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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Aurora Aparecida Fernandes Gonçalves De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento feminino desvendado pelo universo da mulher longeva DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP … · 2019. 11. 11. · GONÇALVES, Aurora Aparecida Fernandes. De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Aurora Aparecida Fernandes Gonçalves

De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento feminino desvendado pelo universo da mulher longeva

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Aurora Aparecida Fernandes Gonçalves

De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento feminino desvendado pelo universo da mulher longeva

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.

SÃO PAULO

2014

Banca Examinadora

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Dedico este trabalho à Zoé, a protagonista da história de vida, que “deu vida” à minha investigação e me permitiu alcançar mais um objetivo. Sem a profunda e envolvente narrativa que ela concedeu, esta tese não teria sido possível.

E à minha mãe Aurora dos Reis Fernandes, uma longeva anônima que, juntamente com tantas outras – longevas ou não – ajudaram, com suas histórias, a construir a mulher para o século XXI.

E, ao final dos encontros, quando demos por encerrada a nossa tarefa eu olho para ZOÉ e procuro aquela mulher velha que atendeu ao meu pedido de pesquisadora e não a encontro; não vejo uma velha de 90 anos e sim, uma bela senhora, vestida com simples elegância. Seu rosto transparecia serenidade e seus olhos azuis resplandeciam como os de uma criança; o cabelo curto, porém, cheio de estilo, maquiagem suave, apenas delineando os traços nórdicos. Dava a impressão de ser, ao mesmo tempo velha como Eva e nova como a aurora. Ela não tinha tempo, não tinha idade, mas tinha uma história; a história de vida que me fora contada.

AAFG

Ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher. Simone de Beauvoir

Agradecimentos

Meus agradecimentos vão para: A minha família constituída, que com seus movimentos nem sempre harmônicos com os meus, me faz renascer e evoluir a cada dia, tornando-me mais “humana”. O meu amor ao Sebastião, meu marido, Diego, meu filho, Marcella minha nora, Pedro, meu neto e Ana Carolina, minha afilhada. Os colegas do Departamento de psicologia social e institucional da Universidade Estadual de Londrina, pela sensibilidade em entender que fazer o doutorado pode ser importante para uma professora em contagem regressiva para a aposentadoria compulsória. A todos, o meu sincero agradecimento. Os professores das disciplinas cursadas no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social, pelo inusitado do seu conhecimento transformando-se para além das exigências acadêmicas, em ensinamentos para o cotidiano, para a vida. Ao Raul, Fúlvia, Bader e Odair o meu apreço. O Ciampa, pela oportunidade única de conviver pelos “Corredores e salas” da PUC, com a minha principal “referência bibliográfica” materializando-se em um professor-orientador competente e amigo. A ele toda a minha gratidão e reconhecimento. Os colegas do NEPIM, cada qual com o seu problema de pesquisa, suas dúvidas suas descobertas sendo compartilhadas, generosamente, nos encontros do núcleo. Em especial ao Juracy, membro honorário e indispensável para as discussões sobre o sintagma: Identidade-metamorfose-emancipação. A professora Dra. Maria Amélia Almeida da Universidade Federal de São Carlos pelas preciosas observações e sugestões feitas principalmente em relação à metodologia de história de vida.

Em especial agradeço aos inúmeros colegas e amigos que se dispuseram, em ocasiões informais a ouvir as minhas primeiras e incipientes considerações sobre a tese que pretendia desenvolver. Alguns me ajudaram bastante, mesmo não tendo consciência disso.

GONÇALVES, Aurora Aparecida Fernandes. De oprimida e explorada a liberta e autônoma: o empoderamento feminino desvendado pelo universo da mulher longeva. Tese de doutorado em psicologia social. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo, 2014.

RESUMO

Esta tese analisa os processos de identidade-metamorfose-emancipação, de início, para compreender como o sentido da vida e do vir a ser se estabelecem na construção social do sujeito, para, em seguida, focalizar a condição da mulher, suas determinações sócio-históricas e as revelações que a identidade, assim constituída, podem fazer para explicitar o contexto sociocultural hoje vivido. A pesquisa empírica, de caráter qualitativo, deu-se pelo estudo da história de vida, uma metodologia de natureza biográfica, com a obtenção do relato de uma mulher de 90 anos, expondo sua trajetória pessoal e profissional, seus amores, suas paixões, vínculos e rupturas. Configura-se um estudo de caso que correlaciona a vivência da velhice em idade avançada com a expressão de uma ótica sobre o mundo e sobre o país. Por ter sido testemunha direta de acontecimentos, pelo fato de ter nascido na primeira metade do século XX, ter tido acesso a uma educação completa (teve carreira como professora), e por ter sido avançada para sua época (rebelou-se contra barreiras de gênero, enfrentando as consequências) – a protagonista reunia as condições específicas para relatar e avaliar fatos que podem projetar uma compreensão mais refinada sobre os modos de ser que vêm determinando, desde então, a identidade feminina com suas coerências e contradições. O pressuposto adotado é o de que, ao se explicitar o contexto sociocultural no qual se circunscreve o sujeito estudado, eleva-se a condição de apuro no olhar sobre fatos de que se aprendeu apenas pela história. Um primeiro cuidado a tomar teve que ser o de adotar, como conduta metodológica, um processo de desnaturalização do fenômeno da velhice e considerá-lo como uma categoria social e culturalmente construída, sem o que se projetaria uma abordagem unidirecional, incompatível para um fenômeno de múltiplas faces. Assim, como resultado, obteve-se compreensão sobre a formação da identidade dessas mulheres idosas “em idade avançada” no que contribui para revelar sobre grupos de pertencimento, sobre a sociedade contextualizada, sobre as formas simbólicas, sua recepção e interpretação –condição hermenêutica fundamental da pesquisa sócio-histórica, um campo-sujeito, onde as formas simbólicas são pré-interpretadas pelos sujeitos que constituem esse mesmo campo.

Palavras-chave: Identidade-metmorfose-emancipação. Contexto sociocultural. Envelhecimento. Mulher para o século XXI

GONÇALVES, Aurora Aparecida Fernandes. From oppressed and exploited to liberated and autonomous: the female empowerment revealed by the universe of women in longevity. Doctoral thesis in social psychology. Postgraduate Studies Program in Social Psychology – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo, 2014.

ABSTRACT

This thesis is intended to analyze the processes of identity-metamorphosis-emancipation, first, to allow for an understanding of how the meaning of life and that of the coming to be, are settled in the social construction of the subject, and second, to appraise the condition of the woman, her socio-historical determinations, and to what extent the revelations that identity, so constituted, explain the current sociocultural context. Empirical research, with qualitative approach, was conducted by using the history of life, a methodology biographical in nature, with the report of a 90 year old lady explaining her personal and professional path, her loves, her passions, attachments and ruptures. The collected data shaped a case study and that enabled to correlate the experience of old age with the expression of a viewpoint about the world and about the country. Because of her being able to directly witness a number of events, as a consequence of having been born in the first half of the 20th century, added to that the fact that she had access to a complete education (she held a career as a teacher), and by her having been always ahead of her time (she rebelled against gender barriers and accepted the consequences) – the protagonist matched the specific conditions required for the description and assessment of facts that could refine a comprehension of the living styles that have ever since determined the consistencies and contradictions of the feminine identity. The presupposition was that explaining the sociocultural context of an individual is instrumental to sharpen the skill to observe facts that have been learned through history only. The methodological procedure was conducted with a preliminary caution, that of adopting a denaturalization process when dealing with the phenomenon of old age, to consider it a category that is socially and culturally built. Failing to do so would lead to a unidirectional approach, inadequate to treat a multifaceted phenomenon. Hence, a greater comprehension of the formation of identity of women in older age developed to an extent that contributed to further understanding of issues such as groups of belonging, contextualized society, symbolic forms, their reception and interpretation – all of them a key hermeneutical condition to sustain socio-historical research, a subject field, where symbolic forms are pre-interpreted by the subjects that make-up this same field.

Keywords: Identity-metamorphosis-emancipation. Sociocultural context. Aging. Woman for the 21st Century

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................11  

PRIMEIRA PARTE PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E PSICOSSOCIAIS ...... 20  

Capítulo 1  O sentido da vida e a construção social do sujeito ........................... 21 

Capítulo 2  A identidade como metamorfose humana: considerações sobre o segundo sexo ...................................................................................................... 33 

Capítulo 3  De oprimida a empoderada .............................................................. 49  

Capítulo 4  Mulheres no Brasil ............................................................................ 58 

SEGUNDA PARTE O ENVELHECIMENTO: ENFASE NA MULHER .................. 66 

Capítulo 1  Diversas visões sobre mulheres velhas ............................................ 67 

Capítulo 2  Identidade feminina no presente: passado e futuro ........................... 89 

TERCEIRA PARTE ESTUDO DE CASO: DESVENDANDO O UNIVERSO DE UMA MULHER LONGEVA ................................................. 98 

Capítulo 1  A fase estrela solitária ....................................................................... 99 

Capítulo 2  A fase da mesmice à mesmidade ................................................... 104 

Capítulo 3  Fase intensas procuras ................................................................... 119 

Capítulo 4  Fase felizes encontros .................................................................... 133 

Capítulo 5  A Fase Velhice ................................................................................ 143 

Capítulo 6  Reflexões sobre as análises ............................................................ 150 

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 152 

REFERÊNCIAS ...........................................................................................159 

 

INTRODUÇÃO

2

Esta tese encontra seu verdadeiro motivo numa inquietação muito

particular acerca da vida. As metamorfoses das pessoas, suas idiossincrasias,

seu caráter paradoxal, sempre foram alvo de meu interesse particular e científico.

E o recorte em mulheres longevas se deve a basicamente duas questões: a

primeira, a experiência pessoal em família longeva, com suas histórias

percorrendo e perpassando a minha própria; e segunda, a experiência

profissional, trabalhando por mais de duas décadas com o processo de

envelhecimento e aposentadoria, em que a “performance” feminina sobressaía

em sua perturbadora agitação e comovente desassossego.

A questão da identidade como metamorfose, ao ser analisada pelo tema

das vivências de uma mulher longeva, recebe outro recorte, o do problema de

pesquisa, agora possível de ser expresso numa pergunta desencadeadora do

estudo: que sentidos e significados, podem ser trazidos pela narrativa de uma

longeva e em que medida sua fala é capaz de revelar detalhes sobre

singularidades da identidade feminina? A narrativa da história de vida

apresentada contém um universo subjetivo carregado de sensações e emoções

das inúmeras personagens advindas do processo de metamorfose em busca de

autonomia emocional e financeira. A pessoa estudada expõe singularidades que a

tornam um sujeito de grande preciosidade como portadora de experiência: é uma

mulher que esteve à frente do seu tempo, apresentando valores e condutas não

compatíveis com a época em que nasceu e viveu, quando vigiam, com maior

intensidade, as regras, normas e costumes da sociedade patriarcal.

A história narrada trouxe à tona dificuldades e conquistas num movimento

de empoderamento pessoal e rompimento com o convencional, uma figura

feminina emblemática, cujas decisões e ações divergiram das esperadas – com

sérias consequências que ela aceitou enfrentar. Essa pessoa pertence ao grupo

daquelas lutadoras por movimentos emancipatórios tão presentes na mulher

atual, indeterminada e autônoma. Assim, em grande medida, compreender a

mulher que ela foi lança luz sobre as consequências da realização dos anseios

que se concretizam na mulher dos nossos dias.

Na pesquisa qualitativa, a investigação ganha novos contornos, com foco

na qualidade dos dados e nos elementos significativos também para a

pesquisadora, ou seja, essa abordagem permite que o observador expresse a sua

3

posição numa forma de complementaridade com a posição do sujeito. Esse

aspecto, para Holanda (2006), evidencia uma perspectiva hermenêutica, cuja

grande contribuição está no centro de sua metodologia e de seu projeto, a saber

“a idéia de inter-relação entre ciência, arte e história, para a elaboração de uma

interpretação condizente” (HOLANDA, 2006, p. 368). Sem se perder em relatos

meramente emocionais, a pesquisa traz reminiscências da vida da pesquisadora,

já tratadas formalmente em obra escrita, de caráter biográfico e de cujos

elementos se utiliza para proporcionar maior veracidade às questões vivenciadas

pela protagonista do caso, que certamente teve, diga-se assim, “parceiras”

incógnitas no processo emancipatório das mulheres brasileiras.

Num contexto mais intimista, portanto impregnado de emoções intensas, a

história de vida de minha mãe, uma brasileira nascida em 1919, representou

senão a única a mais importante fonte de indagações, interesse e crenças acerca

da vida, da identidade e do envelhecimento em suas diferentes manifestações:

suas nuances nada previsíveis, das expectativas não concretizadas, do

inesperado tornando-se realidade, enfim de um processo existencial carregado de

metamorfoses criadoras de autonomia e emancipação.

(...) mamãe se limitava a ser a sombra de papai. Até que ele, convalescendo de um acidente que quase lhe tirou a vida, resolveu abrir seu coração. Contou-lhe um “quase” (segundo ele) envolvimento com outra mulher. Foi o suficiente para que mamãe, essa mulher simples e submissa, mudasse de vida, surpreendendo a todos. Sozinha providenciou seus documentos: título do eleitor, carteira de identidade e CPF. De semianalfabeta, passou a ler e escrever, e, a partir daí, controlou a sua própria vida, transformou-se na cidadã Aurora dos Reis Fernandes1 (FERNANDES, 2008, p. 79).

A pesquisa ora apresentada está vinculada ao interesse da psicologia

social em estudar as categorias fundamentais do psiquismo humano e suas

mediações, orientando-se por pressupostos epistemológicos críticos. Nessa

perspectiva, o objetivo geral deste estudo é investigar, através da narrativa de

história de vida de uma mulher longeva, os elementos constitutivos da identidade

1 Este é o nome de minha mãe, e a citação aqui apresentada é de uma obra de minha autoria.

4

feminina e de que maneira as experiências pessoais podem trazer luz para

compreensão do sintagma: Identidade- metamorfose-emancipação.

Os objetivos específicos são:

Identificar os pontos críticos da história de vida relacionados com os

projetos para o vir a ser;

Descrever os processos de ruptura com o convencional geradores de

metamorfose;

Analisar a contextualização da história de vida com o período da história da

sociedade em que viveu a protagonista.

A proposta da pesquisa pautou-se numa investigação teórico-metodológica

que se inscreve no contexto da interdisciplinaridade; e como tema metodológico

essa perspectiva indicou as áreas de conhecimento a serem utilizadas. Houve

envolvimento pessoal da pesquisadora em alguns aspectos abordados que

entendeu serem relevantes para a análise, pois em um modelo interpretativo, o

pesquisador deve ser capaz de se colocar na narrativa e assumir seu ponto de

vista. (CRESWELL, 1998)

Os métodos qualitativos pesquisam, explicitam e analisam fenômenos que,

por essência não são passíveis de serem medidos, pois possuem as

características dos “fatos humanos”. O estudo desses fatos se realiza mediante o

uso de técnicas de pesquisa e de analise que deixando de lado a sistematização

dos dados repousam essencialmente sobre a presença humana e a capacidade

de empatia, de uma parte, e sobre a inteligência indutiva e generalizante de outra

parte. Nessa perspectiva a realidade não é tida como algo objetivo, mas, “o que

é”, emerge da intencionalidade da consciência voltada para o fenômeno a ser

pesquisado, quando se busca a explicação de processos que não estão

acessíveis à experiência, pois existem em “(...) complexas e dinâmicas inter-

relações que, para serem compreendidas, exigem o estudo integral dos mesmos

e não sua fragmentação em variáveis” (GONZALES REY, 1999, p. 54).

O estudo é apresentado em três partes, cada uma com capítulos que

formam uma unidade em seu conjunto, de modo a fazer aparecer toda a

5

organização dos conceitos, o encadeamento dos temas discutidos, e a

estruturação do relato da pesquisa. Por essa razão, não contêm subtítulos, com a

intenção de permitir que as discussões sejam encaminhadas e funcionem como

complemento do anterior em preparação ao capítulo seguinte.

Na parte I, são trazidos questionamentos sobre o ser, interrogando sobre o

sentido da vida, o vir a ser e a formação social do sujeito, com aporte das

contribuições de Heggel (2012), Habermas (2012) e Berger & Luckman (1976).

De posse desse conteúdo, nos debruçamos sobre o sintagma: identidade-

metamorfose-emancipação com base em Ciampa (1978), Lima( 2010) e Almeida

(2005). Ainda nesse primeiro momento da pesquisa teórica, o trabalho abordou

considerações sobre o segundo sexo e a identidade feminina adentrando a

realidade das mulheres no Brasil nos séculos XIX e XX, com base em Beauvoir

(1967), Saffioti (1976) e Del Priore (2012). Essas questões desencadearam novas

vertentes na busca pela compreensão da realidade vivenciada por mulheres

nascidas na primeira metade do século XX e o processo de envelhecimento com

qualidade: a questão das convenções e das virtudes como elementos essenciais

para a capacidade de romper com o convencional, trazendo neste momento as

contribuições teóricas de Sponville (1999) e Lypovetski (2000).

A parte II, o envelhecimento humano com ênfase na mulher, contém uma

discussão que vai desde aspectos mais genéricos sobre a realidade do idoso –

numa perspectiva pessoal, social e histórica –, até a abordagem de quatro teorias,

representando quatro visões sobre o envelhecimento feminino: 1) o modelo do

curso de vida; 2) a teoria do construcionismo simbólico; 3) a teoria crítica e 4) as

teorias feministas.

Buscamos, nos estudos sobre memória (Bosi, 1994; Stano, 2001), a

compreensão do sentido da velhice através das lembranças de um passado

repleto de significações, de transformações identitárias e de projetos de vida.

Chegamos então, a uma discussão sobre as mulheres longevas e a sua postura

emblemática [não se consideram velhas] diante da vida em busca de autonomia e

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emancipação, bem como do direito ao envelhecimento e a vivência da velhice em

idade avançada, com qualidade e satisfação2

A parte III consiste em um estudo circunscrito a uma história de vida

pesquisada em profundidade, em encontros semanais, com duração de três horas

cada um, durante os meses de setembro a dezembro de 2013 somando 24 horas,

acrescidas de mais três encontros no mês de fevereiro de 2014 para a

confirmação de alguns dados não totalmente claros ou ainda incompletos,

totalizando, portanto 33 horas. O procedimento foi gravado com a autorização da

depoente, e os dados foram transcritos, na íntegra, para posterior analise. Apenas

os três últimos encontros não foram gravados com o objetivo de permitir, numa

intervenção menos formal, a expressão de emoções que foram geradas ao longo

do processo e que careciam de um canal mais afetivo para se manifestarem.

O método narrativa de história de vida possibilitou, a seu autor, falar sobre

sua existência – o tempo vivido – quando, com o recurso da memória, permitiu

reconstruir os acontecimentos considerados relevantes e significativos, e delinear

as relações com os membros de seus grupos de pertencimento, sua camada

social e com a sociedade nascente e contextualizada de onde viveu: Norte do

Paraná, na década de 1950, quando as cidades sequer existiam como tal, eram

“(...) só meia dúzia de ruas tortas cortando a estrada que acabava no rio, ruelas

empedradas e buraquentas, casebres e casas caindo aos pedaços, pobreza por

todo lado; aquilo não podia ser a entrada de uma vida nova” (PELLEGRINI, 1998,

p. 98)

O estudo de caso teve como foco da investigação, a história de vida vista

em sua singularidade, sugerindo uma metodologia hermenêutica e uma

interpretação holística, tomando-se o caso por inteiro para evitar fragmentações

das falas que pudessem tornar a analise excessivamente subjetiva. Para a

interpretação dos dados, fez-se inicialmente o que a literatura refere como “leitura

flutuante” em que o texto foi analisado como um todo quando a pesquisadora

2 As palavras da depoente exemplificam esse aspecto, quando disse: - (...) eu quero viver, eu gosto da vida, eu acho a vida linda! Eu gostaria de ser quem eu sou, ser o que sou porque eu gosto do que fui (...) eu me considero uma mulher valente e me sinto muito feliz! Então o que que eu quero mais que isso?

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deixou-se invadir por impressões e sensações. Pouco a pouco, a leitura foi se

tornando mais precisa e possibilitou o destaque de falas e contextos que foram,

posteriormente, articulados com a teoria estudada.

A leitura preliminar propiciou a exposição dos fatos por períodos de

existência, quando se observa cinco fases distintas: A primeira fase estrela

solitária expressa uma relação quase simbiótica com a mãe e total submissão aos

preceitos da igreja protestante no seio da qual foi criada. Essa fase caracteriza-se

pelo abandono, ainda que não proposital, em internatos, pensões e casas de

conhecidos quando prevalecia o medo, a insegurança e a tomada de consciência

do seu total estado de solidão.3

A segunda fase mesmice/mesmidade abrangendo a pré-adolescência,

idade adulta e maturidade, dos 12 aos 40 anos, caracterizou um processo de

permanente reposição da identidade de filha, quando a depoente foi forçada, pela

imposição da mãe e pela normatividade da igreja, a abrir mão dos desejos,

necessidades e anseios próprios da idade, o que a levou a sublimar sua

sexualidade, romper com o convencional para a mulher na época (ser esposa e

mãe) para priorizar exclusivamente o estudo superior e o trabalho. Emerge a

personagem “solteirona” que se vestia, morava, comia, enfim, vivia em total

dependência das determinações institucionais da igreja e da relação materna –

não havia como fugir do que a igreja prescrevia e do que a mãe fazia questão de

exigir. Há, portanto, a presença da forte repercussão do outro significativo [mãe]

na formação da identidade primária, quando a depoente enfatiza no seu relato a

sua ligação quase simbiótica com a mãe – eu era a sombra dela; e do outro

generalizado, quando, em suas palavras, expressa que a aceitação da

normatividade da igreja era mais por obediência à mãe do que como uma

manifestação de natureza mais espontânea. Tem-se então que ela entendia que

3 Isso se evidencia quando a depoente diz: - e eu chorava de saudade da mamãe eu criava na minha imaginação que funcionava com pouca coisa que eu tinha assim para brincar (...) mamãe comprava livros grosso dos contos de Andersen, não é? Então eu via aquilo esperando por ela.

 

8

cumprir os ditames da igreja era sua obrigação de filha, e com isso aceitou

permanecer sob a tutela materna por 40 anos.

A terceira fase intensas procuras tem início com a morte da mãe e o

consequente rompimento com a igreja, aos 40 anos de idade, quando a depoente

dá vasão aos desejos contidos por décadas, e assume uma postura licenciosa

para a época, nas questões amorosas e sexuais. Emerge a personagem “amante”

com todas as suas consequências, quando mais uma vez ela rompe com as

convenções e vive, pela primeira vez, a “a vida que queria viver”. A vivência dessa

fase, de modo intenso e licencioso, lançou a base para o que se verificou na fase

seguinte: ela extravasou energias represadas, eliminou possíveis fontes de

tensão, desconsiderou fontes de ameaça e riscos sociais e, com isso, entrou na

fase felizes encontros que tornou exequível seu grande projeto de vida, a iniciar-

se com o casamento. Ou seja, ela não levou para essa fase inibições,

autolimitações, ansiedades e temores que só prejudicariam ou trariam mais

demora ao que efetivamente queria que sua vida se transformasse.

A quarta fase felizes encontros segundo a depoente, um período de

estabilidade e felicidade com a conquista do estatuto de casada [seu grande

projeto realizado] aos 50 anos de idade, numa condição muito parecida com a

experiência infantil da separação dos pais. Há um envolvimento com um homem

casado, que deixa a família para assumir o relacionamento, fazendo nela surgir a

personagem “esposa”.

A quinta fase velhice tem de fato início, aos 83 anos de idade, com a morte

do marido. Ressurge a personagem “estrela solitária” que convive com as

limitações da idade, que a depoente ainda não aceita e que a faz sofrer muito. O

fato de retardar essa aceitação é expresso em sua narrativa com um alto teor de

postura arrogante e de desprezo por toda argumentação em sentido oposto.

Mesmo assim, não há prejuízo de sua postura corajosa e emblemática diante da

vida que a impulsiona a elaborar e concretizar projetos de vida de curta e média

duração. Convalescendo de um AVC, programa-se para voltar a ter a autonomia

conquistada a partir da fase intensas procuras.

9

Sem a pretensão de serem conclusivas, pois resultam de interpretação do

pesquisador, as formulações, os pressupostos e as afirmações deste trabalho

devem ser vistas em seu caráter de provisoriedade como em toda pesquisa, e

com isso, abertas a discussões e contestações que propiciem novas

investigações. As questões levantadas englobam conceitos e estruturas teóricas

muito complexas, porém de inegável contribuição para o enriquecimento da

investigação que é própria do campo da psicologia social.

Neste sentido, foi que a introdução aqui apresentada teve um tom pessoal,

com uso consciente de primeira pessoa (singular e plural) numa liberdade

autopermitida, e sem a intenção de ferir propósitos de padronização tão

largamente cobrados no texto científico. O restante do trabalho terá, assim,

predomínio da terceira pessoa, tanto para expressar conceitos provenientes dos

autores convocados como referência, quanto para expor o relato da história de

vida. O toque pessoal retornará, no entanto, no momento das análises e das

conclusões, justamente para marcar os elementos de subjetividade e o alto teor

de interioridades presentes nessa etapa do trabalho.

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PRIMEIRA PARTE

PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E PSICOSSOCIAIS

11

Capítulo 1 O sentido da vida e a construção social do sujeito

[...] o sentido de nossa vida está em questão no futuro que nos espera; não sabemos quem somos, se ignorarmos quem seremos: aquele velho, aquela velha, reconheçamo-nos neles. Isso é necessário, se quisermos assumir em sua totalidade nossa condição humana (BEAUVOIR, 1970, p. 12).

Segundo Veras (2002) os estudos desenvolvidos em forma de dissertações

e teses sobre o tema do envelhecimento, em ciências sociais e humanas

(sociologia, antropologia, psicologia, serviço social, educação e comunicação),

giram em torno de alguns eixos: o idoso de hoje diante do mundo, evocando seu

passado por meio da memória, vivenciando experiências de inúmeras

transformações, nos mais diversos campos da vida. O envelhecimento e a

velhice, em especial, são tratados por meio de representações sociais dos

próprios idosos, de seus familiares, de cuidadores e de profissionais de saúde. Os

pontos de reflexão dos estudos nesse campo se concentram na identidade, no

sentimento existencial e na autoestima. A perspectiva feminina, no entanto,

aparece em aspectos mais específicos como a sexualidade, a menopausa, a

solidão, o uso de medicamentos e alguns agravos à saúde.

São raros os estudos que se debruçam sobre a mulher “velha” no seu dia-

a-dia, a mulher comum, saudável, a não asilada, a não solitária; A interioridade

das mulheres que ao longo de gerações foram excluídas, seja pelo sexo, seja

pela classe social ou pela raça, da vida política, intelectual e social. Mais raros

ainda são aqueles que se debruçam sobre a mulher que viveu e envelheceu de

forma independente, econômica e afetivamente, considerada emblemática por

estar à frente do seu tempo.

As teorias pós-modernas, com tendências a desconstruir conceitos e

valores trazem, por consequência, novas formas de questionamentos que tendem

a quebrar o universalismo de categorias já definidas; assim, a categoria “mulher”,

12

se apresenta com novas questões sobre corpos e subjetividade. Pode-se dizer

que existe uma pluralidade nesse conceito “mulher”.

A história está repleta de situações em que o humano se supera driblando

a inevitável mortalidade, adiando o desfecho de sua vida até o limite do

suportável. E nesse contexto, as mulheres tem-se apresentado como

protagonistas de uma história, na qual quase sempre se situam entre as

“sombras”, mas que ainda assim, as faz detentoras de extensas trajetórias de

vida. Mas o que é a vida? Que sentido ela tem? A que nos leva? Como vivê-la?

Para Cortella (2013, p. 81) “(...) a pessoa fica viva e realiza coisas porque tem a

perspectiva de futuro. Porém, morre em vida quando não tem mais essa

perspectiva.” Assim, o desafio que se coloca é que diante da expectativa de vida

podendo atingir os 120 a 130 anos, quais serão as estratégias a serem adotadas

pela sociedade contemporânea para garantir uma vida longeva livre dos

estereótipos e estigmas que ainda cercam a velhice em idade avançada no

Brasil?

Responder a questões tão abrangentes requer segundo Pereira (2005) a

interlocução interdisciplinar da Psicologia com a Filosofia, Sociologia, pois essa

articulação além de contribuir para o avanço do conhecimento em si, traz

subsídios para capacitar a sociedade em como lidar com as urgentes questões do

envelhecimento. E Neri (2001, p. 31) nos diz:

O estudo do desenvolvimento e do envelhecimento exige a contribuição de várias disciplinas [...] os conceitos de tempo, idade e estágio, curso, ciclo e extensão da vida, e desenvolvimento e envelhecimento encontram expressões peculiares em disciplinas afins cujas linguagens não são uniformes, mas cujo conhecimento por praticantes de diferentes filiações favorecem a comunicação científica e a compreensão dos fenômenos evolutivos.

Podemos dizer, em consonância com Habermas (1990), que a vida

constitui um questionamento profundo, filosófico acerca da existência humana,

demarcando a interpelação do homem sobre seu relacionamento com o mundo,

ou seja, o sentido da vida. E esse sentido certamente será distinto de pessoa para

pessoa, podendo ainda alterar-se no decorrer da existência de cada um. Nos

dizeres de Berger & Luckman (1976, p. 36) a busca de sentido está na

continuidade histórica; no acervo social do conhecimento, uma espécie de

reservatório do sentido, fonte de nutrição para as pessoas. E esse acervo

13

histórico não se constitui apenas das realizações já concretizadas, mas também

de projetos que aguardam o momento mais propicio para a sua realização.

Na filosofia antiga o sentido da vida consistia na busca pela felicidade

(emdaimonia); característica mais desejada. Em diferentes escolas se encontram

diferentes concepções sobre a felicidade e principalmente em como alcançá-la.

Para Platão (1991)4, por exemplo, a alma imortal atingiria a felicidade através do

equilíbrio entre a razão, coragem e instintos. Já para Aristóteles (1984)5, a

felicidade não se apresentava como algo estático, mas sim como uma constante

ativa da alma e seria encontrada na contemplação da vida (bios theoretikos). Para

o Estoicismo6 ela estaria quando do alcance pelo homem do estado final: a “paz

estóica.” E para Epicuro7 o sentido da vida estaria na superação do medo e da

dor.

Todas essas concepções apresentam um espaço importante para reflexão

sobre o sentido da vida para mulheres e, em especial para as longevas, pois,

viver muito acrescenta experiência que revela a transcorrência de um tempo

histórico com sentido, no qual a mulher interferiu e sofreu interferência; a trajetória

de vida, necessariamente, incluirá a busca pela felicidade, o equilíbrio, a

superação da dor e do medo. Partindo do entendimento de que cada um é, ao

mesmo tempo, produto e produtor da sociedade, aí evidencia-se que se trata de

4 Platão - Em “diálogos socráticos” desenvolveu discussões sobre ética, procurando definir determinadas virtudes (coragem, Laques; Piedade, Eutrífon; amizade Lísis; autocontrole, Carmides). Mas são diálogos aporéticos, ou seja, fazem o levantamento de diferentes modos de se conceituar aquelas virtudes, denunciam a fragilidade dessas conceituações, mas deixam a questão aberta, inconclusa.

5 Aristóteles no texto “Ética a Nicomano” investiga o tipo de saber que se pode obter acerca da conduta, levando em conta a situação concreta do homem, um ser que está acima do animal, mas que não pode ser definido apenas pela pura razão. Neste meio-termo se colocará o que se deve entender por virtude.

6 Estoicismo “apatia” insensibilidade diante dos acontecimentos da vida. “No dizer dos estóicos a tarefa essencial da filosofia é a solução dos problemas da vida; em outras palavras, a filosofia é cultivada exclusivamente em vista da moral, para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a felicidade.” (FIORIN, 2007, p. 28).

7 Epicuro Defendia ardorosamente a liberdade humana e a tranquilidade do espírito. O atomismo, acreditava o filósofo, poderia garantir ambas as coisas desde que modificado. A representação vulgar do mundo, com seus deuses, o medo dos quais fez com que se cometessem os piores atos, é obstáculo à serenidade. Todas as doutrinas, salvo o atomismo, participam dessas superstições (WIKIPEDIA, 2013).

14

processo em que, numa relação dialética, constrói-se a identidade e,

consequentemente, o sentido da vida. O sentido da vida está, pois, na

interpretação do relacionamento entre o ser humano e seu mundo.

Na referência ao homem pela busca do sentido da vida, vários filósofos se

encontram e se desencontram na tentativa de estabelecer nexos possíveis em

suas formas de pensar a questão. São esforços teóricos, indiretos, tarefa da qual

o filosofo não está dispensado, ainda que isso lhe custe algumas revisões sobre o

seu próprio pensamento. Pode-se dizer então, que a vida se faz numa

multiplicidade de vontades de exigências, numa constante relação entre os

“seres” e os próprios “seres” num contexto pluralista, relacional e dinâmico. Diante

da realidade dos centenários de todo o mundo, representando hoje significativo

percentual da população do planeta, e, dentre eles, uma maioria de mulheres, o

que pensar sobre o sentido de suas vidas? Sendo uma experiência pessoal e

mutável, a vida de cada um segue uma trajetória que poderá trazer, com o passar

dos anos, uma sensação de limitação e estreitamento ou pelo contrário, pode

representar novas e inusitadas formas de sentido.

A idade avançada (...) acrescentou em mim tantas coisas (...) quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo” (JUNG, 1986, p. 149)

Ou seja, a capacidade para resistir e lutar e exercer o domínio sobre a vida

constitui elemento inerente dessa mesma vida. É justamente nesses embates

entre as regras sociais, os conceitos e valores vigentes e as necessidades

individuais que os organismos se constituem, se transformam e adquirem a

capacidade de resistir e de querer ir além num movimento de eternas “procuras.”

Na música – Vida – de Chico Buarque de Holanda, isso é retratado com

notável sentido poético:

[...] Luz, quero luz, Sei que além das cortinas São palcos azuis E infinitas cortinas Com palcos atrás Arranca, vida

15

Estufa, veia E pulsa, pulsa, pulsa, Pulsa, pulsa mais

Mais, quero mais Nem que todos os barcos Recolham ao cais Que os faróis da costeira Me lancem sinais Arranca, vida Estufa, vela Me leva, leva longe Longe, leva mais [...]

Quando pensamos a questão do sentido do ser não há como não

questionar: Quem sou eu? Quem somos nós? Eu não sou. Eu fui, e, serei. Essa

afirmação nos parece digna de ser analisada, pois o que sou (daí o não sou) soa

como efêmero já que passa a ser passado no momento mesmo em que se instala

e nos faz pensar, então, que estamos sempre deixando de ser alguém para nos

tornarmos outro [nós mesmos] - Metamorfose Humana - (CIAMPA, 1987).

Habermas (1990) em “pensamento pós-metafísico” afirma que o

questionamento sobre o que é o homem é fonte natural de problematização do

pano de fundo mais familiar do mundo em geral e que empresta às questões

filosóficas a sua relação com o todo, bem como o seu caráter integrador e

conclusivo. Segundo Habermas (1990, p. 26), Kant mostra que “elas não podem

ser enfrentadas pelo pensamento, a não ser por caminhos auto-referentes e, por

isso, antinômicos.” Esses pressupostos apontam para a necessidade do trabalho

cooperativo entre as ciências, para uma outra leitura de homem e sociedade, pois

as pesquisas de uma determinada área trazem a expectativa de contribuir para a

reconstrução das teorias, buscando superar a visão unilateral do conhecimento.

Assim, procuraremos problematizar como que diferentes autores, de diferentes

linhas teóricas, abordaram a questão do ser humano, numa perspectiva

interdisciplinar.

A postura interdisciplinar está presente no campo do conhecimento desde

os sofistas gregos, através de um programa pedagógico “enkuklios Paidéia”, que

dada a sua dinâmica – ensinamento circular – cobria todas as disciplinas que

compunham a ordem intelectual. Também o Centro de cultura helênica, em

16

Alexandria, utilizou por mais de meio século um projeto semelhante, que

agrupava as ciências, as letras, as artes e as técnicas, reunindo estudiosos de

todas as áreas numa missão comum. De modo similar a Universidade medieval

confiou à faculdade de Letras a gestão das “artes liberais”, com disciplinas que

permitissem a liberdade de espírito: “O Trivium” (gramática, retórica, dialética) e o

“Quadrium” (aritmética, astronomia e música). Essa pedagogia da totalidade foi

retomada no período da Renascença sob o domínio do humanismo. A

preocupação unitária, uma das idéias centrais do iluminismo só foi abandonada

com o advento do positivismo no século XIX (MINAYO, 1994).

Aponta-se dessa maneira que pensar o humano e sua inserção social

requer reflexões que extrapolem concepções fechadas para uma abertura

epistemológica capaz de demonstrar a complexidade da questão, ao mesmo

tempo em que delineia o caminho mais coerente a ser seguido. Conforme

Ciampa8, “nascemos humanizáveis e nos tornamos humanos” e o ‘tornar-se’

humano tem, por conseguinte, inúmeras interpretações. Acrescente-se que a

pulverização do saber em setores cada vez mais limitados coloca os cientistas

numa espécie de “solidão paradoxal” uma vez que o saber setorizado os leva a

perder o sentido da vida e da verdade do universo como um todo, que para

Minayo (1994) era a causa comum que os reunia.

Habermas (2012) propõe uma nova racionalidade com a aproximação da

filosofia com a ciência e o mundo da vida. Com essa macro visão, a teoria

habermasiana se contrapõe à razão instrumental que domina a sociedade

moderna. Assim, com base em uma coerência de linguagem entre diferentes

teorias se unem forças para uma abordagem teórica mais ampla, onde segundo

Minayo a cooperação interdisciplinar manteria atitudes críticas fundamentais. Por

um lado essa crítica se faria em relação à racionalidade técnica, instrumental e de

outro, em relação à tentativa de colonização do mundo da vida pela ciência e

pelas tecnologias sofisticadas justificadas pela ideologia funcionalista.

8 Anotação de aula 2012  

17

Nessa busca pelo caminho interdisciplinar para a abordagem da

construção do sujeito, nossa atenção repousa em Hegel, ainda que

sinteticamente, e na sua reflexão sobre a experiência, entendida como movimento

dialético da consciência em direção ao conhecimento de si. Em Hegel (2012, p.

36) temos: “Se o embrião é de fato homem ‘em si’, contudo não é ‘para si’:

somente como razão cultivada e desenvolvida que se fez a si mesmo o que é ‘em

si’ – é um homem para si; só essa é sua efetividade.” Através da razão, no agir

conforme um fim é que se dá o processamento da consciência-de-si que leva o

homem a ser capaz de organizar as suas relações com o mundo e com os seus

semelhantes, ou seja, tornar-se humano e autônomo. Porém esse resultado por

sua vez é imediatez simples, pois é liberdade consciente-de-si que em si repousa,

e que não deixou de lado a oposição e ali a abandonou, mas se reconciliou com

ela.

A consciência-de-si agora captou o conceito de si, que antes era só o nosso a seu respeito – o conceito de ser, na certeza de si mesma, toda a realidade. Daqui em diante tem por fim e essência a interpenetração movente do universal – dons e capacidades – e da individualidade. (HEGEL, 2012, p.275).

Heidegger (2001)9 aborda de maneira muito particular uma das mais

antigas questões da humanidade e da filosofia: a questão do ser. Numa

interpretação existencialista do pensamento de Heidegger pensar o “ser” significa,

acima de tudo, pensá-lo como sendo o homem; um ente talvez privilegiado, que é

o único que se pergunta sobre o “ser”, sobre o seu estar no mundo – “o ser aí”

(Dasein); termo utilizado por Heidegger e que nos permite entender o “ser-aí”- o

homem individual como sendo um projeto indefinido, auto dirigido e

perpetuamente inacabado. Para o filósofo, a história da metafísica atinge, na obra

de Hegel, o momento de sua consumação. E para que Heidegger formulasse a

questão do sujeito supõe-se uma necessária leitura em Hegel. A questão do

sujeito em Heidegger teria, segundo Estrada (1996), uma proveniência hegeliana.

9 A obra “Ser e Tempo”, publicado em 1927, um marco na caminhada do pensamento pela história do ocidente. 

18

Importante a ressalva feita por Torres (2005) de que o conceito de

aproximação indica distanciamento e diferença nunca identidade. Assim, se Hegel

concebe o modo de ser do homem como sendo subjetividade absoluta, Heidegger

pretende erradicar toda subjetividade. Dasein, termo que pretende substituir o

metafísico – sujeito – é a superação do sujeito, é o sujeito que não é mais sujeito

(ESTRADA, 1996).

Numa tentativa de expor, talvez, a importância do pensamento

interdisciplinar, Brüssek e Sell (2006) enfatizam que a curiosa aceitação do

conceito “mundo da vida” entre os marxistas de hoje não deixa de ser um sintoma

tardio do “pragmatismo” que está na raiz da confusão e, por vezes, convergências

de diferentes perspectivas. E salientam: “Ernest Bloch, na sua “Introdução à

Filosofia” de Tübingen não tinha nenhum problema em mesclar resultados da

analise do ser-aí (Daseinsanalytik) com uma perspectiva marxiana”( BRÜSSEK E

SELL, 2006, p. 16).

Na modernidade, apesar dessas e outras diferenças teóricas sobre o ser, o

indivíduo, na sua presença no mundo e em sua singularidade, é ainda pensado

como sujeito. Honnet (2003) tenta aproximar as teorias de Hegel e Mead com um

referencial que nos estimula a questionar: O desenvolvimento da autoconsciência

está, necessariamente, na dependência da existência de um outro sujeito? A

autoconsciência, a consciência de si só pode ser adquirida na relação

intersubjetiva, na medida em que o sujeito começa a perceber sua própria ação

na perspectiva do outro. Assim, a formação da consciência de si se origina de

algo exterior, pode-se dizer, uma importação dos objetos sociais para a

interioridade.

Dentro da categoria de pensadores da atualidade, Habermas (1990)

anuncia em Pensamento Pós-metafísico o fim da metafísica enquanto

pensamento totalizador e autorreferente com pretensões de um acesso

privilegiado à verdade. Contrapondo-se ao pensamento de Heidegger de que “o

fim da metafísica não prenuncia uma era pós-metafísica”, Habermas (1990)

afirma que a desvalorização do modo de pensar metafísico traça um caminho

para o que ele denomina: “pensamento pós-metafísico”, que traz a exigência de

um redimensionamento do papel da filosofia, uma vez que, necessariamente, um

novo cenário de pensamento se instaura.

19

Para Bicca (1993), pós-modernidade sugere o esgotamento do potencial

filosófico dos pensadores modernos, sobretudo naquele aspecto que pode ser

encarado como paradigma de sua racionalidade: o conceito de sujeito – junto com

o qual soçobrariam outros conceitos básicos e um modelo filosófico ou uma

postura elementar de reflexão: a oposição sujeito/objeto. Essa relação

sujeito/objeto é substituída, segundo Habermas (1990, p. 15) na relação entre

linguagem e mundo, entre proposições e estados de coisas. “O trabalho de

constituição do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental

para se transformar em estruturas gramaticais.” Observa-se um abandono do

sujeito em favor de uma intersubjetividade.

Nessa perspectiva Habermas (1990) demonstra a sua filiação a um outro

paradigma filosófico que consistiria em abandonar a filosofia do sujeito com suas

esperanças transcendentais para definir uma fundamentação diferente para o

fazer filosófico: filosofia da linguagem, que se convencionou chamar de “guinada

linguística” quando então, o fazer filosófico volta-se para o seu objeto: a razão.

Habermas encontrou em Mead a sustentação que precisava para compreender o

processo de formação do sujeito por meio da socialização e sintonizou-se com ele

quanto ao fato de que a individuação caracteriza um processo de socialização e

de constituição da autoconsciência mediado pela linguagem.

G. H. Mead protagonizou a produção de um conhecimento científico que

fomentou uma nova perspectiva em psicologia social. A multiplicidade de

conceitos desenvolvidos por ele permitiu uma melhor compreensão da relação

entre indivíduos e sociedade. Seus estudos ampliaram a reflexão sobre o

processo de interação social, colocando a linguagem como ponto central na

formação do “self” e da gênese constitutiva das identidades sociais.

É significativa a discussão que Pereira (2000) faz sobre a teoria do sujeito

proposta por Mead. Lembra a autora que esse estudioso coloca o sujeito como

ser ativo determinado e determinante do processo social. A fase do self que se

relaciona ao social ou a sua internalização, constituindo um indivíduo com seu

grupo social - o “me” (self empírico), resulta do mecanismo de adoção de atitudes

dos outros que são internalizadas e organizadas, estando, portanto, estreitamente

vinculado ao que está posto socialmente; seria a parte mais convencional do

20

‘self’. Já o ‘eu’ seria a resposta do indivíduo à comunidade, é a ação do sujeito

propriamente dita.

Compete, portanto ao ‘eu’ o estabelecimento do novo, pois o mesmo

encerra em seu cerne a sensação de liberdade e de criatividade. É nesse

potencial criativo do ‘eu’ que se concentra a possibilidade de desenvolvimento das

ações que constituiriam o “motor” capaz de gerar o movimento individual e crítico.

O ‘eu’ “é sempre algo que não está dado no ‘me’ e, nesse sentido, instala a

possibilidade de um vir a ser diferente do que está posto nesse nível” (PEREIRA,

2000, p. 52-53). E esse vir a ser natural é parte essencial do ser humanizado e

socializado e pode se concretizar, nas ações cotidianas, através da transgressão,

do rompimento com o convencional.

Morris (2010) aponta que Mead realiza, num quadro teórico pós-metafísico,

a fundamentação naturalista da ideia de Hegel, fundamentação empírica e não

especulativa, através da psicologia social; e com isso dá forma a um conceito

intersubjetivista de autoconsciência. Caberia a psicologia esclarecer antes os

mecanismos através do qual pode desenvolver-se na interação humana uma

consciência do significado das ações sociais. Ou seja, a interlocução entre o “eu”

e o “me” proporcionaria o entendimento da formação da identidade. Se a

autoconsciência nasce a partir da interação e da percepção do ‘outro’, o modo

através do qual nos tornamos socialmente aceitos, vem na medida em que nos

reconhecemos no outro, na ação do outro. Assim, interiorizando suas ações nós

as reproduzimos externamente, tornando-as (as ações) parte da comunidade que

partilha uma mesma dinâmica e forma de ações normativas.

Berger e Luckman (1976) afirmam que os pressupostos utilizados para o

desenvolvimento do seu pensamento em relação à “construção social da

realidade” receberam importante influência de Georg Mead e destacam a

linguagem como elemento fundamental, descrita por ele em 1903 que a

considerou um ‘medium’ essencial na formação do “self” no processo de interação

entre o indivíduo e a sociedade. “A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me

continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem em que estas

adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim.”

(BERGER &LUCKMAN, 1976, p. 38).

21

Segundo Habermas (2012, p. 185), Mead tem o mérito de ter acolhido

certas considerações encontráveis em Humboldt e Kierkegaard de que o

processo de individuação não representa a autorrealização de um sujeito

autoativo na liberdade e na solidão, e sim, como um processo linguisticamente

mediado da socialização na constituição de uma história de vida consciente de si

mesma. Assim, a identidade de indivíduos socializados forma-se simultaneamente

em meio ao entendimento intrassubjetivo-histórico-vital consigo mesmo. Forma-se

então, a individualidade num processo de reconhecimento intersubjetivo e de

autoentendimento mediado intersubjetivamente.

A sociedade que Berger e Luckman (1976) concebem como sendo ao

mesmo tempo uma realidade objetiva e subjetiva, entendida como um processo

dialético compõe-se de três momentos: exteriorização, objetivação e

interiorização que não devem ser pensados numa sequência temporal. Ao mesmo

tempo em que o indivíduo exterioriza o seu próprio ser no mundo ele interioriza o

mundo circundante como realidade objetiva. E essa apreensão de um

acontecimento objetivo como dotado de sentido, ou seja, como manifestação da

subjetividade de outrem, torna-se, nesse processo, significativo para esse

indivíduo.

A socialização do indivíduo passa segundo os autores por duas vertentes.

Na socialização primária o que o indivíduo experimenta na infância, na relação

com os seres humanos mais próximos – o outro significativo - (pais, avós, etc.)

terá maior valor e indicará que toda a socialização secundária deverá assemelhar-

se a ela. Daí a força indiscutível do “outro significativo” na vida das pessoas, pois

“o aprendizado implica mais do que o aprendizado puramente cognoscitivo;

ocorre em circunstâncias carregadas de alto grau de emoção” (BERGER;

LUCKMAN, 1976, p. 176).

Essa importância do outro significativo se sustenta na medida em que a

interiorização só se realiza quando há identificação e nisso reside a absorção dos

papéis e das atitudes que a criança interiorizará, tornando-os seus; e essa

‘importação’ de significados faz com que o sujeito se identifique consigo mesmo

adquirindo uma identidade subjetivamente coerente e plausível. Observe-se que

“não é um processo unilateral nem mecanicista, implica uma dialética entre a

22

identificação pelos outros e a auto-identificação entre a identidade subjetivamente

apropriada” (BERGER; LUCKMAN, 1976, p. 177).

Na socialização primária não há problemas quanto à identificação com este

ou aquele outro significativo, pois os pais nos foram “dados” sem a nossa

participação, e sem escolha, a criança identifica-se automaticamente com eles e a

interiorização dessa particular realidade é quase inevitável. A criança não

interioriza o mundo dos outros que são significativos para ele como sendo um dos

muitos mundos possíveis. Assim, interioriza-o como sendo ‘o mundo’ o único

mundo existente e concebível – “tout court.”

Cabe ressaltar a impactante afirmação de Berger e Luckman (1976, p.

182):

A socialização primária realiza assim o que [...] pode ser considerado o mais importante ‘conto-do-vigário’ que a sociedade prega no indivíduo, ou seja, fazer aparecer como necessidade o que de fato é um feixe de contingências, dando deste modo sentido ao acidente que é o nascimento dele.

O mundo que a criança absorveu como seu, faz com que a mesma tenha

confiança nas pessoas dos outros significativos e nas suas definições das

situações por eles apresentadas. Assim, o mundo absorvido pela criança, na

socialização primária, faz todo o sentido, pois é, sem qualquer sombra de dúvida,

real.

A formação na consciência do outro generalizado constitui uma fase

decisiva no processo de socialização já que implica a interiorização da sociedade

enquanto tal e da realidade objetiva que nela se estabelece e, ao mesmo tempo

proporciona o estabelecimento subjetivo de uma identidade coerente e contínua.

Os autores compartilham do pensamento de Mead ao entenderem que para o

sujeito pertencer a um grupo social, ele precisa reproduzir valores e símbolos

compartilhados pela comunidade na qual se insere. Ao mesmo tempo em que se

adapta a ela, afirma-se como indivíduo autônomo lutando contra a coletivização

massificada, ou seja, na articulação indissociável do “me” e do “eu.”

Com a interiorização da sociedade e da realidade objetiva nela

estabelecida ao mesmo tempo em que, ocorre o estabelecimento subjetivo de

uma identidade coerente e contínua, termina a socialização primária e estabelece-

23

se o conceito desse outro generalizado. O indivíduo nesse momento passa a ser

um membro efetivo da sociedade e possui subjetivamente uma personalidade e

um mundo.

Com esta incursão teórica sobre o sentido da vida e a construção social do

sujeito, obtemos as evidências necessárias para o entendimento de que a mulher,

antes de sê-lo, constitui-se em um ser, em um sujeito inserido num determinado

contexto histórico e social do qual decorrem suas determinações e as

possibilidades, os modos e as alternativas de identidade.

24

Capítulo 2 A identidade como metamorfose humana: considerações sobre

o segundo sexo

[...] o conteúdo que surgirá dessa metamorfose deve subordinar-se ao interesse da razão e decorrer da interpretação que façamos do que merece ser vivido. Isso é busca de significado e invenção de sentido. É autoprodução do homem. É vida. (CIAMPA, 1987, p. 241-242).

Os estudos sobre identidade, do ponto de vista psicológico são abordados,

de acordo com Laurentti e Barros (2000), geralmente pela Psicologia Analítica do

Eu e pela Psicologia Cognitiva; abordagens essas que compartilham a noção de

desenvolvimento marcado por estágios crescentes de autonomia,

compreendendo a identidade como produto da socialização, mantida pela

individualização. Na Psicologia Social, a identidade ocupou lugar central nos

estudos de Willian James; e na tradição do Interacionalismo Simbólico as

referências aproximam-se nos trabalhos de Georg Mead.

Estudar a identidade humana enquanto categoria de analise conduz a uma

compreensão do indivíduo e os processos sociais em seu entorno. Porém,

estudá-la sob a ótica do sintagma: identidade-metamorfose-emancipação, amplia

essa compreensão, fazendo uma articulação da subjetividade com a objetividade

da natureza, a normatividade da sociedade e a intersubjetividade, apurando o

olhar para o sujeito como essencialmente histórico, ideológico e heterogêneo,

constituído na e pela linguagem.

Na obra de Ciampa (1987), observamos a pontual referência de que no

processo de construção da identidade a diferenciação de si e consciência do

outro é fundamental. E isso evidencia a sua vinculação teórica sobre o sujeito e

sociedade com Berger e Luckman (1976, p. 174) já que para os autores “a

interiorização [...] constitui a base primeira da compreensão de nossos

semelhantes e, em segundo lugar, da apreensão do mundo como realidade social

dotada de sentido.”

Na construção da Teoria da Identidade, além da categoria Atividade

[Trabalho] Ciampa (1987) buscou na categoria Consciência a compreensão da

narrativa, que pontua que só se tem acesso, nas histórias de vida, aos elementos

25

conscientes, que para o autor, se referem à dimensão dos sentidos e dos

significados.

Para Carone ([19--]) todas essas asserções são derivadas, sem

mistificação, do materialismo histórico, melhor dizendo, são baseadas em Marx e

numa boa tradição do marxismo, que supõe que o singular encarna o universal,

porque ele é mediatizado pelas relações sociais, tais como elas são criadas

historicamente.

Na Teoria do Agir Comunicativo de Habermas (2012), encontram-se outros

subsídios que sedimentam uma abordagem “subjetivista” vendo a sociedade

estruturada em termos de “sentido”. O filósofo buscou, na concepção meadiana

de self a compreensão do desenvolvimento individual da identidade e em Hegel a

diferenciação entre a singularidade e a individualidade. Lima (2012b), fazendo

articulações das concepções de Mead e Habermas, deixa claro que a tensão

entre o “me” e o “eu” é que possibilita Habermas pensar a identidade de uma

forma diferente daquela que a vê como estática ou idêntica a si mesma,

“cristalizada”, portanto. Com essas bases teóricas do significado e da

individuação passa-se a pensar a identidade-eu não convencional como sendo

formada socialmente, gerada comunicativamente, de onde emergirá a

autoconsciência em busca de autorrealização. Ou seja, a identidade pós-

convencional, emerge no coletivo onde o indivíduo vai buscar subsídios para a

solução de problemas resultantes da relação que mantém com seu ambiente

natural e social.

O homem, um ser imerso em temporalidades tem que ser pensado nos

diferentes níveis dessa temporalidade, desde os mais ligados à interioridade até

aqueles voltados à exterioridade. Assim, temporalidade associa-se com

subjetividade, identidade e memória, indiscutivelmente. E, para se pensar a

identidade, oportuna é a afirmação de Habermas de que “uma identidade bem

sucedida do “eu” seria aquela que conseguisse manter sua autenticidade perante

as mudanças sociais” (LIMA, 2012b, p. 256)

Tudo o que somos, desde os elementos que nos foram dados (nome,

filiação, orientação religiosa ou não, etc.), representam uma base, uma plataforma

para o eterno devir e, muitos dos projetos engendrados ao longo da existência

acabam sendo abortados por não encontrarem uma via de concretização. E isso

significa que podemos ser ou deixar de ser inúmeras personagens, ou seja, a

26

identidade do eu comporta, ao mesmo tempo, o exercício de diferentes

identidades de papéis (mulher, professora, ativista, mãe, etc.) em distintos re

recortes da identidade pessoal (identidade religiosa, identidade profissional,

identidade de gênero, etc.).

Segundo Mead (apud MORRIS, 2010) a formação da identidade é um

processo de aprendizagem social intersubjetiva. A capacidade de modelar o ‘self’

de acordo com as atitudes dos outros toma a forma de uma capacidade de

compreender essas atitudes por meio da assunção dos papéis dos outros, isto é,

de ver seu próprio comportamento à luz do ponto de vista do outro. Ou seja, a

individualidade “forma-se em condições de reconhecimento intersubjetivo e de

auto-entendimento mediado intersubjetivamente” (HABERMAS, 1988, p. 186-

187).

Ciampa (1987) ao falar sobre a identidade que inicialmente assume a

forma de um nome próprio, vai adotando outras formas das predicações, como

papéis, especialmente, mostrando um vínculo com a Teoria dos Papéis em

Psicologia social, numa aproximação com Mead e com Goffman e com “todos

aqueles que tentaram fazer uma psicologia social baseada no modelo e na

representação, como encarnação do papel, como vivência e desempenho do

papel, que é socialmente estabelecido” (CARONE, [19--], p. 2). Para Lima (2010,

p.166) “A identidade deve ser compreendida como metamorfose humana, que é,

por sua vez, luta por reconhecimento em face de uma sociedade capitalista que

tende a reduzir a identidade a personagens feitichizadas que negam sua

totalidade em favor do universal dominante: o “capital.”

Como tantas outras questões que são dominadas pela lógica capitalista, o

assunto da velhice foi “estatizado” e “medicalizado”, transformando-se ora em

problema político, ora em problema de saúde, seja para ser regulado por normas,

seja para ser pensado de forma preventiva “[...] assim, numa atitude de negação

da idade, os idosos buscam parecer mais jovens para serem aceitos e acolhidos,

‘obscurecendo’ suas características, seus atributos e sua identidade” (BARROS,

2002, p. 14)

A memória como condutora e mediadora da evocação do tempo, na velhice

assume um papel importante de redefinição de identidades (...) esse ser que vai

envelhecendo carrega consigo um tempo existencial que lhe permite,

paradoxalmente, renovar a própria existência, justamente por se um ser temporal

27

(STANO, 2001, p. 55). Sendo um fenômeno social, os estudos sobre a identidade

não podem ser dissociados daqueles que procuram compreender a sociedade,

pois é do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas

determinações e, consequentemente, emergem as possibilidades ou

impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade. As teorias sobre a

identidade, em decorrência, se encontram “sempre encaixadas em uma

interpretação mais geral da realidade, são “embutidas” no universo simbólico de

suas legitimações teóricas, variando com o caráter destas últimas. A identidade

permanece ininteligível a não ser quando é localizada em um mundo.” (BERGER;

LUCKMAN, 1976, p. 228)

Cada época imprime, no sujeito, uma forma de pensar e agir. Uma incursão

pela história da humanidade permite perceber que alguns momentos marcaram,

sobremaneira, a construção da identidade, como por exemplo, a supervalorização

espiritual na Idade Média ou a descoberta dos valores humanos no período

Renascentista, ou ainda a acentuada valorização das faculdades intelectuais no

Iluminismo.

[...] para a constituição de si mesmo, do self, o sujeito agrega tendências específicas do conhecimento, reduzindo por exemplo a estímulos e respostas na concepção behaviorista, ou a determinismo social na perspectiva histórica e antropológica, assimilando, em sua construção identitária, particularidades e valores específicos de cada momento. (VIEIRA, 2005, p. 210)

E, nas sociedades que mantêm uma estrutura de poder que preconiza

certos privilégios a alguns em detrimento de outros, verificam-se, no dizer de

Almeida (2005) políticas de identidade que favorecem e reforçam relações

assimétricas, afetando grupos minoritários: idosos, mulheres, indígenas, etc.

numa busca pela manutenção dos processos sociais vigentes. Esse rigor

sistêmico, próprio das sociedades capitalistas onde “(...) Tendo em vista o

interesse emancipatório, a identidade afigura-se uma ferramenta importante para

dar conta, por um lado, dos processos de “emudecimento do outro”, que induzem

a conformidade e a mesmice e, por outro lado, dos processos de autorreflexão e

entendimento que estão na base da autonomia e da assertividade pessoal

(ALMEIDA, 2005, p.4)

Abordar a dimensão política das identidades envolve, segundo Pereira

(2000, p. 2) de um lado, uma preocupação sociológica, mas, de outro, trata-se

28

fundamentalmente de apreender o sujeito do ponto de vista da dialética:

indivíduo-sociedade, enfatizando a capacidade transformadora do indivíduo e

“isso é tarefa da psicologia social.” E acrescenta que a pretensão de abordar a

política de identidade vai exigir que o pesquisador trabalhe com um conceito mais

amplo de sujeito, aquele que tem a capacidade efetiva de produzir mudanças

sociais.

Segundo Hall (1997), as políticas de identidade estão articuladas como

uma política de representação, ou seja, o envolvimento dos sujeitos que até então

poderiam estar localizados “nas margens”, para reclamar alguma forma de

representação. É a partir de um espaço que pode ser identificado com o âmbito

do local, que passam a aparecer novas representações, novos sujeitos que

mediante diferentes embates alcançam meios de falarem por si mesmos. Ainda

segundo o autor, as políticas de identidade trazem em seu bojo a questão da

etnicidade enquanto reconhecimento de que todos nós falamos a partir de um

lugar, de uma história, de uma experiência, de uma cultura particular “Nesse

sentido, nós todos somos etnicamente situados e nossas identidades étnicas são

cruciais para nosso senso subjetivo de quem somos” (HALL, 1997, p. 447)

Habermas (1983) defende a ideia de que o processo de desenvolvimento

da identidade passa por três momentos distintos que ele denomina: identidade

natural, identidade de papel e identidade do eu. A identidade natural refere-se ao

primeiro estágio do desenvolvimento e nesse momento, os atores – crianças -

ainda não estariam inseridos no universo simbólico, ou seja, as suas ações

estariam sendo orientadas por outros. Seria esse, o segundo momento da

socialização primária, onde o papel do outro significativo se faz intenso. Já com a

preponderância da socialização secundária, emergiria o terceiro estágio onde o

sujeito socializado assumiria os papéis da realidade social. E ao buscar essa

identidade de papel, o sujeito, gradativamente, busca a identidade do eu “que se

expressa numa paradoxal na medida que o “eu”, como pessoa é igual a todas as

pessoas, ao passo que enquanto indivíduo é diverso de todos os demais

indivíduos” (LIMA, 2012a, p. 256)

A biografia subjetiva não é completamente social, pois o indivíduo

apreende-se a si próprio como um ser ao mesmo tempo interior e exterior à

sociedade. Assim, a sua biografia será sempre produzida “in acto”. E Habermas

(1983, p. 80) afirma: “Desse modo, em sua expressão concreta, a identidade do

29

eu se manifestaria na capacidade de construir novas identidades, integrando

nelas as identidades superadas e organizando a si mesmo e as próprias

interações numa biografia inconfundível.”

Minayo e Coimbra Junior (2002) observam que, não sem dor e conflitos,

os papéis sociais estão mudando e podem mudar mais, à medida que as pessoas

longevas se coloquem como atores das transformações com que sonham. E, o

palco para a ação desses atores sociais configura-se no mundo da vida, o lócus

da integração social, onde os seres humanos podem, através do agir

comunicativo,

levantar suas pretensões, argumentos e submetê-los à crítica daqueles com quem o compartem. Em sua esfera, o mundo da vida é coordenado pelo médium da solidariedade entre aqueles que nele agem e falam. Ele permite a busca pelo entendimento mútuo necessário ao estabelecimento de acordos racionalmente motivados (MAGALHÃES, 2012, p. 5).

No contexto feminino, a condição de esposa e mãe imposta,

indiscriminadamente, pela sociedade nos mais distintos períodos históricos,

precisa ser dissecada em seus meandros mais profundos, com o objetivo de, ao

se revelar as feridas existenciais dessa condição, as mulheres da atualidade,

moças e velhas, possam ter um “ressarcimento psicológico” que não apenas as

ajude a cicatrizar as feridas atávicas, como também, as faça vislumbrar um devir

que lhes permita superar as convenções, encontrando as vias adequadas para

uma metamorfose realmente emancipadora; e dessa forma terem a possibilidade

de usufruir da velhice com qualidade e satisfação.

Ciampa (1987, p. 58) enfatiza na trajetória de Severina, quando a mesma

acalenta o desejo humano de transformar-se em esposa e mãe como sendo “uma

alternativa de mudança de identidade desejada por muitas moças – até mesmo

de classe média e com família – ser esposa, dona-de-casa, mãe...”; ou seja, uma

metamorfose para trilhar os caminhos anteriormente traçados, sem romper com o

modelo convencional do que é, e do o que deve ser a mulher. Se dá, portanto, a

mesmice, ou seja, a simples reposição de papéis, sem a mediação da reflexão.

Quando se fala em identidade mito, a referência é a impossibilidade de o

indivíduo conseguir atingir a condição de “ser-para-si” através da superação das

contradições. Para Castoriadis (1987) o para-si quer dizer mundo próprio, fonte de

criação de um mundo próprio, a identidade vista como um conjunto de qualidades

30

ideais, construídas, social e historicamente. A fetichização das personagens

impossibilita o alcance da condição de “ser-para-si”, encobrindo a identidade

como metamorfose (MATIAS, 2007).

As dificuldades ainda são enormes para que a mulher possa reconhecer-se

enquanto sujeito, tendo o desafio de construir sua identidade em uma sociedade

que já havia apregoado, nas premissas modernistas, a possibilidade de

recuperação de uma subjetividade mascarada pelo modelo masculino de

civilização. Pesquisar, então, sobre identidade, na perspectiva de Ciampa (1987)

significa um rompimento com a questão meramente descritiva para uma

perspectiva de compreensão, de entendimento: “precisamos captar os

significados implícitos, considerar o jogo das aparências. A preocupação é com o

que se oculta, fundamentalmente com o desenvolvimento do que se mostra

velado.” (CIAMPA, 1987, p. 138)

Nesse sentido, as tentativas da mulher contemporânea esbarram na forte

presença da hegemonia do discurso masculino, que teima em se fazer

preponderante na construção da identidade feminina. É fundamental, pois,

encontrar discursos alternativos para levar conta questões que envolvam as

diferenças e as desigualdades do gênero quase sempre “invisíveis” que acabam

por cristalizar a identidade feminina no papel de esposa e mãe. É essa noção de

identidade feminina, que ainda precisa ser desconstruída através de

questionamentos sobre sua universalidade, sua fixidez e, sobretudo pela noção

de corpo como base biológica e material incontestável da identidade.

Foram anos de muito sofrimento para que as mulheres tivessem direito de

estudar, votar, enfim de serem cidadãs numa articulação entre atividade e

consciência. Define-se aí a mesmidade, que configura a identidade um caráter de

movimento e plasticidade, num rompimento com o convencional, já que possibilita

às mulheres um ato de reflexão sobre o que foram e o que desejam ser. A

mesmidade configura-se, portanto, com o desejo humano de saber mais, de

conhecer e de refletir sobre os eventos e conhecimentos, recusando-se a

reconhecê-los como realidade absoluta. Assim, as novas experiências “[...]

quebram a rotina daquilo que é auto-evidente, constituindo uma fonte de

contingências [...] atravessam expectativas, correm contra os modos costumeiros

de percepção, desencadeiam surpresas, trazem coisas novas à consciência.”

(ALMEIDA, 2005, P. 126)

31

Como questão científica, social e política, a identidade extrapola o âmbito

acadêmico para tornar-se uma questão humana: um complexo de conceitos e

entendimentos sobre o ser e o estar no mundo. Para Ciampa (1987) a Identidade

Metamorfose é vista como a unidade da atividade, da consciência e da identidade

“Como o real é sempre movimento, transformação incessante, não deveria nem

mesmo atrair a nossa atenção uma afirmação como essa, que identidade é

metamorfose; ela é óbvia; nem mesmo deveria ser considerada problema ou

questão a ser pesquisada, já que compartilha da natureza de tudo que existe.”

(CIAMPA, 1987, p.148). Fica então a constatação de que se tudo se transforma,

continuamente, a não-metamorfose, ou seja, a ilusão de não transformação,

ganha espaço na discussão que se apresenta.

A metamorfose quando gera emancipação, não deixa dúvidas, não ilude,

não necessita ser desvelada, pois o ato transgressor, ao romper com o

convencional por si só, se define, se apresenta e se instaura na vida de quem

transgrediu para atender aos seus desígnios mais profundos: libertar-se. Sendo

ativa a mulher projeta-se na vida a afirma-se como sujeito. Portanto

diferentemente da metamorfose “óbvia”, a ação transgressora exige uma

compreensão diferenciada porque faz emergir uma Identidade que se

convencionou chamar de emblemática [pós-convencional].

Saffioti (1976) afirma que a capacidade de mudar e gerar um novo lugar no

mundo, uma nova identidade, uma nova forma de ser e estar consiste num ato de

transgressão, e a transgressão é de suma importância nas mudanças sociais. É

nela e por meio dela que a sociedade se transforma e com isso, transformando

em seu âmbito mais profundo, a própria vida. Pela ausência de transgressão duas

coisas ficam comprometidas: a qualidade de vida e a possibilidade de

continuidade. E se a vida em constante transformação é expansão, é

metamorfose; transgredir é necessário.

A autoconstrução da identidade feminina, mais do que a expressão de uma

essência, é a afirmação de poder quando as mulheres se mobilizam para alterar o

estado de coisas que a história lhes impingiu. A identidade se constrói, pois, na

afirmação do poder e não como a expressão de uma essência. O poder no

sentido de as mulheres se mobilizarem para promover alterações de como são

para como desejam ser; essa reivindicação de uma identidade é construção de

poder – empoderamento feminino.

32

Beauvoir (1967, p. 8) traz a seguinte afirmação de Kierkegaard “Que

desgraça ser mulher! Entretanto a pior desgraça quando se é mulher é, no fundo,

não compreender que sê-lo é uma desgraça.” Conforme a autora é o

desconhecimento sobre a sua condição que torna o fato de ser mulher tão terrível.

As mulheres, senão todas, muitas delas, não compreendem, de fato, quem são ou

quem deveriam ser numa sociedade que as relegou, por séculos, a uma opressão

impiedosa.

Beauvoir (1967), num percurso sob o enfoque existencialista, discute a

aprendizagem das meninas acerca da sua condição, que as encerra no contexto

sociofamiliar, bem como delineia as pequenas possibilidades de “saídas” que lhes

são permitidas no cotidiano e afirma que uma das maldições que pesam sobre a

mulher é o fato de, em sua infância, serem elas abandonadas nas mãos das

mulheres. E esse universo por assim dizer, homogêneo, favorece a manutenção

e reprodução do modelo de conduta a elas imposto pela suposta supremacia

masculina, da qual advirá uma identidade ‘dada’, pressuposta, portanto.

Há, nas considerações da autora, a constatação em forma de denúncia de

que a mulher sempre foi considerada fisiologicamente inferior e, por isso, escrava

da espécie. E esse ‘status’ de inferioridade lhe conferia papéis subordinados que

a identificavam como mera reprodutora biológica. Assim, todas as mulheres eram

iguais. Em consonância com Beauvoir (1967), essa identidade sexual de mulher,

carregada de ideologias não será usada aqui, como um arquétipo ou como

referência a alguma essência imutável. Entendemos que a categorização de

mulher deve-se a um aprendizado construído socialmente e pode, perfeitamente

ser revisto e modificado. E essa construção do feminino acontece com a

mediação de outrem e somente essa mediação pode constituir um indivíduo como

‘um outro’.

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher [...] não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada (BEAUVOIR, 1967, p. 8).

Antes do movimento feminista na década de 70 do século passado, a

mulher era realmente referenciada apenas segundo os fatores biológicos:

33

rebaixada força física, estatura menor, pouca capacidade intelectual dentre

outros, que a limitavam ao processo reprodutivo. Esse conceito de ‘inferioridade

biológica’ era predominante tanto no discurso científico quanto na sociedade

como um todo. E assim delineou-se a coerência entre as condições físicas

empobrecidas e as funções sociais de menor prestígio e essa divisão sexual,

dividiu também, o âmbito de atuação entre o privado, para a mulher e o público

para o homem, com todos os privilégios advindos dessa determinação arbitrária,

favorecendo o homem. Essa desigualdade imprimiu na mulher, uma identidade

validada apenas pelos papéis sociais a ela atribuídos.

Há um caso bastante ilustrativo à respeito de “tornar-se” homem ou mulher,

registrado pela fotógrafa norte americana Jill Peters sobre as últimas “virgens

juramentadas” da Albânia. Para sobreviver às rígidas restrições impostas às

mulheres entre as comunidades das montanhas dos Balcãs, sudoeste da Europa,

elas ignoravam suas identidades e passavam a viver como homens. Esses

camponeses viveram sob as normas do ‘kanum’, um código de honra que vigorou

por 500 anos (até o início do século XX). Essas regras limitavam a vida das

mulheres aos cuidados dos filhos e da casa; elas eram proibidas de ter uma

profissão, dirigir, beber, fumar, cantar; não tinham direito à herança e tornavam-se

propriedade do marido.

O ‘Kanum’ permitia, porém, que a mulher se proclamasse homem,

passando a viver como eles; a partir de então, podiam trabalhar e tornar-se

patriarcas. Essa regra teve origem nas precárias condições de sobrevivência nas

montanhas da Albânia que chegava a dizimar todos os integrantes do sexo

masculino de uma família. Na ausência de um herdeiro, a mulher mais velha era

‘obrigada’ a proclamar-se virgem para garantir o sustento e a honra dos

familiares. Outras, por opção, proclamavam-se ‘homens’ para ter autonomia. Para

isso, elas faziam um juramento público de virgindade e celibato, cortavam os

cabelos e adotavam trajes e trejeitos masculinos para a vida toda. Deixariam a

condição de serva se também deixassem de ser mulher, se renunciassem ao

sexo, à maternidade e à identidade. É, de certo modo, um matar a si mesma.

Evocando Beauvoir (1967, p. 35) “Jogos e sonhos orientam a menina para a

passividade: mas ela é um ser humano antes de se tornar uma mulher, e já sabe

que aceitar-se a si mesma como mulher é demitir-se e mutilar-se; e se a

demissão é tentadora, a mutilação é odiosa.”

34

Um olhar para a história procurando as evidências de movimentos pela

igualdade entre homens e mulheres e pela libertação de preconceitos e opressão

evidenciam que a desigualdade/inferioridade feminina tem suas origens na

sexualidade. Esse olhar que privilegia, neste momento, o caráter teórico,

engendra-se, no entanto, na compreensão de uma realidade vivida

cotidianamente pelas mulheres nascidas na primeira metade do século XX e que

foram seriamente impactadas pelas normas vigentes na época. E hoje, “a mulher

velha é vítima dessa negação de toda vida privada, dessa metamorfose de ser

humano em puro objeto, que lhe é imposta [...].” (BEAUVOIR, 1970, p. 320).

Saffioti (1976) considera que a trajetória feminina, sua história, suas

conquistas precisam ser descritas para que haja empoderamento da categoria

social que elas representam, pois as mulheres ainda são na contemporaneidade,

objeto da satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de

trabalho e de novas reprodutoras. E acrescenta que, como categoria social, a

sujeição das mulheres, também como grupo, envolve prestação de serviços

sexuais a seus dominadores. Esta soma/mescla de dominação e exploração a

autora entende como opressão.

Duby e Perrot (1991) questionam, em relação à “História das mulheres”

que teve seu inicio na década de 60: Terão mesmo, as mulheres uma história?

Para as autoras, sendo excluídas do espaço público, as mulheres foram lançadas

no silêncio do relato histórico. O movimento “História das mulheres” trouxe, em

seu início, através dos historiadores sociais, a idéia de uma categoria

homogênea, entendida como “identidade coletiva.” Essa suposição, que distinguiu

os primeiros estudos sobre a condição da mulher contribuiu para consolidar o

antagonismo homem/mulher, o que instigou o movimento feminista na década de

70. Priore (2012, p. 8) nos diz:

Teria então chegado o tempo de falarmos, sem preconceitos, sobre as mulheres? Teria chegado o tempo de lermos, sobre elas, sem tantos a priori? Muito se escreveu sobre a dificuldade de se construir a história das mulheres, mascaradas que eram pela fala dos homens e ausentes que estavam do cenário histórico. Esta discussão está superada.

Permanece, então, a história individual, subjetiva, onde cada gesto, cada

silêncio guardam “tesouros humanos” de riqueza incalculável. Assim, em

oposição a essa ausência de fontes históricas, existe uma abundância de

35

representações e discursos acerca do que a mulher é ou deveria ser “fazendo-nos

ver, ouvir e sentir através da narrativa de histórias de vida, como nasceram e

viveram as mulheres no século passado e como se mantém “vivas” nos dias de

hoje” ( Priore, 2012). Essas inúmeras histórias que hoje se contrapõem à história

universal, ou seja, a história das mulheres, dos negros, dos velhos, etc.

distanciam-se de uma visão global do desenvolvimento da humanidade,

aguçando a sensibilidade para o diferente, o particular.

Na década de 70, baseadas na gerontologia social, surgiram as Teorias e

Perspectivas Feministas que incorporaram questões como a diversidade no

processo do envelhecimento feminino, bem como entendiam o gênero como um

dos principais organizadores para a vida social, não apenas durante uma fase,

mas para todo o curso de vida. A ênfase nas relações de poder no processo do

envelhecimento e na velhice em idade avançada, com foco em questões

relevantes para a maioria das mulheres idosas, as teorias feministas acabam por

fornecer importantes subsídios para os órgãos públicos para a elaboração e

implementação de políticas públicas e sociais (SIQUEIRA, 2001).

Durante as duas últimas décadas do século XX, surgiram questões no

movimento feminista que apontam para a análise das relações de poder ligadas à

sexualidade e Rubin (1984) traz considerações sobre o fato de que o feminismo,

em suas premissas, acaba por mistificar as mulheres ao limitar as possibilidades

em relação à sexualidade ao associar sexo e gênero. Agrega-se a isso a

constatação ainda, de uma visão simplista de que o feminismo se caracteriza por

uma “guerra entre os sexos” o que sobrecarrega o ser feminista de uma

conotação negativa, nascida no século 18, compartilhando, portanto, dos valores

iluministas como: a centralidade do sujeito indiviso e universal, a racionalidade, a

igualdade e a liberdade que até hoje se mantém nas sociedades ocidentais. “Essa

concepção de sujeito iluminista corresponde a uma identidade compreendida

como coerente, fixa e que é central na constituição do indivíduo moderno.”

(BONETTI, 2012, p. 41-42).

Para Beauvoir (1967) a “inferioridade” atribuída à mulher e geradora das

desigualdades, tem sua origem na sexualidade, fonte de toda opressão.

Diferentemente do feminismo, onde a ação é grupal em defesa dos direitos da

mulher, no processo de metamorfose a ação é individual e pode acontecer em

atos que rompem com as normas historicamente estabelecidas para o

36

comportamento feminil, desde tempos imemoriais. Enquanto as ações de gênero

pretendem, através de debates públicos desconstruir as diferenças, questionando

os papéis fixados e naturalizados pela sociedade acerca da correspondência

entre o discurso político e as práticas sociais, a metamorfose que transgride se

vale de virtudes, para subverter a noção de “hybris” que na sociedade

democrática ateniense, consistia em uma ação, através da qual se ultrapassa o

“metrion” (justa medida) ocasionando agressão à ordem social estabelecida.

Assim como o marxismo, o feminismo é uma reação à forma como o

Estado burguês se instaurou. As ideias feministas nem sempre foram bem

recebidas no âmbito da luta revolucionária, cujos militantes estavam apegados a

determinismos econômicos. E diz a história mais recente que as mulheres foram à

luta denunciando as barbáries a que foram submetidas: elas foram guilhotinadas,

queimadas e presas. E num movimento libertário “queimaram sutiãs” e foram para

as ruas e as praças exigindo os direitos que lhes eram negados: conquistaram o

direito de votar, de trabalhar, de ser mãe no momento que lhes aprouvesse, enfim

passaram a ter as rédeas da vida em suas mãos, passando por profundas

metamorfoses identitárias.

Ser mulher, ou melhor, ‘se perceber mulher’; uma metamorfose baseada na

vergonha e no remorso (ser objeto) é segundo Beauvoir (1967, p. 39) “uma

estranha experiência, para um indivíduo que se sente como sujeito, autonomia,

transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de essência dada, a

inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para si, se arvora de um,

ser revelado a si mesmo, como alteridade [...].

É o que acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo,

nele se percebe mulher. Envolta na “pureza”, na inocência é num repente que a

menina descobre em si e em derredor os perturbadores mistérios da vida e do

sexo. E nessa transição, a mulher vive um conflito entre sua existência autônoma

e seu “ser-outro”; Ela foi ensinada que para agradar é preciso fazer-se objeto e,

para isso é mister que renuncie à sua autonomia. “Fecha-se assim um círculo

vicioso, pois quanto menos exercer a sua liberdade para compreender, apreender

e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará

afirmar-se como sujeito.” (BEAUVOIR, 1967, p.22).

Essa “passividade” histórica que caracterizou a mulher como

essencialmente “feminina” é um traço que tende a cristalizar-se pela vida adulta

37

caso a mulher não encontre as vias de libertação. As denúncias contundentes nos

anos 70, instituíram um novo feminismo, um novo paradigma contestatório em

relação à identidade feminina.

São corolários desse paradigma a compreensão de que as mulheres compartilham de uma realidade separada e radicalmente distinta da realidade masculina, de que o poder emana dos homens sobre as mulheres, de que os sistemas de dominação são transculturais e trans-históricos e estão imiscuídos aos modos de produção e de reprodução sociais. (BONETTI, 2012, p. 42).

As bandeiras atualmente levantadas por movimentos femininos em várias

partes do mundo são indicativos de que ainda não se conquistou o suficiente. A

Marcha das Vadias do grupo ucraniano Femen, com jovens mulheres protestando

em eventos públicos, com os seios à mostra ou vestidas apenas com lingeries, é

uma demonstração de que o feminismo continua sua luta contra os mais recentes

abusos que se praticam: o racismo, o lesbo-homofobismo, o capitalismo, etc.

Ainda que sujeito a inúmeras críticas, o movimento atual das mulheres anuncia

que:

(...) em tempos que ser mulher não é mais exclusivamente definido pela materialidade da biologia, o corpo feminino ainda é onde se manifesta tanto a opressão quanto a resistência a ela (...) e, insiste em nos fazer ver que é necessário lembrar que o seu corpo é o seu território, sobre o qual nem o Estado e nem as Igrejas devem ter ingerência. (BONETTI, 2012, p. 43).

Esse conjunto de valores entendido como ideologia política, fez emergir a

constituição de uma identidade coletiva baseada na ideia de que todas as

mulheres compartilham, não só experiências de opressão, como interesses em

reverter essa condição calcada no fato de terem nascido mulheres e, portanto,

com as marcas corporais dessa condição. E dessa resistência, o projeto político

feminino as levaria às ações que as emancipariam do poder e da opressão,

criando-se uma nova identidade coletiva para elas “marcada pela liberdade e pela

igualdade, o que redundaria em outra forma de vida em sociedade” (BONETTI,

2012, p. 42). Como se observa, o feminismo investiu a categoria social mulher, a

38

partir de uma concepção identitária assentada no corpo feminino (aparato

biológico).

Esses movimentos mostram, sem dúvida, que há ainda muito a ser feito

inclusive na própria constituição da ideologia política feminista e nas suas formas

de resistência. São necessárias transformações na essência mesma do

movimento para se compreender a persistência histórica das violações às

mulheres e ao feminismo. Para Lypovetsky (2000) com o esgotamento das

ideologias revolucionárias, as mulheres querem tudo, menos apagar sua

feminilidade. O momento já não é de negação dos sinais estéticos da diferença,

mas de reafirmação das identidades.

Ao aceitar a especificidade de seu corpo a mulher, não se atém a biologia, pelo contrário, livra-se da definição dada pelo homem, que tem ignorada sua própria natureza. Na ordem masculina, as mulheres serão sempre aniquiladas por suas características de fora de sua experiência primordial, corporal: seus corpos têm sido reinterpretados e suas experiências reformuladas pelos homens. Somente com a reconstrução de suas identidades com base em suas especificidades biológicas e cultural as mulheres conseguirão tornar-se elas mesmas. (CASTELLS, 1999, p.233).

Podemos considerar que realmente “os tempos são outros”, porém, apesar

do desenvolvimento e das transformações favoráveis ao nivelamento entre os

sexos, ainda existe na contemporaneidade, um conjunto de atribuições

tradicionalmente femininas que continuam a fomentar a visão ‘falologocêntrica’ da

sociedade, com a predominância dos conceitos opostos que sempre

caracterizaram a relação entre o homem e a mulher, razão/emoção;

atividade/passividade; social/individual; público/privado. Apesar de se contar, no

cenário da sociedade contemporânea, com mulheres que romperam com muitos

valores convencionais e preconceitos do passado, continua-se a visualizar certa

prevalência de valores profundamente retrógrados e enraizados.

Na perspectiva da lógica liberadora do individualismo contemporâneo,

como entender que a predominância estética da mulher (foco no corpo) continue

a afirmar-se enquanto as reivindicações igualitárias não cessam de ganhar

terreno? Para Lipovetsky (2000, p. 195) “é impossível, naturalmente, separar a

perenidade da preeminência feminina da beleza do peso de um passado milenar,

da força dos papéis de sexo que mergulham suas raízes na longuíssima duração

39

histórica.” Ou seja, a mulher divide-se entre o desejo legítimo de autonomia e de

realização pessoal e o de agradar a si mesma e aos outros numa constante

vigilância narcísica do corpo. Ainda para o autor a otimização da aparência, todos

os nossos valores tecnoprometeicos, individualistas e consumistas levam a querer

o que há de melhor para si e a recusar a fatalidade dos desfavores físicos e os

estigmas da idade “(...) aconteceu que um homem, atraído pela juventude de sua

silhueta, seguiu-a na rua; no momento em que passou por ela e viu seu rosto, ao

invés de abordá-la, apressou o passo.” (BEAUVOIR, 1970, p. 354)

A apreensão do caráter histórico da condição feminina e de sua identidade

social, tanto através do teórico quanto do empírico, se faz imprescindível para que

possamos desvendar as implicações dessa imposição à subjetividade feminina e

o sentido de vida estabelecido como padrão, bem como, as mudanças

ocasionadas pelo pluralismo da modernidade que, certamente, possibilitaram

transformações; E com isso, a possibilidade de se reverter o antigo paradigma

“dado como suposto” e que norteou a vida das mulheres ao longo da história.

Não se pode negar que o “alargamento dos horizontes culturais da mulher

urbana, a limitação da natalidade, o recurso crescente ao processo legal da

separação conjugal constituem dados reveladores de que a posição social da

mulher vem sofrendo uma redefinição constante.” (SAFFIOTI, 1976, p.180).

Porém, as liberdades cívicas permanecem abstratas e insuficientes se não forem

acompanhadas da autonomia econômica. As conquistas pelas mulheres do direito

ao voto e ao trabalho assalariado, por exemplo, são insuficientes para se

constituir em autonomia. A mulher sustentada por anos a fio, não se libertou por

ter nas mãos uma cédula de voto; E a simples justaposição dos direitos

adquiridos a um ofício não lhe garantiu a perfeita libertação. A partir da

incorporação e da articulação da categoria de gênero é que se dá um impulso

importante ao processo de questionamento da identidade da mulher fixada no

sexo; elementos como raça, idade, religião, classe, nacionalidade, ocupação,

dentre outros, formam um novo corolário para se pensar a mulher como um ser

multifacetado, um ser político.

Nos dias atuais, a luta pela emancipação da mulher continua. Ao dizer ‘não’

à resignação a mulher se coloca numa posição de independência até então pouco

conhecida no mundo controlado pelos homens e isso pode trazer dificuldades

40

ainda maiores. De qualquer modo, o fato é que os homens começam a

conformar-se com a nova condição feminina.

41

Capítulo 3 De oprimida a empoderada

(...) que a nossa mente... quando seguir seus sentidos e se estender por meio deles através das coisas exteriores, seja dona destas e de si própria. Desse modo, resultará uma unidade de força e de poder em conformidade com ela própria, e nascerá uma razão segura, sem hesitação ou divergência em seu ponto de vista e compreensão, nem em sua convicção. (SÊNECA, 2012, p. 18).

Observa-se que desde os tempos antigos a questão das virtudes se insere

nas preocupações dos filósofos numa busca constante por uma vida plena de

realizações. Para Sêneca (2012, p. 16-17) “A virtude é algo infatigável... você a

encontrará no templo, no fórum, na cúria, vigiando muralhas. Anda coberta de

poeira, queimada de sol e com as mãos cobertas de calos.” E numa perfeita

oposição aos prazeres, as virtudes abrem mão dos mesmos por não ter deles

necessidade. Os antigos recomendavam seguir a vida melhor e não a mais

agradável, de modo que o prazer se torne um aliado e não o guia da vontade

digna e honesta.

“Aretê” que na Grécia antiga significava a coragem e a força para enfrentar

todas as adversidades da vida, passou a incorporar, por volta do século IV a. C,

outros significados, como “dikaiosyne” (justiça) e “sophrosyne” (temperança),

dando a idéia de perfeita adaptação, excelência, conceito esse ligado à noção de

cumprimento do propósito a que o indivíduo se destina, coincidindo, portanto, com

a realização da própria essência dos seres humanos. Se a virtude é fazer aquilo a

que cada um se destina (Sócrates) o que, no plano objetivo é a realização da

própria essência, no plano subjetivo chama-se “Felicidade”. As virtudes pois

usadas como força pessoal no nosso cotidiano, nos permitem sentir vitalizados e

com maior fluidez naquilo que fazemos.

A busca por desenvolver procedimentos efetivos para o fortalecimento das

virtudes pessoais, interessa, sobremaneira às áreas de estudos psicossociais,

uma vez que nessa perspectiva, as investigações científicas poderão subsidiar

com os seus resultados o bem estar subjetivo, a felicidade, a qualidade de vida, a

superação de adversidades, as emoções positivas, a consciência plena, a

42

sabedoria, o curso de interações entre as pessoas e a sua relação com o mundo

natural.

André Comte Sponville (1999), filósofo contemporâneo francês, no livro:

Pequeno Tratado das grandes virtudes selecionou e analisou 18 virtudes e, dentre

elas destaca-se três: (Temperança, Coragem e Justiça). Destaque também para a

Transcendência, da proposta de Martin Seligman – psicologia positiva - virtudes

essas que se considera como fundamentais para as ‘ações transformadoras’ a

que se faz referência quando se fala da condição feminina e o anseio das

mulheres por uma vida livre de opressão. Essas ações serão denominadas

Transgressão. E, em consonância com Saffioti (1976), entende-se que através da

transgressão é possível conseguir a transformação da sociedade no domínio da

sexualidade e de todos os espaços sociais, geradores de opressão. Mas,

transgredir é um processo, e o momento em que se volta para outra direção

marca um novo segmento das histórias individuais e coletivas. O corpo e sua

moral, por sua vez, percebem esse ato como uma “desorientação” (BONDER,

1998). E, nesse processo, a força das virtudes aparece como essencial.

A Temperança, que, em princípio parece não condizer com a necessidade

de mudar o que está posto, uma vez que é a virtude que protege dos excessos,

tem, quando melhor analisada, características que fazem dela, uma virtude

necessária às mulheres emblemáticas. “A temperança é a moderação pela qual

permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de seus escravos.” Ser

senhor de si é ter independência (autarkéia). E, quando se absorve essa

realidade de si, torna-se possível anular, ou pelo menos não aceitar qualquer

coisa que esteja em dissonância com isso “[...] fazer da virtude escrava do prazer

é coisa de uma alma incapaz de algo maior. Que a virtude seja quem leva o

estandarte. Dos prazeres, devemos fazer uso moderado” (SÊNECA, 2012, p.18).

A Coragem é a virtude mais admirada e estimada de um ponto de vista

psicológico e sociológico. Quando colocada a serviço de outrem, essa virtude

ganha status de moral, pois vai além dos interesses egoístas. “Coragem para

durar e agüentar, coragem para viver e para morrer, coragem para suportar, para

combater, para enfrentar, para resistir, para perseverar.” (SPONVILLE, 1999,

p.60) Eis a virtude necessária para a mulher que deseja e se esforça por manter-

se viva para alçar os vôos da liberdade. A coragem é a própria vida: “[...] numa

43

ânsia de vida eu abria o vôo nas asas impossíveis do sonho. (CORA CORALINA,

1998. p.73-76)

A Justiça é, conforme Platão o que reserva a cada um sua parte, seu lugar,

sua função, preservando assim a harmonia hierarquizada do conjunto. Quando

associada à generosidade, é a consciência da liberdade de si mesmo com

responsabilidade e com a disposição de perseverar no ser, o mais possível, o

melhor possível, para agir e viver.

E, a Transcendência que é a virtude que faz conectar com a amplitude do

universo e provê o ser humano de um sentido para a vida. São atributos dessa

virtude pessoal: a apreciação da beleza e da excelência, a gratidão, o otimismo, o

humor e a espiritualidade. Agir por virtude é o mesmo que viver e conservar-se; é

buscar o que se considera útil para si próprio; “(...) não há nada em que o homem

livre pense menos que na morte, e sua sabedoria não consiste na meditação da

morte mas da vida” (SPINOZA, 2012, p. 343) – Eu acho a vida linda (...) eu

adoooro viver! (ZOÉ, 2014)

A Metamorfose humana, do ponto de vista da transgressão, assume um

caráter que implica numa prática como não “obediência mecânica às regras”; e na

perspectiva do gênero fomenta o debate acerca da consonância entre o discurso

social e sua prática (BOURDIEU, 2012). Transgressão é, pois, a ação humana de

atravessar, exceder, ultrapassar noções que pressupõem a existências de normas

a demarcar limites. E a mulher transgressora é o agente solitário que opera a

superação de si mesma na ruptura com o mundo que a cerca para criar o para –

si, fonte de criação de um mundo próprio.

As mulheres atenienses, inspiradas pelas heroínas trágicas (Ésquilo),

transgrediam, por meio de estratégias produzidas pelo “habitus”, ao modelo

comportamental instituído na democracia ateniense, onde era necessária a

integridade e a preservação do “Oikos”. Também as mulheres adultas do século

passado, as “velhas em idade avançada” da atualidade, valendo-se das virtudes

adquiridas, talvez, em razão do sofrimento causado pela opressão, às vezes

transgridem na sua condição de sexualmente dominadas, desvencilhando-se das

amarras que lhes foram impostas, transformando-se em mulheres emblemáticas:

mulheres à frente do seu tempo, destemidas e indeterminadas. Foi através

dessas características que essas mulheres superaram as mais variadas

44

adversidades existentes ao longo da vida, pois as forças e virtudes do caráter são

capacidades pessoais que, ao serem colocadas nas práticas cotidianas, trazem

vitalidade e fazem aqueles que delas se utilizam, seres profundamente

recompensados pelos resultados obtidos. Elas os empoderam. O ser

emblemático, na verdade é aquele que age no sentido de obter o que se

convencionou chamar de empoderamento.

Emblemático, segundo o dicionário, se define como “fato de grande

significado social e histórico; fato que de tão original na descrição, serve de

exemplo a diversas outras situações.”(EMBLEMÁTICO, 2009). Além de designar

fato, emblemático se refere também a pessoas, situações, lugar, sempre com a

conotação de algo extraordinário. Etimologicamente, a palavra vem de

“Emblema”, aquilo que rotula ou representa um cenário ou que define uma

característica como padrão, modelo. Dos postulados de Sponville (1999); na

definição de Spinoza (2012) de coragem como sendo a “firmeza de alma”

(animositas) e de que toda coragem é feita de vontade formula-se uma definição

de mulheres emblemáticas, como sendo: Aquelas que se destacam por

apresentarem, em suas ações cotidianas, a capacidade de transgredir, gerando

novos lugares e novas formas de ser e estar no mundo, demonstrando coragem

para viver e morrer, para suportar, para enfrentar, para combater, para resistir e

perseverar.

O conceito de empoderamento, por sua vez, surgiu nos anos 1970 com os

movimentos pelos direitos civis, nos Estados Unidos e pode ser definido como “o

mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam

controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam

consciência da sua habilidade e competência para produzir e criar e gerir.”

(COSTA, 2007, p. 7).

O movimento de mulheres, ainda nos anos 1970, começou a utilizar-se do

termo, compreendendo o empoderamento como a alteração radical dos

processos e estruturas que reduzem a posição subordinada das mulheres como

gênero. As mulheres tornar-se-iam empoderadas através da tomada de decisões

coletivas e de mudanças individuais. Segundo Stromquist (1997) o processo de

avanço das mulheres se dá através de 5 níveis de igualdade: Bem estar, acesso

45

aos recursos, conscientização, participação e controle; níveis esses que

promoverão maior igualdade e maior empoderamento.

Em meios aos estudos acerca dessa temática e que não estejam,

necessariamente, relacionados ao feminismo, observa-se vertentes comuns que

consideram que uma perfeita definição de empoderamento deve incluir os

componentes cognitivos, psicológicos, políticos e econômicos, em que:

O Cognitivo: compreensão sobre sua subordinação assim como suas

causas em níveis micro e macro da sociedade. Inclui conhecimentos sobre as

relações e ideologias de gênero, sexualidade, direitos legais, etc.

O Psicológico: sentimentos que podem pôr em prática em nível pessoal e

social para melhorar sua condição; ênfase na crença de que podem ter êxito nos

seus esforços por mudanças.

O Político: habilidade para analisar o meio circundante em termos políticos;

capacidade para organizar e promover mudanças sociais.

O Econômico: supõe independência econômica; esse é o componente

fundamental de apoio ao componente psicológico.

Representando um desafio ao poder patriarcal, que ainda se faz presente

em alguns segmentos da sociedade atual, o empoderamento feminino significa

uma drástica mudança na dominação dos homens sobre as mulheres, a elas

garantindo autonomia no que se refere ao controle de seus corpos, da sua

sexualidade, do seu direito de ir e vir, bem como um “basta” ao abuso físico e a

violação sem castigo e as decisões unilaterais que afetam toda a sociedade.

O empoderamento possibilita a conquista de poder e dignidade a quem

desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e

controlar o seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro. Nos

dizeres de Pereira (2009):

O empoderamento possibilita tanto a aquisição da emancipação individual, quanto à consciência coletiva necessária para a superação da ‘dependência social e dominação política’. Enfim, superação da condição de desempoderamento das populações pobres [...]. (PEREIRA, 2009).

46

Em relação ao envelhecimento feminino, o empoderamento implica no

rompimento com a lógica assistencialista dominante quando a relação passa a ser

de parceria e não hierarquizada. Traz, portanto, à tona uma nova concepção de

poder assumindo formas democráticas; construindo novos mecanismos de

responsabilidades coletivas, de tomada de decisões e responsabilidades

compartidas, no sentido de superar a falta de participação do Estado na vida

social brasileira [um reflexo da política neoliberal] da contemporaneidade,

marcada pela tendência ao individualismo e ao isolacionismo.

Dada a extensão dessa conquista o empoderamento pode ser comparado

à Epifania, descontado, certamente, o seu caráter religioso, “I Just a epiphany”

[pensamento único, indescritível]. O termo vem do grego “epiphanéia” e significa

aparição. No contexto filosófico pode ser entendido como uma sensação profunda

de realização no sentido de compreender a essência das coisas, tudo o que pode

estar no âmago das coisas ou das pessoas, isto é, poder considerar que a partir

de agora sente como solucionado, completado, aquilo que estava tão difícil de

conseguir. O empoderamento feminino traz à tona então, uma nova concepção de

poder, assumindo formas democráticas, construindo novos mecanismos de

responsabilidades individuais e coletivas.

Desse movimento que rompe com o convencional, de forma

individualizada, emerge uma identidade pós-convencional, ou seja, a mulher que

se revolta contra o jugo masculino, não para se igualar a ele e sim, dispondo-se a

assumir novos personagens, novos papéis, nova identidade numa articulação

entre as diferenças. Mulheres detentoras desse perfil, emblemáticas, portanto,

são aquelas que romperam com o convencional (de forma muito particular) numa

ação associada às virtudes como coragem, temperança e justiça, em aspectos da

vida cotidiana carregados de preconceitos, movendo-as não só para o ato

transgressor como também para a capacidade de neutralizar os efeitos, se,

nocivos, desse mesmo ato.

Essa mulher, simples e humilde, deu mais uma vez uma volta na vida. Transformou-se completamente. Hoje aos 89 anos, é uma pessoa alegre, bem humorada, saudável. Mora sozinha, é independente e descobriu o seu maior prazer: dançar. Vai ao clube três vezes por semana e dança por horas a fio, sem cansaço; tem seus amigos que dançam com ela por gosto e não para agradar uma senhora de idade. (FERNANDES, 2008, p. 79)

47

Lypovetsky (2000) em “A terceira mulher Permanência e Revolução do

Feminino” fazendo um percurso histórico desde a Grécia antiga, apresenta em

sua obra a figura da mulher reconhecida para procriar: a Primeira mulher,

perpassando pela mulher enaltecida: a Segunda mulher, para chegar até a mulher

atual que tem governo de si: a Terceira mulher. Evidencia-se, no estudo do autor,

ainda que indiretamente, os movimentos identitários que a mulher vivenciou ao

longo da história.

No período chamado clássico (século V e IV a. C) a “polis” de Atenas

instituiu um modelo de comportamento feminino que deveria ser seguido pelas

mulheres dos cidadãos atenienses, filhas, mães, enfim, as mulheres “bem

nascidas.” Esse modelo, fruto da consolidação da democracia, enumerava um

conjunto de virtudes a serem seguidas pelas mulheres. Era o modelo “Mélissa”

que representava a mulher ideal, que numa curiosa comparação com a abelha

prescrevia uma vida pura e casta, com atividade sexual discreta, hostilidade aos

odores, à sedução e exigia fidelidade conjugal (SILVA, 2011).

A adoção dessa prática segregava a mulher ao papel de reprodutora de

cidadãos, isto é, de herdeiros varões dos chefes de família. Essa lógica de sub-

valorização aparentemente era minimizada pela maternidade, afinal ela era capaz

de gerar a vida. Porém segundo Lypovetsky (2000) essa capacidade ainda

remetia à inferioridade já que a mulher era vista como mera depositária de uma

semente que o homem criou e deixou dentro dela.

Inspiradas pelas heroínas trágicas da literatura da época, as mulheres

atenienses transgrediam, por meio de estratégias produzidas pelo “habitus”, a

este modelo de comportamento feminil, e por isso, eram consideradas como

ardilosas, dissimuladas, dissolutas e perigosas. Dessa mística que lhe foi

atribuída, merece destaque o fato de que isso fez nascer a idéia de que as

mulheres eram detentoras de poderes ocultos, selvagens, místicos e, portanto

irracionais; como a lógica masculina não alcançava essa realidade, instalou-se

um temor, até certo ponto justificável, porque apesar de marginal, o poder das

mulheres no mundo antigo, foi imenso. Assim, o controle e o domínio do poder

feminino se fazia necessário, para a manutenção da ordem social.

48

Dos mitos selvagens ao relato do Gênesis, domina a temática da mulher, potência misteriosa e maléfica. Elemento obscuro e diabólico, ser que se serve de encantos e astúcias, a mulher é associada às potências do mal e do caos, aos atos de magia e de feitiçaria, às forças que agridem a ordem social [...].(LYPOVETSKY, 2000, p. 233).

De Aristófanes a Sêneca, de Plauto aos pregadores cristãos, domina essa

tradição da mulher como um mal necessário a ser confinada nas atividades sem

brilho, ser inferior e sistematicamente desvalorizado e desprezado pelos homens.

Aí se instaura o modelo da primeira mulher.

Na segunda metade da Idade média, o humanismo da Renascença, trouxe

uma nova significação para o feminino, promovendo uma ruptura com as idéias

diabólicas tradicionais acerca da primeira mulher. Fazendo emergir uma nova

significação do feminino.

Nenhuma outra época no passado tanto representou, alçou ao pináculo a beleza feminina, nenhuma outra lhe conferiu tal importância. Os encantos femininos alimentam os debates filosóficos, inspiram os pintores e os poetas; os inflamados hinos à beleza proliferam, ao mesmo tempo que se faz um esforço, com novo vigor, para a definir, normalizar, classificar. (LYPOVETSKY, 2000, p. 117).

Nesse contexto, a sublimação da mulher, o culto da bela amada pelos

homens, a valorização da sua beleza e sensibilidade as fazem ser reconhecidas

como mães, amantes; Louvadas e adoradas, recebem a alcunha de “deusas do

lar”, porém, sem nenhum poder, de fato. O seu mundo continuava a ser o do

privado e o controle masculino as cerceava do poder financeiro e intelectual. Sem

vontade própria ou liberdade, tudo permanecia num patamar de inferioridade. O

sentido da vida dessa segunda mulher de Lypovetsky (2000) era o da “mulher que

sonha, desapossada de si, aos sonhos de posse dos homens.”

A terceira mulher, segundo Lypovetsky (2000) a mulher indeterminada,

rompe, radicalmente, com o modelo dado anteriormente e que determinou o

alcance do comportamento feminino, sempre atrelado e subjugado pelo poder dos

homens. “De agora em diante é um novo modelo que comanda o lugar e o destino

social do feminino. Novo modelo que se caracteriza por sua autonomização em

relação à influência tradicional exercida pelo homem sobre as definições e

significações imaginário-sociais da mulher.”(LYPOVETSKY, 2000, P. 236)

49

Terminada a era dos caminhos “pré-traçados” (casamento, tarefas

subalternas, etc.) eis que surge diante de nós, uma era de imprevisibilidade e de

abertura estrutural para o destino e o sentido da vida para a mulher. Agora, a

desconstrução do ideal da mulher no lar, legitimidade dos estudos e do trabalho

feminino, direito a voto, ao ‘descasamento’, liberdade sexual, controle da

procriação: manifestações do acesso das mulheres à inteira disposição de si em

todas as esferas da existência, ou seja, a autonomia. São esses, os dispositivos

que constroem o modelo da “terceira mulher” dando sentido à sua vida,

imprimindo-lhe uma nova identidade.

Embora instituindo uma ruptura de enorme importância na história das

mulheres, o modelo da terceira mulher de Lypovetsky (2000), ou a mulher

indeterminada ou ainda a mulher emblemática, esse modelo não coincide com o

desaparecimento das desigualdades entre os sexos. Porém, é importante

destacar que os dois gêneros nunca estiveram em uma situação tão similar no

que se refere à edificação do si, pois “o novo não reside no advento de um

universo unissex, mas em uma sociedade ‘aberta’, com normas plurais e

seletivas, acompanhadas de estratégias heterogêneas, com margens de

liberdade e de indeterminação. “Ali onde as determinações eram mecanicistas, há

lugar agora para escolhas e arbitragens individuais” (LYPOVETSKY, 2000,

p.239).

A liberdade de autoconduzir-se que agora se aplica aos dois gêneros,

ainda se constrói com base em normas e papéis sociais diferenciados. Portanto,

não há evidências concretas de que a sociedade esteja destinada a um futuro

desaparecimento dessa separação dos papéis masculinos e feminino. Ou seja, há

um misto de avanço igualitário numa continuidade não igualitária.

Porém, o empoderamento e a transgressão feminina possibilitam a

aquisição da emancipação individual e também da consciência coletiva

necessária para a superação da dependência social e dominação política. Essa

conquista devolve poder e dignidade a quem desejar o estatuto da cidadania, e

principalmente a liberdade para decidir e controlar o seu próprio destino com

responsabilidade e respeito ao outro. Em relação ao envelhecimento, isso implica,

portanto, no rompimento com a lógica assistencial dominante; a relação passa a

ser de parceria e não de hierarquia. “A fonte da juventude chama-se ‘mudança’; e

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quem dá brilho ao olhar é a vida que a gente optou por levar. Olhe-se no espelho

[...]. (LUFT, 2010).

51

Capítulo 4 Mulheres no Brasil

Torna-se a mulher cada vez mais cônscia da própria dignidade humana, não sofre mais ser tratada como um objeto ou um instrumento reivindica direitos e deveres consentâneos com sua dignidade de pessoa, tanto na vida familiar como na vida social”- João XXIII - Pacem in Terris. (apud SAFFIOTI, 1976, p. 94, 99, 102, 104);

Ser mulher, como discutido, é uma construção social, consolidada a partir

das relações interpessoais realizadas no tempo, espaço e contexto social no qual

está inserida. Quando se fala em história, história das mulheres, “não há um fio

condutor capaz de dar inteligibilidade... nenhuma ligação intrínseca entre os

acontecimentos, pois não há uma história única, mas inúmeras histórias

particulares... ao invés da grande narrativa, há uma pluralidade de narrativas não

passíveis de serem apreendidas sob uma única lógica, uma lei única.” (DANTAS,

2004, p. 184).

Neste trabalho, a história a ser desvendada é a das mulheres nascidas no

início do século passado, inseridas numa sociedade patriarcal e submetidas às

normas de conduta criadas em tempos imemoriais. Fortalecidas pela ação

impositiva da igreja católica e, de certa forma, aceita pela sociedade de classes,

essas normas não abriam espaços para se discutir a questão do poder do homem

sobre a mulher; Havia um entendimento tácito de que a solidariedade de classe

era suficiente para quebrar a subordinação. Diante da complexidade do tema e

em função do objetivo do trabalho, a construção do patriarcado em seus aspectos

mais teóricos, não será abordada. Porém, enquanto sistema de valores sobre os

quais se formou a sociedade brasileira, e que estão nas bases dos processos de

significação das mulheres longevas, fez-se indispensável um breve resgate.

Bassit (2004) enfatiza que as mulheres nascidas no Brasil entre os anos

1920 e 1930 revelam uma maturidade construída a partir de valores como a

família de origem, o ideal de casamento e a constituição de suas próprias

famílias, consagradas através do nascimento dos filhos. Barros (2007a, p. 150)

enfatiza: “Para as mulheres que hoje têm mais de 60 anos, a família foi quase

sempre o ponto de referência principal. Poucas têm alguma profissão ou atuam

52

como profissionais, e a velhice é uma continuação desse predomínio doméstico,

privado [...].”

A maneira pela qual se organizou a família patriarcal no Brasil, bem como

as diferenças de grau de liberdade e de posição social conferidas ao homem e à

mulher sedimentou o casamento como a única “carreira” a ser seguida,

conferindo-lhe o papel de esposa e mãe. Quando por qualquer impedimento ou

mesmo atos de rebeldia por parte da mulher, a reclusão em conventos

representava uma medida considerada salutar, quando então, novos papéis,

novas identidades lhes eram conferidas pelo poder masculino. Del Priore (2012)

destaca, em sua obra, a complexidade e a diversidade das experiências e das

realizações vivenciadas pelas mulheres do século passado e o faz “erguendo o

véu que cobre sua intimidade, os comportamentos da vida diária, as formas de

violência [...] os sutis mecanismos de resistência dos quais lançam mão [...]” (DEL

PRIORE, 2012, p. 9)

Para Saffioti (1976), a posição da Igreja Católica em relação à mulher, na

formação da sociedade brasileira, reflete, de um lado, uma doutrina religiosa na

qual ela sempre figurou como ser secundário e suspeito e, de outro, seus

interesses investidos na ordem vigente nas sociedades de classe, mantinham,

embora disfarçadamente, a mulher submissa ao homem. Não há dúvidas de que

as mulheres foram infinitamente mais passivas e entregues ao homem, servis e

humilhadas nos países católicos, portanto para se compreender a vida das

mulheres brasileiras submetidas a essa lógica machista e religiosa, são

necessárias algumas considerações. Um breve debruçar-se sobre as Encíclicas e

documentos papais das décadas de 1930 a 60 atesta que a percepção dos

problemas da mulher reflete bem esse pensamento sobre a condição feminina em

geral, e com reflexos importantes para a sociedade brasileira da época.

A sujeição da mulher é, pois, princípio inatacável e de validade eterna para a Igreja” – Pio XI – Casti Connubii [31-12-1930].

É como mãe e como esposa que ela pode realizar-se na terra, assim como somente como mãe ela salvará sua alma do terrível pecado que pesa sobre seu destino” – Pio XII – discurso à Juventude Feminina da Ação Católica [24-4-1943]

Condena a limitação da natalidade como uma técnica imprópria aos seres racionais. Muito mais racional seria... explorar rigorosamente as potencialidades da natureza no sentido de

53

extrair dela o necessário a sobrevivência de uma população cada vez mais numerosa- João XXIII – Mater et Magistra [15-5-1961]

Essa rápida apresentação de trechos extraídos de Saffioti (1976), não

deixa dúvidas quanto ao posicionamento da igreja católica na questão feminina na

formação da sociedade brasileira. Ressalta-se que apenas nos dizeres de João

XXIII (epígrafe deste capítulo), pode-se observar um posicionamento sem a

ênfase na moral, delineando um pensamento que exige uma ampliação das

atividades racionais do homem, “se não no terreno das relações conjugais, pelo

menos no terreno econômico, podendo este ser, no caso, considerado um meio

para a realização da família cristã” (SAFFIOTI, 1976, p. 103).

O desenvolvimento da sociedade brasileira deu-se, principalmente nas

primeiras formações sociais (Colônia e no Império) de modo a acatar ‘cegamente’

os ditames da Igreja Católica. A presença dos jesuítas, longe de oferecer

possibilidades de subversão ao poder discricionário, ensinou a mulher a

submeter-se à Igreja e ao marido. Saffioti (1976, p. 188) enfatiza que o clero não

só concordava com a amoralidade reinante nas senzalas como também tirava

proveito dessa situação, enquanto à mulher impunha “a filosofia da negação dos

prazeres terrenos em benefício do bem-estar na vida post-mortem.”

Já no século XIX, com o processo de urbanização, a vida da mulher

passou por algumas modificações. Os contatos sociais tornaram-se mais

plausíveis, com as festas nas igrejas, nos teatros e até mesmo, nos “saraus”

caseiros o que fez com que a dinâmica da família patriarcal perdesse parte da sua

rigidez, permitindo à mulher desenvolver certo traquejo social.

Essa interiorização da vida doméstica [...] deu-se ao mesmo tempo em que as casas mais ricas se abriam para uma espécie de apreciação pública por parte de um círculo restrito de familiares, parentes, amigos. As salas de visita e os salões – espaços intermediários entre o lar e a rua – eram abertos de tempos em tempos para a realização de saraus noturnos, jantares e festas. (D’Incão, 2012 p. 227)

Porém, ainda não se cuidava da sua instrução formal. Mesmo o movimento

abolicionista que fomentou os meios letrados, não permitiu à mulher brasileira

uma oportunidade para discutir a sua condição existencial “não ofereceu, assim,

nem mesmo o eco para as manifestações da ideologia liberal que, embora

54

representasse uma forma utópica de consciência, “dessacralizava” várias áreas

da vida social da nação” (SAFFIOTI, 1976, p. 170).

Pensando, então, nas mulheres brasileiras que nasceram na primeira

metade do século XX e viveram sua condição de ‘ser ativo e produtivo’, segundo

os ditames do sistema capitalista com valores assentados na sociedade

patriarcal, (muitas vivas e produtivas no século em andamento), onde a condição

feminina disponibilizava pouquíssimas alternativas às mulheres, o que pensar

sobre identidade-metamorfose-emancipação? Ser esposa e mãe representava a

única oportunidade de uma moça transformar-se em mulher, ter certa autonomia

podendo exercer a sua sexualidade. Caso isso não ocorresse em tempo

desejável (entre 16 e 20 anos) restava a carreira do magistério primário

(denominação da época para os primeiros anos de escolarização) ou viver “de

favor”, como agregada em casa de irmãos, tios ou até mesmo em casas

estranhas, como as únicas alternativas consideradas adequadas para elas. E,

assim, ao interiorizarem aquilo que lhes era atribuído, essa atividade “coisificava-

se” sob a forma de um personagem que passava a existir independentemente da

atividade que a originou (CIAMPA, 1990).

Essas forças operam tão vigorosamente que, para não permanecer solteira, a moça de idade superior àquela considerada ideal para o casamento da mulher chega a romper o padrão de recato que a tradição lhe impõe, assumindo a iniciativa nas conquistas amorosas [...] mesmo consciente de que a vida de casada é penosa, a mulher não desiste de encontrar um marido, que lhe permita adquirir aquela situação definida social e economicamente segura. Se o elemento masculino solteiro rareia, ela lança mão do homem casado, pois uma união livre com este é reputada como condição superior à de celibatária. (SAFFIOTI, 1976, p. 183).

Assim, obedientes aos seus maridos durante toda a vida, as mulheres, as

velhas de hoje, desempenharam exemplarmente, o papel que lhes era prescrito: o

de esposa e mãe. Aprisionadas aos domínios do lar, elas se dedicaram a cuidar

da casa, do marido e dos filhos; renunciando aos seus sonhos e sofrendo suas

dores: este sempre foi o seu emprego.

A partir da segunda metade do século XIX mudanças sensíveis foram

acontecendo no cenário da família brasileira e com a industrialização

impulsionada a partir dos anos 1930, a sociedade patriarcal passou por

55

transformações que alteraram, de modo significativo, a organização da família, e

consequentemente promoveram mudanças também, no mundo da mulher; não

porque ela tivesse passado a desempenhar funções econômicas, mas em virtude

de se terem alterado profundamente os seus papéis, no mundo econômico. “O

trabalho nas fábricas, lojas, escritórios rompeu o isolamento em que vivia grande

parte das mulheres, alterando, pois, sua postura diante do mundo exterior,

proporcionando-lhes o desenvolvimento de novas formas de identidade”

(SAFFIOTI, 1976, p. 179).

Mesmo diante de transformações importantes e de movimentos da mulher

no sentido de “apoderar-se” da situação que lhe fosse mais conveniente, a

sociedade ainda se mantinha retrógada em relação à educação feminina.

Importante ressaltar as escolas protestantes no sentido de proporcionar educação

formal à mulher brasileira. A afinidade mantida pelo protestantismo com o espírito

científico derivava da austeridade de seus procedimentos mentais e de sua

tendência à analise; e isso conferia ao movimento protestante o direito de

coexistência com as ideias republicanas e lhe permitia um florescimento no novo

regime. O princípio da laicidade do ensino que a constituição da República

consagrou, libertou a instrução oficial das amarras da igreja católica, e essa

característica será observada também no século XX, principalmente na primeira

metade, quando proliferam pelo país as escolas protestantes, os internatos e os

pensionatos para estudantes e professores.

Vale lembrar que essa desigualdade marcante entre os sexos e o poder do

homem sobre a mulher, exaustivamente discutida nas teorias e perspectivas

feministas, certamente promoveram importantes diferenças quanto ao acesso das

mulheres aos bens materiais e aos cuidados com a saúde, a educação e o

trabalho. E isso, pode significar a diferença entre viver a velhice em idade

avançada com sofrimento ou com bem-estar e qualidade de vida.

O enfoque das Ciências críticas ao incorporar um interesse emancipatório

tem como referência a busca pela reflexão e com a constante preocupação em

revelar e tentar reverter formas de dominação e exploração. E o trabalho tem sido

referenciado por inúmeros estudiosos como o elemento essencial para o

estabelecimento da igualdade entre o homem e a mulher. “Só o trabalho pode

assegurar-lhe uma liberdade concreta” afirma Beauvoir (1967, p.449). Como

56

personagem que produz, a mulher deixa de ser dependente do homem

promovendo um “desmoronamento” do modelo de vida centrado nos interesses

masculinos. Desse modo ela afirma-se concretamente enquanto sujeito e tem a

oportunidade de projetar a sua própria vida.

Almeida (2005) afirma que a luta pela emancipação implica na negação do

controle do mundo da vida pelo sistema econômico (mercado) e pelo poder

burocrático (Estado; Instituições) controle este realizado em nome de uma

racionalidade instrumental e preocupado tanto com a funcionalidade destas

esferas quanto com a preservação de suas normas e valores. A identidade seja

individual ou coletiva, é sempre a busca de emancipação que nos humanize; é,

pois, a história da nossa metamorfose, afirma Ciampa (1987). Porém, a

emancipação que dá um sentido ético à metamorfose pode ser impedida ou

prejudicada tanto pela violência quanto pela coerção numa inversão da

metamorfose em desumanização; metamorfose essa, em última análise

provocada de modo heterônomo, por um poder interiorizado subjetivamente e –

ou apenas – exteriorizado objetivamente.

Para Habermas (1990), o papel profissional é o mais importante veículo do

esboço de uma carreira biográfica criadora de unidade. Porém, acredita-se que

essa condição de trabalhadora e produtora de bens, não seja suficiente para a

autonomia e emancipação feminina. Mesmo inclusa no mundo do trabalho, numa

aparente igualdade com o homem, a mulher não se vê destituída do mundo

feminino do lar - seu espaço tradicional. A dupla jornada de trabalho acarreta uma

sobrecarga considerável, bem como exige novos arranjos familiares para a

manutenção da ordem e a educação dos filhos. Poucas recebem, da sociedade e

do marido, a ajuda necessária para elevá-las a um plano de igualdade com os

homens. Ou seja, é importante à mulher, sob qualquer perspectiva, o papel

definido em tempos imemoriais, o de “rainha do lar.”

A história evidencia que esse engajamento no trabalho, consolidou-se há

apenas um século. Com a instauração da Revolução industrial e mais tarde com a

Primeira Guerra Mundial, as mulheres foram admitidas para substituir a mão de

obra masculina, sendo posteriormente reconduzidas ao lugar que a tradição lhes

reservara: o lar. Porém agora, detentoras de novos saberes e tendo

57

experimentado certa autonomia financeira, a volta ao velho papel feminino

começou a incomodar.

Paulatinamente, e com o surgimento do movimento feminista, as mulheres

foram ganhando espaço e ingressaram realmente no mundo do trabalho, tanto

nas organizações quanto nos meios acadêmicos e essa condição lhes favoreceu

o encaminhamento capaz de assegurar a independência financeira, como o

primeiro e decisivo passo para uma verdadeira autonomia. As mulheres

corajosamente romperam com inúmeras formas de opressão e “invadiram as

universidades, criticaram a ciência, inventaram novas teorias e campos de estudo,

invadiram o mercado de trabalho, criaram leis para se protegerem contra a

violência e passaram a ocupar altos cargos políticos” (BONETTI, 2012, p. 41).

O movimento feminista longe de ser caracterizado como pouco efetivo, não

teve, infelizmente, alcance universal. E, em boa parte do mundo e mesmo nas

imediações dos “nossos quintais” são cometidos atos de violência contra a

mulher, com o propósito de se perpetuar o controle masculino sobre a

sexualidade feminina “(...) pede-se à mulher, para que realize sua feminilidade,

que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie as suas reivindicações de sujeito

soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a situação da mulher

libertada” (BEAUVOIR, 1867, p. 452)

Há, porém, segundo a autora uma categoria de mulheres que se

beneficiam da feminilidade que, longe de as prejudicar as favorece e fortalece.

São aquelas, que procuram superar, pela expressão artística, o próprio dado que

constituem: as atrizes, as dançarinas, as cantoras. À custa de muita luta e

discriminações, foram elas, as únicas que tiveram uma independência concreta

no seio da sociedade e que, ainda hoje, ocupam um lugar privilegiado. O

exercício da arte parece representar uma possibilidade concreta de expressão do

sujeito, e a história das brasileiras apresenta símbolos expressivos de mulheres

que conseguiram impor-se pela sua arte.

Também as mulheres instruídas, ambiciosas e dotadas de virtudes, tais

como: coragem determinação, dentre outras, romperam com o convencional e

provaram sua competência para ocupações tradicionalmente tidas como

masculinas. A virtude, já dizia Aristóteles é uma maneira de ser, mas adquirida e

duradoura. E segundo Sponville (1999, p. 9) “a virtude ocorre, assim, no

58

cruzamento da hominização (como fato biológico) e da humanização (como

exigência cultural); é, pois, nossa maneira de ser e de agir humanamente”

Diante dessas considerações, é mister reconhecer que ser um ser humano

é infinitamente mais importante do que todas as singularidades que distinguem os

seres humanos; não é nunca o dado que confere superioridades: a “virtude”,

como diziam os antigos, define-se ao nível do “que depende de nós” (BEAUVOIR,

1967, p. 495). A virtude é pois uma força que age, ou que pode agir, uma força

que vem de dentro, portanto, virtude é poder, mas poder específico. A virtude de

um ser é o que constitui seu valor. Definida como sendo a própria essência do ser

humano para o seu ‘fazer’, como já se comentou, a virtude coloca-se como

condição para o empoderamento feminino e o rompimento com o convencional.

A realidade atual dos idosos no Brasil já permite pensar a velhice em

“idade avançada” de um ponto de vista mais plural e menos segregacionista.

Estamos mais abertos para reconhecer outras vias para a realização humana,

numa crítica mais madura do ‘homem unidimensional’ que fez do trabalho para

sobreviver seu único objetivo de vida – identidade funcional. Essa perspectiva, em

andamento, propicia a criação de novos espaços de expressão a serem

desfrutados, com a estruturação de novas identidades e novo sentido para a vida.

59

SEGUNDA PARTE

O ENVELHECIMENTO: ENFASE NA MULHER

60

Capítulo 1 Diversas visões sobre mulheres velhas

Uma questão se impõe imediatamente. A velhice não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo. Em que consiste esse processo? Em outras palavras, o que é envelhecer? (BEAUVOIR, 1970, p. 17)

Conceituar a velhice constitui um trabalho árduo. Há quem afirme que “o

conceito de velhice envelheceu” e que as denominações contidas nos dicionários

já não são suficientes para se definir um velho, uma velha. Trata-se, portanto, de

um conceito genérico que inclui pessoas com 60 anos ou mais e que passou a

existir a partir do século XVIII, com o desenvolvimento da ciência. A Organização

Mundial de Saúde (OMS) reconhece atualmente, não só o idoso, como também

criou uma nova terminologia, “muito idoso” ou “very old”, para designar o indivíduo

que chega aos 80 anos ou mais.

[...] Venho do século passado Pertenço a uma geração Ponte, entre a libertação dos escravos e o trabalhador livre Entre a Monarquia caída e a República que se instalava [...] (CORA CORALINA, 1998, p.73-76)

Estudiosos da questão são unânimes em afirmar que a idade cronológica

por si só não explica satisfatoriamente o processo e a vivência do

envelhecimento, mesmo porque é difícil determinar quando uma pessoa começa

a envelhecer. Segundo Pereira (2005) categorias de idade são construções

sociais que atendem a necessidades específicas de contextos sociais distintos,

funcionando como verdadeiros mecanismos de distribuição de poder ou de

prestígio. De acordo com Neri (2001), os estágios de desenvolvimento são de

origem sociogenética e não ontogenética. A sociedade constrói cursos de vida na

medida em que prescreve expectativas e normas de comportamentos apropriados

para as diferentes faixas etárias, com base em eventos marcadores de natureza

biológica e social, e na medida em que essas normas são internalizadas pelas

pessoas e instituições sociais.

61

Numa busca pela compreensão mais profunda sobre a questão, diferentes

autores trazem os conceitos de idade psicológica e social que estão inter-

relacionadas e focadas, em diferentes e complementares aspectos da vida. Para

Pereira (2005), a ‘idade psicológica’ seria a forma como cada indivíduo avalia, em

si mesmo, a presença ou não de marcadores biológicos, sociais e psicológicos

considerados “adequados” para a idade na qual se situa, com base em

mecanismos de comparação social mediados por essas normas etárias. Já o

conceito de ‘idade social’ pode ser entendido como o grau de adequação de um

indivíduo aos papéis e comportamentos que a sociedade espera que sejam

desenvolvidos por pessoas de determinadas faixas etárias, nas respectivas fases

da vida.

A isso atrela-se o conceito de ‘envelhecimento social’ que estaria vinculado

ao processo de mudanças que ocorre nos papéis sociais e nos comportamentos

dos indivíduos com o avançar da idade. Ressalta-se que a idade e o

envelhecimento social são influenciados, preponderantemente, por fatores

culturais e do contexto histórico-social em que o indivíduo está inserido. No caso

feminino, a ‘idade social’ (menarca, tempo para casar, ter filhos, término do

período fértil) e outros indicadores quando somados à idade cronológica, podem

resultar em determinantes das profundas diferenças entre as mulheres velhas.

A contemporaneidade está por exigir novas perspectivas que, por sua vez,

exigem mudanças no sentido de se obter outra compreensão sobre o

envelhecimento humano. São, portanto, mudanças paradigmáticas que não

ocorrem no vácuo, mas, que representam respostas efetivas aos fenômenos

sociais e culturais, ao espírito da época e até mesmo às motivações pessoais dos

cientistas vinculados a determinadas áreas do saber.

É para processo de descronolização que se voltam as pesquisas interessadas na identificação das rupturas com a modernidade que caracterizam a experiência contemporânea. Trata-se de perguntar se a idéia de papéis seqüenciada, extremamente divididos por idades, captaria a realidade social de uma sociedade que atinge o nível de desenvolvimento tecnológico da sociedade contemporânea (DEBERT, 1999, p. 74)

No século passado, considerar que a vida poderia estender-se para além

dos 100 anos e que esse espaçamento de vida poderia representar um

alargamento também da saúde física e psicológica, seria uma consideração

62

“visionária.” Porém, o extraordinário fenômeno da longevidade está visivelmente

presente nos dias atuais e essa visibilidade traz desafios para a sociedade como

um todo e convertem a temática do envelhecimento em uma das urgências

predominantes para o século em andamento. Diante disso, podemos afirmar que

aqueles que nasceram nas primeiras décadas do século passado, estão hoje

cruzando o limiar da velhice e, certamente exigirão mudanças profundas em

relação aos papéis que lhes foram outorgados pelos pais e pela sociedade.

Debert (1999a) enfatiza a existência de duas correntes de concepção sobre

a velhice para se buscar, teoricamente, explicações suficientemente claras sobre

esse processo. Uma delas encara a velhice como algo doloroso, feio e sofrido,

sem perspectivas, já que o processo é meramente biológico. A outra considera o

ser que envelhece como “um modelo” para a sua própria negação, ou seja,

adiando-o por meio de produtos de consumo e de um estilo de vida que não

considera o “curso de vida.” Simone de Beauvoir (1970, p. 15) afirma que em se

tratando da velhice essa denominação não representa uma realidade bem

definida

Na verdade quando se trata de nossa espécie, não é fácil circunscrevê-la. Ela é um fenômeno biológico [...] e acarreta ainda, conseqüências psicológicas [...] como todas as situações humanas, ela tem uma dimensão existencial: modifica a relação do indivíduo com o tempo e, portanto, sua relação com o mundo e com sua própria história.

Em sua obra: A pessoa idosa não existe, Messy (1993) faz uma

provocação com o título que, na verdade remete ao postulado psicanalítico de

que a idade em si não tem relevância para a abordagem, pois “os processos do

sistema inconsciente estão fora do tempo, a relação temporal é do âmbito do

sistema consciente [...] na circulação da libido não há jovem nem velho, o desejo

não tem idade” (MESSY, 1993, p. 10). Essas considerações permeiam o universo

do empírico das pessoas longevas, que não se consideram “velhas” e podem ser

entendidas como “solicitações” de estudos científicos que as corroborem e que

orientem novos saberes sobre a velhice em idade avançada.

Almeida (2005) entende a velhice como categoria social emblemática,

marcada por estigmas e pela ausência de reconhecimento; em assim sendo, “a

voz dos próprios velhos soa, muitas vezes, como eco às formulações que

63

postulam a inviabilidade de os idosos formularem e desenvolverem projetos de

vida.” (ALMEIDA, 2005, p. 104). Diante dessa heterogeneidade em relação ao

envelhecimento, torna-se imprescindível, traçar um caminho histórico objetivando

recuperar esses entendimentos a fim de não se cair no erro das generalizações,

eufemismos ou fatalismos em relação ao envelhecimento, de forma geral, e em

particular, ao envelhecimento feminino. É necessário então “desnaturalizar o

fenômeno da velhice e considerá-lo como uma categoria social e culturalmente

construída” (MINAYO; COIMBRA JUNIOR, 2002, p. 12)

Até o início do século XIX, nas sociedades pré-industriais, não havia uma

separação clara de idades, tampouco especializações funcionais para cada idade.

Para Hareven (1995) a diversidade de idades entre as crianças de uma mesma

família, a ausência da regulamentação de um tempo específico para o trabalho e

a coabitação de famílias extensas são apenas alguns dos fatores que, em

conjunto, não favoreciam a fragmentação do curso de vida em etapas

determinadas. Em seus estudos sobre a infância Ariés (1981) demonstra como

essa categoria surgiu a partir do século XIII e como tal possibilitou o alargamento

da distância que separa as crianças dos adultos. Também na França surgiu a

noção de ‘juventude’, como uma etapa da vida para demarcar o momento

oportuno para o casamento como uma estratégia familiar para preservar ou

mesmo ‘alargar’ o patrimônio; e isso tinha uma importância maior do que a

questão da idade biológica (DEBERT, 2003). A partir de então, noção de velhice

surgiu na transição dos séculos XIX e XX.

Em 1970, Simone de Beauvoir lançou um importante ensaio sobre as

condições de vida dos velhos, abordando profundamente os aspectos extrínsecos

e intrínsecos da velhice, fazendo uma análise de como as ciências nas suas

especialidades tratavam a velhice: medicina, geriatria, antropologia, psicologia e

sociologia, numa proposta de discussão de caráter interdisciplinar. Interessante

observar que em 1967, a autora se debruçara sobre a questão feminina - O

segundo sexo - trazendo a implicada questão: “ninguém nasce mulher, torna-se

mulher”, como um preâmbulo, talvez, para a elaboração do livro - A velhice - que

indiscutivelmente, traz nuances da sua personalidade e perspectiva sobre o seu

próprio envelhecimento “Admitir que eu estava no limiar da velhice era dizer que

64

esta espreitava todas a mulheres e que já se apoderara de muitas delas”

(BEAUVOIR, 1970, p. 8).

A importância maior da obra de Beauvoir está no seu objetivo mesmo de

alertar para a forma perversa com que a sociedade tratava os velhos, abrigada

por trás dos mitos de expansão e da abundância “[...] Aí está justamente porque

escrevo este livro; para quebrar a conspiração do silêncio” (BEAUVOIR, 1970, p.

8). Com isso, pela grande repercussão da sua obra, em todo mundo, a autora

levantou questões e possíveis soluções para os problemas dos velhos.

Felizmente, o antigo preconceito que costumava entender a velhice como

doença e um peso social e familiar, vem cedendo lugar, a partir de então, a uma

construção social que a compreende como uma etapa da vida, com

características próprias, um processo complexo e multifacetado. Conforme Doll

(2006) a velhice representa uma fase que pode ser muito longa – dos 60 até 100

anos ou mais. Então, todas as “verdades” sobre a velhice também podem ser

“não verdades” e vice-versa. Talvez a maior “não verdade” seja exatamente a

existência de uma velhice com características bem definidas. Na verdade, existem

muitas velhices. Observa-se, então que não há uma homogeneidade conceitual

para o envelhecimento e a vivência da velhice. Também a forma de se ver e tratar

os velhos não tem sido unânime. Para Groisman (1999) a homogeneidade nunca

foi uma característica da velhice “[...] os velhos sempre foram ricos e pobres,

venerados ou denegridos e tratados tanto de forma dura quanto generosa pelas

famílias e comunidades, não havendo necessariamente um padrão para isso.”

(GROISMAN, 1999, p. 47).

Os muitos questionamentos sobre a verdade científica levaram, através

das discussões pós-modernas, ao surgimento de outro conceito que vem

ganhando bastante força e que nos parece fundamental para o estudo de

mulheres longevas: o discurso. Mario Porta (2007) afirma existir três tipos de

problemas quando se trata de apreender o “ser” do ponto de vista filosófico. Num

primeiro momento ele é entendido como ontológico; num segundo momento, com

a criação do ser “absoluto” [Teologia] a esfera das resoluções humanas ganhou o

espaço da transcendência; e por fim, com a criação de “discursos” essas

questões transitam pelas zonas dos sentidos e significados.

65

Mesmo tendo avanços consideráveis na forma de se entender a velhice, a

idéia da sua redução à categoria de doença é ainda predominante no imaginário

da cultura contemporânea [discurso médico]. As formulações textuais em livros e

artigos científicos são construídas para relatar os acontecimentos e os

conhecimentos acerca do mundo e da humanidade, ou seja, um registro da

“realidade” e, não se pode negar a sua capacidade de exercer persuasão,

sedimentando crenças e valores, determinando assim as atitudes, sustentado

tudo ‘no’ e ‘pelo discurso’. Cabe questionar sobre a veracidade dos discursos, nos

efeitos que produzem e ainda, quais são os interesses que subjazem aos

mesmos [políticos, econômicos, etc.]. Se, conforme Doll (2006), “existem muitas

velhices” podemos dizer que o discurso que realmente deve contar é o do próprio

ser que envelhece. Como ele vê o seu processo de envelhecimento e até que

ponto essa vivência se aproxima ou se distancia dos diferentes discursos, pois:

Se a focalizá-los existem vários tipos de lentes, as fotografias das câmeras curiosas costumam não ir além de luzes, sombras e cores que as aparências revelam [...] e como os que observam são parte da perspectiva que adotam, o que fica das imagens são as contundências dos sinais de desgaste dos corpos, os vincos nas faces, a voz mais cadenciada, o andar mais vagaroso ou trôpego, a queda inexorável dos músculos e a fragilidade dos movimentos [...]. É o veredicto que assinala a velhice como problema e como doença (MINAYO; COIMBRA JUNIOR, 2002, p. 12).

A tendência teórico-metodológica predominante na abordagem que vê o

envelhecimento numa estreita relação com os processos de doença e morte,

dificulta o desenvolvimento de outras que procuram analisar, de maneira

diferenciada, o envelhecimento e sua associação com a saúde e a qualidade de

vida. A ênfase nas perdas e limitações advindas com o avanço da idade nos

permite questionar se não seria essa perspectiva um exemplo de “colonização” do

desenvolvimento humano, ou seja, um retrocesso quanto ao entendimento da

identidade que, se “cristalizaria” na condição de velho?

Debert (1994) e Neri (1995) afirmam que não há um processo único de

envelhecimento e, que na verdade, envelhecer é uma ‘invenção cultural’ e,

portanto, precisa ser devidamente identificada em suas peculiaridades. Sendo

uma construção social, corre-se o risco de, ao se “inventar” a velhice como um

problema, um peso que pode se agravar “(...) em prol das dificuldades da

66

seguridade social, mercado de trabalho, dispositivos de lazer, atendimento

médico-hospitalar e outros que se mostram ineficientes para atender o

contingente de pessoas acima de 60 anos no Brasil” (STANO, 2001, p. 14). Desse

modo, focando essas questões na população de velhos como sendo a

responsável pelos entraves que se evidenciam nesses segmentos, distancia-se

dos verdadeiros problemas que atingem os cidadãos brasileiros

independentemente de sua faixa etária, ficando a indagação: Como a sociedade

atual, baseada em pressupostos como a liberdade e a autonomia, dará conta de

atender às expectativas de seus cidadãos longevos, saudáveis ou não?

Nesse sentido, Beauvoir (1970) alerta para o fato de que, em política, o

indivíduo conserva durante toda a sua vida os mesmos direitos e os mesmos

deveres. Não se faz diferença, juridicamente falando, entre um centenário e um

quadragenário. Ou seja:

a responsabilidade penal dos idosos é tão integral quanto a dos jovens [...] entretanto, quando se decide sobre seu estatuto econômico, parece que se considera pertencerem a uma espécie estranha: os velhos não têm, nem as mesmas necessidades nem os mesmos sentimentos que os outros homens [...]. (BEAUVOIR, 1970, p. 9).

Se, no século passado os estudos da ciência psicológica estavam voltados

mais para as crianças devido à baixa expectativa de vida, hoje a interação entre

os saberes gerando competência interdisciplinar, são requisitos mínimos para se

produzir conhecimentos que reflitam as características e as peculiaridades da

condição de pessoa longeva trazendo respostas satisfatórias ao processo de

envelhecimento de todos. São fundamentais as lembranças sobre o passado e as

considerações sobre o presente do ponto de vista de quem viveu muito. E mais

do que perceber, na falência do corpo e nos lapsos da mente, o preço cobrado

pelo tempo vivido, o ser que envelheceu tem, por isso mesmo, a credibilidade

necessária para refletir e “fazer refletir” sobre o sentido da velhice na atualidade.

No capitalismo contemporâneo, onde quase tudo que é produzido é para

ser vendido e consumido, o conhecimento científico precisa estar atento para não

transformar-se também em um valor de troca e eficiência atrelado ao sistema.

Indagações constantes e estudos profundos devem balizar os rumos da produção

de conhecimento que defendam a liberdade dos cidadãos, sua autonomia e a sua

possibilidade, cada vez mais concreta, de uma vida longeva, que, para ser boa e

67

produtiva precisa ser compreendida e amparada pelo Estado, através de

mecanismos competentes.

Simões (1994) desenvolveu um estudo com o objetivo de reconstruir a

história do movimento dos aposentados brasileiros e constatou que nas décadas

de 1980/90 essa categoria inaugurou um espaço próprio de ação, de cidadania e

de inclusão. Com suas ações, eles modificaram o cenário da organização social e

se estabeleceram como um grupo de interlocução política, transformando-se com

suas próprias reivindicações em atores sociais e políticos. Segundo Almeida

(2005, p. 134) ações com essas características

(...) são respostas aos distúrbios de identidade causados pela colonização e, nos termos de Habermas a intrusões sistêmicas e lutam pela substituição de contextos normativos pressupostos estabelecidos (...) e dão origem a proposições e a processos de recuperação de identidades distintas (...).

De acordo com a constituição brasileira de 1988, é responsabilidade da

família, da sociedade e do Estado assegurar aos velhos a participação na

comunidade, defender a sua dignidade e proporcionar o seu bem estar,

garantindo o seu direito à vida (artigo 230). Importa, então, para que os velhos

sejam autônomos, independentes e mais felizes, reconhecer que agora a vida

humana não se restringe somente aos cuidados básicos, pois conforme Doll

(2006) nós temos que dar um sentido à nossa vida. E, para tanto, atentar para a

interioridade dessas pessoas na tentativa de ouvir os seus anseios de como viver

melhor essa fase da vida, torna-se imprescindível.

A implantação das “Universités Du T’roisième Âge” nos anos 1970,

estimulou estudos sobre o envelhecimento numa perspectiva chamada ‘terceira

Idade’ que impulsionou o aparecimento de novas vertentes para a questão,

promovendo um distanciamento da perspectiva geriátrica [modelo médico]. Essa

nova vertente fez com que vários estudiosos, acompanhando a tomada de

consciência sobre o fenômeno do envelhecimento populacional, passassem a

construir uma tipologia das teorias sobre o envelhecimento humano,

classificando-as segundo o nível de analise, a época em que surgiram e as

influências exercidas Siqueira (2001).

68

Este trabalho explora, conceitual e estruturalmente, quatro teorias: 1.

Perspectiva do Curso de Vida; 2. Teoria do Construcionismo Social; 3. Teorias

Feministas e 4. Teoria Crítica, cujos postulados de análise em um plano micro,

micro/macro e macrossocial, examinam as estruturas sociais e sua influência

sobre as experiências do envelhecimento, ao mesmo tempo em que analisam, na

trajetória de vida, o indivíduo e as suas interações sociais.

1. Perspectiva do curso de vida

As origens conceituais e estruturais dessa perspectiva remontam o século XIX,

com o trabalho do economista social Rowtree cujo objetivo foi o de investigar a

pobreza e estágios de vida na estrutura familiar. Seus postulados repousam na

sociologia e na psicologia e tem como característica permitir a análise de

processos nos níveis micro e macrossociais de indivíduos e de populações ao

longo da vida.

Segundo Siqueira (2001, p. 96) as proposições fundamentais da

perspectiva do Curso de Vida, são:

. O envelhecimento é analisado do nascimento para a morte, o que o distingue das perspectivas que focalizam exclusivamente a velhice;

. o envelhecimento é considerado um processo social, psicológico e biológico;

. as experiências do envelhecimento são moldadas por fatores ‘coorte-históricos’.

Ainda segundo a autora, essas proposições são essenciais para a análise

de questões dinâmicas, contextuais e processuais do envelhecimento; as

mudanças relacionadas à idade e às trajetórias de vida; o envelhecimento

moldado pelo contexto, pela estrutura social e pelos significados culturais.

Os diferentes estudos realizados sob os aportes dessa perspectiva, dentre

eles os de Kohli (1986) e Neugarten e Neugarten (1996) chamam a atenção para

a complexidade, incertezas e ambiguidades do processo de envelhecimento,

contribuindo significativamente para traçar um panorama sobre as contribuições

do modelo do curso de vida para as pesquisas nesse campo de investigação

científica.

69

Segundo Neri (2001) O paradigma do Curso de Vida, também referenciado

como life-cours e life-span promoveu uma ruptura com o paradigma organicista

em psicologia, quando em meados do século XX os cientistas do

desenvolvimento perceberam que as explicações clássicas sobre o

envelhecimento não eram suficientes para dar conta da realidade sobre a velhice

de seus contemporâneos, em sociedades caracterizadas por elevado grau de

desenvolvimento social e de possibilidades crescentes de envelhecer bem.

Os modelos de curso de vida e life-span foram fortemente influenciados

pelos estudos de Erikson (1950) e a caracterização do envelhecimento como

“ciclos de vida”, também conhecida como “As oito idades do Homem.” Os estudos

de Erikson trazem em seu bojo a ideia de fases sucessivas e universais

(diagrama epigenético): infância, adolescência, maturidade e velhice, agrupando

as idades numa sequência linear e progressiva. Os períodos fixados com suas

características próprias criam, portanto, a ideia de uma homogeneização de todas

as sociedades.

As sociedades de modo geral, apresentam agrupamentos etários que são

importantes para os estudos antropológicos, porque as grades etárias, não sendo

as mesmas para todos os contextos sociais, trazem significados específicos que

precisam ser compreendidos em função da realidade em que foram

desenvolvidos. Debert (1999, p. 37) crítica ao conceito de “ciclos da vida”

afirmando que os mesmos estariam “[...] impregnados de uma visão essencialista,

de caráter a-histórico.”

A partir de então, a autora passou a defender o conceito de “curso da vida”

como um processo gradual que considera aspectos históricos, sociais e

individuais para a compreensão dos períodos da vida. Trata-se, pois, de uma

visão mais complexa e elaborada. Em Bassit (2004, p. 218) vamos encontrar

corroboração para essa defesa:

[...] o estudo sobre o curso da vida vem se movimentando de uma tendência que divide o estudo do desenvolvimento humano em estágios descontínuos para um firme reconhecimento de que qualquer ponto do curso da vida precisa ser analisado dinamicamente, como conseqüência das experiências passadas e das expectativas de uma integração entre os limites do contexto social e cultural correspondente.

70

A perspectiva do curso de vida segundo Neri (1995) se sustenta nas

tradições contextualistas e dialética e com isso, abandona as concepções

acumulativas e unidirecionais das teorias de estágios, em favor da aceitação dos

princípios da multidimensionalidade e multidirecionalidade do desenvolvimento e

nos diz:

Ao considerar o desenvolvimento como produto da interação entre eventos normativos (de natureza ontogenética) e não-normativos (de natureza sociogenética), a Teoria do Curso de vida, vê a velhice como uma experiência heterogênea de ganhos e perdas, determinada por fatores em interação durante todo o curso de vida ou life-Span. (NERI, 1995, p. 26)

As principais críticas feitas à teoria, de acordo com Siqueira (2001, p. 99)

são:

. caráter amplo e difuso, que dificulta sua caracterização como

teoria ou como paradigma;

. dificuldade de incorporar as diversas variáveis identificadas em

uma única análise;

. os dados levantados pelos estudos realizados nessa

perspectiva não são capazes de testar os efeitos das variáveis

idade, período e coorte sobre o comportamento de indivíduos e

grupos ao longo do tempo.

As críticas, porém não invalidam essa estrutura teórica que tem se

mostrado válida para estudos mais aprofundados, bem como pertinente na

integração de seus postulados com a perspectiva do construcionismo social, na

análise do envelhecimento e da vivência da velhice.

2. Teoria do Construcionismo Social

A teoria do construcionismo social, está fundamentada no

interacionalismo simbólico, na fenomenologia e na etnometodologia. Segundo

Siqueira (2001) essa teoria recebe influência de outras perspectivas, em especial

da teoria crítica e da feminista e postula que os indivíduos participam ativamente

da criação e da manutenção de significados para suas vidas, num movimento

71

dialético: o comportamento individual é produto e produtor dos contextos sociais

em que estão inseridos. É uma teoria que vem sendo muito utilizada nas

pesquisas no campo do envelhecimento e reflete uma longa tradição de analise

microssocial, focando o comportamento do indivíduo nos contextos sociais.

São propostas da teoria:

. a ênfase na explanação e na compreensão dos processos individuais de envelhecimento como sendo processos influenciados pela estrutura social;

. estudar as características situacionais, constitutivas e emergentes do envelhecimento, examinando como os significados sociais e autoconceitos emergem na negociação e no discurso;

. estudar o processo de envelhecimento considerando as mudanças sociais e históricas que interferem nas diferentes formas de vida, analisando as alterações nos papéis sociais advindas dessas mudanças. (SIQUEIRA, 2001).

Exemplos de aplicação das proposições da teoria do Construcionismo

Social podem ser encontrados nos trabalhos de Gubrium (1993) e Kaufman

(1994). E quanto às principais contribuições para o estudo do envelhecimento

Siqueira (2001) coloca:

. reconhecimento do processo dialético dos indivíduos na criação e manutenção de significados para suas vidas diárias;

. a adequação da teoria ao cenário multidisciplinar da gerontologia, possibilitando pesquisas de ampla gama de questões;

. a influência positiva da teoria na área do envelhecimento a outras perspectivas, em especial às teorias feministas e à teoria crítica.

No que concerne às críticas, o nível de análise individual não dá a devida

importância aos fatores macrossociais tais como: contexto histórico, coorte e

estratificação por idade. E ao minimizar a atenção à estrutura social, a teoria do

construcionismo social deixa de lado a questão do poder.

72

3. Teoria critica

Esse enfoque teórico conforme Bengston, Burgess e Parrot (1977) baseia-

se na tradição européia, representada pela Escola de Frankfurt e por pensadores

como Horkheimer, Adorno, Habermas, Husserl e Schultz, sendo ainda

influenciada pela abordagem político-econômica de Marx e pelo pós-

estruturalismo de Foucaut.

Nessa perspectiva, os conceitos poder, ação social e significados,

fornecem a base para a investigação gerontológica. Conceitos esses que

articulam os seguintes aspectos: a subjetividade e a dimensão interpretativa do

envelhecimento; a práxis, entendida como ações de envolvimento em mudanças

(como as políticas públicas); a união entre acadêmicos e profissionais para a

produção de conhecimentos emancipatórios, por intermédio da práxis; crítica ao

conhecimento, à cultura e à economia com vistas à criação de modelos positivos

de envelhecimento, que ressaltem a força e a diversidade do processo. Para

Siqueira (2001) a teoria crítica focaliza duas dimensões: a estrutural e a

humanística e esse foco se reflete nas diversas tendências na gerontologia

contemporânea, tais como a teoria político-econômica e as teorias feministas do

envelhecimento.

Com base na teoria crítica Dannefer (1988) afirma que a heterogeneidade

do processo de envelhecimento é negligenciada pela maioria das teorias que

tratam apenas do desenvolvimento, da socialização e do envelhecimento

normativo, talvez, pelas limitações inerentes à adoção do paradigma positivista

pela gerontologia social.

Coube à medicina moderna a tarefa de explicar, através do processo de

degeneração do corpo, um entendimento gradual de que a velhice deveria ser

entendida como um estado fisiológico específico: a senescência. Esse discurso

médico determinou o reconhecimento do corpo envelhecido, sua identificação

com um corpo em decomposição e o consenso de que, a definição dessas

características é tarefa própria do olhar e do saber médicos. E segundo Almeida

(2005) os fundadores da geriatria retratam o processo de envelhecimento de tal

maneira que a noção de envelhecimento saudável parece ter sido eliminada.

Vendo a senescência de uma perspectiva patológica, eles descreveram esse

estágio inteiro da vida como uma longa e progressiva doença. Esse conceito de

73

velhice atravessou o limiar do século XX, quando o fenômeno do envelhecimento

populacional empurrou a velhice para idades mais avançadas e a questão dos

idosos, vistos como marginalizados e estigmatizados, ganhou visibilidade

acabando por desencadear movimentos, estudos e debates que culminaram com

a criação da chamada “terceira Idade”; um novo estatuto que passou a adotar um

conjunto de práticas, instituições e agentes especializados para o atendimento

das necessidades desse contingente da população.

Segundo Siqueira (1991) Tornstam aprofunda essa questão ao considerar

que a gerontologia social fundamentada no positivismo é que produziu esse

modelo de envelhecimento visto como um problema social e “[...] propõe uma

abordagem gerontológica de cunho humanístico, que permitiria aos próprios

idosos definir as questões mais significativas a serem pesquisadas” (SIQUEIRA,

1991, p. 108).

Apesar do seu alto grau de abstração, uma vez que, está baseada nas

tradições filosóficas européias, o que pode trazer “dificuldades” para o uso de

suas proposições por pesquisadores de outras vertentes teóricas, a teoria crítica

representa um espaço importante para a discussão das principais correntes

teóricas e para a proposição de uma perspectiva humanística para as questões

associadas ao envelhecimento, com alto grau de profundidade e pertinência. Isso

fica evidente na constatação de que além das teorias político-econômicas,

feministas e construcionistas, outras perspectivas se originaram da abordagem da

teoria crítica, dentre elas a teoria da diversidade de Calasant e a gerontologia

humanística de Phillipson (BENGSTON; BURGES; PARROT 1977).

4. Teorias e perspectivas feministas

Estas teorias têm seu foco no nível microssocial e se dispõem a analisar a

rede social, os significados sociais e a identidade no processo de envelhecimento.

Para o estudo da estratificação por gênero da estrutura de poder das instituições

sociais, adotam o nível macrossocial. Essas teorias focalizam também as ligações

entre indivíduos e estrutura social, fazendo uma articulação entre os níveis micro

e macrossociais ao destacarem as relações de poder que influenciam o processo

de envelhecimento.

74

Bergeston, Burgess e Parrot (1997) pontuam a questão de que as

proposições feministas na área do envelhecimento são ainda muito difusas. “Para

eles, não é possível classificá-las como uma tradição teórica única, talvez por

diferirem das principais teorias sociais do envelhecimento, ao relacionarem

gênero e envelhecimento e ao incorporarem a questão da diversidade.”

(SIQUEIRA, 2001, p. 100)

Destacam-se, nessa abordagem, de acordo com Siqueira (2001) os

estudos de Arber e Ginn (1991); Staller (1993) e Calasant (1996); que vão desde

análises polítio-econômicas, argumentando sobre as diferenças no acesso a bens

materiais, recursos e cuidados com a saúde; até os significados do gênero para

compreender a estrutura do trabalho não remunerado no cuidado ao idoso e

chegando até a análise dos conceitos de heterogeneidade e diversidade que

podem exercer forte influência no processo de envelhecimento. Esses autores

enfatizam também, como a diversidade é significativa para compreender as

relações de poder e para aprofundar o nível de pesquisa e teorização na área do

envelhecimento.

As teorias feministas, mesmo com reconhecido apreço pelos analistas em

ciências sociais, recebem, segundo Siqueira (2001), críticas por algumas

fragilidades, tais como:

. São consideradas sectárias, por avaliarem que toda a ciência social é baseada em prévio sistema de valor;

. Ao focalizarem a “feminização do envelhecimento, essas teorias, em grande parte, ignoram as questões de masculinidade e envelhecimento.

.E, ainda, criticam com veemência o fato de que as principais teorias feministas ignoram as questões de idade e desafiam os preconceitos de gênero das principais teorias sociais do envelhecimento.

No entanto, as teorias feministas apresentam “pontos fortes” importantes já

que o seu foco está na maioria da população de idosos – as mulheres –

enfatizando, ao mesmo tempo, a necessidade de se explorar outras formas de

diferenças dentro do processo de envelhecimento. As questões abordadas são

relevantes para a vida cotidiana das mulheres e podem fornecer bases para

75

intervenções em relação à população de idosos. Tendo como referência tanto o

nível micro quanto o macrossocial, essa perspectiva permite interações entre as

questões individuais e estruturais.

Se o objetivo da psicologia social está, segundo Lima (2012) na crítica do

planejamento de tecnologias de manutenção do estado de exceção, no qual o

dissonante, a pobreza, a fome, o descontentamento são, ao mesmo tempo,

excluídos e capturados sob novas formas de dominação, mais sutis e alinhadas

aos ditames capitalistas, questiona-se: Dado que de todos os fenômenos

contemporâneos o envelhecimento da população é o mais fácil de se prever com

muita antecedência, o menos contestável e o de consequências até certo ponto

previsíveis, qual será o encaminhamento que a academia dará aos estudos que

possam subsidiar a sociedade em relação aos velhos(as) e a vivência da velhice

em idade avançada, com serenidade e satisfação?

Está-se, portanto, em busca, de acordo com Ciampa (2012, s/n) de uma

psicologia que seja efetivamente social e que estude a questão do

desenvolvimento humano (em toda sua complexidade: desenvolvimento cognitivo,

lingüístico, interativo, afetivo, estético, moral, motivacional, sexual, corpóreo,

motor, etc.) para, com isso, dar conta do sujeito com uma identidade em processo

de contínua transformação, desde do nascimento até a morte.

Um grande número de pessoas fica velha, porém, quase nenhuma encara

com antecedência este avatar. Nada deveria ser mais esperado e, no entanto,

nada é mais imprevisto que a velhice. Apesar da orientação da OMS de que ela

começa aos 60, esse momento, na verdade é mal definido e varia de acordo com

cada pessoa, a época e lugares. “Não se encontram em parte alguma ‘ritos de

passagem’ que estabeleçam um novo estatuto” (BEAUVOIR,1970, p. 8). Do ponto

de vista das Ciências Sociais, o envelhecimento de mulheres deve ser focado no

contexto da sociedade ocidental e do século XX, cuja reflexão recairá na

construção do ser humano moderno e sua vida pública, incluindo-se aí as

questões da cidadania, papéis sociais; e, no tocante ao espaço privado, sua

intimidade, família e sexualidade.

No século XVIII, o século das luzes, já se observava que as mulheres eram

parte integrante e indissociável da esfera privada, o lar. E nesse espaço ficavam

confinadas, submissas aos maridos e responsáveis pela educação dos filhos e

76

administração da casa. Cristalizou-se, então, a ideia da sua fragilidade física e

intelectual que depois foi reforçada e perpetuada pela concepção médica que

pressupunha que a mulher saudável e feliz era aquela que ficava restrita a

privacidade familiar. Justamente por essa vinculação ideológica à família,

sedimentou-se a ideia de que a velhice, para a mulher, não trazia nenhuma

mudança radical que pudesse potencializar algum tipo de sofrimento. No entanto,

os estudos de Cumming e Henry (1960) apresentam a Teoria do

Desengajamento, onde a aposentadoria para o homem e a viuvez para a mulher

representam momentos cruciais, que marcam esse processo na medida em que

promovem uma diminuição significativa dos relacionamentos sociais e

transformam aqueles que permanecem, podendo gerar sofrimento pelo

isolamento ocasionado e mantido muitas vezes por longos períodos.

Com toda certeza ter vivido muito, ser velha significa estar marcada pelo

tempo físico, pelo relógio, pelos dias, meses e anos que registram com clareza e,

talvez, com crueldade, a aparência de quem já viveu muito – o velho, a velha.

Porém, há que se considerar que a verdadeira dimensão humana é demarcada

pelas experiências subjetivas dos eventos internos que determinam processos de

constante adaptação e evolução, onde se localizam os valores, as crenças, os

mitos. Para Beauvoir (1970, p. 19)

Moralmente, uma pessoa pode ter sofrido perdas consideráveis antes que se esboce sua degradação física; ao contrário, é possível que, ao longo dessa decadência, ela realize ganhos intelectuais importantes. A qual aspecto atribuiremos maior valor? Cada um dará uma resposta diferente, segundo suas tendências [...] É a partir de tais opções que os indivíduos e as sociedades estabelecem uma hierarquia das idades: não há nenhuma que seja universalmente aceita.

Muito embora, reconhecendo que o envelhecimento não é uma abstração,

viver como velha, se sentir velha pode ser uma determinação subjetiva fruto de

uma construção sócio - histórica e, portanto, passível de ser reformulada,

reconstruída. Envelhecer, portanto não é seguir um caminho já traçado, para

atingir um fim predeterminado e imutável, mas, pelo contrário, é construir,

permanentemente o caminho que se deseja seguir. Assim, a realidade de

algumas mulheres velhas pode configurar-se como algo que as faz “sentir-se”

jovem e potente num processo muito particular “Não quero saber de cadeira de

77

balanço, pois considero-a um símbolo da velhice desperdiçada [...] trabalho sete

dias por semana, vinte horas por dia e gosto disso” (MCCLENDON 1981, p. 183);

e com isso ela se afirma como sujeito, com uma identidade própria e que não

depende dos papéis que a sociedade determinou para as “velhas”

A velhice se concretiza através do tempo que é também o tempo de

memória, das lembranças traduzidas em afetos. É nosso ponto de referência

afetivo porque nele enraizamos nossas narrativas pessoais e identitárias. Santo

Agostinho (2007, p. 120) faz uma profunda reflexão sobre o tempo [Confissões]

[...] tentemos fornecer uma explicação fácil e breve. O que há de mais familiar e mais conhecido do que o tempo? Mas, o que é o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro terei que perguntar: como pode o tempo passar? Como sei que ele passou? Como sei que ele passa? O que é um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o passado é o que eu, do presente, espero, então seria mais correto dizer que o tempo é apenas presente? Mas quanto dura o presente? Quando acabo de colocar o ‘r’ no verbo, esse ‘r’ no verbo colocar, esse ‘r’ é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em escrever a seguir, é presente ou é futuro? O que é o tempo, afinal? É a eternidade?

O que pensar então da velhice? Seria o que já foi? Seria o que é? Ou o

que será? Posso olhar a velhice com estranhamento e admiração e, a partir disso

passar a vê-la de modo totalmente novo, distinto do que vem sendo dito e escrito

sobre essa fase da vida? Sobre a velhice temos a realidade de quem a vive, de

um lado, e a observação de quem a vê (do lado de fora) e que fala e escreve

sobre ela. Mas, as palavras, o momento, as escritas podem trazer significados

distintos, para quem escreve para quem lê e para quem vive esse fenômeno. O

que um autor expressa sobre o assunto, traz, nas entrelinhas, sentidos múltiplos

que exigem análise profunda. Ser velha pode então, ser muito diferente daquilo

que se entende por “ser velha.” “se as palavras tivessem sempre um sentido

óbvio e único, não haveria mal entendido e controvérsia” (CHAUÍ, 2000, p. 96).

Será que podemos datar uma vida? Temos como afirmar que mais anos

vividos signifiquem mais vida? No dizer de Clarice Lispector (s/d) “essa

capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é que eu chamo

viver”

78

Para Chauí (2000) o conservadorismo, a atitude dogmática, o preconceito

faz com que haja na sociedade um receio das novidades, do desconhecido, do

inesperado; de tudo, enfim que possa desequilibrar as crenças e opiniões já

constituídas socialmente. Porém, de acordo com a filósofa, a atitude dogmática

(transformada em preconceito) se rompe quando somos capazes de uma atitude

de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares. Assim, o

questionamento e a crítica científica acerca do envelhecimento tendem, a ceder

espaço para que o sujeito possa assumir a trajetória da sua vida, procurando as

vias de expressão da sua subjetividade numa tentativa constante de se

reconhecer permanentemente.

Jamais me considero velha, embora tenha setenta e cinco anos [...] suponho que descobri um jeito de fazer parte do presente e, assim, de certo modo, pensar que não envelheço (SARAH McCLENDON, 1981, p.183)

Esse dia nunca chegou! Se chegar, o estarei esperando com a mesa posta. Que me traga pelo menos flores e uma garrafa de champanhe. E, depois, que ele jante comigo, que saia pela mesma porta que entrou. Sou feliz sem ele. Não vejo orgulho nos cabelos brancos ou nas rugas. Minhas marcas trago na minha sabedoria e no conhecimento que fui adquirindo nas 24 horas diárias. Minha vida é de conquistas. Minhas glórias não são enrugadas ou grisalhas. São todas jovens e cada uma mais jovem que a outra. Todo dia é uma conquista (ELZA SOARES, In: REVISTA TPM, 2012, p.58)

Essa declaração de Elza Soares foi dada por ela quando solicitada a falar,

para a revista TPM (2012) sobre “O dia em que envelheci”. A instigante

capacidade que algumas mulheres apresentam em “se manter vivas” com vigor,

energia e alegria, apesar das perdas inevitáveis advindas com a idade, representa

uma realidade social que está por merecer maior atenção da academia e dos

órgãos públicos, com vistas a compreender esse processo. Assim, nosso

propósito foi o de refletir sobre o envelhecimento feminino, procurando respostas

para a seguinte questão:

O envelhecimento não representa somente uma passagem de um mundo

totalmente regrado para outro onde a mulher viúva fará as suas próprias regras, o

que lhe confere liberdade e independência, é o momento também, de se deparar

79

com perdas importantes e indesejadas. Como lidar com isso? De onde vem a

vontade de viver? - (...) afinal eu não estava enterrada! (Zoé)10

Barros (2007a) faz um questionamento sobre a velhice que ela denomina

comum, ou seja, da mulher não asilada, não-doente, aquela velhice com a qual

nos deparamos cotidianamente e que não tem sido acolhida ou vislumbrada como

questão a ser estudada cientificamente; acrescente-se a essa pertinente

observação da autora, a possibilidade concreta de mulheres que não se

enquadram nos critérios e nem se interessam pelos programas, tão em voga, de

atendimento aos idosos: viagens, bailes, universidades da terceira idade, etc.

Estudar o processo de envelhecimento feminino em perspectiva de diferentes

cursos de vida permite não só ampliar esse referencial de analise como também,

sugerir novos problemas de investigação. Muitas dessas mulheres sequer se

consideram velhas e vivem o seu cotidiano normalmente. É provável que elas

pensem como Beauvoir (1970, p. 8) que “[...] há pessoas menos jovens do que

outras, e nada mais.”

A sociedade contemporânea está repleta de exemplos de mulheres, seja

no plano individual ou grupal, que disseram “não” aos preconceitos e estereótipos

e buscaram viver a vida conforme o seu desejo e possibilidades, pois a velhice

pode ser vivenciada como o coroamento de uma existência; o presente é sempre

novo, as lembranças rejuvenescem o passado e o que era morto volta à vida e

projeta o devir. 11

No final da década de 1980 as “vovós em fúria”, no Canadá, iniciaram um

movimento e “infernizaram” o poder numa luta pelas causas humanitárias e

ecológicas com atos de desobediência civil pacífica, movimento esse que

segundo Habermas (2012), gera uma autodeterminação capaz de realizar o

projeto modernista de emancipação, embasado na razão e na ação comunicativa.

É esse engajamento da sociedade civil [participações políticas] que criaria a

condição, o ‘rapprochement’ crítico, no processo de busca de entendimento

10 Retirado das falas da depoente. O mesmo processo é aqui adotado, sempre que julgado importante ilustrar o contexto com exemplares dessas falas. O texto virá em itálico seguido do nome Zoé entre parênteses. 11 Nas palavras da depoente, “ -- (...) olhando aquele mar me senti nova de novo (...)”

80

mútuo em juízos de validade. Ciampa (2002, p. 141) lembra que estudar

identidade política “torna possível discutir a especificidade de lutas pela

emancipação de diferentes grupos sociais que, em sua ação coletiva revelam

velhas ou novas opressões”. Assumindo a sua condição de sujeito político, as

citadas “vovós” irradiam também alegria de viver e uma compreensão da própria

vida em idade avançada que passa longe dos estereótipos.

Sem deixar de considerar que alcançar a longevidade é também uma

condição permitida pelos avanços da medicina, e não esquecendo de distinguir os

impactos da seguridade social, tem-se que, no plano individual se observa, na

atualidade, exemplos marcantes de mulheres longevas que vivem o seu

centenário (um pouco mais, um pouco menos), com vigor e alegria. No caso

brasileiro apresentam-se, como exemplos, atrizes, escritoras, poetisas, donas de

casa, mulheres não letradas, brancas, negras, pobres, ricas, todas esbanjando

saúde e bem estar físico e psicológico. Giddens (1992, p. 226) analisa o “plano

emocional” em relação às transformações da intimidade e nos diz que “tanto as

mulheres comuns, na sua vida cotidiana, quanto grupos feministas

autoconscientes foram pioneiras de mudanças de grande e generalizável

importância.”

A pintora Judith Lauand, 90 anos, ganha mostra individual. É a única

mulher a participar do Grupo Ruptura, coletivo que fundou, em 1952, o

concretismo no país. Ela tem lugar permanente na história da arte brasileira por

suas obras com cores chapadas e formas geométricas. Com oito prêmios e quase

cem exposições coletivas e individuais, a artista segue produzindo e ainda mostra

ineditismo em seus trabalhos. De toda a sua obra, 70 produzidas há 50 anos,

estarão expostas na galeria Berenice Arvani na exposição Judith Lauand –

Gauches, desenhos e colagens, anos 50 “Hoje, me sinto feliz por tê-las realizado”

(REVISTA TPM, 2012, p. 40)

Eliza Carrara, que em setembro de 2013 completou 104 anos, tirou a

primeira carteira de motorista aos 53 e ainda dirige afirmando: “Andar na rodovia

Anhanguera é a mesma coisa que andar nas ruas perto de casa. Eu vou sozinha

e tranqüila, porque sei o que estou fazendo” (GAZETA ONLINE, 2013).

A estilista Rosa Cabral de Mello, contemporânea de Dener, Madame Rosita

e Clodovil, estreou na literatura aos 97 anos. Ela acaba de lançar Os segredos e a

81

arte de costurar. “A obra que teve lançamento recente na Livraria da vila, parece

apontar um novo caminho para dona Rosa, que já se anima em iniciar o segundo

livro para o ano que vem”. “Ele será uma autobiografia”, adianta a estilista e

escritora, do alto de seus inspiradores 97 anos” (29 Horas, 2013, p. 18)

Em 21 de novembro de 2013, a artista plástica Tomie Ohtake completou

100 anos – e continua trabalhando com energia e genialidade. Três exposições

comemoram o centenário de Tomie, que nasceu no Japão, mas se naturalizou

brasileira e é uma das artistas mais reverenciadas do país, o que faz dela um

motivo de orgulho nacional. Uma das mostras, Correspondências, apresenta

obras da artista desde os anos 50 em contraposição e diálogo com outros nomes

locais das artes plásticas, como Cildo Meireles, Leda Catunda e Nuno Ramos (...)

(Revista Cláudia, 2013, p. 28)

Um artigo veiculado pela Revista eletrônica do Grupo de Pesquisa

Identidade da Escola Superior de Teologia [Faculdades EST] disponibiliza um

compêndio acerca das mulheres brasileiras que fizeram história por estarem à

frente do seu tempo e que balizaram com suas ações a identidade da mulher do

século XXI. Não certamente por acaso, muitas foram longevas e produtivas até a

morte; e algumas, ainda vivas são exemplos de bem viver. Para citar algumas:

Chiquinha Gonzaga (1847-1935); Anita Malfatti (1889-1964); Tarsila do Amaral

(1886-1973); Anésia Pinheiro Machado (1904-1999); Nize da Silveira (1905-

1999); D. Canô Velloso (1907-2012); Clementina de Jesus (1901-1987); Bibi

Ferreira (1922-) Maria Ester Bueno (1939 -); Fernanda Montenegro (1929- ); Cora

Coralina (1889-1985)

Essas mulheres brasileiras e inúmeras outras, esquecidas talvez e inertes

em seu mundo ensimesmado, moradoras de um país continental, diversificado em

sua topografia, em sua geografia, em sua história, em seus costumes e crenças;

as velhas emblemáticas e “esquecidas” na sua história pessoal, rica em vivências

e experiências, um campo único de conhecimento social e humano prontos para

serem cientificamente explorados em benefício da vida humana.

82

Capítulo 2 Identidade feminina no presente: passado e futuro

Elas [...] já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; já viveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis: enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente que solicita muito mais intensamente do que a uma pessoa de idade. (BOSI, 1994, p. 60).

Através da reflexão sobre a memória e o tempo vivido, encontram-se

subsídios para entender a reconstrução identitária das mulheres longevas, uma

vez que “o que se é”, só pode ser respondido com base naquilo que “se foi” e na

projeção do que se “deseja ser.” Portanto, as lembranças advindas da memória

são o caminho, a via de interligação entre esses substratos psicológicos do

passado e o existir do presente que, interrogando-se em sua própria

temporalidade, permite ao ser que envelhece apropriar-se de um referencial para

a sua existência.

Busca-se, com base na narrativa da história de vida de uma longeva

compreender, de acordo com as teorias apresentadas, o impacto do

envelhecimento sobre as mulheres. Assim, pode-se entender esse processo

como uma articulação entre perdas e ganhos, conforme a perspectiva do curso de

vida. Numa vertente que se aproxima do construcionismo social, as lembranças

evidenciam a criação e/ou manutenção de significados para a vida, num

movimento dialético, onde o comportamento individual aparece como produto e

produtor dos contextos sociais onde estão inseridos. Os aportes teóricos

permitem também, ao tecer generalizações sobre a velhice, observar o exercício

da crítica ao conhecimento até então produzido nessa área, com vistas à criação

83

de modelos positivos12 de envelhecimento que ressaltem a força e a diversidade

do processo, com base na teoria crítica. E ao abordar questões relevantes para a

vida cotidiana das mulheres, devidamente alicerçadas nas lembranças da longeva

estudada, ficam delineadas possíveis intervenções que possam proporcionar um

envelhecimento feminino com qualidade e dignidade, em conformidade com as

teorias feministas.

Fez-se uma revisão bibliográfica com a qual se obteve uma trajetória

teórica que permite “enxergar” o ser, o sujeito, a mulher oprimida, a mulher

empoderada e liberta e a mulher velha. Com ênfase no envelhecimento que

entende as mulheres como sendo plurais, procura-se alinhavar conceitos

interdisciplinares para compreender o universo das mulheres longevas, para com

isso dispor de argumentos para defender que, desde que isentas de doenças

graves que exigem a tutela de outrem, a mulher tem o direito de viver a velhice

em idade avançada, livre de preconceitos e estereótipos que as infantilizam,

tornando-as reféns dos ditames da família e da sociedade. “Nunca estamos sós, é

horrível, há sempre gente à nossa volta [...] e tratam você como se todas as

pessoas de idade, sem exceção, voltassem à infância. Falam conosco como se

fôssemos bebês de um ou dois anos” (BEAUVOIR, 1970. p. 319).

Atualmente, os estudos sobre a memória e lembrança de velhos/velhas

remetem necessariamente à obra de Bosi (1994) e, concordamos com Chauí

(1994, p. 17), quando na apresentação do livro, afirma:

(...) você nos mostrou... como lutar: reconduzindo a memória à dimensão de um trabalho sobre o tempo e no tempo, dando ao trabalho da velhice uma dimensão própria e desdobrando uma tríade (memória-trabalho-velhice), você aponta para uma nova possibilidade de relação com o velho fazendo despontar, num outro horizonte, a figura laboriosa da velhice, trabalhando para lembrar.

12 Modelos positivos referem-se a proposições atuais do tipo: envelhecimento ativo, melhor idade,

etc.

84

Por ser temporal, o indivíduo carrega consigo um tempo existencial que lhe

permite, paradoxalmente, renovar a própria existência “Dizem que os velhos

sabem de lá de trás, do ‘velho’ e esquece do ‘meio’ e do presente. Eu lembro e

tudo; tenho uma cabeça boa!” (Angelina, 91 anos). E o tempo da memória

representa o eterno reconstruir-se pela retomada do tempo vivido, experienciado

que permanecem nas lembranças e se expressam no corpo e nos atos. Tudo o

que fomos se reflete no que estamos sendo e nos permite projetar o futuro

(STANO, 2001)

A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família,

com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os

grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo, ou seja,

é a própria vida em “flash back.” Bosi (1994, p.54) nos diz: “Na maior parte das

vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e

ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho.”

Trabalho às vezes árduo dado o volume de informações que se processam na

mente. - A mamãe veio em 48, não, em 58, é a mamãe veio em 58, eu vim em

57, eu fiquei na igreja até 58, não, mamãe faleceu em 64, ó meu Deus do céu,

que confusão! (Zoé)

Para Ferreira (2007) Discutir o papel da memória no processo de

envelhecimento significa abordar o lócus privilegiado de construção de identidade

do ser velho e as estratégias de afirmação nos espaços sociais. Refletindo todo

um universo de representações e significados, a memória, atualizada pela

categoria lembrança, constitui, ela própria, uma representação que os sujeitos

fazem de sua própria vida - se eu tenho que fazer, eu tenho que fazer! Pedir

ajuda é difícil, prá mim é muito difícil. Eu sempre fui independente, nunca pedi

nada prá ninguém. Se eu consegui, consegui com a minha raça (Zoé); - Não é

para me gabar porque eu era assim ‘meio bobona’ mas é porque não tive

oportunidade de desenvolver, de estudar; se tivesse teria ido longe e hoje seria

uma grande mulher. (Angelina, 91 anos)

Pellauer (2010) afirma que uma das razões que tornam o estudo sobre

memória individual tão importante é o fato de ela estar intimamente ligada à

interioridade que se associa à individualidade e à experiência. Se a nossa

memória se perde, bloqueia ou é negada, nossa individualidade e também com

85

ela, nossa identidade pessoal, será aparentemente perdida ou negada. E afirma o

autor “A memória e as lembranças sempre pertencem a alguém ou a algumas

pessoas. Como tal, portanto, a memória é algo que atribuímos a seu possuidor,

assim imputando responsabilidade por ela a esse indivíduo ou grupo.”

(PELLAURER, 2010, p. 152)

O processo de reconstrução e ressignificação, por meio das memórias,

mostra a identidade como categoria dinâmica, construída, múltipla, passível de

ser atualizada. Mostra, ainda, a maneira como ela acompanha a construção de

um sentido para a trajetória narrada como uma história. A memória, pois,

estabelece nossa individualidade e nossa identidade (BRANDÃO, 2008). Não há,

pois, como falar de lembranças sem um envolvimento pessoal que leve a reviver,

juntamente com os apontamentos teóricos a própria história de vida, numa busca

intensa pela compreensão do fenômeno da memória e a sua relevada significação

para este estudo, pois diante da provisoriedade daquilo que somos, é preciso

sempre focar aquilo que se foi para projetar o que se quer ser.

Discutir o papel da memória no processo de vivência da velhice “em idade

avançada” significa expressar que, sendo dinâmico, esse processo para situar a

pessoa longeva no presente, precisa permitir a construção de uma nova

identidade bem como formas estratégicas de reafirmação da mesma nos espaços

sociais da atualidade. Essas questões interessam sobremaneira, porque fazem

um aporte teórico-epistemológico que permitem compreender as reminiscências

do mundo subjetivo das mulheres que vivenciam, na atualidade, a velhice em

“idade avançada”, as atrizes sociais de um determinado tempo e contexto

histórico “Os anos dão uma consciência que não tem preço, ou que tem o preço

da sua juventude. Mas não sei se trocaria a minha vivência de 80 anos pelo

tempo não vivido quando a gente tem 20 anos. Nessa idade, a gente nem se vê

vivendo” (MONTENEGRO, 2009).

Segundo Bosi (1994, p.43) A fenomenologia da lembrança constitui o

centro dos debates sobre tempo e memória, provocando reações que ajudaram a

Psicologia Social a repensar os liames sutis que unem a lembrança à consciência

atual e, por extensão, a lembrança ao corpo de ideias e representações.

Pellauer (2010, p. 149) fazendo uma reflexão sobre o pensamento de

Ricouer se pergunta: “porque é que o que lembramos é lembrado como passado.

86

Não deveríamos ir ainda mais além e dizer que sem a memória não teríamos

ideia ou experiência do passado como passado e, portanto, nenhuma ideia do

tempo como vivido”? Essa observação permite pensar que sem um nexo com o

presente, na interface entre o individual e o coletivo, ocorreria um deslocamento

do indivíduo do mundo de significados sociais e o consequente desmantelamento

da sua condição de sujeito, da sua trajetória social e das suas referências de

pertencimento. Esse passado lembrado foi outrora real e pode-se ainda dizer real

à sua maneira se for possível incluir e entender essa condição de realidade de

“ter sido.” Neste momento, faço das minhas lembranças um retrato do “ter sido” e

que hoje se incorpora no “que sou”: Nas visitas à casa paterna, os encontros

pautavam-se nas conversas baseadas nas lembranças. E havia um nexo perfeito

entre o passado e os afazeres de agora [...] os pais de ontem, hoje são os amigos

com os quais partilhamos as lembranças: as deles e as nossas.

A evocação da memória e das lembranças será sempre carregada de

significados que irão subsidiar o exercício cotidiano da reconstrução de si e da

identidade, com base no tempo vivido para um vir a ser num movimento constante

entre o passado, o presente e o futuro. A capacidade de lembrar juntamente com

a de falar, narrar e compreender é constitutiva do ser humano capaz. E com isso

“se trabalha a memória e se recompõe um mundo de subjetividades que vão se

fazendo na cotidianidade de um passado que permanece na lembrança e nos

gestos, de reminiscências que revelam um estar-sendo porque carregado de

sentidos” (STANO, 2001, p. 25). Também aqui, faço das minhas próprias

lembranças num referendum acerca do peso do passado nas vivências do

presente, para o ser que envelhece: Não havia nada que se pudesse comparar

com aquela casa azul nos dias da festa dedicada ao santo padroeiro. As

bandeirolas coloridas suspensas em enormes varais, o estandarte de São João

Batista preso no alto de um mastro de madeira roliça e lustrosa e a imensidão de

convidados: todos os moradores da pequena cidade do interior. Ninguém era

preterido nesse dia e os labores e sabores da casa se abriam para uma partilha

mais do que fraterna, amorosa.

A memória se constitui assim, nesse armazenamento de experiências,

sempre crescente e que dispõe da totalidade da nossa vida. E, segundo Morris

(2010, p. 165) “O processo de encontrar uma linguagem expressiva que possa

87

evocar uma emoção vivida desenrola-se mais facilmente quando o sujeito está

lidando com a recordação dessa emoção do que quando está no meio de

experiências”. Para Cícero (2006) a simples consciência de ter vivido sabiamente,

associada à lembrança de seus próprios benefícios, é uma sensação das mais

agradáveis - Para mim as lembranças é algo muito prazeroso (Zoé). Com efeito,

conduzir a vida, sempre a associando à lembrança de realizações virtuosas,

significa mais do que produzir a própria história, significa alimentar a existência

seja de alegria, tristeza, orgulho ou ‘vergonha’; Sentimentos esses, verdadeiros e

inerentes a essência do ser humano. - Então eu descia pra praia com meu

guarda sol e a cadeira e eu tinha vergonha! Tinha vergonha de não ter ninguém

(Zoé)

A reposição de uma identidade construída ao longo da existência permite,

ao sujeito, num exercício dialético, articular recursos internos e externos para sua

reinserção em um ‘locus’ novo: [velhice em idade avançada]. Ter o seu espaço de

exercício da memória num território que lhe seja familiar pode significar a

diferença entre ser sujeito de si ou excluído de um dos direitos mais autênticos do

ser humano: o existir. É, portanto na memória, que o sujeito busca a integração

de todas as suas vivências para assim alcançar a unidade desejada.

A identidade profissional, por exemplo, além de passar por inúmeras

transformações, mescla-se invariavelmente à identidade pessoal, e ao promover

essas transformações mantém, porém, a essencialidade de cada um e suas

referências. É o processo da identidade enquanto metamorfose, numa articulação

entre a subjetividade (tempo interno) e a objetividade (tempo externo) do ser

velho, favorecendo a minimização da discrepância entre o que se aparenta ser e

o que se sente ser e que subsiste por seu sentido. E, como ser no mundo, o

homem absorve imagens e recorrências atuais, tira do passado e da memória o

direito à existência, refaz o passado e segue convivendo com ele. – O passado é

presente como história de vida; o futuro é presente como projeto de vida; somos o

88

presente sempre, quando articulamos história de vida e projeto de vida em cada

“hoje”. 13

Segundo Stano (2001, p. 54) “A memória como condutora e mediadora da

evocação do tempo, na velhice assume um papel importante de redefinição de

identidades” e o ser que vai envelhecendo carrega consigo esse tempo existencial

e isso lhe permite, paradoxalmente, renovar a sua própria existência. - E agora

vendo as imagens é muito bom e eu fiquei muito feliz, fiquei ah! me senti de novo

nova e tirei muitas fotografias do mar (Zoé)

A participação ativa no mundo presente leva-nos algumas vezes a ter a

sensação de pertencer a uma comunidade, um conceito relacionado com o

atávico desejo de gregarismo humano na busca da segurança e da sobrevivência.

Lendas antigas, feitos heroicos, seja na ficção ou na realidade, guardam na sua

memória celular a lembrança dos dramas, tragédias e o consequente medo

atávico advindo dos mesmos e do que esses acontecimentos significaram em

suas vidas. – porque eu tenho assim por trás de mim todo o sofrimento meu, da

mamãe, da minha família eu tenho através da mamãe. Eu acho que é do sangue

também. (Zoé)

Numa vertente da Psicologia, a memória genética seria aquela presente

desde o nascimento, e que prescinde de experiência sensorial. É incorporada ao

genoma ao longo dos tempos e está fundamentada na ideia de que experiências

comuns de uma espécie acabam sendo incorporadas ao código genético. Esta

teoria foi utilizada por Jung (1986) para explicar a memória racial e sua

diferenciação da memória cultural, que consiste na retenção de hábitos,

costumes, mitos e artefatos por grupos sociais. - É uma coisa muito estranha

assim que mexe com a gente viu? São sombras exatamente que vêm não

definidas, interessante que quando eu vi o mar eu fiquei assim, né? Está

banhando o meu país, onde eu nasci, mas o que é que tenho de lá, nada, nada!

(Zoé).

13 Contribuição de Ciampa (2014).

89

O estudo com pessoas pelo do método de narrativa de história de vida faz

com que o pesquisador se depare com situações em que o narrador chora, às

vezes, muito, ao relatar momentos de suas vidas, nem sempre os que parecem

mais intensos e, quase sempre, entre fragmentos de memórias intercalados com

espaços de silêncio profundo. Seriam reminiscências de lembranças atávicas? -

E tirei muitas fotografias do mar então porque é que você está tirando foto, é de

água? Eu digo: essas águas banham também o país onde eu nasci estou revendo

agora e isso me emocionou. Estancou lá dentro vem as coisas na cabeça

(silêncio) (Zoé).

Bosi (1994, p.89) questiona: Qual a função da memória? E afirma: “Não

reconstrói o tempo, não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o

presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além, ao

qual retorna tudo o que deixou à luz do sol” - Devo ter alguém na Lituânia, porque

mamãe se correspondia com meu tio e ele ficou durante 7 anos na Sibéria (choro

contido) ele foi preso ele não aceitava os bolcheviques (Zoé).

O tempo da memória é o tempo subjetivo, que em oposição ao tempo

objetivo, mensurável e que regula as sociedades contemporâneas, está

intimamente ligado ao nosso mundo interior, cujo dinamismo se orienta por todas

as nossas percepções pessoais, nossas sensações. É, portanto, um tempo

qualitativo e, conforme Deleuze (1966, p.45) “O tempo enquanto duração está

profundamente ligado à liberdade, visto que pode ser associado, identificado com o maior

recôndito de nosso ser (...)” E, se a modernidade enquanto produtora de amnésia

(BALANDIER, 1997) valoriza o efêmero e insiste em apagar as referências do nosso

passado, o tempo subjetivo, ligado às mais profundas camadas de nossa memória

individual, as lembranças, quando acionadas pelo relato da história de vida, se fazem

presentes, redefinindo as identidades e dando sentido à vida do velho, da velha.

Nunca percebi que amadureci (...) às vezes me assusto quando lembro que tenho 90 anos – aliás, quando me lembram, porque eu mesma não penso nisso. Confesso que não senti essa metamorfose. (BIBI FERREIRA, In: REVISTA TPM, 2012)

Afinal o que é ser longeva? A idade é um critério suficientemente válido

para identificar um velho, uma velha? O que faz uma velha? Quais são seus

anseios, medos, expectativas? Fazem ainda planos para o futuro? - Eu me

90

considero uma mulher forte, eu não me abato na luta pela vida, na luta pelas

coisas que eu quero (Zoé)

Zoé, uma deusa gnóstica que simboliza a vida, energizadora, é o

pseudônimo escolhido pela depoente para a narrativa da sua história de vida. Aos

90 anos de idade essa mulher emblemática por estar à frente do seu tempo e por

ter concretizado uma jornada pessoal e profissional que lhe confere satisfação e

otimismo diante da vida, se vê num momento especial de superação de

problemas de saúde e de indagações sobre a “ansiedade” que, segundo ela,

apareceu com o avanço da idade e o processo de aposentadoria. Assim ela se

expressa sobre o seu atual momento - É o momento de me transformar (...) o

momento é diferente (...) mas não poder fazer o que o que eu fazia (...) é incrível

isso, quer dizer, eu não me conformo com a minha teimosia, entende? (...) eu tô

melhorando (...) ansiosa ainda, mas tô bem melhor (...) eu vejo como a vida deu

um formato diferente (...) Sim, sim, saber envelhecer.

Num dos últimos encontros com a pesquisadora, Zoé fala sobre os seus

afazeres: o retorno gradativo às aulas de pintura e ginástica, o esforço para sair

de casa sozinha e caminhar pelas ruas, as atividades financeiras [contas

bancárias, pagamentos, etc.] e surpreendentemente o exame de revalidação da

carteira de habilitação para os próximos três anos.

Não é fácil ver-se num corpo debilitado pela doença [AVC] antes cheio de

frescor e vitalidade e agora lento e cansado. Mas Zoé se diz uma mulher

realizada - Eu sinto uma mulher feliz (...) eu sou assim lacrimejante, emotiva e

isso não significa infelicidade (...) eu olho para trás e digo: eu sou uma mulher

realizada, tive uma excelente mãe, uma boa educação (...) o trabalho eu fiz o

melhor que eu pude, acho que fui eficiente, consegui um companheiro

maravilhoso. Eu estou sozinha, estou sozinha, mas eu tenho amigos e tenho essa

força energética aqui [mostra o peito] que me dá vigor, que me faz viva, que me

dá mais força não é? (...)

O seguinte conjunto de questões se desdobra da pergunta original do

estudo que era: Que percepções podem ser trazidas pelo relato de uma longeva e

em que medida sua narrativa é capaz de revelar particularidades sobre como

evolui a identidade feminina? As questões que agora se colocam são: como se

construiu essa identidade e essa vida cheia de energia? Qual a visão dessa

91

mulher sobre a sua trajetória? Quais foram os tropeços e superações nessa

jornada? Afinal, que história a narrativa de Zoé quer contar? Que contribuição

essa revelação oferece da perspectiva da psicologia social, quando deseja

analisar o sintagma identidade-metamorfose-emancipação?

92

TERCEIRA PARTE

ESTUDO DE CASO: DESVENDANDO O UNIVERSO DE UMA MULHER

LONGEVA

93

Capítulo 1 A fase estrela solitária

A biografia de uma pessoa só pode ser identificada à medida que se descobre a história que sua história conta. Mas à medida, também, que se pode abrir a História em meio à qual uma história pode acontecer e construir significados (CRITELLI, 2012, p. 99)

A história de Zoé se mescla com a História da colonização do Norte do

Paraná, mais especificamente a de Londrina, um povoado numa clareira na mata

virgem onde imigrantes de quatro continentes e de diferentes regiões do Brasil

vieram em busca de uma vida nova na fértil terra vermelha.

Ver a vida olhando para trás, para o tempo vivido, revivendo as

experiências por meio da narrativa da história de vida, extraindo desse passado o

seu significado propicia o reconstruir-se enquanto sujeito, pois não é por acaso

que as lembranças afloram e sim porque as experiências representam um quadro

de referências para a permanente renovação. Segundo Jung (1986, p. 7) A

história de vida começa num dado lugar, num ponto qualquer de que se guardou

a lembrança. A história de vida contada por Zoé começa assim: Nasci no dia 19

de julho de 1924. Faz tempo não é? Nasci na cidade de Alitus na Lituânia (...) nós

viemos prá cá quando eu tinha 9 meses (...) Eu era muito pequena, deveria ter

uns quatro, cinco anos e eu sei que me internaram num colégio de irmãs e eu, eu

fiquei lá não sei quanto tempo, não tenho idéia, não sei se foram seis meses se

foi um ano .

O fato de tratar-se de prática relativamente comum na sociedade, o

abandono de crianças [proposital ou necessário] deve ser visto como meio capaz

de gerar angústia, medo e sofrimento que podem redundar em desacertos

psicológicos para a vida futura, pois nos primeiros anos de vida, a criança é

dependente das concepções dos maiores à sua volta e, para viver em acordo com

as exigências desse outro, ela acaba por limitar e, até mesmo matar a sua vida

interior (BOSI, 2003)

Zoé em vários encontros falou, com tristeza, da sua solidão. Mesmo não

fazendo referência direta ao abandono na infância, ela se autodenomina “estrela

94

solitária” no espaço sideral onde as constelações abundam. E sente-se mal com

essa condição – Eu tinha vergonha, tinha vergonha de não ter ninguém, vergonha

no sentido de eu ser só (...) então eu me sentia como um bólide (...) eu era uma

estrela solitária, uma estrela cadente, sozinha. Num estado de total abandono ela

passou toda a infância. Com a separação entre os pais e com a mãe tendo que

trabalhar em condições quase sempre excepcionais porque não tinha a sua

documentação profissional oficializada aqui no Brasil, o que a obrigava a

submeter-se a horários noturnos e a viagens constantes, a filha era deixada aos

cuidados de outrem.

Zoé, nas ausências da mãe, ficava em pensões, casas de conhecidos e

internatos, numa solidão profunda - (...) nós não tínhamos mais casa, mas,

naquela época havia aquelas pensões assim bem ajeitadas e tudo e nós

morávamos numa pensão dessas (...) muitas vezes eu me sentava no restaurante

(...) e esperava mamãe e a mamãe não vinha [silêncio] e eu tomei, tomava

consciência de que estava sozinha, de que se a mamãe não viesse o que seria de

mim? Prá onde eu iria? Então eu ficava lá esperando mamãe e começava a

chorar (...) e se mamãe não vier? E chorava.

A figura materna idealizada pelo modelo de sociedade do final do século

XIX e início do século XX, como boas mães, virtuosas esposas e dedicação

integral ao lar responsabilizava-as pela educação e pela vida dos filhos,

imputando-lhe enormes responsabilidades. Vale questionar: será que o sofrimento

causado pela ausência materna por longos períodos, criou em Zoé uma

predisposição para a coragem, a disposição, o destemor?

Tendo que conviver com a solidão e o abandono, Zoé tentava encontrar na

literatura os recursos para não sucumbir na tristeza do isolamento. Ao debruçar-

se sobre a leitura, ela se envolvia com a arte da narrativa que por sua capacidade

criadora, pela mobilização dos sentimentos, exigia do seu psiquismo elevada

atividade. Para Brandão (2008), tanto o sujeito criador, o artista, o escritor, etc.

quanto o sujeito que aprecia as mais distintas formas de artes não pode ser

passivo diante da vida.

Na ausência da mãe, Zoé expressava todo o seu mal-estar nas lágrimas.

As lágrimas traduziam o seu drama familiar. E, na procura por encontrar-se, saber

quem era, para onde ir, sente uma aguda necessidade da presença e da proteção

95

da mãe. O medo e a solidão exercitam a imaginação e podem transformar-se

numa espécie de antídoto contra as opressões e dificuldades futuras. “E

precisamente a noite povoada por temores ancestrais, a noite dolorosa da solidão

e da espera transforma-se: o que evoca a morte torna-se presença do eterno”

(autor desconhecido).

No seu retorno para casa, depois da primeira experiência no internato, Zoé

viu-se numa situação de desconforto e relembra uma passagem que ela

considera “coisa interessante” que ela expressa assim: (...) – eu vi eles

discutindo que em frente de casa onde a gente morava havia uma casa grande

com um sacadão e eu via sempre uma mulher bonita de roupa assim, de um

penhoar bonito e andando naquela sacada e um cachorro que me parecia galgo,

um cachorro grande, assim, branco meio magro e eu achava aquilo lindo! E eu vi

mamãe discutindo com meu pai (...) e ela dizia que aquela mulher era amante

dele (...)

A vivência da infância sem a figura paterna, aparentemente insignificante

para Zoé – Eu nunca fui agarrada à ele, e a mãe assumindo o controle da

situação, pode ter sido a semente de um comportamento de adulta alicerçado na

firme disposição de vencer os obstáculos a qualquer custo, um comportamento

isolacionista, individualista muito próprio das sociedades contemporâneas e até

mesmo de arrogância diante das vicissitudes da vida. Evidencia-se isso na

declaração da depoente em relação ao avanço da idade – Mas eu não aceito as

limitações (...)

Relatos da infância que guardam certa similaridade com outras situações

vivenciadas ao longo da vida, como por exemplo, a repentina admiração pela

professora de francês: mulher, bonita e autônoma, um perfil feminino que Zoé

admirava e que no qual procurava se espelhar - Quando eu fui para o ginásio, na

primeira série lá em Taquara, quando a professora de francês entrou na sala de

aula e falou: - Bonjour mes enfants, comment allez-vous? - Ah! nossa que

bonito! É isso que eu quero ser, é isso que eu quero ser!

Delineia-se, então, um movimento em busca de uma identidade almejada

ainda na infância. Numa empatia instantânea com a professora de francês, Zoé

projeta o seu futuro e, ao mesmo tempo evoca o seu passado. A sua identificação

com a professora a faz relembrar a cena na casa paterna - Agora você veja,

96

entre parênteses, lá atrás não é? A mulher bonita de penhoar e cachorro galgo

não é? Aí, a francesa, a francesa é tua amante! Como entender essa empatia

instantânea com a professora de francês? Esse desejo tão evidente e tão firme de

tornar-se também professora de francês? E por que essa identificação a remeteu

às lembranças do sacadão e a francesa amante do pai?

Zoé busca no recurso da memória as respostas para as suas angústias

atuais, objetivando alcançar, por meio da recordação, a unidade desejada, ou

seja, um equilíbrio entre o que foi e o que é hoje: uma longeva, que rejeita as

limitações e que persevera na coragem e autodeterminação que marcaram toda a

sua existência - Apesar de todos os tropeços, apesar de todas as pedras no

caminho né? Eu acho que eu soube tirá-las do caminho com jeito ou às vezes me

machucando um pouco, mas, tirei!

Com o amadurecimento biológico e psicológico a criança passa a

compreender melhor o mundo e as pessoas à sua volta, desfazendo-se dos laços

quase simbióticos. Zoé, contudo, mantém a forma de relação com a mãe na

adolescência e na idade adulta o que fica evidente na sua fala - Sem ela eu não

era ninguém.

As dificuldades para prover a vida de ambas (...) nós temos que nos

defender pelo bom trabalho que nós fazemos (...) fizeram a mãe buscar refúgio

da fé, na normatividade da instituição religiosa a que pertenciam por tradição -

mamãe era católica, mas não, não encontrou apoio na igreja (...) No século XX a

igreja católica guardava um posicionamento bastante intransigente em relação ao

casamento. As célebres afirmações: “Até que a morte os separe” ou “Que o

homem não separe o que Deus uniu”, certamente representaram um impedimento

concreto para o acolhimento dessa mulher “abandonada” pelo marido.

Enquanto a mãe buscava um caminho religioso para se apoiar, Zoé

continuava a sua experiência de abandono - (...) e eu ficava com meus livros,

minhas estórias (...) E foi na igreja protestante que encontraram o refúgio e o

apoio necessários - E ela encontrou uma amigas, umas senhoras que eram letas

(...) e falaram prá mamãe que a igreja (...) protestante, protestante, eu fui criada

na igreja protestante (...) tinha uma palestras interessantes (...) então mamãe me

levava. Berger & Luckman (1976) debatem a questão da adequação dos papéis

sociais, destacando a importância social das instituições, construídas

97

historicamente pelas tradições e hábitos, por dotarem as pessoas de significado e

sentido para a vida, configurando valores que serão aplicados para regularem a

vida social e individual.

A vinculação de mãe e filha aos valores da igreja protestante norteou a vida

dessas mulheres de forma intensa e Zoé inicia a fase de adolescente num

internato confessional - Quando eu tinha 12 anos a mamãe me internou num

colégio protestante (...) ela se interessou pela mensagem dessa igreja evangélica

e me internou porque eu já estava ficando adolescente, já começava então a, a

dar trabalho (...) eu chorava e dizia: mãezinha tu não gostas mais de mim? E ela

dizia: Não, é para o teu bem. Eu sabia lá o que era para o meu bem!

Como se vê a narrativa da infância de Zoé revela uma trajetória de

formação do sujeito sedimentada em dois aspectos importantes, dois núcleos de

analise: a relação quase simbiótica com a mãe e a proeminência do universo

simbólico cristão. Esses aspectos foram os fundantes da socialização primária e

secundária de Zoé, bem como de sua identidade de papel.

Sendo filha única, sem o pai presente, sem outros familiares, as suas

ações no período da socialização primária podem ser imputadas à mãe. Sua

identidade foi formada pela internalização das ações, crenças e convicções

maternas. Zoé era apenas “filha” e foi como filha apenas que ela adentrou ao

mundo da adolescência e do desenvolvimento da identidade de papel e da

identidade do eu.

98

Capítulo 2 A fase da mesmice à mesmidade

Como podemos encontrar o caminho das coisas se já nos disseram tudo antes que as experimentássemos? Como nos salvar dos preconceitos penetrantes que governam nosso processo de percepção? Onde começam as nossas idéias sobre as coisas? Por que as aceitamos? Como chegaram a nós? (BOSI, 2003, p. 117)

A determinação materna em guiar os passos de Zoé “é para o seu bem” e

a vinculação aos preceitos da instituição religiosa, ataram mãe e filha num laço

de vida e morte que as levou a viver a relação quase simbiótica até o passamento

da mãe, quando Zoé contava com 40 anos de idade. Mal iniciando-se na

adolescência, Zóe submeteu-se de forma incondicional: comia, vestia-se, andava,

dormia e vivia sob a tutela rigorosa da mãe aliada aos valores protestantes.

Nesse contexto estava a razão das suas primeiras crenças e atitudes. A

obediência e o esforço contínuo para ser a “melhor” foram incorporados como

natural por ela - Eu herdei isso da mamãe

Segundo Beauvoir (1967) a mulher ao responsabilizar-se por uma menina,

busca, com zelo transformá-la em uma mulher semelhante a si própria. E mesmo

uma mãe generosa, bem intencionada, que deseja sinceramente o bem da

criança, acredita ser mais prudente fazer dela uma “mulher de verdade” para ser

aceita e reconhecida pela sociedade.

A vida, seguindo um fluxo de normalidade proporciona pequenas evasões

para que o ser em formação dê conta de suas próprias necessidades e anseios.

Acontece o abandono de restos da fase simbiótica, e a criança começa a criar

uma instância interna de autonomia, diferenciando outras realidades. Tanto é

assim que foi no internato protestante que Zoé começou a vislumbrar um mundo

novo, algo além das experiências infantis - (...) Para mim foi uma experiência

assim muito interessante [ênfase] porque eu nunca tinha saído, nunca tinha visto

uma vaca, tinha visto um cavalo, nunca tinha visto nada, não é?

O período da adolescência, vivido no internato está repleto de “pequenas

alegrias” e descobertas do mundo circundante, o que – utilizando a conceituação

99

de Berger & Luckman (1976) – permite afirmar que se caracteriza o termino da

socialização primária e início da socialização secundária. Do momento em que se

reconheça na ação do outro, o indivíduo encontra a forma de tornar-se aceito

socialmente, interiorizando as suas ações e as reproduzindo externamente,

tornando-as parte da comunidade que partilha uma mesma dinâmica e forma de

ações normativas, que passam a ser referência para a vida. Segundo os autores,

para pertencer a um grupo social, o sujeito precisa reproduzir os valores e

símbolos compartilhados ao mesmo tempo em que se adapta aos mesmos,

afirmando-se como indivíduo autônomo numa articulação entre o “me” e o “eu”.

- Aqueles colégios deles naquele início eram colégios (...) como se fosse

uma fazenda (...) e a gente pagava bem, pagava bem mas a gente tinha que

trabalhar duas horas por dia (...) então a gente trabalhava na cozinha (...) tinha

que arar a terra, tinha que plantar (...) a gente tinha aulas de manhã e de tarde a

gente trabalhava (...) As escolas protestantes foram importantes para a educação

da mulher brasileira. O protestantismo assegurou com o princípio da laicidade

uma parcela significativa no campo da educação e, na primeira metade do século

XX proliferaram pelo país as escolas e os pensionatos protestantes (SAFFIOTI,

1976). Mãe e filha foram beneficiadas com isso, numa fase de suas vidas, como

estudante, professoras e moradoras. E se isso lhes era propício por um lado, por

outro as tornava irremediavelmente subordinadas à normatividade e aos preceitos

da igreja protestante.

O trabalho como norma rígida agregando valores morais foi exercido à

exaustão por Zoé, durante toda a vida, limitando os anseios próprios da idade, os

sonhos, os devaneios e as urgências do corpo. Apesar do relato bem humorado

e de um encantamento com a rotina de trabalho no colégio - (...) Cê veja que

festa, não é? Era uma delícia (...) tinha que quebrar milho, não é? E aqueles

bichos assim, ai que medo que eu tinha! Mas era muito divertido (...) há que se

considerar o alerta de Beauvoir (1967) para o fato de que a menina

sobrecarregada de tarefas pode ser prematuramente escrava, condenada a uma

existência sem alegria. Se no período escolar essa experiência foi prazerosa, ao

longo da vida, no entanto, deixou sequelas por inibir o desejo natural de participar

de festas, passeios, namoros, etc. - Eu não tive essas coisas, esses “perfumes”

a minha vida foi só trabalho.

100

Embora ainda muito dependente da mãe, Zoé começa, na adolescência, a

exercitar o seu próprio modo de ser - eu comecei a fazer arte (...) eu tive uma

amiga polonesa e a mãe dela era protestante também (...) e ela foi interna

naquele ano, então prá mim foi muito bom (...) e nós duas subíamos nas árvores

(...) e a gente subia nas mexeriqueiras ou em outras árvores, seja o que for e

fazia xixi lá de cima (risos) (...)” pequenas traquinagens, mas que podem ter um

significado mais profundo, relacionado ao poder do menino que por sua fisiologia

pode urinar em pé em qualquer lugar. Já a menina tem, segundo Beauvoir (1967)

uma sorte muito diferente. As suas partes genitais não chamam a atenção das

mães. É um órgão secreto do qual se vê o invólucro e não se deixa pegar; em

certo sentido, a menina não tem sexo. Mas, encima das árvores, tudo se torna

possível e fazer xixi como se fosse um menino pode ser experimentado como

uma forma de poder - (...) aquilo era novidade, aquilo era festa (...)

Sabe-se que à medida que a razão se desenvolve o nosso conhecimento

vai aumentando e vai nos habilitando a organizar a nossa relação com o mundo,

mas no caso específico desta narrativa, os pequenos movimentos rumo a uma

vida mais autônoma redundaram em reprimendas e até castigos físicos que

fizeram Zoé recuar e continuar submissa às determinações da mãe.

A rigidez da conduta a ela imposta só tinha um objetivo, transformá-la em

uma mulher independente e forte o suficiente para não sucumbir aos ditames do

amor e do sexo. Conforme as considerações da mãe - Prá você só se for o filho

do Czar montado em um cavalo branco! As determinações da mãe encontraram

eco nos valores e premissas liberais que organizavam a sociedade brasileira na

época, com discursos homogeneizadores dos papéis femininos: filha obediente e

esposa dedicada (DEL PRIORE, 2021).

É evidente que não foi possível para Zoé encontrar o filho do Czar, e a sua

narrativa dá conta de dois desastrosos envolvimentos com o sexo oposto. O

primeiro, ainda adolescente, se traduz num namoro à distância, platônico e

próprio do início do século XX. Em versos ela expressa o seu amor ao rapaz -

(...) logo sinto voltarás e verei os lindos olhos teus (...) e eu os porei juntinho aos

meus (...). Inocentemente Zoé encaminhou os versos por uma amiga e ela não

sabe como os mesmos acabaram nas mãos do diretor do internato e nas da mãe

- (...) então levei uma surra, aos 16 anos; porque apanhei não sei (...) para mim

101

doeu muito! Porque eu estava numa boa você sabe, adolescente, não é? (...) o

sofrimento quando eu estava me despertando para o amor.

Não há como negar as urgências do corpo nessa fase da vida; sublimar os

desejos, a natural curiosidade pelo sexo oposto, pois se está, naturalmente,

voltada para descobrir-se enquanto mulher “A jovem acha-se voltada à pureza, à

inocência, precisamente no momento em que descobre em si e em derredor os

perturbadores mistérios da vida e do sexo (...)” (BEAUVOIR, 1967, p. 74)

Sem alternativa e acreditando ser o melhor para ela, Zoé se consome nos

estudos, colocando as forças físicas e mentais a serviço dos desejos que lhe

foram incutidos pela mãe e devidamente “aprovados” pela igreja, anulando-se

completamente. Ela não busca as evasões possíveis para romper com esse

estado de coisas. Havia na submissão um compasso de espera. Enquanto a sua

juventude se consumia ela ainda esperava pelo homem que haveria de ser seu.

Ela deseja continuar uma verdadeira mulher para sua própria satisfação. Só consegue aprovar-se através do presente e do passado, acumulando a vida que fez para si com o destino que sua mãe, que seus jogos infantis e seus fantasmas de adolescente lhe prepararam (...) a forma primitiva de seus sonhos de independência foi um lar próprio; não pensa em renegá-los, mesmo tendo encontrado a liberdade por outros caminhos (BEAUVOIR, 1967, p. 454)

Emotiva - eu sou muito emotiva, Zoé carrega uma performance existencial

de rígidos controles sobre si mesma e sobre as pessoas que a cercam. Trata-se

das tensões e das contradições vivenciadas por ela em diferentes fases de sua

vida; tensões entre ela e o seu tempo e a sociedade na qual estava inserida. É

pois, relevante, “(...) desvendar as intrincadas relações entre a mulher, o grupo e

o fato, mostrando como o ser social, que ela é, articula-se com o fato social que

ela também fabrica e do qual faz parte integrante” (DEL PRIORE, 2012, p. 9) -

Então eu fiz o curso clássico (...) e conheci, no segundo ano, um rapaz cearense

que estava fazendo Teologia. E então foi também um namoro assim de longe.

Zoé não diz como o conheceu e sequer mencionou o nome do rapaz. Esse

silêncio, esse não dito que significado terá? Um namoro ainda que de “longe”,

próprio da época, pode prescindir de uma identificação? Não ter nome é não ter

identidade, é não existir? Ela, porém, mesmo sem a aprovação da mãe que dizia:

- (...) esse homem não serve prá você! fica noiva e relata com visível emoção as

102

formas inusitadas de manter um relacionamento, ainda que à distância (...) - fiquei

noiva do rapaz, o cearense, um nordestino cheio de graça, não é? E uma noite

por mês nós íamos no grupo social. Então eles punham música e reuniam os

rapazes e moças num salão enorme (...) então era a marcha! A moça dava a mão

pro rapaz e ia marchando e fazendo, marchando de mão dada. Nossa, que

maravilha!

O curso clássico foi realizado no colégio protestante, em Curitiba, e Zóe

morava no pensionato da própria instituição onde as instalações eram separadas

para homens e mulheres e como todos tinham que trabalhar, as garçonetes eram

também estudantes e o grupo criou uma forma de manter contato com a “troca de

sobremesas”, através da qual, os namorados comunicavam-se, com a conivência

da colega que as servia; e nessa troca vinham os recados, as declarações de

amor! Ao se lembrar disso Zoé sorri e diz: - Ah! como as coisas mudaram. Isso

era gostoso! Faz tempo não é? Parece que não é muito gostoso, não sei, eu

acho. É outro tempo. É uma outra época (...). Toda entrevista individual traz à luz

direta ou indiretamente uma quantidade de valores, definições e atitudes do grupo

ao qual o indivíduo pertence, de um tempo histórico, ou seja, são relatos de

práticas sociais e das formas como o indivíduo se insere e atua no mundo e no

grupo do qual ele faz parte. A identidade é construída num determinado contexto,

onde ocorrem as interações sociais e para Ciampa (1987, p. 169) “é a estrutura

social mais ampla que oferece os padrões de identidade”

Terminado o curso clássico, Zoé está determinada a ingressar na

universidade e ao comentar o seu desejo com o noivo ele não gosta da ideia - eu

digo: eu quero estudar, aí ele não queria que eu estudasse. – não você não

precisa estudar (...) para quem ia ser pastor, Porque eu precisava estudar? Esse

posicionamento do rapaz refletia muito bem o projeto14 que norteava a vida na

região sul do país onde os periódicos e jornais “(...) ora reconheciam a

importância do trabalho feminino, ora explicitavam o temor da concorrência.

14 Ideário positivista que no final do século XIX e início do século XX, onde cabia ao homem o trabalho e o sustento financeiro da casa e à mulher respeitar o pai e o marido, cuidar da educação dos filhos e do lar

103

Nesses jornais eram divulgadas as imagens idealizadas, nas quais era definido o

lugar das mulheres (...)” (PEDRO, 2012, p. 305).

Mesmo antes de cursar a universidade, Zoé já havia iniciado a carreira no

magistério, atuando no mesmo colégio onde a mãe lecionava e onde moravam -

(...) nesse tempo eu já lecionava lá em Taquara (RS) (...) como eles não tinham

professor de latim (...) eu estudei latim muito tempo e eu gostava (...) estava

fazendo o enxoval, estava noiva, ia casar (...). Por conveniência do colégio foram

transferidas para Curitiba e lá o noivado começou a arrefecer (...) - carta vai,

carta vem, carta demorando prá vir, carta demorando prá ir (...) mas como? Vou

casar!

Beauvoir (1967) já denunciava em sua obra a total dependência da mulher

ao homem, que sem dúvida era tido como um ser superior, intelectual e

socialmente. Elas procuram um homem que lhes pareça superior a todos os

outros pela posição, o mérito, a inteligência; Unir-se a esse ser de elite era o

sonho de toda moça. E, para Zoé não foi diferente; ela acreditava ter encontrado

o seu par - Ele poderia ser o meu homem!

A incompatibilidade do casamento com a vida profissional era uma das

construções sociais persistentes. Ser esposa e mãe era, efetivamente, a

verdadeira carreira feminina e “Tudo que levasse as mulheres a se afastarem

desse caminho seria percebido como um desvio da norma (LOURO, 2012, p. 454)

- Eu ia prestar vestibular para a universidade do Paraná prá Letras Neo Latinas,

mas eu ainda gostava dele, eu tinha esperança de que ele seria “meu homem”

(...) depois fiquei sabendo que houve muita coisa; mamãe perceptiva! Esse

homem não serve prá você (...) ele estava diferente (...)

Ao romper o noivado, o contato mais próximo com o sexo oposto, ela

acredita que, de fato, aquele homem não servia para ela. E juntamente com o

enxoval ela trancou a sua sexualidade no baú, até os 40 anos de idade. A partir

daí, Zoé afirma: - Para mim um homem e um poste na rua era a mesma coisa!

“Nós temos dentro de nós um porãozinho. Ele abre e fecha automaticamente. E

as coisas caíram dentro do meu porão. E o porão fechou. E ficou fechado durante

45 anos” (CORA CORALINA).

104

A partir de então, a vida de Zoé foi focada no estudo visando não a

satisfação dos anseios do momento, de realizações imediatas, de uma vida boa,

mas em função de um segurança futura, já que ela abriu mão de realizar-se como

mulher, para dedicar-se a uma realização profissional - (...) e assim passou o

tempo e eu desmanchei esse noivado e durante 10 anos (...) eu não quis mais

saber de homem. Digo: não, agora eu vou me preparar para a minha velhice

porque como a mamãe sempre diz: - nós não temos quem nos defenda, nós

temos que nos defender nós duas, pelo nosso comportamento, pela nossa

postura, nosso trabalho bem feito; é isso que nós temos que ser, e que ninguém

venha dizer alguma coisa de nós!

A proliferação dos discursos apontando a incompatibilidade entre trabalho

e casamento, favoreceu o estudo e a profissionalização de Zoé, porém essa

opção lhe cobrou [mesmo que ela não confesse] um alto preço: a renúncia ao

casamento, à maternidade, reafirmando a sua condição de “estrela solitária” para

poder dar conta da trajetória profissional

(...) as trabalhadoras de ‘colarinho branco’ aspiram um nível intelectual e social superior. Porém essas aspirações, combinadas com os limites que lhes impunha o trabalho e com sua entrega psicológica ao mesmo, impedem-nas de encontrar par; sós, experimentam o peso da deficiência e do descrédito (LOURO, 2012, p. 465)

Terminado o curso de Letras, Zoé quis fazer Direito porém, a instituição à

qual pertencia pela fé, onde morava e trabalhava não entendeu ser interessante

essa nova carreira e despoticamente, decide o caminho que ela deve seguir - (...)

a associação não deixou (...) então me matriculei na primeira turma de jornalismo

da PUC.

Inicia-se então uma jornada árdua rumo ao futuro que determinou: ser uma

profissional competente e responsável, capaz de “defender-se” conforme lhe

ensinara a mãe. Jung (1986, p. 26) nos faz um alerta em relação a essa busca

pela segurança “Pensamos talvez que haja o caminho seguro; ora, esse seria o

caminho dos mortos (...) quem segue o caminho seguro está como que morto.” E

Zoé, pode-se dizer vivia uma “morte simbólica”, mas um dia ela despertou,

conforme sua narrativa - mas eu não estava enterrada!

105

Antes de concluir o segundo curso superior, a instituição houve por bem

transferir Zoé para o colégio de São Paulo; e a reação primeira dela nos remete a

sua ligação quase simbiótica com a mãe. Não se observa na narrativa,

questionamentos quanto à transferência e sim, um desconforto pela separação da

mãe - (...) mas era só mamãe e eu, por que me transferiram? Por que não ficar

com minha mãe no colégio em Curitiba, por que?

A instituição tinha um propósito ao transferir Zoé para São Paulo, porém

conduziu os fatos de modo a promover o desligamento da professora de latim,

formada em Letras Neo Latinas, e que começava a exigir o seu espaço e a se

posicionar enquanto sujeito. As lembranças relatadas por Zoé trazem um pouco

de luz ao episódio - (...) eu sempre fui assim rigorosa! E eles recebiam alunos do

interior (...) bem fracos em termos de conhecimento (...) e teve um que eles

passaram (...) passaram aquele aluno sem perguntar prá mim; ele mal sabia

português e agora veja só o latim! Eu sei que eu reprovei (...)

Pensar a noção de emancipação “envolve a idéia de mudança dotada de

poder inovador, de construção de novos sentidos para a existência, de superação

de condições pessoais e sociais restritivas (...)” (ALMEIDA, 1999, p. 6). Ter se

rebelado diante do posicionamento da instituição certamente gerou o impasse que

desencadeou o processo que levaria ao desligamento de Zoé da instituição que

fez parte da sua vida por, pelo menos, duas décadas! A sociedade brasileira no

século passado posicionava-se de forma “intolerante” diante do desejo de

algumas mulheres em trabalhar e cercava a atividade laboral feminina de muitos

“olhares” que impunham uma regulação acentuada em sua conduta

(...) se por um lado, a solteirona era uma mulher que ‘falhara’; mas ao mesmo tempo, ela era uma mulher, quando professora, que tinha um nível de instrução mais elevado do que as outras, que ganhava seu próprio sustento e que, em consequência disso, usufruía de algumas prerrogativas masculinas” (LOURO, 2012, p. 466)

- (...) A senhora está sendo chamada para professora de francês lá no

colégio de São Paulo; (...) fiquei meio assim sem saber; mas por que eu vou me

separar se eles sabem muito bem que sou só eu e a mamãe? Como que vou me

separar da minha mãe? Em todo caso a gente... bom, se estão me chamando, eu

vou. Ser guiada pela razão, pelo bom senso é demonstração de maturidade para

106

buscar a utilidade da própria vida e, Zoé, vacilante de início foi em busca do seu

caminho - E cheguei lá e me apresentei ao diretor (...) digo assim: eu vim para

lecionar francês e ele falou: francês? Não, a senhora veio para ser preceptora

(...) digo: não, não, eu não estudei para ser preceptora, estudei para ser

professora! (...) mas queremos a senhora como preceptora. Não, não eu não fico!

Ser professora de francês, uma identidade projetada ainda na infância - É

isso que eu quero ser! Era-lhe essencial; não poderia abrir mão dessa recente

conquista. Ela havia depositado toda a sua confiança na instituição, porém agora,

as crenças e os valores dessa instância começaram a não se conciliar com a sua

experiência e consciência - (...) por que não me disseram a verdade? Não pregam

a verdade? “A mudança de atitude exige uma reorientação intelectual, um

rompimento com os vínculos sociais e uma reestruturação da experiência

passada. A mudança de atitude causa uma desordem nas relações sociais”

(BOSI, 2003, p. 119).

Desse impasse veio o desligamento do colégio protestante. Certamente

não isenta de sofrimento Zoé direcionou a sua vida pelo caminho profissional que

a partir desse momento tomou um rumo totalmente inusitado. Se as dificuldades

são mais evidentes na mulher independente é porque ela não escolheu a

resignação e sim a luta. Ela está empenhada em viver com autonomia e, segundo

Beauvoir (1967, p. 454) “A mulher independente – e principalmente a intelectual

que pensa sua situação – sofrerá (...)”

De volta ao colégio de Curitiba e ao colocar a sua decisão ao diretor que a

havia encaminhado para São Paulo com a falsa promessa de que ela seria

professora de francês, ele simplesmente diz: - (...) mas a senhora é bem

preparada. A senhora pode encontrar um bom trabalho. E com isso a inevitável

culpabilização de Zoé pelo “desacerto” entre o institucional e o pessoal, com as

consequências a serem sofridas por ela, a saída foi procurar outro trabalho.

Pensar as mulheres nas salas de aula (...) apenas como subjugadas talvez empobreça demasiadamente sua história, uma vez que, mesmo nos momentos e nas situações em que mais se pretendeu silenciá-las e submetê-las, elas também foram capazes de engendrar discursos discordantes, construir resistências, subverter comportamentos (LOURO, 2012, p. 478)

107

Zoé buscou, então, recursos nos conhecimentos adquiridos ao longo da

vida estudantil e conseguiu recomendação de um amigo, um irmão Marista, que

lhe serviu para recomeçar a sua vida em terras novas, o norte do Paraná, com

sua colonização dando os primeiros passos. Inicialmente a recomendação foi

para assumir algumas horas de aula em uma cidadezinha nascente, Assaí, que

ela aceitou de imediato, mesmo sem ter a menor ideia de como seria sair da

capital paulista para o sertão paranaense - Eu quero Assaí

Confiante ela chega ao norte do Paraná, na década de 1958, aos 34 anos,

sozinha, para enfrentar aquele “eldorado” onde as cidades eram “só meia dúzia

de ruas tortas cortando a estrada que acabava no rio, ruelas empedradas e

buraquentas, casebres e casas caindo aos pedaços, pobreza por todo lado; aquilo

não podia ser a entrada de uma vida nova” (PELLEGRINI, 1998, p. 98) - menina

o que era aquilo! (risos) não tinha hotel só tinha hotel de viajante. Um hotelzinho

assim de madeira (...) me deram um quartinho que só tinha uma cama e uma

mesinha e acabou (...) naquela noite choveu, choveu, choveu com raio, trovão,

enxurrada e não tinha ponte naquela ocasião ainda, era atravessar de balsa o Rio

Tibagi.

Naquele tempo uma só chuva não enchia o rio de hora para outra: antes bebia quase toda água caída do céu; os troncos cobertos de parasitas eram enormes esponjas sugando a chuva. Toda sombreada, a mata estava quase sempre úmida e, mesmo no tempo seco do inverno, bastava uma chuva para ressuscitar os atoleiros na estrada (PELLEGRINI, 1998, p. 189).

Depois de duas noites na cidade de Assaí, o tempo finalmente permitiu que

o ônibus transitasse pelas estradas ainda enlameadas agora porém, mais

compactas e luzidias. O destino é Londrina, com uma nova recomendação do

irmão marista: - (...) Zoé, tenho algo melhor prá você (...) o colégio Londrinense,

e ele me deu a cartinha de apresentação pro diretor do colégio (...). E foram para

Londrina, com o ônibus enfrentando ainda muitos atoleiros. E lá no colégio

Londrinense ela chega com toda sua “papelada” - Eu sou a professora Zoé e eu

gostaria de falar com o diretor geral (...) me mandou entrar e ele chegou: - bom

dia, não é? Então a senhora é a professora? Sou (...) Ele leu a carta de

recomendação (...) olhou os papéis e falou: A senhora está contratada (...) por 40

horas, ganhando, naquele tempo eu não lembro como era o dinheiro, eu sei que

era seis vezes mais do que eu ganhava; seis vezes mais!

108

É o início de uma jornada que permitiu, à Zoé, condições que a tornariam a

mulher independente e emblemática que é. Assumidamente professora de

francês, sua história nos conta como a identidade pode ser forjada ainda na

infância e que as metamorfoses se dão, talvez, nessa medida, procurando os

contornos para se chegar ao ponto desejado. Os primeiros ensinamentos da mãe

e da igreja passaram por um crivo pessoal, tomaram um rumo próprio e agora,

com poder econômico ela poderia, enfim, defender-se pelo bom trabalho que faria

- Ele me chamou para assistir a reunião de professores e já me apresentou como

professora de francês (...).

A história da colonização de Londrina remete a situações privilegiadas, de

um lado, pela vinda dos ingleses que deram origem ao povoado vendendo lotes a

preços atrativos através da Companhia de Terras Norte do Paraná, e trazendo

elementos de sua cultura que permearam os primeiros tempos, de outro, a cidade

viveu, como toda cidade nascente, momentos de dificuldades estruturais para

firmar-se. Zoé, enfrentou essas dificuldades e trabalhou muito, enquanto a cidade

se desenvolvia. Andou à pé, enfrentou a lama, o escuro, as longas distâncias,

pode-se dizer: cresceu com a cidade; foi pioneira no ensino superior. Foi corajosa

e autodeterminada a construir a sua vida.

A história das mulheres não é só delas, é também da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos (DEL PRIORE, 2012, p. 7)

Esta tese leva o leitor ao século passado e faz ouvir, ver e sentir, através

da narrativa de Zoé, como viveram as mulheres desse período histórico e como

se mantém vivas nos dias de hoje. Para Del Priore (2012, p. 9) “a história das

mulheres serve (...) para fazê-las existir, viver e ser (...)”

Trazer a mãe para Londrina foi o próximo passo e isto se deu na medida

em que Zoé empenhava-se no trabalho de forma séria e competente o que

chamou a atenção do diretor para o fato de ser a mãe também professora com

formação em várias áreas do conhecimento e com os diplomas agora

devidamente revalidados pelas autoridades educacionais brasileiras; e isso

interessava ao Colégio Londrinense. Observa-se uma nova configuração na

relação mãe-filha. Agora é Zoé quem dá o norte para a vida de ambas.

109

Interessante notar que mesmo assim, permanece a posição subalterna da filha

em relação a mãe. Respeito, admiração, medo, tolerância? não se tem essas

respostas pelo relato, mas evidencia-se um “compasso de espera” para o vir a ser

- (...) isso foi na vida como filha, digamos assim, tanto que eu me submeti à

minha mãe (...) nós nos dávamos muito bem mas eu era a sombra dela, não é?

Essa afirmação, cheia de significados e sentidos, dispensa maiores comentários e

reitera a condição de vida de Zoé como ser singular e emblemático, capaz de

sujeitar-se por “obediência” e esperar pelo momento certo para “eclodir” como

sujeito

Ser a sombra da mãe significava não ser ela mesma? E para compor esse

vazio existencial de “não ser”, resta para Zoé, “ser” alguém que só trabalha.

Trabalhando ela era filha e também professora de francês ambas “travestidas”

pela personagem “solteirona.” No silêncio imposto pela obediência, Zoé foi

construindo, aos poucos, o ser, a mulher que haveria um dia de se fazer enxergar

com a força que ela diz ter até hoje e que a faz viva e feliz. Então eu sinto uma

força dentro de mim; uma força que eu recorro à ela quando eu não me sinto bem

(...) eu faço um tipo de meditação (...) eu me concentro e faço força pra chamar

essa energia (...)

Uma vez instaladas na nova cidade, a família agora composta também de

uma moça que, para poder estudar, passou a viver com elas e em troca fazia o

trabalho doméstico. Estabeleceu-se uma relação de afeto de “irmãs” e que durou

até o momento em que surgiu a “verdadeira” Zoé - Foi ela, a Rosa15. que

arrumou toda a mudança (...) naquele tempo vieram de trem e nós ficamos no

pensionato (...) mamãe então lecionava matemática e geografia e nós ficamos no

colégio porque naquele tempo não havia aqui em Londrina um apartamento,

quase não havia nada (...) Mãe e filha, assessoradas em suas necessidades

caseiras pela Rosa, exerceram um importante papel na sociedade nascente:

colocaram seus conhecimentos acadêmicos à serviço da educação formal que

naquela época carecia de profissionais preparados. Com desconforto e sacrifícios

15 Nome alterado para preservar a identidade da pessoa referenciada pela depoente.

110

(não havia casas disponíveis nem transporte), elas efetivamente participaram da

criação e desenvolvimento da cidade de Londrina.

O próximo passo da jornada profissional de Zoé, foi a realização do

concurso público para o magistério no estado do Paraná - (...) eu quero fazer o

concurso (...) eu estava muito bem, mas eu queria assim uma firmeza, saber que

aquilo é meu (...) e fui conversar com o diretor (...) que ele me recebeu de portas

abertas , não vou fazer o concurso sem ele (...) ele olhou bem sério prá mim e

falou: se a senhora reprovar no concurso não tem mais lugar aqui. Esse

posicionamento arbitrário do diretor foi entendido por Zoé como zelo pelos

professores do Colégio, a “menina dos olhos” do seu dirigente - Ele tinha muito

ciúmes dos professores dele, que ele dizia que era o melhor daqui do norte do

Paraná (..) não sei prá ele seria vergonha, talvez, se um professor dele

reprovasse no concurso (...) Ela não se intimidou, inscreveu-se e prestou o

concurso público.

Aprovada, ela seleciona um colégio estadual para atuar em concomitância

com o particular, numa jornada de mais de 40 horas semanais; e ao fazer o relato

desse período a sua memória falha, ela confunde os nomes, os fatos e,

visivelmente sente o peso das lembranças de um tempo de muito trabalho, de

muita dedicação, porém um tempo que lhe possibilitou ser a mulher que hoje, aos

90 anos diz - (...) não tenho do que me arrepender, nem um pingo de tristeza,

tem umas coisas ruins que a gente passou, mas eu não olho, não lembro disso,

tenho respeito pelo passado, tenho; tenho certeza de que fiz o melhor que eu

podia fazer (...)

A narrativa permite compreender o processo de afirmação de Zoé

enquanto sujeito, alicerçado no trabalho, na disciplina e no desejo firme de

conseguir emancipar-se. Para Vieira (2005) os sujeitos livres, ao optarem por

aquilo que desejam, participam ativamente do processo de sua construção,

estabelecendo uma negociação entre o papel do sujeito assujeitado e do livre,

estabelecendo um meio termo nessa atuação e, ao fazerem de sua história um

modelo sui generis , tornam-se pessoas únicas - (...) eu determinei que queria

segurança (...) eu sabia que na velhice eu não haveria nada por mim, não tinha

ninguém que fizesse por mim (...) então não tive esses perfumes o meu foi

111

trabalho, muito prazeroso porque o meu prazer era o trabalho, porque daquilo que

eu ia conquistar alguma coisa me serviria pro futuro como está servindo (...)

Quando questionada sobre quem é? - Eu sou a Zoé; e eu gostaria de ser

quem eu sou porque eu gosto do que fui. Eu gosto do que fui porque eu me

considero uma mulher valente e me sinto feliz! Enfaticamente, ela afirma-se com

sua identidade pessoal, seu nome, a marca que lhe foi imposta pelos pais.

Grande parte da vida é um “dado”; não escolhemos nossos pais, os genes que

herdamos, a formação que recebemos. Com o processo de desenvolvimento, nos

transformamos e nossa identidade pessoal se expressa em inúmeras

personagens. Zoé não é mais unicamente a filha; agora, ela é também professora

de francês, e é importante ressaltar que na fase dos estudos, em Curitiba, a Zoé

filha foi a estudante, a solteirona, a assexuada que enveredou, também, pelo

caminho as artes. Mais uma vez, as experiências infantis buscando continuidade.

A criatividade exercitada através da leitura para “sobreviver” ao abandono, ganha

agora contornos mais concretos - Eu aprendi piano, mamãe me pôs. Então eu

acompanhava os hinos da igreja e regia um coralzinho de alunos, sei lá, eu

gostava, fazia por prazer (...) eu canto pessimamente, sou desafinada e não sei

daonde que eu tirei essa vontade, esse gosto (...)

A casa de Zoé está repleta de quadros pintados por ela. As atividades

artísticas sempre estiveram presentes em sua vida. Formas de evasão?

Realocação dos desejos? - (...) eu não sabia pintar, não tinha técnica nenhuma

(...) mas eu achava bonitas as cores (...). Foi um colega de universidade que

iniciou Zoé no mundo das artes plásticas, ensinamentos que fizeram dela uma

“copista” e que na idade avançada ainda faz parte das suas atividades (...) - eu

me aposentei em 89 e comecei em 92 (...) gosto, aquilo para mim é muito bom;

agora eu não estou mais distinguindo as cores escuras (...). Mesmo com a

limitação visual, o envolvimento com a pintura permanece, e ela adapta-se ao

novo para organizar a sua vida no presente imprimindo, nas suas ações, a sua

história e a sua identidade, pois a arte (...) é um acréscimo do sentimento da vida,

um estimulante para a vida (...) Nietzsche (1888, p. 129)

O trabalho como foco principal e as atividades artísticas como suporte

emocional compuseram a vida de Zoé. Um amalgamento necessário, talvez, para

112

dar conta de todas as formas de expressão negadas, dos afetos recolhidos, das

emoções fechadas por comportas intransponíveis.

A vida relatada por Zoé, desvenda um universo de intensas formas de

realização do potencial feminino: a mulher que espera, que fecha um ciclo da vida

para dar abertura a outro, trabalhando, criando, e indagando pelo sentido da vida

comandada pelos homens - Eu não achava o príncipe, o filho do Czar (...) E ao

romper com o noivo e abrir mão do casamento, ela se disponibiliza para a vida

que considera mais adequada para si - Eu a partir de agora vou cuidar da minha

vida (...) eu foquei na minha profissão, foquei no meu trabalho eu sabia que disso

dependia o resto da minha vida, as outras coisas seriam secundárias (...). E isso

significou viver para o trabalho, realizar-se através dele - como eu estava te

falando foi assim uma decepção muito grande (...) e aí eu me dediquei ao meu

trabalho. Mas a narrativa evidencia também movimentos de procuras, procura

pelo amor, pelo homem que haveria de ser seu. - (...) meu Deus, eu não pedi prá

nascer, tem misericórdia de mim, me manda uma pessoa que me ame muito e

que eu possa amar muito!

113

Capítulo 3 Fase intensas procuras

O individualismo é uma espécie modesta e ainda inconsciente da “vontade de potência”, parece bastar ao indivíduo o “libertar-se” de uma preponderância da sociedade (quer seja o Estado ou a Igreja...). O indivíduo não se coloca em oposição “como pessoa”, mas somente como unidade; representa todas as unidades contra a coletividade (NIETZSCHE, 1978, p. 120)

Esse período da vida de Zoé inicia-se com a morte da mãe e o rompimento

com a igreja até o encontro com o homem sonhado. Há lapsos de memória,

confusão de datas e apenas insinuações do que pudesse ser indicativo dessa

fase liberal de sua vida. Ela não quer falar? Ou o esquecimento de momentos

intensos pode ser uma forma de acomodar os sentimentos?

Em relação a morte da mãe o seu relato é lacônico: - Foi triste? Foi, foi

uma perda! Mas, eu não vivi; eu me enterrei! Eu consegui sair dessa. Essa fala

nos dá uma dimensão do quanto Zoé submeteu-se; e o fez até o limite de suas

forças - (...) tem umas coisas ruins que a gente passou, mas eu não olho, não

lembro disso, tenho respeito pelo passado (...) tenho certeza de que eu fiz o

melhor que eu podia fazer, isso foi na vida como filha, digamos assim, tanto que

eu me submeti à minha mãe (...)

Agora, porém, vê-se o seu discernimento quanto aos fatos: com a morte da

mãe, com o dever de filha cumprido é ela quem dá o tom para a sua vida. E

quando a Rosa [sua quase irmã] quis interferir no seu novo estilo de vida (...) - no

tempo da D. Ana não era assim (...) ela não aceitou (...) espera aí, agora é a

minha vida! A mãe estava morta, fosse como fosse, estava morta e Zoé não

sentiu pena da mãe, não chorou. - Quando eu chegava em casa, depois que a

mamãe faleceu e a Rosa foi embora porque ela não aceitava que eu saísse com

as amigas à noite, essa coisa toda e que eu tinha que ser da igreja mas eu já não

aguentava mais aqueles sermões, não podia aceitar aquilo, minha cabeça não!

Era muita bobagem para minha cabeça (...) Sim, sim, depois que a mamãe

morreu (...) Rompi com a igreja porque se pregam um coisa (...). A fala

114

interrompida dá a sensação de que as ações da igreja divergiam da pregação; e

isso Zoé não mais suportava. É o que Habermas conceitua como identidade pós-

convencional. “A identidade pensada por Habermas é reflexiva para além do

convencionalismo do ‘me’ desenvolvido por Mead, pois tem a capacidade de se

afastar criticamente das instituições e convenções.” (COSTA JUNIOR, 2006, p.

18)

Esse afastamento aparentemente brusco da igreja vinha, segundo a

narrativa, sendo arquitetado por Zoé há algum tempo. O ingresso no ensino

superior e a consequente realização do mestrado a fizeram transitar por um meio

completamente diferente do usual e a sua postura diante da vida foi se alterando

- Mas fiquei um ano na Bahia, né? (...) um ano em São Paulo e lá me abriu mais

um pouco a cabeça. Vi coisas que eu nunca tinha visto, né? (...) fui fazer o

mestrado. A partir de então, o Deus cristão, as regras da igreja e a pressão

materna começaram a não fazer sentido para ela. E Zoé redefine a sua

concepção de Deus - (...) meu Deus não é aquele sentado no trono (...) vigiando

o homem, castigando (...) prá mim é essa energia que rege o universo (...) ser

essa força que nos rege, nós sabemos que são duas correntes: a positiva e a

negativa, não é? Meu Deus é a minha religião hoje. Ela rompe com a igreja, mas,

não com a concepção de uma esfera transcendente e ideal, pois o “seu” Deus

rege o universo e as pessoas.e pode atender o seu pedido: (...) me mande

alguém que me ame muito (...)

Aconteceu então, um salto qualitativo na vida de Zoé. Sem a presença

física da mãe e sem as ameaçadoras “palavras” da bíblia, ela sai em busca de

autonomia: agir conforme os seus desejos responsabilizando-se pelos seus atos.

No entanto, ela não se refere ao estilo de vida que imprimiu ao seu cotidiano,

especialmente nas questões amorosas e sexuais; a sua narrativa versa sobre as

viagens e os passeios com os amigos. Porém, de acordo com duas informantes,

uma ex-aluna e uma amiga, os seus amores ocasionais, buscavam, na verdade,

encontrar o grande amor desejado. Ela assume uma personagem totalmente

diferente. A filha exemplar dá lugar a outra personagem: a mulher licenciosa.

(...) para que todos os instintos, que tinham motivos de permanecer secretos, se desencadeassem como cães selvagens; os mais brutais apetites tiveram de súbito a coragem de se manifestar, tudo parecia justificado (NIETZSCHE, 1978, p. 25)

115

Ela passou a vestir-se de forma exuberante e provocativa, exibindo um

corpo bonito, esguio e bronzeado, com shorts curtos, vestidos decotados, saias

esvoaçantes, enfim tudo o que lhe fora proibido pela mãe e pela igreja. Hoje,

ouvindo esses relatos eu mesma [a pesquisadora] me lembro de vê-la pelas ruas

da cidade exatamente desse modo e, confesso que admirava a beleza e a

exuberância de Zoé, no alto dos seus 45/ 50 anos de idade, na década de 1970.

Uma mulher, sem dúvida emblemática, muito à frente do seu tempo, que com seu

comportamento e suas atitudes, rompeu com as regras e convenções que a

sociedade impunha às mulheres maduras.

Foi nessa fase que eu a conheci (...) fui aluna dela (...) e havia preocupação dos amigos com ela pelo seu comportamento muito liberado para a época: saia sozinha, bebia e muitas vezes meio “altinha” com o álcool (...) falava palavrões [até na sala de aula...] viajava muito (...) só andava com roupa de marca com a etiqueta aparecendo (...) [informante - ex-aluna]

Os relatos das informantes evidenciam que mesmo comportando-se de

forma pouco convencional para a época, Zoé conseguiu manter intacta a sua vida

profissional. Parece que a sua competência e envolvimento com a carreira

universitária a preservaram de qualquer constrangimento que o seu

comportamento fora do ambiente de trabalho lhe pudesse imputar. A sua postura

profissional e sua performance professoral lhe garantiram e preservaram a

admiração e o respeito de alunos e parceiros de trabalho.

Jung (1986, p. 26) nos diz “(...) quando seguimos o caminho da

individuação quando vivemos nossa vida, é preciso também aceitar o erro, sem o

qual a vida não será completa (...)” Essa vivência exacerbada do amor, o

comportamento licencioso trouxeram muito sofrimento, em especial pela

efemeridade dos relacionamentos. E Zoé queria estabilidade amorosa e nessa

busca “insana”, ela abria-se aos relacionamentos sem avaliar a possibilidade de

concretização da relação e as consequências desse tipo de investimento no amor.

Talvez isso explique a sua resistência em falar sobre esses anos de vida que vão

desde a morte da mãe até o encontro do homem com o qual se casaria e viveria

por 25 anos; ela encara esse período como “necessário” pois, conforme sua fala:

Afinal eu não estava enterrada!

116

Segundo Lypovetsky (2000, p. 37) “Na incandescência dos anos 60, as

mulheres passam a acreditar em uma vida sexual sem tabu nem compromisso

profundo, mas, afinal, o resultado é tudo menos desanuviante, a tal ponto o amor

não se beneficia disso. Elas se enganaram de revolução: o sexo desapegado,

sem investimento emocional, talvez convenha aos homens, mas não corresponde

aos desejos profundos das mulheres. - (...) eu já começava a pensar em um

companheiro (...) lembra-se da exigência da mãe: - só se for o filho do Czar da

Rússia (...) mas eu pensava: eu quero uma pessoa que me ame muito e que eu

possa amar muito. E casualmente eu encontrei essa pessoa (...) não tinha assim

um nível de instrução que eu tinha, mas tinha alma. Deus, depois de 10 anos, me

mandou certinho aquela pessoa que eu pedi.

A narrativa conduz a uma realidade dura, do ponto de vista emocional,

quando a espera pelo homem que “seria seu” a faz viver momentos de profunda

solidão quando não estava envolvida com os “amores” ocasionais ou com as

viagens constantes. Tem-se a impressão de que havia um ‘movimento’ de euforia

que gerava depois depressão. Foram anos nessa, diga-se assim, rotina. Veja o

relato de Zoé:

- Eu digo: o caso é que as minhas coisas ninguém, nada me pergunta: você

está bem? Você foi bem nas aulas hoje? Aconteceu alguma coisa de bom ou de

ruim? Conta prá mim! Ninguém me pergunta isso (...) então eu tenho tudo em

casa, tenho tudo de bonito mas nada dessas coisas me pergunta, nada disso me

fala e eu tenho que usufruir do sofrer sozinha! (...) então quando eu voltava das

viagens, porque eu viajava não é? Com excursão ou coisa assim (...) eu me

queixava de que eu era sozinha, e as minhas amigas diziam, não, mas é sozinha,

melhor sozinha, você faz o que você quer ninguém manda em você. Tudo bem,

mas eu digo: eu me sinto só! (Chora). É a manifestação da “estrela solitária”,

personagem que a acompanhou desde sempre e, por certo, a acompanhará por

toda a vida, ora de forma velada, ora expressa nas falas revestidas de solidão e

que o conforto, o poder econômico e a liberdade conquistada, não foram

suficientes para aplacar a angústia e o sofrimento por estar só! Porém, segundo

Critelli (2012, p. 98)

A vida é acompanhada. Ela está cheia de sócios, amigos, parceiros, adversários...Estivemos e estaremos em sua

117

companhia, sustentado posições, desejos, críticas... em comum (...) nenhum desejo, nenhuma doença, nenhum projeto nenhuma impossibilidade ou limite são descobertos, desenhados, experimentados ou descartados por alguém em total solidão (...) a vida é um acontecimento compartilhado.

Zoé tinha a vida que desenhou para si mesma: conforto, saúde, muitos

amigos, liberdade e condições financeiras para viajar e se divertir, porém, nos

momentos de solidão, quando chegava do trabalho ou das constantes viagens o

vazio existencial abatia-se sobre ela. Parece que as mulheres, especificamente,

precisam trabalhar muito para manter as fantasias [sexuais, afetivas] separadas

da realidade da maneira mais clara e limpa possível, e às vezes são necessários

anos de esforço para chegar a esse ponto de discernimento sóbrio. E se Zoé

sentia-se bem preparada para o trabalho intelectual, para as atividades

acadêmicas, ela carecia, porém de habilidade para manejar as dificuldades

psicológicas que o seu estado de solidão trazia.

Assim, é a mulher independente dividida hoje entre seus interesses profissionais e as preocupações de sua vocação sexual, tem dificuldade em encontrar seu equilíbrio; se o assegura é a custa de concessões, de sacrifícios, de acrobacias que exigem dela uma perpétua tensão (BEAUVOIR, 1967, p. 466)

Nos dizeres da psicóloga Carol Gilligan (2010, p. 149) “(...) podemos ter um

entendimento melhor sobre essa necessidade de “ter alguém” (...) parece que a

noção de integridade das mulheres está entrelaçada com a ética do cuidar, de

modo que se ver como mulher é se ver numa relação de conexão” - Então eu

deitava na minha cama e chorava e dizia: meu Deus, eu não pedi prá nascer, tem

misericórdia de mim, me manda uma pessoa que me ame muito! E que eu possa

amar muito! Eu lembro disso e fico emocionada (chora). Durante 10 anos eu pedi

isso (...) mamãe faleceu em 64, não é? Então foi em 74 eu encontrei essa pessoa.

A relação de Zoé com o divino traduz bem a sua formação religiosa e ela,

mesmo que de forma aparentemente não impositiva, coloca “Deus” como seu

sublime assessor para os assuntos amorosos. Ele tem que atender aos seus

anseios, mesmo que demore 10 anos. E Ele atendeu! Afinal Deus não estava

morto, estava apenas distante.

Nesse momento da narrativa, Zoé foca nas viagens, que aconteciam em

grupo e até mesmo sozinha, quando não encontrava companhia. E Camboriú no

118

litoral de Santa Catarina era o seu principal destino. A região de natureza

exuberante e quase “virgem” nos anos 70 representava o ideal de descanso com

glamour dos paranaenses e, em especial dos londrinenses. Porém a distância e

as estradas precárias, eram um empecilho que poucas mulheres se arriscariam a

enfrentar sozinhas.- Em Camboriú eu ia sozinha (...) eu não era casada (...) pois

já havia comprado o apartamento (...) pegava o meu carro em Londrina, saía de

manhã, chagava a tarde em Curitiba, pernoitava lá e no dia seguinte eu levantava

aí pelas 8 horas, sem pressa, tomava meu café, pegava o meu carro e descia prá

Camboriú. E ia tranqüila. Convenhamos, um comportamento nada convencional

para uma mulher sozinha, nos anos 1970. Zoé agia de maneira individualizada -

como um ser singular, sujeito de sua própria existência - afastando-se e

criticando [não aceitava] a socialização convencional que caracterizava a época e

estabelecia regras para a vida das mulheres. Pode-se dizer um comportamento

feminino precursor de futuras convenções.

A narrativa se desloca da juventude para a velhice, faz paradas na infância

e adolescência. É o mundo de uma longeva sendo, por ela mesma explorado,

com reminiscências e um colorido talvez novo, com acontecimentos esquecidos,

outros apontados como sem importância, enfim, a vida se mostrando aos olhos da

ciência, com a verdade de quem a viveu e, por isso mesmo, carregada de

emoção. Camboriú era o seu destino preferido e continua sendo. No penúltimo

encontro falando sobre os seus compromissos para os próximos meses - Em

fevereiro vou para as Thermas Jurema primeiro e depois vou para Camboriú;

quero descansar! O mesmo cenário que acompanhou uma fase da vida em que

Zoé explorava ao máximo a sua liberdade e gosto pela vida

- (...) isso foi na década de 1970. Ah! Eu tinha uns 40 anos, mais né bem?

Mais, mas estava na “flor da idade” exatamente. Eu me sentia como se tivesse 30

anos (...) então quando eu percebo isso, é porque com a atividade que eu tinha,

não é?, a coragem que eu tinha, a vontade que eu tinha e me vejo hoje, então eu

fico triste, não é? (...) apesar de muito concentrada no trabalho (...) eu tive uma

vida, eu acho que uma vida “viva” mesmo, boa, bem vivida (...) eu olho para trás e

não tenho do que me arrepender (diz pausadamente) nem um pingo de tristeza

(...) Essa fala representa muito bem a Zoé, segundo ela mesma: uma mulher

119

forte, valente e com muita vontade de viver. E isso é parte significativa de sua

vida, sua história

Vivemos uma história no meio da história. E a história é o que é em razão das histórias particulares. Daí que entender uma pessoa é abrir a teia de relações da qual ela vem participando desde seu nascimento. E entender os fios e os pontos com que colaborou para a continuidade dessa trama. (CRITELLI, 2012, p. 99)

- (...) eu fui muitas vezes só. Então eu descia prá praia com o meu guarda

sol e a cadeira, sentava ali e eu via as pessoas: avó, netinhos, sobrinhos, e

sempre com gente né? E eu ali sozinha “eu tinha vergonha” tinha vergonha de

não ter ninguém, vergonha no sentido de eu ser só! De ser só. As pessoas são

pessoas, estão com pessoas e eu estou só. Então eu me sentia assim como um

“bólide”. As famílias são constelações (...) eu olho pro céu, eu observo muito isso

(...) o cruzeiro do sul depois o Órion, depois Gêmeos não é? Eu gostava de olhar

isso e na praia me via assim: as constelações com suas estrelas e eu um “bólide”,

eu era uma estrela sozinha, uma estrela cadente, sozinha; Eu estou só. E isso de

vez em quando me doía! Por isso eu tinha vergonha, tinha vergonha de ser só.

Nesses dizeres Zoé expressa de forma pungente a personagem “estrela solitária”,

por assim dizer, o reverso da medalha da mulher forte e autodeterminada: a Zoé

que sofre, que procura e que implora pela ajuda divina. E ela justifica a sua

solidão dizendo:

- Mas eu tinha que ser só, tinha sim, porque a minha decepção com meu

noivo foi muito grande, então eu me concentrei no meu trabalho, eu estava com a

minha mãe eu me sentia protegida por ela. Eu tinha com quem conversar (...) eu

sou muito fechada. Eu sou alegre, eu gosto das pessoas, eu, mas das minhas

coisas pouca gente sabe, só aquelas muito próximas.

Zoé insiste em trazer para a narrativa o seu noivado frustrado, dando a

impressão de que ali reside a confirmação da sua personagem “estrela solitária”.

Não ter se casado com a idade considerada propicia pela sociedade da época,

fixou, por assim dizer, um momento de sua vida “desperdiçado”, um sonho

precocemente abortado. O preço que teve que pagar por estudar, trabalhar e ser

independente. E relembra: - (...) depois que mamãe morreu eu passei a viajar

muito. Então eu vivi quer dizer, depois eu fiz a minha vida. Entende-se aqui fazer

120

a sua vida como mulher, com desejos, motivações, interesses que extrapolam o

mundo do trabalho e o das finanças.

Não tenho do que me arrepender (diz pausadamente) tenho certeza de

que fiz o melhor que eu podia fazer. As palavras de Zoé no decorrer das

entrevistas não deixam dúvidas quanto a prevalência da personagem “filha” em

detrimento de todos os papeis que ela desempenhava: professora, servidora

pública, amiga, cidadã, e principalmente, mulher.

Diante dos acontecimentos interiores, as outras lembranças empalidecem:

viagens, relações humanas, ambiente tudo fica num segundo plano para fazer

sobressair a vivência interior “(...) só posso compreender-me através das

ocorrências interiores. São aquelas que constituem as particularidades da minha

vida e é delas que trata a minha ‘autobiografia’” (JUNG, 1986, p. 9)

E, no mês de fevereiro de 1974…

- Era carnaval (...) não tinha quase ninguém tinha meia dúzia de ‘gatos

pingados’, ninguém pulava, ninguém fazia nada só dançavam um pouco ali, e lá

no fundo do balcão tinha dois senhores eu olhei e achei aquele senhor

interessante (...) ele me cumprimentou (...) e sorriu (...) e nós começamos a

conversar. E, ele prontamente se permitiu “intimidades”: pode me dar um beijo?

Fica a questão: será que o “senhor interessante” já tinha conhecimento da sua

postura de mulher liberada e por isso não se intimidou?

Segundo Zoé o ambiente no clube não lembrava em nada o carnaval, onde

as emoções são exacerbadas pelo calor da música e das pessoas dançando

freneticamente. Assim, esse excesso de intimidade deixa no “ar” a possibilidade

de ele ter conhecimento prévio de que ela era uma mulher diferente das demais;

seu comportamento permitia essa aproximação repentina e sem “pudores” - (...) -

pode me dar um beijo? E ela: “Imagina! Eu tenho posição na sociedade, sou

pessoa conhecida, eu não sou mulher de aventura. Eu quero um companheiro,

realmente que quero um companheiro porque eu sou só, mas eu quero uma coisa

minha, minha. Também a reação de Zoé foi direta, na defensiva e expressando,

num encontro fortuito, o seu mais recôndito desejo: - (...) me dê alguém que me

ame muito (...)

121

O sonho de casar-se, além de estar relacionado fortemente com a história

da mulher na formação da sociedade brasileira tem um componente psicológico

importante; casar, ainda significa em nossa sociedade, “ser escolhida” por alguém

e isso “provará sem dúvida alguma a todo mundo, principalmente a mim, que sou

preciosa a ponto de ter sido escolhida para sempre por alguém” (Gilbert, 2010)

- E aí ele começou a falar eu sou só, eu também sou só. Digo: não você

não é só, eu vi na mão dele um sinal mais branco na mão da aliança, digo: mas

você é casado! Diz ele: mas estou separado do coração há 30 anos. A gente não

pode acreditar nas coisas né bem? (...) e acabou de contar a história das duas até

as seis da manhã. (...) - dei meu telefone prá ele (...) digo o homem é casado

que tinha três filhos grandes já adultos né? O que é que vou fazer, vou casar?

Mesmo sabendo-o casado e pai de três filhos, e tendo afirmado que “não

se pode acreditar nessas coisas” ela não hesitou em propiciar novas

possibilidades de encontro. Daí pode-se inferir que racionalmente ela sabia que a

sua condição de “homem casado” traria dificuldade para a concretização desse

caso; mas na sua subjetividade, emocionalmente, ela acreditou e deu abertura

para isso. Assim, dá-se inicio a fase da personagem amante, com todos os

“mimos” e promessas típicas dessa condição.

- (...) naquele sábado ele me telefonou (...) eu recebi um buquê de rosas

dedicado prá mim. E depois ele telefonou de novo e disse: - eu posso ir na sua

casa? Bom, na minha casa podia. Então ele foi e aí nós conversamos. Bom,

depois ele ficou e a cada fim de semana, cada domingo ele me mandava um

buquê enorme de rosas; três anos e nove meses recebi todos os domingos flores,

flores do Fofo16, não é? (...) e assim foi passando, foi passando (...)

E a história de Zoé parece trilhar o mesmo caminho da mãe. Também ela

encontra uma moça carente que queria estudar e que estava submetendo-se a

um grande sacrifício para isso - (...) eu tinha uma aluna (...) muito participativa,

muito alegre (...) e eu sabia que essa menina negra que ela precisava, que ela

queria entrar num convento prá poder estudar (...) pensei comigo: não pode, essa

16 Apelido carinhoso pelo qual Zoé designava seu companheiro.

122

menina não serve prá freira, não serve. Ela está fazendo isso prá poder estudar.

Então eu a chamei assim no fim do ano, digo: você ficaria comigo? Ela me olhou

meio assustada, eu sempre fui agradável, mas enérgica. A coisa é como é. Digo:

pensa, pensa (...) daí você poderia fazer a universidade. Desse episódio surge a

personagem mãe adotiva. Mãe, Confidente, cúmplice na história de amor que

começava a se tornar realidade.

- Aí eu chamei a Ida17 e falei: Ida, eu tenho uma pessoa e eu gostaria que

você entendesse isso que eu sou uma pessoa conhecida que tenho esse direito,

mas não devo me expor, e que você fique quieta (...) então ele veio, conheceu a

Ida. Falei: essa é minha filha e se cumprimentaram e a energia deles se cruzou,

deu certo (...) e nós comíamos juntos, é como se fosse uma família, já pensou?

Cada um diferente do outro (risos). Uma nórdica, um italiano e uma afro-

descendente brasileira; assim se configurou a família de Zoé por vários anos. E

segundo relato, eles estabeleceram uma relação de companheirismo e

cumplicidade, com a discrição da Ida, o envolvimento do casal seguiu um rumo

tranqüilo. De forma idêntica à conduta da mãe, em relação à Rosa, sua “quase

irmã”, Zoé encaminhou a sua filha adotiva para uma vida profissional; ela mudou-

se para o nordeste onde fez concurso para docência e foi aprovada. Elas matem

contato até hoje.

Já em relação às questões econômico-financeiras, Zoé adotou uma

postura completamente diferente da mãe e aos poucos foi comprando imóveis

que depois vendidos ou trocados, permitiram a composição de uma condição

econômica segura. - Mamãe nunca quis comprar nada (...) ela dizia assim: a

gente morre e fica pro Estado? Então a gente aluga, mora numa coisa melhor (...)

e vamos usufruir do nosso trabalho, do nosso dinheiro, vamos viajar, vamos andar

bem ajeitadas, então era essa a filosofia dela. Mas eu sempre pensei num teto,

morar embaixo de um teto que era meu.

Esse é um comportamento que distingue, com certeza, Zoé do modelo

feminino dos anos 1960/70, fazendo dela uma mulher à frente do seu tempo,

17 Nome alterado para preservar a identidade da pessoa referenciada pela depoente.

123

emblemática, portanto, pois, segundo Lipovestsky (2000, p. 225) “[...] o trabalho

em nossos dias, constrói mais a identidade social das mulheres do que

antigamente, quando apenas os papeis de mãe e esposa eram socialmente

legítimos.”

E com essa filosofia, Zoé investe numa cidade promissora, em locais

diferenciados, numa demonstração de “quem sabe o que está fazendo”. Afinal a

cidade cresceria de forma a abranger todas as regiões: Jardim do Sol (zona

oeste), Rua Samuel Moura e Avenida Maringá, hoje um local privilegiado e

valorizado na região central da cidade de Londrina.

- Eu tinha comprado um terreninho lá no Jardim do Sol (...) isso tudo depois

que a mamãe faleceu. Mais dois terrenos: um aqui onde é mais ou menos a Rua

Samuel Moura e outro aqui na Avenida Maringá (...) então eu pensei em vou

vender o meu terreninho do Jardim do Sol e vou dar de entrada (...) E Zoé

comprou o seu primeiro apartamento em Londrina – (...) tinha dois quartos (...)

uma cozinha pequena, uma área de serviço uma sala conjugada e, mas prá mim

era ótimo. Prédio novo, não é? Investe também em um imóvel no litoral mais

badalado na época: Camboriú, em Santa Catarina, hoje um dos endereços mais

caros do país. Esse apartamento é ainda propriedade dela e destino de suas

férias de final de ano.

O atual endereço na Rua Santos, considerado, juntamente com a Rua Belo

Horizonte, Av. Higienópolis e adjacências, os “Jardins” de Londrina, numa

imitação do privilegiado e conhecido local da capital paulista. - (...) e com esta

vista maravilhosa que eu tinha e agora subindo esse prédio (...) eu perdi a minha

vista! Mas veja trinta e dois anos depois (...)

Da janela de sua sala de estar Zoé avistava as cidades vizinhas: Rolândia

e Arapongas, além de encostas verdes e lavouras de café. Hoje essa vista limita-

se a uma pequena “nesga” entre os prédios vizinhos; Mas ela reconhece que foi

um privilégio por um bom tempo e se satisfaz com o que ainda resta - (...) eu

tenho aqui que bate sol (...) a sala vai ficar mais escura, mas vou ter um

pedacinho ali da sala, mas a cozinha e a área de serviço vai ter sol de manhã,

então está ótimo!”

124

Esse espaço econômico-financeiro, com certeza, deu à ela a possibilidade

ou até mesmo um ‘referendum’ para assumir o seu caso de amor com um homem

simples, de posses inferiores à sua, com escolaridade mínima, enfim um homem

que ela poderia manter, moldar a seu gosto e que, em troca lhe daria o estatuto

de “casada.” Condição essa que veio de um desfecho que ela considera

“engraçado’ quando na verdade é sério, pois envolve a vida de pessoas, inclusive

a sua. “Bom, e num dia de natal, 1984? (pausa) acho que sim (...) então eu já

estava assim 3, 4 anos com ele (...) depois que eu encontrei com ele, tudo bem,

mas doía muito porque, quando a gente se despedia ele chorava e eu chorava.

Então eu tinha aquele amor que eu tinha pedido, mas ele não era meu. Isso doía

muito! (...) a gente lembra disso e vem uma saudade!

Para ficarem juntos, o Fofo dizia em casa que tinha compromissos em

cidades vizinhas e com a conivência da Ida eles se encontravam na casa de Zoé

e passavam muito tempo juntos. Até que um dia, alguém conheceu o carro

estacionado numa rua por um tempo muito longo e, preocupado (a) ligou para a

família avisando - Então, na véspera do natal, no dia 24, ele almoçou em casa e

deixou o carro estacionado aqui na Rua Paranaguá na frente de uma casa que

dava lateral para a Rua Mossoró (...) e quando ele saiu nós fomos prá janela prá

ver ele sair, se despedir, né? (...) tinha duas mulheres lá na frente do carro dele e

aí nós começamos a achar graça, achar graça porque será que são elas? A

mulher dele uma filha, então estavam lá (...). O relato faz vir à tona a cena do

sacadão, na casa paterna, com a mulher bonita que Zoé admirava e que era a

amante do pai. Agora, ela se posiciona na janela, com a filha adotiva e acha graça

da situação. Revanche?

Esse comportamento “frio” de Zoé diante de uma situação complicada e

geradora de sérios conflitos familiares estaria enraizado na situação idêntica que

ela vivenciou, ainda que indiretamente, com a separação dos pais? Quando

criança, ela estabeleceu uma certa “identificação” com a bela mulher da sacada, a

amante do seu pai. Agora, ela assume esse papel da “janela” do seu

apartamento? O relato não dá conta de desvendar essa intrincada situação, mas

referenda a condição até certo ponto ‘confortável’ de Zoé, diante dos

acontecimentos - (...) porque ele passou o dia inteiro de véspera do natal fora (...)

telefonaram avisando que havia um carro parado na frente da casa (...) já desde

125

manhã (...) então elas foram ver (...) a mulher e a filha estavam desconfiadas, eu

acho (...) E aí aquela véspera de natal prá eles foi um inferno! (...) no dia de natal

foi um inferno! Prá eles. Isso não me dói (...)

Sem dor, mas sabendo do sofrimento da família, Zoé espera pelos

acontecimentos e avalia assim o comportamento seu e da filha confidente -

Então nós achamos engraçado, será quem? Será o que? (...) parece criança né

bem? Parece criança fazendo arte e dando risada da arte que fez (...) então foi

um inferno prá eles. Na segunda feira o telefone tocou, era ele (...) estou num

hotel. Então vem prá cá! Não vou ficar uns 3 ou 4 dias no hotel. Vem prá casa!

Não vou ficar no hotel (...) eu digo: então tá bom, você que sabe.

Foi talvez o tempo necessário para o Fofo se recompor do desastre familiar

em que se meteu. Pessoas próximas da família afirmam ter presenciado algumas

vezes a tristeza desse homem, já doente, por ter deixado a casa, os filhos, enfim

por ter se deixado levar pelos arroubos da paixão. A estabilidade afetiva quando

rompida abruptamente, pode deixar sequelas que se fazem presentes em

momentos de doença e debilidade emocional. As informantes dão conta de que a

vida em família era “aparentemente” feliz e que a separação trouxe muito

sofrimento - Ele depois me contou não é? Me contou que fizeram uma reunião

dos filhos com a mulher e que ela brigando com ele, brigando com ele (...) ele

tinha me dito que os parentes dele de Ribeirão Claro, ele já tinha dito prá eles que

iria se separar, mas ele queria primeiro deixar os filhos se formarem (...) É muito

pesada viu!, então deixa eu acalmar que a coisa vem pesada!

A narrativa traz informações desse episódio ora como ‘pesado’ ora como

‘hilário’. Há um misto de dor e êxtase diante do desejo realizado – alguém que me

ame muito e que eu ame muito também – e a derrocada de uma família, ainda

que em desarmonia - Mas isso aí não é difícil prá mim, foi engraçado! E o

desenrolar disso é que foi sofrimento? Não posso dizer sofrimento (...) eu tinha

prazer de estar com ele (...) havia uma troca, e quando a gente se despedia,

então eu chorava e ele chorava. Nós não queríamos nos separar. Não queria que

ele fosse embora, porque eu achava que ele era meu, mas não era meu! E isso

que era pesado prá mim (...) e assim ficamos 3 anos e 9 meses (...) e quando foi

aquela despedida de véspera de natal (...) achei aquilo engraçado, achei

simpático (...)

126

Segundo Zoé, houve uma separação radical com a família, com os filhos -

Agora, durante esses 10 anos, no aniversário dele ou no natal, ele sempre

esperava pelo menos um telefonema, diz ele: nem me telefonam aí a gente se

abraçava e os dois choravam juntos e eu sentia realmente um pai que o filho

desprezou. Por que? (...) eles não sabiam o convívio lá, as coisas como eram?

Esse foi, talvez, o período mais rico e intenso da vida de Zoé. O relato

evidencia a construção de uma nova etapa alicerçada num emaranhado de

emoções conflitantes: amor, desprezo pela dor do outro, sofrimento e alegria,

numa manifestação humana das mais complexas. Ela parece refazer [mesmo que

não fale disso] os afetos e desafetos da infância e adolescência, misturando

papéis: (...) parece criança, né bem? Ao mesmo tempo em que analisa

objetivamente a situação, reconhecendo um casamento falido e tomando a

iniciativa para acomodar as coisas: (...) estou num hotel. Então vem prá cá!

Reconhecendo também a situação difícil da família (...) aquela véspera de natal

prá eles foi um inferno! Inferno para a família e o inicio de uma nova vida para

Zoé: a concretização do seu sonho de amor. A procura pelo homem que haveria

de ser seu, havia acabado.

127

Capítulo 4 Fase felizes encontros

Quando a gente só tem dois minutos para dizer adeus a quem mais ama no mundo e não sabe quando vai ver de novo, é como se o esforço de dizer e fazer e combinar tudo ao mesmo tempo provocasse um engarrafamento (GILBERT, 2010. P.29)

Em 1870, Benjamim Disrael, numa carta a Louise, filha da Rainha Vitória,

cumprimenta-a pelo noivado assim: Não há risco maior que o matrimônio. Mas

nada é mais feliz do que um casamento feliz (GILBERT, 2010). E para Zoé, o

casamento representou a conquista, talvez, mais importante da sua vida - E nós

dois tivemos uma vida assim muito feliz! Depois compramos um sitio (...) uma

propriedade rural pequena, depois (...) uma parte de um outro sitio e depois ele

comprou os fundos de uma parte de uma fazenda. Então ficaram assim 22

alqueires mais ou menos, um sitio assim gostoso.

Zoé assume a personagem esposa e estava feliz porque sabia ser

indispensável na vida do marido; ela agora tinha um parceiro e estavam

construindo, juntos, um mundo particular e isso significou para ela a realização de

um sonho, algo que, por mais que fosse desejado, ela sabia, ser quase

impossível. Afinal ela já contava com mais de 50 anos de vida!

A narrativa dessa fase focaliza de forma especial a relação marido-mulher

onde fica evidente o direcionamento de Zoé aos projetos que foram idealizados e

concretizados. E já nos primeiros anos de casamento, a prevalência de Zoé fez-

se sentir. As decisões, muito embora, aparentassem “acordos”, nas falas ela

deixa evidente o seu poder: - Ele disse: vamos fazer um rancho prá gente vir fim

de semana, digo rancho não, quero uma casa, eu trabalho a semana inteira e

quero uma casa boa! Bem, porque quem fez a planta da casa fui eu (...) e

fizemos uma casa boa, fizemos uma piscina (...) o material nós compramos

durante uns dois anos e íamos deixando nas lojas (...) e no segundo anos fomos

construir (...)

O seu projeto de casa boa incluía as questões estéticas que ela

desenvolvera desde cedo, através da pintura, da música da literatura; condição

128

essa que não era compartilhada pelo companheiro já que o mesmo tivera uma

vida simples, de poucos estudos e de trabalho braçal “Ele tinha o quarto ano

primário da década de 30 (...) trabalhava no comércio, ele foi ajudante no

comércio, foi menino de entrega (...) e fez uma coisa prá ele, comércio também,

um armazém (...) casou com uma professora de curso primário, teve filhos mas eu

digo: sempre que eu vi nele uma pessoa com alma; não tinha instrução (...) mas

ele aprendeu com a vida (...)”

E Zoé encontrou um modo, diga-se, simpático, de iniciar o marido no

mundo do bom gosto e do bem viver: as viagens. Entre as idas e vindas para o

sítio nos finais de semana e o trabalho, ela organizou viagens de modo a

introduzir gradativamente o companheiro no mundo que ela bem conhecia e

gostava. Pronta a casa, restava o jardim que ela tinha em mente - (...) fizemos

uma casa boa eu amava. Então aí eu falei pro Fofo nós vamos fazer o seguinte

(...) vamos plantar, plantar ciprestes, pinhos, plantar e fazer uma coisa bonita,

fazer uma mata aqui e ele disse: - não Fofa, não vamos fazer isso não porque tira

o pasto do gado, digo: não mas o gado fica lá deixa a gente se proteger, fica mais

bonito (...) ele meio que não queria mas numa ocasião nós fomos prá Gramado.

Eu já conhecia Gramado, então eu fui especialmente prá mostrar prá ele como é

bonito uma coisa bem cuidada, bem protegida (...) bem e então eu o convenci (...)

E, nessa jornada de deixar a casa à sua vontade, Zoé não economizou

esforços; ela mesma, com a disposição que lhe era peculiar, empreendeu-se no

trabalho braçal e conforme a narrativa isso acrescentava “sabor” ao

relacionamento - (...) vamos fazer em volta da nossa casa gramar, grama, mas

eu quero da grama curitibana (...) e como crescia muito mato, tinha semente que

vinha do pasto (...) e começou a invadir. Eu então punha um short, uma bermuda,

uma camiseta sentava no chão e comprei nessas casas que vendem objetos prá

jardim e comprei uma porção de pazinhas e sentava naquela grama ali tirando;

aquilo prá mim era um relaxamento, uma coisa maravilhosa e ele vinha - mas

você está sentada aí ainda? Digo: tô e ele - encomenda foi melhor do que o

pedido. Ele não imaginava que eu ia sujar na terra, sujar a mão de terra, não é?

Mas aquilo prá mim era muito prazeroso.

Realmente, atividades que não condiziam com o seu “status” de mulher

elegante, culta e de hábitos refinados. Pode-se dizer uma demonstração pura de

129

amor e afeto pela nova vida conquistada, em que o mundo do conhecimento, da

cultura, do poder econômico, dava lugar ao simples, ao lúdico o que a aproximava

ainda mais do “seu homem”. É essa possibilidade de ser e deixar de ser que

Cora Coralina expõe em versos inquietantes:

Talvez por tudo isso e muito mais Sinta dentro de mim, no fundo dos meus reservatórios secretos, Um vago desejo de analfabetismo (CORA CORALINA, 1998, p. 73-76)

Ou seja, a mulher quando encontra o desejado, é capaz de fazer-se outra,

de metamorfosear-se em alguém que seja mais condizente com as características

do momento que está sendo vivido. Zoé, meio que regrediu em seus

conhecimentos acadêmicos, assemelhou-se ao “seu homem” enquanto sentada

no chão, usando as mãos, dava vida ao projeto de uma casa que além de boa

fosse esteticamente agradável. Com simplicidade, poeticamente “Um vago desejo

de analfabetismo” ela veio, segundo o Fofo: melhor do que a encomenda!

Com Zoé no comando, foi construído um projeto comum; a estrela solitária

enfim encontrou eco para as suas prosaicas necessidades cotidianas: ter com

quem conversar e dividir a vida. Alguém para lhe perguntar: “Você está bem?”

“aconteceu algo de bom hoje?” Para uma mulher que viveu tanto quanto Zoé, a

vida possibilita contradições e mistérios; questões em que o não dito cala mais

profundamente. Ela estava feliz, sentia-se, enfim uma mulher aceita socialmente

sem que para isso fosse necessário o uso de atributos intelectuais. Ela era

apenas uma mulher casada - Por isso é que quando me aposentei; eu ainda

fiquei trabalhando por 10 anos casada não é? Então quando me aposentei aí eu

disse: - agora eu vou fazer nada! Fazer o que não fiz nunca: comer e não fazer

nada, daí então engordei, passei prá 93 kg; hoje eu tenho 64. Mas ele achava

ótimo, italiano gosta de mulher gorda né? (risos) eu acho que sim.

O encantamento de Zoé pelo sitio fica evidente no seu semblante,

enquanto a memória alimenta as lembranças - (...) fizemos aquele gramado

bonito, plantei no meio essa chuva de ouro, deste lado ciprestes, eucaliptos (...)

folhagens coloridas eram vermelha, era vede com vermelho (...) então nós

cercamos com alambrado e eu (..) plantei azaleias, elas cresceram por cima do

alambrado e aquilo floria e aquilo prá mim era o paraíso e prá ele eram dois

130

paraísos, o gado; Começamos com o ‘pé duro’ e depois fomos com a vaca de

leite (...) tivemos que fazer um galpão, comprar trator (...) compramos também

aquele tirador de leite, não sei bem, é ‘vaca mecânica’

Será que quanto mais instruída for a mulher casada, mais dinheiro ganhar,

mais tarde se casar, menos filhos tiver e mais o marido ajudar nos afazeres,

melhor será a qualidade de vida que terá no casamento? Assim foi com Zoé: ela,

uma mulher instruída, madura, com estabilidade financeira, juntamente com o seu

Fofo firmaram contratos de relacionamento em que constava divisão do trabalho,

de acordo com as habilidades de cada um e assim construíram um lar e uma vida

a dois - (...) nós pagávamos para ter o sitio mas aquilo era tão prazeroso que a

gente nem ligava. Nós tínhamos três empregados registrados e o leite (...) não

pagava nossos gastos, não pagava os empregados nem tudo o que precisava (...)

mas aquilo era tão prazeroso que, deixa prá lá! Mais valia o gosto (risos)

Com o falecimento da primeira esposa, o casamento de Zoé foi oficializado,

e isso possibilitou certa aproximação com um dos filhos do companheiro; o sitio,

com as suas “delícias” o conforto, a descontração, atraiu a atenção desse filho

que passou a frequentar a casa com a sua família. Contato esse apreciado por

Zoé que disse sempre ter-se mostrado aberta a aproximação - (...) e esse filho

dele (...) que morava em Curitiba então ele ia com a família, a esposa e os dois

filhos pro sitio (...) então ele gostava desse filho o único que se aproximou.

Quando nós íamos para Camboriú, a gente passava na casa dele, em Curitiba

também, pernoitava lá e assim foi bom, muito bom (...) e ele estava feliz e

passamos né, passamos 22 anos praticamente, agora nos últimos anos, no ano

em que ele já estava...bom eu tenho mais coisa prá falar disso, mas era muito

bom (...)”

Há paixão no relato de Zoé, mas sem nostalgia; são lembranças que

afloram e mexem com ela de tal modo que ao olhá-la eu vejo uma mulher

rejuvenescida: olhos azuis e brilhantes, corpo ereto, gestos elegantes. Não há

tristeza em seu relato, apenas saudade. Foi segundo a depoente a época mais

feliz de sua vida. Feliz, certamente porque tinha agora uma casa de família, tinha

um marido e, por mais desejado que tivesse sido, ela sabia o quão ousado era o

seu sonho de ter essas coisas na vida. A narrativa retorna aos tempos de moradia

em pensões, pensionatos, casas alheias, e agora esse pequeno paraíso - O sitio

131

ficava em São Jerônimo da Serra, 90 km de Londrina, mas era muito bonito,

passava por Ventania, na estrada antiga prá Curitiba e a vista é linda, linda!

Aquela vista deslumbrante (...) e assim a gente passou, foram os dias mais felizes

da minha vida.

O Fofo não era um homem que a mãe de Zoé aprovaria, afinal ele não era

o filho do Czar montado num cavalo branco; era rude, sem instrução e muito

menos rico, mas era bonito e trabalhador; e era de outra mulher, tinha já uma

família. Será que, de fato, a vida se repete? Antes abandonada pelo pai ela agora

se apossa do pai de alguém? Ou terá ela se disponibilizado de tal forma ao amor

que ele veio pura e simplesmente, sem exigências? Ela acredita que foi a sua

abertura ao amor é que lhe trouxe o homem que afinal, bem ou mal, seria dela,

mas, na condição de amante ela sofria - (...) aquilo doía, porque ele não era meu”

Zoé era culta, instruída, viajada e conseguira com o seu trabalho adquirir

um patrimônio respeitável para uma mulher sozinha nos anos 1970. Segundo

Gilbert (2010) dá para contar nos dedos mulheres que conseguiram ter um

dinheiro só seu: poder econômico. E, com esse poder ela toma para si a tarefa de

apresentar ao marido as belezas do mundo, numa tentativa, talvez de suprir a

defasagem escolar e colocá-lo mais próximo da sua realidade, através das

viagens. Um novo mundo, novas experiências com um sabor especial, a

cumplicidade amorosa - (...) depois que eu me aposentei nós começamos a

viajar. Ele não conhecia nada (...) e eu sempre gostei de viajar, eu antes de casar

eu fui duas vezes prá Europa, passei por Marrocos (...) eu ia em grupo porque

acho mais cômodo (...) eu já sou mais comodista, eu prefiro ter um esquema feito

(...) não vou me preocupar com nada e vou usufruir daquilo que eu vou ver, é isso

que eu quero!

Com roteiros bem pensados ela vai aos poucos inserindo o companheiro

numa vida que provavelmente ele nunca havia imaginado ter. Numa reunião

social, alguém próximo do Fofo, ao saber sobre o trabalho que eu vinha

desenvolvendo me disse que depois do envolvimento com Zoé, ele tinha mudado

muito e para melhor, afirmando que nunca o vira tão feliz e bem cuidado como

quando passou a viver com ela - Então eu comecei por Foz do Iguaçu e ele

gostou (...) depois nós viajamos prá Cancun e prá ele foi uma outra visão de

mundo, coisa totalmente diferente e ele se encantou.

132

Foram inúmeras viagens que ambos intercalavam com as atividades do

sítio com Zoé sempre à frente decidindo tudo; era como se fosse uma mãe

orientando o seu rebento, colocando-o em contato com o mundo. Sem ela saber,

o tempo urgia, pois a vida preparava uma ‘armadilha’ sem volta para o casal -

(...) eu acho que fomos pro Canadá, Estados Unidos, fomos pro México e depois

fizemos uma viagem enorme: de novo voltamos para os Estados Unidos na

Califórnia e depois nós pegamos um avião e fomos prá China, pro Japão, fomos

prá Singapura, fomos prá Hong Kong, fomos prá Bali, então foi assim uma viagem

de 30 dias “maravilhosa” e ele era uma pessoa que não era assim de arte (...).

Terá sido demais para ele? Zoé pecou pelo excesso? Como essa imensidão de

novas terras, novos costumes, novos sabores, novos aromas; como tudo isso

acometeu o homem simples, pouco letrado que aprendeu com a vida de trabalho,

de “alma boa”? como?

Guardadas as devidas precauções em casos de doenças graves, a

narrativa dá conta de um desacerto de sensações e emoções - Então acontece

que ele começou a se sentir meio estranho. Ele dizia prá mim: Fofa eu tô bicho

tonto, depois que nós voltamos da viagem ao Japão (...) foi a última viagem que

nós fizemos (...) Fofa eu tô bicho tonto. Eu digo: mas eu não entendo bicho tonto!

Não sei, achava que era brincadeira dele não é?(...) Fofa essa viagem pro Japão

me confundiu a cabeça, eu acho que era muita coisa de uma vez prá uma pessoa

já de certa idade, ele era três anos mais velho que eu (...)

A partir dessa aventura “maravilhosa” por extensas partes do mundo, a

vida do casal passa por transformações profundas advindas de um mal que Zoé

sequer desconfiava existir. Ela ouvira falar de “caduquice” de “coisa de velho”,

mas o que era isso? Como pode uma pessoa, sem mais nem menos, ficar assim?

- (...) e a coisa foi avançando, avançando (...) quando ele dirigia eu percebia que

ele não tinha segurança (...) Alguém - indicou um médico e começou a trabalhar

com o Fofo mas eu achava que não adiantava nada, não gostei! (...) Até que

chegou num ponto que já não tinha mais condições de andar, dificuldade de falar

(...)

Zoé relata como foi a descoberta de que o marido estava seriamente

comprometido - (...) uma vez nós íamos para Camboriú (...) foi nessa ocasião

que eu acordei e que tive um desmaio de tanto susto! Nós subimos e na parede

133

lateral da entrada do prédio tem um espelho (...) subimos pro apartamento (...) ele

me disse: fofa eu vi o G, G era irmão dele (...) eu digo: não bem o G não está

aqui. Não Fofa eu vi (...) aí eu desci com ele e quando nós saímos do elevador e

parou em frente do espelho e começou a chamar pensando que fosse o irmão. Eu

subi e chorei tanto, tanto foi momento assim que “o bicho pegou”.

Procurando ressaltar a vida cheia de altos e baixos que se misturavam com

a felicidade conjugal, Zoé se lembra de um episódio que traz reflexões sobre a

vida e o casamento como um caminho apinhado de enigmas em todas as

direções e que não podem servir de amparo para conclusões levianas. O seu

casamento foi resultado de muito sofrimento e tensões vivenciadas por muitos.

Isso era fato incontestável - nós fomos a um casamento (...) as famílias eram

muito amigas (...) então fomos prá festa eu arrumada e o Fofo também era um

homem bonito, ele dizia: nós somos o casal 20 de Londrina. Ele gostava de estar

bem e eu também gostava de me arrumar (...) então ele viu o filho que nunca nos

falou (...) vamos cumprimentar o P e nós fomos e ele virou as costas para o pai

(...) aquilo prá mim foi uma punhalada, digo: como é que um filho pode fazer isso

com o pai? (se emociona) o pai tá feliz! o pai tá bonito! o pai está bem! não

querendo ser grosseira “descascou” (silêncio prolongado) você imagina o

sofrimento desse pai (...)

Nesse ponto da narrativa repleto de emoções, veio a necessidade de

concretizar, de certa forma o dito, o revelado. Assim, ao término do encontro, Zoé

mostrou-me inúmeras fotos: dos seus parentes e amigos lá da Lituânia, cenas

lindíssimas e pessoas muito bem arrumadas. E do sítio representando

exatamente o que ela havia relatado: a casa confortável ladeada por um imenso

gramado repleto de flores, ciprestes e eucaliptos; a piscina, os amigos reunidos e

um enorme cão fila que ela até então não havia mencionado. Seria talvez uma

reminiscência da infância? - (...) um cachorro assim grande branco (...) Ela

pintou um quadro com a fachada da casa numa perspectiva realista e que hoje

fica no hall de entrada do seu apartamento. Inúmeras outras telas estão

decorando as paredes da sala, do escritório e dos quartos. Zoé é uma artista

plástica, uma copista, segundo ela.

Segue, porém o relato da doença dolorosa o Mal de Alzheimer. Aquele

homem bonito, forte, vigoroso, de ‘alma boa’ definhou de tal maneira que para

134

Zoé vê-lo naquele estado redundou em enorme sofrimento. O seu projeto de vida,

o mais genuíno, ruía a olhos vistos e ela tão corajosa, energizadora, confiante

nada pode fazer. - (...) então, eu tive que interná-lo (...) ele ficou mais ou menos 1

ano e seis meses nessa clínica geriátrica, e era na ocasião a melhor de Londrina.

E eu sei lá, não era realmente grande coisa, mas era o único lugar que eu podia

deixá-lo e saber que ele estava sendo atendido. Eu ia umas duas vezes por dia

(...) às vezes ele me reconhecia, às vezes não e isso prá mim foi muito doloroso

(...)

(...) - eu não entendia o que era Alzheimer (...) depois eu comecei a

entender e assistia as reuniões (...) umas palestras para as pessoas que têm,

para as famílias que tem pessoas com Alzheimer, eu assistia aquilo por

desencargo de consciência (...) e foi realmente muito doloroso. E o dele (...) na

minha concepção ele estava em outro patamar (...)

Com a doença e com a morte do marido, Zoé inicia a jornada de volta ao

mundo da estrela solitária; o sitio agora não fazia mais sentido: as azaleias, os

ciprestes, os eucaliptos canadenses, a casa dos sonhos, nada mais interessava a

Zoé. Sem herdeiros, sem ter para quem deixar aquele patrimônio ela resolve

vendê-lo e por 7 anos ela se vê enredada numa negociata cheia de artimanhas -

(...) nós íamos vender o sítio porque eu não tenho entendimento prá administrar

um sítio, não conheço a lida não sei nada, então conseguimos comprador lá em

São Jerônimo (...) e acertamos isso prá ser pago em várias parcelas e o caso é

que as primeiras parcelas foram pagas certinho e depois começou a falhar (...)

digo: eu vou contratar um advogado (...) no começo foi tudo bem, as parcelas

vinham certinho, depois então começaram a falhar (...) eu ligava prá ele, o

negócio esta assim dessa forma, não é? Não tá legal, não tá como a gente havia

combinado (...)

Num gesto de generosidade Zoé entregou a casa mobiliada, incluindo

pequenas preciosidades que ela mesma havia feito: tapetes, quadros, roupas de

cama, enfim, coisas que para ela não seriam necessárias já que ela tinha o

apartamento montado em Londrina - (...) e como eu entreguei a casa (...) então

eu deixei o quarto com os móveis todos: armário embutido e cama e na sala

deixei um quadro grande que eu havia bordado (...) a senhora me dá isso? Dô,

dô, deixei inclusiva o balcão com a televisão (...) deixei praticamente mobiliada a

135

sala, a sala de jantar e a cozinha (...) eu sou assim uma pessoa de muito boa fé.

Eu acredito. Eu faço de coração, prá mim eu não preciso então fica prá quem está

precisando (...)

Nesse momento da narrativa Zoé fica bastante confusa e conta o

envolvimento do advogado também com a questão do seu testamento, onde ela

deixa seus bens para as instituições que a ampararam aqui no Brasil. - Então um

dia ele veio aqui e disse: olha Zoé, seria interessante você dar o seu apartamento

antes de você “encantar” como ele dizia (...) você faz a doação em vida e você

tem o usufruto e eu fiquei assim... a minha cabeça meio perdida porque o Fofo

estava já nas últimas, o dinheiro entrava pouco

A narrativa expõe a situação de modo a ter-se a compreensão de que o

advogado estava trabalhando mais para si mesmo do que para Zoé; encaminhar

a questão testamentária pela via do usufruto não estava nas condições que ela

havia elaborado para dar destino aos bens adquiridos com muito trabalho e muito

envolvimento pessoal e emocional. Confusa mas não o suficiente para ser

irremediavelmente enganada, ela recorre à amiga e procuradora, (...) e aí

conversei com a minha procuradora (...) diz ela: não Zoé você não vai ter o direito

no que é seu? (...) aí eu liguei prá ele eu digo: olha o que nós combinamos, eu

não te dei certeza, mas eu não quero mais. Mas como? Se eu já conversei com o

diretor do colégio (...) e ele me disse que estava tudo bem e que a gente podia

vender e depois fazer um negócio não sei o que! Ah (suspiro) (...) em que

situação eu estou!

Mas o socorro veio em tempo de minimizar o desastroso negócio, que lhe

rendeu dentre os aborrecimentos todos, a perda significativa de dinheiro que ela

preferiu deixar de receber para ter um pouco de paz - (...) e eu me lembrei de um

casal que era do Lions que tinha um filho formado em Direito (...) eu liguei - estou

numa encrenca danada aí na venda do sítio e o teu filho é advogado de família?

Sim (...) o rapaz em três meses resolveu o que o outro tinha levado sete anos (...)

então eu fiquei muito abatida, muito, muito.

E, o mais doloroso ainda estava por vir: -- Depois quando meu marido

faleceu então aí foi outro baque (...) vai fazer seis anos, fez agora em dezembro

dia 29, seis anos. Assim termina o sonho de amor de Zoé. Com o marido ela

viveu os melhores anos de sua vida. Aos 83 anos, viúva, porém serena, sem

136

ressentimentos, ela volta para a vida que tinha antes de encontrar o “seu homem”,

se reconstrói e segue em frente.

O sintagma Identidade-metamorfose-emancipação como processo de

formação e transformação da identidade humana, aparece neste momento do

estudo como a grande metamorfose – a velhice em idade avançada - que leva a

mulher longeva ao último período de existência. Que metamorfoses serão ainda

possíveis? Ser reconhecido pelo outro, não como velha, mas apenas como

alguém que por ter vivido muito tem muito a dizer e a contribuir consiste num

processo de emancipação?

137

Capítulo 5 A Fase Velhice

Começamos nossa trajetória existencial recebendo por herança nome e sobrenome, pais, parentes, um país, uma cidade, um hemisfério, um bairro, uma raça, uma situação sociocultural e econômica, uma religião, expectativas a nosso respeito, sagas familiares, portas já abertas, anseios, limites, problemas não resolvidos. Todo esse legado se conjuga e constitui nossa primeira identidade (CRITELLI, 2012, p. 57)

Tenho que admitir, como pesquisadora em psicologia social: a idade não é

critério suficientemente válido para determinar uma “velha”, portanto questiona-se

a identidade etária de velha, idosa, ou seja, qualquer nomenclatura que faça da

mulher longeva um ser separado dos demais. Nos últimos encontros, mesmo

convalescente de um AVC, o que vejo é apenas uma mulher corajosa, cheia de

vontade de vencer mais esse obstáculo. Com a voz ‘embaralhada’ ocasionada

pelo acidente cerebral e não pela idade, ela fala de seu retorno à vida: sair

sozinha, pintar, fazer ginástica, etc. como sendo a condição primeira de sua

existência. Ela está viva!

Ao mesmo tempo em que diz não aceitar os limites da idade - (...) e eu

penso assim: eu não mereço isso! Eu trabalhei mesmo prá minha velhice

tranqüila, prá eu usufruir de tudo isso e eu usufrui bem, mas agora com esta

idade, eu realmente estou sentindo que não sou a mesma (...) eu sinto que não

tenho mais aquela capacidade e isso me derrubou em termos psicológicos; ela

não se rende aos obstáculos e faz a vida continuar - (...) eu tenho que ir ao

banco, tenho que ver o imposto de renda, tenho que ver médico, tenho, sou eu

que tenho que fazer tudo. Isso eu não posso mandar outras pessoas fazerem,

veja como está (mostra o calendário) manhã, tarde, manhã, tarde (...) mas eu

quero fazer logo para depois descansar (...)

Para esse retorno ao normal, uma das primeiras medidas foi revalidar a

sua carteira de habilitação para os próximos três anos. Submeteu-se aos exames

necessários e foi aprovada - sim, sim, eu ainda dirijo (...) tenho que ir as aulas de

pintura, à fisioterapia (...). Esse relato a leva a outro, de caráter político: as

notícias recorrentes acerca das manifestações no país e que pela manhã havia

138

tido ciência através dos jornais: a paralização dos professores no Rio de Janeiro e

a ação dos ‘Black Blocs’ infiltrando-se entre os professores em suas justas

reivindicações; segundo ela haveria uma conivência dos mesmos com as ações

de depredação do patrimônio público - eu não aceito isso, professor tem que

ensinar! Agora você veja essa situação!

O seu estado se altera e a indignação toma conta dela que revela: -

infelizmente eu não posso mais ler os jornais, não posso exercer o meu papel

político, de cidadã porque fico doente (...) a pressão sobe (...). Com esse

posicionamento fica evidente o seu desejo de preservar a saúde e a vida, ela,

pesarosamente, abre mão do seu direito à informação para manter a vida! (...) daí

acordei! Que coisa não é? Pois exatamente, tentar mudar a vida, facilitar porque

não sou o que eu era. Nem mentalmente nem fisicamente (...) e a não aceitação

disso é que me levou à depressão e à doença; agora estou tentando rever tudo

isso.

Porém antes mesmo de ter sido acometida pelo AVC, a narrativa dá

mostras de que a depoente está ciente de que adentrou na fase da velhice.

Depois da morte do marido, da venda desastrosa do sítio - o seu pequeno paraíso

- Zoé busca os recursos vitais, a energia que sempre a acompanhou para mais

uma jornada importante - E logo depois que ele faleceu (...) surgiu a

oportunidade de eu ir prá Russia prá aqueles países nórdicos : Russia, Finlândia,

Noruega, digo: - nesse eu vou. Depois de todo aquele temporal aquele tsunami e

eu ainda tinha muita energia, apesar dos pesares (...) digo: vou prá Moscou e o

Mar Báltico beija a Lituânia (...)

Nesse ponto da narrativa a pergunta que se faz é: que história a história de

Zoé quer contar? O retorno às origens fez emergir forças atávicas que ela

desconhecia. Ao visitar Moscou, ela se deslumbra com as planícies e com a

beleza dos hotéis e dos palácios destruídos pela revolução e que foram

restaurados em toda a sua magnitude - Estivemos em Moscou não é? e

estivemos na capital da Noruega, Oslo (...) depois voltamos prá Suécia aí

estivemos em Estocolmo (...) de Oslo até Estocolmo fomos de navio prá ver os

Fiords (...) e fomos prá Suécia de trem até Moscou; achei uma viagem assim

muito bonita. A gente via aquelas planícies sem fim, não é? (...) aquela planura

aquelas árvores secas, aquela coisa não é?

139

Não foi, porém só beleza que ela viu; viu também a decadência de algumas

regiões em contraste com a exuberância dos antigos palácios local de

hospedagem, segundo ela (...) - apartamento dos grandes, dos chefes do

comunismo, não é? (...) mais prá fora eu vi construções (...) aqueles caixotes que

eram apartamentos das pessoas que moravam às vezes duas famílias (...) Essa

realidade histórica faz parte da vida, da identidade de Zoé e, se essa identidade

atávica não delimita exatamente quem ela é, dá indícios preciosos de como ela

começou a ser. “(...) eu cheguei liso e jovem a esse meu país e direi a esse pais

cujo barro entra na composição de minha carne: “vaguei durante muito tempo e

volto para o horror desertado de tuas chagas” (CÉSAIRE, 2011, p. 35).

Esses primeiros traços identitários recebidos através do nascimento

oferecem, aos indivíduos, condições que são comuns ao grupo de pessoas em

meio às quais eles nascem. Esses atributos familiares, raciais, étnicos e culturais

acompanham cada ser em sua jornada particular de vida e, de certa forma,

sustentam os processos de metamorfose ao longo da existência - Mas sei lá, as

coisas é...é, eu agora vendo as imagens (...) me lembrei não é?, me senti de novo

nova e tirei muitas fotografias do mar (...) essas águas banham também o país

onde eu nasci (...) estou revendo agora e isso me emocionou, estancou lá dentro

não é? (...) vem as coisas na cabeça (silêncio). Pode-se dizer que existem

“qualificações que uma pessoa tem em comum com seu grupo de origem, quer

dizer, dizem respeito ao lado plural do eu. Pertencem ao nós, a que cada eu

pertence e realiza”. (CRITELLI, 2012, p. 58)

A sua solidão existencial: sem família desde sempre, fez Zoé refletir sobre

a sua origem - (...) a mamãe se correspondia com meu tio e ele ficou sete anos

na Sibéria (choro contido) irmão da mamãe (...) Ele não aceitava essa

bolchevique, não gostava dessa teoria digamos assim política, não é? E ele foi

preso e foi mandado prá Sibéria, ficou sete anos na Sibéria tirando pedra

(silêncio) (...) quando ele foi solto aí ele escreveu prá mamãe que ele tinha

voltado prá Lituânia, que ele tinha perdido o que ele tinha e que agora ele tinha

que trabalhar como carteiro (longo silêncio)... e que tinha ficado prá ele um

pedacinho de terra só, pouca coisa que não dava praticamente prá nada (...).

Com a revolução, as divisões de classes desapareceram – os extremos do

140

proprietário e do trabalhador, do capitalista e do proletariado, do rico e do pobre,

acabaram. Os “expropriadores são expropriados” (REIS FILHO, 2003).

São lembranças advindas da mãe e que ela sente como parte integrante de

si mesma - (...) são coisas que a gente sente na carne, a gente chama e vem tudo

aquilo não é bem? (muito emocionada) então a gente sofre, a gente sofre, não é?

(...) eu sou daqui também, mas, falando lá do começo tem alguma coisa que

puxa! (...) Eu perdi o idioma, perdi minha identidade nacional, sou lituana, tenho

cidadania brasileira, tenho, senão não poderia trabalhar no Estado. Eu aceitei isso

e cumpro a minha obrigação da melhor maneira que eu pude, perdi minha

identidade nacional na Lituânia, não é?

Nas duas primeiras décadas do século XX, a Rússia tzarista foi alcançada

por quatro revoluções que a devastaram e a transformaram, e também o mundo,

numa profundidade que poucos poderiam prever (REIS FILHO, 2003, p. 15). Foi,

certamente, para fugir desse estado de miséria que os pais de Zoé saíram de seu

país natal. A narrativa, nas entrelinhas, permite compreender que a história que

Zoé quer realmente contar, em meio a toda a sua existência repleta de

sensações, prazeres contidos, desejos roubados, conquistas, desacertos, amor,

sexo, paixão, é, na realidade, a história de uma imigrante da Lituânia, vinda para

o Brasil ainda bebê, e que guarda, em sua seiva vital as reminiscências de uma

história de vida e morte, de um povo nobre e plebeu, rico e pobre, brilhante e

miserável nas suas conquistas e derrotas. Zoé é lituana, ela sente na carne essa

realidade e tornou-se brasileira para viver a sua história pessoal.

- Aqui sou brasileira fiz tudo e fico assim muito triste, muito revoltada,

desculpe a expressão, com o que a gente vê fazendo com o país. Indignada! E

ver que as pessoas fazem com este país lindo, maravilhoso, rico, bonito, povo

bom, fazerem o que fazem com as pessoas, fazerem conosco, não? Ia dizer:

comigo não, mas comigo sim. Me abalou muito essa política, esses 10 anos (...)

me pegou demais as questões políticas do país (...) estou aposentada, deixa eu

acompanhar, tudo debaixo do pano, tudo tem má fé e o povo pagando e o povo

sofrendo.

Ela tece considerações severas sobre os acontecimentos políticos do país

e compara com as condições vividas pelos ancestrais em terras do leste europeu

e, sente-se indignada diante do que ela considera “cegueira” dos brasileiros ao

141

elegerem pessoas despreparadas para governar o país - (...) e as pessoas

iludidas, e os universitários iludidos digo: mas como é que essas pessoas não

enxergam? Porque eu tenho assim “por trás de mim” todo o sofrimento meu, da

mamãe, da minha família por causa de um regime! (choro) um regime autoritário

da Rússia sobre os países que ela conquistou, que ela sufocou digamos assim,

ela sufocou. Eu tenho através da mãe. Eu acho que é do sangue também.

Evidencia-se uma dupla identidade, uma natal, deixada para trás e que

ainda exerce forte influência sobre a sua subjetividade, a outra a da brasileira que

ela, de fato é, que teve o seu espaço sociocultural que a fez sujeito e a quem ela

transformou com a sua ação profissional, social e política. Uma longeva,

emblemática num processo de eterno vir a ser - Então aqui eu vivi, me eduquei,

trabalhei; é uma coisa muito estranha assim, que mexe com a gente viu? São

sombras exatamente que vêm, não definidas, interessante que quando eu vi o

mar eu fiquei assim não é? Está banhando o meu país, onde eu nasci, mas o que

é que eu tenho de lá? Nada, nada. Muitas marcas, só. Sim, sim é uma parte

minha que ficou mas eu não sou infeliz por isso, nunca fui (...) nunca pensei em

retornar, nunca pensei (...)

Movida pela força das lembranças, ela diz: Mas eu sei que a vida é isso, a

vida é luta renhida viver é lutar, é luta que aos fracos abate e aos fortes só faz

exaltar! Eu me considero uma mulher forte, eu não me abato na luta pela vida, na

luta pelas coisas que eu quero, eu sou forte, graças à Deus! E a educação que eu

tive; eu sei o que quero da minha vida (...). Sabiamente, Zoé sente que o tempo

de conquistas já foi; e o tempo de usufruto intenso advindas da mesma também já

foi, mas ainda resta uma vida boa para ser vivida, com limitações, tendo que fazer

concessões aos seus eternos anseios de “viver” intensamente ela resignada diz: -

(...) eu já quis, hoje o que eu quero é sombra, água fresca e sapato largo no pé

Como as mulheres velhas exercem na sociedade contemporânea a sua

vida? Como preenchem o seu dia? Como lidam com as emoções? Será que ainda

elaboram projetos de vida? Suas identidades são reconstruídas a cada novo

momento a que estão submetidas? A história de Zoé nos mostra que a vida não

muda em seu dinamismo e que a identidade, o que se é, é metamorfose em

busca de emancipação. E que o envelhecimento não altera essa condição

essencial. O que muda são os ajustes a serem feitos para que a vida transcorra

142

normalmente. Os cuidados humanos não são prerrogativas dos velhos, fazem

parte da existência; cada fase da vida carece de cuidados que lhe são próprios e,

insistindo, com as pessoas em idade avançada, não é diferente.

Zoé tem a sua agenda repleta de compromissos. Além daqueles

costumeiros: pagar as contas, cuidar dos assuntos bancários, da

correspondência, dos assuntos domésticos; ela ainda pinta, faz ginástica,

fisioterapia, lê, sai com as amigas e viaja. (...) só que com essa idade a gente vai

perdendo muito, há limitações que não preenchem esse vazio. Que eu gosto com

gosto! Porque a gente já vê defeitos, já vê que não é aquilo que era, acabou! Eu

gosto de ler, eu fico com um livro que eu goste, que me agrade, eu fico assim três

horas e não vejo, mas já passou? E a minha visão hoje permite uma leitura (...)

uma meia hora e já fico com os olhos lacrimejando (...). Os necessários ajustes

não tiram o gosto pelas atividades do seu dia a dia.

- (...) pintura é outra coisa que eu gosto muito; eu vejo as cores, a diferença

das tonalidades, eu vejo a água; meus quadros quase todos tem água, eu sou

caranguejo, não é bem? (risos) então eu gosto de ver as nuvens, agora estão

construindo esse prédio aí; daqui a pouco não vou ver mais o por do sol, que é

uma coisa que vai chegando de tarde e fico olhando e fico pensando que tintas eu

colocaria ali: amarelo? Que cores? Que mistura eu faria para dar essa tonalidade

assim, vai diluindo um pouquinho, vai pondo; então é muito gostoso! Sem dúvida,

são falas que evidenciam uma mulher sensível diante das belezas da vida, que

consegue reorganizar-se com aceitação do inevitável e com disposição para viver.

O artista pouco a pouco ama os próprios meios pelos quais manifesta o estado de embriaguez: a extrema finura e o esplendor das cores, a nitidez , das linhas, os cambiantes de tons: ama pois o que é distinto, enquanto no normal há falta de toda distinção” (NIETZSCHE, 1978, p. 362)

A história de vida narrada por Zoé, deixa muito claro que as pessoas hoje

com mais de 80 anos, as centenárias até, apresentam-se aos olhos da sociedade

como seres que mantêm, com sucesso e destreza, as mesmas atividades de 20

ou 30 anos atrás. Sem negar as transformações, a grande metamorfose que é a

passagem da vida madura para a velhice, e inevitavelmente a morte, Zoé mantém

uma atitude positiva diante da vida e, sem temer a morte, ela se preserva até o

limite do humanamente suportável. Vale a pena um retorno aos tempos de

143

ginásio, quando Zoé faz menção a uma professora de quem ela gostava e que

levava os alunos, de vez em quando, até a sala de ciências - (...) e tinha um

armário de vidro com o esqueleto e, em cima daquele armário estava escrito:

“Não te rias nem blasfeme do estado em que estou, pois já fui o que tu és e tu

serás o que eu sou”. Nunca me saiu da cabeça (...). Quando lhe pergunto: como

você vê a morte? Ela responde: - a morte? não tenho medo da morte, mas

adoooro da vida!

144

Capítulo 6 Reflexões sobre as análises

A narrativa possibilitou a Zoé um espaço para a escuta de sua própria fala,

tornando-a protagonista de sua história. E o diálogo estabelecido entre a

pesquisadora e a depoente transformou a entrevista em momentos de profundas

reflexões. Mais do que a coleta de dados, a preocupação não foi buscar a

verdade, e sim, o ponto de vista da protagonista.

No contexto de vida estudado, observou-se uma exigência familiar, na

qual a mantenedora – a mãe – precisou trabalhar muito e em condições difíceis

para o sustento de ambas. Mostrou como o envolvimento de Zoé com os contos

de Andersen alimentaram de fantasia e emoção a solidão da criança, exercitando

os mecanismos psicológicos capazes de engendrar formas de superação, e

modelar uma identidade que, no futuro, repaginou-se de posicionamentos mais

críticos e reflexivos. É a história de vida de uma mulher só – estrela solitária –

cuja solidão não foi suficientemente nefasta para impossibilitar o êxito pessoal e

profissional; ao contrário, as experiências infantis de solidão, abandono e medo

parecem ter sido a mola propulsora para uma vida de luta e conquistas,

alicerçadas em uma individualização que lhe deu autonomia e estimulou sua

singularidade.

O exercício profissional ocupou todo o tempo disponível dessa mulher; era-

lhe imprescindível adquirir poder aquisitivo para as suas conquistas, e o trabalho

lhe rendeu bons frutos e com eles foi possível adquirir bens imóveis que, mais

uma vez fizeram dela uma mulher muito à frente do seu tempo. O emprego na

rede oficial de ensino do estado do Paraná abriu portas para o ingresso no ensino

superior, onde fez carreira universitária e aposentou-se. Porém, o que dizer dos

afetos recolhidos, dos desejos contidos, dos amores sublimados, da sexualidade

enclausurada?

Liberta da relação quase simbiótica com a mãe, com a morte da mesma,

eis que a racionalidade é subvertida pela emoção, e as necessidades sufocadas

por 40 anos, buscam sua expressão mais intensa: a sexualidade. Certa de que

era o momento de viver a “sua vida”, ela rompe com a igreja, se desfaz dos

valores cultivados ao longo dos tempos e que já vinham sendo submetidos ao seu

145

crivo crítico, e se permite ser a mulher madura que é, em todo o seu potencial –

a fase intensas procuras, que a libertou e deu vazão aos seus anseios mais

profundos.

A revelação de que a mulher longeva pode alcançar, com o avanço da

idade, um estado de aceitação do tempo vivido, com suas conquistas e

desacertos, autorreferindo-se como realizada, feliz e sem mágoas, aflora no

contexto estudado. Essas constatações reforçam a importância da memória

individual como recurso metodológico para estudos psicossociais, porque ela está

intimamente ligada à interioridade que se associa à individualidade e à

experiência pessoal.

Tem-se, portanto, um conjunto de evidências que suscitarão novas

investigações para o avanço do conhecimento científico sobre a identidade

humana como metamorfose. E o contexto da longevidade apresenta-se como

profícuo para esse fim, uma vez que a sociedade contemporânea, muito embora

reconheça a mulher atual como indeterminada que deixou para trás a sua

condição de objeto para se assumir como sujeito, não se encontra “preparada”

para incorporar, sem restrições, essa nova mulher.

Há também uma contribuição para a sociedade, uma vez que o estudo

expõe, pela narrativa, uma visão social e política do país na formação de uma

região específica e que ganhou visibilidade na voz de uma longeva que viveu

essa realidade como produto e produtora de uma sociedade nascente com suas

características, valores, potencialidades e dificuldades. Acrescente-se a

contribuição acadêmica buscada neste trabalho, de também inspirar a formatação

de nossas pesquisas, criação de grupos de estudo e mesmo a expansão do

núcleo de estudos em identidade humana fortalecendo o clássico tripé: ensino,

pesquisa e extensão, numa relação mais estreita entre segmentos universitários,

fomentadores de conhecimento científico.

146

CONSIDERAÇÕES FINAIS

147

Esta tese teve como objetivo geral investigar, na narrativa de história de

vida de uma longeva, os elementos fundantes da identidade feminina e de que

maneira as experiências pessoais podem trazer luz para a compreensão do

sintagma: Identidade-metamorfose-emancipação, identificando os pontos críticos

da história de vida que fomentaram projetos para o vir a ser; descrevendo os

processos de ruptura com o convencional geradores de metamorfose e

analisando as relações sociais estabelecidas, bem como a vinculação da história

pessoal com a História da sociedade contextualizada em que viveu a

protagonista.

O estudo trouxe pelo seu conteúdo, indagações sobre a relevância do

mesmo para a compreensão da história das mulheres no Brasil, nascidas na

primeira metade do século XX. A partir da narrativa explorada cientificamente,

pode-se, através de generalizações, compreender a história de outras mulheres?

Se, por condições que lhe são muito particulares, a protagonista deste estudo

apresentou uma performance individual que a aproxima da mulher indeterminada

do século XXI, acredita-se que a sociedade brasileira tem um número significativo

de representantes dessa categoria de mulheres emblemáticas que fizeram a

história da humanidade tomar rumos inusitados. Nos meios acadêmicos, artístico,

político até nos mais dominados e nos excluídos da sociedade, surgem exemplos

fantásticos dessas mulheres: auto-determinadas no alcance dos seus objetivos,

corajosas e persistentes e que foram o alicerce para a mulher atual.

A identidade é uma experiência que se reconstrói por toda a vida, pelo

reconhecimento intersubjetivo na interação entre os sujeitos. Trata-se de um

evento que possui uma gênese social, ela surge, se manifesta e se reconstrói a

partir dessa interação e não do indivíduo isolado. Ser Mulher, portanto, é uma

condição de reconhecimento intersubjetivo. E ser mulher inserida em uma

sociedade segregacionista e machista preconizava certos tipos de

comportamento alicerçados nesses valores. Tudo o que colocasse em risco a

hegemonia dessa sociedade assim constituída, tendia a ser expurgado ou

menosprezado.

O estudo realizado demonstrou que foi possível para a mulher inserida

nesse contexto, e no caso especial estudado, um contexto social em formação,

uma história sendo construída por imigrantes de vários países, com culturas,

148

valores e crenças distintas e por migrantes em condições semelhantes - homens

e mulheres desejosos de uma vida melhor e mais autônoma - insubordinar-se,

dizer não para as dificuldades impostas, romper com as convenções e ditar os

rumos da sua própria vida. Não sem dificuldades e percalços, a depoente relata

determinação e coragem para trilhar um caminho solitário, porque diferente do

ensejado pela sociedade, e que a elevou à condição de independência econômica

e financeira.

A identidade projetada na infância; o desejo de ser professora de francês,

foi conquistada com auto-determinação e empenho nos estudos e nas atribuições

ditadas pela escola protestante em cujo seio a protagonista foi educada. Ser

independente, sua principal meta a levou a justificar o seu presente apenas pelo

trabalho. O futuro seguro ancorado numa moral ascética, exigiu um adiamento,

uma suspensão dos desejos imediatos e urgentes: namorar, passear, casar, para

conseguir atingir o projeto de longo prazo.

As formas de convivência criadas pela normatividade das sociedades

moldam os seus membros aos padrões de existência, aos modos de ser, pensar e

agir considerados corretos e necessários para a vida social. Assim, os projetos

de ordem pessoal são direcionados pelos parâmetros socialmente estabelecidos

e as metamorfoses humanas se processam em meio a políticas de identidade que

favoreçam a reprodução e manutenção desses padrões. Fugir à eles, romper com

o convencional significa colocar-se na contra mão dos acontecimentos quando

uma “avalanche” do pressões e impedimentos tendem a arrefecer o ânimo de

quem se atreveu a seguir outro caminho.

Poucas foram as mulheres que nos anos 1940/50 se atreveram a assumir a

condição de solteira para poder estudar e ter independência financeira. O difícil

porém não é impossível e o estudo apresenta uma mulher que abriu mão de um

casamento que a colocaria à sombra do marido, fixada numa identidade de

esposa e mãe, para seguir o seu desejo: ser professora de francês. Meta atingida,

outra urgência se apresentou: encontrar um espaço para o exercício do

magistério. E entre acertos e desacertos, o caminho que se apresentou foi o de

uma nova terra, promissora mas ainda bruta, próprio para homens desbravadores

e suas esposas submissas: o norte do Paraná, a nascente cidade de Londrina.

149

Subverteu a ordem social, caminhou com as próprias pernas e desejou

com intensidade o seu grande projeto de vida: casar-se. Se os caminhos foram

tortuosos, ela os enfrentou e chegou aonde queria. Aos 50 anos de idade,

encontrou o “seu homem” e com ele viveu a vida de casada, assumindo a

identidade de esposa por mais de 30 anos, quando então o sonho acabou com a

morte do marido, consumido pelo mal de Alzheimer.

Chega então a velhice que ela encara de frente apenas depois de viúva.

Mas ser velha não significa ter que assumir uma identidade “cristalizada”, etária,

sexual. A identidade humana como metamorfose é processo permanente que se

dá ao longo da vida; Identidade é vida. Ser velha é apenas uma contingência. E,

para a protagonista a vida atual ainda está cheia de interesses, projetos mais a

curto prazo, cuidados com a saúde, revisão de conceitos, ou seja, é a existência

se manifestando em toda a sua magnitude.

As lembranças, com o recurso da memória, revelam uma longeva, no alto

dos seus 90 anos, lúcida, perfeitamente capaz de orientar o seu cotidiano,

selecionar as suas prioridades, sem perder o gosto pela vida. Sem

ressentimentos pelos desacertos do passado, da opressão a que foi submetida,

pelo abandono e isolamento que marcaram a sua infância, pelos sacrifícios que

teve que fazer para estudar e trabalhar, ela se diz uma mulher realizada e feliz. As

lágrimas profusamente derramadas lavaram os acúmulos dolorosos e deixaram

no lugar uma paz profunda que a faz encarar o resto que lhe cabe de vida, com

otimismo e serenidade.

Messy (1993) já disse que a pessoa idosa não existe e esse pressuposto

psicanalítico cabe muito bem para encerrar a história de vida que orientou este

trabalho de doutoramento. Tudo que foi relatado e analisado corrobora essa

concepção de que o envelhecimento, cujo término é a morte não é prioridade dos

velhos. “O indivíduo, seja qual for a sua idade, permanece um sujeito com

desejos, e cujo apelo é preciso sustentar, até o momento em que a mensagem

vire sofrimento” (p. 140).

Estudar a identidade humana enquanto metamorfose é refletir a vida à luz

da ciência e da própria existência. Metaforicamente, comparar os processos de

metamorfose à germinação de uma semente amplia o entendimento porque,

parafraseando Rubem Alves, a semente é precisamente isso: a vida se

150

recusando a ser a mesma; a vida sabendo que, para continuar viva, precisa

“deixar de ser” o que era para “vir a ser” uma outra coisa, que no fundo é ela

mesma.

A tese aqui desenvolvida desvendou o universo de uma mulher longeva

que no decorrer de sua vida, repensou a sua condição de subalternidade: colocou

a sua voz e as suas ações para romper com a opressão que marca a condição

feminina e cerceia a manifestação de seu potencial desde tempos imemoriais. Da

narrativa de uma história de vida, visualizaram-se não só as formas de opressão

mas também os mecanismos utilizados para desencadear um processo em busca

de emancipação, passando por metamorfoses, assumindo novas personagens e

superando as consequências advindas desse processo. Mulheres do século

passado, emblemáticas por suas ações, inseriram as mulheres da sociedade

contemporânea numa condição de indeterminadas e empoderadas , libertas da

opressão sexual que as manteve reféns do poderio masculino, para assim

reafirmar a sua condição de sujeito político. “Em nossos dias, as mulheres

desdramatizam amplamente a libido, suas aventuras sexuais já não implicam o

grande amor e podem ter livre curso fora de qualquer projeto de futuro”

(LIPOVETSKY, 2000, p. 36).

O ser longeva conferiu, à depoente, credibilidade para retratar, com o

recurso da memória, as experiências de rompimento com o convencional de

modo a configurar uma metamorfose em busca de emancipação. Ao rejeitar,

racionalmente, o “remédio amargo” É para o seu bem, houve uma busca de

evasão possível, no sentido de procurar por si só, o que lhe convinha. A opção,

ainda que de certa forma coagida, de abrir mão do casamento, para estudar e se

profissionalizar, representou um novo ponto crítico. E, de forma mais contundente,

ao rejeitar o papel de preceptora oferecido pela instituição na qual exercia a

função de professora, identidade projetada ainda na infância, e sofrer as

consequências desse ato de “rebeldia”, colocou-se em um movimento, talvez o

mais importante para o seu projeto de vida. Essa conduta não apoiada pela

sociedade da época lhe conferiu a alcunha de emblemática - mulher à frente do

seu tempo - o que, direta ou indiretamente explicitou possibilidades para que as

mulheres redimensionem o papel de seu gênero diante do universo de homens.

151

Ao levantar o véu que encobriu, por tempos imemoriais, a realidade das

mulheres brasileiras, submetidas às regras da sociedade patriarcal, o estudo traz

informações que possibilitam enxergar mecanismos de evasão, aquisição de

comportamentos e movimentos emancipatórios, capazes de romper com as

convenções, com a normatividade das sociedades humanas construídas ao longo

da história. As formas de opressão sofridas, as políticas de identidade que,

reforçando a heteronomia, dificultam ou impedem qualquer ação autônoma, não

foram suficientemente eficazes para impedir o surgimento, nesse cenário, de

mulheres que, pelo seu caráter emblemático, ousaram caminhos não

convencionais, quebraram regras e empreenderam ações de resistência à ordem

sistêmica, promovendo o empoderamento feminino em busca de emancipação. É

o que Habermas denomina de identidade pós-convencional.

Questões como a identidade natural e suas configurações de ordem

atávica puderam ser percebidas, com clareza, no relato da mulher longeva que,

ao se deparar com o cenário da sua origem, sentiu “na carne” as dificuldades

sofridas pelos ancestrais e definiu-se como uma lituana que perdeu a sua

identidade nacional; E sofre por isso, sofre o sofrimento dos pais como se fora

seu.

A visibilidade das experiências infantis como sendo a grande referência

para a vida, para o vir a ser, também puderam fazer crer que os projetos do que

se deseja ser podem ser arquitetados desde muito cedo e que por isso mesmo

servem de norte para os processos de desenvolvimento pessoal e social.

Acrescente-se a isso, de acordo com o desvendado, a relevância da arte na

formação da identidade, por propiciar o alivio das tensões ocasionadas pela

ausência de apoio dos outros significativos, bem como o alcance de condições

psicológicas favoráveis, quando o universo das emoções se solidificam, buscam

vertentes positivas e engendram formas de superação do medo e do sofrimento.

Esse aparato psicológico construído desde a infância representa condição

essencial para que o sujeito possa lutar, escolher, fazer, optar, superando as

limitações advindas das normas e dos papéis sociais atribuídos às mulheres,

buscando um equilíbrio entre o que foi e o que se deseja ser, num processo de

formação e transformação da identidade numa articulação dialética

regulação/emancipação.

152

Na composição do objeto de estudo desta tese, buscou-se cuidar para que

em nenhum momento perdesse complexidade; uniu-se a abordagem da figura

feminina no contexto da longevidade a um olhar sobre mulheres que foram as

precursoras da identidade feminina para além do seu componente biológico. Esse

aspecto relacional indispensável a toda organização de pesquisa, pode trazer

uma contribuição metodológica para análises qualitativas ao transportar, para o

cenário científico, fatos relatados por alguém que possui uma preciosa

singularidade: simplesmente viveu muito. Essa perspectiva enriquece também o

conjunto de assuntos e temas de interesse para a psicologia social, uma vez que

aumenta a capacidade de dimensionar e ir mais longe na retrospectiva dos fatos

históricos e psicológicos pelo relato de quem “ainda está aqui para contar...”.

Sendo entendido como experiência de um reconhecimento intersubjetivo, o

depoimento de uma longeva lança, em primeiro plano, a sua forma contrastativa

diante de uma sociedade que vê, na velhice, uma identidade “cristalizada” numa

fase da vida, lamentável forma de retrocesso na visão científica que apenas

esboça o reconhecimento de que a identidade humana como metamorfose é um

processo permanente que se dá ao longo da existência. Por ter vivido muito, por

ser vista como velha, a mulher longeva se apresenta, ainda, aos olhos da

sociedade contemporânea de forma, no mínimo, desconcertante pois, conforme

Beauvoir (1990) a velhice é um estado normalmente anormal.

As pessoas de hoje obtêm ganhos sociais e políticos com a história

narrada, na medida em que vê retratado o processo de desenvolvimento de uma

região – o norte do estado do Paraná, cuja pujança é sabida em todo território

nacional, e que foi apresentada, pela narrativa, em suas características e

peculiaridades, seus valores, suas potencialidades do ponto de vista de quem

participou, efetivamente, desse processo. Uma região que segue buscando sua

(re)inserção no espaço nacional e global para o qual busca se preparar.

Do ponto de vista acadêmico, esse objeto de estudo instiga a formatação

de novas pesquisas e pesquisadores, novos empreendimentos de caráter

pedagógico, a organização de grupos de estudo e fomentação de projetos de

extensão que, associados às pesquisas, fortalecerão o tripé característico do

meio universitário: ensino, pesquisa e extensão. A expansão dos núcleos de

153

estudos sobre a identidade humana, poderá representar um passo importante

para a cooperação acadêmica entre as universidades que este estudo aproximou.

154

REFERÊNCIAS

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