente Básico Os alunos, neste nível, demonstram domínio mínimo dos conteúdos, competências e habilidades, mas possuem as estruturas necessárias para interagir com a proposta curricular no ano/série subsequente.
Suficiente Adequado Os alunos, neste nível, demonstram domínio pleno dos conteúdos, competências e habilidades desejáveis para o ano/série escolar em que se encontram.
Avançado Avançado Os alunos, neste nível, demonstram domínio dos conteúdos, competências e habilidades acima do requerido para o ano/série escolar em que se encontram.
Para o ano de 2011, a unidade escolar em que estudam os alunos
observados para a elaboração deste trabalho participou do SARESP com os
seguintes números de alunos:
7º ano do Ensino Fundamental = 70;
9º ano do Ensino Fundamental = 89.
11
Apresentaram as seguintes médias em Língua Portuguesa:
7º ano do Ensino Fundamental = 186,4;
9º ano do Ensino Fundamental = 215,2.
Essas notas são obtidas a partir do que a Secretaria de Educação chama de
“régua de proficiência” e a apresenta da seguinte maneira para Língua Portuguesa:
7º ano 9º ano
Abaixo do Básico <175 <200
Básico 175 a <225 200 a <275
Adequado 225 a <275 275 a <325
Avançado >274 >324
Como podemos observar, a nota obtida pelos alunos do 7º ano do Ensino
Fundamental foi de 186,4, o que os classifica com proficiência básica, demonstrando
domínio mínimo dos conteúdos, competências e habilidades para o ano/série em que
estudam. Os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental obtiveram a média de 215,2 e
ficaram, também, no nível básico.
A Secretaria de Educação disponibiliza, nesse estudo, o percentual de alunos
alocados em cada nível de proficiência como destacamos a seguir1:
7º 9º
Insuficiente Abaixo do Básico 44,1 39,3
Suficiente Básico 35,3 53,9
Suficiente Adequado 17,6 6,7
Avançado Avançado 2,9 0,0
Verificou-se que a maioria dos alunos da escola em estudo ficou classificada
entre os níveis “abaixo do básico” e “básico” e que no 7º ano há mais alunos com
domínio insuficiente dos conteúdos, competências e habilidades desejáveis que no
9º ano. Porém, tanto no 7º quanto no 9º anos o índice de alunos classificados no
nível adequado mostra-se baixíssimo. Apenas 17,6% no 7º ano, com queda drástica
1 Relatório de Língua Portuguesa do SARESP 2011.
12
para 6,7% no 9º ano (alunos que demonstram domínio pleno dos conteúdos,
competências e habilidades desejáveis para o ano/série escolar em que se
encontram).
Com esses resultados, percebe-se um decréscimo na qualidade de
proficiência do aluno, no tocante aos conhecimentos básicos necessários para a
série/ano em que estuda, à medida que avança seus estudos pelo Ensino
Fundamental II.
Sob essa perspectiva, algo de muito errado acontece na escola. Como é
possível o aluno demonstrar determinado conhecimento no 7º ano e dois anos
depois demonstrar menos conhecimento que o anterior? Fica a impressão de que o
aluno vem “desaprendendo” na escola, apesar da pequena elevação no número de
alunos tanto do 7º como do 9º anos nos níveis Básico e Adequado, quando
comparados entre os anos de 2010 e 2011 como podemos observar no quadro
abaixo.
7º 9º
2010 2011 2010 2011
Insuficiente Abaixo do Básico 39,2 44,1 51,5 39,3
Suficiente Básico 43,8 35,3 44,3 53,9
Suficiente Adequado 15,4 17,6 4,1 6,7
Avançado Avançado 1,5 2,9 0,0 0,0
De acordo com os dados expostos, o aumento significativo de alunos nos
níveis básico e adequado demonstra que esses alunos dominam os conteúdos, as
competências e habilidades mínimas desejáveis para o ano/série escolar em que se
encontram. Entretanto, ainda existe uma porcentagem significativa de alunos
situados no nível Abaixo do básico no 7º ano. Para esses alunos, a escola deverá
disponibilizar aulas de reforço e recuperação.
O índice de alunos no nível Avançado, nível em que os alunos devem
demonstram domínio dos conteúdos, competências e habilidades acima dos
desejáveis para o ano/série escolar em que se encontram, apresenta um baixo
percentual de alunos no 7º ano e inexistência de alunos no 9º ano. Esses dados
permitem inferir que, à medida que permanecem na escola, os alunos do Ensino
13
Fundamental II buscam aprender apenas os conteúdos, habilidades e competências
mínimas necessárias ao seu ciclo e apresentam progresso insuficiente à sua
capacidade de aprendizado.
Se o entendimento do texto é algo a ser construído, não há como haver
resposta única para o que o texto diz. Tudo vai depender da interação entre o que
está escrito e o que o leitor consegue formar em sua construção de mundo. Se o
entendimento do texto se dá na construção dialética entre autor e leitor, existe a
possibilidade de ter medo do que se lê?
Nossa experiência nos faz levantar a hipótese de que o medo existe na
produção de leitura e é fator interferente. Mas essa hipótese carrega outras
questões que solicitam pesquisa mais densa:
Como se dá a constituição discursiva desse medo?
Como o temor se projeta para o outro, como se mostra ou se esconde
na relação professor-aluno?
É possível verificar no dia-a-dia se há mecanismos pedagógicos que
amenizam ou amplificam a paixão do medo durante o ato de leitura?
Como o aluno se posiciona como sujeito que lê diante dos colegas e do
seu professor?
Para buscar essas respostas, elaboramos uma breve retrospectiva da leitura,
nos séculos XX e XXI, com base em estudos da Pedagogia da leitura, da
Psicolinguística e da Linguística textual, com a preocupação em observar os
caminhos percorridos pelo leitor para uma compreensão plausível do que lê, por
meio dos estudos de Leffa (1996), Smith (1989), Solé (1998), Colomer (2002),
Geraldi (2010), Kleiman (2010) e Koch & Elias (2010), entre outros autores, que
concebem a língua como uma atividade interativa, cuja significação implica a
mobilização de conhecimentos alocados na memória dos interlocutores por meio de
processamentos cognitivos.
Para o estudo do medo como um desgosto, preocupação como um mal
eminente, danoso ou penoso, nos pautamos nos estudos da retórica e da nova
retórica: Reboul (1998), Aristóteles (2000), Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005),
Meyer (2007) e Ferreira (2010), que entendem a elaboração do discurso como
construção de imagens de si mesmo e do outro, de modo que essas imagens
vinculam-se à finalidade discursiva.
14
Com base nesses aspectos teóricos, o objetivo da pesquisa é analisar a
existência ou não do medo no processo ensino-aprendizagem da leitura em sala de
aula.
Este trabalho justifica-se na medida em que permite a ampliação do
conhecimento sobre os processos de construção da competência leitora, enquanto
atividade que permeia a vida estudantil, assim como verifica a constituição do medo
como elemento interferente para a baixa produção de leitura na escola dos alunos do
Ensino Fundamental II como paixão que modifica os espíritos para tomadas de
decisões sobre o futuro leitor dos alunos.
Pretendemos saber, na existência do medo nas aulas de leitura, como se
manifesta, que sentimentos suscita e quais reações desencadeia. Que tipo de aluno
existe na sala de aula, se dominado pelo medo?
Para a elaboração da pesquisa, propusemos algumas atividades de leitura a
alunos dos 6º, 7º e 8º anos do Ensino Fundamental II e de escrita a alunos do 9º ano
do Ensino Fundamental II. Esse será nosso aporte prático para as justificativas
dadas no decorrer deste trabalho.
A fim de tornar clara a explanação dos dados, convém destacar os assuntos
tratados em cada uma das partes do trabalho. No capítulo 1, são expostos os
aspectos teóricos da leitura para aquisição da competência leitora e uma
retrospectiva da história, quando o texto era considerado um sistema linguístico que
seria estudado sem considerar outros fatores que não os estritamente linguísticos.
Trata-se também dos aspectos psicolinguísticos como verificação dos avanços
alcançados no estudo da leitura, quando Linguística e Psicologia se unem para
melhor entender os processos desencadeados pela mente na aquisição das
habilidades leitoras, e os aspectos pedagógicos como averiguação das estratégias
utilizadas para se ensinar leitura na escola e são apresentadas algumas estratégias
de ensino de leitura propostas por Solé (1998), Colomer (2002) e Elias (2010),
possíveis de serem utilizadas pelo professor de Língua Portuguesa que tenha como
objetivo diminuir a tensão e o medo do aluno quando realiza leitura em sala de aula,
estimular sua auto-estima e proporcionar confiança ao aluno na realização dessa
atividade como algo a fazer parte do seu cotidiano a partir de então.
No capítulo 2, explora-se o suscitar das paixões que a retórica nos apresenta
como inspiração para o aprendizado por meio do prazer e da felicidade. Trata-se do
15
medo enquanto paixão e da constituição do ethos do aluno e do professor no
processo ensino-aprendizagem.
No capítulo 3, descreve-se o estudo de campo realizado para verificação do
estado de espírito dos alunos do Ensino Fundamental II, quanto ao medo da leitura
na escola. O objetivo é descobrir o quanto existe de desinteresse e desânimo dos
alunos em relação à leitura em sala de aula, conforme afirmam os professores da
escola em estudo.
Nas considerações finais, há o relato dos resultados da pesquisa que objetiva
mostrar se existe o medo da leitura entre os alunos do Ensino Fundamental II, o
motivo desse medo e aventar a possibilidade de diminuí-lo nas aulas de leitura.
A escola em que atuo e onde realizei essas investigações situa-se no
município de Jandira, cidade metropolitana da Grande São Paulo. Constitui-se dos
Ensinos Fundamental II, Médio e EJA (Educação para jovens e adultos) distribuídos
em três períodos de aulas. Pela manhã, das 7 às 12h20, são 05 turmas de 9º anos e
05 turmas do Ensino Médio (1ª, 2ª e 3ª séries do ensino regular). À tarde, das 13h às
18h20, são 07 turmas do Ensino Fundamental II (6º, 7º e 8º anos) do ensino regular
e à noite, das 19h às 23h, 02 turmas do Ensino Médio (1ª e 2ª séries) do ensino
regular, 04 turmas do Ensino Fundamental II EJA (1º, 2º e 3º termos) e 04 turmas do
Ensino Médio (2º e 3º termos) da EJA, em um total de aproximadamente 1.200
alunos.
Para a elaboração desta pesquisa, foram propostas algumas atividades de
leitura a alunos dos 6º, 7º e 8º anos do Ensino Fundamental regular que estudam
nos períodos na manhã e da tarde.
Para a aquisição das respostas às dúvidas levantadas nesta pesquisa, foram
realizadas atividades acompanhadas de questionários específicos, sobre a leitura na
vida dos alunos do Ensino Fundamental II. Primeiramente, aplicou-se uma atividade
de leitura e interpretação de dois textos retirados do SARESP 2007, com questões
objetivas para 20 alunos do 6º ano em agosto de 2011. Nessa atividade, foram
inseridas questões dissertativas com o objetivo de descobrir como os alunos
imaginariam a realização da atividade e se gostam de atividades como a aplicada.
Num segundo momento, em outubro de 2011, retomamos as questões dissertativas
já aplicadas e solicitamos dos mesmos alunos do 6º ano respostas mais claras
quanto a suas expectativas à atividade realizada.
16
Para extrair maior exatidão nas respostas dos alunos, foi elaborada outra
atividade. A fim de ampliar o universo de observação, foi solicitado a 42 alunos do 6º
ano, 67 alunos do 7º ano e 56 alunos do 8º ano que falassem sobre seus medos, por
meio de questões mais objetivas, sobre a significação do medo para eles e o que
mais lhes causava medo na escola. Para 50 alunos do 9º ano, último ano deste ciclo
escolar, foi apresentada uma lista com 25 itens e solicitado que atribuíssem nota de
0 a 10 aos que mais lhes causam medo. Para estes últimos, também foi proposta a
elaboração de um texto em que relatassem a importância da escola e da leitura em
suas vidas.
17
CAPÍTULO 1
A LEITURA NA PERSPECTIVA DA LÍNGUÍSTICA TEXTUAL
A leitura é importante ao homem porque é por meio dela que se obtêm
informações, entra-se em contato com as novas descobertas, aprende-se a regular
os comportamentos do homem em seu convívio social. Há muito a leitura desperta
reflexões entre os estudiosos das áreas de Letras, Pedagogia e Psicologia, que
buscam entender como se dá o processo de aquisição da leitura e compreensão do
que se lê.
Ler é reconhecer o meio em que se vive. É fazer uso das suas experiências
pessoais para compreender as relações interpessoais e poder mantê-las, criticá-las,
modificá-las conforme convier para a aquisição de um conhecimento novo. Autores
como Lajolo (2007) e Geraldi (2010) chamam isso de leitura de mundo. Ler também
é identificar a importância da palavra, do diálogo nas ações humanas, entendê-lo em
seu significado mais amplo. Essa é a leitura da palavra. Porém, uma leitura é
dependente da outra, no momento em que não se lê o mundo senão por meio,
também, das palavras, não se consegue ler as palavras sem um conhecimento de
mundo.
De modo amplo, o homem desperta para uma nova maneira de ver o mundo e
relacionar-se com ele por meio da leitura. Também o aluno, quando orientado,
aprende a ver o mundo de maneira diferenciada. É preciso, porém, que a instituição
criada para a disseminação e ampliação das descobertas humanas cumpra o papel
que lhe foi conferido pela sociedade. O papel de permitir ao homem divulgar seu
entendimento sem o medo da reprovação. Que sua leitura seja considerada para
uma visão mais ampla dos conhecimentos que já fazem parte da sociedade.
Embora, por questões práticas, utilize-se o termo leitura, no singular, as
diferentes posições do leitor refletem diversos segmentos da realidade e, portanto,
várias leituras de um mesmo evento significativo. Se o objeto for, por exemplo, uma
casa, vai oferecer tantas leituras quantas forem as posições de cada um dos
observadores em relação à casa. O arquiteto fará uma leitura arquitetônica, o
sociólogo uma leitura sociológica, o ladrão uma leitura estratégica, e assim por
diante. Há diversas formas de leituras. Vistas em sentido lato ou estrito, pode-se ler
sinais não-linguísticos: tristeza nos olhos de alguém, a sorte na mão de uma pessoa
18
ou o passado de um povo nas ruínas de uma cidade. Não se lê, portanto, apenas a
palavra escrita, mas também, o próprio mundo que nos cerca.
Sabe-se, porém, que, no mundo da leitura, existem algumas convenções
essenciais para a compreensão da comunicação. A convencionalidade da linguagem
assume grande importância no aprendizado da leitura porque identifica essa
linguagem como um contrato social, com todas as pessoas que estão a nossa volta.
Então, a leitura é uma atividade aprendida em contexto social.
Por ser uma questão ampla, interessa investigar a leitura apenas no âmbito
escolar. Por isso, nossos estudos procuram observar como são trabalhadas as
atividades de leitura na escola.
Para se falar em leitura, optamos por percorrer os caminhos que nos levam à
concepção de texto que existe hoje. Afinal, a leitura dos signos linguísticos é a
atividade mais recorrente nas salas de aulas em todas as disciplinas.
À medida que conhecemos a evolução das concepções elaboradas para
caracterização do que seja texto, conseguimos entender os caminhos percorridos
para identificar se o texto pode contribuir na ampliação do conhecimento.
Buscaremos essa evolução na história linguístico-pedagógica da leitura. Afinal, para
entender o que motiva a existência do medo, é preciso conhecer os caminhos
teóricos da leitura.
1.1 ANTES DA SOCIOCOGNIÇÃO
Na sua fase inicial, que vai, aproximadamente, da segunda metade da década
de 1960 até meados da década de 1970, a linguística textual se preocupa,
primeiramente, com o estudo dos mecanismos interfrásticos que são parte do
sistema gramatical da língua. O texto é então concebido como uma “frase complexa”,
“signo linguístico primário” (Hartmann, 1968, apud Koch, 2009, p. 3). Nesse
momento, as pesquisas se concentram prioritariamente no estudo dos recursos de
coesão textual, a qual, para os estudiosos, de certa forma, engloba o da coerência,
nesse momento entendida como mera propriedade ou característica do texto.
Ainda nessa primeira fase da linguística textual, a partir da ideia de que o
texto é simplesmente a unidade linguística mais alta, superior à sentença, surge,
particularmente entre os linguistas de formação gerativista, a preocupação em
19
construir gramáticas textuais, por analogia com as gramáticas da frase. Exemplos
dessas gramáticas são as postuladas por Weinrich (1964, 1971,1976), Petöfi (1973)
e van Dijk (1972).
Para Harald Weinrich (1964, 1969, 1976 apud Koch 2009 p.7), o texto é uma
estrutura determinativa, em que tudo está necessariamente interligado. Assim, para
ele, toda linguística é necessariamente linguística de texto. Também Brinker (1973),
Rieser (1973, 1978) e Viehweger (1976, 1977) postulam que, na superfície do texto,
apenas poderia ser encontrada parte do seu sentido, mas nunca a totalidade de suas
informações semânticas, uma vez que, para isto, é indispensável reportar-se à sua
estrutura semântica de base.
A partir dessa nova maneira de ver o texto, os linguistas sentem a
necessidade de ir além da abordagem sintático-semântica, visto ser o texto a
unidade básica de comunicação/interação humana. É neste momento que surgem as
teorias de base comunicativa, nas quais ora apenas se procura integrar
sistematicamente fatores contextuais na descrição dos textos (Isenberg, 1976;
Dressler, 1974, Petöfi, 1972, 1973), ora a pragmática é tomada como ponto de
partida e de chegada para tal descrição (Motsch, 1975; Gülich & Raible, 1977;
Schmidt, 1978 apud Koch, 2009, p.13).
Com isso, a pesquisa em linguística textual ganhou uma nova dimensão: já
não se trata de pesquisar a língua como sistema autônomo, mas sim o seu
funcionamento nos processos comunicativos de uma sociedade concreta. Passam a
interessar os “textos-em-funções” (Schmidt, 1973; Gülich & Raible, 1977 apud Koch,
2009, p.14). Isto é, os textos deixam de ser vistos como produtos acabados, que
devem ser analisados sintática ou semanticamente, e passam a ser considerados
elementos constitutivos de uma atividade complexa, como instrumentos de
realização de intenções comunicativas e sociais do falante. (Heinemann, 1982, apud
Koch, 2009, p.14).
Assim, na metade da década de 70, começa a ser desenvolvido um modelo
de base que compreendia a língua como uma forma específica de comunicação
social, da atividade verbal humana, interconectada com outras atividades do ser
humano.
Schmidt (1973, apud Koch, 2009, p.16) define o texto como todo componente
verbalmente enunciado de um ato de comunicação pertinente a um jogo de atuação
comunicativa. Também para Motsch & Pasch (1987 apud Koch, 2009), o texto é uma
20
sequência hierarquicamente organizada de atividades realizadas pelos
interlocutores, ou seja, a enunciação é sempre movida por uma intenção de atingir
determinado objetivo ilocucional.
Com todos esses movimentos, o conceito de coerência passa a incorporar, ao
lado dos fatores sintático-semânticos, uma série de fatores de ordem pragmática e
contextual. Nesse momento, Charolles (1983, apud Koch, 2009) inicia uma nova
visão sobre o conceito de coerência textual, passando a considerá-la um “princípio
de interpretabilidade do discurso” o que o leva a postular que não existem
sequências de enunciados incoerentes em si, visto que, numa interação, é sempre
possível construir um contexto em que uma sequência aparentemente incoerente faz
sentido.
Somando-se as inquietações de Charolles (1983), a partir da década de 1980,
com a tônica nas operações de ordem cognitiva, o texto passa a ser considerado
resultado de processos mentais. Comentaremos esses processos a seguir, pois, a
partir daqui a linguística se une à psicologia para averiguar como a mente processa o
conhecimento adquirido a partir das leituras realizadas. É o chamado terceiro
momento da linguística textual, que recebe essa denominação não por haver
distinções cronológicas em suas fases, mas por essa distinção se dar por meio do
estudo tipológico dos textos.
1.2 A PARTIR DA SOCIOCOGNIÇÃO
Com a ênfase dada pela Psicologia ao processamento mental a partir dos
anos 1980, para entendimento do texto são consideradas todas as experiências
adquiridas anteriormente ao ato da leitura. O leitor traz para a situação comunicativa
determinadas expectativas e ativa significações ao que lê na tentativa de
compreensão do texto, a partir das interiorizações do mundo, em sua memória, por
meio das representações mentais. Explica-se assim a causa de um texto ter leituras
diferentes para diversos leitores.
Para Beaugrande & Dressler (1981), o texto é originado por uma
multiplicidade de operações cognitivas interligadas, de modo que cabe à linguística
textual desenvolver modelos procedurais de descrição textual capazes de dar conta
dos processos cognitivos que permitem a integração dos diversos sistemas de
21
conhecimento dos parceiros na comunicação, na descrição e na descoberta de
procedimentos para sua atualização e tratamento no quadro das motivações e
estratégias da produção e compreensão de textos.
Atualmente e de forma geral, as representações são conectadas por três
sistemas de conhecimento: a) o linguístico, conhecimento de língua; b) o
enciclopédico, conhecimento de mundo; e c) o sociointeracional, conhecimento das
situações discursivas
Também Heinemann & Viehweger (1991, apud Koch, 2009, p.22) postulam
que, para o processamento textual, existem sistemas de conhecimento: o linguístico,
o enciclopédico, o interacional e o referente a modelos textuais globais; e que esse
processamento textual é estratégico. As estratégias de processamento textual
implicam a mobilização on line dos diversos sistemas de conhecimento.
O conhecimento linguístico corresponde ao conhecimento do léxico e
da gramática, responsável pela escolha dos termos e a organização do
material linguístico na superfície textual, inclusive dos elementos
coesivos.
O conhecimento enciclopédico, ou de mundo, compreende as
informações armazenadas na memória de cada indivíduo. O
conhecimento de mundo é o conhecimento declarativo, manifestado por
enunciações acerca dos fatos do mundo.
O conhecimento interacional relaciona-se com a dimensão interpessoal
da linguagem, ou seja, com a realização de certas ações por meio da
linguagem. Divide-se em:
a) conhecimento ilocucional: referente aos meios diretos e indiretos
utilizados para atingir um dado objetivo;
b) conhecimento comunicacional: ligado ao anterior, relaciona-se com
os meios adequados para atingir os objetivos desejados;
c) conhecimento metacomunicativo: refere-se aos meios empregados
para prevenir e evitar distúrbios na comunicação (procedimentos de
atenuação, paráfrases, parênteses de esclarecimento, entre outros).
A partir do conceito de sistemas de conhecimento, as ciências cognitivas
clássicas levantam questionamentos sobre os processos cognitivos que acontecem
22
dentro da mente e como esses são ativados para a solução de problemas cotidianos.
Para autores como Varela, Thompson e Rosh (1992, apud Koch, 2009, p. 30), a
cognição é o resultado das ações e das capacidades sensório-motoras. Isto quer
dizer que muito dela acontece fora das mentes e não somente dentro delas: a
cognição é um fenômeno situado e o texto passa a ser considerado o próprio lugar
da interação entre os interlocutores, sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se
constroem e por ele são construídos.
Mente e corpo não são duas entidades estanques. A produção de linguagem
constitui atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos que se
realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície
textual e na sua forma de organização, que requer não apenas a mobilização de um
vasto conjunto de saberes, mas a sua reconstrução – dos próprios sujeitos – no
momento da interação verbal.
Desta forma, na base da atividade linguística encontramos a interação e o
compartilhar de conhecimentos e de atenção: os eventos linguísticos não são a
reunião de vários atos individuais e independentes. São, ao contrário, uma atividade
que se faz com os outros, conjuntamente. No dizer de Clark (1996 apud Koch, 2009,
p. 31), a língua é um tipo de ação conjunta. É por isso que se considera o texto o
próprio lugar da interação e os interlocutores, sujeitos ativos que – dialogicamente –
nele se constroem e por ele são construídos. O leitor passa a ser visto como sistema
complexo de transformação da informação e não um mero armazenador de
representações estanques.
Leffa (1996), numa perspectiva psicolinguística conceitua a leitura como
processo de representação.
Ler é, na sua essência, olhar para uma coisa e ver outra. A leitura não se dá por acesso direto à realidade, mas por intermediação de outros elementos da realidade. Ler é, portanto, reconhecer o mundo através de espelhos. Como esses espelhos oferecem imagens fragmentadas do mundo, a verdadeira leitura só é possível quando se tem um conhecimento prévio desse mundo. (LEFFA, 1996, p. 10)
O autor diz que ler é usar segmentos da realidade para chegar a outros
segmentos e contrasta dois conceitos para o processo da leitura: (a) ler é extrair
significado do texto e (b) ler é atribuir significado ao texto.
Ao usar o verbo extrair, dá-se mais importância ao texto. O significado pode
estar em vários lugares, põe-se o significado dentro do texto, que é visto como uma
23
mina, por exemplo, com inúmeros corredores subterrâneos, cheia de riquezas que
somente poderão ser encontradas se forem persistentemente exploradas pelo leitor.
Ao utilizar o verbo atribuir, põe-se ênfase no leitor, pois o texto não contém a
realidade, apenas a reflete, entremeado de inúmeras lacunas que o leitor vai
preencher com o conhecimento prévio que possui do mundo. O significado não está
no texto, mas na série de acontecimentos que o texto desencadeia na mente do
leitor.
Sobre esse contraste, encontramos no artigo de Silva e Menegassi (2002)
uma possível explicação ao pensamento de Leffa (1996) ao opor tais conceitos.
Trazem em seu artigo a significação dos termos atribuir e extrair:
1. Atribuir: imputar, conferir; conceder, reclamar; dar; reivindicar;
tomar a si; considerar como autor, como origem ou causa.
2. Extrair: tirar para fora; arrancar; resumir; colher; separar.
(SILVA e MENEGASSI, 2002, p. 40)
E comparam essas significações com as que encontram nos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCNs (Brasil, 1997 e 1998): “extrair informação da escrita
não é apenas decodificar letra por letra, palavra por palavra, mas leitura fluente só se
dá quando o leitor utiliza as estratégias como: selecionar, antecipar, inferir e
verificar”.
Como exemplo, Silva e Menegassi (2002) trazem a descrição de uma
atividade observada na obra de Kleiman (1993), em que a leitura é realizada palavra
por palavra quando o aluno busca no texto trechos decodificados em uma pergunta
elaborada pelo professor. Na atividade, o aluno, de fato, realiza apenas uma
extração da informação expressa uma vez que busca com o passar dos olhos pelo
texto, palavras idênticas às da pergunta, por acreditar conseguir, assim, uma
resposta adequada à atividade proposta. Para este aluno toda e qualquer
significação do texto deverá estar expressa em suas linhas corroborando a fala de
Leffa (1996, p. 12) de que “o texto tem um significado preciso, exato e completo”.
Assim como Kleiman, também nós questionamos se isso pode ser
considerado leitura uma vez que, apesar de encontrar uma resposta possivelmente
coerente à pergunta do professor, o aluno não conseguiu atribuir significação ao
texto lido.
24
Psicologia e Linguística cognitiva então se unem ao entenderem que o leitor
não extrai um significado do texto. Muito pelo contrário, o que ele faz é construir esse
significado com base no texto e recorrer ao seu conhecimento prévio. Dependendo
do conhecimento prévio, mas também das metas estabelecidas, e das experiências
do leitor, o resultado da construção pode ser diferente.
Um texto não é um portador de significados. Pelo contrário, ele serve de estímulo para processos mentais de construção que são conduzidos, em parte, pela informação externa do texto e, em outra, pela informação interna do conhecimento prévio (armazenada na memória semântica). (SCHNOTZ, W., 2009, p. 168)
O autor quer dizer alguma coisa em seu texto e o leitor tenta compreender o
que o autor quis dizer. Quanto maior o grau de concordância entre a compreensão
do leitor e o querer dizer do autor, mais bem-sucedida terá sido a comunicação
textual entre ambos. Às vezes o medo de não compreender o que o autor quis dizer,
ou de expor essa compreensão a um auditório, leva o leitor a ficar inseguro quanto
ao que entendeu ou não do texto e isso não pode ser preferível à exposição oral e
ao julgamento do auditório. A dúvida não pode ter o lugar da interação.
Eis uma importante função da escola no processo de aquisição da
competência leitora: não permitir que o medo domine o aluno e torne-o inseguro a
respeito do entendimento do que lê. A escola não deve permitir que se endureça a
ponto de não sentir, não vibrar, não praticar o delectare (o lado estimulante do
auditório, aquele que movimenta o gosto) durante o ato de leitura. É em sociedade
que se adquirem os recursos de comunicação e compreensão do mundo a nossa
volta. Precisamos da convivência para que, por meio da interação, o texto se
constitua coerente com o que pretende transmitir. A escola é a primeira instituição a
juntar, num mesmo espaço físico, pessoas com históricos e experiências diferentes,
mas com objetivos semelhantes, para que, juntos e individualmente, possam:
compreender a mensagem trazida pelos inúmeros textos presentes no dia-a-dia.
25
1.3 PERSPECTIVAS PARA O ENSINO
É função primordial da escola ensinar a ler. É função essencial da escola
permitir ao aluno a percepção de que seu espaço é destinado às trocas de saberes
e, com isso, à aquisição de conhecimento novo, aos erros e incertezas, às
possibilidades e hipóteses. É assim que se forma o homem integral, por meio do
aprendizado, fazendo-o sentir seu pertencimento ao mundo para atuar, criticar e
modificá-lo se preciso for, a fim de permitir, por meio de sua atuação, a construção
de um mundo melhor.
Essa atuação se faz necessária por meio da palavra que, capaz de manipular
o ouvinte, pode torná-lo crítico ou medroso. Mais uma vez a escola vem ao encontro
da formação do homem por meio da palavra. Se queremos seres críticos,
precisamos, enquanto escola, ensiná-los a entender as dimensões persuasivas da
palavra que pode, se provocar o medo, fazê-lo crer na sua incapacidade de entender
o texto.
Ao professor cabe mediar o uso dessa palavra. É por meio de seu discurso,
representante que é da instituição educacional, que haverá a promoção do aluno ao
prazer de publicar o que sentiu ou simplesmente aderir ao silêncio e à incerteza de
sua interpretação quanto ao dizer do texto.
Para Colomer (2002), nenhum aluno chega à escola desprovido de
conhecimento. Não nascemos prontos e acabados, não nascemos vazios (nem
biologicamente) (GERALDI, 2010). Chegamos à escola com amplos conhecimentos
do mundo em que vivemos. É em contato com a família, por exemplo, que
aprendemos como nos comportar em lugares diferentes. É em contato com os
colegas que descobrimos o sabor da aventura na brincadeira de rua ou as regras de
como utilizar o jogo novo do computador. Todas essas atividades são realizadas
graças à leitura, num sentido lato, dos comportamentos dos familiares e dos colegas,
sem que, muitas vezes, alguém precise ensinar. De qualquer forma, são atividades
possíveis de aprender realizando-as.
Com a leitura, em sentido estrito, não é diferente: aprendemos a ler, lendo.
Desse modo, ressalta-se a importância da escola, que surge como espaço social que
possibilita às crianças o aprendizado da leitura. Mesmo que esse processo tenha
início em casa, é na escola que encontramos grande diversidade de ideias; é lá que
26
encontramos uma grande quantidade de pessoas advindas de realidades bem
diferenciadas:
A escola é o lugar privilegiado para que a interação aconteça por meio da interlocução entre seus membros. É na interlocução que se formam os conceitos, permitindo aos sujeitos a compreensão do mundo para a produção de ação e/ou transformação do seu meio. (GERALDI, 2010, p. 34)
Retomamos o sistema cognitivo nomeado por Heinemann & Viehweger (1991,
apud Koch, 2009) de “conhecimento do mundo”, como algo que, nunca estanque,
acompanha as constantes mudanças existentes na relação humana. É este o
sistema que atua nos esquemas interacionais do aluno na compreensão do mundo a
sua volta.
Quando a família era uma constituição patriarcal, toda ela se constituía em
volta de um pai e uma mãe, únicos e para a vida toda, como formadores do caráter e
da boa educação, assim como a célula social que inicia os hábitos escolares da
criança. Cabia à escola apenas aperfeiçoar tais hábitos conforme regras instituídas
por uma sociedade que valorizava a linguagem como reprodutora das regras
gramaticais. Esse conhecimento era propício a uma escola que buscava identificar
um culpado quando o aluno não aprendia. Se a família não fizer sua parte, tão mais
difícil será para a escola cumprir a sua.
A família atual rompe com os paradigmas da família patriarcal e possui
estruturas que se constituem de elementos outros que não somente pai, mãe e
filhos. Podemos encontrar pai com sua companheira e filhos dela, advindos de
outros relacionamentos. Mãe com seu companheiro e os filhos dele. Mãe, seus filhos
e sua companheira. Pai e seu companheiro com filhos de outros relacionamentos.
Avós no papel de pais por possuírem a guarda dos netos e, portanto, responsáveis
legais por eles. Todas essas novas compleições familiares alteram o conhecimento
de mundo e causam reflexões no modo de ser e de estar no mundo de nossos
alunos, assim como todo o meio em que ele vive: o comportamento dos colegas da
rua, dos colegas da escola, dos personagens que acompanham na TV e na Internet.
Não só no âmbito familiar percebemos novos paradigmas sociais. Também
quanto à educação e formação, especificamente da mulher, observamos novos
estilos de vida, diferentes dos praticados pelas nossas avós, por exemplo, que eram
educadas para se tornarem boas mães e esposas. Hoje, observamos nas mulheres
pessoas críticas, com opiniões formadas e estilo de vida bem diferentes do das
27
nossas avós. Mais envolvidas com o mundo do trabalho e os problemas sociais
existentes, buscam certa aproximação ao patamar social destinado, até então, ao
homem no que se refere à independência social e econômica.
Com novos objetivos de vida, as pessoas realizam leituras sociais de acordo
com a comunidade em que vivem. Como exemplo, citamos a leitura observada em
algumas de nossas alunas que, por meio da letra do funk, pautam sua existência, e
tornam-se “cachorras”, “preparadas”, sem a consciência da animalização propiciada
pela letra da música. Talvez e tão somente pela busca de construção de um estilo
próprio de vida que as evidenciem perante a sociedade. Em sua consciência,
buscam garantir sua existência, sua independência, senão econômica, pelo menos
social. O conhecimento de mundo de cada leitor é o que o diferencia quanto à sua
ação transformadora no meio em que vive e aquisição de conhecimentos novos.
Somente posso extrair sentido do mundo em termos do que já sei. Toda a ordem e complexidade que percebo no mundo à minha volta devem refletir uma ordem e complexidade em minha própria mente. Qualquer coisa que eu não possa relacionar à teoria de mundo em minha mente deixará de fazer sentido para mim. Ficarei perplexo e confuso (SMITH, 1989, p. 23)
Ademais, o que distingue um texto de uma sucessão aleatória de orações é a
coerência. Por isso, a compreensão de textos é um processo de construção de
coerência. Para que o leitor possa ativar parte do seu conhecimento prévio, relevante
no momento para o tema estudado, é preciso que ele saiba do que se fala naquele
momento. O leitor precisa dirigir o foco da sua atenção sempre para o tema e, no
caso de uma mudança de tema, precisa deslocar esse foco conforme as
circunstâncias.
A linguística textual identifica esse fenômeno na obra de van Dijk (1992) na
qual encontramos um exemplo desse tipo de compreensão com a expressão “Eu
virei amanhã”. O autor reforça a ideia de que falante e ouvinte devem ser
conhecedores do contexto da produção do enunciado para que o ouvinte
compreenda, por exemplo, se a expressão refere-se a um aviso ou a uma ameaça e
a interação se concretize.
Vários elementos deverão ser considerados como características do contexto.
No exemplo acima, seria importante fazer parte do conhecimento prévio do ouvinte a
localização do falante ao proferir a expressão, o tom de voz por ele utilizado, os
gestos corporais expressos no momento da fala.
28
Uma vez que as ações são realizadas em contextos, estes não são estáveis,
mas dinâmicos: mudam de acordo com os princípios causais, convenções e demais
restrições sobre as sequências de eventos e ações.
Gumperz (1982) chama de pistas de contextualização e classifica essas pistas
em linguísticas (alternância de código, de dialeto ou de estilo); paralinguísticas
(pausas, o tempo da fala, as hesitações); prosódicas (entonação, o acento, o tom da
voz) e não-verbais (gestos, posturas, olhares).
O autor parte do pressuposto de que uma elocução pode ser compreendida
de várias maneiras e que as pessoas decidem interpretar uma determinada elocução
com base nas suas definições do que está acontecendo no momento da interação.
Portanto, essa interação é um processo dinâmico que se desenvolve e sofre
alterações à medida que os participantes interagem.
Koch (2011) nos remete aos criadores dos termos “contexto de situação” e
“contexto de cultura” para mostrar o início dos estudos que buscam tratar da
definição de contexto. Diz que Firth (1957), partindo das ideias de Malinowski (1923),
deu grande ênfase ao contexto social. Defendia a posição de que palavras e
sentenças não têm sentido em si mesmas, fora de seus contextos de uso.
Na fase inicial das pesquisas sobre o texto, que se tem denominado a fase da
análise transfrástica, o contexto era visto apenas como o entorno verbal, uma
sequência ou combinações de frases. Com o advento da Teoria dos Atos de Fala e
da Teoria da Atividade Verbal, a Pragmática volta-se para o estudo e a descrição das
ações que os usuários da língua, em situações de interlocução, realizam através da
linguagem, considerada esta, portanto, como atividade intencional e social, visando a
determinados fins.
Foi então que, aos poucos, outro tipo de contexto passou a ser levado em
conta: o contexto sociocognitivo (conhecimentos enciclopédicos, sociointeracionais,
procedural, etc.). Para que duas ou mais pessoas possam compreender-se
mutuamente, é preciso que seus contextos cognitivos sejam, pelo menos,
parcialmente semelhantes, porque contexto é um conjunto de suposições trazidas
para a interpretação de um enunciado.
O contexto entendido hoje pela linguística textual engloba não só o texto
escrito e/ou falado como também a situação de interação imediata, o entorno
sociopolítico-cultural e o contexto sociocognitivo dos interlocutores. Não existem
textos totalmente explícitos. O produtor de um texto necessita proceder ao
29
“balanceamento” do que necessita ser explicitado textualmente e do que pode
permanecer implícito, por ser recuperável via inferenciação. O contexto é, então, um
conjunto de suposições trazidas para a interpretação de um enunciado (Koch, 2011,
p. 29).
A ativação do conhecimento prévio é, então, essencial à compreensão, pois é
o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto que lhe permite fazer as inferências
necessárias para relacionar diferentes partes discretas do texto num todo coerente.
O mero passar de olhos pela linha não é leitura, pois leitura implica uma
atividade de procura por parte do leitor, no seu passado, de lembranças e
conhecimentos, daqueles que são relevantes para a compreensão de um texto que
fornece pistas e sugere caminhos, mas que certamente não explicita tudo o que seria
possível.
Se o texto fornece pistas e sugere caminhos para sua compreensão, existe
um outro aspecto, tão importante quanto o conhecimento prévio, para que aconteça
esse processo: a previsão. Nossa habilidade de previsão depende do conhecimento
prévio que possuímos. Somos capazes de prever o final de uma história, por
exemplo, a partir do que já sabemos sobre histórias. A previsão é o combustível que
mantém a vontade de continuar a ler um texto.
Lemos o livro ou o texto até o fim para verificação das hipóteses que
levantamos para tais finais. Precisamos confirmar nossas previsões e, quando elas
são confirmadas nos sentimos satisfeitos por pensar de maneira parecida à do autor.
Quando a previsão não se concretiza, ficamos surpresos ou decepcionados por não
conseguirmos manter o mesmo raciocínio do autor para o desfecho da história. Essa
decepção, porém, há de contribuir, de algum modo, para a ampliação do
conhecimento de mundo, pois que elaboramos um final diferente do autor, mas
coerente, senão plausível, ao desenrolar do texto.
Mesmo assim, desenvolvemos a habilidade de compreensão do que lemos,
seja com um final semelhante ao que prevíamos, seja com um desfecho totalmente
diferente; portanto à medida que prevemos algo, buscamos compreendê-lo.
Como é que sabemos então, se realmente compreendemos o que lemos? À
medida que o texto responde com clareza nossas perguntas sobre o que,
supostamente, irá acontecer no próximo capítulo, estamos compreendendo o
desenvolvimento da narrativa. Precisamos então, estar atentos para que as
respostas dadas às nossas perguntas não sejam ambíguas.
30
E elas não o serão quando nos deparamos com textos que tragam algum tipo
de significado para nós. Se lermos um texto que não nos permita ativar nossos
conhecimentos prévios para elaboração das previsões, então não conseguiremos
entender o exposto.
Há outra possibilidade de não entendermos o texto que lemos. Quando nosso
aprendizado se limita à decodificação das palavras e trabalha apenas com a
significação dos termos separadamente, não conseguimos entender o significado do
conjunto de palavras de que tratam uma sentença e, por conseguinte, o conjunto de
sentenças que formam o texto.
Smith (1989), em sua obra sobre a compreensão da leitura, trata da
importância em se realizar a leitura de forma rápida. O autor traz à luz estudos
psicolinguísticos sobre como o cérebro processa as palavras lidas pelos olhos na
produção de sentido do texto. Segundo esses estudos, o cérebro deve ir sempre em
frente rapidamente, para evitar emaranhar-se nos detalhes visuais do texto.
A leitura lenta a ser evitada é a superatenção para detalhes que mantêm o leitor à beira da visão em túnel. O conselho dado em salas de aula, para que os alunos leiam mais devagar, pode facilmente levar a uma completa confusão. Um leitor tende a não compreender, quando lê lentamente mais do que 200 palavras por minuto, porque uma taxa menor significa que as palavras estão sendo lidas isoladamente, em vez de como sentenças significativas. (SMITH, 1989, p. 102)
É então que percebemos a necessidade de se ensinar aos leitores iniciantes a
lerem o texto buscando seu significado no conjunto de palavras que compõem uma
ideia, mostrando-lhes as muitas significações que um mesmo vocábulo pode conter
em contextos diferentes.
É preciso que o leitor consiga distinguir a diferença entre saber o significado
de uma determinada palavra do texto em detrimento de conseguir elaborar e
responder perguntas a respeito do mesmo. Como a compreensão não é algo que
possa ser mensurado, o leitor precisa aprender estratégias que lhe permita reduzir
incertezas sobre o texto. A compreensão do texto só acontece quando as incertezas
são reduzidas.
A compreensão não pode ser absolutamente medida, apesar de constantes esforços educacionais para fazê-lo, uma vez que não é uma quantidade de qualquer coisa. A compreensão não possui dimensão ou peso, não é incremental. (SMITH, 1989, p. 72)
31
Existe ainda a possibilidade de o leitor pensar que compreendeu o texto, mas
não conseguir responder às questões que elabora em suas previsões. Até porque
nem todos os leitores de um mesmo texto elaboram as mesmas questões para a
compreensão. O que pode ser compreensível para um leitor pode não ser para outro.
Tudo dependerá dos conhecimentos de mundo adquiridos.
É importante ressaltar, ainda, que, se temos clara a finalidade para qual
lemos, compreendermos mais facilmente a leitura realizada. “A base para uma leitura
fluente é a habilidade para encontrar respostas, na informação visual da linguagem
escrita, para as questões particulares que estão sendo formuladas”. (SMITH, 1989,
p. 202).
A linguagem escrita e a oral também fazem sentido quando os
leitores/ouvintes podem associá-las ao que já sabem e são consideradas
interessantes quando podem ser relacionadas ao que o leitor/ouvinte deseja saber.
Somente quando não podemos, de maneira alguma, fazer previsões é que o texto
será totalmente incompreensível.
Em nossas observações, notamos que o professor de língua portuguesa não
realiza, em suas aulas de leitura, atividades em que os alunos possam compartilhar
os conhecimentos que detêm sobre o que vai ser lido; menos ainda, atividades que
promovam previsões sobre o tema proposto. Talvez o professor não tenha percebido
que a ausência dessas atividades ajude na promoção da insegurança, da incerteza,
do medo de não entender nada do proposto como atividade da aula.
Smith (1989) nos fala de três elementos que parecem determinar o que é
aprendido: demonstrações, engajamento e sensibilidade. As demonstrações são a
mostra de como algo pode ser feito. Para que uma criança aprenda a ler com prazer,
precisará de demonstrações de leitura prazerosa por parte dos pais, dos parentes,
dos professores, enfim, de alguém que demonstre quão prazeroso é saber ler.
O engajamento é o aprender com a demonstração. A partir da observação da
demonstração do adulto, a criança pratica as mesmas ações, diminuindo, assim,
suas incertezas a respeito da ação, produzindo o aprendizado. É claro que a criança
pode praticar ações sem que tenham observado e produzido aprendizado. Mas, a
possibilidade de erro fica maior.
Quando a diminuição do erro acontece, também o medo tende a diminuir até
que desapareça. É então que sentimos confiança, paixão contrária ao temor (medo),
de que estamos no caminho certo.
32
A sensibilidade é definida pelo autor como a ausência de qualquer expectativa
de que o aprendizado não ocorra ou que será difícil. Todos nascemos com
sensibilidade, mas algumas experiências nos movem a ter medo do resultado de
algumas ações. Quando esse temor surge e traz dúvida sobre nosso sucesso, então
perdemos nossa sensibilidade e o aprendizado torna-se mais difícil ou pode até não
acontecer.
Há muito percebemos o interesse dos estudos dos cursos stricto sensu em
língua portuguesa e linguística em proporcionar, com base em observações
realizadas em sala de aula, um legado de estratégias para que possam, no auxílio
ao professor, promover aulas de leitura com propósitos definidos e estratégias
simples. Para o cumprimento dos objetivos deste trabalho, quatro autoras aqui se
farão presentes com suas propostas de trabalhos com o objetivo de auxiliar o
professor no seu discurso cotidiano de maneira que possa persuadir o aluno a uma
leitura capaz de torná-lo crítico, construtor da própria história e flexível aos desafios
que o mundo da linguagem lhe proporciona todos os dias.
Em Solé (1998), Colomer (2002) e Koch e Elias (2010) encontramos algumas
estratégias que aqui explicitaremos com o objetivo de estimular o professor a utilizá-
las e, a partir de sua própria experiência, elaborar novas estratégias que possam
contribuir para a formação de leitores mais confiantes e proficientes.
Em retórica, o papel do orador é fundamental para que haja a adesão do
auditório. Tomando a sala de aula como lugar retórico, o professor como orador, e os
alunos como auditório verificamos a existência de um problema retórico: como
ensinar leitura que contribua para a formação de leitores competentes e confiantes?
Para Solé (1998), devemos ensinar estratégias de compreensão aos alunos
porque queremos formar leitores autônomos, capazes de enfrentar de forma
inteligente, textos de índole muito diversa e
(...) porque formar leitores autônomos também significa formar leitores capazes de aprender a partir dos textos. Para isso, quem lê deve ser capaz de interrogar-se sobre sua própria compreensão, estabelecer relações entre o que lê e o que faz parte do seu acervo pessoal, questionar seu conhecimento e modificá-lo, estabelecer generalizações que permitam transferir o que foi aprendido para outros contextos diferentes. (SOLÉ, 1998, p. 72)
33
Para Comoler (2002), a escola é justamente a instituição encarregada de
oferecer a oportunidade de assimilar a modalidade mais abstrata de representação
verbal, a língua escrita.
Ao longo de sua escolaridade, os alunos necessitam, de forma crescente, aprender coisas como encontrar as ideias principais de um texto, contrastá-las com as experiências e os conhecimentos próprios, inferir as etapas expositivas, relacionar as informações de vários textos, integrá-las em um único discurso, seguir uma exposição oral com o suporte de notas suficientemente seletivas. (COLOMER, 2020, p. 71)
E os alunos sabem disso. Quando solicitados a elaborarem um texto que
relate o que a escola representa na vida de cada um, deixam expresso, como
podemos observar nos textos produzidos pelos alunos do 9º ano, que “a escola
representa um futuro melhor”, “a escola representa aprendizado e sabedoria e é o
que vai nos ajudar, no futuro, a termos trabalho”, “é na escola que aprendemos a ler
e escrever”; “a escola representa o começo, é onde se aprende a base de tudo”.
Participaram da elaboração dessa produção textual cinquenta alunos do 9º
ano que estudam no período da manhã e estão prestes a concluir o ciclo II do Ensino
Fundamental em 2012. Se continuarem seus estudos, cursarão o Ensino Médio a
partir de 2013. Todos eles, se não completaram 15 anos de idade, estão próximos
disso. São, portanto, alunos que já se preocupam com o mundo do trabalho. 50%
deles, provavelmente, estarão cursando o Ensino Médio à noite para viabilizarem um
horário de trabalho durante o dia. Isto justifica verem a escola como porta de entrada
para o mundo do trabalho.
Koch e Elias (2010) apresentam como pressuposto básico a concepção de
que o texto é lugar de interação de sujeitos sociais, os quais, dialogicamente, nele se
constituem e são constituídos. Para tanto, apresentam uma obra destinada,
especialmente, a professores sobre as principais estratégias que os leitores têm à
sua disposição para, no momento da leitura, tomando como ponto de partida as
pistas que o texto lhes oferece, construir para ele um sentido que seja compatível
com a proposta apresentada pelo seu produtor.
Destacaremos aqui algumas das estratégias encontradas nas obras das
autoras acima mencionadas para que esse trabalho seja mais um veículo de
disseminação dos estudos realizados por pessoas que se importam com o dia-a-dia
da sala de aula.
34
Solé (1998) esclarece que as estratégias por ela ensinadas devem permitir
que o aluno planeje a tarefa geral de leitura e propõe ocupar-se de três estratégias:
1. As que permitem que nos dotemos de objetivos de leitura e atualizemos os
conhecimentos prévios relevantes;
2. As que permitam estabelecer inferências de diferente tipo, rever e comprovar a
própria compreensão enquanto se lê e tomar decisões adequadas ante erros ou
falhas na compreensão;
3. As dirigidas a recapitular o conteúdo, a resumi-lo e a ampliar o conhecimento que
se obteve mediante a leitura.
As três ideias estão associadas à concepção construtivista do ensino. A
primeira delas considera a situação educativa como um processo de construção
conjunta e, por meio dela, o professor e seus alunos podem compartilhar
progressivamente significados mais amplos e dominar procedimentos com maior
precisão e rigor. Parece claro que embora o aluno seja o protagonista, o professor
também desempenhará um papel de destaque. (p. 75)
A segunda ideia é a consideração de que o professor exerce uma função de
guia, à medida que deve garantir o elo entre a construção que o aluno pretende
realizar e as construções socialmente estabelecidas e que se traduzem nos objetivos
e conteúdos prescritos pelos currículos em vigor em um determinado momento.
A ideia número três é baseada na explicação dada por Bruner e
colaboradores (Wood, Bruner e Ross, 1976, apud Solé, 1998, p. 76) quando
descrevem o papel do ensino com relação à aprendizagem do aluno como
“processos de andaimes”. Eles comparam a aprendizagem do aluno à construção de
um edifício. Enquanto se constrói o edifício, o andaime está lá como suporte. Esse
deverá ser o papel do professor: sempre presente, como suporte, no processo
ensino-aprendizagem. Ao término da construção retira-se o andaime e a construção
não corre o risco de cair. Também as ajudas que caracterizam o ensino devem ser
retiradas progressivamente, à medida que o aluno se mostrar mais competente e
puder controlar sua própria aprendizagem.
Solé (1998) organiza suas estratégias para que sejam trabalhadas “antes da
leitura”, “durante a leitura” e “depois da leitura”, deixando claro que essa ordem é
flexível e que há estratégias por ela caracterizadas para serem usadas antes da
35
leitura que, em alguns casos, poderão ser utilizadas durante a leitura sem que isso
prejudique o processo de aprendizagem da competência leitora.
Para “antes da leitura”, a autora apresenta seis exposições que deveriam ser
trabalhadas com os alunos:
1. ideias gerais – ressalta que ler é uma atividade voluntária e prazerosa.
Propõe ao professor que reflita sobre sua concepção de leitura e identifique as
situações de trabalho com a leitura para que não se torne um momento de
competição, mas de trabalho compartilhado.
2. motivação para a leitura – chama a atenção dos professores para que
promovam situações de leitura que abordem contextos de usos reais e
permitam que o aluno aprenda a ler o que de fato queira ou precise ler.
Quanto a essa estratégia, temos na atividade realizada com alunos do 6º ano,
especificamente quando, na leitura do texto intitulado “De cara nova” que
disponibilizaremos abaixo para melhor entendimento de nossa colocação, os alunos
expressam o quanto gostaram do texto proposto, pois aprenderam a otimizar suas
calças jeans. O aluno identificou uma informação real e contextualizada ao seu
conhecimento de mundo, fazendo-o gostar da leitura realizada em sala de aula.
De Cara Nova
Você vai precisar de:
1 roupa jeans
giz
tinta Puff para tecidos
1. Faça o desenho no tecido com giz. Pinte com cuidado usando a tinta PUFF.
Primeiro faça os contornos, deixe secar e preencha.
2. Deixe o desenho secar por um dia. Peça a um adulto que ligue um secador de cabelos
perto do desenho. Com o calor, a tinta vai inflar, deixando a tinta em relevo.
3. Só lave depois de três dias para que a tinta seque bem.
Você vai precisar de:
Alfinetes
Pingentes coloridos.
Coloque os pingentes no alfinete e prenda na roupa.
(Recreio no 174. Ano 4. 10/07/2003.p. 18 e 19)
36
3. objetivos da leitura – o professor deve deixar claro ao aluno os objetivos
dessa atividade: para obter uma informação precisa; seguir instruções; obter
uma informação de caráter geral; aprender; revisar um escrito próprio; por
prazer; para comunicar um texto a um auditório; praticar a leitura em voz alta;
verificar o que se compreendeu.
4. ativação do conhecimento prévio – dar uma explicação geral ao aluno sobre
o que será lido e verificar o que o grupo já sabe sobre o tema do texto.
5. estabelecimento de previsões sobre o texto – estabelecer relações com o
título, ilustrações, cabeçalhos ou qualquer índice que o texto permita.
A inexistência das estratégias de ensino de números 4 e 5 na aula de leitura
provocam, de fato, grandes transtornos quando à compreensão do que se lê e, para
comprovar nossa colocação, discorremos sobre uma atividade de leitura realizada
com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental II em que a compreensão de uma
piada encontrada na obra de Sírio Possenti (1998) não aconteceu como o previsto
pela professora por percebermos no conhecimento de mundo do aluno uma única
significação para a palavra “hospital” não lhe permitindo inferir outro significado
senão o que conhece, uma vez que a professora não estabeleceu o motivo para a
leitura do texto proposto.
Apresentaremos o texto e as questões elaboradas pela professora e
propostas em março de 2012, a 37 alunos do 8º ano do Ensino Fundamental II de
uma escola pública estadual do município de Jandira, região metropolitana da
Grande São Paulo, para melhor compreensão da importância em se verificar o que o
aluno sabe sobre o assunto que será colocado em aula:
- Eu nasci nessa casa.
- E eu nasci no hospital.
- Por quê? Você estava doente?
1) Onde nasceu a primeira criança? Você sabe explicar por que ela falou isso?
2) Onde nasceu a segunda criança? Por que ela não nasceu no mesmo lugar da primeira
criança?
3) Por que a segunda criança pergunta para a primeira se ela estava doente?
4) O que a segunda criança quis dizer?
5) Este texto é uma piada. Você concorda com essa afirmação? Por quê?
37
Observamos que, quando perguntados onde a segunda criança nasceu e
porque não nasceu no mesmo lugar da primeira (questão nº 2), todos os alunos
responderam que a segunda criança nasceu no hospital porque os bebês nascem
em hospitais e que, se algum bebê nasce em casa, é porque não deu tempo de a
mãe chegar ao hospital; mas quando questionados sobre o que a segunda criança
quis dizer com “ – Eu nasci no hospital” (questão nº 4), apenas três alunos colocaram
que esta criança quis dizer ter nascido no lugar certo: o hospital. A outra é que
nasceu no lugar supostamente errado: em casa. Os demais apenas responderam
que ela nasceu no hospital.
Chamou-nos a atenção o fato de a maioria os alunos não justificar o que a
segunda criança quis dizer com “- Eu nasci no hospital.” Apesar de concordarem, em
respostas anteriores, que todas as crianças deveriam nascer no hospital; quando vão
escrever suas respostas, ficam muito presos aos vocábulos do próprio texto,.
Somente nas respostas dos três alunos que justificaram a questão 4 encontramos
vocábulos próprios. Estes não se preocuparam em apenas copiar palavras que
reproduzissem uma possível resposta correta. Ao utilizar-se de termos já expressos
no texto, cremos que o aluno tenha em mente maior possibilidade de acerto quanto
ao solicitado. Sabendo que o leitor de suas respostas será o professor, talvez ele,
preocupado em acertá-las, pense ser um risco de erro tentar uma resposta com suas
próprias palavras.
Isso nos autoriza a pensar que, para o aluno, a resposta correta está nas
linhas do texto, como se não existisse a possibilidade de encontrá-la fora delas, e,
assim, o educando fica preso ao teor linguístico do que lê.
Perguntou-se, finalmente, se entendiam o texto como uma piada. Vinte e
quatro alunos dos trinta e sete participantes responderam que sim, mas apenas sete
desses justificaram suas respostas, explicando que era engraçado o fato de a
primeira criança perguntar à segunda se ela estava doente. Treze alunos
responderam não entender o texto como piada sob a alegação de que não é
engraçado. Apenas três alunos deixaram claro que tenham entendido o texto como
piada por perceberem que, para a primeira criança, só vai ao hospital quem está
doente.
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Para estabelecermos sentido para um texto, precisamos levar em conta o
papel do contexto linguístico em que as marcas linguísticas estão inseridas e
também o contexto de situação, na dimensão pragmática, uma vez que esses dois
níveis interferem na construção do sentido.
No nível do contexto de situação, encontram-se os fatores de
contextualização que, segundo Koch e Travaglia (1993, p. 67), são aqueles que
ancoram o texto em uma situação comunicativa determinada. Ainda em Travaglia
(1989), encontramos duas condições básicas como gatilho para a obtenção do
humor: aquela que prioriza a língua utilizando os textos humorísticos para evidenciar
os mecanismos de funcionamento desta e a que mobiliza os conhecimentos
linguísticos para buscar respostas para os questionamentos que envolvem os
estudos sobre o humor.
Para Possenti (1998), a piada em questão serve para analisar termos
cognitivos. Segundo o autor, a enciclopédia dos dois falantes é diferente, e que isso
se deve a suas experiências sociais.
Se é verdade que a palavra “hospital” aciona em cada uma das crianças um frame diverso, pode-se argumentar que isso não se deve a uma “experiência pessoal diversa” apenas, mas que é exatamente esta diferente experiência social que tem que ser explicada. Uma boa explicação é que é condicionada por posição de classe. Para pessoas que nascem em certa classe social, hospital ainda é um lugar para doentes. (POSSENTI, 1998, p. 87)
Segundo Voese (1989/90), o texto de humor é o único tipo em que a alteração
da sequenciação alivia a tensão emocional e provoca o riso. Ao contrário de outros
tipos de textos, que também podem apresentar a quebra do previsível, o elemento
surpresa, para que se dê o entendimento do texto humorístico é necessário que se
reconheçam as condições de produção que levam à constituição de um texto, cuja
característica principal parece ser uma aparente incongruência que leva ao elemento
surpresa e ao riso. A autora salienta a ironia como principal arma de que se vale o
autor de sátira. O traço que caracteriza a ironia é a sutileza e esta precisa ser
percebida ou dar-se a perceber pelo interlocutor; do contrário, não haverá o cômico,
o riso, restando o literal grotesco e, às vezes, o ininteligível.
39
Para Solé (1998, p. 116), a leitura é um processo de emissão e verificação de
previsões que levam à construção da compreensão do texto. “À medida que lemos,
formulamos perguntas, recapitulamos a informação e a resumimos e ficamos alertas
perante possíveis incoerências ou desajustes”.
Ler é um procedimento, e se consegue ter acesso ao domínio dos
procedimentos por meio da sua exercitação compreensiva. Por isso, não basta
observar como o professor constrói suas previsões, mas será necessário que o aluno
selecione marcas e indicadores, formule hipóteses, verifique-as, construa
interpretações e saiba que isso é necessário para obter certos objetivos.
Para “durante a leitura”, a autora retoma as estratégias apresentadas por
Palincsar e Brown (1984, apud Solé, 1998: p. 118), que deverão ser colocadas
vagarosamente, fazendo uma reflexão a cada parágrafo, por exemplo, para que o
texto faça sentido no decorrer se sua leitura. As estratégias são:
a) formular previsões sobre o texto a ser lido;
b) formular perguntas sobre o que foi lido;
c) esclarecer possíveis dúvidas sobre o texto;
d) resumir as ideias do texto.
E para exercitá-las em sala de aula, Solé (1998) descreve passo a passo
como se dá o processo de ensino: o professor e os alunos devem ler um texto, ou
um trecho de um texto, em silêncio (embora possa haver leitura em voz alta). Depois
da leitura, o professor conduz os alunos através das quatro estratégias básicas.
Primeiro se encarrega de fazer um resumo do que foi lido para o grupo e solicita sua
concordância. Depois pode pedir explicações ou esclarecimentos sobre
determinadas dúvidas do texto. Mais tarde, formula uma ou algumas perguntas aos
alunos, cuja resposta torna a leitura necessária. Depois desta atividade, estabelece
suas previsões sobre o que ainda não foi lido, reiniciando-se deste modo o ciclo (ler,
resumir, solicitar esclarecimentos, prever).
Para “depois da leitura”, Solé (1998) retoma as estratégias aplicadas durante
a leitura, agora com conceitos mais amplos e claros: identificação da ideia principal,
elaboração de resumo, formulação e resposta de perguntas.
40
Em Colomer (2002) percebemos a preocupação em oferecer um instrumento
para avançar na prática pedagógica solidamente fundamentada sob a luz da
psicologia cognitiva com o objetivo de ajudar professores. É então que encontramos
o que ela chama de algumas condições para o ensino da leitura, assim elencadas:
partir do que os alunos sabem;
favorecer a comunicação descontextualizada;
familiarizar os alunos com a língua escrita e criar uma relação positiva com o
escrito;
fomentar a consciência metalinguística;
utilizar textos concebidos para sua leitura;
experimentar a diversidade de textos e leituras;
ler sem ter que oralizar e
a leitura em voz alta.
Para a autora, uma das obrigações do professor é conhecer as ideias de seus
alunos em relação àquilo que se propõe a ensinar, tanto para descobrir se possuem
apoios conceituais suficientes para incorporar os novos conhecimentos como para
tentar entender sua forma de proceder e de interpretar o escrito. Assim como
promover produções orais descontextualizadas (relatos completos de experiências,
descrições de objetos independentemente da sua presença física) para que a
criança possa descobrir a potencialidade simbólica da linguagem: seu poder para
criar mundos possíveis ou imaginários por meio de palavras.
Destaca que a escola deva preocupar-se em demonstrar ao aluno que o
contato com o escrito tem de implicar a tomada de consciência de seu uso funcional,
do saber por que as pessoas leem, de maneira que a ideia de sua aquisição se
distancie da concepção de uma tarefa eminentemente escolar e fomentar a
consciência de que a comunicação escrita não se prende a ser exclusivamente um
objeto em si mesmo, mas como veículo de significado no interior de uma
comunicação.
A escola também tem, segundo Colomer (2002), a função de oferecer aos
alunos elementos que facilitem a compreensão do texto como os mais próximos da
experiência e dos interesses deles, sem deixar de contemplá-los com a diversidade
textual existente para que possam familiarizar-se com as características de textos
variados. Ressaltamos que, em nossas observações, os alunos sinalizam essa
41
peculiaridade importante para que a leitura seja fluente e de fácil compreensão
quando alegam terem gostado do texto “De cara nova”, que ofereceu uma receita
para a customização da calça jeans na atividade que realizaram em agosto de 2011
e que será detalhada no capítulo 3 deste trabalho.
Quanto à questão da leitura silenciosa ou em voz alta, a autora destaca a
importância de se permitir à criança, como é comumente utilizada pelo adulto, a
leitura silenciosa sem que tenha que oralizá-la, salvo se o objetivo da aula for
considerado como uma situação de comunicação oral na qual alguém deseja
transmitir o que um texto diz a um receptor determinado. Porém, ressalta a
necessidade da oralização, propondo ao professor a criação de momentos
individualizados ou em grupos em que os alunos possam falar dos textos que leem
para verificação de como resolvem os problemas de compreensão e ajudá-los, se
necessário for, na condução mais adequada para tal compreensão.
A autora ressalta a necessidade do planejamento da leitura na escola para
que muitas atividades não sejam trabalhadas apenas num determinado nível de
ensino, mas que passe de um nível a outro com as adequações necessárias aos
textos com que se trabalhe. Apresenta exemplos de atividades que, no seu entender,
podem auxiliar o professor na tarefa de facilitar o processo de ensino da habilidade
leitora e, talvez, não permitir a instauração do monstro do medo nesse processo
único e importante na vida do aluno.
De seus exemplos, salientamos o que chama de intervenções de ajuda à
compreensão global do texto. A autora elenca algumas atividades, como:
Interpretação orientada de textos: para que o aluno avance na capacidade de
ler textos de complexidade crescente não basta que leia muito. O professor
deverá prever uma gradação dos textos literários e não-literários mediante os
quais quer fazer com que seus alunos avancem, partindo dos que lhes são
mais próximos e baseando-se nos conhecimentos que têm em cada momento
com a intenção de que o tipo de obra que leem agora, se forem ajudados,
possa converte-se mais adiante em leitura própria.
Descoberta da estrutura significativa do texto: o aluno deverá praticar
estratégias de realização de resumo iniciando com a representação gráfica do
conteúdo do texto, depois procurar títulos que impliquem a captação da ideia
42
principal e finalmente comparar os resumos elaborados em sala de aula para
possíveis adequações.
Explicitação das intenções – tipo de leitura e nível compreensivo: será mais
fácil a leitura se o aluno souber seu propósito – ler o jornal para buscar uma
notícia, ler a lista telefônica para encontrar o telefone do amigo, ler o manual
da mais recente compra para manuseá-la corretamente, ler uma história para
passar o tempo.
Exercícios de antecipação do texto: proporcionar ao aluno a criação de
expectativa, de fomentação de hipóteses verossímeis para posterior
constatação.
Exercícios de pressuposição e inferência: muitas vezes, os problemas de
compreensão de um texto residem na emissão de hipóteses não confirmadas
que os alunos não lembram ter feito, mas que condicionam sua imagem
mental do que estão lendo, evidenciando a projeção de seus próprios
conhecimentos e sistemas de valores da história.
Exercícios de percepção e discriminação rápida de indícios: o leitor terá de
fixar-se em indícios suficientes para comprovar qual das opções possíveis o
texto lhe apresenta.
Exercitação da memória a curto prazo: o leitor poderá aumentar a capacidade
de retenção de palavras ou frases.
Estratégias de controle e compensação de erros: o leitor deverá ter
consciência do que está entendendo, de quando ocorre uma falta de
compreensão e da importância dessa confusão.
Em Koch e Elias (2010) encontramos um trabalho em que as autoras, à
medida que levantam os problemas a serem observados pelos professores, fazem
verificações por meio de demonstrações em textos escolhidos para tais finalidades.
Falam em estratégias de leitura como as ações praticadas no trabalho de
construção de sentido:
antecipações;
hipóteses que são levantadas no início da leitura para posteriormente serem
confirmadas ou rejeitadas. No último caso, as hipóteses serão reformuladas e
novamente testadas em um movimento que destaca a nossa atividade de
leitor, respaldada em conhecimentos arquivados na memória (sobre a língua,
43
as coisas do mundo, outros textos) e ativados no processo de interação com o
texto;
Inferências;
Comparações;
Formulações de perguntas relacionadas ao conteúdo;
Críticas;
Contrastes;
Avaliações;
Ativação de conhecimentos.
As autoras apresentam em comum a preocupação quanto a organização e
preparação prévia da aula por parte do professor que deverá suscitar no aluno o
interesse pela leitura ao respeitar o conhecimento que ele já traz para a escola e
estimular suas previsões, oferecendo condições para a elaborações das questões
que nortearão a compreensão da leitura realizada. Cada uma, a seu modo,
apresenta em suas estratégias de ensino um passo-a-passo em que o professor
deverá, primeiramente, saber o que o aluno traz como conhecimento de mundo a
respeito do tema a ser tratado na leitura proposta, estimular a ampliação de
vocabulário por meio da compreensão do significado de termos no contexto da
leitura, permitir a antecipação e levantamento de hipóteses sobre o desenrolar do
texto, comparar essas antecipações aos fatos apresentados, criticar o exposto e
estabelecer um critério de avaliação entre o que imaginou e o que o autor
apresentou como texto final.
Para elas, permitir ao aluno uma comparação entre o que imaginou sobre o
texto e o que, de fato, ele trouxe como informação final é primordial para a ampliação
do conhecimento, a elaboração de novos valores e efetiva compreensão do que leu.
44
CAPÍTULO 2
RETÓRICA, LEITURA E PAIXÕES
A importância da leitura e como ensiná-la na escola são os objetos de
pesquisa para a realização deste trabalho. Sabemos que, para que a escola consiga
concretizar sua função de ensinar com propriedade a habilidade da leitura
competente a seus alunos, será necessário o conhecimento dos meios que regem e
asseguram o convívio social.
Em meio a tantas leituras realizadas para esse propósito, encontramos nos
estudos sobre retórica um caminho a ser considerado para que aconteça o processo
ensino-aprendizagem e o aluno possa usufruir de seu direito legal de aprender com
significação o que a escola propõe a partir do conhecimento de mundo que traz
consigo.
Para tanto, é importante apresentar, mesmo que resumidamente, o que é
retórica, suas inspirações para o mundo do ensinar-aprender e talvez uma resposta
para a dificuldade verificada em atividades realizadas por alunos do Ensino
Fundamental II quanto a uma leitura proficiente na escola.
Para o senso comum, retórica é sinônimo de coisa artificial, enfática, falsa.
Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), retórica é a arte de argumentar e busca
seus exemplos entre os oradores religiosos, jurídicos, políticos e até filosóficos. Para
Morier, G. Genette, J. Cohen e o “Grupo MU”, retórica é o estudo das figuras. Reboul
(1998) conceitua retórica como a arte de persuadir pelo discurso.
É a partir dos conceitos oferecidos por esses e outros autores que
buscaremos verificar a presença da retórica no discurso pedagógico, que Reboul
chama de “tratado de Filosofia, de Teologia ou de Ciências Humanas” (REBOUL,
1998, p. XIV).
Chamaremos de discurso pedagógico aquele que é realizado nas salas de
aula entre professores e alunos com foco no processo ensino-aprendizagem da
leitura entre alunos do Ensino Fundamental II. Nosso objetivo é observar se esse
discurso tem o propósito de persuadir, uma vez que, segundo Ferreira (2010):
45
(...) somos seres retóricos. Pela palavra, tentamos influenciar as pessoas, orientar-lhes o pensamento, excitar ou acalmar as emoções para, enfim, guiar suas ações, casar interesses e estabelecer acordos que nos permitam conviver em harmonia. (FERREIRA, 2010, p. 12)
É importante ressaltar que não encontramos nos estudos realizados sobre
retórica um discurso propriamente classificado como pedagógico. Encontramos em
Aristóteles (2011) a classificação de três gêneros de discurso oratório: deliberativo,
forense e demonstrativo. Em Reboul (1998), e em Meyer (2011), encontramos as
denominações: deliberativo (ou político), judiciário e epidítico aos mesmos gêneros.
O discurso deliberativo aconselha ou desaconselha em todas as questões
referentes à cidade: paz ou guerra, defesa, impostos, orçamento, importações,
legislação; induz a fazer ou a não fazer algo. O discurso judiciário acusa ou defende.
O discurso epidítico censura e, na maioria das vezes, louva ora um homem ou a
categoria de homens, como os mortos na guerra, ora uma cidade, ora seres
lendários.
Além dos gêneros descritos, Reboul (1998) faz referência ao que chama de
função pedagógica para retratar a retórica como parte de um todo pedagógico assim
como a Gramática e a Dialética. A arte do discurso persuasivo implica a arte de
compreender e possibilita a arte de inventar.
Para o autor, todo professor, quase sempre sem saber, faz retórica. O
professor é um orador que, como todos os outros, deve atrair e prender a atenção,
ilustrar os conceitos, facilitar a lembrança, motivar ao esforço.
Mas foi em Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) que encontramos a
concepção que nos permite falar, neste estudo, em discurso pedagógico, pelos
autores classificado como gênero epidítico.
Contrariamente aos debates políticos e judiciários, em que os dois adversários procuravam ganhar a adesão de um auditório que decidia o desfecho de um processo ou de uma ação, os discursos epidícticos não eram nada disso. Este era, inegavelmente, afirmado com vigor. A maioria dos discursos das obras-primas da eloquência escolar, trechos solenes célebres constituíam discursos do gênero epidíctico. Com isso, o gênero epidíctico parecia preencher-se mais à literatura que a argumentação. Na epidíctica, o orador se faz educador. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 53 e 57)
46
Valemo-nos do entendimento de que o discurso existente entre professor e
aluno deveria fazer com que houvesse mudanças de comportamentos a partir dos
estudos e discussões entre eles realizados. Em Perelmam e Olbrechts-Tyteca (2005)
encontramos que o gênero epidítico, que trata do elogio ou da censura, e ocupa-se
com o que é belo ou feio, trata, também, de reconhecer valores. Valores esses que,
se apresentados por meio de um discurso persuasivo, serão incorporados pelos
ouvintes como verdades absolutas.
Ora, acreditamos que os discursos epidícticos constituem uma parte central da arte de persuadir, e a incompreensão manifestada a seu respeito resulta de uma concepção errônea dos efeitos da argumentação. A eficácia de uma exposição, tendente a obter dos ouvintes uma adesão suficiente às teses apresentadas, só pode ser julgada pelo objetivo que o orador se propõe. A intensidade da adesão que se tem de obter não se limita à produção de resultados puramente intelectuais, ao fato de declarar que uma tese parece mais provável que outra, mas muitas vezes será reforçada até que a ação, que ela deveria desencadear, tenha ocorrido. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 54-55)
O papel do professor no processo de ensino-aprendizagem é o de mediador
das discussões advindas das leituras realizadas em sala de aula. Essa mediação
tende a obter a adesão do aluno quanto à tomada de decisão necessária ao
entendimento do texto e, partir dele, por meio da crítica e da reconstrução de
sentido, provocar mudança de comportamento em seu compreender o mundo.
Harold D. Lasswell (1949), especialista americano, crê que o educador difere,
por exemplo, do propagandista porque seu tema versa sobre matérias que não são,
para seu auditório, objeto de controvérsia. Enquanto a função do propagandista é o
de persuadir, correndo o risco de seu produto ser, após análise do interlocutor,
objeto de controvérsia, o educador tem a função de tornar-se o porta-voz dos valores
reconhecidos por uma comunidade. (apud Perelman e Olbrechts-Tyteca, 2005)
Na educação supõe-se que o discurso do orador, se não versa
impreterivelmente a verdade, pelo menos defende valores que estão no meio da
comunidade que representa. Presume-se que ele denote uma confiança tamanha
que não precise adaptar-se aos seus ouvintes, mas proceder com o auxílio de
argumentos a que Aristóteles chama de didáticos e que os ouvintes adotam porque o
mestre disse.
47
Se o que o mestre diz é facilmente adotado pelos ouvintes, então o professor,
em sua função de mestre, pode usufruir dessa vantagem para provocar o interesse
pela leitura nos seus alunos e buscar estratégias que os levem a crer na força da
leitura para a mudança de comportamentos. Isso seria persuadi-los na conquista de
uma competência leitora significativa.
Para ser um bom orador, não basta saber falar; é preciso saber também a quem se está falando, compreender o discurso do outro, seja esse discurso manifestado ou latente, detectar suas ciladas, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o não-dito. (REBOUL, 1998, p. XIX)
Mas o que é persuadir? “É levar alguém a crer em alguma coisa, sem
necessariamente, levá-lo a fazer” (REBOUL, 1998, p. XV). Quando o discurso obriga
alguém a praticar uma ação, isso não é retórica; é autoritarismo.
Persuadir e convencer não são símiles, pelo menos num plano pedagógico.
Convencer é mover o outro pela razão, pela exposição de provas lógicas. Pelo
contrário, persuadir é mover o outro pela emoção, é levá-lo a concordar com nossas
opiniões, o que exige muita reflexão prévia e competente articulação discursiva, uma
vez que o sentido pretendido se multiplica na mente dos interlocutores, já que o
“certo” embora exista em essência, não é uma forma padrão, mas um construto das
relações que os homens mantêm entre si.
Muito comumente, quando precisamos defender uma ideia, valemo-nos da
argumentação, que é o meio civilizado, educado e potente de constituir um discurso
que se insurja contra a força, a violência, o autoritarismo e se prove eficaz
(persuasivo e convincente) (FERREIRA, 2010, p.14).
Nos estudos realizados com alunos do Ensino Fundamental II, observamos,
em respostas à pergunta “Você gosta de ler?”, que muitos alegam não gostar de ler,
mas realizam a atividade de leitura solicitada e alguns poucos destes mostram,
inclusive, boa competência leitora quando respondem com coerência as perguntas
relacionadas ao texto lido.
Cabe ao professor, como mediador, envolvê-los de tal forma que realizem
esse tipo de atividade senão com mais prazer, com mais boa vontade. Para a
retórica, é por meio da argumentação que o professor, em seu papel de orador,
mostrará a esses alunos o que eles ainda não sabem: sua capacidade de leitura e
apreensão dos sentidos do texto. Parece-nos que os alunos demonstram muito mais
48
desmotivação que desprazer na realização da leitura em sala de aula. É papel do
professor motivar o aluno, mostrar-lhe o que já consegue realizar e persuadi-lo a se
tornar um leitor competente.
Existe uma retórica espontânea, uma aptidão para persuadir pela palavra que
talvez não seja inata, mas que tampouco é devida a uma formação específica; e
também existe uma retórica ensinada com o nome de “técnicas de expressão e
comunicação”, que serve para formar, por exemplo, vendedores ou políticos. Ainda
assim, essa última não conseguirá formar um verdadeiro orador se este não se
descobrir um ser capaz de trabalhar com os argumentos de forma eficaz. Quando
falamos de orador, pensamos no professor, em sua função retórica de persuadir o
aluno para a aquisição da competência leitora proficiente.
Porém, como já citado em Reboul (1998), para ser bom orador, não basta
saber falar. É preciso saber a quem se está falando e compreender o discurso do
outro, interpretar, inclusive, o que o outro está dizendo, mesmo que o discurso não
seja explícito. Por isso, não se ensina mais retórica como a arte de produzir
discursos, mas como a arte de interpretá-los.
Mais uma vez chamamos a atenção para o professor de Língua Portuguesa
enquanto mediador do conhecimento em sala de aula. Retoricamente, sua atuação
como orador não surte o efeito esperado quanto a determinar a mudança de
comportamento por meio da emoção. Talvez o professor não se preocupe com o
auditório, pois como já dissemos anteriormente, o bom orador precisa conhecer seu
auditório e perceber sua necessidade para que o discurso surta efeito.
A retórica não é vista como ciência, mas estuda os meios de persuasão
utilizados nos discursos. Aqui focaremos nossos estudos nos discursos evidenciados
dentro de uma escola, especificamente entre o professor de Língua Portuguesa,
durante aulas de leitura e seus alunos matriculados no Ensino Fundamental II.
Para que um discurso ecoe eficientemente na promoção de mudança dos
espíritos do auditório, é preciso ter claro o que se pretende dizer, como dizer e para
quem dizer. Em Reboul (1998) encontramos as partes do sistema retórico que nos
auxilia na organização do discurso quando pensamos no professor como orador que
se dirige a um auditório particular: os alunos.
São quatro as partes do sistema retórico. Representam as quatro fases pelas
quais passa quem compõe um discurso, ou pelas quais se acredita que passe. A
primeira é a invenção (heurésis, em grego), a busca que faz o orador de todos os
49
argumentos e de outros meios de convencimento relativos ao tema de seu discurso.
A segunda é a disposição (taxis), que trata da ordenação desses argumentos, donde
resultará a organização interna do discurso, seu plano. A terceira é a elocução
(lexis), que não concerne à palavra falada, mas à redação escrita do discurso, em
que inserem as figuras de estilo. A quarta é a ação (hypocrisis), que corresponde à
efetivação do discurso, com tudo o que ele pode implicar em termos de efeitos de
voz, mímicas e gestos. Não importando a ordem, as quatro partes devem ser
consideradas como quatro “tarefas” (erga) que devem ser cumpridas pelo orador.
Todo discurso deve passar pelas seguintes tarefas: compreender o assunto e reunir
todos os argumentos que possam servir (invenção); pô-los em ordem (disposição);
redigir o discurso o melhor possível (elocução); finalmente, exercitar-se proferindo-o
(ação).
É na invenção que o professor perguntar-se-á sobre o que dizer ao seu
auditório. Para que aconteça persuasão, o professor construirá uma imagem que
passe segurança e credibilidade aos seus alunos para, então, conseguir sua atenção
e adesão ao que será dito.
Mas é na disposição, na construção do seu discurso, que o professor buscará
uma maneira de aproximação entre o que pretende dizer e o que seu auditório quer
ouvir. Em Reboul (1998) encontramos o que denomina quatro planos-tipo para tal
construção: exórdio, narração, confirmação e peroração.
O exórdio será a parte do discurso que mais nos interessará, pois é a que
atua sobre a disposição do auditório tornando-o dócil, atento e benevolente. Dócil
para aprender e compreender, atento para ouvir e observar e benevolente à
disposição de espírito.
É no exórdio que o orador mostra sua competência, sua imparcialidade e sua
honestidade para estimular o auditório ao exaltar suas capacidades, seu bom senso
e sua boa vontade, na busca de prepará-lo para escutar seu discurso.
O professor, em sua função de orador, dirige-se a um auditório particular: o
aluno. Usa do argumento de poder, visto ser o mestre, o que discute sobre valores e
instituições, ao contrário da demonstração de verdades especulativas, para
aumentar a adesão a valores sobre os quais não deixam dúvidas, e cria assim, uma
comunhão em torno desses valores reconhecidos pelo auditório e, por meio da
retórica, transforma-os em valores universais.
50
Conforme se verifica em Perelman e Tyteca (2005, p. 57), o gênero epidítico,
ao qual pertence o discurso pedagógico, é praticado, de preferência, por aqueles
que, numa sociedade, defendem os valores tradicionais, os valores aceitos, os que
são objeto da educação, e não os valores revolucionários, os valores novos que
suscitam polêmicas e controvérsias; o professor, como representante da instituição
de ensino de determinado sistema social, é o orador perfeito para suscitar a adesão
de seu auditório aos valores por ele representados.
Mas será necessário, antes, para que a adesão seja eficaz, observar o que
seu auditório espera de si e com isso identificar situações de preocupação,
inquietação e ansiedade nos alunos. Na família do medo, esses fatores são muito
presentes e corriqueiros.
Percebemos a inquietação dos alunos em situações em que professores
alegam não conseguir ministrar suas aulas porque o foco da aprendizagem, naquele
momento, é a música recente que trocam entre si pelos celulares, um vídeo postado
por uma menina no facebook que chamou a atenção dos meninos ou o boato de
algum acontecimento na cidade.
Demonstram grande preocupação e não conseguem ficar em sala de aula os
alunos que esqueceram em casa, por exemplo, o trabalho da professora de Artes e
que, pelo seu celular, solicitou à mãe ou ao irmão que o trouxesse à escola.
Enquanto esse parente não chega com o trabalho, a atenção do aluno à aula é
inexistente, mas é visível o medo de ficar sem a nota da atividade na disciplina.
Denotam ansiedade quando o professor diz no início da aula, por exemplo,
que cada um lerá em voz alta um trecho do texto em estudo. O aluno sabe que,
enquanto lê, está sendo lido pelos colegas e pelo professor, um auditório que o
observará e quem sabe fará algum julgamento que desgaste o ethos de bom aluno
que buscou construir durante todo o ano letivo. Todos esses são fatores que tolhem
a atenção do aluno, dando lugar ao medo e, quase sempre, a interpretação, por
parte do professor, de que o aluno é desinteressado.
Se o professor não se dispuser a observar esses fatores para, na busca de
persuadir o aluno de que tudo será resolvido ou aproveitar o assunto do momento
para levá-lo onde precisa para trabalhar o conteúdo preparado, não conseguirá
realizar sua função: criar disposição entre os ouvintes. E, assim sendo, poderá
querer a atenção do seu auditório pela força.
51
Pela força não há persuasão. Já dissemos anteriormente que pela força
constrói-se o autoritarismo. Pela força, encontramos um orador que, por não
conseguir a persuasão, será comparado a um agressor, aquele que, por meio de seu
discurso, emprega a ameaça ou a coerção para levar seu auditório à submissão do
que impõe. Se esse for o caminho escolhido, o orador pode instaurar, às vezes sem
a percepção disso, uma luta entre si e seu auditório (professor x aluno). Se a aula for
uma luta, o aluno com certeza buscará estratégias para sua defesa. E suas armas
poderão ser as que mais se ouve como reclamação do professor: não prestar
atenção ao que o professor diz, recusar-se à realização da atividade solicitada ou
fingir não saber realizar tal atividade assim como, não saber ler quando solicitada a
leitura em voz alta.
Pelo medo da submissão, o aluno poderá instituir um ethos – imagem que o
orador constrói de si no discurso - que não represente exatamente quem ele é, mas
quem quer mostrar ao professor: revolucionário, contestador, insolente, e tantos
outros adjetivos que fazem o professor vê-lo como verdadeiro combatente, e instaura
na ação pedagógica a retórica da guerra.
Na guerra não há interação, há combatentes preocupados em vencer. Onde
há vencedores, há, também, perdedores. Se a sala de aula for um campo de batalha,
cremos não haver aprendizagem, mas apenas uma árdua luta de poderes em que se
busca provar quem manda mais: professor ou aluno. Os comandos de guerra são
extremamente autoritários e fazem cair por terra todos os caminhos retóricos
existentes para uma aprendizagem prazerosa e eficiente.
2.1 As paixões
Por meio da retórica, um orador é capaz de persuadir seu auditório,
despertando as paixões que o envolvem na busca da adesão ao que pretende que o
outro faça.
Em Aristóteles (2000), encontramos como concepção das paixões todos os
sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir seus julgamentos.
52
Segundo o autor, a paixão, por ser contingente, exprime a diferença no
sujeito. Isso equivale a assimilá-la ao que no homem, em todo homem, exprime sua
individualidade.
A paixão é decerto uma confusão, mas é antes de tudo um estado de alma móvel, reversível, sempre suscetível de ser contrariado, invertido; uma representação sensível do outro, uma reação à imagem que ele cria de nós, uma espécie de consciência social inata, que reflete nossa identidade tal como esta se exprime na relação incessante com outrem. Reequilíbrio que assegura a Constância na variação multiforme que o Outro assume em sociedade, a paixão é resposta, julgamento, reflexão sobre o que somos porque o Outro é, pelo exame do que o Outro é para nós. Lugar em que se aventuram a identidade e a diferença, a paixão se presta a negociar uma pela outra; ela é momento retórico por excelência. (ARISTÓTELES, 2000, p. XL)
Considerando que nossa pesquisa, ao observar como o aluno lê em sala de
aula, parte da verificação das paixões existentes nas aulas de leitura com o objetivo
de descobrir se essas paixões suscitam sensações positivas ou negativas aos
alunos em seu processo de aprendizagem e, por acreditar que as paixões movem os
espíritos e que a necessidade de se despertar a paixão pela leitura em sala de aula
é fator urgente e imprescindível, usaremos um quadro-resumo elaborado pela
professora Drª Ana Lucia Magalhães (2012) para que se possa entender o que seja
paixão para muitos estudiosos sobre o assunto.
Pré Aristóteles Górgias rejeitava o uso da paixão na argumentação, achando que só seria efetivo com indivíduos inferiores. Para Platão, a maior parte das pessoas é corrompida, fundamentalmente irracional e guiada por seus apetites e paixões egoístas. A lei serviria para restaurar a ordem correta: “o homem e a cidade são parecidos”. Os estóicos achavam que as paixões não eram resultado de uma faculdade irracional dos homens, mas de erros de julgamento. Sócrates, em Fedro, usa a metáfora do bom cavalo, a razão, que tenta levar a carruagem a seu destino, e o mau cavalo, a paixão, que só quer chegar perto do objeto da paixão. “Os antigos viam a paixão (pathos) como patologia. Opunha-se à lógica e estava ligada à loucura, morte, obscuridade, ao caos, à desarmonia. A lógica, ao contrário, relacionava-se à razão, à vida, à claridade, ao cosmos. Essa visão perdurou até o século XVIII, quando se passou a concebê-la como aquilo que impele o homem à ação e o eleva às grandes coisas.” (Fiorin, 2007)
53
Aristóteles “São todos os sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos e são seguidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas, assim como seus contrários”. A retórica de Aristóteles estabeleceu o ethos, o pathos e o logos como fundamentais para o entendimento do processo de construção discursiva. Essas três “provas” interagem na produção do efeito de sentido no auditório: O ethos é relativo ao caráter do orador, é a imagem projetada; faz parte de um jogo de identidade e diferença, pois aderir a um discurso é sempre, no fundo, identificar-se com seu autor (PLANTIN, 2008, p. 112); o pathos diz respeito à emoção provocada pelo discurso do orador no auditório, é a manipulação dos sentidos; o logos diz respeito à argumentação ou à produção discursiva por parte do orador. É a capacidade argumentativa de convencimento que se dá pela lógica, pelo raciocínio e tem caráter apodítico2
Spinoza “É uma ideia confusa (grifo meu) pela qual a alma afirma a força de existir do seu corpo, ou de parte desse, maior ou menor que antes, e por cuja presença a própria alma é determinada a pensar em tal causa em detrimento de outra.” (parte III, Definição geral das paixões, p. 280). A força de uma paixão ou afeto pode superar as demais ações do homem.
Descartes Diferencia paixão de emoção, conforme sugerido pela etimologia da palavra paixão, que tem a mesma raiz de passivo. Para ele, a experiência de uma paixão era causada por um objeto externo ao sujeito. Uma emoção é produzida pelo sujeito. A paixão vem de um espírito animal responsável por estimular o movimento do corpo. A paixão move o corpo e o torna realmente humano, mas não elaborou essa afirmação. O corpo é o lugar onde a alma desempenha suas funções. As paixões podem fazer o corpo desejar coisas úteis, mas também coisas maléficas. A visão de um sorvete causada pelo movimento dos espíritos animais no olho causa a paixão do desejo de tomar o sorvete e assim satisfazer o desejo. Descartes apontou 6 paixões primitivas: espanto, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza. Todas as outras são combinações dessas primitivas.
Meyer (2007) As paixões são representações e, mesmo, representações de representações. Visam a definir a identidade do sujeito relativamente a outrem. A referência ao outro varia se ele é visto como superior, igual ou inferior em seus atos. São ao mesmo tempo modos de ser (que remetem ao ethos e determinam o caráter) e respostas a modos de ser (ajustamento ao outro). O autor chama a atenção para o fato de o fundamento da filosofia de Descartes ser a separação entre alma e corpo, entre o objetivo e o espiritual. As paixões são justamente o ponto de encontro entre alma e corpo. O Tratado das Paixões (de Descartes) não é uma adição tardia à sua obra, mas algo fundamental ao cartesianismo.
2 apodítico: relativo à lógica, produto de raciocínio.
54
Greimas
(semiótica)
Há um componente patêmico a não só perpassar todas as relações e atividades humanas como mover a ação humana. Se a enunciação discursiviza a subjetividade, as paixões estão sempre presentes nos textos. Ao ethos, pathos e logos aristotélicos, a semiótica associa as três instâncias essenciais da enunciação: enunciador (ethos), enunciatário (pathos-auditório) e discurso (logos). Embora a teoria narrativa desenvolvida inicialmente explicasse apenas os “estados das coisas”, ao afirmar que os textos estavam sempre a transferir objetos de valor, houve a percepção de que precisaria tratar também de textos que operam com a paixão, definida como qualquer “estado de alma”. Nesse sentido, o sentimento não se opõe à razão. Existem, então, os “estados das coisas” e os “estados da alma”. Os estados patêmicos – cólera, amor, indiferença, tristeza, frustração, alegria, medo... – resultam da modalização(*) do sujeito de estado (busca da adesão do auditório). Assim, o pathos não seria a disposição real do auditório, mas de uma imagem que o enunciador3 tem do enunciatário. O enunciatário, por sua vez, também entra em contato com uma imagem do enunciador. O discurso é o lugar de encontro entre esses dois sujeitos (enunciador e enunciatário), que se reconhecem por meio de imagens construídas pelo e no próprio discurso. O discurso pode ser definido como o âmbito dialético da construção do sentido. Quanto maior a percepção que o enunciador tem (da imagem) do enunciatário, mais fácil se torna persuadi-lo. Por outro lado, quanto mais atraente parecer ser o enunciador para o enunciatário (auditório), mais o auditório cederá aos argumentos (logos) e aos meios relativos à afetividade (pathos).
(*)Modalizações Na linguística, modalização é o emprego de construções que
indicam o grau de adesão do enunciador a seu enunciado.
Definição tradicional de modalidade: é o que modifica um
predicado de um enunciado.
Definição semiótica de modalidade: produção de um enunciado
Modalidades: virtualizantes atualizantes realizantes
exotáxicas dever poder fazer
endotáxicas querer saber ser
Modalidades tímicas: euforia, disforia e aforia
Quais são essas paixões em Aristóteles? A lista é diferente na Ética a
Nicômaco e na Retórica. Há onze paixões na Ética e catorze na Retórica. Na Ética,
há a alegria, o desejo ou o pesar, que são estados de alma da pessoa considerada
isoladamente, em sua temporalidade individual. Na Retórica, ao contrário, as paixões
3 enunciador = retor/ethos; enunciatário = auditório/pathos; discurso = enunciação/logos
55
passam a ser representação que o outro faz de nós e a que fazemos dele, realmente
ou no domínio da nossa imaginação.
Para Aristóteles, é por meio das paixões que o orador consegue persuadir seu
auditório. É por meio da provocação da dor ou do prazer que se consegue a
mudança de comportamento.
2.2 O medo
As paixões na Retórica aristotélica são: cólera, calma, temor, segurança
(confiança, audácia), inveja, imprudência, amor, ódio, vergonha, emulação,
compaixão, favor (obsequiosidade), indignação e desprezo.
As paixões do temor e da confiança moverão nossos estudos a partir daqui. A
partir dessas paixões nos preocupamos com os possíveis sentimentos despertados
quando os alunos participam das aulas de Língua Portuguesa, especificamente
quando realizam leituras solicitadas pelos professores, valendo-nos do princípio da
Retórica de que será necessário persuadir o auditório que temos para que haja uma
mudança de comportamento.
Temor: desgosto, preocupação com um mal eminente, danoso ou penoso.
Não tememos o que está distante, como a morte. São temíveis coisas que podem
causar danos e desgostos, o temível parece estar próximo, indícios do ódio, cólera
de pessoas que podem fazer algum mal. Temem-se os que fizeram injustiça ou que
sofreram injustiça, os rivais. Os que atacam os mais fracos, os temíveis para os mais
fortes. Não tememos os que creem que não sofrerão, nem os que têm poder, nem
quem julgamos que não causariam algum mal, nem o momento que poderia
acontecer algo; quem teme tem esperança de salvar-se. A confiança é o contrário do
temível; os que inspiram a confiança são a aproximação da esperança. São
confiantes os que tiveram resultados felizes, os que escaparam de situações
perigosas. Sentimos confiança quando não tememos nossos semelhantes.
Queremos ressaltar que, apesar de nos pautarmos nas definições dadas por
Aristóteles sobre o medo para nossa análise, outros estudiosos também dedicaram
seu tempo a verificar os infortúnios provocados pelo medo. Propomos um quadro
ilustrativo com outras definições, inclusive a de Aristóteles, elaborado pela
56
professora Drª Ana Lúcia Magalhães (2012) para que possamos entender o que o
medo pode provocar nos seres que não conseguem controlá-lo.
Pré
Aristóteles
Para Chauí, dos gregos à renascença a virtude oposta ao medo é a coragem, particularmente a bravura na guerra. Para os pagãos, o medo é divindade que se abate sobre os fortes para sua vergonha e sobre os fracos, para sua desonra. Temor e Medo são poderes/entidades divinos cultuados para não “baixarem” como espíritos sobre os espíritos. Sócrates fala sobre o medo da morte e diz que o homem superior não o tem.
Aristóteles É “certo desgosto ou preocupação resultantes da suposição de um mal iminente, ou danoso ou penoso, pois não se temem todos os males” (Aristóteles, 2003, p. 31). Só há medo diante de coisas próximas e iminentes, com capacidade de arruinar, causar danos, que provocam desgosto. O distante não provocaria medo, mas, apenas o indício de uma ruína ou dano próximos já provocariam medo. Definição tradicional de modalidade: é o que modifica um predicado de um enunciado. Indivíduos com poder de provocar o mal, injustos e poderosos com desejo de vingança, os mais fortes, os inimigos e adversários, os dissimulados causam medo. O contrário do medo, em Aristóteles, é a confiança, pois não se teme aquele que a inspira.
Cristãos A causa do medo é o Mal. A cristandade disseminou a cultura do medo. O mal é o não-ser. Tudo o que for contrário ao cristianismo passa a ser motivo de medo porque está ligado ao não-ser: pagãos, judeus, bárbaros, hereges, anabatistas (...) (Chauí, 41). Epístola de São Paulo aos Romanos: “todos os que são guiados pelo espírito de Deus são filhos de Deus porque vocês não receberam o espírito de submissão ao medo, mas o espírito de adesão a Deus.” A cultura cristã desloca a figura do Mal de fora para dentro da consciência, assim a cultura do medo é deslocada. O medo deixa de ser apenas contrário à confiança. Seu contrário, para a plebe, é a segurança, encontrada na crença cristã e nos dogmas da igreja. A virtude dos nobres → valorização da coragem e desprezo pelo medo A virtude da plebe → valorização da obediência, que, por sua vez, é causa de segurança.
57
Spinoza “É uma tristeza inconstante, surgida da imagem de uma coisa duvidosa”. O contrário do medo é, para ele, a esperança, “uma alegria inconstante, surgida da imagem de uma coisa futura ou pretérita, de cuja realização duvidamos”. As causas de esperança ou medo se chamam bons ou maus presságios e causam alegria ou tristeza. A esperança está, assim, associada à alegria e o medo à tristeza. Não há esperança sem medo nem medo sem esperança. Enquanto se espera algo, há medo de que tal coisa não se efetive. Os homens são afetados de formas diferentes diante dos mesmos objetos, assim, alguns temem mais que outros. Temor para Spinoza é também o desejo de evitar, mediante um mal menor, outro maior. Quem se deixa levar pelo medo e faz o bem para evitar o mal não é guiado pela razão e sim pela paixão.
Montaigne É o estranho sentimento que nos torna insensatos e nos faz fugir quando é preciso ficar ou nos paralisa quando precisamos fugir. Rouba-nos a coragem. O medo não se opõe à valentia, mas à prudência.
Descartes É o contrário da ousadia; excesso de covardia, de espanto e receio. O medo é produzido quando o espírito animal cria imagens que se assemelham a coisas maléficas ao corpo. A partir dessas imagens são despertadas paixões na alma em um crescendo: primeiro a apreensão, depois o medo, depois o terror. A resposta apaixonada depende do temperamento e experiências passadas do indivíduo. Em alguns casos o fluxo de espíritos animais fará com que as pernas fujam. Embora isso soe muito mecânico, o medo não está além da possibilidade de controle. Na verdade, Descartes é muito otimista sobre a capacidade humana de regular as paixões, por conseguinte, o medo. Por exemplo, diante do medo uma pessoa pode considerar sobre os danos que causará uma fuga, ou se imaginar vencedora sobre o objeto temido.
Meyer Seria uma condição de extrema inferioridade em relação a um agente externo (XLVIII).
Greimas Aparece na teoria actancial (modelo que permite analisar qualquer ação real ou tematizada) e resulta da modalização (estado patêmico). Ela apresenta três eixos e dois actantes por eixo, em um total de seis actantes. Eixo do querer: sujeito e objeto – o príncipe (sujeito) deseja a princesa (situação conjuntiva); assassino quer se desembaraçar do corpo de sua vítima (situação disjuntiva) Eixo do saber: destinador e destinatário – o rei (destinador) exige que o príncipe salve a princesa (destinatário) Eixo do poder: ajudante e oponente – espada, cavalo, coragem ajudam o príncipe; feiticeira, dragão, medo atrapalham o príncipe O sujeito é orientado para um objeto de valor e a relação estabelecida entre sujeito e objeto é conjuntiva ou disjuntiva O destinador é quem exige que a relação entre o sujeito e o objeto seja estabelecida e o destinatário é o beneficiário da ação. O ajudante auxilia na realização da junção desejada entre sujeito
58
e objeto e o oponente atrapalha. O medo aparece a partir da atuação do oponente.
Os estudiosos aqui citados concordam que o medo provoca sensações de
desprezo e inferioridade, certo desgosto ou preocupação quanto ao que vai
acontecer, desde que próximo; insensatez e covardia quando da tomada de decisão.
Um sentimento que provoca dor e grande tristeza, tornando quem o sente num ser
incapaz de obter sucesso e ser feliz.
A partir daqui, iremos relatar as atividades de leitura realizadas em sala de
aula e, de acordo com os resultados, discutir a paixão do medo entre os alunos e,
uma vez que o contrário do temor é a confiança, propor estratégias para combatê-lo.
É nas paixões que nascem a vontade, o poder e a ação. O homem não vive
senão para realizar suas vontades, descobrir o poder que exerce sobre o mundo que
o cerca e agir, nem que seja apenas na incessante luta de apaziguar suas dores e
seus medos. Vive, então, em função do que o medo lhe proporciona ou da fuga dele.
Todo indivíduo humano e todos os seres humanos em comum visam a um fim, o que determina o que escolhem e o que evitam. Esse fim – para expressá-lo sumariamente – é a felicidade e os elementos que a constituem. (ARISTÓTELES, 2011, p. 60)
Por concordar com Aristóteles (2011) sobre a condição humana, fomos nos
debruçar nos estudos que tratam dos conceitos sobre leitura, seu processo de
iniciação e estratégias para fazê-la acontecer entre os alunos da escola em que atuo,
uma escola pública estadual situada no município de Jandira, Grande São Paulo,
oferecendo-lhes condições para o desenvolvimento da competência leitora
apropriada para sua idade.
59
CAPÍTULO 3
A LEITURA E O MEDO NA ESCOLA
Por acreditar que toda leitura parte de uma necessidade, seja ela a de
entender uma situação, atender uma solicitação, aprender o que não se conhecia ou
simplesmente para diversão é que propusemos a atividade abaixo descrita em que
os alunos realizaram a leitura de dois textos com o objetivo de averiguar quais
sentimentos são aparentes numa aula de leitura.
Em agosto de 2011, realizamos atividade de leitura e interpretação com textos
retirados do SARESP 2007 (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado
de São Paulo) com 20 alunos do 6º ano (antiga 5ª série) do Ensino Fundamental II,
do período da tarde de uma escola pública estadual situada no município de Jandira,
Grande São Paulo. Propusemos a um professor da turma que aplicasse essa
atividade, mas que não se posicionasse diante das leituras realizadas apesar de
concordar com Colomer (2002, p. 75):
(...) de que aprender é uma atividade construtiva. Contudo, para essa tarefa, é imprescindível a intervenção do adulto, que tem de exercer uma função de mediador a partir dos conhecimentos que o aluno já
possui.
Esse é então o papel do professor: mediar o aprendizado do aluno e ajudá-lo
na escolha dos caminhos a percorrer até que consiga a informação necessária para
a compreensão do que se pretende. Mas, aqui, precisamos que o professor não seja
o mediador da aula para que não demonstre envolvimento com a atividade, que não
forneça qualquer tipo de pista em como realizar a leitura ou interpretar os textos
lidos. Até porque nosso objetivo maior não é o de saber como se dá o entendimento
dos textos propostos, mas saber que tipo de paixão a atividade de leitura suscita nos
alunos e, mais especificamente, saber se há presença do medo na realização da
atividade.
A atividade foi composta por dois momentos complementares: primeiramente
propusemos duas questões dissertativas com o objetivo de identificar as sensações
do aluno antes das leituras indicadas. Tínhamos o propósito de descobrir quais
sentimentos ou sensações aparecem antes mesmo de os alunos realizarem suas
atividades de leitura. Só depois é que propusemos a leitura de dois textos e um total
de dez questões objetivas com quatro alternativas cada uma, tendo apenas uma das
alternativas correta para que respondessem em conformidade com os textos lidos.
60
Após responderem as questões objetivas, propusemos mais duas questões
dissertativas com o objetivo de saber se a atividade revelara algum benefício
intelectual ao aluno. Se ele gosta de atividades como a proposta ou se a realiza
apenas por solicitação do professor.
Disponibilizaremos abaixo a atividade realizada para melhor compreensão da
análise que faremos a partir das respostas dos alunos.
Como você acha que vai ser essa aula de leitura? Você gosta de ler? O que sente quando a professora pede para você ler? Cada um deve ler sozinho os dois textos que seguem, e responder às questões marcando um “X” na letra em que considerar a resposta correta. Instruções: Para responder às questões de números 1 a 6, leia o texto abaixo. CRIANÇA DIZ CADA UMA...
Aninha já estava com dois anos. Loira, linda. Nunca tinha cortado os cabelos. Eram amarelos-ouro e
cacheados. “Parecia um anjinho barroco”, diz a mãe coruja.
Lá um dia, a mãe pega uma enorme tesoura e resolve dar um trato na cabeça da criança, pois as
melenas já estavam nos ombros. Chama a menina, que chega ressabiada, olhando a cintilante
tesoura.
Mamãe vai cortar o cabelinho da Aninha.
Aninha olha para a tesoura, se apavora.
Não quero, não quero, não quero!!!
Não dói nada...
Não quero!, já disse.
E sai correndo. A mãe sai correndo atrás. Com a tesoura na mão. A muito custo, consegue tirar a filha
que estava debaixo da cama, chorando temendo o pior. Consola a filha.
Sentam-se na cama. Dá um tempo. A menina pára de chorar. Mas não tira o olho da tesoura.
Olha, meu amor, a mamãe promete cortar só dois dedinhos.
Aninha abre as duas mãos, já submissa, desata o choro, perguntando, olhando para a enorme
tesoura e para a própria mãozinha:
Quais deles, mãe?
(PRATA, Mário. 100 crônicas de Mário Prata. São Paulo: Cartaz editorial, 1997)
61
1) A ação da narrativa começa quando
(A) Aninha sai correndo.
(B) Aninha abre as duas mãos.
(C) a mãe promete cortar só dois dedinhos.
(D) a mãe pega uma enorme tesoura.
2) As palavras "menina", "que" e "filha" referem-se a Aninha e são utilizadas com a intenção de:
(A) dar continuidade ao texto, evitando a repetição do nome de Aninha.
(B) reforçar a ideia de que a mãe é a personagem principal do texto.
(C) fazer substituições desnecessárias para o entendimento do texto.
(D) tornar o texto incoerente.
3) Aninha não quer cortar os cabelos porque
(A) parecia um anjinho barroco e queria continuar assim.
(B) eles já estavam nos ombros.
(C) fica apavorada ao olhar para a enorme tesoura.
(D) terá de cortar só dois dedinhos.
4) A história ganha ritmo mais acelerado pelo uso das seguintes palavras:
(A) nunca, atrás, debaixo.
(B) correndo, chorando, temendo.
(C) loira, cabelo, enorme.
(D) tempo, tesoura, própria.
5) “a mãe pega uma enorme tesoura e resolve dar um trato na cabeça da criança, pois as
melenas já estavam nos ombros.” Desse trecho compreende-se que
(A) para a mãe, os cabelos já estavam compridos e era hora de cortá-los.
(B) para a menina, os cabelos estavam compridos, mas não precisavam ser cortados.
(C) tanto para a mãe quanto para a menina os cabelos precisavam de um corte.
(D) os cabelos já não eram mais amarelos-ouro, por isso precisavam ser cortados.
6) “Não quero, não quero, não quero!!!.” A repetição de não quero e as três exclamações seguidas
indicam que
(A) a mãe perdeu a paciência com a menina.
(B) Aninha vai cortar o cabelo.
(C) Aninha está falando calmamente.
(D) Aninha está praticamente gritando.
62
Instruções: Para responder às questões de números 7 a 10 leia o texto abaixo.
De Cara Nova
Você vai precisar de:
1 roupa jeans
giz
tinta Puff para tecidos
1. Faça o desenho no tecido com giz. Pinte com cuidado usando a tinta PUFF.
Primeiro faça os contornos, deixe secar e preencha.
2. Deixe o desenho secar por um dia. Peça a um adulto que ligue um secador de cabelos perto do
desenho. Com o calor, a tinta vai inflar, deixando a tinta em relevo.
3. Só lave depois de três dias para que a tinta seque bem.
Você vai precisar de:
Alfinetes
Pingentes coloridos.
Coloque os pingentes no alfinete e prenda na roupa.
(Recreio no 174. Ano 4. 10/07/2003.p. 18 e 19)
7) Este texto serve para mostrar como se
(A) costura uma calça nova.
(B) enfeita uma roupa antiga.
(C) desenha caras com giz e tinta.
(D) utiliza melhor o secador de cabelos.
8) Após ler as instruções podemos afirmar que
(A) nos jeans é preciso colocar as cores amarela e azul.
(B) há um tipo de tinta especial para ser usada.
(C) a pintura do desenho é feita com giz.
(D) os alfinetes servem para prender o bolso na calça.
9) "Peça a um adulto que ligue um secador de cabelos perto do desenho". Nessa frase percebemos
que as instruções do texto são
(A) para costureiras.
(B) só para adultos.
(C) para crianças.
(D) professores de artes.
10) O secador serve para fazer com que o desenho
(A) seque rápido.
(B) não borre.
63
(C) fique em relevo.
(D) diminua de largura.
O que você achou dos textos que leu? Gostou ou não gostou? Por quê?
Você gosta de fazer atividades com leitura de textos? Por quê?
Apesar de nosso interesse na análise dessa atividade ser o de verificar a
existência do medo nas respostas dadas às questões dissertativas, apresentaremos
um gráfico que demonstra quantas questões objetivas cada aluno acertou por
acreditar que os alunos que acertaram mais de cinco questões apresentam mais
facilidade em interpretar o que leem. Como nosso propósito é descobrir se existe
medo quando o aluno lê em sala de aula, precisamos saber, caso exista, se os
alunos com mais facilidade em interpretar o que leem demonstram os mesmos
medos que aqueles com mais dificuldade em interpretação.
Figura 1: Quantos acertos cada aluno obteve.
0
1
2
3
4
5
0 1 2 3 4 5 6 7 8
nº de alunos
nº de acertos
Quantidade de acertos por alunos
64
Foram analisadas as respostas de 20 alunos de uma turma de 6º ano do
Ensino Fundamental II, das quais 07 apresentaram entre cinco e dez acertos das
questões objetivas propostas. Para a análise das respostas, tomaremos a liberdade
de organizar os alunos em dois grupos: Grupo 1 será o dos 07 alunos que acertaram
entre cinco e dez questões objetivas e Grupo 2, o dos 13 alunos que acertaram
menos de cinco das questões objetivas.
Na análise da primeira questão dissertativa “Como você acha que vai ser essa
aula de leitura?”, percebemos uma expectativa positiva com relação à realização da
leitura entre os alunos do Grupo 1. Estes relatam que a aula será “legal”,
“interessante”, e um deles relata até estar curioso pela realização da atividade.
Os alunos do Grupo 2 relatam gostar de ler, mas que acham “chata” a aula de
leitura. Um deles chega a declarar que a aula “será como uma outra aula qualquer”.
Quanto à disposição de espírito, percebemos nos alunos do grupo 1 certa
tranquilidade em relação ao que vai acontecer, dispostos a enfrentar o problema
proposto pela atividade. O Professor Dr. João Hilton Sayeg-Siqueira, em palestra
ministrada sobre o medo no IV Colóquio do grupo ERA (Estudos Retóricos e
Argumentativos), em outubro de 2011, na PUC-SP, apresentou quatro exemplos da
disposição quanto ao enfretamento do que poderia provocar o medo ao destacar
marcadores argumentativos como unidades semânticas de leitura, que, ao se
articularem enunciativamente, atribuem para medo, segundo critérios da psicologia,
um valor estabelecido.
Ao primeiro exemplo, o professor atribui o valor de realização e diz que o
homem encontra sua realização nos estímulos desencadeados pelo crescimento,
pela reprodução, pelo aprendizado. Não se pode deixar vencer pelo desânimo.
Esses estímulos são perceptíveis nos alunos do grupo 1 quando, mesmo antes da
realização da atividade proposta, alegam interesse no que vai acontecer. Quando há
interesse pelo realizável, o medo perde sua força.
Ao segundo exemplo é atribuído o valor de reação: um benefício altruísta tem
início em uma atitude de desembaraçamento do próprio eu, em busca da
desobstrução dos caminhos da realização. Os alunos do grupo 1 não descrevem
qualquer tipo de dificuldade para a realização da atividade, como percebemos nos
alunos do grupo 2 que, por não saberem como será a atividade proposta, permitem a
instauração do medo com alegações de que a atividade será “chata”. Percebemos
nestes o temor do desconhecido. Pela falta de explicação, por parte do professor, do
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que a atividade exigirá e com medo, talvez, de que a exigência seja maior do que
sua competência permite, fica mais fácil que a instauração do medo, logo no início
da atividade, proponha um estado de não aceitação do que está por vir.
No terceiro exemplo, o professor destaca o valor da empatia e diz que o
perigo pode seduzir e despertar o deslumbramento naquele que o domina. A
superação da ameaça enfeitiça e atrai para novos desafios. Um dos alunos do grupo
1 alega estar curioso pela realização da atividade. Com a empatia instaurada, o
medo cede lugar à esperança de que acontecerá algo interessante.
Analisando as respostas dos alunos do grupo 2, encontramos uma disposição
de espírito muito diferente da encontrada nos alunos do grupo 1. Percebemos muita
insegurança, uma sensação negativa quanto ao que ocorrerá, falta de expectativa
em relação à atividade.
A aula será “chata”. A insistência do termo “chato” em quase todas as
respostas nos faz pensar na significação dessa palavra no repertório do aluno, um
espírito crítico ainda incipiente, que regula o mundo pela dicotomia gosto/não gosto e
demonstra medo até mesmo no seu escrever, talvez como uma forma de
dissimulação. Pensam esconder o medo que sentem escrevendo pouco e não
percebem que o caminho que traçam é exatamente o contrário. A leitura, assim, é
uma experiência que não traz prazer e não os ajuda na aquisição de conhecimento
novo enquanto o leitor proficiente é capaz de ampliar o universo crítico e verificar,
por exemplo, a validade de uma nova atividade, ainda que penosa.
Destacamos a resposta do aluno que diz “a aula será como uma outra
qualquer” por não saber se ele quis mostrar certo descrédito quanto à possibilidade
de que as aulas, em geral, o ajudem na construção de conhecimento novo, ou se,
para ele, todas as aulas são boas, portanto, esta também será. O termo “qualquer”
deixa-nos um vazio quanto ao que o aluno quis dizer. Percebemos aqui um ethos
conformista. No que diz respeito à expectativa da aula, retira um componente
fundamental do medo: a ansiedade (medo + antecipação). Tudo é sempre tão igual
que esse aluno não tem nem medo de sentir medo (ansiedade).
Treze alunos representantes do grupo 2, dentre os 20 participantes, assinalam
um ethos sem a perspectiva de que a leitura poderá realizar qualquer mudança de
comportamento em suas vidas. Apenas para confirmar o já dito quanto à mudança
de espírito dos alunos com o passar do tempo na escola, ressaltamos que essa
atividade foi realizada em agosto de 2011, segundo semestre do ano letivo. Esses
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alunos já estão em sala de aula há cinco meses. Portanto, já incutiram um processo
de regulação dos medos possíveis. A escola, para alguns desses alunos, já trouxe
um processo de neutralização de emoções mais fortes por meio do veredito já
instituído de que não sabem ler.
Talvez essa tenha sido a maneira encontrada por eles para demonstrar que,
diante do julgamento realizado, não há mais o que fazer. De qualquer modo, a
expressão emocional demonstra sempre uma intenção comunicativa. E, como já dito
anteriormente, o discurso predominante entre professor e aluno, na busca de um
aprendizado coerente e consciente, em detrimento do judiciário que julga, será
sempre o epidítico que censura, mas que também louva e enaltece os feitos
humanos.
Em Meyer (2007 p. 34) encontramos que “ethos é a imagem de si, o caráter, a
personalidade, os traços de comportamento, a escolha de vida e dos fins” que
identifica o orador. Nesse caso, o orador é o próprio aluno que usa sua voz para
reproduzir o que lhe vem à alma. Esses alunos já possuem em construção a ideia de
que não conseguirão ler e por isso permitem a fomentação do monstro da leitura em
si, que impede seu avanço uma vez que estão ausentes sensações positivas quando
expostos a essa atividade.
Encontramos exemplos desta disposição negativa de espírito nos estudos
realizados pela professora Dra. Ana Lucia Magalhães (2012), com alunos do ensino
superior, quando detectou o medo na mesma proporção que o encontramos nesses
alunos do Ensino Fundamental. A autora diz que o temor seria a disposição da alma
segundo a qual uma coisa desejada não virá. O contrário do temor, nesse caso, é a
esperança, que, em excesso, o anula e se transforma em segurança ou confiança.
Por outro lado, a falta extrema de esperança conduz ao desespero. O medo pode
também ser associado à falta de coragem, excesso de covardia e receio e se traduz
por uma perturbação e um espanto da alma. Nesse sentido, é possível observar em
alunos e professores o medo derivado da falta de esperança de que algo se
concretize.
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Ainda conforme Magalhães (2012), o medo de o aluno se expor, apontado por
professores e alunos, está diretamente ligado à constituição do ethos aristotélico.
Alguns tipos são coincidentes nas duas visões (professores e alunos): expressar-se
oralmente, ser humilhado por colegas/professores, expor opiniões erradas, ser
criticado, apresentar trabalhos, fazer perguntas, interromper a aula para tirar dúvidas;
outros são específicos de alunos: tirar notas baixas, provocar debate com o
professor, expor-se ao ridículo, não saber responder, passar por situações
constrangedoras, como verificamos nos gráficos abaixo:
Figura 2: Medos nos alunos – ponto de vista dos professores
Figura 3: Medos nos alunos – ponto de vista dos alunos
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Uma leitura desses medos conduz à formação da imagem, à possibilidade de
que o auditório conclua por um indivíduo de caráter duvidoso no caso de o aluno não
saber responder questões que ele imagina que outros saibam, por exemplo. É
relativamente comum que alguns optem pela retórica do silêncio e, para preservar a
face, se mantenham calados durante muito tempo para evitar que dele se forme uma
imagem negativa, associada à fraqueza de caráter.
Como possível solução para que a imagem formada a partir da leitura não
seja a de um ethos incompetente, o professor, como orador que é, por meio de seu
discurso, poderá promover um acordo com seu auditório e, desse acordo surgir
situações que não só enalteçam as leituras coerentes mas, e principalmente, não
ridicularize ou vulgarize as leituras que necessitam de ajustes .
Trata-se também de situação disjuntiva: o aluno precisa ser aceito (conseguir
o objeto valor), mas o oponente (outros alunos e professores) pode julgá-lo fraco ou
incompetente. Assim, instaura-se o medo. Como a capacidade de aprendizagem
contribui para a formação do ethos, e uma das medidas de tal aprendizagem é a
avaliação, é perfeitamente compreensível a existência dos medos a ela associados.
Ninguém quer ser avaliado como incapaz, então o medo contribui para a
formação de um ethos que revele o que o auditório espera, não exatamente o que o
orador é. Nos estudos de Meyer (2007) sobre o ethos encontramos um exemplo do
que chama ethos imanente ou projetivo e efetivo. Cita o anúncio em que Catherine
Deneuve, que simboliza a classe e elegância francesa, serviu de modelo para
perfumes da marca Chanel. O ethos do anúncio é a atriz, mas também se poderia
dizer que é a marca.
Nesse exemplo, Meyer (2007) diz ser preciso distinguir entre um ethos
imanente, que é a projeção da imagem que deve ter o ethos aos olhos do pathos, e
um ethos não-imanente, mas efetivo. O orador se mascara ou se revela, se dissimula
ou se exibe, é prudente ou finge com o objetivo de manipular o auditório e assim
conseguir a aprovação tão desejada.
A filosofia hobbesiana (1973) auxilia, embora de forma diferente, na
compreensão do medo de se expor. Como, para Hobbes, existe uma falta de aptidão
natural para a manutenção de uma convivência pacífica, é esperado que os pares
permaneçam em luta pelos seus espaços. O medo advém, neste caso, da
possibilidade da exposição de fraquezas, que torna o aluno vulnerável.
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No ato da leitura, principalmente se for realizada em voz alta, ou se solicitado
a observar detalhes do texto lido, o aluno não conseguirá mostrar a seus pares um
ethos que não seja o seu efetivo. No momento da solicitação do professor não há
como projetar um ethos que não demonstre exatamente a capacidade leitora de
cada um. Não há como dizer ser bom leitor se, de fato, não o for. Todos ali poderão
convencer-se, mediante a exposição de cada leitor, sobre sua capacidade em ler
coerentemente ou não o texto solicitado. Por isso, talvez, a luta pela manutenção do
direito de não ler. Com essa atitude, o aluno não precisará atestar sua fraqueza.
Com relação às perguntas “Você gosta de ler? O que sente quando a
professora pede para você ler?”, percebemos que os 07 alunos do Grupo 1 declaram
gostar muito de ler, mas que sentem medo, “um certo frio na barriga” e até mesmo
um “arrepio” quando são solicitados a ler. Já os 13 alunos do Grupo 2 não utilizam a
palavra “medo” para demonstrar seus sentimentos, mas os termos: “nervoso”,
“vergonha”, “frio na barriga” são bons sinônimos para o medo. Estes mesmos alunos
declaram também que “ler é algo muito chato”. São, pelo menos, duas categorias de
expressão: a primeira, ligada propriamente ao medo. A segunda, ligada ao
desencanto com a leitura. Essa última pode, sim, embutir a sensação de medo, mas
explicita, sobretudo, um certo grau de criticidade ao mimetismo da leitura na escola.
A operação de leitura, então, pode ser apenas “mais uma” entre as muitas atividades
escolares. E elas se dividem em “chatas” e “legais”.
Quando da realização da atividade ressaltávamos a falta de um critério
pedagógico para a tarefa. A resposta, portanto, não é surpreendente: apenas
confirma que, no plano pedagógico, a mesmice é “chata”. A falta de direcionamento
para o ato de ler também o é. O aluno sente a necessidade de uma organização que
ainda não sabe como fazer. Precisa do direcionamento do professor para perceber
que sua compreensão se faz plausível ao texto que lê.
Retomando a afirmação de que leitura é tudo o que nos envolve e proporciona
ampliação do nosso conhecimento de mundo, não nos parece ser o mesmo conceito
trabalhado na escola. E sendo essa instituição a representação de valores sociais
cristalizados, pensamos na existência de um vácuo entre o que a escola espera dos
alunos e o que eles esperam da escola.
Para as perguntas “O que você achou dos textos que leu? Gostou ou não
gostou? Por quê?”, os alunos responderam que gostaram da atividade proposta
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porque aprenderam algo de novo, ou por acharem os textos interessantes, ou
porque eram curtos.
É importante verificar que alguns alunos demonstram consciência de que
aprendem coisas novas nas leituras que realizam, mas que não gostam de textos
longos. Gostaram da atividade porque os textos apresentados eram curtos e,
provavelmente, na era da Internet, em que tudo acontece muito rapidamente, o texto
escrito também tenha que fazer parte desse universo.
É natural que o aluno goste de leituras próximas de suas experiências de vida.
Na era do “tudo muito rápido”: pratos rápidos, sucos prontos em caixinhas,
relacionamentos rápidos acompanhados pela Internet, por que não seria o texto
também algo que trouxesse informação de forma rápida? Para Heinemann &
Viehweger (1991, apud Koch, 2009), o sistema cognitivo nomeado como
conhecimento de mundo é o sistema que, nunca estanque, acompanha as
constantes mudanças existentes na relação humana.
Percebemos nos alunos um ethos que, se não demonstra grande aceitação
pela proposta da escola, pelo menos indica curiosidade e prazer de aprender e
reconhece a aquisição de conhecimento novo a partir das aulas de leitura, mas que
também consegue distinguir o que lhe serve e o que deve descartar das propostas
apresentadas. Ao contrário do que se veicula entre os professores, nossa pesquisa
mostra que, apesar de alguns alunos demonstrarem não gostar da escola, a maioria
acredita que a escola será uma porta a permitir-lhes condições sociais e financeiras
melhores num futuro próximo.
Ainda nos restou uma última pergunta, “Você gosta de fazer atividades com
leitura de textos? Por quê?” Os sete alunos do Grupo 1 responderam que gostam de
atividades com textos porque ler é bom; mas 10 alunos do Grupo 2 responderam que
fazer atividades com textos é “chato”.
Os alunos do grupo 2 que acertaram menos da metade das atividades
propostas insistem na utilização de apenas um vocábulo para determinar o que
pensam sobre a leitura em sala de aula. Dizem que não gostam da realização de
atividades como a proposta por serem “chatas”. Embora essa resposta sugira outras
interpretações que fogem ao escopo de nosso trabalho, é possível pensar que a
ausência de criticidade também promove o medo. Pode ser que esses alunos não
consigam se colocar diante do questionamento e insistem em usar o termo “chato”
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na ânsia de esconder o que os atemoriza, ou ainda, implicitamente, demonstrar por
meio da repetição do termo o que de fato sentem com relação ao ato de ler.
Fomos buscar no Dicionário Michaelis (2012) a significação para a palavra
“chato” e encontramos:
Chato - cha.to adj (lat vulg platu) 1 Que não tem relevo; plano. 2 Sem saliência; liso.
3 gír Sem vintém. 4 Rasteiro, vulgar. 5 pop Importuno, inconveniente, maçador. Dim:
chatoca: "Um deles, chatoca, tinha o chapéu caído sobre a cara" (Francisco Marins).
sm 1 Plano não acidentado. 2 ch V piolho-ladro. 3 Ornit Pequeno marreco de bico
muito reduzido (Anas brevirostris).
Para estes alunos a leitura pode, de fato, ser algo extremamente maçante,
inconveniente e importuno.
Esse modo simplista de resolver o problema pode nascer no
desconhecimento do que lhes é solicitado. Promove, então, a pressa de entender e
reagir ao que lhe parece complexo obstruindo o campo da curiosidade e da
investigação. É a representação do mundo por meio de impressões subjetivas que
reduz a vida a pares antagônicos irreconciliáveis: o bem e o mal/ o “legal” e o
“chato”. É claro que não se pode deixar de reconhecer a existência daquilo que cada
um desses pares antitéticos nomeia, mas o pensamento maniqueísta vai além, à
medida que considera que um lado deve destruir o outro.
Reflitamos um instante sobre a condição desses alunos quanto ao
entendimento do que leem. Não se acha interessante o que não se entende. É o
contexto sociocognitivo que, estrategicamente acionado, permite que um texto
signifique. Nesse âmbito, para que a coerência venha a estabelecer-se em um texto,
é preciso que os usuários da língua tenham a capacidade de construir a significação
trazendo à mente conhecimentos armazenados ao longo de sua vida. Vê-se que “o
sentido de um texto não existe a priori, mas é construído na interação sujeitos-texto.
Assim sendo, na e para a produção de sentido, se faz necessário levar em
consideração o contexto”. (KOCH; ELIAS, 2010, p. 57)
O conhecimento de mundo desses alunos, constituintes do grupo 2 nesta
análise, muito provavelmente não lhes permite inferir que no diálogo entre mãe e
filha do texto “Criança diz cada uma...” a mãe é aquela que, ao cuidar da filha
percebe a necessidade de cortar-lhe o cabelos. Quando precisam cuidar dos
cabelos, principalmente se o cuidado for o de cortá-los, mãe e filhos vão ao
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cabeleireiro Também não é fácil aos alunos a tomada da expressão “dois dedinhos”
em “- Olha meu amor, a mamãe promete cortar só dois dedinhos.” como medida.
Seu conhecimento prévio lhe indica como instrumento para medida régua, fita
métrica, trena; mas, dois dedinhos não parece algo próximo de seu conhecimento de
mundo.
Já o texto “De cara nova” apresenta uma situação mais próxima da realidade
dos alunos. Customizar roupas faz parte da vivência dos adolescentes que, quando
cansados de suas calças jeans, por exemplo, acabam por cortá-las, transformando-
as em shorts.
É justamente o contexto que permite o preenchimento das implicitudes de um
texto, daquilo que não está explícito na superfície textual. Ou seja, “a compreensão
de um texto vai ser vista como um processamento da informação, do conhecimento
na memória” (KOCH; TRAVAGLIA, 1995, p. 63).
Nesta etapa da pesquisa, como se pôde verificar, não foi feita qualquer
questão específica sobre o medo. Nosso objetivo, aqui, era perceber a existência ou
não de indícios que pudessem representar o medo nas atividades de leitura dos
alunos sem que, para isso, precisássemos perguntar diretamente, por exemplo,
“Você sente medo quando lê?”, por acreditar que esse tipo de questionamento
pudesse induzir a resposta do aluno.
3.1 O aluno, o medo e a leitura
Por não ter encontrado nas respostas dos alunos elementos que deixassem
claros os reais motivos do medo que supostamente sentem, resolvemos elaborar,
em outubro de 2011, um questionário individual com o objetivo de encontrar com
mais detalhes e clareza os motivos que causam medo nos alunos quando
frequentam as aulas de leitura. Retomamos, então, as respostas dadas às questões
“Como você acha que vai ser essa aula de leitura?” “E Você gosta de ler? O que
sente quando a professora pede para você ler?” solicitadas na atividade realizada
em agosto de 2011 e elaboramos uma questão com o intuito de fazer com que os
alunos pudessem escrever mais sobre seus supostos medos.
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A atividade foi individualizada, com cada nome de aluno digitado e, muito
provavelmente por isso, percebemos grande interesse dos alunos. Tudo indica que
ao ver seus nomes digitados na questão, preocuparam-se mais com a elaboração da
resposta. Sentiram-se importantes ou perceberam que as respostas dadas na
atividade realizada em agosto foram, de fato, lidas e, suscitaram então esse
complemento. Essa é uma questão que precisa ser levada em conta na escola: a
sensação positiva de autoria. Ao sentirem-se prestigiados como autores, os alunos
assumem uma postura outra, mais real, mais próxima dos objetivos da escola:
formar leitores e formar autores.
A atividade foi elaborada para os vinte alunos participantes da atividade de
leitura realizada em agosto de 2011, mas apenas dezesseis deles estavam
presentes no dia desta aplicação. Para que seja preservada a identidade dos alunos,
iremos denominá-los como aluno 1, aluno 2, aluno 3 e assim sucessivamente. Suas
respostas serão fielmente descritas para que a análise não sofra nenhum tipo de
distorção.
Aluno 1, leia o que você respondeu nas questões da atividade sobre o que acha
de leitura e o que sente quando a professora pede para ler. Por que quando
você lê, no começo acha legal e depois fica chato?
“Bom eu acho que ler é legal sim mais também tem vez que é chato porque todo
mundo fica olhando e perde a vontade de ler, tipo a professora Jaqueline falou para
nois ler um texto e então eu ia me levantar, ela disse que podia ler sentado e agora
eu leio com todo mundo olhando para mim.”
Encontramos em Reboul (1998) que “ethos é o caráter que o orador deve
assumir para inspirar confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus
argumentos, eles nada obtêm sem essa confiança”. Enquanto oradora, a professora
Jaqueline, segundo colocado pelo aluno 1, inspira confiança ao seu auditório. Por
meio de sua intervenção o aluno consegue ler, mesmo quando seus colegas ficam
olhando.
Ainda em Reboul (1998), nos deparamos com o seguinte conceito de pathos:
“é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no
auditório, com seu discurso”. Percebemos certa admiração do aluno à professora
Jaqueline por lhe autorizar ler sentado. A posição mais cômoda lhe traz, também,
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certo conforto à alma, permitindo tranquilidade para a realização da atividade
solicitada.
Como o orador que precisa perceber a necessidade de seu auditório para, por
meio de suas paixões, persuadi-lo ao que deseja, a professora Jaqueline conseguiu
amenizar a sensação de exposição do aluno 1 entre seus pares e fez com que
concluísse a atividade com êxito.
Aluno 2, leia o que você respondeu nas questões da atividade sobre o que acha
da aula de leitura e o que sente quando a professora pede para ler. Você disse
que gosta de ler, mas que fica com vergonha e tem medo das meninas
chamarem você de burra. Do que você tem vergonha e por que esse medo?
Temos perguntas similares para três alunos que tratam, em suas respostas,
da “vergonha”. Denominaremos esses alunos de 2A, 2B e 2C, assim como
discorreremos suas respostas na mesma ordem: primeiramente a resposta do aluno
2A, posteriormente a do 2B e por último a 2C.
“Porque fico com dor de cabeça e tonto, porque eu erro.”
“Antes quando comecei a estudar quando algum professor pedia pra eu lê eu
ficava com vergonha, mas agora quando os professores pedem para eu lê eu não
tenho mas vergonha porque eu gosto de ler.
“Eu tenho vergonha de ler alto, e se eu erro uma letra as meninas, meninos
vai me chamar de burro. Eu acho que eu não tenho que ficar com vergonha porque a
professora mandou eu ler. Fim”.
Em Aristóteles (2000, p. 39) encontramos que “a vergonha é certa tristeza ou
perturbação com respeito aos vícios presentes, passados ou futuros, que parecem
levar à desonra”. Então, cometer qualquer tipo de erro ao ler em voz alta é, para
esses alunos, um vício, uma falta vergonhosa, com exceção do aluno 2B que alega
não sentir mais vergonha porque agora gostar de ler.
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Apesar de saber, em Aristóteles (2000), que vergonha e medo são paixões
diferentes, nas respostas desses alunos elas se unem. Por meio da vergonha que
sentem ao ler em voz alta, nota-se o medo instaurado pelo julgamento do outro
porque tememos as pessoas que podem nos causar algum mal, assim como
tememos os próprios males causados por elas e o momento dessa ocorrência.
O medo se transmuta do psicológico para o físico no aluno 2A. Errar para ele
é tão vergonhoso que sua dor inconsciente torna-se consciente e em muitos
momentos veste-se com os próprios movimentos da alma e se revela como
fenômeno que atinge graus insuportáveis, modernamente até considerados
patológicos. As visões sobre esse fenômeno humano vão mudando e, como afirma
Foucault, em História da Loucura na Idade Clássica (1997), as paixões da alma vão
deixando de pertencer à Metafísica, à Ética e à Política para se tornarem, pouco a
pouco, objeto de estudo da Medicina, da Clínica e da Psicologia científica. Não mais
são consideradas como vícios ou virtudes, mas, por deixarem de ser paixões, ficam
sob a suspeita de serem doença. (Chauí, 1996, p. 44 apud Ferreira, 2012).
Ao defrontar-se com o medo, o aluno tem reações físicas que denotam, na
perspectiva contemporânea, algo que suplanta os limites da normalidade, porque
sua vergonha está em não apresentar uma leitura como a realizada pelo professor
que, conhecendo a função da pontuação, por exemplo, produz entonações
diferentes, conforme o texto suscita. Podemos pautar essa reação do aluno 2A ao
que Perelman (2005) denomina “argumentos que fundamentam a estrutura do real”,
que trata o modelo como imitação de pessoas ou grupos cujo prestígio valoriza os
atos.
O valor da pessoa, reconhecido previamente, constitui a premissa da qual se tirará uma conclusão preconizando um comportamento particular. Habitualmente, o modelo glorificado é proposto para a imitação de todos. O modelo indica a conduta a seguir, serve também de caução a uma conduta adotada. (PERELMAN, 2005, p. 414-415)
O aluno vê-se obrigado a ler como o professor, porque este é o modelo de
comportamento a ser imitado. Hierarquicamente, na instituição de ensino, o
professor é tido como superior ao aluno por ser aquele que, detentor do saber, deve
ser imitado.
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A argumentação se esteia não só nos valores, abstratos e concretos, mas também nas hierarquias, tais como a superioridade dos homens sobre os animais, dos deuses sobre os homens. Um dos princípios hierarquizantes mais usuais é a quantidade maior ou menor de alguma coisa. (PERELMAN, 2005, p. 90-91)
Em Barthes encontramos as concepções de texto de prazer e texto de fruição.
Texto de prazer é aquele que contenta, enche, dá euforia; que vem da cultura, não
rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição é
aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta, faz vacilar bases
históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus
valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.
(Barthes, 2010, p. 20-21)
Para o aluno 2B, toda leitura em voz alta lhe aproxima da sensação descrita
por Barthes (2010) quando do convívio com o texto de fruição. A sensação que o
aluno descreve faz pensar no quanto a situação de leitura lhe traz insegurança
psicológica quanto ao seu próprio saber. Ele fica tonto, perde a consciência de seus
gostos, de seus valores e de suas lembranças. Nada mais natural do que uma
relação de desgosto e distanciamento com a leitura.
O aluno 2A tem consciência do obstáculo que o impede de imitar o professor -
“eu erro” – então, para fugir do medo, declara não gostar de ler. Como identifica,
para a construção de seu ethos, o lugar da qualidade, protege sua imagem antes
que essa lhe promova o título de incompetente.
Esse medo inominável não nos oferece a lógica do preferível, do aceitável, do razoável. Simplesmente refuta o que há de sábio em nós e se aninha, como um feitor autoritário, dentro do invólucro que, insensatamente, chamamos de nosso corpo, e que, na verdade, apesar de toda a ciência, pouco dominamos. (FERREIRA, 2012).
O aluno 2C tem sua preocupação voltada para a construção da imagem que
seus colegas (auditório) farão dele. Preocupa-se, pois, com o ethos, mas é da
construção do pathos que emana seu medo. Como já vimos, para a retórica, “pathos
é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no
auditório com seu discurso”. (REBOUL, 1998, p. 48)
Para o aluno 2C, o auditório já tem instituído que o ethos do aluno competente
é aquele que não erra nenhuma letra quando lê em voz alta. Se o faz é considerado
“burro”. Então, fica a sensação de que o medo atormenta os alunos quando o
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professor solicita leitura em voz alta por colocar em risco seu ethos de leitor
competente aos colegas de classe, pela obrigação de ler sem que cometa erro.
Em retórica, a obrigação não permite o discurso persuasivo. A obrigação
impõe, condiciona e impossibilita o auditório de querer aderir ao raciocínio proposto.
A obrigação, como o próprio nome diz, “obriga” a ação. Mas, o aluno alega gostar de
ler e tenta certificar-se de que não tem que ficar com vergonha (“Eu acho que eu não
tenho que ficar com vergonha porque a professora mandou eu ler. Fim”). Esse é um
argumento que Perelman (2005) classifica como pragmático dentre os argumentos
fundados na estrutura do real. É ele que permite apreciar se uma coisa consoante
suas consequências, presentes ou futuras, tem uma importância direta para a ação
(Perelman, 2005, p. 303). O aluno lê em detrimento de sua “vergonha” porque a
professora “mandou”.
O aluno 2B demonstra mais segurança quando comparado aos alunos 2A e
2C. Ao contrário destes, o aluno 2B diz que, por gostar de ler, não sente mais a
vergonha que sentia quando começou a estudar. Quanto ao argumento da
comparação, encontramos classificações diferentes em Reboul (1998) e Perelman
(2005) com relação às técnicas argumentativas.
Para Reboul (1998, p. 183), o argumento é estudado como um dos que
fundamentam a estrutura do real, por alegar que o que se mede é sempre empírico.
Em Perelman (2005, p. 274), sua classificação fica entre os argumentos quase
lógicos, por cotejar vários objetos para avaliá-los um em relação ao outro.
Porém, os autores concordam que a comparação é estudada enquanto
argumento que, ao reconhecer dois objetos, os sobrepõem com identificação de
valor. No caso da vergonha entre os três alunos, o aluno 2B não faz dela uma
espécie de doença patológica como o aluno 2A, nem uma característica que defina
seu ethos como o aluno 2C.
Aluno 3, leia o que você respondeu nas questões da atividade sobre o que
acha da aula de leitura e o que sente quando a professora pede para ler.
Você disse que gosta de ler, mas que tem medo. Do que você tem medo?
“Eu gosto de ler mais eu tenho medo que os meus colegas dão rizada de
mim.”
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O aluno não deixa claro se seu medo diz respeito à leitura em voz alta ou se
quando solicitado a falar o que compreendeu do texto lido. O fato de os colegas
rirem o faz temer o momento de sua colocação. O homem é um ser social e,
portanto, sujeito às opiniões externas. Na escola, percebemos entre os alunos certo
grau de crueldade quando opinam sobre as ações de seus pares. Se permitido,
levam o colega leitor a sentir-se ridículo com o riso irônico que desmotiva a sua
ação.
O ridículo está para a argumentação assim como o absurdo está para a demonstração: é preciso ressaltar uma incompatibilidade, e a ironia é a figura que condensa esse argumento pelo riso. Quando a incompatibilidade é nociva, ela já não é ridícula, porém odiosa. O ridículo é o odioso desenvenenado, que não provoca escândalo, porém riso. (REBOUL, 1998, p.169-170)
Ele lê por força de um discurso institucional, mas não lê naturalmente: o medo
o faz obedecer e, simultaneamente, sentir-se inseguro e solitário. Lê o texto por
fruição, não por prazer. Lê apenas o desenvolvimento lógico, orgânico, histórico do
texto; apenas o que consegue ver entre as linhas. (Barthes, 2010)
Perceber o medo do riso nos remete às preocupações de Cícero (apud
ALBERTI, 2002, p. 59) que diz que, “o bom orador tem sempre uma razão para
empregar o risível, enquanto os bufões e mimos fazem troça o dia todo e sem
razão”. Pensamos então, nos alunos que riem, como os bufões. Riem sem um
motivo concreto, apenas para ridicularizar o colega que lê.
O aluno não traz consigo a percepção da real necessidade de seus colegas
rirem, nem os que riem conseguem, se perguntados, identificar o motivo de seu riso.
Talvez possam rir com o intento de se sentirem superiores, como os bons oradores,
ou ainda, simplesmente, como os bufões, rirem ou fazerem rir sem razão alguma.
Aluno 4, leia o que você respondeu nas questões da atividade sobre o que acha
da aula de leitura e o que sente quando a professora pede para ler. Por que
você sente “um frio na barriga” quando lê?
“Porque eu tenho um pouco de medo quando eu vou ler. Eu tenho dificuldade de ler
e por isso tenho medo”.
Diferentemente dos casos já analisados, este aluno tem consciência da sua
dificuldade. Seu medo consiste em expor essa dificuldade aos colegas de classe.
Mais uma vez percebemos a preocupação com a imagem que o outro faz do orador
79
a partir de seu discurso. Todos os homens precisam da aceitação de seus pares
para se sentirem felizes.
Para a retórica, o orador nunca está sozinho. Ao produzir seu discurso, está
em concordância com outros oradores ou em oposição a eles, sempre em função de
outros discursos. Para ser bom orador, não basta saber falar, é preciso saber a
quem se está falando. (Reboul, 1989, p. XIX).
Este aluno sabe de suas limitações e, similar ao aluno 2ª, transmuta seu
medo às dimensões físicas do corpo. “Eu sinto um frio na barriga” alega antes de
dizer “Eu tenho dificuldade de ler, por isso tenho medo”. Ele sabe que, ao ler,
permitirá que todos os colegas conheçam suas dificuldades com a leitura e talvez,
imaginando o julgamento que o espera, instaura-se a dor física.
Aluno 5, leia o que você respondeu nas questões sobre o que acha da aula de
leitura e o que sente quando a professora pede para ler. Você disse que gosta
de ler e sente orgulho quando lê. Também disse que quer que a escola vá para
o inferno. Por que disse isso? Você não gosta da escola?
“Não. Eu gosto da escola, é que a professora é chata e fougada, por isso que eu
falei que a escola vá para o inferno, porque a professora deixa brigar, chega na
reunião “fode” a gente e fala tô orgulhosa de você, mas na reunia fala que faz
bagunça, que briga, que fala palavrão, etc. algumas professoras são forgadas.”
A falta de confiança na professora é um elemento extremamente explícito na
resposta deste aluno. Para ele, a professora aparenta ser uma pessoa em sala de
aula, mas se mostra outra quando em reunião (entendemos que se trata da reunião
bimestral existente na escola, entre pais e mestres). Este aspecto de dissociação da
professora nos remete ao par aparência-realidade que Perelman (2005, p. 472)
assim descreve: “enquanto as aparências podem opor-se, o real é coerente”.
A professora parece se comportar de maneiras diferentes quando está em
frente aos alunos e quando está junto aos pais, de maneira que o seu caráter real se
mostra difuso. O aluno demonstra certa ira com essa postura da professora e, por
isso, diz que ela é “folgada”, e enfatiza esse adjetivo porque com eles (alunos) seu
discurso é o de parabenizá-los pelo aprendizado, mas com os pais, denigre a
imagem dos alunos ao dizer que fazem bagunça, brigam e falam palavrões.
Constatamos a importância da construção do ethos para a adesão do auditório.
80
Observamos que essa professora não tem a adesão de seus alunos porque não
constitui um ethos que os permitam ter como verdade o seu discurso. Fomos, então,
observá-la em sala de aula e notamos sua dificuldade em obter aceitação dos alunos
para a realização das atividades que propõe. Na construção do pathos, os alunos
veem nela alguém não confiável, portanto, não dão crédito às suas aulas.
As premissas da argumentação consistem em proposições admitidas pelos ouvintes. Quando as conclusões do orador desagradam aos seus interlocutores, eles podem opor a essa presunção de acordo sobre as premissas uma denegação que terá o efeito de minar toda a argumentação pela base. (PERELMAN, 2005, p. 118)
Ainda nesta resposta encontramos como figura de sentido a hipérbole: “eu
gosto muito de ler”, “... eu leio de voz muito alta e com muito orgulho”. O aluno
ressalta suas habilidades para comprovar a ausência do medo quando lê, visto que
em nenhum momento de sua resposta, tanto na atividade realizada em agosto de
2011 quanto nesta em análise, percebemos indícios do medo.
Aluno 6, leia o que você respondeu nas questões sobre o que acha da aula de
leitura e o que sente quando a professora pede para ler. Por que você disse
que fica meio apreensivo ou nervoso quando a professora pede para você ler?
Observamos aqui, que três alunos relatam seus medos por meio da
apreensão ou do nervosismo quando realizam leitura em voz alta na sala de aula.
Serão denominados alunos 6A, 6B e 6C.
“Porque eu não gosto de ler na frente dos outros porque eu tenho vergonha de eu
errar e eles rirem de mim.”
“Porque eu leio um pouco mal e se pedir para mim ler na sala em voz alta, eu leio
mas com vergonha e fico nervosa”.
“Eu fico nervosa porque eu vo lê para todos os meus amigos e porque eu tenho
medo de errar.”
Mais uma vez percebemos, entre os alunos, o medo da reação do outro. Ao
realizar a leitura em voz alta, o aluno sabe que lê não só para o professor, mas para
81
o auditório ali presente e sabe que, nesse momento, também é lido pelos mesmos.
Os alunos 6A e 6C têm medo de errar. Além do erro, o aluno 6A também teme que
riam dele. Em Aristóteles (2011) encontramos que “tememos aqueles que competem
conosco no caso de ser impossível que os benefícios que eles e nós aspiramos
pertençam simultaneamente a eles e a nós, pois haverá guerra contínua entre nós e
eles” (p. 139).
Há, para esses alunos, uma competição em sala de aula para ver quem não
erra, e o castigo, para os que não conseguem, é o riso dos demais. O medo de ser o
que perde na guerra instaurada entre os alunos, pelo comentário positivo do
professor, ou pela nota de leitura, faz com que aleguem não gostar de ler. Assim,
não precisam duelar com seus pares. Não há nota se o professor não conseguir
saber o quanto cada aluno sabe ler. Também não se corre o risco do ridículo entre
os colegas.
O aluno 6B tem consciência da sua dificuldade, assim como já visto no aluno
4. O primeiro sente “vergonha” quando lê em voz alta, o segundo sente “frio na
barriga”. Ambos, porém, transformam sua dificuldade de aprendizagem em mal físico
ou psicológico transmutando as sensações que poderiam trazer tranquilidade em
sensações patológicas. O aprendizado, entendido como um momento natural na vida
das crianças, porque “aprender é uma atividade construtiva que o aprendiz deve
levar a cabo” (Colomer, 2002, p. 75), não se mostra positivo para esses alunos que o
vivenciam como momento de grandes males, a ponto de não entenderem a escola
como lugar onde se aprende.
A escola é justamente a instituição escolar encarregada de oferecer-lhes a oportunidade de assimilar a modalidade mais abstrata de representação verbal, a língua escrita. Essa aprendizagem deve ser realizada mediante a reconstrução progressiva dos conceitos que eles já possuem em maior ou menor grau quando chegam à escola. (COLOMER, 2002, p.62)
Aluno 7, leia o que você respondeu nas questões sobre o que acha da aula de
leitura e o que sente quando a professora pede para ler. Por que você não
sente medo? Há colegas que sentem medo quando vão ler?
“Não e eu gosto de ler, é legal, nois aprende e se nois não ler não responde eu não
sinto nada porque eu gosto de ler.”
82
Ao contrário das colocações anteriores, esse aluno alega gostar de ler. Para
sua justificativa esclarece que, quando lê, aprende alguma coisa, nem que seja
responder o que o professor solicita do texto lido. Apesar da resposta tímida,
percebemos nesse aluno um bem estar com relação à leitura em sala de aula. O
oposto do medo, segundo Aristóteles (2011), é a confiança. E o que nos inspira a
confiança é o contrário daquilo que gera o medo. Assim, a confiança nos faz pensar
que as coisas que podem nos trazer segurança estão próximas, e que as que
causam medo estão ausentes ou distantes.
Diante da natureza do medo, aquilo que o gera e as diversas situações nas
quais é experimentado, podemos também ver qual é a natureza da confiança: em
quais coisas a sentimos e em quais disposições somos levados a experimentá-la.
Em Aristóteles (2011) encontramos a possibilidade de duas razões para os seres
humanos enfrentarem o perigo sem medo: ou nunca tiveram a experiência do perigo,
ou dispõem de meios para lidar com ele.
Em sala de aula, acreditamos que o aluno 7 tenha encontrado os meios para
lidar com o medo da leitura. Sua disposição nos revela achar a leitura legal e
conseguir, por meio dela, construir aprendizado novo.
Aluno 8, leia o que você respondeu nas questões sobre o que acha da aula de
leitura e o que sente quando a professora pede para ler. Você disse que gosta
de ler, mas não disse o que sente quando a professora pede para ler. Poderia
dizer o que sente nessa situação?
A pergunta foi elaborada para cinco alunos que serão denominados 8A, 8B,
8C, 8D e 8E.
“Sinto bem mas tenho vergonha da professora”
“Cada vez que leio eu aprendo mais e eu sempre vou obedecer quando a professora
pede para mim ficar com a nota boa.”
“Eu gosto do livro que a professora dá e quando a professora manda eu ler eu “sido”
que eu aprendi ler e escrever e responder.”
83
“Frio na barriga quanto eu vou ler para a professora. Sim, eu gosto de ler, é muito
legal ler.”
“Me sinto péssima, ela manda eu ler o texto e eu leio mas se eu leio errado os
colegas dão rizada.”
Interessante observar que todos os alunos alegam, quando da atividade de
agosto de 2011, que gostam de ler. Percebemos ainda que alguns deles (alunos 8B
e 8C) atribuem à leitura um momento de aprendizado. Porém, relacionam o
momento da leitura à solicitação da professora. Leem porque a professora pede,
mas sentem o movimento do medo quando dessa leitura. O aluno 8B excede o
momento de leitura como o de interação para a obediência à professora. Deve
obediência à professora por considerá-la autoridade ou mesmo, como escreve,
apenas para a obtenção da nota. Não é diferente o colocado pelo aluno 8C que lê
porque a professora o “manda” ler.
Percebemos nas respostas desses alunos uma relação de autoritarismo em
que a professora manda e os alunos obedecem. Já dissemos em outro momento que
onde há autoritarismo não há retórica. Quando o aluno realiza uma atividade para
obedecer ordens, não consegue estabelecer relação de interação entre ele, o
professor e o que se propõe a aprender. Apenas realiza a atividade proposta sem
perceber se há aprendizado nessa ação. Mas alguns deles (8B e 8C) alegam que
aprendem algo. Para eles, talvez, a professora seja o modelo a ser seguido.
Em Perelman (2005) encontramos nas ligações que fundamentam a estrutura
do real, o caso particular do modelo e do antimodelo. Quando se trata de conduta,
um comportamento particular pode servir para estimular a uma ação nele inspirada.
Mas a imitação de uma conduta nem sempre é espontânea. Às vezes pode-se ser
levado a ela. A argumentação se fundamentará, quer na regra de justiça, quer num
modelo ao qual se pedirá que se amoldem. Neste caso o autoritarismo da professora
em “mandar” ler, a torna modelo, na utilização da segunda opção da argumentação
“pedirá que se amoldem” ao seu comportamento.
Podem servir de modelo pessoas ou grupos cujo prestigio valoriza os atos. O valor da pessoa, reconhecido previamente, constitui a premissa da qual se tirará uma conclusão preconizando um comportamento particular. (PERELMAN, 2005, p. 414)
84
Diante do exposto nas respostas dos alunos nos certificamos que eles sentem
muito medo quando o professor pede para que façam leitura em voz alta do texto em
estudo. Não querem que seus colegas percebam suas dificuldades na leitura oral.
Sentem medo não exatamente da leitura ou do professor, mas do julgamento que
seus pares farão.
Pensamos ter encontrado mais uma resposta às nossas dúvidas. Percebemos
que o medo do julgamento dos colegas de classe é recorrente nos alunos do grupo 1
tanto quanto nos do grupo 2. Ou seja, o fato de se conseguir mostrar uma
competência leitora adequada ao seu nível de escolarização, por meio de atividade
realizada em sala de aula, não exclui o aluno do rol dos que sentem medo do
julgamento alheio. Aristóteles (2011 p. 138), em seus estudos, já se posicionava
quanto a esse tipo de sentimento quando diz que “só tememos aquilo que pode nos
causar profundos sofrimentos e grandes perdas, inclusive nossa destruição. E
tememos aqueles que podem nos fazer mal quando estamos vulneráveis a eles”.
As respostas dos alunos confirmam os preceitos aristotélicos de que ethos e
pathos são de ordem afetiva e logos é racional. O ethos é o caráter que o orador
deve assumir para inspirar confiança no auditório e o pathos é o conjunto de
emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com o seu
discurso. (REBOUL, 1998, p. 48)
Os alunos sentem que é preciso um bom desempenho para serem aceitos
pelo auditório que, por sua vez, responde de acordo com os sentimentos
despertados pelos argumentos do orador, o logos.
Na certeza de que, segundo colocações dos alunos, o professor não é o
motivo gerador do medo em sala de aula, partimos do pressuposto de que aprender
a ler não é diferente de aprender outros procedimentos ou conceitos. Exige que o
aluno possa dar sentido àquilo que se pede que ele faça, que disponha de
instrumentos cognitivos para fazê-lo e que tenha ao seu alcance a ajuda
insubstituível do seu professor, que deverá ser aquele que tranquiliza e proporciona
confiança, a paixão que combate o medo.
A confiança é o contrário do temível, de sorte que a esperança é acompanhada da suposição de que os meios de salvação estão próximos, enquanto os temíveis ou não existem, ou estão distantes. São confiantes os que tiveram resultados felizes, os que escaparam de situações perigosas. Sentimos confiança quando não tememos nossos semelhantes. (ARISTÓTELES, 2000, p.35-37)
85
Buscaremos, então, responder outro questionamento: o professor de língua
portuguesa tem sido aquele que, ao não provocar medo, desperta tranquilidade e
confiança nas suas aulas de leitura?
Diante da dúvida, precisamos refletir sobre a identidade do professor como
representante da escola. Antes, porém, será necessário situar no tempo os
paradigmas que regem a educação no Brasil. Para Kuhn (1962), “paradigma é aquilo
que membros de uma comunidade científica partilham”.
3.2 A escola de ontem e a escola de hoje
A escola tradicional surgiu a partir do advento dos sistemas nacionais de
ensino, que datam do século XIX, mas só atingiu maior abrangência nas últimas
décadas do século XX. A organização desses sistemas de ensino inspirou-se na
emergente sociedade burguesa que disseminava a ideia de educação como um
direito de todos e dever do Estado com a função de auxiliar a construção e
consolidação de uma sociedade democrática.
Essas escolas eram formadas por classes orientadas por um professor que
expunha as lições e aplicava os exercícios que os alunos realizavam
disciplinadamente. O professor era o detentor do saber e o que impunha ordem e
organização em todas as tarefas realizadas dentro da escola. Esse modelo de escola
estendeu-se, no Brasil, até o final da Ditadura Militar (1964-1985) e bem representou
sua função de formar pessoas passivas, obedientes e patriotas.
Com o fim da Ditadura Militar e a aprovação da Constituição Federal de 1988,
percebem-se objetivos diferentes para a educação no país, pois uma sociedade
democrática exige que seus cidadãos sejam críticos e criativos, capazes de
compreender problemas, teorias e argumentos, reagindo a eles de forma
consequente, para que o poder de decisão não se concentre nas mãos de poucos.
As Instituições de Ensino começam a fomentar ideias e teorias na tentativa de
mudar a forma de educar. Surgem paradigmas voltados à necessidade da crescente
indústria que, em pleno desenvolvimento, precisava de homens capazes de produzir
ativamente. Os currículos escolares configuram-se como mera justaposição de
disciplinas auto-suficientes. No entanto, o paradigma tradicional não foi abandonado.
Psicologia e trabalho são os pilares das experiências da Escola Ativa e da Escola
86
Nova, em que o professor é mero facilitador da aprendizagem, quase indispensável
na perspectiva de quanto menos intervir, melhor.
Organiza-se o ensino-aprendizagem sob a forma de programação sistemática,
orientada por objetivos precisos e quantificáveis, com metas escalonadas e padrões
de desempenho verificáveis.
Por volta dos anos 1980, instaurada a insatisfação com os resultados obtidos
ainda sob o véu do paradigma da escola tradicional, ocorre o que Kuhn denomina
“período de crise”, dando início a uma fase de novos paradigmas que receberam o
nome de construtivismo. (Kuhn, 1978)
O construtivismo é uma concepção pedagógica que, baseada nas ideias de
Jean Piaget (1896-1980), vê o professor não mais como o “senhor do saber”, mas
como o mediador do conhecimento, em que os alunos não aprendem por
memorização e transmissão de informações, mas construindo o seu próprio
conhecimento, formulando hipóteses a partir da interação concreta com o objeto de
estudo, participando e questionando. Assim, pessoas e grupos confrontam-se no
diálogo da aprendizagem coletiva, em que cada um, a seu modo, dá testemunho das
múltiplas possibilidades humanas.
Como percebemos, ao longo do tempo, identificamos perfis diferentes do
professor, próprio pela adequação do seu papel ao meio social. Geraldi (2010) nos
apresenta alguns desses perfis: antes o sujeito que produzia conhecimentos, depois
o sujeito que sabe o saber produzido por outros e que o transmite e, a partir do início
do século XX, aquele que aplica um conjunto de técnicas de controle na sala de
aula.
Quando produtor de conhecimento, havia quem — ou por incumbência dos
pais ou por reconhecer o valor do conhecimento — os seguia, aprendia suas
experiências e dava continuidade aos seus estudos e observações. Esse professor
detinha exatamente o perfil necessário para a manutenção da ordem e da
aprendizagem por meio de cópia tão difundida pela escola tradicional.
Como aquele que sabe o saber produzido por outros e o transmite, era visto
como o que deve ser consultado para resolver um problema. Era ele o detentor do
conhecimento apesar de não o produzir. Reproduzia as normas estabelecidas pela
indústria emergente em nosso país por volta dos anos 1960 e 70.
87
Sendo o que aplica um conjunto de técnicas de controle na sala de aula,
passa a distribuir o tempo, distribuir as pessoas, e verificar se houve “fixação” do
conteúdo, comparando respostas dos aprendizes com o “livro do professor”, em que
exercícios e tarefas estão resolvidos e oferecem a chave de correção de qualquer
desvio. Com essa mudança no perfil do professor, ensinar não é mais um modo de
constituir uma civilização, mas um modo de controlar e restringir sentidos. A escola
ensina verdades de forma verdadeira, é o lugar de ascensão social.
Nas duas últimas décadas do século XX, percebemos que esse modelo de
professor como sujeito que controla o processo de aprendizagem entra em crise e,
com ele, a escola é chamada a responder a um desafio que não é mais seu, porque
já não é mais um desafio proposto pela relação entre professor, aluno e
conhecimentos, mas posto pela obsolescência de saberes e práticas produtivas.
Essa escola, chamada a correr contra o tempo na apresentação de diversas
propostas curriculares, modelos de trabalhos pedagógicos, formação rápida de
pessoas para mão de obra, não dá conta nem da aprendizagem enquanto instituição
do ser, nem de representar uma instituição promotora das necessidades do mercado
de trabalho.
Voltando ao ideal de “saber como produto das práticas sociais” (GERALDI,
2010, p. 94), não cabe à escola estabelecer regras do que e de como se deve
aprender. A aquisição do conhecimento se dá de forma a observar o dia-a-dia da
comunidade em que se vive.
Temos, então, um novo perfil para o professor. Diferente do sujeito que tem as
respostas que a herança cultural já deu a certos problemas, este agora deverá ser
capaz de considerar suas experiências, as experiências dos alunos e transformar
tais experiências em perguntas. O ensino do futuro não terá como base as
respostas, mas as perguntas. “Aprender não é se tornar um depósito de respostas já
dadas. Saber não é dispor de um repertório de respostas. Saber é ser capaz de
compreender problemas, formular perguntas e saber caminhos para construir
respostas”. (GERALDI, 2010, p. 96)
O professor deverá ser aquele que questiona e proporciona um ensino que
produza aprendizagem, que valorize a construção do novo a partir do que já se
conhece.
88
Quem sabe esse novo professor que faz do seu conhecimento a ponte (ou o
andaime) para a construção do saber a partir das perguntas consiga resgatar no
aluno o interesse em solucionar seus próprios problemas, aprendendo, a partir de
tudo que já sabe, na elaboração das respostas, um saber novo e promissor para - e
porque não - também, a solução dos problemas de seus semelhantes? Não
esqueçamos a resposta do aluno A no questionário individualizado: “tipo a
professora Jaqueline falou para nois ler um texto e então eu ia me levantar, ela disse
que podia ler sentado e agora eu leio com todo mundo olhando para mim.”
Para ele, a professora Jaqueline foi a pessoa que lhe permitiu a sensação da
confiança que precisava para que pudesse realizar a leitura solicitada sem que o
monstro do medo o dominasse.
A confiança é o contrário do temível, de sorte que a esperança é acompanhada da suposição de que os meios de salvação estão próximos, enquanto os temíveis ou não existem, ou estão distantes. São confiantes os que tiveram resultados felizes, os que escaparam de situações perigosas. Sentimos confiança quando não tememos nossos semelhantes. (ARISTÓTELES, 2000, p. 35-37)
A aprendizagem da leitura requer uma intervenção explicitamente dirigida a
essa aquisição. Aprende-se a ler lendo, tentando e errando, sempre guiados pela
busca do significado ou pela necessidade de produzir algo que tenha sentido.
O domínio da leitura pressupõe poder ler de forma convencional. Para ensinar
os procedimentos é preciso mostrá-los como condição prévia à sua prática
independente, isso ajuda a compreender que a aprendizagem da leitura se constrói
no seio de atividades compartilhadas e que não se pode esperar que a criança
mostre competência naquilo para que não foi instruída.
É importante que o professor verifique o conhecimento prévio do aluno sobre
o que vai ser lido, uma vez que tal ação estimula-o a descobrir o que lhe
proporcionará a leitura. O professor poderá formular hipóteses e contextualizar do
texto, assim como primar na elaboração de perguntas orientadoras para a leitura e
não permitir a divisão em unidades menores.
Para ensinar leitura é necessário que o professor de língua portuguesa tenha
claro que não existe uma leitura única, ou melhor, a sua leitura, como a única do
texto. Kleiman (2010, p. 37) destaca que “o papel do professor pode não ser o de
mediador entre o autor e o leitor, mas de fornecedor de condições para que essa
relação de interlocução se estabeleça”.
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Como representante das instituições educacionais, o professor vem
construindo, nas últimas décadas, um ethos muito próximo do que Kleiman (2010)
alega ser o seu papel: aquele que estuda e executa “os meios de salvação” para que
o aluno sinta a confiança necessária para vencer o monstro do medo. Resta saber se
ele, professor, está conseguindo atender a esta criação institucional de ethos.
A partir dessas reflexões, realizamos uma atividade com alunos de todos os
segmentos do Ensino Fundamental II (6º, 7º, 8º e 9º anos). Nosso objetivo era
verificar se o professor atua como mediador da leitura em suas aulas e se consegue
amenizar o medo que o aluno sente durante a leitura em voz alta na sala de aula.
Fizemos um levantamento com os alunos dos 6º, 7º e 8º anos com ênfase na
verificação do que seria medo para eles. Ampliamos o universo de investigação,
retomamos o questionamento com os alunos que já haviam participado das
atividades anteriores, mas também com os demais alunos do Ensino Fundamental II
do período da tarde e duas turmas do 9º ano do período da manhã. Elaboramos
questões mais diretas como “O que é medo para você?”, “Você sente algum tipo de
medo na escola?”, “Ler dá medo?”, “Como o professor conduz as aulas de leitura na
escola?”, “Se pudesse, você tiraria as aulas de leitura na escola?”
Há uma recorrência nas respostas dos alunos quanto ao medo da leitura em
voz alta em sala de aula, porém, naquele momento, percebemos elementos que nos
mostram a intensidade desse medo em detrimento a outros medos observados entre
os alunos do 9º ano.
As respostas dos alunos trazem à tona algumas colocações exatamente como
as encontradas em suas atividades para que a observação de suas falas nos revele
seus sentimentos com relação à leitura em sala de aula sem que a interferência
dessa pesquisadora cause alguma conotação contrária ao que o aluno quis,
realmente, dizer.
Para os alunos do 6º, 7º e 8º anos foram elaboradas as mesmas questões e
estas foram respondidas no mesmo dia, 26 de setembro de 2012, aproximadamente
um ano após as primeiras atividades; portanto os alunos dos 6º anos não são os
mesmos participantes da atividade realizada em agosto e outubro de 2011. Aqueles,
em 2012, fazem parte do grupo de alunos que estão no 7º ano, mediante progressão
continuada, presente no sistema educacional do Estado de São Paulo. Foram
analisadas as respostas de quarenta e dois alunos do 6º ano, sessenta e sete do 7º.
ano e cinquenta e seis do 8º ano.
90
Elaboramos, naquele momento, questões mais diretas na esperança da
obtenção de respostas mais claras que as já obtidas nas atividades anteriores.
Começaremos pela questão “Você gosta de ler? ( ) SIM ( ) NÃO Por quê?”
Para verificarmos as posições dos alunos elaboramos um quadro indicativo
com as respostas, respeitando os anos que cursam.
SIM NÃO NÃO RESPONDERAM
6º ano 32 09 01
7º ano 52 13 02
8º ano 42 12 02
Figura 4: Respostas dos alunos à questão “Você gosta de ler?”
Essas respostas são surpreendentes, pois, após ouvir tantas vezes, na sala
dos professores, que os alunos não sabem ler, que não gostam de ler e por isso não
valorizam as atividades de leitura propostas, passamos a tomar essa fala como
verdade e também rotular o aluno como alguém que não se importa com o processo
de aprendizagem da competência leitora na escola. Mas, como pudemos verificar
nas respostas dos alunos, não é bem isso o que acontece, pois a maioria alega
gostar de ler.
Observando suas respostas tais como descritas em suas atividades: “Dá mais
sabedoria, mais conhecimento sobre as histórias. Eu gosto de ler.” “Sim, eu gosto de
ler porque eu quero ser alguém na vida e ler é bom para nós aprender mais.”,
constatamos que a maioria deles ressalta que a leitura proporciona um aprendizado
a mais e vimos questionar a fala dos professores: como é possível o aluno não saber
fazer o que gosta e, ainda assim, considerar importante para suas experiências
futuras?
É bem verdade que, em suas respostas, os alunos não demonstram um
gostar da leitura pelo prazer de ler. Não revelam uma leitura que contenta, enche e
dá euforia como a descrita por Barthes (2010). Falam de uma leitura mais utilitarista,
necessária apenas para a sobrevivência. Acreditam que, a partir da leitura que
conseguem realizar serão “alguém na vida”. A leitura aqui não é apresentada como
fruição estética. É apresentada como um item necessário ao seu currículo. Algo que
lhes acrescenta, mas não os distrai, não dá prazer, não é confortável.
91
Acreditamos que o professor, na busca da aula perfeita, não tenha se
atentado ao posicionamento do aluno quanto aos resultados das atividades
propostas. Talvez porque tenha perdido seu próprio referencial de mediador e esteja,
ainda, confuso quanto ao seu papel no processo ensino-aprendizagem.
Quem sabe a resposta para esta confusão possa estar nas respostas dadas
pelos alunos para a questão “Como você acha que seu professor deveria conduzir as
aulas de leitura?”
O professor pode não acreditar, mas os alunos sabem bem como gostariam
que fossem as aulas de leitura e até o que seria interessante ler em sala de aula.
Vejamos algumas de suas respostas. Alunos do 6º ano dizem que gostariam das
aulas “Com jeito bem divertido, alegrando e também brincando”, e “Em grupos”.
Entre os alunos do 7º ano, temos:
a. “Eu acho legal o jeito que a professora conduz a aula, mas ela poderia levar a
gente no jardim de inverno da escola. E podia ser diariamente”;
b. “Seria ao ar livre com uma roda de leitura e cada um lendo uma história”;
c. “Que fosse com bastante silêncio e com bastante livros e gibis”
d. “Eu gostaria que levasse a gente para fora da sala para lermos”;
e. “Que a professora desse um gibi para cada um e a gente lesse.”;
E os do 8º ano dizem que:
f. “Com revistas em quadrinhos. Eu gostaria que em uma sala de leitura”
g. “Eu queria que as aulas de leitura fossem mais criativas”
h. “Com mais frequência, gostaria que fossem mais divertidas e animadas”
Pelo que lemos, a maioria dos alunos gostaria que as aulas ocorressem em
lugares diferenciados existentes na escola: jardim de inverno ou ao ar livre e com
mais frequência. Para esses alunos, o ambiente fechado e estereotipado da sala de
aula não lhes permite “viajar” para o mundo que a leitura propõe. É preciso estar
num ambiente mais tranquilo, mais arejado, que permita ao imaginário fazê-los ir
para além do espaço da escola. Percebemos nessas respostas a necessidade da
escola pensar em seus espaços como lugares de aprender com mais conforto e
prazer. Também orientam o professor quanto ao tipo de leitura interessante para sua
92
idade: muitos solicitam a leitura de gibis que já há algum tempo na história da
educação tem-se mostrado um ótimo gênero de leitura para adolescentes.
Nenhuma tarefa de leitura deveria ser iniciada sem que as meninas e meninos se encontrem motivados para ela, sem que esteja claro que lhe encontrem sentido. Assim, parece mais adequado utilizar textos com temática ou conteúdo mais ou menos familiares ao leitor; trata-se de conhecer e levar em conta o conhecimento prévio das crianças. (SOLÉ, 1998, p. 91)
Analisemos agora as respostas dadas pelos alunos à questão “O que é medo
para você?” Lembramos que esses alunos não são os que participaram da pesquisa
realizada em agosto de 2011. São alunos que saíram do ciclo I do Ensino
Fundamental denominados 1º, 2º, 3º, 4º e 5º anos (antigas 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries).
Encontramos nas respostas dos alunos, à medida que permaneciam na
escola, uma gradação que iremos demonstrar por meio dos quadros abaixo:
6º ano “medo é ter receio de alguma coisa ou pessoa”
“medo que assusta, que tira a coragem das pessoas”
“é quando uma pessoa fica insegura”
“medo é quando a pessoa se sente incapaz...”
“medo é quando temos angustia de alguma coisa”
“medo é quando alguém sofre alguma coisa e esconde
“medo de não ter razão para explicar”
“ quando a diretora vem na sala”
“ tenho medo de apanhar da minha mãe”
“eu tenho medo de não passar de ano”
“medo é sentir dor”
Por sua natural imaturidade, os alunos do 6º ano, que têm em média 11 anos
de idade, na dificuldade de expressarem algo que lhes exige mais abstração que
observação, tentam definir seus medos por meio de expressões mais gerais. Não
permitem ao leitor a certeza de que falam de seus sentimentos e não dos
sentimentos de todos os alunos, por exemplo. Dizem que “medo é quando a pessoa
se sente incapaz...” quando querem dizer que medo é o sentimento de incapacidade
que os fazem não realizar a leitura em voz alta solicitada pelo professor, ou “medo é
quando temos angustia de alguma coisa” pois é a angústia que os domina e não
permite a realização do que desejam.
93
Essas respostas nos mostram um medo existente em diferentes níveis. No
nível psicológico, relatam que medo é um sentimento de angústia, de incapacidade,
de sofrimento. No nível concreto, falam do medo também como algo muito presente
e próximo: medo da diretora da escola, medo de apanhar da mãe, medo de não
passar de ano. E ainda de um medo que produz sofrimento físico: “medo é sentir
dor”.
Um aluno relatou ter medo “de não ter razão para explicar”. Sem entender
com muita clareza o que ele quis dizer, fomos observar sua resposta da pergunta
posterior “Você tem medo de quê?” a fim de entender sua colocação e encontramos
em sua resposta “ter medo de ir para a direção e tomar uma notificação”. Para
justificar a coerência desse medo, encontramos em Aristóteles (2011, p.139) “que
todas as coisas temíveis são ainda mais temíveis se não nos proporcionarem uma
chance de reparar o erro”.
Percebemos que os alunos do 6º ano, em 2012, se referem ao medo como
algo mais danoso que aqueles relatados pelos alunos do 6º ano da atividade
realizada em agosto de 2011.
7º ano
“ ele é o sentimento de apavoro”
“medo é ler e errar”
“quando você teme alguma coisa que você acha que é superior a você”
“quando eu temo que algo aconteça”
“uma coisa que me deixa mais nervosa e me atrapalha a lição”
“ é quando eu tenho prova”
“ é uma coisa da sua cabeça”
“ é uma coisa que nos deixa assustados”
“ é não estar segura onde estou”
“ é um sentimento horrorizante”
“os meninos começarem a zuar”
“tenho medo dos meus colegas ficarem rindo”
“ é uma certa insegurança”
94
Os alunos do 7º ano intensificam a fala dos meninos do 6º quando alegam
que medo é uma sensação ruim que atrapalha o pensamento na lição solicitada pelo
professor: “é um apavoro”. Ressaltamos que entre esses alunos estão aqueles que
participaram da atividade em 2011. Tristemente, verificamos que o medo cresceu
entre eles. Há indícios de um sofrimento ainda maior em relação ao do ano anterior,
quanto à sua relação com a leitura em sala de aula e também em relação ao medo
existente entre os alunos do 6º ano. Se naquele momento o medo era um receio,
uma angústia, neste é algo pavoroso, “horrorizante”.
8º ano
“é não saber fazer aquilo”
“uma coisa difícil de superar”
“ é a pessoa não acreditar no seu máximo”
“ não ter coragem”
“não mostrar a sua força”
“é o que impede você de fazer alguma coisa”
“é fazer algo de errado e não poder voltar atrás”
“quando alguma coisa que eu não goste se aproxima de mim”
“é se sentir ameaçado, pequeno”
Para os alunos do 8º ano o medo já se tornou uma ameaça, um não ter
coragem para falar o que pensam quando o professor lhes questiona sobre o texto
lido, por exemplo.
Percebemos uma gradação do medo. O que era angústia, receio, afigurou-se
em algo perigoso, uma sensação que atrapalha a ação, tornando-se ameaça, um
não ter coragem de falar. O medo é algo crescente entre os alunos na medida em
que evoluem na escola. Temos então mais um questionamento: não deveria ser
diferente? À medida que aprendem as técnicas de leitura e organização do
conhecimento não deveriam sentir-se mais seguros e confiantes na escola? Parece-
nos que o medo se transforma em monstro, real e verdadeiro, fazendo-os desistir de
seus anseios primeiros, quando ingressaram na escola. Tanto é assim que, ao
responderem a questão “Se pudesse tiraria as aulas de leitura da escola?”, o índice
de alunos que responderam “sim” aumenta gradativamente do 6º para o 8º ano,
como podemos observar no quadro a seguir.
95
ALUNOS SIM NÃO NÃO RESPONDERAM
6º ano 42 09 (21%) 32 (76%) 01
7º ano 67 08 (11%) 59 (89%) 00
8º ano 56 14 (25%) 40 (71%) 02
Figura 5: Respostas dos alunos à questão “Se pudesse tiraria as aulas de leitura da escola?”
No 6º ano, de 42 alunos entrevistados, 21% dizem que tirariam as aulas de
leitura da escola, se pudessem. No 7º ano de 75 alunos entrevistados, 11% disseram
que tirariam as aulas de leitura e no 8º ano 25% dos 54 entrevistados também
tirariam as aulas de leitura da escola.
Os resultados acima certificam que, quando os alunos poderiam apresentar
um grau de envolvimento com a leitura que lhes trouxesse, senão prazer, certa
tranquilidade, querem se distanciar cada vez mais dela. Sentimento próprio de quem
carrega marcas negativas de uma atividade que só lhes traz sofrimento tornando-os
objetos de riso entre seus pares.
Aos alunos do 9º ano do Ensino Fundamental II, último deste ciclo escolar,
preparamos uma atividade diferente das apresentadas até o momento. Entregamos
a eles uma lista com 25 itens e solicitamos que aplicassem nota de 0 a 10 a cada um
conforme desencadeiam medo. Para os que provocassem pouco medo, dariam
notas baixas, aos que provocassem muito medo, notas mais altas. Participaram
desta atividade 50 alunos distribuídos em duas turmas.
A seguir destacaremos um gráfico com os resultados a que chegamos. Para a
verificação do grau de medo desencadeado para cada item destacado, registramos
apenas as notas acima de 6. Para o item “andar de ônibus”, por exemplo, dos 50
alunos participantes da pesquisa, 06 aferiram nota igual ou superir a 6,0; para o item
“vizinho”, dos 50 participantes, 05 deram nota 6,0 ou superior a 6,0. Optamos por
essa contabilidade porque nos importa saber quais itens promovem mais medo aos
alunos do 9º ano, portanto, não consideramos necessário contabilizar as notas
inferiores a 6,0.
96
Figura 6: O medo para os alunos do 9º ano
Como podemos observar no gráfico, dos 25 itens propostos aos alunos, o
medo da leitura em voz alta ocupa a 5ª posição e a apresentação de trabalho em
sala de aula a 9ª posição entre os elencados. O diretor da escola também aparece
como elemento que causa medo entre eles, ficando uma posição atrás do medo da
leitura, que perde apenas para os medos: morte, ladrão, doença e arma de fogo.
Sobre o medo do diretor e da leitura, alegam a possibilidade de o diretor
expulsá-los da escola e do professor de leitura atribuir-lhes uma nota vermelha e
favorecer sua retenção no ano em que está. É o medo iminente de quem detém o
poder sobre eles. Muito claramente encontramos em Aristóteles (2011, p.138) uma
justificativa para esse sentimento: “a aproximação do que tememos é o que
chamamos de perigo e a injustiça ou perversidade dotada de meio e poder é
temível”.
Percebemos que o aluno não se sente protagonista no processo ensino-
aprendizagem do qual faz parte. Atribui ao professor e/ou ao diretor a posição de
quem toma decisões sobre sua vida escolar. Cabe-nos aqui, então, buscar a
projeção de pathos do professor para esses alunos.
Em Ferreira (2010, p. 102) encontramos uma explicação para pathos: é o
conjunto de emoções, paixões, sentimentos que o orador consegue despertar no seu
ouvinte.
0
5
10
15
20
25
30
35
40
and
ar d
e ô
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nh
o
97
Neste caso, o orador é o professor que usa sua voz para representar os
valores de uma instituição que determina os procedimentos para que aconteça o
processo ensino-aprendizagem no âmbito escolar. Este professor, pelo que
percebemos nas respostas dos alunos, é o ser que, ao deter o poder de
representação da escola, os promove ou retém, decidindo assim os caminhos que
deverão percorrer ano após ano até o término de seus estudos.
O professor deve ser parte importante no processo ensino-aprendizagem não
como aquele que detém o poder e decide a vida dos alunos, mas aquele que, por
meio de intermediação, desmistifica o medo que ronda a sala de aula para ser, como
a professora Jaqueline em relato anterior, o orador que, por meio de seu discurso,
incentiva e oferece confiança, pois que o contrário do medo é a confiança.
A confiança é o oposto do medo. Quanto a nossa disposição de espírito, experimentamos a confiança se acreditamos ter nos saído bem e nunca termos sofrido reveses, ou ter com frequência afrontado o perigo e dele haver escapado com segurança. (ARISTÓTELES, 2011, p. 141)
Os alunos dos 6º, 7º e 8º anos indicam em seus relatos o que esperam do
professor quando respondem à pergunta “Como você acha que seu professor
deveria conduzir as aulas de leitura?” Para os alunos do 6º ano as aulas de leitura
seriam melhores se os professores lessem mais para eles – “Eu gostaria que todos
os meus colegas compartilhassem a vontade de ler e que a professora lesse livros
mais legais”, “Eu gostaria que a professora da aula de leitura fizesse um questionário
e que ela também lesse e resumisse a leitura”, deixam claro que a leitura realizada
em voz alta pelo professor faz com que os alunos confiem no seu entendimento
sobre o texto lido.
Alegam, também, que, se os professores realizassem mais atividades de
leitura em grupos promoveriam maior interação entre o entendimento do texto de
cada um – “Eu gostaria que ela pegasse um livro, fizesse uma roda e pedisse para
um de cada vez ler. Isso seria muito divertido”, “Em grupo como se fosse em uma
biblioteca que fica todo mundo em grupo”.
Os alunos do 7º ano propõem que as aulas de leitura aconteçam com uma
frequência regular e mais vezes por semana –“Diariamente, pois tem algumas
pessoas na minha sala que não sabem ler, e eu gostaria que a professora ajudasse
mais”, “Eu acho legal o jeito que a professora conduz a aula, mais ela poderia levar a
gente no jardim de inverno da escola e podia ser diariamente”. Que a escola propicie
98
lugares diferentes da sala de aula para a realização das leituras: “A gente poderia
fazer as aulas de leitura em lugares diferentes”, “no jardim de inverno para ler bem
gostoso, sem barulho nenhum”, “que as aulas fossem silenciosas e que fossem no
jardim de nossa escola”, “que levasse nós para a biblioteca, cada um pegava um
livro e lia e também pudesse levar para casa”.
A percepção do aluno quanto à qualidade da aula nos é colocada quando 18
alunos do 7º ano relatam suas experiências de leitura com uma professora que os
levavam a um jardim de inverno existente na escola. Esses alunos expõem essa
condição de leitura realizada na escola como situação de aprendizagem agradável e
prazerosa. Apontam os lugares que lhes trazem tranquilidade e calma.
Quando se acham em estado de ânimo, é evidente que as pessoas são calmas, como por exemplo, no jogo, no riso, na festa, num dia feliz, num momento de sucesso, na realização dos desejos e, em geral, na ausência da dor, no prazer inofensivo e na esperança justa. (ARISTÓTELES, 2000, p. 19)
Esses mesmos alunos solicitam que os professores propiciem momentos de
aprendizado aos alunos que ainda não sabem ler – “[...] pois tem algumas pessoas
na minha sala que não sabem ler, e eu gostaria que a professora ajudasse mais”,
“com histórias e quadrinhos para quem não sabe ler ainda”-.
Percebemos a existência de alguns desses alunos quando solicitados a
responder “Conte como você aprendeu a ler?” No 6º ano, dois alunos declararam
“não sei ler”. No 7º ano, duas irmãs que estão na mesma turma não responderam
nenhuma das atividades propostas e alegaram verbalmente que não as fizeram
porque não sabem ler. No 8º ano, há o registro escrito de 03 alunos que disseram
não saber ler. São alunos que, apesar de suas dificuldades, passaram, ano a ano,
em salas de aulas diferentes, com professores diferentes, sem, no entanto,
conseguirem a ajuda necessária para que sua competência leitora fosse
desenvolvida. Esses alunos não conseguem sequer soletrar palavras. Tudo o que
realizam em sala de aula são cópias do que está posto em lousa ou no livro didático.
Como esperar que alunos nessas condições não tenham medo da leitura, da
escola, do professor? Como não temer o desconhecido? Como não temer aquele
que, sabendo da dificuldade, não se move para saná-la, mesmo quando essa seja
sua função primordial? “Todas as coisas temíveis são ainda mais temíveis quando
não admitem nenhuma ajuda ou uma ajuda difícil de ser prestada”. (Aristóteles,
2011, p. 139)
99
Por meio de suas respostas, os alunos se apresentam como um auditório
participativo, criativo e consciente de seu papel no processo em que estão inseridos.
Oferecem situações de construção do ethos do orador quando apresentam
estratégias para a melhoria das aulas de leitura na escola onde atuam.
O orador precisa fazer de seu discurso algo expressivo, agradar ao auditório,
atrair o interesse em busca da motivação para o estabelecimento do acordo
pretendido. Nesse caso, o professor fará com que o aluno sinta-se motivado na
perspectiva de uma leitura que lhe permita conhecimentos novos, sem que o
monstro do medo destrua a possibilidade do entendimento individual e a interação
com o outro na construção de um sentido plausível ao texto lido.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura tem sido fonte de estudos e verificações entre pesquisadores das
mais diversas áreas do conhecimento que buscam desvendar os processos mentais
efetuados quando lemos. Muitos estudiosos na área da educação buscam descobrir
estratégias de ensino da leitura com o objetivo de estimular professores e alunos à
autonomia da interpretação coerente. Esta pesquisa teve como escopo teórico
estudos retóricos sobre o medo, suas consequências e mutações, a partir dos
teóricos que o tratam como uma paixão; da leitura sob a perspectiva da linguística
textual e estudos pedagógicos sobre como trabalhar a leitura em sala de aula.
Vários questionamentos foram levantados no decorrer desta pesquisa e
conseguimos algumas respostas, a partir das atividades de leituras que realizamos
com alunos do Ensino Fundamental II, para quase todas elas. Sabemos que, em se
tratando de leitura, é impossível esgotar o assunto. Apenas pretendemos contribuir
com nossas observações para que outros pesquisadores possam utilizá-las para
novas observações ou comparações.
Esta pesquisa buscou descobrir os motivos que levam alunos a permanecer
na escola por tantos anos sem que consigam adquirir competência leitora compatível
à série/ano que cursam, visto que, dentre outras, essa é uma das prioridades da
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, para quem a linguagem verbal,
oral e escrita, representada pela língua materna, viabiliza a compreensão e o
encontro dos discursos utilizados em diferentes esferas da vida social. É com a
língua materna e por meio dela que as formas sociais arbitrárias de visão de mundo
são incorporadas e utilizadas como instrumento de conhecimento e de comunicação.
Para tais descobertas, realizamos algumas atividades de leitura com várias
turmas do Ensino Fundamental II. Nossa primeira atividade foi realizada com alunos
do 6º ano, portando, recém-saídos do 5º ano, antiga 4ª série do Ensino Fundamental
I, que, ao passarem cinco anos na escola, chegaram ao Ensino Fundamental II, com
aproximadamente 11 anos de idade, e nem todos conseguem manifestar oralmente
o que entenderam de um texto proposto para leitura silenciosa e individual.
Nosso primeiro questionamento, que mais é uma indignação, foi o de querer
saber por que tantos meninos e meninas chegam a essa fase escolar com tanta
dificuldade. Em atividades posteriores a esse primeiro momento, verificamos que
101
esses mesmos alunos sinalizaram uma alfabetização precária no ciclo anterior. Eles
mesmos verbalizaram ou escreveram, quando conseguiam, sua condição de não
saber ler, como podemos observar nas atividades realizadas em 26 de setembro de
2012 de um aluno do 6º ano e dois alunos do 8º ano (anexo A).
Outros alunos tentaram nos dizer como aprenderam a ler quando
responderam a pergunta “Como você aprendeu a ler?”, mas não foi possível
entender o que escreveram, como se pode observar no anexo B. Esses são alunos
matriculados no 8º ano e, quando solicitados a ler os que escreveram, também eles
não conseguiram. Ao verificar seus cadernos, percebemos que quando há
anotações, escrevem os mesmos aglomerados de letras que vimos em suas
atividades. Disseram-nos que copiaram o que o professor escreveu na lousa.
No Ensino Fundamental II, os professores de Língua Portuguesa são
chamados de especialistas e, praticamente a maioria não cursou pedagogia,
portanto, alegam que não sabem alfabetizar. Deixam que a escola procure a solução
do problema com professores que ministram aulas de recuperação e reforço aos
alunos que não conseguem acompanhar as atividades propostas em sala de aula.
Esses professores, que também são especialistas em uma disciplina, buscam
caminhos para que a alfabetização aconteça aos alunos que não sabem ler de forma
improvisada. Se houver entre eles um com formação em pedagogia, este ainda
busca orientar os demais no processo dessa alfabetização fora de hora, mas, como
ouvimos de uma pedagoga, se possível.
Como é fácil perceber, esta é uma deficiência dos cursos de formação de
professores no curso de Letras. Se o professor receber alunos mal alfabetizados,
não sabe como atuar pedagogicamente para suprir as eventuais lacunas. Os alunos,
por sua vez, por não terem consciência de suas dificuldades, dão respostas
estereotipadas, ligadas ao “gosto/não gosto” de ler, sem atingir a raiz do problema. A
consequência é óbvia: ano após ano, professores e alunos se deparam com os
mesmos problemas e, enquanto uns atribuem aos colegas a incompetência para
bem alfabetizar, outros escondem suas frustrações com declarações passionais e
até, justificadamente, infantis.
Essas deficiências formativas (de professores e alunos) têm reflexo no
processo pedagógico, que, embora longo e colaborativo no início, transforma-se num
suplício que culmina com a desistência das aulas de reforço. Essa atitude de derrota
se arrasta até o 9º ano, quando terminam o Ensino Fundamental II. Para quem vive o
102
cotidiano escolar, não é raro constatar o alto índice de desistência e um súbito
reaparecimento, dois ou três anos mais tarde, para tentar concluir o Ensino
Fundamental II ou Médio na EJA (Educação de jovens e adultos).
Esses alunos, que apresentam mais dificuldade com a leitura no 6º ano, são
os que, durante nossas observações, mais alegaram “não gostar” de ler. Nesse
aspecto, nossa dissertação encontrou uma perplexidade motivadora. Acreditávamos
não ser verídico o que diziam, acreditávamos apenas que eles não sabiam bem o
que é leitura, não tinham consciência do que é ser proficiente no ato da leitura e que
não a entendiam como um processo, como um elemento fundamental no caminho da
formação. É, pois, muito natural dizerem não saber se gostam do que ainda não
sabem fazer.
E, é claro, o problema não reside no “gostar”, mas, sim, na capacidade de
bem utilizar a leitura, quer para fruição estética, quer para atividades profissionais,
quer para o viver em sociedade.
Tínhamos uma ideia ainda mais instigante: os alunos usam como argumento o
repetidíssimo refrão do “gostar/não gostar” porque a escola ajuda a retirar o prazer
de aprender. Por isso, quando solicitados a executar atividades de leitura não
conseguem esconder que ler é uma atividade penosa, pouco atrativa ou
desinteressante.
Em outro plano, pensávamos que o componente medo era imperativo na
atuação dos alunos e que Descartes tinha razão ao afirmar que o temor é
proveniente da pouca probabilidade de se obter o que se deseja. Vivemos, durante a
experiência, momentos em que, nitidamente, a falta de esperança causava um temor
tão extremado que atingia o desespero. Entre o princípio e o fim da pesquisa, foi
muito dolorido verificar que o medo, imperador do processo de aprendizagem da
leitura, só impunha presença tão marcante porque, por ser como é, distanciava os
atemorizados da antítese natural dessa paixão: a esperança.
Na atividade realizada em setembro de 2012, quando detectamos alunos que,
de fato, não sabiam ler, valemo-nos, em forma de pergunta, do argumento mais
comum entre os alunos. Indagamos a 41 alunos do 6º ano: “Você gosta de ler?”.
Nove deles responderam que não. Constatamos que esses nove são os mesmos
que antes haviam respondido que não sabem ler. Ou seja, confirmamos que não é
verdade que não gostam de ler, apenas não sabem ler. Não conseguem entender os
significados, sequer, das linhas do texto. Não chegam sequer a serem leitores
103
parafrásticos, pois ainda não dominam mecanismos básicos de decodificação. Pena,
pois esses alunos não conhecem o poder e o encanto do uso da imaginação ao
tentar desvendar os lugares, as personagens, os sentidos que as palavras trazem
em forma de texto. São candidatos a vítimas sociais: não decifrarão um contrato, não
lerão jornais, não se deliciarão com os clássicos, não propagarão um componente
cultural tão importante na sociedade de todos os tempos.
Relatamos anteriormente o que muito ouvimos na sala dos professores com
relação à chamada “má vontade” do aluno para a realização das atividades de
leitura, mas não identificamos na fala desses mesmos professores a percepção da
insegurança e do medo do aluno quando solicitado, principalmente, a manifestar
oralmente sua interpretação do texto estudado. Talvez não por culpa dos
professores, não foi possível observar um caráter naturalmente investigativo sobre
as reais causas da tal “má vontade”. Nunca ouvimos um professor perguntar “Como
reforçar a disponibilidade desse auditório para obter adesão ao discurso pedagógico
e, assim, melhorar o próprio desempenho escolar?”. “Como os alunos nos veem
como professores?” “Que tipo de profissional desejam?”.
Questões dessa natureza atingem objetivamente a constituição do ethos do
professor. Se queremos provocar um pathos positivo no que tange à leitura,
precisamos pensar estratégias que afastem pré-conceitos, respostas simplistas. É
importante, sim, avaliar o desempenho de nossos alunos quanto aos conteúdos, mas
é também fundamental perceber que as paixões estão presentes de modo muito
contundente nos conflitos escolares.
Como a leitura é um processo, encontramos ainda em sala de aula alunos que
conseguem codificar as palavras, mas não entendem o texto como um enunciado.
Esses, quando perguntados se gostavam de ler, também alegaram que não.
Relataram sentimentos múltiplos de caráter psicológico e até mesmo patológico
quando são solicitados a ler, principalmente se a leitura for realizada em voz alta
como podemos observar em suas respostas: “Porque dá dor de cabeça e os olhos
ardem...”, “Porque dá muita dor de cabeça.”, “Porque às vezes eu não entendo as
palavras e todo mundo começa a rir de mim.” “Eu não gosto de ler porque eu tenho
vergonha”, “Eu fico nervosa”, de acordo com o observado nos anexos G e H.
O fato de o aluno não saber ler, nos parece, não é reconhecido e mediado
pelo professor, que o obriga a uma leitura oralizada em meio aos seus colegas. O
professor precisa aferir leitura. É sua obrigação. Precisaria também lembrar-se de
104
que as relações em sala de aula envolvem necessariamente um lado afetivo, um
mundo de relações e de representações que não podem ser dissociados da prática
efetiva. O professor cobra do aluno o que a escola não conseguiu realizar e ninguém
é feliz nessa relação. Mais ainda: ninguém sai desse modo de conviver sem
cicatrizes profundas. Não é simples assim. Atribuir à má vontade do educando a
responsabilidade do fracasso de um processo pode ser, no mínimo, a falta de
problematização do processo pedagógico.
Para nós, o aluno não apresenta má vontade com relação à leitura, apenas,
mais uma vez ressaltamos, não sabe ler. E esse não saber causa medo, vergonha,
raiva e várias outras paixões que não colaboram em nada para sanar a deficiência
de leitura. O que o aluno não tem consciência, mas pressente, é que as atividades
de leitura vão arranhar o seu ethos: sentem medo ao imaginar um perigo iminente
contido no ato de ler, que possa prejudicá-lo de algum modo e, pior, talvez de modo
extremado, destruí-lo. Por isso, essa retórica da guerra tão presente nos ambientes
escolares.
Por outro lado, quando o aluno consegue bom desempenho nas atividades
leitoras, mostra paixões outras, muito positivas. Isso é facilmente constatado quando,
dos 41 alunos questionados sobre gostarem ou não de ler, trinta e dois responderam
que sim e conseguiram relatar os motivos pelo gosto. Alegaram que a leitura “dá
mais sabedoria, mais conhecimento sobre as histórias”, “é muito legal e diverte com
todos os conteúdos que tem”, “distrai a pessoa”. Falaram da leitura como momento
de fruição, algo que existe para distrair, divertir. Também demonstraram vê-la como
ajuda na aquisição de conhecimento como pudemos observar nos anexos C e D.
A mesma pergunta feita a 65 alunos do 7º ano e 54 alunos do 8º ano
corrobora a observação constatada entre os alunos do 6º. 52 alunos do 7º e 42 do 8º
ano disseram gostar de ler. Os motivos que apresentam para demonstrar esse gosto
pela leitura é o que nos motiva a alertar o professor de Língua Portuguesa quanto à
sua fala de que o aluno não demonstra boa vontade ao realizar atividades de leitura.
Eles alegaram gostar de ler porque são encantados com as histórias, porque
aprendem novas palavras ou porque gostam da surpresa que o texto revela como
revelam suas respostas: “Eu gosto de ler porque ajuda muito na nossa fala.”,
“Aprendo mais, me encanto com as histórias.”, “Porque a maioria das coisas eu
aprendi lendo.” e “É divertido”, apresentadas nos anexos E e F. Com argumentos tão
aprazíveis, cremos ser impossível esses alunos não demonstrarem interesse na
105
realização de atividades que ampliem sua competência leitora. Paixões positivas
carregam a alegria no bojo, ressaltam a leitura como fonte de prazer e de saber,
ultrapassam os limites do pragmático para atingirem o sublime encanto de “ser ainda
melhor”.
Chamou-nos a atenção um aluno do 8º ano que, em sua resposta à pergunta
“Você gosta de ler?”, disse que sim e justificou gostar de ler “porque é algo legal e
interessante de fazer, menos em voz alta.” observado no anexo I. Para ele, a leitura
é interessante desde que não precise expô-la aos colegas de classe que,
provavelmente, em sua concepção, rirão em decorrência de algum erro que cometa,
assim como disseram os alunos que alegaram não gostar de ler. Novamente, a
questão da constituição do ethos do aluno se apresenta de modo enfático. Ler, para
esse aluno, não é somente oralizar a própria leitura.
Como afirmava Aristóteles na Arte Retórica, a paixão é relação com o outro e
representação da diferença interiorizada entre nós e esse outro. Ler, com paixão,
revela, a seu modo, as diferenças entre os homens.
Em conclusão, nos escaninhos da leitura na escola, de acordo com nossa
pesquisa, há sempre um medo menos ou mais explícito, menos ou mais influente,
menos ou mais paralisador.
Podemos, como já reiteradamente afirmamos, considerar a presença do medo
nas aulas de leitura como paixão negativamente avassaladora, que perturba os
alunos a ponto de fazê-los dizer que não gostam da leitura para dissimular
dificuldades ou esconder a real competência leitora. É por conta desse medo que os
alunos insistem em alegar que não gostam de ler e, com essa alegação, não
permitem ao professor e colegas a observação de sua real condição de leitura. O
que se ressalta nessa constatação é que, na sua alegação sensivelmente
amedrontada, esquecem seus direitos ao aprendizado e não reclamam à escola
essa condição. Ficam à margem, muitas vezes, num profundo silêncio de obstinação
e apavoramento que permitem juízos não verídicos quanto à sua capacidade de
aprendizagem.
Seu maior medo, pelo observado em suas respostas, primeiramente, é o do
julgamento de seus colegas quanto a sua capacidade cognitiva. Aluno algum quer
construir um ethos negativo em meio aos seus amigos. Então, para que não fique
clara sua dificuldade com a leitura, alega não gostar de ler, às vezes com ares de
rebeldia, às vezes com ares de ironia. Prefere passar ao professor e colegas a ideia
106
de que é um aluno rebelde ou indisciplinado a um aluno que não sabe ler. É a
constituição do ethos falando mais alto. É preciso deixar que as pessoas se lembrem
de nós pelo que somos, ainda que sejamos um exemplo negativo; e não pelo que
não somos ou não sabemos. Uma solução reclamada centra-se em outra paixão: a
do afeto. O mestre precisa ter consciência da leitura como um processo que requer
atenção redobrada para as efetivas condições afetivas do educando que, por certo,
acompanham seu desenvolvimento cognitivo.
Como afirmam os PCNs, a capacidade cognitiva envolve a resolução de
problemas, de forma consciente ou não. Uma das formas de livrar-se,
conscientemente do problema, de acordo com o que obtivemos na pesquisa, é valer-
se de uma figura retórica bem conhecida: a ironia. Na verdade, como vemos, a figura
apenas esconde questões de natureza interpessoal. Ou seja, mais uma vez,
detectamos que aquilo que acomete o aluno em sala de aula não é especificamente
o medo da leitura, mas o medo do escárnio provocado pelos colegas quando os
erros são cometidos. Não percebemos nesses alunos o conhecimento de que uma
das funções da escola é também promover o raciocínio lógico e coerente, mas que,
para que isso aconteça, é necessário talvez, incorrer em alguns erros. Para eles a
escola é o lugar onde não se pode errar.
Sabemos todos, porém, que não há um só lugar no mundo em que não se
possa errar, justamente por nossa condição humana. Na escola, capacidades afetiva
e cognitiva formam um bloco sedutor. Como afirmam os PCNs, “a capacidade afetiva
está estreitamente ligada à capacidade de relação interpessoal, que envolve
compreender, conviver e produzir com os outros.” Na esteira dessas ideias, os
mesmos PCNs reforçam a necessidade de levar o aluno a perceber “distinções entre
as pessoas, contrastes de temperamento, de intenções e de estados de ânimo”.
Nem o conhecimento nem a constituição dos afetos são lineares. Entre um e outra
está uma rota de aprendizagem, às vezes branda, às vezes dolorida. O mestre, em
seu fazer pedagógico, precisa ser sensível suficientemente para bem conduzir ou
fazer revelar a verdadeira face do momento pedagógico que transformará crianças
em adultos conscientes de seu fazer e estar no mundo. Até lá, é preciso desvendar
os atos retóricos, o que de fato está embutido no dizer.
Precisamos todos, alunos e professores, entender que o ato de educar se dá
numa verdadeira dialética passional, que se materializa pela retórica e revela a
necessidade de tomar consciência das diferenças entre os sujeitos, entre as
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identidades, para atingir a persuasão. No caso da leitura, a Escola precisa
ultrapassar os limites maniqueístas do gosto/não gosto para compreender que o
medo e seu oposto, a confiança, estão numa relação assimétrica que pode ser
anulada, respeitada e, até, enfrentada. Para tal, é preciso formar professores para o
observar e não para o comparar, é preciso formar professores para o aceitar e não
para apenas julgar sem princípios sólidos.
Em pesquisa realizada pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo,
pudemos observar o baixo rendimento do aluno do Ensino Fundamental II quanto à
leitura. E pior, percebemos o decréscimo na qualidade do aluno quanto aos
conhecimentos básicos necessários para sua série/ano. Parece ser possível, agora,
entender o porquê de o aluno “desaprender” enquanto permanece na escola. Há um
medo inato nas crianças, herdado biologicamente, mas há um medo imposto no
silêncio da Escola. O desenvolvimento cognitivo-comportamental não pode ser
separado do desenvolvimento afetivo. É preciso permitir que a criança construa um
ethos de confiabilidade em suas próprias potencialidades; é preciso que estudemos
bem mais os intrincados caminhos da mediação de leitura para atingirmos resultados
satisfatórios não apenas num teste oficial, mas, sobretudo, na vida do educando.
Corroboramos a pesquisa da Secretaria de Educação do Estado quando
notamos, também, em nossa pesquisa, alunos que, à medida que avançam em seus
estudos, demonstram mais medo das atividades de leitura em sala de aula,
chegando ao ponto de, se pudessem, tirar essas aulas da grade curricular. Os
números nos indicam que, de fato, os alunos perdem, a cada ano de permanência
na escola, a vontade de tornarem-se leitores proficientes e críticos. Mas essa falta de
vontade se dá pelo medo do erro. Para nós, assim como para Meyer, o ethos remete
às respostas. A escola, porém, precisa provocar paixões positivas, pois lá encontra-
se a fonte das questões que são trazidas pelas paixões e, talvez num futuro breve,
nossos alunos possam abandonar as impressões subjetivas sobre seu próprio
proceder na aula de leitura, a partir de questões suscitadas e pensadas sobre o
problema posto do exterior.
O medo antecipa-se ao ato de ler. Os próximos parágrafos reforçam essa
ideia muito recorrente nesta conclusão. Em retórica, essa figura tem um nome: de
presença. Não nos permitimos, porém, a pressa, pois a ideia de que a produção do
conhecimento passa forçosamente pelo ato de ler e de escrever nos autoriza uma
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espécie de redundância necessária, em função da importância desse contexto
problematológico que enfrentamos durante a pesquisa.
Fizemos a pergunta “Ler dá medo?” a 41 do 6º, 75 alunos do 7º e 54 alunos
do 8º ano. No 6º ano, apenas 7 alunos responderam que sim. Sentem medo dos
colegas rirem quando erram na leitura em voz alta. No 7º ano, 23 alunos alegaram
medo de passar vergonha ou gaguejar na leitura. Dez alunos do 8º ano disseram ter
medo de errar na frente das pessoas. Se observarmos esses números em
porcentagem, temos que 17% dos alunos do 6º ano alegaram que sentem medo em
comparação com 31% no 7º e 19% no 8º ano, o que certifica a ideia de aumento do
medo na medida em que o aluno permanece na escola, mesmo quando verificamos
que ele se mostra menos intenso entre os alunos do 9º ano, se comparados aos
alunos do 7º. Ainda assim, é crescente quando comparado aos alunos do 6º ano.
Fica claro nas respostas dos alunos que a motivação do medo não está ligada
ao ato da leitura propriamente dito, mas ao julgamento que o outro faz da sua
competência leitora. Temos um orador preocupado com seu auditório. O aluno não
pretende que, enquanto auditório, seus colegas tomem-no como alguém
incompetente. Ele sabe que, enquanto orador que é, precisa da adesão de seu
auditório para um convívio harmonioso.
Alguns alunos relataram ainda o medo de o professor não aceitar sua
interpretação do texto lido. Para eles, a interpretação do professor é a única correta,
portanto, a sua deverá ser semelhante à dele. É preciso que o professor deixe claro
que o entendimento do que se lê acontece na construção dialética entre autor e leitor
e promover no aluno a sensação de segurança quanto ao seu próprio entendimento.
Os alunos que se mostram distantes da leitura pelo medo do ridículo a que
são expostos quando, na leitura em voz alta, incorrem em algum erro nos indicam
situações de aprendizagem que poderiam ajudá-los na diminuição desse medo
perturbador que lhes causam tonturas, dores de cabeça e de barriga; que lhe custam
o prazer pela leitura.
Quando respondem a pergunta “Como você acha que seu professor deveria
conduzir as aulas de leitura?” demonstram vontades inatas à criança quando
apresentadas a algo novo, fascinante, diferente. Deixam-nos em suas respostas
verdadeiras estratégias de leitura em sala de aula. É o aluno ensinando ao professor
como motivá-lo a ser o leitor competente que tanto almejamos. Em suas respostas,
encontramos que gostariam que “o professor lesse para nós”, “depois da leitura a
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professora fizesse um questionário que ela também lesse e resumisse a leitura”,
“dessem um livro para cada aluno e depois que eles terminassem de ler, contar para
sala um pouco da história ou o que ele entendeu da história”, “ todos levassem um
livro para casa. E na outra semana falassem, o que entenderam do livro. O título, os
personagens e etc.”, “cada um lesse o livro que mais gosta ...” de acordo com o
observado nos anexos J e K. Indicam ainda o tipo de leitura mais aprazível: livros
com desenhos e gibis, observados nos anexos L.
Percebemos, na fala do aluno, que o professor pode não ser o elemento que
mais contribui para a existência do medo na leitura, mas, sim, figura primordial na
promoção de uma leitura com prazer, com tranquilidade e confiança. Citam
experiências prazerosas de leitura em ambientes diferenciados na escola. A sala de
aula tradicional, segundo suas colocações, desestimula o ato de ler que alguns
alunos definem como momentos de estrita aprendizagem. Barthes estava certo: é
preciso descobrir o prazer da leitura.
Em nenhum momento deste trabalho tivemos a intenção de contrapor a
paixão do medo à coragem. Entre um e outra há um espaço para atingir a
segurança, a tranquilidade, a paz e a alegria que envolvem o ato de ler. Muitos
alunos pesquisados demonstraram saber que adquirem conhecimentos novos a
partir da leitura realizada na escola. Falaram dos gêneros que mais gostam de ler e
propuseram aos professores que preparem as aulas de leitura de maneira a permitir
que um aluno possa ajudar o outro e que, principalmente, possam ajudar o colega
que ainda não sabe ler. Propuseram atividades de leituras com textos que
apresentem símbolos não verbais com o objetivo de auxiliar o colega que não
depreende o significado do símbolo verbal. Indicaram a leitura de gibis como forma
de amenizar o sentimento de angústia e incapacidade citados, principalmente, pelos
alunos do 6º ano. Demonstraram interesse em ajudar o outro se as condições
propostas pelo professor permitirem que o outro não seja exposto ao ridículo, grande
medo percebido nas colocações de alunos de todos os anos do Ensino Fundamental
II. Delinearam estratégias que podem ser utilizadas pelos professores para a
formação de leitores competentes, autônomos e confiantes. São belas atitudes na
perspectiva dos educandos, pois denotam que há esperança, que há luz no final do
túnel e que não é necessariamente verdadeiro o que está contido no discurso
dominante que insiste em assegurar que os alunos “não gostam de ler”.
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Talvez os alunos não “gostem” é da artificialidade da leitura da escola. O
mundo – e este é um refrão bem conhecido – precisa entrar pelas janelas da sala de
aula. Propomos que o professor estabeleça momentos em que o aluno possa
dissertar sobre seus anseios com relação à escola e parta do que é interessante a
ele para que se efetive a aprendizagem com significado.
Cabe ao professor, orador que é – ou pode ser - exemplo a ser seguido,
segundo fala dos próprios alunos, fazer uso de seu poder de persuasão, de sua
retórica, na promoção de uma aprendizagem que proporcione, de fato, uma
expansão dos conhecimentos que o aluno traz à escola sem permitir que o medo
tolha essa vontade de aprender. É preciso negar a esse mesmo medo a
possibilidade de fazer com que alguém acredite não gostar de ler. É preciso, sim,
como todos precisamos fazer ao longo de nosso existir, que professores contribuam
para que as crianças aprendam a lidar com seus próprios medos, a desvelar a
origem do temor, que encontre no mestre extrema brandura e calma, pois, nesse
movimentar das paixões, surge o homem que queremos com a potencialidade que
almejamos. A nosso ver, três elementos fundamentais da retórica precisam estar em
perfeita consonância no processo de ensinar a ler: o ethos do professor (deixar
transparecer que é confiável), o logos (constituído no discurso e, no caso, apontar
para a segurança obtida pelo cidadão que sabe ler os livros e o mundo) e o pathos
(paixão despertada pelo orador nos ouvintes).
É preciso pensar o medo na escola porque essa paixão, como afirmam vários
filósofos, está próxima do ódio. O ódio é perigoso em qualquer circunstância e nunca
é saudável. Não queremos que nossos alunos odeiem a leitura. O medo, em
diversos planos, se distancia do amor, da alegria e da esperança. Uma escola sem
amor deseduca. Uma escola sem alegria é perniciosa. Uma escola sem esperança é
destrutiva e potencialmente nula.
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