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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP FLÁVIA RODRIGUES LIMA DA HORA Cotidiano profissional do assistente social no Creas-Paefi: trabalho com famílias na perspectiva de matricialidade sociofamiliar MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

FLÁVIA RODRIGUES LIMA DA HORA

Cotidiano profissional do assistente social no Creas-Paefi:

trabalho com famílias na perspectiva de matricialidade sociofamiliar

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

FLÁVIA RODRIGUES LIMA DA HORA

Cotidiano profissional do assistente social no Creas-Paefi:

trabalho com famílias na perspectiva de matricialidade sociofamiliar

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE

em Serviço Social sob a orientação da Professora

Doutora Myrian Veras Baptista.

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2014

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Banca Examinadora

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Às minhas avós Nelinha e Cida

Mulheres guerreiras que admiro e amo muito!

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AGRADECIMENTOS

Neste espaço agradeço a todos que, de alguma maneira, próxima ou distante, viveram

comigo esta fase tão importante da minha vida.

Às professoras da PUC-SP: Maria Lúcia Martinelli, Maria Carmelita Yazbek e Maria

Lúcia Rodrigues. À minha orientadora, Myrian Veras Baptista, obrigada por ter se

dedicado em cada detalhe desta dissertação e, por meio das reflexões, nas orientações,

ter me deixado livre e ao mesmo tempo próxima para expor minhas ideias. Obrigada pelo

compromisso com o Serviço Social, pela sede de aprender, pelo prazer em partilhar e amor

em ensinar! Minha gratidão e admiração!

Aos amigos da Prefeitura de São Paulo, Creas Ipiranga, que me encorajaram e

ajudaram para que essas angústias se transformassem num projeto de pesquisa para o

mestrado. Agradeço também às colegas e coordenadoras do Creas, com quem pude

debater a política pública de assistência social na cidade de São Paulo.

Aos colegas de trabalho do INSS que compreenderam a intensidade desta etapa! À

Vânia Nery e Stela Ferreira pela inspiração e incentivo ao pensar a Assistência Social!

Às amigas de faculdade, Ana Paula, Cíntia, Bianca, Sirlene e Dani, que se dispuseram a

ajudar e refletir comigo as várias etapas do mestrado. Às colegas de mestrado, Keu,

Edlaine, Fernanda e Alberta, que demonstraram o valor da parceria nessa fase!

Aos amigos que respeitaram minhas ausências e que sonharam comigo. Obrigada, Tom

e Mi, Débora e Arnoldo, por serem suporte em amor. Agradeço às minhas amigas de

jornada, Francini, Anita, Cris e Aline – companheiras para a vida toda.

Aos meus pais, Cláudio e Cida: essa conquista também é de vocês!

Aos meus irmãos, Rafael e Natália, às minhas avós, Cida e Nelinha, aos meus tios,

primos, sogros e cunhada. Muito obrigada pelo amor, incentivo, sonhos e orações!

Ao meu marido e melhor amigo, Gustavo: ninguém mais que você viveu comigo cada

alegria e angústia, cada dúvida e descoberta que as páginas desta dissertação contêm!

Obrigada por ter discutido incansavelmente o tema desta pesquisa comigo, sua sede

por conhecimento continua me fascinando! Obrigada por ter sido meu editor e revisor,

por ter disposto da sua profissão para me ajudar. Obrigada por ter sacrificado feriados e

fins de semana para estar comigo em períodos de estudo, por ter tido paciência!

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RESUMO

Título: Cotidiano profissional do assistente social no Creas-Paefi: trabalho com famílias na perspectiva de matricialidade sociofamiliar Autor: Flávia Rodrigues Lima da Hora Esta dissertação trata da prática profissional do assistente social nos Creas-Paefi da cidade de São Paulo (SP). Sua elaboração partiu de uma pergunta: como tem se dado a prática profissional dos assistentes sociais nos Creas-Paefi, sobretudo no que diz respeito ao trabalho com famílias? De acordo com a Política Nacional de Assistência Social, de 2004, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social é o principal equipamento dos serviços prestados no âmbito da proteção social especial. Cabe ao Creas o desenvolvimento das ações do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos, denominado pela sigla Paefi. Este estudo busca apresentar elementos sobre a atual estrutura dos Creas da capital do estado de São Paulo e sobre as características das equipes. O Paefi tem como característica principal o atendimento a famílias e indivíduos em situação de risco e vulnerabilidade por violação de direitos. Para desenvolver suas ações, o assistente social se encontra envolto por desafios no âmbito da política de assistência social e no sistema de garantia de direitos como um todo. Além dos desafios na estrutura da política pública e suas articulações, existem desafios relacionados especificamente à prática profissional do assistente social neste contexto. Na tentativa de responder à pergunta original, a pesquisa aqui apresentada foi desenvolvida com profissionais que trabalham e já trabalharam no Paefi e com profissionais envolvidos com a proposta de educação permanente dos trabalhadores do Suas. Assim, os sujeitos e o percurso da pesquisa foram definidos a partir do entendimento de que o profissional possui potencial de refletir e construir conhecimento em seu cotidiano quando estabelecidas as necessárias mediações. Palavras-chave: Assistência social. Prática profissional. Trabalho com famílias. Creas.

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ABSTRACT

Title: Social Worker Professional Everyday in Creas-Paefi: working with families from the perspective of sociofamiliar matriciality Author: Flávia Rodrigues Lima da Hora This dissertation deals with the professional practice of social workers in Creas-Paefi of São Paulo (SP). Its preparation began with a question: how has it been the social workers professional practice in Creas-Paefi, particularly with regard to work with families? According to the 2004 National Social Assistance Policy, the Specialized Reference Center for Social Assistance (Creas) is the main equipment of the services provided under the special social protection. A Creas is responsible to develop the actions of Specialized Care and Protection Services to Families and Individuals (named by the acronym Paefi). This study seeks to present the current structure and teams' characteristics of Creas working at São Paulo state's capital. The Paefi's main goal is to care of families and individuals under rights violation risk or vulnerability. To develop their actions the social worker is surrounded by challenges within the social assistance policy and rights guarantee system as a whole. In addition to the challenges in the structure of public policy and their joints, there are challenges related specifically to professional practice of social workers in this context. In an attempt to answer the original question, this presented research was developed with professionals who work and have worked in Paefi and professionals involved with the proposed Suas employees continuing education. Thus, the subjects and the course of the study were identified based on the understanding that the professional has the potential to reflect and construct knowledge in their daily lives when they established the necessary mediations. Keywords: Social work. Professional practice. Working with families. Creas.

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LISTA DE SIGLAS

BPC Benefício de Prestação Continuada

CF Constituição Federal

CNAS Conselho Nacional da Assistência Social

Cras Centro de Referência da Assistência Social

Creas Centro de Referência Especializado de Assistência Social

DOU Diário Oficial da União

Drads Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

Espaso Espaço Público do Aprender Social

Loas Lei Orgânica de Assistência Social

MAS Ministério da Assistência e Promoção Social

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MP Ministério Público

NOB Norma Operacional Básica de Assistência Social

Paif Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família

Paefi Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos

Peti Programa de Erradicação do Trabalho Infantil

PFA Plano Familiar de Atendimento

PIA Plano Individual e/ou Familiar de Atendimento

PMSP Prefeitura do Município de São Paulo

PNAS Política Nacional de Assistência Social

PNCFC Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária

PSB Proteção Social Básica

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PSE Proteção Social Especial

PT Partido dos Trabalhadores

SAS Supervisão de Assistência Social

Smads Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social

SNAS Secretaria Nacional de Assistência Social

Suas Sistema Único de Assistência Social

SUS Sistema Único de Saúde

UBS Unidade Básica de Saúde

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1 ORIGENS E MANIFESTAÇÕES DA QUESTÃO SOCIAL: RISCO,

VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO SOB A ÓTICA DA MEDIAÇÃO E DO

COTIDIANO ...................................................................................................... 25

1.1 Trabalho, Questão Social e a Perspectiva de Totalidade ..................... 25

1.2 Violência, Violação, Vulnerabilidade, Risco e Exclusão: Faces do

Sofrimento Ético-Político ................................................................................ 28

1.3 Cotidiano e o Conceito de Mediação ............................................................. 35

1.4 Serviço Social na Prática Profissional ........................................................... 40

CAPÍTULO 2

POLÍTICA SOCIAL, ASSISTÊNCIA SOCIAL: PARA A COMPREENSÃO DO

LUGAR DO CREAS-PAEFI ................................................................................. 43

2.1 A Política Social ......................................................................................... 43

2.2 Política Social Brasileira.......................................................................... 47

2.3 A Política de Assistência Social no Brasil ............................................. 50

2.3.1 A Política Nacional de Assistência Social .............................................. 61

2.3.2 Creas e Paefi .................................................................................. 65

2.3.3 Os Creas na cidade de São Paulo .................................................. 69

2.4 NOB-Suas, NOB-RH e Política Nacional de Educação Permanente .... 73

CAPÍTULO 3

A PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO CREAS: O TRABALHO COM FAMÍLIAS E INDIVÍDUOS NO PAEFI ................................... 77

3.1 Notas para Compreender o Percurso da Análise dos Dados ............... 77

3.2 O Creas – A Unidade Central da Proteção Social Especial .................. 79

3.3 Creas e Intersetorialidade ....................................................................... 92

3.4 Os Assistentes Sociais nos Creas-Paefi da Capital na Atualidade ..... 96

3.4.1 Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico ................ 97

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3.5 O Cotidiano do Assistente Social no Creas: o Trabalho com

Famílias e Indivíduos no Paefi .................................................................... 100

3.5.1 O trabalho com famílias no Paefi .................................................. 101

3.5.2 A articulação intersetorial no Paefi e a questão da judicialização

da proteção social especial ......................................................... 104

3.5.3 A matricialidade sociofamiliar como enfrentamento à visão

conservadora no trabalho com famílias ...................................... 113

3.6 O Cotidiano e a Prática Profissional no Trabalho com Famílias ....... 124

CAPÍTULO 4

A PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO PERMANENTE COMO POSSIBILIDADE DE MEDIAÇÕES NO COTIDIANO DE TRABALHO ......................................... 132

4.1 O Porquê de Aproximar as Reflexões da Educação Permanente ao

Creas-Paefi ............................................................................................. 132

4.2 Sobre a Educação Permanente ............................................................. 133

4.3 A Formação no Percurso Profissional ................................................. 139

4.4 Gestão e Autogestão do Tempo e do Trabalho: a Criação de

Espaços de Reflexão ............................................................................. 141

4.5 Amarrando as Ideias .............................................................................. 146

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 148

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 152

APÊNDICES

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INTRODUÇÃO

O presente é tão grande, não nos afastemos. [...] O tempo é minha matéria, o tempo presente,

os homens presentes, a vida presente. (Mãos Dadas – Carlos Drumonnd de Andrade)

O interesse pelo estudo da proteção social advém da etapa de graduação da

pesquisadora deste trabalho, período em que, gradativamente, buscou-se estudar e

aprofundar as temáticas de política social e de proteção social. A partir da

participação no Programa de Educação Tutorial (PET) – Serviço Social da

Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp) de Franca, foi

possível traçar contornos, seja pelos estudos e pesquisas desenvolvidos em grupo,

seja pelo desenvolvimento do próprio projeto de pesquisa para a elaboração do

Trabalho de Conclusão de Curso, construído em dupla com uma colega de classe e

de PET, donde frutificou uma bela amizade.

O referido trabalho, intitulado FOME – Miséria e Privação: avaliação de

impacto do Bolsa Família no município de Barra do Turvo-SP1, sob orientação da

Profa. Dra. Patrícia Soraya Mustafa, deu-se em parte pela efervescência do tema na

época – a unificação de diversos Programas de Transferência de Renda, a criação

do Programa Bolsa Família e a discussão sobre políticas sociais de combate à fome

por meio do Programa Fome Zero – e, em parte, pela preocupação das

1 No período da pesquisa para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, o Município de

Barra do Turvo (SP), no Vale do Ribeira, possuía o quinto menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado de São Paulo. O Vale do Ribeira, localizado no sul do estado de São Paulo, ainda é a região como menor desenvolvimento econômico e indicadores sociais mais desfavoráveis, como o analfabetismo e mortalidade materno-infantil. A pesquisa foi realizada com profissionais da Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social (Drads) de Registro, do Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Barra do Turvo (SP), com famílias beneficiárias do Bolsa Família e com o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), autor do livro Renda Básica de Cidadania – A saída é pela porta (CORTEZ; PERSEU ABRAMO, 2003) e da Lei 10.835\2003, que institui a Renda Básica de Cidadania. Em síntese, a pergunta originária do estudo era: qual o impacto do Bolsa Família no combate à fome das famílias beneficiárias? Há que se ressaltar que o combate à fome não foi abordado no referido trabalho em uma perspectiva de focalização para satisfação apenas do mínimo de sobrevivência como ração humana, mas do ponto de vista de Direito Humano à Alimentação, que aponta, como horizonte, para a satisfação das necessidades humanas (PEREIRA, 2002) e dos direitos sociais como um todo. Outras discussões sobre a temática do direito humano à alimentação se desenvolveram, mas as pesquisadoras não deram seguimento à análise do tema, pois em seus percursos profissionais realizaram outros estudos. Contudo, cabe destacar a Ementa Constitucional 064\2010, que incluiu no artigo 6

o da Constituição Federal o direito à alimentação como direito social,

ao lado da saúde, educação, do trabalho, da moradia, do lazer, da previdência social, assistência aos desamparados e proteção à maternidade e à infância.

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pesquisadoras com a realidade extrema a que pode chegar a exclusão no sistema

capitalista.

Assim, desde aquele momento, já havia preocupação desta pesquisadora

com o sofrimento e a dor oriundos da situação de pobreza e subalternidade, de ser

considerado como “apêndice da sociedade” (SAWAIA, 2001).

A primeira experiência profissional da pesquisadora, como assistente social

formada, deu-se no município de Registro (SP), no Vale do Ribeira, no extinto

Serviço Sentinela, cujo trabalho era voltado para o atendimento a crianças e

adolescentes em situação de violência doméstica (negligência, violência física,

psicológica, abuso e exploração sexual). Posteriormente, após determinações do

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o Serviço Sentinela

passou a ser denominado Serviço de Enfrentamento à Violência, Abuso e

Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes. Tal mudança não representou

apenas alteração de nomenclatura, mas um redirecionamento das ações que

passaram a ser mais exógenas, articuladas com as demais políticas públicas, por

meio de ações preventivas.

Entre 2008 e 2009, iniciou-se no município de Registro (SP) o processo de

transição da tipologia “Serviço de Enfrentamento” para Centro de Referência

Especializado de Assistência Social (Creas). Neste ínterim, a pesquisadora foi

aprovada em concurso público da Prefeitura do Município de São Paulo, (PMSP)

para o posto de trabalho como assistente social em uma Unidade Básica de Saúde

(UBS) da zona norte da capital.

Além das atividades peculiares da prática profissional na atenção básica no

Sistema Único de Saúde (SUS), a pesquisadora participou de reuniões do Comitê de

Violência, a fim de identificar na rotina da UBS e do Programa de Saúde da Família

(PSF) situações de negligência e violência. Eram recorrentes situações de violência,

sobretudo com mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência. E não poucas

vezes foram realizados atendimentos a bolivianas, vítimas de violência sexual nas

oficinas de costura, onde eram submetidas também a situações degradantes de

trabalho e moradia.

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Em maio de 2011, a pesquisadora assumiu, na Secretaria Municipal de

Assistência Social (Smads), a coordenação do Creas Ipiranga – inaugurado em

março daquele mesmo ano.

O Creas é uma unidade pública, inserida no Sistema Único de Assistência

Social (Suas), e parte constitutiva da Proteção Social Especial de média

complexidade. Conforme o artigo 6o C - § 3o, da nova redação da Lei Orgânica de

Assistência Social (Loas)2, destina-se à prestação de serviços a indivíduos e famílias

em situação de risco pessoal ou social por violação de direitos ou por contingência.

No âmbito do Creas é desenvolvido o Serviço de Proteção e Atendimento

Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), que, de acordo com a Tipificação

Nacional de Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2009, p. 20), destina-se ao

atendimento de famílias e indivíduos que vivenciam violações de direitos por

ocorrência de:

Violência física, psicológica ou negligência;

Violência sexual: abuso, e\ou exploração sexual;

Afastamento do convívio familiar devido à aplicação de medida socioeducativa ou medida de proteção;

Tráfico de pessoas;

Situação de mendicância;

Abandono;

Vivência de trabalho infantil;

Discriminação em decorrência da orientação sexual e\ou raça\etnia;

Outras formas de violação de direitos decorrentes de discriminações\submissões a situações que provocam danos e agravos a sua condição de vida e os impedem de usufruir autonomia e bem estar;

Descumprimento de condicionalidades do PBF e do PETI em decorrência da violação de direitos.

Desse modo, o Paefi tem como objetivos contribuir para o fortalecimento da

família em sua função protetiva, para incluí-la no sistema de proteção social,

restaurando e preservando a dignidade dos usuários, a fim de romper uma cultura

violadora de direitos e prevenir a reincidência dessa violação.

Também no âmbito do Creas deve ser desenvolvido o Serviço de Proteção

Especial a Adolescentes, para o cumprimento de Medidas Socioeducativas em meio

aberto de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade

(PSC), com o objetivo de acompanhar o adolescente em seu processo de

2 Lei 12.435, de 6 de julho de 2011.

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desenvolvimento, buscando romper com a prática do ato infracional, e facilitando

seu acesso aos direitos e à garantia da convivência familiar e comunitária.

Como visto, a oferta de serviço no Creas preconiza o preparo para o

atendimento de situações diversas e adversas. O Guia de Orientações Técnicas –

Creas (BRASIL, 2011, p. 28, grifo nosso) expõe que:

O trabalho social especializado ofertado pelo Creas [...] implica, ainda, em maior domínio teórico-metodológico por parte da equipe, intencionalidade e sistematicidade no acompanhamento a famílias/indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos.

Assim, formulam-se as seguintes perguntas, frutos de inquietações: como se

dá, no cotidiano, o domínio teórico-metodológico por parte dos profissionais no

Creas? De que modo ocorre a intencionalidade no acompanhamento a

famílias/indivíduos? Particularmente, como são a apreensão e vivência no cotidiano

dos assistentes sociais?

O Creas, que a pesquisadora teve a oportunidade de coordenar, está

localizado na zona sul da capital paulista, especificamente no bairro do Ipiranga – e

por esse motivo é denominado Creas Ipiranga – e abarca os distritos dos bairros

Ipiranga, Sacomã e Cursino, totalizando 463.804 habitantes3.

Ao Creas Ipiranga cabia o atendimento e acompanhamento de famílias e

indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos, por meio do Paefi, e a

supervisão técnica da rede de serviços socioassistenciais conveniados pela Smads.

À época, essa rede continha: cinco Serviços de Acolhimento Institucional para

Crianças e Adolescentes; um Centro de Acolhida 24 Horas para População em

Situação de Rua; dois Serviços de Proteção Especial a Adolescentes em

Cumprimento de Medidas Socioeducativas; um Centro de Defesa e Convivência da

Mulher; e um Núcleo de Proteção Jurídico Social.

No cotidiano profissional, observou-se que a composição das equipes do

Creas não estava em consonância com o previsto na NOB-RH Suas4. Na realidade

de São Paulo, em muitos casos, os Creas funcionavam com equipes incompletas.

3Dados de 2010, disponíveis em:

<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/subprefeituras/dados_demograficos/index.php?p=12758>. Acesso em: 20 maio 2014. 4 A NOB RH –SUAS preconiza que as equipes referência do Creas contenham: 1 coordenador, 2

assistentes sociais, 2 psicólogos, 1 advogado, 4 educadores sociais e 1 funcionário administrativo.

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Outra questão delicada se constituía na supervisão de serviços

socioassistenciais agregada à implantação do Paefi. Em algumas situações, os

técnicos encontravam-se sobrecarregados tendo de conciliar as tarefas de

supervisão e atendimento no Paefi.

Há que se destacar que, na capital, os Serviços de Proteção Especial a

Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas e, mais recentemente,

o Paefi – por meio do Núcleo de Proteção Jurídico Social – têm sido desenvolvidos

mediante parcerias público/instituições privadas, o que confronta gravemente o que

está previsto na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, e, por

conseguinte, no Suas como um todo. Desse modo, em muito há divergências na

execução da política de assistência social em âmbito municipal.

Além dessas características, a própria identidade do Creas se constituía como

um desafio para os profissionais, a rede de serviços socioassistencial e as outras

políticas públicas. Eram recorrentes as situações em que outros representantes do

Sistema de Garantia de Diretos não reconhecia ou tinha dúvidas quanto às

atribuições do Creas.

Ademais das questões estruturais, a complexidade das demandas e as

estratégias a serem adotadas no atendimento à população também se revelaram

como foco de preocupação e angústia no cotidiano dos assistentes sociais no

Creas-Paefi.

A curiosidade inicial da pesquisadora estava em como fazer o trabalho com

as famílias, mas, quando do estudo da Política Nacional de Assistência Social

(PNAS), essa indagação se estendeu, também, para a realidade do Creas,

justamente por entender que não há como tratar do fazer profissional sem tratar da

estrutura em que esse profissional se insere.

Contudo, há que se destacar que o tema “trabalho com famílias” tem se

mostrado um tanto nebuloso no Serviço Social, configurando-se em campo de

tensão nos últimos anos, seja pelas tendências ao neoconservadorismo, seja por

uma vertente crítica que defende que qualquer forma de trabalho com famílias já

caracteriza-se per si como conservadora.

Sobre o desenvolvimento de pesquisas acerca do trabalho com famílias,

Iamamoto (2011, p. 461) ressalta:

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É fundamental a retomada dos estudos sobre a família trabalhadora e as transformações que nela vêm sendo operadas como parte das relações sociais abrangentes: adensar de historicidade a análise social das famílias como contraponto às análises do campo da clínica, de teor psicologizante, como a única alternativa para os estudos das relações familiares. O estudo da família foi alvo de pouco investimento de pesquisa no passado recente da profissão, o que abriu caminho às abordagens sistêmicas e psicossociais, inspiradas em áreas correlatas e com forte teor conservador. Mas a retomada do tema está também relacionada ao fato de a família ser alvo da maior parte dos programas previstos pelas políticas sociais públicas (criança e adolescente, idoso, segurança alimentar, portadores de necessidades especiais, etc.).

A partir da afirmação da autora, é possível reconhecer que deixar de

pesquisar ou desqualificar as pesquisas relacionadas à família tem sido um

equívoco na profissão, tanto pelo risco de assumir “teor psicologizante” no trabalho

com elas, quanto pelas demandas cotidianas de trabalho apresentadas pela atual

configuração das políticas sociais.

Diante desse dilema, nesta dissertação, buscou-se trazer à pauta diferentes

ênfases a respeito dessa discussão, a partir de leituras que atentam para o efetivo

risco do conservadorismo e tendência ao familismo apontada por Campos e Mioto

(2012), bem como de outras que indicam a matricialidade sociofamiliar como um dos

eixos da PNAS que requer mais estudo e atenção.

Assim, no ambiente da prática profissional, as primeiras perguntas que

constituiriam o projeto começaram a tomar forma: Qual a estrutura dos Creas em

São Paulo? Como tem se configurado o ambiente de trabalho? De que maneiras, e

com que possibilidades, entraves e perspectivas os assistentes sociais vêm

construindo sua prática profissional no Creas? Como tem se dado o trabalho com

famílias no Paefi? Que possibilidades esses profissionais vislumbram no Suas, a

partir desse espaço de trabalho?

A intenção de alinhavar as perguntas formuladas na trajetória profissional,

sobretudo nos desafios prementes postos ao Creas, culminou, em 2012, no projeto

de pesquisa para o mestrado. A pesquisadora traz consigo a inquietação de outros

profissionais – colegas assistentes sociais e coordenadores de Creas –, mas traz

também inquietações suas que espera responder ou – quem sabe? – contribuir para

reflexões presentes e futuras sobre a realidade do assistente social nesse contexto.

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A pesquisa outrora proposta e aqui desenvolvida tem por objetivo geral

analisar – a partir das categorias cotidiano e mediação – a prática profissional do

assistente social nos Creas-Paefi na cidade de São Paulo.

Os objetivos específicos são:

Compreender a estrutura do Creas-Paefi na cidade de São Paulo;

Conhecer o cotidiano do assistente social no Creas; e

Refletir a respeito do trabalho que o assistente social desenvolve com

famílias e indivíduos no Paefi.

Na qualificação do projeto, foi possível redefinir os objetivos específicos, bem

como receber importantes indicações de bibliografias e sugestões de abordagens

para a pesquisa. Na ocasião, foi sugerido que, à indagação pelo fazer profissional no

trabalho com famílias, fosse agrupada a reflexão acerca da Política Nacional de

Educação Permanente, visto que esse debate abarca tanto a questão da estrutura e

da gestão do trabalho como a formação profissional para as especificidades do

Suas.

Inicialmente, a proposta era realizar uma entrevista grupal com assistentes

sociais inseridos no Paefi e com profissionais da gestão da Smads atuantes na

chamada “frente de Creas”. Entretanto, como dito anteriormente, no exame de

qualificação, aventou-se a possibilidade de incluir na pesquisa sujeitos envolvidos na

discussão acerca da educação permanente. Tomou forma, então, um processo para

decidir quem seriam os sujeitos desta pesquisa, a quantidade de profissionais a

serem pesquisados e suas características, e qual seria a estrutura do convite à

pesquisa.

Nesse processo de escolha e preparo, foi necessário retomar os objetivos do

trabalho e os caminhos que a pesquisadora desejava percorrer para alcançá-los.

Nesse sentido, Martinelli (1999, p. 115) reforça que

[...] o que determina a dimensão do grupo de sujeitos com os quais vamos dialogar é “o quê” estamos buscando, é o sentido da pesquisa, o objetivo para o qual se direciona, o que torna evidente que a seletividade do sujeito deve estar a favor da pesquisa e não contra ela.

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Considerando que cada palavra é revestida de especial significado, pois cada

sujeito (na perspectiva de sujeito coletivo) participante da pesquisa traz consigo a

fala de seus pares, de seu grupo,

[...] trabalhamos com a concepção de sujeito coletivo, no sentido de que aquela pessoa que está sendo convidada para participar da pesquisa tem uma referência grupal, expressando de forma típica o conjunto de vivências de seu grupo. Importante nesse contexto, não é o número de pessoas que vai prestar a informação, mas o significado que esses sujeitos têm em função do que estamos buscando na pesquisa. (MARTINELLI, 1999, p. 24).

Assim, esta pesquisa conta com sete participantes: dois profissionais

envolvidos com a educação permanente; três assistentes sociais inseridas no Creas-

Paefi; e dois assistentes sociais que passaram pelo Creas-Paefi, mas atualmente

estão na gestão (gabinete) da Secretaria Municipal de Assistência Social.

Optou-se pela metodologia de entrevista grupal, pois, segundo Lakatos e

Marconi (1986), auxilia os entrevistados a se transportarem mais facilmente à sua

realidade e proporcionam a interação entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa.

A pesquisadora fez uso apenas de perguntas norteadoras, abertas, e os

encontros aconteceram com duas duplas e um trio de profissionais. Ter optado por

não entrevistar profissionais sozinhos evidencia a intencionalidade de imprimir o

caráter coletivo no estudo. O fato de terem sido entrevistados poucos profissionais

foi considerado positivo, uma vez que todos puderam discorrer largamente sobre o

tema. A esse respeito, Martinelli (2005, p. 122-3) avalia:

[...] uma característica bastante marcante da pesquisa qualitativa é trabalhar-se com pequenos grupos de sujeitos. O importante é a densidade da experiência e não a extensão do grupo [...] o interesse do pesquisador é conhecer a experiência social de sujeitos específicos, os significativos que atribuem ao tema pesquisado.

Buscou-se proporcionar um ambiente em que as entrevistadas se sentissem à

vontade para expor suas ideias. Assim, a temática da entrevista grupal foi

esquematizada em três pilares: o Creas, a prática profissional no Creas e a

educação permanente.

A primeira entrevista foi realizada com duas profissionais (Quadro 1), que, em

suas trajetórias profissional e acadêmica, estavam habituadas a tratar de temas

como: assistência social, interdisciplinaridade e educação permanente. Ocorreu em

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dois encontros: no início e no fim do mês dezembro de 2013, ambas com duração

de aproximadamente uma hora.

Quadro 1 – Perfil das profissionais de educação permanente

Perfil Formação Trajetória profissional

na PMSP

Profissional de

educação

permanente 1

Graduada em Serviço Social e

Psicologia; mestra em Psicologia

Social; e doutora em Serviço Social

pela PUC-SP

Servidora da PMSP no

Espaço do Aprender Público

e Social (Espaso)

Profissional de

educação

permanente 2

Graduada em Ciências Sociais;

mestra e doutoranda em Serviço

Social

Atuou por um período (no ano

de 2013) na PMSP no Espaso

Fonte: Elaboração própria.

A segunda etapa de entrevistas ocorreu em março de 2014. Enviou-se um

convite com o resumo da proposta da pesquisa aos profissionais assistentes sociais

que atuam no Paefi. Nesse ponto foi necessário decidir se a pesquisa abarcaria

também profissionais que atuam no Paefi via parceria público-privada.

Considerando os princípios que norteiam este estudo – sobretudo a defesa da

política pública de assistência social como direito e, por conseguinte, do Creas como

serviço continuado –, optou-se por enfatizar que a pesquisa apenas seria realizada

com assistentes sociais servidores públicos.

Com isso, evidenciou-se o quadro dos 26 Creas5 da capital: em apenas

quatro deles, a equipe é composta por servidores públicos; desses, dois são Creas

POP – destinados exclusivamente ao atendimento à população em situação de rua –

e dois executam o Paefi, Creas Mooca e Creas Sé. Nos 22 demais, o serviço do

Paefi é ofertado por meio do Núcleo de Proteção Jurídico Psicossocial (NPJ).

5 São estes os Creas: Norte – Jaçanã/ Tremenbé; Vila Maria; Casa Verde; Santana; Freguesia do Ó;

Pirituba; Perus; Sul – Campo Limpo; M’Boi Mirim; Capela do Socorro; Cidade Ademar; Santo Amaro; Leste – Itaim Paulista; Itaquera; São Matheus; Guaianases; Sudeste – Mooca; Vila Prudente; Ipiranga; Jabaquara; Penha; Aricanduva; Centro/Oeste – Sé, Creas POP Bela Vista; e Creas POP Barra Funda. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/creas/index.php?p=2003>.

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Dado o pequeno número de profissionais lotados nos dois únicos Paefis de

execução direta, o fato de, em resposta ao convite inicial, três assistentes sociais

terem se prontificado a participar da pesquisa, permite inferir que poucos deixaram

de dar a sua contribuição. Portanto, apesar do pequeno número de profissionais, tal

presença tem expressão.

Nesta etapa, a entrevista grupal foi realizada em apenas um encontro, com

duração aproximada de duas horas, e teve como base três grandes eixos: o Creas,

a prática profissional do assistente social no Creas e o trabalho com famílias

no Paefi. As entrevistadas (Quadro 2) puderam discorrer sobre as temáticas

propostas e, esporadicamente, a pesquisadora acrescentava questões norteadoras.

Quadro 2 – Perfil das assistentes sociais do Creas-Paefi

Perfil Formação Trajetória profissional

na PMSP

Assistente social do Creas-Paefi 1

Graduada em Serviço Social há 27 anos; especialista em Gestão de Políticas Públicas

Experiência profissional em dois Creas (Guaianases – zona leste – e Sé)

Assistente social do Creas-Paefi 2

Graduada em Serviço Social há 8 anos; especialista em Gestão de Pessoas

Experiência profissional na Secretaria Municipal de Saúde; atualmente, assistente social no Creas-Sé

Assistente social do Creas-Paefi 3

Graduada em Serviço Social há 10 anos

Quatro anos de experiência profissional no Creas-Mooca como coordenadora; atualmente, assistente social

Fonte: Elaboração própria.

Na terceira e última etapa de coleta de dados, a entrevista foi realizada com

duas assistentes sociais (Quadro 3) que passaram pelo Creas e pelo Paefi e

atualmente exercem sua prática profissional no gabinete da Secretaria Municipal de

Assistência Social – ambas na área da proteção social especial de média e alta

complexidade.

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Quadro 3 – Perfil das assistentes sociais do Creas-Paefi - gestão

Perfil Formação Trajetória profissional na

PMSP

Assistente social – gestão 1

Graduada em Serviço Social há 14 anos; mestra em Gerontologia (PUC-SP); especialista em Violência Doméstica e Saúde Mental

Três anos de experiência no Creas-Vila Prudente, como assistente social, membro e coordenadora da equipe de proteção especial da extinta CAS – Sudeste; atualmente, membro da equipe de proteção especial do gabinete de Smads na frente de serviços de acolhimento institucional para crianças e adolescentes

Assistente social –gestão 2

Graduada em serviço social há 11 anos

Assistente social no Creas-Vila Prudente e coordenadora no Creas-Aricanduva; atualmente, membro da equipe de proteção especial do gabinete de Smads na frente de Creas

Fonte: Elaboração própria.

Essa entrevista transcorreu como as anteriores, de modo fluido, em que as

entrevistadas discorreram a partir dos três eixos: o Creas, a prática profissional do

assistente social no Creas e o trabalho com famílias no Paefi. O foco foi o relato

de suas experiências no Paefi e as reflexões sobre as suas atuações como

assistentes sociais inseridas na gestão da política, na cidade de São Paulo.

Importa destacar que, como se sabe, a assistência social é uma política em

movimento e que no período de elaboração do projeto de pesquisa, no exame de

qualificação e na fase de coleta dos dados, mudanças significativas ocorreram na

cidade de São Paulo: de gestão municipal, em razão das eleições realizadas em

outubro de 2012 (quando foi eleito o prefeito Fernando Haddad – PT-SP para o

período de 2013-2016); realização de concurso público no Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo, que resultou na exoneração de várias assistentes sociais que

estavam lotadas nos Creas. Em âmbito nacional, as mudanças significativas foram a

publicação da nova versão da Norma Operacional Básica (NOB) do Suas, em 3 de

janeiro de 2013, e a da Política Nacional de Educação Permanente, em 20 de março

de 2013.

Diante do exposto, a presente dissertação de mestrado foi construída com o

intuito de contribuir para a reflexão da prática profissional do assistente social no

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Creas-Paefi, com base na perspectiva marxista e a partir da compreensão do serviço

social como prática profissional, elemento constitutivo da prática social.

Assim, para alcançar os objetivos propostos, este trabalho foi estruturado em

duas partes. A primeira contém dois capítulos: o primeiro capítulo trata das bases

teóricas do estudo e o segundo capítulo trata da política social.

No primeiro capítulo, julgou-se como etapa necessária ao caminho a ser

percorrido abordar os temas trabalho, questão social, violação, vulnerabilidade,

risco, exclusão, bem como o conceito de sofrimento ético-político. Buscou-se avaliar

e situar cada uma dessas temáticas no solo do sistema capitalista e em suas

características excludentes.

No transcorrer desse capítulo, com o intuito de definir o eixo norteador para a

análise da pesquisa, as categorias cotidiano e mediação foram abordadas com base

nos escritos de Lukács (1979), Heller (1994, 2008) e Pontes (2001). Tal ênfase se

justifica pela compreensão das potencialidades e dos riscos implícitos na

cotidianidade, bem como das necessárias mediações implícitas no fazer profissional.

No último item, desfecho do capítulo, refletiu-se acerca da possibilidade de

considerar o “que fazer” do assistente social como trabalho ou como prática

profissional. Nessa reflexão, foi possível – e necessário – pontuar a preferência da

pesquisadora pela premissa de considerar esse “que fazer” como prática profissional

do assistente social.

O segundo capítulo desenvolve a temática da política social, notadamente a

política de assistência social. A política social na cena brasileira é abordada com

ênfase no período pós-Constituição de 1988, por ser este um momento emblemático

para a Seguridade Social, sobretudo pelo reconhecimento da assistência social

como política pública de seguridade.

No mesmo capítulo, é apresentado um rápido panorama da configuração da

assistência social como política pública da seguridade social, seus percalços e suas

conquistas até a criação do Suas, a publicação da PNAS, que, por sua vez, implicou

a criação dos níveis de proteção básica e especial e, no bojo desta última, o Creas.

Também são temas abordados: as Normas Operacionais Básicas do Suas (NOB-

2005, NOB-2012 e NOB-RH) e a Política Nacional de Educação Permanente do

Suas, publicada em 2013.

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A opção por mencionar essas normativas, na sequência do item Creas

justifica-se pela intencionalidade deste estudo de refletir sobre o profissional, o

assistente social no Creas. Por isso, as informações sobre equipes de referência,

sobre a estrutura do Creas, a gestão do trabalho no Suas e a formação continuada

de seus profissionais, aparecem como coadjuvantes – muito importantes! – para

promover a reflexão sobre a prática profissional do assistente social no Creas-Paefi.

Assim, neste capítulo, optou-se apenas por apresentar a política de

assistência social, notadamente, o Creas, centrando-se em sua estrutura e

características, a fim de compartilhar na reflexão sobre os avanços e retrocessos,

limites e possibilidades, contidos no panorama dos Creas – o que se dará nos

capítulos de análise dos dados.

Na segunda parte desta dissertação, estão contidos o terceiro e o quarto

capítulos. No terceiro capítulo, debruçou-se sobre o conhecimento e a reflexão

acerca da realidade do Creas na capital paulista. Não foi possível realizar – e não

era proposta desta pesquisa – a análise de cada unidade do Creas, mas buscou-se

conhecer o panorama atual geral dos Creas no município.

Como já exposto, na realização das entrevistas, foram eleitos três pilares

temáticos para análise: o Creas; o assistente social no Creas; e a prática profissional

do assistente social no Paefi. A análise da fala dos profissionais, a partir desses três

pilares, deu-se com base nas categorias cotidiano e mediação.

O referencial teórico da pesquisadora e os elementos apresentados nos

capítulos anteriores serviram como linha para alinhavar as falas, as experiências, as

análises e a realidade de cada profissional. Assim, o exercício neste capítulo

consistiu em acolher a fala dos profissionais, refletir sobre elas e analisá-las, com o

intuito de extrair destas – nas palavras de Lefebvre – “as riquezas do cotidiano”.

Por esse motivo, optou-se por não fazer muitos cortes nas falas das

profissionais entrevistadas. Suas falas foram longas, intensas, ricas de história, de

preciosas análises, de alegria e de sofrimento vividos na prática profissional. O ritmo

e a intensidade de cada fala representam bem os desafios da política de assistência

social, sobretudo no Creas-Paefi. Nesse sentido, Martinelli (2005, p. 74) contribui

para a reflexão da prática teórica sob uma perspectiva histórica:

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O saber que decorre da própria prática e que acumulamos na vivência com os sujeitos usuários das instituições é extremamente valioso, e se bem soubermos utilizá-lo teremos aí excelente material para produção de novas mediações capazes de nos levar a atingir os objetivos buscados. Não há prática pronta, tampouco prática neutra; sua produção como teoria em movimento é um ato coletivo, político, uma ação cooperativa e complementar entre os sujeitos sociais, sejam eles agentes, sejam usuários institucionais.

É importante destacar que, intencionalmente, buscou-se abordar o “trabalho

com famílias” justamente por se tratar de assunto estigmatizado no serviço social, de

forma que, sempre que possível, ao longo deste estudo, esse tema foi situado como

“trabalho com famílias e indivíduos” na perspectiva da matricialidade sociofamiliar.

No quarto capítulo, prossegue-se à apresentação do material colhido nas

entrevistas, contudo com um direcionamento para a temática da formação

continuada do assistente social para as demandas do Paefi.

Num primeiro momento, a pesquisadora aventou a possibilidade de trazer o

conteúdo deste capítulo como apêndice da dissertação, porém, após refletir, ficou

clara sua vinculação com o terceiro capítulo – que trata especificamente do Paefi.

Assim, por compreender que esse tema não está diretamente ligado ao objeto da

pesquisa – mas se constitui como uma importante perspectiva a ser discutida a

respeito da prática profissional –, neste item não foi realizada uma análise profunda

da temática, tampouco se teve por proposta debater a perspectiva da educação

permanente, mas sim fomentar seu potencial para a reflexão da prática profissional

cotidiana do assistente social nos Creas. Nesse sentido, buscou-se enfatizar o valor

dos percursos formativos da trajetória profissional e a indicação da perspectiva da

educação permanente como instrumento potente para o fortalecimento da prática

profissional no Suas.

Em suma, esta dissertação é parte de uma série de produções que vem

debatendo a assistência social como política pública. Espera-se que as reflexões e

os resultados aqui apresentados subsidiem o amadurecimento acerca da prática

profissional do assistente social nesta política e o seu trabalho no Creas.

Tomando como inspiração a reflexão da Profa. Dra. Aldaíza Sposati – que fez

uma interessante análise da Loas e a denominou de “a meninas Loas” –, pode-se

dizer que se acompanha no Brasil o desenvolvimento da “menina PNAS”, que conta

com 10 anos de idade, e do “menino Suas”, que – no momento desta pesquisa –

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conta com apenas com 3 anos e alguns meses6. Que esse crescimento e esse

desenvolvimento se deem de forma saudável, protegida de riscos e violações, e que

prossigam, com status de direito de cidadania a quem dela necessitar e, quem sabe,

até um dia em que o trabalho com vítimas de violação não seja mais necessário.

6 A contar da publicação da Lei 12.435, de 6 de julho de 2011.

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CAPÍTULO 1

ORIGENS E MANIFESTAÇÕES DA QUESTÃO SOCIAL: RISCO, VULNERABILIDADE

E EXCLUSÃO SOB A ÓTICA DA MEDIAÇÃO E DO COTIDIANO

1.1 Trabalho, Questão Social e a Perspectiva de Totalidade

Para refletir sobre as temáticas de risco, exclusão e violência, é fundamental

compreender o contexto em que são geradas. Desse modo, neste capítulo, realiza-

se o exercício de – a partir das características da sociedade capitalista – identificar a

configuração e as manifestações da questão social.

Importa considerar, também, que o risco, a exclusão e violência são

fenômenos a serem compreendidos na perspectiva da totalidade, ainda que

manifestados, por exemplo, de forma singular, na realidade de determinada família

atendida no Creas. Esse exercício de mediação será realizado ao longo deste

estudo.

Para Kosik (2002, p. 44):

Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se não são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis de cuja reunião a realidade

saia constituída – se são entendidos como partes estruturais do todo.

A concreticidade, desse modo, é a realidade manifestada em todos os fatos

que permeiam a vida em sociedade. Na reflexão, a partir da totalidade e da

concreticidade, é que se encontra o desafio de compreender os fatos da realidade

social. Isso não significa que, a partir dessa premissa, se conheçam exatamente

todos os fatos, mas que todos os fatos são compreendidos em um todo, ou seja, em

sua totalidade.

O autor ainda alerta que, no desafio de conhecer o que é real, não se deve

cair na pseudoconcreticidade (um fetichismo aparente do que é o fenômeno), pois:

“Na ‘má totalidade’ a realidade social é instituída apenas sob as formas de objeto,

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resultados e fatos já dados, e não subjetivamente, como práxis humana objetiva”

(KOSIK, 2002, p. 62). Também atenta que há de se considerar o caráter histórico do

fenômeno, sua função objetiva e o lugar histórico que ocupa na realidade social

(KOSIK, 2002, p. 61).

O trabalho, por sua vez, é categoria central para a compreensão da realidade

social e dos modos de vida dos homens na sociedade. No trabalho, o homem

constitui-se, transforma-se e à natureza. Marx (1983) destaca que nem mesmo o

trabalho minucioso de uma aranha em sua teia, ou de uma abelha na colmeia, é

semelhante ao de um péssimo arquiteto, pois a diferença está no fato de que o

arquiteto planeja a construção em sua mente.

A intencionalidade e a capacidade de planejar fazem com que o trabalho do

homem seja único em relação ao dos demais seres vivos. Todo trabalho pressupõe

uma atividade, um instrumento e um fim. Aqui, cabe destacar o caráter de mediação

que o instrumento exerce entre quem executa o trabalho e o resultado dele obtido.

Netto e Braz (2007, p. 32) definem que a natureza não cria por si

instrumentos, quem o faz é o homem, sujeito do trabalho, e essa relação (homem-

instrumento-resultado do trabalho) evidencia o importante processo de escolha de

como ocorrerá a construção dos instrumentos, como serão utilizados, enfim, coloca

em pauta o “problema dos meios e dos fins”. Como no conhecido ditado “os fins

justificam os meios”, no capitalismo, o objetivo do lucro implica a exploração e o

acirramento da desigualdade social.

Nesse ponto, é imprescindível considerar a questão social, fruto da relação

capital-trabalho, pois nem sempre o trabalho leva o homem e a sociedade a

patamares mais elevados de vida. Na lógica do capital, há diversos antagonismos,

pois o trabalhador não conhece e não detém os frutos de seu trabalho. A riqueza

socialmente produzida é centrada nas mãos de poucos e os meios produtivos são

apropriados por uma classe privilegiada em detrimento da classe que vive do

trabalho. Em suma, na sociedade do capital, não é possível acumular riqueza sem

exploração. Assim, a questão social é produto da sociedade de classes e

inseparável do processo de acumulação capitalista.

Pereira (2004) ressalta que há duas vertentes na análise da questão social. A

primeira diz respeito à perspectiva positivista, que “culpabiliza” o indivíduo pela

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condição em que se encontra. A segunda vertente relaciona-se com a visão

estruturalista, na qual se faz uso de um discurso genérico, em que se observam

apenas as questões estruturais e são deixadas de lado as mediações devidas e o

impacto que a questão social tem na vida de cada sujeito.

Assim, é imperativo lembrar que o acirramento da questão social manifesta-se

em graus mais elevados na realidade da classe que vive do trabalho7, seja esta

marcada pelo desemprego, subemprego, ou, ainda, pela miséria, fome, e exclusão

social, aspectos que caracterizam as mais variadas formas de violência.

Kosik (2002, p. 222, grifo do autor) afirma que na produção e reprodução da

vida social, as categorias econômicas são incompreensíveis se não forem vistas

segundo a práxis.

A práxis, na sua essência e universalidade, é revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade (humana e não humana, a realidade na sua totalidade). A práxis do homem não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade.

A práxis compreende, além da esfera laborativa, a esfera existencial, pois

envolve tanto a atividade objetiva do homem que transforma a natureza, quanto a

atividade subjetiva humana, como também a angústia, o medo, a alegria, e a

esperança. Sem a esfera existencial, o trabalho deixaria de ser práxis (KOSIK, 2002,

p. 224).

Netto e Braz (2007, p. 44, grifo dos autores), nessa mesma ideia – o homem é

muito mais do que trabalho –, lembram que a categoria práxis envolve o trabalho, e

inclui todas as objetivações humanas:

A categoria práxis permite apreender a riqueza do ser social desenvolvido: verifica-se, na e pela práxis, como, para além de suas objetivações primárias constituídas pelo trabalho, o ser social se projeta e se realiza nas objetivações materiais e ideais da ciência, da filosofia, da arte, construindo um mundo de produtos, obras e valores – um mundo social, humano enfim, em que a espécie humana se converte inteiramente em gênero humano. Na sua amplitude, a categoria de práxis revela o homem como ser criativo e autoprodutivo: ser da práxis, o homem é produto e criação da sua auto-atividade, ele é o que (se) fez e (se) faz.

7 Para este trabalho, usa-se como referência o termo “classe que vive do trabalho”, utilizado por

Antunes (2005), pois possibilita a interpretação da classe trabalhadora para além da classe operária.

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Assim, mais do que produzir apenas produtos ou coisas, com o trabalho, os

homens constroem quem são e como são seus modos de vida.

Ao produzirem meios de vida, homens produzem sua vida material. O modo de produzir os meios de vida refere-se não só à reprodução física dos indivíduos, mas à reprodução de determinado modo de vida. A produção da própria vida no trabalho e da alheia na procriação dá-se numa dupla relação natural e social; social no sentido de que compreende a cooperação de muitos indivíduos. Portanto, determinado modo de produzir supõe, também, determinado modo de cooperação entre os agentes envolvidos, determinadas relações sociais estabelecidas no ato de produzir, as quais envolvem o cotidiano de vida da sociedade (IAMAMOTO, 2012, p. 21, grifo da autora).

É importante mencionar que na realidade vivida se estabelecem as relações

sociais,

trata-se, portanto, de uma totalidade concreta em movimento, em processo de estruturação permanente. Entendida dessa maneira, a reprodução das relações sociais atinge a totalidade da vida cotidiana, expressando-se tanto no trabalho, quanto na família, no lazer, na escola, no poder, etc., como também na profissão (IAMAMOTO, 2012, p. 79, destaques da autora, grifo nosso).

1.2 Violência, Violação, Vulnerabilidade, Risco e Exclusão: Faces do

Sofrimento Ético-Político

Neste item, na perspectiva da totalidade, importa compreender a violência,

para além da ocorrência doméstica, como violação de direitos sociais, sem, contudo,

perder de vista o sujeito e suas relações familiares e sociais. Nessa premissa,

qualquer forma de violência, dentro ou fora do âmbito familiar, é uma violação à vida.

Assim, neste trabalho, utiliza-se o termo “violação”, compreendida em um panorama

mais abrangente, ainda que a palavra “violência” seja utilizada.

Sobre o tema “vulnerabilidade social”, Eufrásio (2014) auxilia na síntese a

respeito de seu uso no Serviço Social e nas políticas sociais, notadamente na de

assistência social. A autora afirma que o termo vulnerabilidade social passou a ser

utilizado a partir da década de 1990 por organismos como o Banco Mundial, a

Organização das Nações Unidas (ONU) e a Comissão Econômica para a América

Latina e o Caribe (Cepal), com a finalidade de orientar os países periféricos. Surgiu

associado ao conceito de risco e passou a ser usado na área de políticas públicas

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com o objetivo de ampliar o entendimento de exclusão social e pobreza. Nesse

cenário, é interessante compreender a vulnerabilidade social como a exposição ou

a propensão a um ou diversos tipos de risco.

Sposati (2009, p. 34) caracteriza a vulnerabilidade relacionada ao fato de

estar predisposto à “precarização”/violação. Destaca que o uso indiscriminado do

termo vulnerabilidade, desassociado da compreensão do “risco”, deixa a pessoa,

ou população chamada de vulnerável, num lugar permeado por estigmas, vinculado

à ideia de “carente”. Por esse motivo, a autora orienta que o conceito de

vulnerabilidade deve ser sempre acompanhado e referenciado ao conceito de risco.

O risco deriva da ideia de risco econômico (PAULILO, 1999 apud DOUGLAS,

1994). Essa autora menciona que, no século XVII, o termo passou a ser utilizado por

ocasião dos jogos de aposta e, posteriormente, no século XVIII, estendeu-se para a

realidade dos seguros de comércio marítimo em seus cálculos probabilísticos. Mais

tarde, no século XIX, a teoria do risco desenvolveu-se e passou a ser usada nas

situações de investimentos financeiros. Mais recentemente, a ideia de risco deixou

de ser apenas associada à probabilidade, revestiu-se de conotação de perigo e

passou a ser usada também na análise de conflitos entre países ou, ainda, na

análise de risco de catástrofes ambientais. Assim, Paulilo (1999, p. 23) também

relaciona essa transformação com o fenômeno da globalização:

E o termo risco é a palavra que melhor se ajusta à nova cultura global dos tempos modernos na medida em que supre as demandas políticas e coletivas de um mundo mais amplo. Risco distanciou-se, portanto, de sua antiga conexão com cálculos técnicos de probabilidade e nos dias de hoje está muito mais associado à possibilidade de resultados negativos. Na medida em que a palavra risco tornou-se um constructo cultural na América, seu significado foi transformado. Riscos altos significam hoje muito perigo.

O termo também se tornou referência na área da saúde, sobretudo

relacionado às iniciativas de enfrentamento à síndrome decorrente do Human

Immunodeficiency Virus-Acquired Immunodeficiency Syndrome (HIV-Aids). A PNAS

(2004) traz em seu texto os termos risco e vulnerabilidade social.

Em face do exposto, a discussão acerca da vulnerabilidade e do risco abre

espaço para as estratégias de prevenção dessas situações. E esse é um desafio

latente, na política social, notadamente na Política de Assistência Social brasileira.

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Para além de uma questão adjetiva, é mister refletir sobre a origem e as

consequências do risco. Na sociedade capitalista, o risco social pode surgir pela

apropriação desigual da riqueza produzida e pelas formas de exploração advindas

desse processo, as quais expõem contingentes populacionais a situações de risco,

como moradia precária, fome, desemprego e violência. Nesse sentido, Sposati

(2009) destaca que discutir o risco pressupõe a análise de seu conteúdo adjetivo,

substantivo e temporal – o que é risco, o que representa e as consequências futuras

ou, ainda, as estratégias de prevenção a serem adotadas no seu entorno.

Para este trabalho, interessa destacar a análise de Sping Andersen (2000,

apud SPOSATI, 2009), ao considerar que os riscos atuais manifestam-se de

maneira diferenciada, em relação aos surgidos no período do Estado de Bem-Estar

(welfare state), na metade do século XX. Além das situações de desemprego e

ingresso precário no mercado de trabalho, o autor atenta para os riscos vivenciados

pelas famílias, como pobreza na infância, rearranjos familiares e famílias

monoparentais. Para ele, essas modificações requerem novas estratégias das

políticas sociais de proteção.

Aqui cabe mencionar o conceito de exclusão, pois, além de emblemático no

estudo das manifestações da questão social, é objeto de diversas discussões no

âmbito das ciências sociais.

Sawaia (2001), organizadora da obra As Artimanhas da Exclusão Social:

Análise Psicossocial e Ética da Desigualdade Social – que conta com a participação

de autores oriundos da Psicologia Social, Sociologia e do Serviço Social –, enfatiza

no prefácio que exclusão não é sinônimo de pobreza ou discriminação, pois, se

assim o fosse, o escopo maior – o da injustiça social – ficaria apartado dessa

discussão. Assim, exclusão “é processo sócio-histórico que se configura pelos

recalcamentos em todas as esferas da vida social, mas é vivido como necessidade

do eu, como sentimentos, significados e ações” (SAWAIA, 2001, p. 8).

Em artigo na obra supracitada, Wanderley (2001) apresenta as diferentes

formas do conceito de exclusão utilizadas na década de 1990 nas literaturas

francesa e brasileira: a) desqualificação (PAUGAM, 1991): para o autor, é o inverso

da integração social, fruto da pobreza e da falta de integração social. Nessa

perspectiva, o Estado deve oferecer mecanismos de coesão social; b) desinserção

(GAUJELAC; LEONETTI, 1994): também é caracterizada como o inverso da

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integração, porém, os autores não a relacionam com a pobreza. A análise dá ênfase

às características simbólicas: é o sistema de uma sociedade que define quem são

os que não têm utilidade social; c) desafiliação (CASTELL, 1995): é compreendida

como o processo de sucessivas rupturas, não apenas na ordem da “pauperização”,

mas também nas relações de vínculo.

Dentre os autores brasileiros, destacam-se: a) Cristovam Buarque (1995),

com sua definição de apartação social. O autor lembra que, no Brasil, o verbo

“apartar” é utilizado para separar o gado e, aplicado nesse caso, representa

caracterizar o outro como apartado da vida social como um todo, apartado como não

humano; b) José de Souza Martins (1997), que rebate o conceito de exclusão e

defende que este é insuficiente e perigoso, pois, além de não contemplar a inclusão

perversa, pode confundir a compreensão das origens da exclusão.

Por isso, rigorosamente falando, não existe exclusão: existe contradição, existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes, existe conflito pelo qual a vítima de processos excludentes proclama seu inconformismo, seu mal-estar, sua revolta, sua esperança, sua força reivindicativa e sua reivindicação corrosiva (MARTINS, 1997, p. 14).

Na conclusão de sua análise, Wanderley (2001, p. 23) ressalta que:

A exclusão contemporânea é diferente das formas existentes anteriormente de discriminação ou mesmo de segregação, uma vez que tende a criar, intencionalmente, indivíduos inteiramente desnecessários ao universo, para os quais parece não haver mais possibilidades de inserção.

A autora também lembra que, no Brasil, a exclusão tem particularidades

sociais, econômicas e históricas (um exemplo é a herança escravocrata que ainda

deixa seus traços na realidade da população).

Assim, importa destacar que a integração e coesão de que tratam, sobretudo,

os autores franceses, não significam a resolução ou o fim das formas de exclusão.

São, sim, instrumentos paliativos de sobrevivência – e, no caso de coesão, num

sentido limitado – num sistema que, em sua concepção, é excludente. Dessa forma,

Sawaia (2201, p. 9, grifo nosso) conclui:

Em síntese, a exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema.

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Após refletir sobre violência, vulnerabilidade, risco e exclusão, cabe

mencionar a relevância do tema “subjetividade”. Sobre a premissa de uma teoria

marxista da subjetividade, Bertrand (1989, p. 21) defende que “Marx não renunciou à

procura do fundamento tanto subjetivo, quanto social, do imaginário e das

ideologias”. Ressalta que a crítica ao Estado e ao mundo “real” dá lugar à crítica da

economia, à divisão do trabalho em a Ideologia Alemã e, mais tarde, aos modos de

produção em O Capital.

A autora enfatiza, contudo, que a subjetividade deixa de ser uma

característica premente da obra marxiana. Nesse sentido, para ela, é preciso rebater

os argumentos de divisão entre a obra do jovem Marx e sua obra na maturidade. Há

que se lembrar de que Marx trata de temas como a ideologia, ilusão, o genérico e a

alienação, ao longo de sua obra.

Doray (1989, p. 85) aponta que é preciso admitir que as perspectivas

marxistas no campo da dimensão subjetiva das relações de produção têm sido

pouco trabalhadas, o que, para o autor, é surpreendente, pois a teoria marxista

parece rica em potencialidades, nesse terreno. Sobre a subjetividade, define que

O campo da subjetividade engloba o conjunto dos processos pelos quais o indivíduo em estreito contato com as estruturas simbólicas da cultura humana, tenta assumir e abrir um acesso à forma genérica de seu ser (DORAY, 1989, p. 85, grifo do autor).

Sawaia (2009) chama a atenção para o fato de que um dos desafios no

combate à exclusão social é a elucidação do sistema afetivo-criativo, pois é o que

sustenta a servidão nos planos intersubjetivo e macropolítico. Para a autora, essa

elucidação é imperativa para o planejamento da práxis.

Nesse sentido, a psicologia social, em sua vertente sócio-histórica, propõe a

análise da relação entre subjetividade e desigualdade social, para romper com a

dualidade universal-singular, pois, no bojo da desigualdade, há também vida,

sofrimento, medo, humilhação e vontade de ser feliz.

Em síntese, nesse entendimento, a subjetividade constitui a objetividade

social; contudo, é necessário trazer à memória que a subjetividade não tem sido

aceita pelo paradigma científico clássico, por não ser mensurável. Por esse motivo,

urge combater compreensões unilaterais dos fenômenos e, sobretudo, dos

desdobramentos dos fenômenos na sociedade e no cotidiano dos homens.

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Colocar a subjetividade em lugar de destaque que propicie profunda reflexão

é fundamental para que as ciências humanas, sobretudo na vertente sócio-histórica

materialista-dialética, avancem em temas como vida cotidiana e sofrimento,

rebatendo com sólido embasamento teorias pós-modernas.

Nessa perspectiva, Sawaia (2001) se apoia na “filosofia da alegria”, de Baruch

Espinosa (1632-1677), e na “teoria sócio-histórica libertária”, de Lev Vigotski8 (1896-

1934), e na produção acerca do cotidiano de Agnes Heller (1979), pois a leitura

desses pensadores contribui para a compreensão de uma práxis social

transformadora.

Quando se aborda subjetividade, sobretudo, a partir de uma perspectiva

crítica, para subsidiar as discussões no Serviço Social, o termo “sofrimento ético-

político” revela-se como imprescindível suporte. A premissa é refletir a exclusão a

partir da afetividade e qualificá-la como “ético-política”, a fim de demarcar um

enfoque epistemológico e ontológico. Essa demarcação é necessária, pois a

tendência clássica é combater a afetividade e subjetividade como antagônicas à

razão e ordem.

A autora alerta que o psicólogo – e o assistente social, como reflete a

pesquisa aqui exposta –, por medo do psicologismo, tende a abandonar o sujeito,

suas alegrias, seus sofrimentos e tudo o que representa o singular, criando, assim,

uma “cilada mortífera à sua práxis” (SAWAIA, 2001). Assim, a escolha do conceito

“sofrimento” é emblemática, pois indica que um sofrimento social redunda em um

sofrimento concreto, podendo, inclusive, gerar morte biológica.

Com base nos estudos de Sawaia (2001, p. 100), esse conceito traz em seu

bojo elementos importantes para a reflexão sobre desigualdade e exclusão:

Perguntar por sofrimento e por felicidade no estudo da exclusão é superar a concepção de que a preocupação do pobre é unicamente a sobrevivência e que não tem justificativa trabalhar a emoção quando se passa fome. Epistemologicamente, significa colocar no centro das reflexões sobre exclusão a ideia de humanidade e como temática o sujeito e a maneira como se relaciona com o social (família, trabalho, lazer e sociedade) de forma que, ao falar de exclusão, fala-se de desejo, temporalidade e afetividade, ao mesmo tempo que de poder, de economia e direitos sociais.

8 Psicólogo social russo, crítico de arte que desejava estudar a emoção na arte. Não encontrou isso

na psicologia formal e buscou referenciar-se na dialética de Marx e em Espinosa. É considerado o fundador da psicologia marxista.

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[...] A exclusão vista como sofrimento de diferentes qualidades recupera o indivíduo perdido nas análises econômicas e políticas, sem perder o coletivo, Dá força ao sujeito, sem tirar a responsabilidade do Estado.

A autora lembra que o conceito de “sofrimento ético-político” deve estar

sempre associado à perspectiva dialética, sob os temas inclusão/exclusão e

desigualdade. Assim, reitera que é no sujeito que se manifestam as mais variadas

formas de exclusão, é ele que as sente em seu cotidiano, em sua vida; contudo, é

necessário lembrar as causas da exclusão e que o sujeito não pode superá-las

sozinho, pois

Sofrimento é a dor mediada pelas injustiças sociais. É o sofrimento de estar submetido à dor e à opressão, e pode não ser sentido como dor por todos. É experimentado como dor, na opinião de Heller, apenas por quem vive a situação de exclusão ou por “seres humanos genéricos” e pelos santos, quando todos deveriam estar sentindo-o, para que todos se implicassem com a causa da humanidade (SAWAIA, 2001, p. 104, grifo nosso).

Sawaia (2001) aponta que o oposto do sofrimento ético-político é a “felicidade

pública”, que difere do prazer e da alegria, pois não é um fim em si mesmo. Sawaia

(2009, p. 370) avança nessa reflexão e refuta a ideia de que a busca da felicidade é

uma ato de egoísmo e de que é preciso ser consciente para ser livre. Para a autora,

Espinosa e Vigotski vão na direção contrária, pois “[...] a busca da felicidade é um

ato político e que só se é consciente quando se é livre, isto é, quando a consciência

resultar de uma decisão interior, autônoma, e não de obediência a um comando ou

pressão externa”.

Enfim, o estudo da violência, do risco, da vulnerabilidade e da exclusão (suas

origens e possibilidades de enfrentamento), sob a ótica do sofrimento ético-político,

requer uma reflexão a respeito da manifestação dessas mazelas cotidianas, na vida

de todo homem. Aponta, também, para a categoria mediação, pois se faz necessário

desvelar essas manifestações nas esferas universal, particular e singular. Para

tanto, no próximo item, realiza-se essa reflexão.

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1.3 Cotidiano e o Conceito de Mediação

Para tratar da categoria “cotidiano”, as reflexões aqui expostas são pautadas

nos escritos de Henri Lefebvre, em A Vida Cotidiana no Mundo Moderno, e Agnes

Heller, em O Cotidiano e a História, respectivamente.

Lefebvre (1968, p. 37) reforça o que já havia tratado em sua obra Introduction

à la Critique de la Vie Quotidienne (1946) e critica o estudo da sociedade sob a ótica

marxista de modo polarizado: pela ênfase no “economicismo” ou pela ênfase no

“filosofismo”. Não aceita que a herança deixada pelo pensamento marxiano seja

reduzida a uma (crítica) economia política ou um sistema filosófico (materialismo

dialético). Defende, sim, que, quando Marx aplica o termo “produção” – sobretudo

quando se recorre às obras do jovem Marx – este está revestido de um sentido

amplo. Assim, para além da produção das coisas (produção material), é possível

falar em produção “espiritual”, a produção do ser humano por si mesmo, ou seja, a

produção das “relações sociais”.

E, a partir dessa premissa, é possível avançar para a reflexão do cotidiano,

pois a esfera do cotidiano não é inferior à filosófica. O autor afirma que, quando a

filosofia se declara suficiente, refutando o não filosófico, esta destrói a si mesma.

Vamos separar definitivamente a pureza filosófica e a impureza cotidiana? Vamos considerar desamparado o cotidiano, abandonado pela sabedoria à sua própria sorte? Podemos dizer que é a tela que impede a profundidade luminosa de jorrar contra o ser, deturpação da verdade, e “na medida em que é isso tudo”, faz parte da verdade do ser? Ou tornamos vã a filosofia, ou fazemos dela a cabeça e o ponto de partida de uma transformação do mundo não filosófico, na medida em que ele se revela trivialidade, banalidade prática e prática banal. (LEFEBVRE, 1968, p. 18).

Não é desnecessário repetir que na vida cotidiana é que se expressam as

relações sociais, os modos de vida dos homens. O cotidiano não é uma categoria

lógica, mas ontológica. Na esfera do cotidiano é que as pessoas nascem, vivem e

morrem. Nele é que manifestam suas necessidades, vivem ou sobrevivem,

trabalham, comem, vestem, reproduzem valores e culturas. “É no cotidiano que se

tem prazer ou se sofre. Aqui e agora” (LEFEBVRE, 1968, p. 27).

Para não incorrer no risco de cair numa dualidade maniqueísta de bem/mal, é

importante considerar que o cotidiano, assim como a filosofia, tem seus dilemas.

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Heller (2008, p. 57) ressalta que “a vida cotidiana, de todas as esferas da realidade,

é aquela que mais se presta à alienação”. Lefebvre (1968, p. 23) reforça que “o

homem cotidiano se mostra perdido: entravado, preso por mil laços, às voltas de mil

probleminhas miúdos”. Por esse motivo, cabe desvelar a riqueza e a miséria do

cotidiano, pois a alienação filosófica pressupõe verdade sem realidade e a alienação

cotidiana pressupõe realidade sem verdade (LEFEBVRE, 1968). Assim, segundo

Heller (1994, p. 18), não é a abolição da vida cotidiana que deve ser buscada, mas a

formulação de uma vida cotidiana não alienada.

Para o objeto deste estudo, importa considerar a inserção do assistente social

no Creas em seu trabalho no Paefi. Como, estando “às voltas com mil probleminhas

miúdos”, trabalhar numa perspectiva e consciência de totalidade?

Heller (2008, p. 34), por sua vez, aponta que a vida cotidiana não está fora da

história, mas no centro do acontecimento histórico, pois os acontecimentos

marcantes da vida cotidiana contados nos livros partem da história e a ela retornam.

Desse modo, quando uma pessoa assimila a cotidianidade de sua época, assimila,

também, o passado da humanidade.

A autora descreve a vida cotidiana como do “homem inteiro”, compreendendo

que o homem participa com todos os aspectos de sua individualidade,

personalidade, e nela expressa suas paixões, seus afetos e suas ideologias. Assim,

apoiada no pensamento de Georg Lukács, Heller (2008) lembra que o homem inteiro

é que tem condições de intervir na sociedade. E essas condições só lhe são

favoráveis quando a atividade cotidiana se eleva ao nível da práxis e torna-se

“atividade humano-genérica consciente”.

Contudo, só se atinge o patamar de atividade humano-genérica por meio da

suspensão do cotidiano. O sujeito interrompe o curso natural de seu cotidiano para

se dedicar às atividades únicas, que, em outro momento, se refletirão na vida

cotidiana. A autora explica que a suspensão do cotidiano traz a possibilidade de

homogeneização, na qual o homem que a vivencia “homogeneíza” os fatos

cotidianos para se concentrar em um de seus aspectos (por ex.: grandes cientistas,

artistas e escritores que se isolam, ou se concentram, tanto em sua obra por

determinado período que passam a viver num outro patamar da cotidianidade: o

patamar da genericidade). Assim, essa homogeneização consiste no que a autora

chama de “homem inteiro e pode abrir caminho para o “humano-genérico”, em que o

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homem viveria a completa saída da cotidianidade alienante na qual se insere; a

completa suspensão da individualidade; e ocorreria a passagem de “homem inteiro”

até tornar-se, também, “homem inteiramente”, enfim, o “humano-genérico”.

O termo “humano-genérico” refere-se ao homem que se coloca pleno e livre

para exercer suas habilidades, seu trabalho; remete sempre para uma “consciência

de nós”, nunca para o “eu”. O homem é um ser genérico: produto e expressão das

relações sociais. O representante do humano-genérico não é jamais um homem que

se entende isolado, mas aquele que busca sempre estar em integração, tendo como

ponto de partida a consciência do “nós”. Só a partir da consciência do eu, é possível

avançar para a consciência do nós.

Desse modo, na aliança individualidade e genericidade, ocorre a produção da

individualidade comunitária. Essa concepção de mundo, baseada no humano-

genérico será possível somente quando abolidas as formas de enquadramento e de

hierarquia da cotidianidade e quando, enfim, cada um tiver condições de escolha e

“condução da própria vida”.

Contudo, a condução da própria vida não está restrita ao representante do

humano genérico. Heller (1994), em sua obra La Revolución de la Vida Cotidiana,

apresenta perspectivas para superar a alienação da vida cotidiana mediante a ação

do indivíduo. Para a autora, indivíduo é todo ser particular que compreende

conscientemente que a própria vida passa a ser um objeto na vida cotidiana, mas

tem essa compreensão porque se assume conscientemente como membro de uma

espécie, ou seja, como parte do todo social. Heller (1994, p. 11) defende que:

[...] la alienación de la vida cotidiana no ha de buscarse en el pensamiento o en las formas de actividad de la vida diária, sino en la relación del individuo con estas formas de actividad, así como en su capacidad o incapacidad para jerarquizar, por si mismo estas mismas formas ; em su capacidad o incapacidad, en fin, para sintertizarlas en uma unidad. De hecho, esta capacidad depende de la relación que el individuo mantiene con lo no cotidiano, es decir, con las diversas objetivaciones orientadas en el sentido de la espécie.

Nesse sentido, “El individuo es un particular que ‘sintetiza’ em si mismo la

singularidad casual de su individualidad y la generalidad universal de la espécie”

(HELLER, 1994, p.13). Na sociedade, todo homem tem consciência do eu, no

entanto, só o indivíduo pode ter autoconsciência, o que quer dizer que só o indivíduo

pode perceber, refletir e intervir na vida cotidiana de modo consciente. É para essa

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análise que Heller utiliza o termo “condução da própria vida”, pois nem todos os

homens têm condições de conduzir a própria vida; somente é capaz de fazê-lo o

indivíduo que conscientemente consegue sintetizar as objetivações de sua espécie.

Com base nesse pensamento, interessa tratar do cotidiano dos assistentes

sociais com as famílias em situação de violência. Cabe saber quais mediações são

utilizadas, que estratégias são desenvolvidas em face das demandas miúdas do seu

cotidiano e como esses profissionais interpretam os aspectos da vida de todo dia em

seu trabalho e em suas relações – aspectos vistos na etapa de pesquisa deste

trabalho.

O espaço privilegiado da intervenção profissional é o cotidiano, o “mundo da

vida”, o “todo dia” do trabalho, que se revela como “o ambiente no qual emergem

exigências imediatas e são desenvolvidos esforços para satisfazê-las [...]”

(BAPTISTA, 2001, p. 111).

Desta feita, na compreensão de que é necessário superar o imediato e, numa

perspectiva de totalidade, buscar conhecer suas raízes, Lukács e Pontes são

referências para a compreensão da categoria “mediação”. A totalidade é uma

categoria concreta, constitutiva do real, também processual e dinâmica, abrangendo

diversos complexos que existem em interação mútua. Desse modo, a categoria

mediação aparece como potência de articulação nesses complexos, que reúnem

características próprias, mas também são caracterizados pelo todo.

Enfim, a esta categoria tributa-se a possibilidade de trabalhar na perspectiva de Totalidade. Sem a captação do movimento e da estrutura ontológica, das mediações, através da razão, o método, que é dialético se enrijece, perdendo, por conseguinte, a própria natureza dialética (PONTES, 2002, p. 81, grifo do autor).

A realidade não se limita ao imediatamente dado, pensado e sentido, mas é

necessário estabelecer mediações. Pontes (2002) comenta que Lukács (1979), em

sua obra A Ontologia do Ser Social: A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel,

afirma que tudo o que existe na natureza e na sociedade é fruto de mediações.

Enfatiza que as ações profissionais necessitam estar embasadas no conjunto:

teoria social, projeto de sociedade, projeto profissional e o instrumental teórico-

técnico de intervenção (PONTES, 2002, p.16). Para o autor, a articulação dessas

quatro dimensões viabiliza o reconhecimento e a legitimação do serviço social no

plano da sociedade, bem como na compreensão dos próprios assistentes sociais.

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Assim, mostra-se fundamental o estudo da tríade singular-particular-universal,

com vistas a evitar, no âmbito da pesquisa sobre famílias em situação de violência,

qualquer interpretação polarizada e reduzida nas perspectivas universal e singular.

Assim, é na particularidade que o movimento dialético das mediações sociais se

estabelece e traz perspectivas de compreensão e superação dos modos de

exploração historicamente constituídos.

A respeito da dialética singular-particular-universal, Betty Oliveira (2005)

retoma as três relações que, segundo Marx, são estruturais da atividade humana: a

do indivíduo com sua produção; com o produto da atividade executada; e com o

gênero humano – ou seja, a relação do homem com outros homens. Nessas três

relações estruturais, faz-se necessário lembrar que existem mecanismos alienadores

e desarticuladores. No capitalismo, o particular desaparece, ficando apenas os polos

extremos (universal-singular).

Nesse sentido, a relação singular-particular-universal “[...] é indispensável

para que se possa compreender essa complexidade da universalidade que se

concretiza na singularidade, numa dinâmica mulifacetada, através das mediações

sociais – a particularidade” (OLIVEIRA, 2005, p. 26). O particular é a categoria

mediadora, pois sem a particularidade um fenômeno não pode ser compreendido.

Para que se possa compreender a singularidade é indispensável que o pensamento tenha alcançado um máximo de aproximação do estágio mais desenvolvido das relativas particularidade e universalidade nas quais se insere a singularidade em estudo (OLIVEIRA, 2005, p. 47).

O singular não existe em si e por si, mas numa relação intrínseca com o

universal, que, por sua vez, só é possível por mediações que incluem o particular

(OLIVEIRA, 2005, p. 50).

A autora afirma que, quanto mais uma sociedade se “complexifica”, mais

necessários são elementos os mediadores e mais complexas as conexões entre

eles. Nesse mesmo entendimento, Battini (2009, p. 65, grifos do autor ) ressalta que:

Colocar o problema das mediações é colocar o problema fundamental do conhecimento do movimento da sociedade. É na descoberta dessas passagens, dessas metamorfoses, desse movimento, que se vai chegar às determinações e, portanto, apreender o caráter concreto do objeto que foi dado apenas empiricamente.

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Marx (1976, p.161), em A Miséria da Filosofia, afirma que a “história social

dos homens nunca é mais do que a história de seu desenvolvimento individual, quer

tenham consciência disso ou não”.

Relacionando a mediação ao objeto de estudo deste trabalho, o desafio

colocado ao assistente social em sua prática cotidiana no Creas está em constituir-

se como sujeito consciente de sua história, de seu tempo, pois “no indivíduo está

sintetizada a particularidade (as mediações sociais) e a universalidade (a

genericidade) que foi possível ao indivíduo apropriar-se” (OLIVEIRA, 2005, p. 50,

sic).

O desafio que se pretende enfrentar, com este trabalho, é verificar como e em

que medida tem sido possível essa apropriação por parte do assistente social que

trabalha com indivíduos e famílias em situação de violação de direitos, nos Creas.

Para tanto, são apresentados elementos de aporte para a discussão na etapa de

pesquisa. O próximo item versa sobre a prática profissional do assistente social.

1.4 Serviço Social na Prática Profissional

Iamamoto (2006, p. 93-94) defende a mudança de paradigma da tradicional

compreensão da ação profissional do assistente social e o deslocamento da

perspectiva de prática para processos de trabalho. Afirma que, apesar da

contribuição de diversos autores que aproxima o conceito de prática profissional ao

de práxis social – e auxilia na ultrapassagem de uma visão focalista da prática

profissional –, essa opção

[...] apresentou-se também como um caminho tortuoso, à medida que requer a explicitação de inúmeras mediações que particularizam a prática do assistente social, evitando-se um “salto mortal” ao vincular a prática profissional e prática social.

Assim, para a autora, quando se fala de prática profissional, usualmente, o

termo é associado àquilo que o assistente social faz – sua relação com o usuário,

com os demais profissionais e com seu empregador – e deve ser referenciado às

condições sociais em que se insere.

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Opta pelo uso do termo “exercício profissional”, na intenção de ampliar seu

uso e relacionar o trabalho profissional aos processos de trabalho nas relações

sociais inseridas no modo de acumulação capitalista. Assim, defende:

Transitar do foco da prática ao trabalho não é uma mudança de nomenclatura, mas de concepção: o que geralmente é chamado de prática corresponde a um dos elementos constitutivos dos processos de trabalho, que é o próprio trabalho (IAMAMOTO, 2006, p. 95).

A premissa da prática profissional – escolhida para discussões deste trabalho

– tem sua análise embasada na realidade do ser social. Baptista (2009, p. 13)

ressalta que a prática social é uma categoria teórica que possibilita o conhecimento

do ser social e aponta para a necessidade de rigor teórico no estudo dessa

categoria.

Para o estudo da prática, seja a prática social, seja a prática profissional, há que se diferenciar práxis de praticidade, de praticismo e de agir humano prático. Práxis seria o processo pelo qual se constitui e se expressa o ser social e a dinâmica da construção histórica do mundo humano-social. A praticidade é uma forma de expressão da práxis, quando, sem a luta pelo reconhecimento (o momento existencial), a última se degrada ao nível da técnica e da manipulação. O praticismo seria a ação prática que não se indaga de seus fundamentos, e o agir humano prático, a prática necessária para a preservação da vida e das relações no cotidiano.

Seguindo esse pensamento, a dissertação de mestrado de Gilmasia Costa,

orientada pelo professor Dr. Sérgio Lessa, que versa sobre o tema Trabalho e

Serviço Social: Debate sobre a Concepção de Serviço Social como Processo de

Trabalho com Base na Ontologia de Georg Lukács, revela-se como auxílio para este

item.

A autora apresenta as especificidades da divisão do trabalho e afirma que o

fato de uma profissão constituir-se numa especialização originária da divisão do

trabalho não implica sua caracterização como trabalho. Defende que:

O serviço social certamente é uma profissão que deriva da divisão sociotécnica do trabalho; as necessidades sócio-históricas que o legitimam como profissão o vinculam a um fenômeno típico da fase capitalista de monopólios. Entretanto, isso não significa que, com sua atividade frente a determinadas realidades sociais, se realize um processo de trabalho no preciso sentido do termo. As especializações que se destinam ao trabalho conservam como intenção direta a transformação da matéria-prima natural ou derivada dela (COSTA, 1999, p. 87).

Cabe ainda mencionar que a primeira vertente – que compreende o serviço

social inserido em processos de trabalho – elenca as múltiplas manifestações da

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questão social como matéria-prima para a intervenção do serviço social. A segunda

linha de pensamento – que compreende o serviço social como prática profissional,

na perspectiva da práxis social – aponta que a intervenção do assistente social não

tem como foco apenas as expressões da pobreza, mas as mais variadas expressões

de exploração e desigualdade que se manifestam na realidade social9 – ainda que

essas expressões sejam mais agudas, haja vista o sistema que reproduz e

retroalimenta a desigualdade.

Aqui se busca apenas apresentar duas vertentes contidas na compreensão

da natureza do serviço social – como trabalho ou como prática. Sem desconsiderar

a relevância dessa discussão, ou ainda qual vertente é mais apropriada, para este

trabalho, importa ressaltar a condição de assalariado do assistente social.

A esse respeito, Raichelis (2011) destaca que é muito comum o assistente

social indignar-se com a exploração a que estão submetidos os trabalhadores

assalariados, mas que o assistente social não se identifica como um assalariado,

exposto, inclusive, às mais variadas formas de exploração. O segundo aspecto

abordado pela autora é a autonomia relativa, que resulta dessa relação de

dependência entre empregador-assalariado, situação que requer do assistente

social respostas aos dilemas que caracterizam seu cotidiano profissional.

Em suma, apresentam-se, resumidamente, neste capítulo, os subsídios

básicos para a conceituação teórica deste trabalho a partir do entendimento de que

a prática profissional do assistente social é parte da prática social, considerando sua

condição de profissional assalariado, que possui como matéria-prima para o seu

trabalho o solo da realidade social – as mais variadas formas de expressão da

questão social, notadamente, a vulnerabilidade, o risco e a exclusão social,

manifestadas no cotidiano, portanto, urgentes de mediações.

No próximo capítulo, aborda-se a realidade da política social como estratégia

do Estado para apaziguar as mazelas advindas da desigualdade social; e apresenta-

se breve histórico da política social na cena brasileira, com ênfase para a política

pública de assistência social.

9

Mais adiante, observa-se que, no cotidiano de trabalho do Creas manifestam-se, na população que ali é referenciada, formas de violência e exclusão que não se relacionam, necessariamente, com a pobreza imediata (ou sua forma mais aviltante), como o atendimento de vítimas de violência doméstica de diversas classes sociais; vítimas de preconceito em decorrência de deficiências, relações homoafetivas, raça e etnia.

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CAPÍTULO 2

POLÍTICA SOCIAL, ASSISTÊNCIA SOCIAL: PARA A COMPREENSÃO DO LUGAR DO CREAS-PAEFI

Neste capítulo, são apresentados elementos para subsidiar a reflexão a

respeito de tendências e aspectos contemporâneos da política social brasileira,

sobretudo no âmbito da PNAS. Expõe-se um panorama de criação da Seguridade

Social, a configuração da Assistência Social como política pública, perpassando pela

criação do Sistema Único da Assistência Social (Suas) e seus marcos regulatórios. A

intenção é trazer à pauta elementos que auxiliem a análise da implantação dos

Creas e sua atual configuração. Para fundamentar, são abordados os seguintes

temas: política social; paradigmas da concepção contemporânea de política social

do Banco Mundial; e política de Assistência Social.

2.1 A Política Social

Pereira (2008, p. 165) atenta para a imprecisão conceitual a respeito do termo

“política social” e seus conceitos correlatos, entre eles, políticas públicas,

necessidades sociais e direitos de cidadania. Refuta o emprego genérico do termo e

apresenta as distintas aplicações recorrentes, garantindo sua análise cuidadosa com

a devida mediação teórico-conceitual. Na língua portuguesa, a tendência à

abordagem genérica é ainda mais forte, haja vista o fato de só existir um verbete

para caracterizar as diferentes aplicações da palavra política. Comumente, o termo

“política social” é utilizado de forma genérica e simplista, o que afeta, segundo a

autora, a credibilidade e a razão de ser da política social como política de fato.

Pereira (2008) ainda define os conceitos policy science (disciplina

acadêmica); policy (conjunto de princípios para uma ação); politics (relativo aos

temas clássicos da política, como eleição, voto, partido, parlamento e governo);

polity (relativo à forma de governo ou sistema político).

Apoiada na análise de Miller (1999, p. 5), Pereira (2008, p. 172, grifos da

autora) conclui:

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[...] a) embora o termo policy signifique basicamente princípios para ação, o termo social, que a complementa, qualifica a ação a ser desenvolvida e os requerimentos indispensáveis à satisfação de demandas e necessidades. Disso resulta que o termo composto política social, longe de ser a mera soma de um substantivo com um adjetivo, define uma área de atividade e interesses que requer: conhecimento do alvo a atingir, estratégias e meios apropriados para a consecução da política, organização, amparo legal e pessoal qualificado; b) apesar de nem sempre a política social produzir bem-estar, este é de fato seu fim último – do contrário o termo social perderá consistência. E mais, para ser social, uma política de ação tem de lidar com diferentes forças e agentes, em disputa por recursos e oportunidades, sem perder a sua contraditória irredutibilidade a um único domínio.

Assim, é importante destacar que definir e discutir política social implica

conhecer paradigmas e reconhecer que cada sentido traz ideologias, valores e

perspectivas teóricas.

Em questões sociais, importa mencionar a influência do keynesianismo na

intervenção estatal. John Maynard Keynes (1883-1946) contribuiu para a ampliação

das políticas sociais e mudança do papel do Estado no capitalismo, no final do

século XIX e início do século XX. A proposta consistia em forte intervenção estatal

fundada em dois pilares básicos: política do pleno emprego e igualdade

proporcionada pela criação de políticas sociais.

O pensamento de Keynes permitiu elaborar as ferramentas teóricas para que,

no desenvolvimento capitalista, fosse gerado o pleno emprego e, quando

necessário, instrumentos que promovessem o bem-estar. A teoria keynesiana

consolidou-se como um padrão da gestão pública na era de ouro do capitalismo

(1945-1973), tornando-se emblema de racionalidade do Estado desenvolvimentista

provedor de bem-estar. Esse processo, agregado ao fordismo, possibilitou o

estabelecimento do Estado de Bem-Estar nos países europeus10.

Em síntese, o Estado de Bem-Estar tinha como principais características o

destaque para a responsabilidade estatal sobre a provisão e manutenção de

condições de vida adequadas para a população, associada à constante regulação

da economia. Por isso, é importante ressaltar que os Estados de Bem-Estar Social

10

Em Atividade Programada, realizada em agosto de 2013, pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da PUC-SP, o professor Dr. José Adelantado Gimeno, titular da Universidad Autônoma de Barcelona, apresentou análise sobre as mudanças de paradigmas nos Estados de Bem-Estar europeus, sobretudo nos países do sul da Europa: Espanha, Itália, Portugal e Grécia, no período de 1995-2010. Para o professor, um dos principais fatores para a reestruturação do bienestar protector foi a crise nos modelos fordista e pós-fordista e suas consequentes teorias de reestruturação.

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não são pensados para resolver a desigualdade social em sua origem, pois não

transformam os meios de produção. Criam mecanismos de solidariedade obrigatória

entre os membros de uma mesma classe (solidariedade horizontal), nesse caso, a

classe trabalhadora formal. Assim, os que trabalham financiam a seguridade social,

sobretudo aquela na forma de pensão para os enfermos e aposentados. Há também

mecanismos para reduzir a desigualdade, mas o Estado de Bem-Estar Social não

baseia-se na igualdade e sim na equidade e, por isso, não aterá a distribuição da

riqueza nas bases do capitalismo11.

Assim, nota-se que a sociedade é composta por muitas desigualdades e

interesses diversos e, nesse sentido, as decisões em torno da Política Social são

tomadas de acordo com a correlação de força desses interesses. Por isso, uma

política social pode reduzir, ampliar, ou reproduzir a desigualdade.

No início dos anos 80, o ideário neoliberal passa a influenciar a configuração

das políticas sociais. Sob o argumento das crises econômica e fiscal e de que o

Estado de Bem-Estar gerara um caráter paternalista no Estado e nas políticas

sociais, esse ideário traz como sua marca a redução de direitos, transformando as

políticas sociais em ações pontuais do Estado.

No neoliberalismo, é acentuada a compreensão de que as questões sociais

devem ser tratadas em âmbito privado, deixando de ser demanda ou problema que

requeira intervenção do Estado. A dificuldade para o acesso à saúde, alimentação

ou moradia, por exemplo, passa a ser problema do indivíduo, que deve resolvê-lo

per si. Desse modo, a vida social e a questão social são particularizadas, numa

perspectiva que defende que, se o mercado vai bem, todos têm chances de suprir

suas necessidades (sem, contudo, considerar os interesses individuais dos grupos

dominantes e seus reflexos nas classes menos favorecidas).

11

Uma consideração necessária – ainda que breve, pois este trabalho não se propõe a alcançar a história da política social em sua plenitude – é a diferenciação entre os modelos de Welfare State. Esping-Andersen (1991, apud BEHRING; BOSCHETTI (2006) destaca três vertentes: 1) o modelo liberal que predominou nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália, com ênfase para as políticas sociais focalizadas e assistência aos comprovadamente pobres; 2) o modelo bismarckiano, que predominou na Alemanha, Áustria, França e Itália, no qual a principal característica era a previdência social pública; e 3) o modelo denominado social-democrata, que compreende os países da Escandinávia (Noruega, Dinamarca e Suécia), com ênfase na construção de políticas sociais universais. De modo geral, países como Espanha e Portugal adotaram o primeiro modelo; mais tarde, e de forma bem mais precária, o primeiro modelo também se tornou referência para os países da América Latina.

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Nos dias atuais, a maior parte do cenário mundial é caracterizada pelo recuo

da intervenção do Estado nas políticas sociais. No caso brasileiro, tem havido mais

investimento em políticas sociais; contudo, o desafio atual é que as políticas sociais

e demais ações públicas, alvo dos investimentos, sejam consolidadas em qualidade,

eficácia e continuidade para a população.

Para compreender a influência do ajuste neoliberal na configuração da política

social na América Latina, é interessante aproximar-se das reflexões sobre as

diretrizes dos organismos internacionais, bem como sua concepção de política

social. Para essa tarefa, Teixeira (2010) apresenta uma análise sobre a concepção

de política social do Banco Mundial feita por meio de diversos documentos

produzidos pelo próprio Banco Mundial no período de 2000 a 2003, fase em que o

ajuste acentuou-se na América Latina e foi denominado por Salama (apud

TEIXEIRA, 2010) de “nova versão do Consenso de Washington”.

Destacam-se recomendações do Banco Mundial no tocante à área social,

voltadas, sobretudo, à redução da extrema pobreza. Curiosamente, há um

reconhecimento (quase uma mea-culpa), por parte do ideário neoliberal, de que a

pobreza é fruto do próprio ajuste, na defesa de que, apesar de existir, a

desigualdade social não pode atingir patamares desumanos. Nessa lógica, todos

devem ter condições mínimas de concorrência.

Há ainda um esforço em conhecer e identificar a pobreza, ou seja, seus

índices, as linhas de pobreza e o perfil dos pobres. Por fim, a concepção de política

social preconizada pelo Banco Mundial revela a valorização do econômico em

detrimento do social e a focalização nos extremamente pobres. Em nenhum

momento fala-se em erradicação da extrema pobreza e sim em apaziguamento da

miséria.

Ao tratar da ênfase dos organismos internacionais na focalização, Franco

(1996, p. 14), diretor de divisão de desenvolvimento social da Comissão Econômica

para a América Latina (Cepal), aponta:

Hay tres criterios para asignar recursos em lo social: destinarlos al que llega primero; a los que tienen menos necesidades; o a los más necesitados. Entre ellos, el paradigma emergente opta por el último y propone implementarlo através de la focalización.

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Aqui se critica a focalização que impede o acesso a direitos e políticas sociais

universais como garantia de uma condição de vida que ultrapasse os limites da

subsistência. Nesse sentido, é importante diferenciar que a escolha por determinada

frente pode ser utilizada como estratégia de gestão de política pública. Entretanto, é

imperativo que se tenha como horizonte a efetivação de direitos sociais de maneira

plena. Exemplo dessas opções são as estratégias relacionadas ao trabalho infantil, à

violência doméstica ou, ainda, àquelas destinadas a determinado grupo etário.

Sposati (2009, p. 23) aponta a importância de se ter estratégias direcionadas

à focalização:

Talvez por força de agentes financiadores internacionais, usa-se o termo focalização, que é aplicado desde o Consenso de Washington. De fato, a perspectiva em direcionar corretamente o programa para a demanda trouxe o desafio de construir-se várias ferramentas de análise da realidade, principalmente sobre a exclusão social. O fato de se aproximar os serviços da demanda deve ser referenciado a um processo de inclusão, de ampliação de acessos, e não de apartação, segregação, que o sentido de focalização, ao se contrapor à universalização, traz.

A perspectiva da focalização pressupõe o desenvolvimento de novas técnicas

de medição de condições de pobreza, o estabelecimento de novas

responsabilidades e papéis na relação entre Estado e sociedade (considere-se aqui

a emergência das parcerias público-privadas, terceiro setor, etc.), bem como a

transferência de renda aos beneficiários. Essa combinação resulta em forte

tendência a despolitizar a questão social, “transformando direitos sociais, universais,

em programas e medidas técnicas ou estratégicas de distinguir, contar e atribuir

benefícios a um conjunto de indivíduos selecionados segundo focos específicos [...]”

(IVO, 2006, p. 69).

2.2 Política Social Brasileira

Neste item, enfatiza-se o período pós-Constituição de 1988 para a análise da

política social brasileira. Apesar de ser interessante o exercício de estudar a política

social no Brasil, desde suas origens, para este trabalho, optou-se por este recorte

temporal, por ser, a Carta Magna de 1988, emblemática tanto em relação ao seu

período pregresso, quanto à sua influência na política social, nos anos que se

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seguiram. Assim, os elementos aqui apresentados subsidiam a compreensão do

processo de construção do Suas.

No período pós-ditadura militar, o País encontrava-se em cenário de forte

ebulição social. Movimentos sociais se fortaleciam e reivindicavam, na Assembleia

Nacional Constituinte – instituída em 1986 –, a ampliação de direitos sociais e da

responsabilidade do Estado com as questões sociais.

A forte pressão e influência das frentes de mobilização culminaram na

aprovação da 7a Constituição Federal (CF) brasileira, promulgada em 5 de outubro

de 1988. A conquista parecia denotar que o Brasil caminhava para o resgate de uma

dívida histórica para com a desigualdade social.

Entretanto, o processo de redação da Carta Constitucional foi marcado por

fortes embates dos grupos de interesses que o compunham. Não se pode deixar de

considerar que o cenário mundial recebia forte influência neoliberal e que a busca

por ampliação de direitos sociais estava em descompasso com os interesses do

novo ideário em pauta.

Boschetti e Behring (2006, p. 141) destacam que o “[...] movimento operário e

popular novo era um ingrediente político decisivo da história recente do País, que

ultrapassou o controle das elites”. As autoras concluem:

Assim, a Constituinte foi um processo duro de mobilizações e contramobilizações de projetos e interesses mais específicos, configurando campos definidos de forças. O texto constitucional refletiu a disputa de hegemonia, contemplando avanços em alguns aspectos, a exemplo dos direitos sociais, com destaque para a seguridade social, os direitos humanos e políticos, pelo que mereceu a caracterização de “Constituição Cidadã”, de Ulisses Guimarães. Mas manteve traços fortemente conservadores, como a ausência de enfrentamento da militarização do poder no Brasil [...], a manutenção das prerrogativas do Executivo [...] etc. (BOSCHETTI; BEHRING, 2006, p. 141-142).

Na mesma toada, Faleiros (2000, p. 49) caracteriza a Constituição de 1988

como “[...] liberal-democrática-universalista, expressando as contradições da

sociedade brasileira e fazendo conviver as políticas estatais com as políticas de

mercado”. Apesar da correlação de forças contida na elaboração da CF de 1988, o

texto constitucional foi um marco na luta por direitos sociais no Brasil.

Valente (2013) apresenta a perspectiva do caráter dirigente da CF de 1988, o

qual, para ela, define, nas normas contidas, os fins e programas futuros necessários,

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direta ou indiretamente, para a melhoria das condições de vida da população. Assim,

por meio da CF, é apresentado um norte para o planejamento e a redação das

demais legislações a ela relacionadas com vistas a definir o papel do Estado e da

sociedade, sobretudo na direção de promover uma unidade na execução das

políticas sociais (VALENTE, 2013, p. 9).

Para este trabalho, é imprescindível destacar o avanço que significou a CF de

1988 ter apresentado o conceito de Seguridade Social em seu artigo 194: “A

seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos

Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à

saúde, à previdência e à assistência social”. No chamado tripé da seguridade, ficam

previstos: direito à Saúde – universal (art. 196); à Previdência Social – direito de

seus contribuintes – (art. 201); e direito à assistência social – direito de quem dela

necessitar (arts. 203 e 204). Assim, a Seguridade Social é compreendida como

dever do Estado com ações a serem desenvolvidas em seus níveis federal, estadual

e municipal.

A Seguridade Social brasileira traz em seu bojo princípios como: equidade;

universalidade; uniformidade; seletividade; centralização e descentralização;

distributividade e redistributividade; gratuidade; contributividade; irredutibilidade do

valor dos benefícios; equidade na forma de participação e custeio; descentralização;

gestão quadripartite; todos esses princípios aplicados de maneiras específicas nas

três políticas sociais que a compõem. As autoras Couto, Silva-e-Silva e Yazbek

(2012, p. 55) esclarecem que

A noção de seguridade supõe que os cidadãos tenham acesso a um conjunto de direitos e seguranças que cubram, reduzam ou previnam situações de risco e de vulnerabilidades sociais. Assim sendo, a Seguridade brasileira emerge como um sistema de cobertura de diferentes contingências sociais que podem alcançar a população em seu ciclo de vida, sua trajetória laboral e em situações de renda insuficiente. Trata-se de uma cobertura social que não depende do custeio individual direto.

Desse modo, os avanços constitucionais estão inseridos num contexto

histórico em que o Estado brasileiro adentra a dinâmica das políticas sociais

neoliberais colocando em andamento, conforme Couto, Silva-e-Silva e Yazbek

(2012, p. 56), processos desarticuladores e de retração de investimentos no campo

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social. As autoras concluem que é na contramão das tendências no setor econômico

que a Seguridade Social é instituída no Brasil.

Cabe destaque para o artigo 203, que discorre a respeito da assistência

social:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente da contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Em breve comparação, a Saúde teve sua Lei Orgânica – a Lei 8.080 –

aprovada em 19 de setembro de 1990. A Previdência Social foi regulamentada em

1991, pela Lei 8.213, de 24 de julho daquele ano, e a assistência social, como será

apresentado adiante, após muitos embates, foi regulamentada somente em 7 de

dezembro de 1993 com a publicação da Lei 8.742, a Lei Orgânica da Assistência

Social (Loas).

2.3 A Política de Assistência Social no Brasil

Apesar da opção pela ênfase no estudo da política social brasileira a partir da

CF de 1988, ainda que sejam apresentados elementos para uma breve análise da

história da política social brasileira, é possível perceber o sem-número de iniciativas

pontuais sempre subordinadas aos ditames das prioridades econômicas.

A Assistência Social, em particular, em boa parte de sua história, foi uma

política marcada pelo clientelismo e benemerência. Nesse aspecto, a obra de

Mestriner (2005) é uma referência para a compreensão dos obstáculos que

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encontrou na cena brasileira para se efetivar como política pública. Por esse motivo,

vale retomar, ao menos, as características emblemáticas da filantropia,

solidariedade e das ações sociais que compuseram o caminho da construção da

assistência social como política pública na cena brasileira.

A autora aponta que, tradicionalmente, no Brasil, o Estado assumiu o papel

de ser sempre o último a responder diretamente pela área social.

Neste campo tem prevalecido o princípio da subsidiariedade12

entre o estatal e o privado, em que o Estado transfere para a sociedade responsabilidades maiores, restringindo-se à execução de ações emergenciais. [...] Desta forma, o Estado fez com que a assistência social transitasse sempre no campo da solidariedade, filantropia e benemerência, princípios que nem sempre representam direitos sociais, mas apenas benevolência paliativa (MESTRINER, 2005, p. 21).

Mestriner (2005) faz um resgate das ações sociais no País desde o final do

século XIX, a fim de evidenciar a influência das organizações da sociedade civil nas

ações sociais, visto que desenvolviam boa parte de suas atividades por meio de

subsídios estatais. Demonstra, também, quais foram as principais ações estatais na

área social por períodos da história recente do País. O Quadro 4 apresenta a síntese

do que é tratado ao longo da obra e o resumo das tipologias de serviços que se

desenhavam de acordo com o modelo político de gestão e regulação do

Estado/organizações sociais em cada época.

Quadro 4 – Tipologia das organizações sociais por períodos históricos

Período Histórico Tipos de Organizações Tipos de Regulação

Período Imperial até 1889 Filantropia Caritativa: assistência e repressão

Obras pias Atendimento conjunto (uma só massa) a órfãos, inválidos, enfermos, delinquentes e alienados

Religiosa Testamentos, subscrições e auxílios provinciais (pela junta da Fazenda Nacional ou Câmara Municipal do Império)

12

A autora trata do conceito de subsidiariedade, lembrando que está diretamente vinculado aos valores da Doutrina Social da Igreja. Segundo esse princípio, o Estado deve ajudar os membros do corpo social, sem, contudo, impedi-los de fazer o que podem realizar por si mesmos.

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Quadro 4 – Tipologia das organizações sociais por períodos históricos

Período Histórico Tipos de Organizações Tipos de Regulação

Primeira República (1889 a 1930) Filantropia higiênica: assistência, prevenção e segregação

Obras sociais Atendimento por especialidades para:

Crianças – asilos, orfanatos e internatos

Velhos e inválidos – asilos

Alienados – hospícios

Mendigos – asilos de mendicidade

Doentes – sanatórios, dispensatórios, lazaretos

Imigrantes – instituições de auxílio mútuo

Médico-religiosa Auxílios provinciais (pela junta da Fazenda Nacional ou Câmara Municipal) Jurídica 1o Juízo de Menores no Rio de Janeiro (1923) Código de Menores (Mello Matos) (1927)

Getulismo (1930 a 1945) Filantropia disciplinadora: enquadramento nas normas técnicas e disciplinamento dos indivíduos

Instituições assistenciais (influência das encíclicas sociais) Materno-infantil: hospitais, ambulatórios, postos de saúde Promoção à infância: orfanatos, creches, internatos De educação: educandários, de assistência pré-primária, primária, profissionalizante, educação de anormais, educação e reeducação de adultos Proteção a jovens: organizações da juventude, escolas profissionais de auxílios mútuos: instituições étnicas e de categorias profissionais Estatais: departamento de Assistência Social de São Paulo (1935); Serviço de Assistência ao Menor (SAM – 1941) Formação: Centro de Estudos e Ação Social; escolas de Serviço Social

Estatal Constituição Federal de 1934

Presidente da República: Contribuições à caridade oriundas de taxas alfandegárias a bebidas alcoólicas e embarcações

Ministério da Justiça e Negócios Interiores Caixa de Subvenções (31/8/1931)

Certificado de Utilidade Pública (28/8/1935)

Ministério da Educação Criação do CNSS (1o/7/1938) Subvenção Federal (regulamentação 25/11/1935 - 1/7/1938) Estatal Constituição de 1937 Reitera o CNSS Amplia regulamentação de subvenções Isenção: na aplicação de tetos mínimos de salário dos funcionários (1945/46) e de imposto de renda (1943)

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Quadro 4 – Tipologia das organizações sociais por períodos históricos

Período Histórico Tipos de Organizações Tipos de Regulação

Movimento Católico Laico; ação católica, círculos operários Sindicatos Centros assistenciais complementares Instituições fomentadas pelo Estado LBA (1942), Senai (1942), Samdu (1945) Instituições religiosas – protestantes, espíritas e evangélicas: albergues, centros de juventude, abrigos, instituições para deficientes físicos e mentais

Estado Democrático Populista (1946 a 1964) Filantropia Partilhada Profissionalizante

Instituições criadas pelo Estado com o empresariado: Senac (1946); Sesc (1946); Sesi (1946) Movimentos comunitários

Estatal Complexificação da burocracia: registro geral de instituições (1951) Isenção de contribuição de cota patronal previdenciária (1959)

Certificado de filantropia (1959)

Estado Autoritário (1964 a 1988) Filantropia de clientela: assistência e repressão

Organizações sociais – influência do racionalismo técnico – vertente modernizadora do serviço social frente à reconceitualização (1964) Funabem/Febem – 1964 Associações comunitárias: sociedades de amigos de bairro; associações de moradores Renovação pastoral

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Quadro 4 – Tipologia das organizações sociais por períodos históricos

Período Histórico Tipos de Organizações Tipos de Regulação

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)

Transição democrática Filantropia vigiada 1955-88

Organizações não governamentais; Movimentos de defesa de direitos; Novos movimentos sociais

Estado democrático (1988 a 1999) Filantropia democratizada

Expansão de:

Conselhos setoriais

Organizações não governamentais

Organizações civis

Centro de defesa de direitos

Fundações empresariais

Estatal

Constituição Federal (1988)

ECA (1990)

Loas (1993)

Extinção da LBA/CBIA

Extinção do CNSS

Criação do Conselho Nacional da Assistência Social

Lei do Voluntariado (1998)

Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e Termo de Parceria (1999)

Fonte: Mestriner (2005, p. 45-46)

Em que pesem os aspectos relevantes dos períodos anteriores, o período

getulista, em particular, foi emblemático, pois caracteriza-se por significativo

aumento da intervenção e regulação estatal sobre as chamadas obras sociais, a

exemplo da criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Contudo, esse

movimento ocorreu sem deixar de fomentar – e inclusive subsidiar – o trabalho das

organizações sociais.

Também vale destacar o período desenvolvimentista (governo de Juscelino

Kubitschek – 1956-1961) em que prevaleceu o Estado meritocrático no qual os

trabalhadores formais (com maior poder de pressão e reivindicação) usufruíam de

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serviços sociais específicos, enquanto a maior parte da população continuava sem

ter acesso a serviços básicos.

Já os trabalhadores sem carteira assinada, do mercado informal, os desempregados continuavam a ser objeto de uma esfera paralela do governo, constituída por iniciativas designadas como ‘não lucrativas’, ou seja, por um apartheid institucional, movido pela benemerência e pela solidariedade (MESTRINER, 2005, p. 144).

De certa forma, essa descrição do período desenvolvimentista é emblemática

para representar os vários anos que se seguiram13. Por isso, é imprescindível

retomar – ainda que brevemente – a trajetória da Assistência Social no Brasil para

então compreendê-la como política social, como direito do cidadão.

Com a CF de 1988, pela primeira vez, na história da política social brasileira,

estava instituído um sistema no qual uma política não exigia de seu beneficiário

inscrição, filiação ou prazo de carência. Assim, o simples fato de ser cidadão e

necessitar de proteção social passou a ser o perfil do usuário da Política de

Assistência Social. Sposati (2009, p. 14) lembra que até a CF de 1988 não havia

uma concepção nacional sobre a Assistência Social:

A inclusão da assistência social na seguridade social foi uma decisão plenamente inovadora. Primeiro, por tratar esse campo como de conteúdo da política pública, de responsabilidade estatal, e não como uma nova ação, com atividades atendimentos eventuais. Segundo, por desnaturalizar o princípio da subsidiariedade,pelo qual a ação da família e da sociedade antecedia a do Estado.

A autora classifica que, a partir da Carta Magna de 1988, emergiram duas

novas concepções: a primeira compreende a Assistência Social como dever do

Estado e direito do cidadão; e a segunda interpreta a lei nos princípios da

subsidiariedade. Nesse caso, o Estado deve ser o último a agir e não o primeiro.

A opção por uma dessas compreensões gera consequências marcantes na

vida da população. Atualmente, há uma vertente conservadora que defende a

Política de Assistência Social com caráter transversal, ou seja, um meio da

população pobre ter acesso às demais políticas.

13

Tem havido reflexões no âmbito do Serviço Social acerca das influências que esse período imprime nas políticas sociais atuais. O XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (Enpess), realizado em 2012 na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) teve como tema central Serviço Social, Acumulação Capitalista e Lutas Sociais: o Desenvolvimento em Questão, com ênfase para a crítica à característica neodesenvolvimentista de algumas políticas sociais.

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Mesmo reconhecida no tripé da Seguridade Social, a Assistência Social não

foi considerada como primordial ou passível de regulamentação. Sposati (2010, p.

49) aponta que, por entender que os gastos daí provenientes não condiziam com a

estrutura econômica que o País vivia,

o primeiro projeto de lei aprovado pelo Legislativo em 1990 foi vetado por Fernando Collor e já continha esse conjunto de ideias [...]. Em seu veto de Collor afirma que a proposição não estava vinculada a uma assistência social responsável [...].

Em 1993, o Executivo encaminhou novo projeto ao Legislativo com a garantia

das pressões do Conselho Nacional de Seguridade Social. Assim, em 1993, o

projeto de redação da deputada Fátima Pallaes é fechado como texto básico e,

finalmente, em 7 de dezembro de 1993, a Loas recebe status de lei (8.742).

Quase no mesmo passo de um avanço, ocorrem retrocessos, pois, em 1994,

com o início do governo Fernando Henrique Cardoso (Partido da Social Democracia

Brasileira – PSDB), no período de 1994 a 2001, a Assistência Social sofreu diversas

modificações: o CNAS, além de assumir (após muitas pressões) um caráter cartorial

para a certificação de organizações religiosas e entidades sociais filantrópicas de

modo geral, perdeu seu poder deliberativo, tornando-se apenas consultivo. O

Ministério do Bem-Estar Social foi extinto e a recém-criada Secretaria Nacional de

Assistência Social (SNAS) foi agrupada ao Ministério da Previdência e Assistência

Social. A SNAS contou, nesse período, com orçamento reduzido, só ampliando

recursos para o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Para Mestriner (2005), a principal marca de gestão da assistência social

nesse período foi o que a autora chama de filantropia democratizada, em que o

Estado fez uso de todos os aparatos possíveis para regulamentar a filantropia no

País. Mais uma vez, o princípio da antiga subsidiariedade é evidenciado, desta vez

com novos mecanismos. Em 1o de janeiro de 1995, é criado, pela Medida Provisória

813, o programa Comunidade Solidária a ser presidido pela primeira-dama, Ruth

Cardoso, com o objetivo de reunir e articular diversas ações e programas de

enfoque social existentes em outros ministérios, bem como integrar as iniciativas da

sociedade civil. O programa fomentava a solidariedade, num discurso que enfatizava

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a força do chamado terceiro setor e do papel do Estado de articulador dessas

iniciativas14.

Ao analisar esses acontecimentos, fica claro sua relação com as diretrizes do

ajuste neoliberal e seu desrespeito ao que fora preconizado na CF de 1988 (no

tocante à Assistência Social) e na Loas. Vale ressaltar o que reza o caput do artigo

1o da Loas:

A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

Desse modo, segundo Couto, Silva-e-Silva e Yazbek (2012, p. 56), a Loas

trouxe inovações, pois apresenta em seu conteúdo a proposta de um novo desenho

institucional para a Assistência Social, sobretudo por suas características afirmativas

como direito, o reconhecimento da necessidade da integração entre o econômico e o

social, a centralidade do papel do Estado e o controle social da população.

Sposati (2009) aponta que a Loas apresentou um modelo democrático de

gestão da Assistência Social em que cada ente federativo (União, estados,

municípios e distrito federal) necessita possuir um plano de ação. Além disso,

vinculou a assistência social a uma ação estatal planejada na qual as intervenções

deixam de ser reativas e passam a ser proativas. Não é necessário, portanto, que

haja uma calamidade pública ou qualquer intercorrência para o Estado agir. As

intervenções passam a acontecer de maneira planejada, com vistas à prevenção.

A Loas ainda apresenta avanços no sentido da participação e do controle

social, pois prevê a criação de espaços de decisão democrática acerca da política

com participação popular. O texto original da lei orgânica também passa por

alterações como aquelas inseridas pela Lei 12.435, de 6 de julho de 2011, que

apresenta uma série de alterações na Lei 8.742/1993:

Traz, para o âmbito legal, o Suas (que já havia sido preconizado na PNAS-2004);

Define os níveis de proteção social básica e especial; institui o Centro de

Referência da Assistência Social (Cras) e o Creas;

Cria os Serviços de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif) e Paefi;

14

O filme Quanto Vale ou É por Quilo? (2005) retrata esse momento histórico e apresenta uma crítica à filantropia e ao marketing social.

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Define benefícios eventuais e serviços socioassistenciais;

Autoriza a utilização de cofinanciamento para o pagamento de recursos

humanos;

Institui o Índice de Gestão Descentralizada do Sistema Único de Assistência

Social (IGD-Suas);

Define o Vínculo Suas e os requisitos para seu reconhecimento;

Dispõe que os Conselhos de Assistência Social ficam vinculados ao órgão

gestor, que deve prover os meios e a estrutura para que desempenhem suas

atribuições;

Reduz para 65 anos a idade mínima para o recebimento do BPC-idoso;

Conceitua os termos “pessoa com deficiência” e “impedimento de longo

prazo”.

A Lei 12.470, de 31 de agosto de 2011, altera regras para concessão do BPC

à pessoa com deficiência:

A remuneração oriunda de atividade de aprendiz não será computada para

cálculos na concessão do benefício;

É autorizada a contratação de pessoa com deficiência beneficiária do BPC na

condição de aprendiz e o recebimento concomitante da remuneração pelo

trabalho e do benefício permitido por até dois anos.

No Governo Lula (Partido dos Trabalhadores – PT), no período de 2002 a

2009, apesar de importantes avanços, como a publicação da PNAS, também

ocorreram situações que marcaram a dificuldade em reconhecer aa Assistência

Social e a importância da seguridade social. Destacam-se as transformações na

própria estrutura do extinto Ministério da Assistência e Promoção Social (MAS) e a

mudança para Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (pela

primeira vez, a assistência teve um ministério exclusivo):

A criação do MAS, em 2003, pela Medida Provisória 103, de 1o /1/2003;

Três meses depois, o Decreto 4.655, de 27 de março de 2003, regulamenta

as atribuições do MAS;

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A Lei 10.683, de 28 de maio de 2003, transforma a Secretaria de Estado da

Assistência Social em Ministério da Assistência e Promoção Social e cria o

Gabinete do ministro de Estado Extraordinário da Segurança Alimentar e

Combate à Fome;

A Lei 10.869, de 13 de maio de 2004, transforma o Ministério da Assistência e

Promoção Social em Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à

Fome e dá ao ministro de Estado Extraordinário da Segurança Alimentar e

Combate à Fome status de ministro de Estado do Desenvolvimento Social e

Combate à Fome. A Assistência Social passa a ser a Secretaria Nacional de

Assistência Social, com a Segurança Alimentar e Nutricional, Secretaria

Nacional de Renda e Cidadania, Secretaria de Avaliação e Gestão da

Informação e Secretaria de Articulação para Inclusão Produtiva (Figura 1).

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Figura 1 – Organograma do MDS

Fonte: MDS (2010)

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Assim, o processo de criação do MAS (ainda que o termo “promoção” não

seja o mais adequado, haja vista a conotação que lhe é atribuída ao longo da

história, associada à caridade) é considerado importante avanço e, em curto espaço

de tempo, é alterado em sua nomeclatura e constituição. Desde a sua criação, já

havia ressalvas quanto à dificuldade de atribuir status de ministério à Assistência

Social.

Em que pese a importância da criação de um ministério específico para o fortalecimento da política assistencial, dois problemas podem ser identificados na configuração institucional adotada. Em primeiro ligar, ressalte-se a prioridade dada às funções de avaliação e articulação dos programas em face da função finalística da assistência. Em segundo lugar, percebe-se uma indefinição na abrangência dada àquelas funções, o que gera dúvidas se elas se referem às políticas assistenciais ou às políticas sociais do governo federal (IPEA, 2003, p. 33).

As dúvidas quanto às funções da Assistência Social, se essas lhe seriam

próprias, ou se caberiam às políticas sociais do governo federal, de modo genérico,

evidenciam o risco de uma interpretação da assistência como política de acesso,

como política para as outras políticas públicas. Esse dilema também coloca os

agentes da assistência social numa posição delicada, no que diz respeito à

articulação com as demais políticas públicas, pois não cabe à área, sozinha, articular

as demais políticas sociais. Oportunamente, na etapa de análise dos dados da

pesquisa, será possível exemplificar e refletir sobre essa questão.

Desse modo, percebem-se os avanços na Política de Assistência Social e os

percalços que encontrou e encontra até os dias atuais, para sua consolidação.

Assim, permanece o desafio de a assistência social constituir-se não apenas como

política subalterna da Seguridade Social brasileira.

2.3.1 A Política Nacional de Assistência Social

A primeira PNAS foi proposta na II Conferência Nacional de Assistência

Social, ocorrida em dezembro de 1997. O texto foi aprovado em 1998 e publicado no

Diário Oficial da União (DOU), em abril de 1999. Sua principal característica foi

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constituir-se como um instrumento para o trabalho dos gestores da política,

favorecendo sua compreensão para operacionalizá-la no cotidiano.

Contudo, foram necessárias adequações no texto inicial, pois os princípios e

temas, como vulnerabilidade, matricialidade sociofamiliar, intersetorialidade, etc.,

foram aprimorados. Assim, na IV Conferência Nacional de Assistência Social foi

aprovada a alteração e criação da PNAS-2004, que previu a criação do Suas.

A PNAS-200415 é expressão da resistência de movimentos de luta pela

efetivação da assistência social como direito. Seu texto apresenta caminhos para a

efetivação dos princípios previstos na Constituição Federal de 1988, notadamente a

responsabilidade do Estado com a gestão descentralizada. Na esteira do movimento

de consolidação da PNAS, começa a ser construído o Suas16.

Em seu texto, a PNAS (2005, p. 32, grifo nosso) apresenta princípios

semelhantes aos já contidos na Loas, em seu artigo 4o:

I. Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica;

II. Universalização dos direitos sociais, a fim de tornar a pessoa alcançável pelas demais políticas públicas;

III. Respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;

IV. Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;

V. Divulgação ampla de benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público para sua concessão.

Também em consonância com a Loas, e, por conseguinte, com a CF de 1988,

a PNAS (2005, p. 34) apresenta suas diretrizes:

I. Descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como as entidades beneficentes e de assistência social, garantindo o comando único das ações em cada esfera de governo, respeitando-se as diferenças e as características socioterritoriais locais;

II. Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação de políticas e no controle das ações em todos os níveis;

III. Primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo.

IV. Centralidade na família para a concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos.

15

Aprovada pela Resolução 145, de 15 de outubro de 2004, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e publicada no DOU, em 28 de outubro de 2004 16

Aprovado em 15 de julho de 2005, pelo CNAS, por meio da NOB 130.

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O terceiro capítulo da PNAS, que trata da Gestão da Política na perspectiva

do Suas, contém os eixos estruturantes de todas as suas ações:

Matricialidade sociofamiliar;

Descentralização político-administrativa e territorialização;

Novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil;

Financiamento;

Controle social;

Desafio da participação popular/cidadão usuário;

Política de recursos humanos;

Informação, monitoramento e avaliação.

Os serviços socioassistenciais devem ser organizados e executados de

acordo com as referências da vigilância socioassistencial, proteção social e defesa

social e institucional. A vigilância socioassistencial está relacionada ao estudo, à

pesquisa e sistematização de informações e situações de vulnerabilidade e risco

social de determinado território ou população. As defesas social e institucional

referem-se ao direito e à garantia de acesso do usuário à política pública de

assistência social. Todas essas referências são interligadas e interdependentes,

contudo, para este trabalho, optou-se por abordar mais profundamente as

características da proteção social.

Segundo Di Giovanni (1998, p. 10 apud PNAS, 2004, p. 31), entende-se por

proteção social as formas

institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio, as privações.

Sposati (2009, p.20) contribui para a reflexão acerca do conceito:

Proteção social – o sentido de proteção (protectione, do latim) supõe, antes de tudo, tomar a defesa de algo, impedir sua destruição, sua alteração. A ideia de proteção contém um caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida –, supõe apoio, guarda, socorro e amparo. Esse sentido preservacionista é que exige tanto a noção de segurança social como a de direitos sociais. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de 2004 afirma que a proteção social deve afiançar seguranças de: sobrevivência; de rendimento; de autonomia; de acolhida; de convívio; de vivência familiar.

Por segurança de sobrevivência entende-se o acesso a valores pecuniários

para a garantia da manutenção da sobrevivência.

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A segurança de acolhida materializa-se com a provisão de necessidades,

como alimentação, vestuário e abrigo. Assim, é a garantia que a população tem de

que, por um período curto, ou longo, determinado ou indeterminado, a Política de

Assistência Social oferecerá essa segurança, que se materializa na atenção às

situações de debilidade física ou etária (idosos ou crianças) ou, ainda, às situações

de violência e risco.

A PNAS preconiza ainda a segurança de vivência familiar – ou segurança de

convívio –, que é garantida com intervenções que potencializem as dimensões

interculturais, interterritoriais, intergeracionais e intersubjetivas.

Considerando o marco das seguranças sociais afiançadas na PNAS, é

possível avançar para o entendimento de que a política oficializa a divisão de ações

com os níveis de proteção social básica e especial. Dessa forma, importa considerar

o Suas em seus diferentes níveis de proteção social, aproximando o cenário

contemporâneo de política social com suas proposições, sobretudo a respeito da

proteção social especial de média complexidade. Consolida-se, assim, o conceito de

proteção social para além das provisões materiais, da garantia do reforço da

autonomia e da inserção social.

A definição das proteções sociais básica e especial em seus diferentes níveis

torna a execução da política mais planejada e melhor distribuída, conforme as

necessidades da população.

De modo geral, de acordo com a PNAS-2004, a proteção social básica

abrange famílias, indivíduos, ou grupos, que se encontram em situação de

vulnerabilidade social, mas ainda mantêm vínculos familiares e comunitários. Suas

ações estão voltadas à prevenção de situações de risco e à promoção de direitos,

viabilizando espaços de convivência e de estreitamento e fortalecimento de vínculos

familiares e comunitários. Seu principal equipamento social é o Cras e suas ações,

concretizadas por meio do Paif. Há também outros serviços de fortalecimento de

vínculos, promoção e convivência, como os Centros de Convivência para Crianças e

Adolescentes e os Centros de Convivência para Idosos.

A proteção social especial, por sua vez, diz respeito às famílias, aos

indivíduos ou grupos que se encontram em situação de risco pessoal e social

caracterizando: violência física, negligência, abuso e exploração sexual, uso de

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substâncias psicoativas, trabalho infantil, situação de rua, cumprimento de medidas

socioeducativas, entre outras. Suas ações dividem-se em proteção social especial

de média complexidade e proteção social de alta complexidade.

Na Proteção Social Especial de Média Complexidade contemplam-se famílias

e indivíduos que já tiveram seus direitos violados e foram expostos a situações de

risco social, entretanto, cujos vínculos familiares e comunitários não chegaram a ser

rompidos. Dessa forma, suas ações são dirigidas ao fortalecimento desses vínculos,

bem como ao rompimento do ciclo que reproduz a violência. Seus principais

equipamentos sociais, segundo a PNAS, são o Creas e as atividades desenvolvidas

no Paefi, além dos seguintes serviços socioassistenciais: Medida Socioeducativa em

Meio Aberto; Centro de Defesa e Convivência da Mulher; Núcleo para Pessoa com

Deficiência; Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência; Serviço de Abordagem

de Rua; dentre outros.

A Proteção Social Especial de Alta Complexidade abrange famílias e

indivíduos que tiveram seus direitos violados e foram expostos a situações de risco

social, e tiveram seus vínculos familiares e comunitários rompidos – fato este

gerador de seu afastamento do ambiente familiar e de seu encaminhamento a

instituições de acolhimento. Assim, as ações da Proteção Social Especial de Alta

Complexidade destinam-se a resgatar vínculos familiares outrora rompidos, bem

como verificar a possibilidade de construção de autonomia e estabelecimento de

vínculos em outras redes de apoio e afeto ou, também, em outros grupos familiares

que não os originais. Dentre seus principais serviços socioassistenciais, estão: o

Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes; a Família

Acolhedora; a República Jovem; a República Adulto; o Centro de Acolhida; a Casa

de Passagem; o Abrigo Sigiloso; dentre outros.

2.3.2 Creas e Paefi

De acordo com a PNAS-2004, o Creas faz parte dos serviços de Proteção

Social de Média Complexidade.

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A versão atualizada da Loas, que inclui a lei que regulamenta o Suas

(12.435/2011), modificou o art. 2o da Lei 8.742, de 1993, a qual passou a vigorar

acrescida dos seguintes artigos:

[...] Art. 6o C As proteções sociais, básica e especial, serão ofertadas

precipuamente no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), respectivamente, e pelas entidades sem fins lucrativos de assistência social de que trata o art. 3

o desta Lei.

§1o O Cras é a unidade pública municipal, de base territorial, localizada em

áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, destinada à articulação dos serviços socioassistenciais no seu território de abrangência e à prestação de serviços, programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica às famílias.

§ 2o O Creas é a unidade pública de abrangência e gestão municipal,

estadual ou regional, destinada à prestação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que demandam intervenções especializadas da proteção social especial.

§ 3o Os Cras e os Creas são unidades públicas estatais instituídas no

âmbito do Suas, que possuem interface com as demais políticas públicas e articulam, coordenam e ofertam os serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social.

Art. 6o D As instalações dos Cras e dos Creas devem ser compatíveis com

os serviços neles ofertados, com espaços para trabalhos em grupo e ambientes específicos para recepção e atendimento reservado das famílias e indivíduos, assegurada a acessibilidade às pessoas idosas e com deficiência (Incluído pela Lei 12.435, de 6 de junho de 2011).

O Guia de Orientações Técnicas para o Creas, do MDS (BRASIL, 2011, p. 8),

define o Creas como

[...] uma unidade pública estatal, de abrangência municipal ou regional, referência para a oferta de trabalho social a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos, que demandam intervenções especializadas no âmbito do Suas. Sua gestão e funcionamento compreendem um conjunto de aspectos, tais como: infraestrutura e recursos humanos compatíveis com os serviços ofertados, trabalho em rede, articulação com as demais unidades e serviços da rede socioassistencial, das demais políticas públicas e órgãos de defesa de direitos, além da organização de registros de informação e o desenvolvimento de processos de monitoramento e avaliação das ações realizadas.

Dentre as atribuições do Creas, está contemplado o Paefi, o qual, de acordo

com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais17, é caracterizado pelo

conjunto de atenções e orientações direcionadas para a promoção de direitos, a

preservação e o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e sociais e para

17

Resolução 109, de 11 de novembro de 2009, publicada no DOU, em 25 de novembro de 2009.

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o fortalecimento da função protetiva das famílias diante do conjunto de condições

que as vulnerabilizam e/ou as submetem a situações de risco pessoal e social.

O atendimento no Paefi fundamenta-se no respeito à heterogeneidade, às

potencialidades, aos valores, às crenças e identidades das famílias. Esse serviço

deve articular-se com as atividades e atenções prestadas às famílias nos demais

serviços socioassistenciais, nas diversas políticas públicas e com os demais órgãos

do Sistema de Garantia de Direitos. Assim, deve garantir providências necessárias

para a inclusão da família e de seus membros em serviços socioassistenciais e/ou

em programas de transferência de renda, de forma a qualificar a intervenção e

restaurar o direito.

A Tipificação Nacional (BRASIL, 2009, p. 20) pontua como características do

trabalho social no Paefi:

Acolhida; escuta; estudo social; diagnóstico socioeconômico; monitoramento e avaliação do serviço; orientação e encaminhamentos para a rede de serviços locais; construção de plano individual e/ou familiar de atendimento; orientação sociofamiliar; atendimento psicossocial; orientação jurídico-social; referência e contrarreferência; informação, comunicação e defesa de direitos; apoio à família na sua função protetiva; acesso à documentação pessoal; mobilização, identificação da família extensa ou ampliada; articulação da rede de serviços socioassistenciais; articulação com os serviços de outras políticas públicas setoriais; articulação interinstitucional com os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos; mobilização para o exercício da cidadania; trabalho interdisciplinar; elaboração de relatórios e/ou prontuários; estímulo ao convívio familiar, grupal e social; mobilização e fortalecimento do convívio e de redes sociais de apoio.

Para tanto, as ações no âmbito do Paefi requerem forte articulação com

instituições e serviços que compõem o sistema de garantia de direitos. Aqui se faz

necessário destacar a relevância da intersetorialidade e da interdisciplinaridade,

conforme Yazbek (2001, p. 39):

Com base nessa realidade incontestável e com as inquietações advindas das profissões que têm como objeto dos processos de trabalho a transformação desse contexto, o princípio ético e a interdisciplinaridade tornam-se um eixo norteador essencial para os profissionais prático-interventivos que terão de dar respostas na execução das políticas sociais. A eles também compete “construir, reinventar mediações capazes de articular a vida social das classes subalternas com o mundo público dos direitos e da cidadania”.

Em face do exposto, a escolha da política pública de assistência social para o

desenvolvimento da pesquisa justifica-se pelo instigante desafio de estudar uma

iniciativa recente e dinâmica do sistema de seguridade social brasileiro.

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Da mesma forma, a opção pelo recorte de análise sobre a proteção social

especial de média complexidade deu-se em decorrência da experiência de trabalho

de três anos no Creas (considerando as experiências profissionais nos municípios

de Registro e São Paulo, respectivamente), e de dois anos em São Paulo na função

de coordenação.

Lidar com demandas de violência doméstica e risco social vivenciadas pelas

famílias, com equipes incompletas e dúvidas quanto às estratégias a serem tomadas

no acompanhamento, gerou o ambiente propício para a formulação dos primeiros

questionamentos e o desejo de pesquisar o trabalho do assistente social nesse

contexto tão adverso. Por esse motivo, este estudo preconiza a reflexão sobre o

conhecimento que o assistente social deve reunir para trabalhar com esses desafios,

assim como em sua inserção na política pública de assistência social, na proteção

social de média complexidade.

A média complexidade, ainda em etapa de definições, é a ponte entre a

proteção social básica e a proteção social especial de alta complexidade. O Creas,

por sua vez, também tem papel marcante, enquanto articulador da rede de serviços

socioassistenciais e de mobilizador dos demais órgãos do sistema de garantia de

direitos.

Para além das discussões no Serviço Social e nas esferas federal, estadual e

municipal da política de assistência social, a respeito do trabalho com famílias e

indivíduos em situações de risco e violência, existem inúmeros documentos de

instituições da rede de garantia de direitos que atribuem ao Paefi/Creas o

acompanhamento de diversas situações de vulnerabilidade. Dentre eles, elencamos

documentos distribuídos por órgãos como Defensoria Pública, Tribunal de Justiça,

Varas de Infância e Juventude, Conselho Tutelar18. Entretanto, não se adentra e não

há ampla discussão sobre os desdobramentos do cotidiano de trabalho com a

população em situação de risco no Creas.

É importante destacar também que a bibliografia sobre trabalho social com

famílias no âmbito da proteção social básica, do desenvolvimento comunitário, dos

18

Dentre os documentos que citam atribuições do Creas e como deverá ser a interlocução na rede, destacamos: Manual de Procedimentos da Ação Conselheira de São Paulo; Parecer 04/2010, da Coordenadoria de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça – publicado no Diário da Justiça de 27 de agosto de 2010 (p. 6-9); e Parecer 12/2010, do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

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grupos socioeducativos, e de outros, não tem se mostrado suficiente para

instrumentação do trabalho no Paefi, haja vista as especificidades que esse serviço

apresenta.

Assim, é necessário refletir e estabelecer pontes de diálogo tanto na interface

entre proteção social básica e especial como nas demais políticas sociais que

compõem o sistema de garantia de direitos. A esse respeito, Rizzotti (2009, p. 253,

grifo nosso) destaca as políticas públicas de Saúde e Educação:

A estruturação do CREAS pautou para as demais políticas públicas a adoção de novas práticas e metodologias, sobretudo, apontou para as áreas de educação e saúde a necessidade de adoção de uma visão mais holística e social dos fenômenos com os quais atuam. Coube a essas políticas rever seus protocolos e se envolver na atenção e prevenção de sujeitos em situação de rua, vítimas de violência, abuso sexual e de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.

Gomes e Nery (2013, p. 28, sic) contribuem para a reflexão a respeito da

identidade atribuída ao Creas, propondo o desafio de avançar para a identidade

construída do equipamento. Apontam para a cotidiana, porém frágil, relação com o

Sistema de Justiça (Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública):

A natureza do CREAS imprime uma intensidade maior de relações com o Sistema de Justiça e de Segurança Pública, o que vem sendo traduzido, compreendido e implementado de formas diversas e essencialmente pautada por uma relação convocatória, quer seja na demanda por serviços, no trabalho técnico e na exiguidade dos prazos para apresentação de relatórios e planos de atendimento (individual e familiar). Isso pode ser agravado quando prevalece a compreensão de que o CREAS é espaço de averiguação de denúncias. Trata-se de afirmá-lo enquanto lócus da proteção social.

2.3.3 Os Creas na cidade de São Paulo

Considerando que esse trabalho busca refletir sobre como tem se dado o

desdobramento da prática do assistente social no Creas, enfatizamos que a

proteção social especial de média complexidade ainda é terreno de descobertas.

Ao tratar de números de abrangência nacional, em 2010, o Boletim Ipea

(2012, p. 11) informa que no Brasil existiam 2.155 unidades Creas, situadas em

1.900 municípios, o que representa aumento de 79% em relação ao ano de 2009. Já

no ano de 2013, em novo boletim, o Ipea informa que, entre os anos de 2009 e

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2013, houve aumento de 79,9% das unidades de Creas. Os dados da Munic-2013

apresentam que há, no Brasil, 2.229 Creas distribuídos em 2.032 municípios no

País.

Esses dados significam notável aumento no número de famílias

referenciadas, e, por conseguinte, de capacidade de atendimento no Paefi. Assim,

desvelar o cotidiano do exercício profissional dos assistentes sociais no âmbito do

Paefi nos Creas da capital de São Paulo é tarefa árdua e minuciosa. Antes de tudo,

é imprescindível compreender como, nesse município, tem se configurado a

assistência social e se deu a implantação dos Creas. Para isso recorremos a

Cordeiro (2011), que apresenta um panorama do processo de implantação dos

Creas na cidade de São Paulo, no período 2008-2011.

Os Creas na cidade de São Paulo começaram a ser implantados a partir de

2008, na primeira gestão do governo de Gilberto Kassab (Partido Social

Democrático – PSD), com vistas à inclusão do município no perfil de Gestão Plena

(CORDEIRO, 2011). Importa ressaltar que São Paulo aderiu às normativas da PNAS

tardiamente, o que justifica a recente implantação dos Creas no município.

A partir da publicação da Portaria 46/Smads/2010, em Diário Oficial do

Município de São Paulo, abriu-se a possibilidade de gestão compartilhada nos

Creas, isto é, entre equipe de servidores públicos diretos e de técnicos contratados

por meio da política de convênios da Secretaria Municipal de Assistência e

Desenvolvimento Social (Smads). Essa configuração demonstra certa distorção da

PNAS e da NOB de Recursos Humanos (RH).

Atualmente a capital conta com 26 Creas em funcionamento cuja maioria não

tem equipe mínima de referência de servidores efetivos, que deveriam ter sido

contratados mediante concurso público. Esse fato tem impulsionado cada vez mais a

contratação de profissionais para o NPJ, instalado nos Creas, por meio de uma

política de convênios de forma a pôr em prática as ações do Paefi.

Na Smads da PMSP, as parcerias público-privadas com organizações sociais

têm perdido a função de complementaridade e assumido, quase que em sua

totalidade, a execução dos serviços da rede socioassistencial. Exemplo disso é o

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quadro atual de 1.500 servidores públicos e 17 mil trabalhadores nas organizações

sociais conveniadas19.

Nesse contexto, a opção por estudar especificamente o Paefi decorre da

percepção de suas dificuldades profissionais para enfrentamento das situações

cotidianas de trabalho. O Creas traz ao cotidiano da assistência social um caminho

próprio, em que o acompanhamento às famílias dá-se entre o objetivo e o subjetivo,

fruto da negação de direitos sociais, de acesso às políticas públicas e de atenção

aos aspectos subjetivos da violência e da violação de direitos.

O Paefi apresenta uma estrutura concreta de trabalho com eixos e

atividades, mas não revela em si diretrizes metodológicas de trabalho social com

famílias e indivíduos. Tal situação apresenta a dicotomia da novidade da política de

assistência social: a possibilidade de criar e construir ao mesmo passo das

normatizações ainda em definição (evidência disso são as publicações lançadas

pelo MDS em 201120) e o risco de distorções da prática profissional e as tendências

de retorno ao conservadorismo no Serviço Social. Apresenta, ainda, uma execução

aquém dos parâmetros da proteção social especial, limitando-se ao atendimento

direto, pontual e “encaminhador”.

O acompanhamento a famílias e indivíduos em situação de violência, violação

de direitos e risco social requer preparo profissional e clareza de atribuições. O MDS

(BRASIL, 2011) aponta a qualificação do trabalho social desenvolvido no Creas

como ação determinante para o desenvolvimento de seu trabalho no Suas. O

mesmo documento – Orientações Técnicas. Centro de Referência Especializado de

Assistência Social – indica ainda a necessidade do uso de metodologias específicas

pelos profissionais do Creas; todavia, deixa uma lacuna teórico-metodológica,

quando apenas complementa (sem especificar suficientemente) que: “O

desempenho do papel do Creas exige, portanto, o desenvolvimento de intervenções

mais complexas, as quais demandam conhecimentos e habilidades técnicas mais

específicas por parte da equipe [...]” (BRASIL, 2011, p. 27, grifo nosso). Ratifica:

19

Dados informados durante aula da professora Aldaíza Sposati, com a presença da convidada servidora pública da PMSP, Eliana Garrafa, em 20 de maio de 2013. 20

Orientações Técnicas: Creas (BRASIL, 2011) e Perguntas e Respostas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – Creas (BRASIL, 2011).

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O trabalho social especializado ofertado pelo Creas [...] implica, ainda, em maior domínio teórico-metodológico por parte da equipe, intencionalidade e sistematicidade no acompanhamento a famílias/indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos. (BRASIL, 2011, p. 28, grifo nosso).

Nota-se o reconhecimento da necessidade do perfil profissional qualificado,

entretanto não há clareza a respeito do referencial metodológico: “A oferta de

trabalho social nos Creas pressupõe a utilização de diversas metodologias e

técnicas necessárias para operacionalizar o acompanhamento especializado”

(BRASIL, 2011, p. 28, grifo nosso).

Aponta-se ainda o processo lento de formação de recursos humanos com

capacitação e apropriação do trabalho a ser desenvolvido. O cenário de urgência na

contratação de profissionais para adequação às exigências dos Suas e a falta de

profissionais para suprir os quadros levam à inserção sem preparação no Paefi.

Assim, o desafio que está posto é que o assistente social, além de executor e

formulador da política pública de assistência social, seja também formulador de sua

própria prática cotidiana de trabalho, lidando com as demandas de maneira crítica e

propositiva – muito embora essas qualidades não sejam em momento algum

especificadas.

De fato, a complexidade das situações apresentadas no Paefi pressupõem

formação acadêmica de qualidade e ações de formação continuada por parte dos

assistentes sociais, assim como a interface com outras políticas públicas, conforme

lembra Rizzotti (2009, p. 254):

A atenção às famílias e aos indivíduos que tiveram seus direitos violados e perderam os vínculos familiares motivados pela exposição à condição de vulnerabilidade contém diferentes nexos causais, o que demanda uma construção de intervenções que superam o insulamento de práticas profissionais e incluem outras perspectivas e saberes, que conformam várias áreas de políticas públicas.

Nesse contexto, é possível levantar a hipótese de que o assistente social lida

com uma série de desafios em seu cotidiano de trabalho no Creas e em sua

formação para o trabalho que executa.

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2.4 NOB-Suas, NOB-RH e Política Nacional de Educação Permanente

Assim como a PNAS-2004, a NOB-Suas apresenta diretrizes para a execução

da política de assistência social; contudo, avança por ser mais específica em temas

como financiamento, estrutura dos serviços e descentralização.

É importante mencionar que houve versões anteriores da NOB, como a de

1997 e de 1998: a primeira introduziu a concepção de gestão descentralizada e

participativa, como a criação da Comissão Tripartite – composta pelas esferas

federal, estadual e municipal; e a posterior apresentou avanços, pois definiu as

diretrizes para a execução da política de assistência social e ampliou as atribuições

dos Conselhos de Assistência Social.

A NOB de 2005, que traz em seu bojo a implementação do Suas – por isso foi

denominada de NOB-Suas –, salienta o intuito de retomar os conteúdos abordados

nas versões anteriores e tratá-los na perspectiva de um sistema único (NOB-Suas,

2005, p. 85). Além disso, apresenta diretrizes para as diferentes formas de gestão

do Suas – nas modalidades inicial, básica ou plena –, pois, conforme preconizado na

PNAS-2004, a gestão descentralizada da política de assistência social deve ser

executada de acordo com o porte dos municípios e com as características do

território.

Na caracterização dos níveis de gestão, os municípios foram classificados

como: pequeno porte I – até 20 mil habitantes; pequeno porte II – entre 20.001 e 50

mil habitantes; médio porte – entre 50.001 e 100 mil habitantes; grande porte – entre

101.000 e 900 mil habitantes; e metrópoles – população superior a 900 mil

habitantes.

A NOB-Suas (2005) discorre também sobre a descentralização, a

intersetorialidade e os critérios de financiamento e de partilha entre os municípios,

de acordo com territorialização, ou seja, conforme as especificidades de um

determinado território.

Logo, para pensar a política pública, há que se pensar nas características

demográficas, econômicas, culturais, na sua história e no cotidiano da população a

que tal política se destina. Exemplo dessa demanda é a atual discussão a respeito

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da regionalização no Suas, pois também tem sido necessário refletir sobre

estratégias para implantação e execução de serviços socioassistenciais em regiões

ou microrregiões de municípios de pequeno porte I.

O princípio da territorialização preconiza que, para a execução da política,

sejam considerados os multifatores que caracterizam um território de modo a

propiciar ações de prevenção e de enfrentamento específicos das desigualdades

sociais que se manifestam.

A NOB-Suas (2005) também desenvolve o princípio da matricialidade

sociofamiliar, segundo o qual implica a compreensão de que “a família é o núcleo

social básico de acolhida, convívio, autonomia sustentabilidade e protagonismo

social” (NOB-Suas, 2005, p. 91), de que o direito à convivência familiar supera o

conceito de família como unidade econômica e avança para a compreensão de

família como laços consanguíneos, núcleo de afeto ou afinidade, de cuidados e de

obrigações mútuas. O texto também reforça que a família deve ser apoiada para ter

condições de responder ao seu papel de cuidado e sustento de seus membros.

Neste estudo, caberá refletir mais adiante sobre esse princípio, no contexto

de trabalho no Creas.

É imprescindível mencionar que a publicação da NOB-Suas de 201221,revoga

todo o texto da NOB-Suas 2005, mas não traz mudanças conceituais e

paradigmáticas em comparação à anterior. As mudanças centrais estão na maior

preocupação em tratar da operacionalização do Suas.

O texto menciona dispositivos como o pacto de aprimoramento do Sistema

Único de Assistência Social, o Índice de Desenvolvimento do Suas (ID Suas) e a

Rede Suas. Vale destacar o artigo 109, que trata da gestão do trabalho, indicando

ações necessárias para a “desprecarização” das condições de trabalho no Suas.

Essa ênfase denota a necessidade premente de aprimoramento da política de

recursos humanos para que o Suas se efetive. Mostra também a consonância com a

NOB-RH e com a Política Nacional de Educação Permanente, que fora aprovada

naquele mesmo ano.

21

Aprovada por meio da Resolução 33, do CNAS, de 12 de dezembro de 2012, publicada no DOU, em 3 de janeiro de 2013.

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Como visto, o próprio texto da PNAS previu a organização de uma política de

recursos humanos. Desse modo, por meio da Resolução 1 do CNAS, de 25 de

janeiro de 2007, foi publicada a NOB-RH, que trata, de modo geral, dos princípios

para a gestão do trabalho no âmbito do Suas, dos princípios éticos para os

trabalhadores da assistência social e das equipes de referências. Aborda ainda a

necessidade de contratação mediante concursos públicos e o número de

profissionais para preenchimento de quadros das equipes dos serviços

socioassistenciais e das equipes de referência, de acordo com o porte do município

e o tipo de serviço, no contexto das proteções sociais básica e especial.

Há que se discutir o fato de que a nomenclatura “equipe de referência”

permite que o gestor local da assistência social interprete – de acordo com os dados

do território em que o serviço socioassistencial será instalado – a quantidade

necessária de profissionais para determinado serviço em determinado território.

Contudo, o que comumente ocorre é a utilização ou interpretação da nomenclatura

equipe de referência como “equipe mínima”, nivelando por baixo a execução da

política pública. Nesse sentido, é imperativo que a gestão do trabalho seja

implementada sob a referência da vigilância socioassistencial.

Além de diretrizes quantitativas, a NOB-RH (2007, p. 10) ainda salienta que,

para atender aos princípios e às diretrizes previstos na PNAS, é necessário que a

gestão do trabalho no Suas garanta:

A “desprecarização” dos vínculos os trabalhadores dos Suas e o fim da terceirização

22,

A educação permanente dos trabalhadores,

O planejamento estratégico,

A gestão participativa com controle social,

A integração e a alimentação do sistema de informação.

Também aponta a necessidade de elaboração de uma Política Nacional de

Capacitação sob os princípios da educação permanente, de modo que a qualificação

dos trabalhadores, gestores e conselheiros ocorra de forma continuada, sistemática,

descentralizada e nacionalizada.

Em 2011, o MDS-CNAS lançou a Política Nacional de Capacitação do Suas,

em versão preliminar, que passou por um longo processo23 de discussão, revisão e

22

O Boletim do Ipea (2012, p. 27) menciona que um dos principais desafios a serem enfrentados para a consolidação do Suas é a proliferação de vínculos trabalhistas irregulares e precários.

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aprimoramento, resultando na publicação da Política Nacional de Educação

Permanente do Sistema Único de Assistência Social (PNEP-Suas) em 13 de março

de 201324.

Sobre a educação permanente, conforme a NOB-RH (2011, p. 26):

A educação permanente constitui-se no processo contínuo de construção de conhecimentos pelos trabalhadores, de todo e qualquer conhecimento, por meio de escolarização formal ou não formal, de vivências, experiências laborais e emocionais, no âmbito institucional ou fora dele. Tem o objetivo de melhorar e ampliar a capacidade laboral dos trabalhadores em função de suas necessidades individuais, da equipe de trabalho e da instituição em que trabalha, das necessidades dos usuários e da demanda social.

Importa destacar que a Política Nacional de Educação Permanente de 2013

apresenta, em sua perspectiva político-pedagógica, a centralidade dos processos de

trabalho e das práticas profissionais; os princípios da interdisciplinaridade,

aprendizagem significativa e historicidade. Além das noções de formação e

capacitação, trata também da noção de percursos formativos, na perspectiva de que

o profissional em sua trajetória de trabalho vivencia a formação cotidiana

compartilhada.

Esta pesquisa conta com o privilégio da participação de uma das

componentes do grupo de trabalho instituído pelo CNAS para a elaboração final da

PNEP-Suas. Desse modo, na etapa de análise e discussão dos dados, esse tema

será retomado com mais profundidade. No próximo capítulo são trazidos à pauta

mais elementos para a reflexão acerca do trabalho do assistente social na Política

de Assistência Social, no Creas e, especificamente, do trabalho com famílias e

indivíduos no Paefi.

23

Na VI Conferência Nacional da Assistência Social, realizada em 2007, a pauta principal foi a NOB-RH/Suas. A VII Conferência Nacional da Assistência Social, realizada em 2009, fomentou a discussão acerca da importância de espaços de reflexão entre os trabalhadores, o que resultou na criação do Fórum Nacional dos Trabalhadores do Suas (FNTSUAS). A VIII Conferência Nacional da Assistência Social, realizada em 2011, teve como principais pautas de debate a gestão do trabalho no Suas, os planos de carreira, cargos e salários, concursos públicos e a política nacional de educação permanente. Em 16 de março de 2012, por meio da Resolução 8, do CNAS, foi instituído o Programa Nacional de Capacitação no Suas (CapacitaSuas). Mediante a Resolução 19, de 6 de junho de 2012, o CNAS institui um grupo de trabalho para a formulação do texto final da Política Nacional de Educação Permanente do Suas. 24

Resolução 4 do CNAS, publicada no DOU, em 20 de março de 2013.

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CAPÍTULO 3

A PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NO CREAS: O TRABALHO COM FAMÍLIAS E INDIVÍDUOS NO PAEFI

3.1 Notas para Compreender o Percurso da Análise dos Dados

Esta segunda parte da dissertação representa o ápice e o coração deste

estudo. Aqui estão contidas as entrevistas e a análise dos dados realizadas pela

pesquisadora. Para o exercício de análise, foram escolhidas as categorias cotidiano

e mediação, no intuito de desvelar o dia a dia do assistente social no Creas-Paefi e

as mediações que esse profissional faz em sua prática.

É importante retomar que esta pesquisa tem como objetivo geral analisar a

prática profissional do assistente social no Creas-Paefi na cidade de São Paulo e

como objetivos específicos: 1) compreender a estrutura do Creas-Paefi na cidade

de São Paulo; 2) conhecer o cotidiano do assistente social no Creas; e 3) refletir a

respeito do trabalho que o assistente social desenvolve com famílias e indivíduos no

Paefi.

No momento das entrevistas, a pesquisadora já identificou a riqueza do

material colhido e, nas etapas de transcrição, leitura e releitura das falas, surgiu a

decisão de não desprezar o material obtido, optando-se por fazer poucos cortes.

Isso porque, além de conterem reflexões a partir das perguntas norteadoras da

pesquisadora, as falas apresentaram-se – nas suas linhas e entrelinhas – cheias de

alma, retratando a riqueza e miséria do cotidiano profissional.

Depois de leituras e releituras das transcrições (122 páginas), a pesquisadora

escolheu o que chamou de “falas centrais”, que resultou no material aqui

apresentado. Grifou frases que julgou emblemáticas, buscando evidenciar para o

leitor a intensidade do discurso e dos desafios da política de assistência social no

âmbito da proteção social especial Creas-Paefi: as demandas e os desafios do

trabalho, as inquietações, a busca por estratégias, o atendimento às famílias e aos

indivíduos em situação de violação.

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Essa intensidade – da política de assistência e do momento das entrevistas –

fez com que a pesquisadora se identificasse e se referenciasse em Bosi (1987), que,

em seu estudo sobre memórias da sociedade, colhe lembranças de apenas oito

idosos. Na referida obra, a autora dedica boa parte à transcrição ininterrupta das

falas dos entrevistados.

Na presente pesquisa, essa opção justifica-se pelo peso e profundidade que

cada fala contém e porque o relato sem muitas interrupções – sobretudo no capítulo

4 – propicia ao leitor um entendimento mais completo do que o entrevistado quis

comunicar seja em suas memórias ou em suas opiniões.

Em que pese o fato de este estudo não utilizar a metodologia de história oral,

pareceu à pesquisadora pertinente se inspirar no uso do recurso – utilizado por Bosi

– de não realizar tantos cortes nas falas colhidas, deixando a narrativa e reflexão

dos entrevistados correrem livres a fim de identificar seus pensamentos e suas

vivências sobre o assunto estudado. As falas das profissionais entrevistadas,

contudo, em alguns momentos, aparecem fracionadas para que a pesquisadora

insira com mais facilidade suas reflexões entre os assuntos abordados.

Considerando a experiência profissional da pesquisadora como ex-

coordenadora de um Creas da capital paulista, essa opção também evidenciou que:

Nesta pesquisa fomos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Sujeito quando indagávamos, procurávamos saber. Objeto quando ouvíamos, registrávamos, sendo como que um instrumento de receber e transmitir a memória de alguém, um meio de que esse alguém se valia para transmitir suas lembranças (BOSI, 1987, p. 2).

Importa mencionar que a transmissão e socialização do pensamento das

profissionais entrevistadas não se prendem unicamente a esta pesquisa, haja vista a

larga experiência de algumas delas – inclusive na área acadêmica de docência e

pesquisa. No entanto, aqui reúnem-se reflexões acerca da prática profissional no

Creas-Paefi e, talvez nesse sentido – ao que foi possível pesquisar –, pode ser que

o estudo seja inédito na realidade de São Paulo.

Como mencionado na introdução desta dissertação, as entrevistas foram

realizadas em três etapas:

1a etapa – 2 profissionais de educação permanente (assistente

social/psicóloga e cientista social): envolvidas com a temática por meio de

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trabalhos na PMSP, capacitações em outros municípios, docência e

pesquisa na área de políticas públicas, notadamente na assistência social.

2a etapa – 3 assistentes sociais que trabalham no Creas-Paefi: optou-

se por entrevistar apenas assistentes sociais servidores públicos que

trabalham diretamente no atendimento do Paefi (considerando o número

elevado de contratações terceirizadas e de profissionais que realizam

apenas supervisão técnica de serviços conveniados, esse número se

mostrou bastante reduzido, porém muito emblemático para o momento

atual dos Creas na cidade de São Paulo).

3a etapa – 2 assistentes sociais que trabalharam no Creas-Paefi e

atualmente estão na gestão (gabinete) de Smads: desde o exame de

qualificação já havia a intencionalidade de pesquisar profissionais da

gestão municipal dos Creas; porém, ao longo do estudo, a oportunidade de

entrevistar especificamente assistentes sociais que vivenciaram a realidade

do Creas-Paefi e passaram para a função de gestão da proteção social

especial no município revelou-se muito interessante ao se considerar –

com base na educação permanente – os percursos formativos e a trajetória

profissional dessas profissionais, suas avaliações e perspectivas para o

Creas.

Assim, com esta “paleta de cores” é que foi pintado o quadro desta pesquisa,

cujos traços e contornos foram marcados por essas sete profissionais.

3.2 O Creas – A Unidade Central da Proteção Social Especial

Este item traz reflexões acerca do processo de implantação, da identidade e

das atribuições dos Creas da capital paulista. Para tanto, intencionalmente, foi

perguntado às profissionais envolvidas com educação permanente sua opinião sobre

a proteção social especial, no intuito de refletir sobre suas características e, então,

tratar especificamente do Creas:

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Profissional de educação permanente 2

Acho interessante refletirmos e compararmos a partir do SUS, que tem uma lógica maior grau de cobertura de universalidade e proximidade com a população. Assim, na [proteção social] Básica (UBS) vira Cras – e uma especialização – na [proteção social] Especial – que seriam equivalentes às unidades especializadas da saúde, para nós o Creas.

Me parece que esse é o raciocínio que nós transportamos [da saúde para a assistência social]. Eu acho que tem duas categorias específicas que sustentam esse raciocínio, que não foram suficientemente aclaradas do ponto de vista teórico, operacional e programático que é a ideia de risco e vulnerabilidade social.

Então, digamos que do ponto de vista da saúde, a especialização, a hierarquização da atenção – se pensarmos no processo especializado da saúde – você tem um grau de tecnologia e de conhecimento ascendentes – aí o grau máximo da especialidade médica.

Você pode ter toda a discussão dentro do SUS, o impacto que isso teve na desumanização da atenção e toda a questão de humanização no SUS. Mas digamos que, ao trazer isso para a assistência social, de um lado, nós não trabalhamos analiticamente, na profundidade necessária, as implicações conceituais, éticas e programáticas das categorias de risco e vulnerabilidade social. O Serviço Social, em particular, tem uma aversão a esse tema, a esses conceitos. Às vezes explícita, às vezes não... Do ponto de vista de que ele seria uma categoria neoliberal na proteção social brasileira.

Isso atravanca muito uma discussão mais consequente do que significa trabalhar a vulnerabilidade social, na perspectiva de prevenção na básica e trabalhar já com uma noção de risco social na especial. Qual seria a distinção entre ambas? O que temos visto? Na prática, nas capacitações, nos processos de formação ou mesmo no processo de estruturação da gestão municipal, é o que, vulgarmente, popularmente, tenho dito que é o “encaminhante/se livrante”. Como eu não sei onde termina a vulnerabilidade e onde começa o risco, então eu identifiquei qualquer parcela que eu possa remeter para o Creas e despacho o usuário.

Assim, toda a discussão de referência e contrarreferência não é feita. Você encaminha, você delega, você se livra dele. [Por isso] tem uma matriz que a gente não entendeu direito: o que é a vulnerabilidade na perspectiva de prevenção. Há um agravo no campo da assistência social que hoje me parece hegemônico (não tem jeito que é): risco é igual à violação de direitos. Toda vez que tem uma violação de direitos é Creas.

[Deste modo] estaríamos falando de direitos humanos, se fôssemos trabalhar numa perspectiva de direito mais estendida – eu diria que a violação está colocada até no direito à participação, seja na básica, seja na especial, seja em qualquer lugar!

Digamos que [nossa proposta é fazer] uma leitura de violação de direitos no campo dos direitos humanos, e aí? Todos os marcos internacionais de proteção à infância, proteção ao idoso, proteção à pessoa com deficiência vêm vindo nessa esteira de dar uma objetivação àquilo que nós ainda não demos conta de afirmar, qualificar, conceituar programaticamente o que é o risco.

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Quando [abordamos] risco do ponto de vista de risco como a violação de direitos e ainda não tem uma maturidade suficiente para dizer qual é a nossa resposta específica dentro de um campo articulado dentro de um sistema de garantia, [...], ficamos muito reféns do que o Judiciário entende como uma proteção daquele grupo social. Isso tem implicações, do meu ponto de vista, de revés do Suas. Essa é minha avaliação.

[...] Eu não temeria em carregar um pouco mais na tinta e dizer que estamos tendo uma ação regressiva de implantação do Suas. Porque a ideia de sistema, como uma lógica de gestão, ela é para você articular coisas e não para você fragmentar coisas. E hoje há uma fragmentação dentro do município entre o Cras e o Creas, porque é a ideia do “encaminhante/se livrante”.

[Estaria tudo bem se] a unidade familiar fosse cuidada (cuidada entre aspas, tá?) na [proteção social básica] e alguns desses membros da família – que exigem uma atenção mais especializada – [fossem acompanhados] no Creas, mas tendo Cras como unidade de referência. Mas essa relação Cras e Creas também não está colocada.

Depois, se você vai especializando, Creas Idoso, Creas POP, Creas GLBT, você volta para uma discussão que é um campo muito tenso, que são os movimentos sociais que têm uma larga experiência na defesa da mulher, do idoso, da criança.

Também nos coloca numa situação muito vulnerável, tecnicamente, profissionalmente, e não falo só de assistentes sociais – estou falando de psicólogos também – que é termos um enfrentamento [no sentido] de que a nossa resposta muitas vezes é julgada como insuficiente, desqualificada em face de toda a questão do Centro de Referência da Mulher, do Idoso, para a pessoa Negra, disso ou daquilo. E, [desse modo], parece que a nossa resposta profissional parece que está sempre aquém, ou muito retardatária em relação à experiência dos próprios movimentos sociais que conquistaram esses centros de referências especializados.

Então, parece que toda vez que a gente está indo nessa perspectiva de especialização, sem a devida resposta do que é a atenção profissional [...] numa proteção social, na assistência, toda vez que nós não somos capazes de responder isso e começamos a fragmentar, nós nos fragilizamos como profissionais, pesquisadores e militantes do Suas.

Então eu penso que nós carecemos qualificar melhor esse lugar para entendermos qual é o grau de especialização de conhecimento, de metodologia que justifique uma equipe [especificamente no Creas-Paefi]. Há quem já pense que não deveria ter – já há um debate. Este é meu horizonte de luta de que não deveria ter a separação de Cras e Creas. (5 dez. 2013)

Na fala dessa profissional, são apresentadas preocupações legítimas com o

processo de implementação e consolidação do Suas. De fato, dizer que o Suas

“empresta” o modelo do SUS é uma categorização que representa apenas uma

parte da lógica de sistema único que está em construção no campo da assistência

social. A ideia de Sistema Único de Assistência Social há que ser refletida de acordo

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com as especificidades dessa política. A proteção social especial, em particular,

parece ser uma interessante estratégia de gestão, de distribuição de recursos e

serviços socioassistenciais; contudo, já em sua criação e implementação, surgiu

permeada por rótulos – e estigmas –, como violência, violação, risco e

vulnerabilidade social. Nesse sentido, Iamamoto (2011, p. 459) alerta:

É interessante observar as fragmentações operadas pelas políticas no atendimento às necessidades sociais das classes subalternas e seus segmentos – idosos, crianças e adolescentes, portador de necessidades especiais – são o critério que vem filtrando a análise dos sujeitos pelo Serviço Social, nem sempre atribuindo visibilidade às clivagens coletivas de classes. A armadilha está em focalizar os segmentos em si mesmos, fragmentando-os e isolando o seu tratamento analítico das relações sociais que os constituem.

É necessário concordar com a autora quanto ao perigo da fragmentação, das

subdivisões na população sem refletir a totalidade social. Justamente pelo perigo

dessa armadilha é que se faz necessário o exercício cuidadoso da mediação em

cada situação de risco e vulnerabilidade que determinados segmentos vivenciam.

Deve-se atentar ao fato de que, apesar dos debates que circundam as

categorias risco e vulnerabilidade social, sobretudo no serviço social, importa sim a

construção de reflexões e debates no âmbito da política pública de assistência

social, sem, contudo, esquecer também a reflexão de outras profissões e

perspectivas teóricas.

Essa afirmação se a apoia no que diz Iamamoto (2011, p. 460) acerca da

relação mimética entre serviço social e políticas sociais: “Vale reafirmar que Serviço

Social enquanto profissão não é o mesmo que política pública – esta de

responsabilidade do Estado e dos governos”. Desse modo, não é cansativo insistir

que a confusão do que é serviço social e política social, ou ainda seu uso e

compreensão homogênea, atrapalha a identidade da política pública e da profissão.

Como explicitado no primeiro capítulo desta dissertação, há uma série de

compreensões teóricas referentes aos termos risco e vulnerabilidade. Há, de fato, o

perigo de não considerar as reais causas da questão social ao utilizar essas

categorias indiscriminadamente. Todavia, cabe ao profissional operador dessa

política – para este trabalho, o assistente social – analisar, refletir e estabelecer

mediações sobre o que está posto no cenário da sociedade, nos marcos normativos

da política de assistência social, na regulamentação e no referencial teórico da

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profissão e, sobretudo, na realidade do usuário do serviço em que atua.

Sobre a defesa de que “não deveria haver separação entre Cras e Creas”, é

possível compreender essa afirmativa haja vista o modo fragmentado que a

implantação dos serviços tem ocorrido, como se pode apreender pelo trecho da

entrevista que segue:

Assistente social do Creas-Paefi 3

Eu volto e insisto que o Creas ficou muito sozinho. Durante muito tempo a ênfase foi dada à unidade da [proteção social ] Básica, que é o Cras, até por uma questão de cumprimento de metas e tudo mais. [...]. Eu acho que a cidade de São Paulo pode perder muito com isso, porque mesmo o que está na básica tem um conteúdo enorme de proteção especial. Não tenho um número preciso, mas acho que se eu quiser fazer uma estimativa, mais que 70% das famílias que estão no Cras tem alguma demanda considerada como da especial. (27 mar. 2014)

O relato dessa assistente social ratifica a necessidade de articulação entre

Cras e Creas. Ela defende que, para o momento histórico em que a política de

assistência social se encontra, o Creas se constitui numa unidade necessária. Ao

mesmo passo, a afirmação da profissional de educação permanente 2, cujo

horizonte de luta é o fim da separação de Cras e Creas, é válida, pois há que se

considerar que se o Cras funcionar como uma unidade de referência, de fato, as

demandas da proteção social especial podem ser atendidas ali, ainda que haja no

mesmo espaço uma equipe de referência para a proteção social especial. Essa

defesa tem sido posta por alguns estudiosos do Suas e tem sido denominada de

UniSuas.

Isto posto, a relação atual Cras e Creas necessita ser fortalecida, estreitada.

As equipes precisam buscar estratégias de intervenção conjuntas a fim de dirimir

fragmentações na oferta de serviços de proteção social.

Ainda sobre e a proteção social e o Creas, a profissional de educação

permanente 1 (5 dez. 2013) discorre:

O conteúdo da palavra “especial”, “especializado” é algo que não é consensual como foi configurado. Tanto do ponto de vista interno - para dentro da política - como do ponto de vista de suas interfaces.

O que significa eu falar: “é o Centro de Referência Especializado”? “É uma proteção especial”? O que isso significa para nós? Eu não posso reduzir o especial à violação de direitos. É muito mais do que isso. O cotidiano de trabalho revela que é muito mais do que isso, [pois] não necessariamente há uma violação de direitos que faz com que o sujeito precise ser atendido

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na proteção social especial.

A crise de identidade - que o Judiciário diz o quê a gente faz é consequência e que mostra uma fragilidade nossa - mostra uma fragilidade interna da proteção social especial e uma fragilidade interna do sistema que também se expressa na questão do diálogo com a básica.

Portanto, ao você criar [a unidade Creas], a dificuldade é ter argumentos para dizer para o Poder Judiciário [o que é] o sistema de garantia de direitos. Não tem o que dizer: “e tenho dito!”.

Se localiza uma fragilidade conceitual que talvez tenha sido difícil na implantação do Suas da forma como foi, uma escolha política. Estamos vivendo o impacto da implantação dessa escolha. Então [sobre o] Cras, o princípio da capilaridade do Cras no País era imprescindível – tinha que se efetivar, porque tinha que estar firmado geograficamente. Agora, isso não significa que geograficamente ele dizia ao que vinha, [o Cras] só disse ao que vinha na medida em que teve consistência de resposta.

A “fragilidade conceitual” do quem vem a ser o Centro de Referência

Especializado de Assistência Social ou, ainda, o Creas – a “proteção social especial”

– também dá margem para equívocos no âmbito da política de assistência e nas

relações com outras políticas públicas e setores do Sistema de Garantia de Direitos.

A relação entre Cras e Creas deve ser refletida e as fragmentações decorrentes da

implantação do sistema único, em âmbito nacional, carecem de estratégias de

articulação. Talvez um caminho interessante para iniciar esse movimento seja o que

a profissional de educação permanente 1 apontou: a vulnerabilidade e o risco social

precisam de estratégias tanto na proteção básica quanto na proteção especial.

Neste estudo, é imperativo considerar, também, a realidade da cidade de São

Paulo – por ser uma metrópole que conta com população estimada25 de 12 milhões

de habitantes –, que é peculiar se comparada ao restante do Brasil, e demanda

estratégias específicas para o Suas. Corroboram essa ideia Sposati e Koga (2013, p.

183), segundo os quais a cidade de São Paulo é complexa e heterogênea:

Como megacidade é ao mesmo tempo, mundial, latino-americana, nacional, metropolitana, intermunicipal, intramunicipal, interdistrital, intradistrital e tem seus bairros. E cada uma dessas esferas exige relações e funções de gestão qualificadas.

Como mencionado no segundo capítulo, os Creas em São Paulo começaram

a ser implantados durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD) (2006-2012), mais

25

Dados disponíveis em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=355030&search=sao-paulo|sao-paulo>. Acesso em: 6 jun. 2014.

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especificamente, no final de 2008. Cordeiro (2011) relata que esse processo foi

marcado pela necessidade de incluir a cidade de São Paulo na gestão plena.

Sobre esse aspecto, as profissionais entrevistadas contribuem para a

descrição do período de início de funcionamento dos Creas em São Paulo:

Assistente social do Creas-Paefi 1

Em Guaianases, antes mesmo de instalar […], era uma vontade muito grande de ter o Creas naquela região, foi inclusive demanda do próprio Conselho Tutelar, e uma série de órgãos de garantia de direitos.

A implantação do Creas, antes mesmo dele se instalar, a gente tinha uma equipe de proteção especial que foi trabalhando com esses parceiros a implantação. Então, quando ele foi implantado, foi muito bem-vindo, mesmo com uma equipe do NPJ [Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico].

Só foi o espaço físico instalado, mas o trabalho com a rede já vinha acontecendo, porque de fato ele é a nossa base. A gente não consegue trabalhar nos limites da própria Secretaria, do que ela nos oferece […] ele é muito pra fora, ele é muito mais pra fora do que a gente às vezes imagina [...] (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 3

Eu entendo que [o Creas] é uma unidade fundamental dentro do sistema e também dentro da política de assistência [social]. Penso que é uma proposta essencial para atender a questão de violência porque até então, antes do Sistema, a gente [só] tinha unidades públicas de referência [para] atendimento de saúde ou ligadas à justiça e à segurança pública.

Então eu percebo que a população necessitava de uma unidade com esse formato. [O Creas] tem um potencial enorme de desenvolvimento e aí um leque de ações a serem desenvolvidas que exigem da equipe um suporte, um aporte bem consistente. (27 mar. 2014)

Sobre as dificuldades no período de implantação a assistente social do Creas-

Paefi 3 (27 mar. 2014), acrescenta:

Eu atribuo isso também a toda historia da assistência social. Essas dificuldades que a gente enfrenta no atendimento dessas famílias vêm muito da ausência de uma prática [que trabalhasse] também, com as violências.

Se você comparar a nossa trajetória enquanto estrutura pública atendendo a violência e a iniciativa do terceiro setor, das organizações, eles estão anos-luz à nossa frente. Primeiro pelas especificidades, porque cada organização tem sua especificidade de atendimento e se especializou naquilo. O Creas é totalmente diferente disso, ele abarca todas as demandas que envolvem a violência e a violação – sem se especificar numa determinada.

A implantação que acompanhamos na da cidade foi meio que emergencial, porque você tinha um prazo a ser cumprido, determinações, enfim. A gente enfrentou desde a resistência da equipe de profissionais para compor -

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porque a gente não tinha um quadro suficiente – a questões burocráticas que impediam a [montagem da] equipe conforme a NOB-Suas – eu digo especificamente do advogado.

[O Creas] eu posso dizer de experiência própria que ele passou por muito preconceito dentro dos territórios; acho porque as pessoas tinham e têm ainda muito medo do novo, de romper com uma prática de um plantão social apenas [...].

Além da implantação com vistas ao alcance do status de gestão plena, é

possível perceber, a partir desta fala, outros fatores que marcaram o início do

funcionamento dos Creas na capital: 1) a característica dos Creas de atender

diversas modalidades de violências; 2) resistências de profissionais da Smads a

compor a equipe dos Creas; 3) questões burocráticas para compor a equipe – pois

não há no quadro de RH da Smads previsão para a contratação de advogados,

mediante concursos públicos para lotação em equipes técnicas; e 4) “medo do novo”

– do novo perfil de trabalho que o Creas propunha – por exemplo, ir além do plantão

social.

Nota-se um elemento recorrente nas falas da profissional de educação

permanente 2 e da assistente social Creas-Paefi 3: a desqualificação ou despreparo

dos profissionais lotados nos Creas em relação às demandas de violência, se

comparado ao trabalho desenvolvido por Organizações Não Governamentais

(ONGs) especializadas nos segmentos (mulher, idoso, criança e adolescente,

pessoa com deficiência, etc.).

Entretanto, o ponto é exatamente este: o Creas não se propõe a atender

segmentos, atende à família ou ao indivíduo, na perspectiva da matricialidade

sociofamiliar, tendo como horizonte o direito à convivência, compreendendo o

indivíduo em situação de risco e vulnerabilidade em seu contexto familiar,

comunitário, social. Contudo, é natural que a insegurança do profissional lotado no

Creas-Paefi exista, pois a identidade do Creas ainda está em construção. Mais

adiante será possível refletir com mais elementos sobre o princípio da matricialidade

sociofamiliar.

Ainda a respeito do período de implantação dos Creas na capital, as

profissionais enfatizam que, dentre as principais barreiras nessa fase, estavam a

resistência e a insegurança em trabalhar no Creas, e replicam falas de outras

colegas naquela ocasião:

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“Aqueles casos cabeludos? Nossa... Isso aí dá muito trabalho! [...]” (ASSISTENTE SOCIAL CREAS-PAEFI 1, 27 mar. 2014)

“Eu quero lidar com as coisas que estão previstas” – Porque a proteção social especial exige uma flexibilidade, uma sensibilidade acima de tudo [...] e a gente só conta com os conteúdos da formação ou de uma especialização (ASSISTENTE SOCIAL CREAS-PAEFI 3, 27 mar. 2014)

Além do relato da resistência de alguns profissionais em trabalharem no

Creas, observa-se a insegurança com a formação para lidar com as demandas

postas no lócus profissional. Vale perguntar: a formação revela-se insuficiente

adiante das demandas apresentadas no Creas-Paefi ou cabe aos profissionais

aproximar “os conteúdos da formação” ao cotidiano da prática profissional?

As assistentes sociais que passaram pelo Creas-Paefi e atualmente exercem

sua prática profissional na gestão da proteção social especial da Smads reiteram as

dificuldades e os desafios dessa fase, a partir da unidade que trabalharam (Creas

Vila Prudente):

Assistente social – gestão 2

Quando eu entrei no Creas Vila Prudente, éramos três técnicos […] e tínhamos um espaço – não era um Creas, era um espaço. Porque na época [...] eram apenas três Creas na cidade de São Paulo. E foi um desafio enorme, porque quando eu cheguei lá não tinha nada. Estavam começando a implantar os Creas na cidade de São Paulo. Então, você não tinha experiência de nada – tanto de referência como de material. Você não tinha nada. Não tinha um prontuário, nem de orientação de como que tinha que ser. [...] nós pegamos um Creas, que era de um serviço anterior – do Cedeca

26. E já pegamos o serviço com 100 casos. Quando eu cheguei

[tinham] aqueles 100 casos que já eram acompanhados por aquele serviço.

Na verdade, só mudou de nome para a população, porque para eles não fazia diferença se era Cedeca, se era prefeitura, eles queriam ser atendidos. Só que nós tínhamos um número de funcionários muito menor do que o Cedeca.

O Cedeca realmente tinha uma equipe completa, tinha advogado, psicólogo e nós éramos três assistentes sociais.

26

O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) é uma organização não governamental de abrangência nacional (mais detalhes disponíveis em: <http://www.cedeca.org.br/>). Nesta pesquisa, a profissional entrevistada se refere especificamente ao Cedeca “Monica Paião Trevisan”, conhecido como Cedeca Sapopemba. Cordeiro (2011) descreve o período de transição da equipe do Cedeca Sapopemba – que, por meio das atividades do então chamado Núcleo de Proteção Psicossocial, acompanhava adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, bem como realizava o acompanhamento de suas famílias – para a instalação do primeiro Creas de São Paulo (SP): o Creas Vila Prudente.

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Era um desafio tremendo. Eu lembro que a primeira coisa [que eu fiz quando] eu cheguei lá foi separar os prontuários. [Organizei] o saber por violação: “esses daqui são vítimas de violência: essas são crianças, essas são mulheres, esses são idosos...” – para começar a fazer um trabalho.

O tempo que nós ficamos na Vila Tolstói – porque antes o Creas era lá – nós não tínhamos carro, não tínhamos nada e, aí, para fazer visita era um desafio.

O Creas não era reconhecido como Creas naquele território. Porque o território da Vila Prudente é um território muito bem articulado pelas organizações sociais. Então, o próprio Cedeca não reconhecia o Creas, o Caps não reconhecia o Creas, ninguém reconhecia o Creas. Ninguém sabia o que era o Creas. Tanto é que às vezes a gente ia numa reunião e o pessoal falava; “ah, lá onde trabalha o fulano”. Não era nem Creas, era o lugar de trabalho do fulano, que era o coordenador do Creas – então ninguém sabia o que era Creas.

O nosso primeiro desafio foi [estabelecer] a relação com o Cras, porque nós éramos muito distantes. Teve, então, aquela divisão na assistência social de proteção básica e especial e ninguém quis vir para a proteção especial. Isso ninguém me contou; eu vivi isso. Ninguém queria vir para a proteção especial, então, quando nós chegávamos para discutir casos, nós éramos as problemáticas. Eu lembro que […] nós discutíamos casos, nos reuníamos e o pessoal do Cras dizia: “não vamos”. […] Foi um trabalho muito difícil o nosso, de “cavar” o Creas no território. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 1

Primeiro que [quando] o Creas começou não tinha nem a Portaria 46. E quando saiu a tipificação dos serviços, teve a divisão do que era a [proteção social] básica e do que era a [proteção social] especial. Isso foi uma das questões que, para os técnicos, pesou muito porque: ir para o Creas, implicava em sair da Supervisão da Assistência Social [SAS] e os técnicos que faziam atendimento, culturalmente, [eram considerados] dentro da Secretaria, como técnicos de segunda linha.

Os técnicos de primeira linha fazem supervisão de serviço – essa é uma questão definida em São Paulo – nesse sentido, ir para o Creas significava um retrocesso na carreira – você ia sair da SAS para ir para o Creas e, principalmente, você ia sair da SAS para estar subordinado a pessoas que estavam chegando em função do novo concurso.

Então era o pessoal “inexperiente”, que “não sabia onde estava se metendo”, que “queria revolucionar a política de assistência [social] na cidade”, que ficava “caçando trabalho” “você está mexendo com o que está quieto, vai fazer visita?” Então, tinha essa resistência [...].

Eu lembro muito de alguns técnicos que vieram da SAS e diziam: “nossa eu não aguento trabalhar aqui, como é que vocês aguentam trabalhar com essa complexidade?”

E aí você acaba vendo que "o buraco é muito mais embaixo” [...] não é tão simples assim. Os casos que eu atendia na Vila Prudente eram casos muito complexos e depois de uns dois anos que eu passei lá foi que a rede começou a reconhecer o Creas como referência – que o Creas começou a dar respostas para os casos que eram encaminhados para lá, […] Foi

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depois desses dois anos, que nós começamos a ser referência, que os casos começaram a andar realmente. E começaram a chover casos para o Creas: porque a partir do momento que você se torna uma referência no território, a demanda vem. (24 abr. 2014)

É importante destacar que os Creas, na capital paulista, além do

desenvolvimento de ações no Paefi, realizam também a supervisão técnica27 dos

serviços conveniados de sua região de abrangência. A supervisão de serviços

conveniados é histórica na Smads que destinou e destina boa parte dos servidores

para esta tarefa. Contudo, após a implantação dos Cras e dos Creas na cidade, com

o número insuficiente de servidores para compor as novas unidades, ocorreu um

remanejamento de profissionais para as unidades – da Supervisão de Assistência

Social para as unidades Cras e Creas – bem como uma redefinição de atribuições:

os técnicos que outrora realizavam apenas supervisão de serviços passaram, em

sua maioria, a também atender a população. Essas mudanças geraram resistências

e dificuldades para a implementação da nova configuração da PNAS na realidade

desse município.

Quanto à sobreposição de funções – supervisão e atendimento –, as opiniões

das entrevistadas são divergentes:

Assistente social do Creas-Paefi 1

[...] A gente tenta usar essa estratégia até como forma de unificar. Todo mundo tem que entender de tudo um pouco [...]. (27 mar. 2014).

Assistente social do Creas-Paefi 3

Nós já tivemos esse momento, mas, agora, já estávamos num momento inicial [uma parte da equipe supervisiona serviços conveniados e uma parte atende à população]. Eu acho que é um prejuízo, porque você acaba segmentando. Destoa um pouco com a fala: [é melhor] aproximar isso e olhar para o usuário como um todo [se não] fica um pouco segmentado. (27 mar. 2014).

Essas profissionais defendem que o exercício de ambas as funções é um

ganho para a equipe e para o usuário. Todavia, a profissional de educação

permanente 1 (5 dez. 2013) ressalva e aponta o risco de sobrecarga:

27

A supervisão técnica dos serviços conveniados com a PMSP é pautada na Portaria 46/Smads/2010 e 47/Smads/2010, além da legislação específica de parcerias público-privadas e para cada faixa etária atendida.

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Tanto na realidade da [proteção social] básica como no Creas, eu não diria que é incompatível, mas é conflitante. O sujeito que está fazendo a supervisão [técnica] ou a prestação de serviço precisa se dedicar a isso. Acho que não dá para – hoje – um Creas ter um supervisor de Centro de Acolhida para atender pessoas em situação de rua e ter outras tarefas dentro do Creas [Paefi].

Então acho que é uma sobrecarga, são demandas profissionais distintas que exigem dedicação, construção de conhecimento... exigem, também, [que] ele entenda que lugar ocupa no Creas.

O trabalhador do Creas se vê diante dessas duas coisas. Eu sempre disse isso, até quando eu estava lá na Secretaria: que são profissionais que devem exercer funções específicas, podendo ter momentos de rodízio: “agora eu vou deixar a supervisão e ficar no atendimento do Creas [Paefi].”

Acho isso importante, principalmente na gestão de equipes. Agora, acumular essas duas tarefas é uma sobrecarga.

Com base nas leituras e reflexões realizadas durante esta pesquisa e, ainda,

na experiência como coordenadora de um Creas em São Paulo, a pesquisadora

avalia que a sobreposição de atribuições de supervisão técnica de serviços

conveniados e de atendimento à população oferece mais prejuízos que ganhos ao

cotidiano profissional e à qualidade do serviço ofertado, sobretudo pelo desgaste do

profissional. Ambas as funções possuem muitas características específicas e

demandam tempo, concentração, estudo e estratégias diferenciadas para seu

desempenho – exemplo disso, no caso da supervisão, é a rotina de prestação de

contas e visita técnica aos serviços conveniados.

A realidade de São Paulo conta com equipes enxutas e unidades que

atendem demandas exponenciais, o que consequentemente gera rearranjos para a

execução da política pública. O Plano de Metas28 da PMSP na gestão Haddad (PT)

(2013-2016) prevê a implantação de sete novos Creas. Até o momento de conclusão

desta pesquisa, estavam em negociação apenas dois terrenos para a instalação dos

Creas – em Pedreira e Parelheiros, ambos na zona sul. A implantação também

depende de novo concurso público para suprir ao menos a função de coordenador –

que, segundo as normas da Smads, deve ser assistente social e servidor público. O

estabelecimento e o cumprimento das metas refletem, também, as ênfases nas

opções da administração pública em seu exercício. Quanto a isso, a profissional

assistente social do Creas-Paefi 3 (27 mar. 2014) declara:

28

Disponível em: <http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/metas/>. Acesso em: 1o jun. 2014.

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O Creas está implantado. Ele faz parte de uma política pública, mas está implantado por uma política de governo e todas as ações acabam sendo emperradas e truncadas por conta de estarmos sempre atuando dentro de uma política de governo – não há continuidade.

Os fluxos não são amarrados justamente por isso: “agora a gente vai por aqui!”

Há momentos em que vamos concentrar nossos esforços no Peti [Programa de Erradicação do Trabalho Infantil]. Então, é Peti, Peti, Peti... Agora não, agora é a população em situação de rua. Então: “vai lá e convence o cara que a acolhida é o melhor caminho”.

Nota-se que, inicialmente, a constituição da identidade do Creas, dentro e

fora da assistência social, foi um grande desafio. Em que pese o histórico da política

de assistência social na cidade de São Paulo, o Creas – seja pela novidade do

Suas, seja pela proposição do seu trabalho – na sua implantação, denotou algo

inédito para a rede e para os profissionais que ali foram alocados.

A esse respeito, Nery e Gomes (2013) refletem acerca da identidade atribuída

e o desafio de uma identidade construída no Creas. As autoras apresentam o

histórico da criação dos Creas, desde seus marcos reguladores até os dados

quantitativos das unidades. Avaliam que:

[...] o Creas, foi adquirindo, gradativamente, elementos descritores de sua identidade, o que sugere que sua regulação vem ocorrendo em passo e compasso paralelo ao processo de implementação dessa importante unidade pública estatal país afora. Certamente, há vácuos neste processo que podem desencadear múltiplas interpretações e versões à materialização de suas ofertas, bem como abrir o flanco para que o Creas seja demandado para os serviços que fogem de sua competência. (NERY; GOMES, 2013, p. 25).

Assim, além dos dilemas conceituais em sua concepção e dos percalços na

fase inicial de funcionamento dos Creas, há desafios que acompanham seu

cotidiano atual. No próximo item, optou-se por abordar a questão presente na

relação intersetorial realizada pelo Creas em seu território, a partir da compreensão

de que a identidade a ele atribuída é, hoje, um de seus maiores dilemas.

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3.3 Creas e Intersetorialidade

A pesquisadora perguntou às profissionais como se davam, a partir da

experiência de cada uma, a relação e articulação interinstitucional do Creas com os

demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos:

Assistente social do Creas-Paefi 3

Tenho uma crítica em relação à forma como o Creas é colocado dentro do Suas – como ele foi pensado. Para mim, é uma ideia sensacional a proposta do Creas, mas esta atribuição de articulador de rede é meio paradoxal e ao mesmo tempo é um risco para nós, porque, ao passo que nós não temos estrutura, esse suporte técnico para dar encaminhamento às questões do Creas, nós ficamos muito sozinhos nessa questão da articulação com a rede.

Nós não sabemos até que ponto temos autonomia e “pernas” para estar chamando, agregando [a rede]. A gente faz isso de uma forma muito local, mas o Judiciário tem uma abrangência muito diferente, a segurança pública também tem uma distribuição própria das suas atividades. E nós temos a função de articular, mas não temos essa autonomia, esse poder de gerência dos demais parceiros.

Ao mesmo tempo, a gente fica muito sozinho – na questão dos casos –, porque quando ninguém mais dá conta é sempre da assistência social. Isso também é histórico na nossa política. Porém, os outros parceiros – não digo a rede socioassistencial, mas fora da assistência – veem no Creas uma unidade que vai resolver todos os problemas da face da Terra. Então a expectativa e a exigência são muito grandes. (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 2

Eu fui para o Paefi, porque é o que eu gosto de fazer, gosto de acompanhar as famílias. Todas as pessoas quando assumiram, já assumiram uma gama enorme de casos – já em acompanhamento – numa região extremamente vulnerável. Então, eram casos de alta complexidade mesmo. A grande maioria já estava indo para a alta complexidade e as coisas ainda estavam muito insipientes, porque as pessoas não tinham certeza de qual era o papel do Creas.

A princípio, tudo era papel do Creas. Depois, nada era papel do Creas. Dependia da conveniência. Então, quando interessava, nós éramos chamados para fazer avaliação da condição psicológica do usuário. Quando não interessava, nós estávamos ali só para fazer os encaminhamentos para a rede. Mas, aos poucos, depois que veio a Portaria [46/2010], a política se consolidou, as coisas se tornaram mais claras. Mas ainda acho que o Creas é muito injustiçado na rede, porque virou o único articulador da rede. (24 abr. 2014)

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Assistente social do Creas-Paefi 2

A gente se desgasta bastante, porque é justamente isso […]: o que a rede não consegue dar conta – e eu, quando falo rede, falo dos diversos atores da rede: é a escola, o conselho tutelar, a própria família - “é demanda de Creas”. E o que é uma demanda de Creas? É envolver todas as outras áreas para conseguir “tirar leite de pedra” e conseguir algum avanço naquele caso. Quando tem essa devolutiva, tudo bem. O caso chegou pra nós? O que vamos fazer agora? Vamos acionar a UBS? Vamos conversar com a direção da escola? Vamos fazer visita domiciliar? Vamos chamar “todo mundo”? Então, essa hora de chamar todo mundo – a rede – é uma responsabilidade exaustiva.

Quando a gente devolve para a rede, a gente devolve no sentido de refletir junto com quem está envolvido: “não é nosso, é de todos nós”.

A família não é do Creas, ela é da rede. Ela é do Creas, mas também da Saúde, do Judiciário, do Conselho Tutelar... Fazer a rede entender essa dinâmica é bem exaustivo. (27 mar. 2014)

Profissional de educação permanente 2

Agora a [proteção social] especial tem essa especificidade que é um grau de articulação institucional muito mais complexo do que o da [proteção social] básica. Penso eu que, à medida que o Creas é convocado – pela natureza de sua intervenção – a orquestrar uma série de medidas de proteção para aquele sujeito. Talvez aí tenha um grau de especialização que demande um conhecimento específico.

Então, o trânsito institucional no Creas é muito mais complexo do que talvez seja na básica. Se nós considerarmos que a básica estaria consolidando uma referência de proteção – ao lado da Saúde e da Educação – de base territorial. Mas isso tende a ser mais estável (entre aspas): esse campo de relação, uma vez construído na [proteção social] básica tende a uma estabilidade que não é o mesmo que ocorre na [proteção social] especial. (5 dez. 2013)

Em âmbito intersetorial, o Creas ainda enfrenta desafios na construção de sua

identidade, pois interpretações equivocadas a respeito de seu papel fazem parte dos

seus entraves cotidianos desde a fase de sua implantação até o momento atual.

A característica exógena do Creas justifica-se porque seu trabalho no Paefi

depende – em parte – da articulação com os diversos componentes do Sistema de

Garantia de Direitos. O que ocorre, todavia, é que pelo fato de o Creas ter papel

proativo na rede de serviços, facilmente lhe é atribuída a função de articulador desta

rede.

Nesse sentido, a partir da fala das entrevistadas e da experiência profissional

da pesquisadora, pode-se afirmar que não poucas vezes o Creas tornou-se –

espontânea ou impositivamente – o principal (não o único) articulador da rede.

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Há que se pontuar, contudo, que ser articulador da rede de serviços,

organizar reuniões, ser interlocutor entre diversos setores é algo muito positivo para

o desenvolvimento das ações do Paefi. Entretanto, cabe a ressalva da fragilidade da

identidade do Creas dentro e fora da assistência social, o que, em se tratando de

articulação entre políticas públicas, pode gerar uma série de equívocos ou abusos –

exemplo disso são as fragilidades na relação com o Judiciário.

Neste ponto é imprescindível refletir a respeito da importância do exercício de

mediação da prática cotidiana do assistente social. No que tange à

intersetorialidade, cabe encontrar na universalidade – no Sistema de Garantia de

Direitos como um todo – elementos de relação com a singularidade (as demandas

de atendimento do Creas). Torna-se fundamental o exercício de reflexões coletivas e

de retornos à rede para que as demais políticas públicas exerçam seu papel junto à

população usuária do Creas e para que, nessa relação, este reconheça e reafirme

sua identidade, oferecendo o serviço que lhe é específico.

A intersetorialidade, implica, antes de mais nada, na definição daquilo que é peculiar à Assistência Social e ao conjunto de oferta das demais políticas públicas, contudo a consolidação de sua própria rede é condição necessária para a efetivação das seguranças afiançadas nos normativos da Política de Assistência Social. (GOMES; VIDAL, 2013, p. 10, grifo nosso).

Fica evidente, pois, o desafio de refletir o que constitui a identidade da

assistência social. Quando se fala em intersetorialidade, é necessário considerar a

correlação de forças e os interesses que permeiam as relações entre as políticas

públicas. Sobre isso, as entrevistadas alertam que existem projetos distintos para a

assistência social:

Profissional de educação permanente 2

Nós estamos falando de um lugar e temos muita firmeza – do ponto de vista de quem defende o Suas. Mas não vamos nos esquecer de que este é um projeto dentro da assistência, há outro, mais consolidado […], que entende a política de assistência no contexto da política processante de direitos. E isso é um projeto ainda hoje localizado por muitos em figuras de peso, pessoas que também são formadores de trabalhadores. (27 dez. 2013)

Profissional de educação permanente 1

A gente sabe que isso também existe no governo federal e [este projeto] tem uma força, porque é uma força de origem da assistência social.

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Então estamos lidando no campo da intersetorialidade, para desconstruir uma origem ainda muito enraizada, que, com o passar do tempo, vai se reeditando, vai se repaginando. Defende o discurso do Suas, mas com essa perspectiva da “ponte”, do “encaminhante/se livrante”, do “catraca”. (27 dez. 2013).

Nessas falas fica evidente a necessidade de reflexão e consciência da

existência da correlação de forças existente na cena da política pública brasileira.

Mais de uma profissional remete à história da assistência social como política

pública marginalizada e permeada por iniciativas conservadoras de caráter

emergencial e de “apoio” ao que as outras políticas públicas não realizam

(MESTRINER, 2005).

Desse modo, fomentar uma política de assistência social processante,

residual e inferior às outras políticas públicas, faz lembrar e perceber as marcas do

desenvolvimento desigual e combinado – na linguagem de José de Souza Martins

(1997).

Profissional de educação permanente 2

A hora que você começa a morder o que é o trabalho no Suas, as pessoas vacilam. Eu faço a mesma aposta [a partir] do que ela falou, pois, do ponto de vista da interdisciplinaridade, temos mais possibilidades de avanço.

Agora, não vamos nos esquecer que quando estamos falando de uma matriz do Suas, falamos de um projeto político de ampliação da responsabilidade do Estado sobre um conteúdo que ainda é de baixo valor e que ainda é controverso dentro desse próprio campo.

Quando se fragiliza e quando se fala de um conteúdo que é nosso, estamos na esquina, no limiar desse discurso que diz: “bom, então vamos combater a miséria, vamos usar os assistentes sociais para combater a miséria”; isso é, sim, uma atribuição. Aí fica esse Serviço Social x Assistência Social, pois, ali na curva, na esquina da pobreza, vira: “ah, o assistente social é quem trabalha com o pobre, a assistência social é para pobre, então pobre, assistência e assistente é tudo igual”.

Então, do ponto de vista das questões estruturantes do projeto político de avanço [da assistência social], parece que a pauta de fortalecimento do Suas é que quanto maior articulação interna melhor, quanto mais a gente discutir o trabalho profissional como proteção, melhor. (27 dez. 2013).

Assim, é necessário concordar com o entendimento da assistência social

como direito, pois o Suas não é apenas uma porta de acesso para outros direitos e o

Creas não é apenas um encaminhador; nos serviços da assistência social, são

ofertadas ações diretamente relacionadas às seguranças sociais de sobrevivência,

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acolhida e convívio e vivência familiar.

Em suma, esse movimento de construção de identidade do Suas e do Creas

necessita ocorrer por meio dos marcos normativos, mas também nas esferas locais

em que se executa a política de assistência social, pois é nos espaços cotidianos de

trabalho, debate e reflexão que se reúnem atributos que auxiliam a delinear e firmar

a assistência social.

3.4 Os Assistentes Sociais nos Creas-Paefi da Capital na Atualidade

A pesquisadora perguntou para a profissional de educação permanente 1 –

que acompanhou várias fases da assistência social na capital, sobretudo na fase de

implantação dos Creas – se era possível apontar algumas características do perfil

dos profissionais lotados nos Creas, sobretudo no atendimento do Paefi:

Praticamente todos os assistentes sociais que estão hoje no Creas de São Paulo são vindos de concurso. O que eu posso dizer é que eles são poucos e acumulam muitas tarefas. Acumulam as tarefas do Creas e da supervisão dos serviços referenciados ao Creas. Isso – tanto na realidade da [proteção social] básica como no Creas – eu não diria que é incompatível, mas é conflitante... O sujeito que está fazendo a supervisão ou prestação de serviço, ele precisa se dedicar a isso. Eu acho que não dá para, hoje, um Creas ter um supervisor de Centro de Acolhida para pessoa em situação de rua e ele ter toda uma tarefa dentro do Creas, né? Então, eu acho que é uma sobrecarga, eu acho que são demandas profissionais distintas que exigem dedicação, construção do conhecimento, exige entender que lugar ele ocupa no Creas. O trabalhador do Creas se vê diante dessas duas coisas. Eu sempre disse isso, até quando eu estava lá na secretaria, que eu acho que eles são profissionais que devem exercer funções específicas. Eles podem ter momentos de rodízio... “ah, agora eu vou deixar a supervisão e ficar no atendimento do Creas...” Acho importante, principalmente na gestão de equipes. Agora, acumular essas duas tarefas, é uma sobrecarga né? Isso eu posso dizer do pondo de vista da organização

do trabalho, agora quem é esse profissional. (PROFISSIONAL DE EDUCAÇÃO PERMANENTE 1, 5 dez. 2013).

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3.4.1 Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico

Para compreender e problematizar a realidade das equipes que atualmente

operacionalizam o Paefi na cidade de São Paulo, a pesquisadora solicitou a todas as

profissionais entrevistadas que avaliassem o NPJ, serviço tipificado na Portaria

46/Smads/2010 (como dito em outros momentos deste estudo, uma espécie de

tipificação municipal dos serviços socioassistenciais existentes na capital). De

acordo com essa Portaria, o NPJ destina-se ao acompanhamento de famílias e

indivíduos em situação de risco e violação de direitos. Com capacidade para atender

até 120 famílias e uma equipe técnica semelhante ao que está previsto para o

Creas, as diretrizes para seu trabalho social estão embasadas no Paefi e suas ações

devem ser desenvolvidas no espaço físico dos próprios Creas.

Em suma, sob o argumento da administração municipal de inviabilidade de

realização de concursos públicos, os NPJs se constituem numa estratégia de gestão

para atender (precariamente) em substituição dos quadros profissionais do Paefi, na

cidade de São Paulo em última instância. Assim, o NPJ pode ser considerado uma

instância de terceirização por meio do Paefi.

Profissional de educação permanente 1

Do ponto de vista da gestão, essa foi uma opção lá atrás. Eu lembro que houve várias resistências – eu fui uma delas – para que o NPJ não se instalasse no Creas. Eu acho que tem situações que se o Creas tem recursos humanos suficientes, não é necessário criar um serviço para isso. Você tem em São Paulo regiões que, para a medida socioeducativa, não precisa conveniar: posso trabalhar nessa direção [...], é uma decisão de gestão.

Então, essa decisão da gestão de instalar o NPJ dentro dos Creas de São Paulo foi ganhando corpo. No início, havia resistência, a [região] Sudeste resistia, mas foi sendo contaminada. Acho que isso traz um problema da representatividade do Estado, da referência pública na unidade estatal. Traz dilemas administrativos. Eu preencho o relatório que vai para o Poder Judiciário ou outro órgão do sistema de garantia de direitos... Nesse outro caso, é o profissional da organização conveniada que fala com o Judiciário [representando o Poder Público]. Nós já fazíamos essa reflexão, porque o Creas tem esse diálogo com os outros atores estatais, diferentemente do Cras. Então, colocar uma organização [social conveniada] e seus trabalhadores para serem articuladores com o Poder Judiciário não é legítimo do ponto de vista de clarear de “que Estado é esse que estamos falando”.

Primeiro, porque eles [trabalhadores das organizações conveniadas] são um numero maior [do que nós, servidores públicos] e ficamos praticamente administrando papéis, não conduzindo a reputação institucional que é estatal. Nós reconhecemos a importância das organizações, mas é preciso

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que se tenha claro que é papel do trabalhador público conduzir a regulação que é pública, o que não acontece [na cidade de São Paulo]. O NPJ é um exemplo da inversão desses papéis – por isso acho que a gente se fragiliza nessa discussão. É uma opção de gestão, na medida em que, em São Paulo, era preciso instalar, com urgência, os Creas na cidade. (5 dez. 2014)

Profissional de educação permanente 2

Toda vez que acontece isso, seja em São Paulo, seja em outro município... Em Campinas, houve um caminho inverso: havia uma rede pública que foi substituída pela conveniada – no caminho de São Paulo com NPJ ou em Campinas, eu reforçaria que, nas provisões do Suas, qualquer relação de entrega de serviço (que é assim que o direito se materializa para a população, na entrega de um serviço continuado, ou seja, que é um dever do Estado) ela tem que estar assegurada dentro da gestão, com uma clareza meridiana.

Nessas circunstâncias, e, particularmente nas metrópoles, nas grandes cidades, como diz a NOB-RH, tem que ter clareza qual é o papel da supervisão técnica.

Na cidade que se tem a participação das organizações, é necessário que o agente público tenha a clareza de qual é a regulação. Que ele possa discutir, inclusive criticamente, a regulação. Não adianta fazer disso só um “cumpra-se” (porque também às vezes acontece: ter no setor público um burocrata que só lê a lei e só fiscaliza na coerção, não faz uma interpretação na medida de justiça que está colocada ali). Infelizmente, o Suas padece disso. Toma-se uma regulação menor como lei e esquece-se que ela tem que ter o parâmetro ético de justiça.

Mas, de qualquer forma, é o servidor público que faz a supervisão técnica de uma rede conveniada, que está investido nesse crivo. No caso do NPJ, acho que é uma situação muito peculiar, que é o equacionamento de um coordenador de Creas: ele é coordenador de uma equipe mista, que ela é parte formada por servidores públicos, parte por uma organização social. Então, isso exige de um coordenador de Creas, penso eu, uma grande clareza e uma segurança para que ele faça a gestão de um serviço público para a população a partir de uma decisão que escapou dele.

Nas situações do Suas, uma tendência que deveríamos seguir, toda vez que houvesse essa decisão – ainda que ela fosse contingencial – que ela pudesse ser revista. Essa gestão não parece que tende a essa reversão, mas ela pode acontecer. Ela acontecendo ou não, o que cabe a nós é a clareza.

Qual é a força, como é que estão colados na “pele” do servidor os princípios do Suas para que ele possa fazer a gestão desse serviço? Que não fique tão embaralhada essa atenção direta à população. O zelo com os papéis é necessário, mas, por vezes, isso fica em conflito, porque nem sempre o que está no papel qualifica a intervenção qualitativa que é feita. (5 dez. 2014).

Profissional de educação permanente 1

Você vai ter mediações desnecessárias. As mediações são necessárias, mas nesse caso, fazem-se mediações para entregar o direito, a oferta de serviço ao sujeito. (5 dez. 2014).

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Assistente social do Creas-Paefi 1

Embora São Paulo tenha optado pela terceirização desses serviços todos, a gente percebe que a rede de serviços que compõe a implantação do Suas não enxerga, não se vê no Suas, não se vê trabalhador da assistência como nós. [...] Mas nós percebemos o adoecimento do trabalhador, muito por questões dessa natureza. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 2

E a coisa é tão louca que uma vez nós estávamos discutindo o caso em um dos Creas da região sudeste e na época não tinha NPJ no Creas e existiam quatro profissionais: era a psicóloga e mais três assistentes socais. Duas delas estavam em licença médica então tinha no Creas a psicóloga e a assistente social. Não tinha nenhum administrativo que ficava na porta. Era a segurança (terceirizada) que dava um apoio. A psicóloga, conversando comigo, falava: “Eu não vejo a hora, já tem data para o NPJ chegar e eu não vejo a hora deles de fato chegarem... a gente está ‘morrendo’ aqui”.

Então, como [era possível] um Creas daquele, numa região complexa daquela, com duas profissionais? E, na hora nós sentamos em rede para discutir o caso, a única coisa que ela conseguia falar era: “Eu não vou dar conta... eu não tenho ‘pernas’, eu não consigo, eu não vou assumir nenhum compromisso com vocês, porque não dá”. E, de fato, não dava. E logo foi implantado o NPJ... e eles conseguiram respirar um pouco aliviados. (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 1

Tem uma relação meio distorcida às vezes na questão do NPJ, porque ele ocupa o espaço, mas aquela cadeira não é dele. Não tem a mesma legitimidade, até quando vem um usuário numa última instância... Hoje, por exemplo, nós recebemos uma ligação no gabinete: “Mas ele nem é funcionário público!”. Aí você fala: “Ok, ele não é, mas a orientação que ele te deu está de acordo com a política, então vamos retomar”.

Tecnicamente... a formação técnica é a mesma. Ele deveria fazer da mesma forma, mas, no final das contas, a coisa não é executada da mesma forma, porque a cobrança é diferente. O trabalho é mais precarizado, ele trabalha para cumprir um número “x” de atendimentos. Não é como a gente, o funcionário público vai absorvendo, vai absorvendo... O que também é não é bom. A gente vai explodir uma hora, mas a gente faz. O NPJ não: “Chegou o meu limite e eu tenho um contrato e o meu contrato diz que eu vou fazer assim, eu não vou fazer além”. Não dá para desqualificar, técnicos bons têm em todos os lugares, mas o trabalho é precarizado. (24 abr. 2014)

Chiachio (2011) discorre sobre as parcerias público-privadas na cidade de

São Paulo. Em seu estudo, fica evidente o modo como a Smads tem, ao longo dos

anos, atuado e delegado às entidades a execução de seus serviços.

Como dito, o serviço NPJ foi tipificado pela Portaria 46/Smads/2010 e as

normas para o financiamento dos serviços conveniados estão na Portaria

47/Smads/2010. É necessário destacar que, além de mais uma modalidade de

serviço conveniado pela administração municipal, esse serviço apresenta em seu

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processo de concepção, instalação e desenvolvimento um caráter compensatório.

De fato, os profissionais que compõem a referida equipe encontram situações

adversas na estrutura física e técnica de seu cotidiano, denotando um trabalho

extremamente precário, resultando, também em uma oferta de serviço público

insuficiente.

Profissional de educação permanente 1

Esse é o elemento que é frágil atualmente, porque a gente trabalha com essa questão da fragilidade da presença do Estado num cenário onde a história se escreve na presença da organização [social] – historicamente é isso.

Ficamos preocupados, porque tem se construído respostas que ao invés de fortalecer a presença do Estado para essa resposta que o Estado faz, a gente enfraquece.

[É necessário] pensar em formas de se enfrentar isso que em São Paulo é unânime. Vamos colocar mais gente lá pra fazer supervisão, vamos separar quem está no Creas e quem supervisiona... São várias medidas que vão dar conta desse fortalecimento desses sujeitos que estão prestando o serviço público.

É preciso que a organização saiba que ela é prestadora de um serviço público e por ser um serviço público, ele não corresponde ao interesse da organização e sim ao interesse público. (5 dez. 2014)

Assim, é necessário retomar que a Constituição Federal de 1988 (art. 204), a

Loas (art. 3o) e a PNAS (BRASIL, p. 33) preveem a execução da assistência social

com a participação de entidades beneficentes e de assistência social. Contudo, a

relação com essas organizações deve integrar a rede de serviços socioassistenciais,

de modo que não se perca o caráter de comando único estatal na política de

assistência social. O que atualmente ocorre em São Paulo (SP), entretanto, é uma

discrepância em relação à proporção de serviços conveniados e serviços prestados

de modo direto pelo órgão municipal.

3.5 O Cotidiano do Assistente Social no Creas: o Trabalho com Famílias e

Indivíduos no Paefi

Nos itens anteriores, discutiu-se a identidade e os desafios na estrutura do

Creas, na capital, abordando-se os temas proteção social especial, intersetorialidade

e parcerias público-privadas.

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Exposta a conjuntura em que os Creas estão inseridos, é possível prosseguir

para a reflexão sobre o trabalho no Paefi executado nos Creas, em que há presença

de assistentes sociais servidores públicos.

A seguir são apresentadas as falas das assistentes sociais entrevistadas que

desenvolvem ou desenvolveram ações profissionais no Paefi, e as considerações da

pesquisadora.

3.5.1 O trabalho com famílias no Paefi

A Tipificação Nacional (BRASIL, 2009, p. 20, grifo nosso) pontua como

características do trabalho social no Paefi:

Acolhida; escuta; estudo social; diagnóstico socioeconômico; monitoramento e avaliação do serviço; orientação e encaminhamentos para a rede de serviços locais; construção de plano individual e/ou familiar de atendimento; orientação sociofamiliar; atendimento psicossocial; orientação jurídico-social; referência e contrarreferência; informação, comunicação e defesa de direitos; apoio à família na sua função protetiva; acesso à documentação pessoal; mobilização, identificação da família extensa ou ampliada; articulação da rede de serviços socioassistenciais; articulação com os serviços de outras políticas públicas setoriais; articulação interinstitucional com os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos; mobilização para o exercício da cidadania; trabalho interdisciplinar; elaboração de relatórios e/ou prontuários; estímulo ao convívio familiar, grupal e social; mobilização e fortalecimento do convívio e de redes sociais de apoio.

Apesar de ser mais prático dividir as falas por temas, nesta pesquisa, são

apresentadas com pausas menores e, por isso, num mesmo trecho, por exemplo, as

entrevistadas abordam questões como acolhida e articulação intersetorial.

Neste item, a pesquisadora elegeu características do trabalho social do Paefi,

que, em seu entendimento, representam as demais e, sobretudo, se mostram como

as mais desafiadoras ao assistente social. As características escolhidas foram:

Articulação da rede de serviços socioassistenciais

Articulação com os serviços de outras políticas públicas setoriais

Articulação interinstitucional com os demais órgãos do Sistema de

Garantia de Direitos

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Apoio à família em sua função protetiva

Orientação sociofamiliar

Fortalecimento do convívio e de redes sociais de apoio

Construção do Plano Individual e\ou Familiar de Atendimento (PIA)

Dentre essas, a pesquisadora escolheu três, que, na sua avaliação, abarcam

as demais e balizarão a análise das falas que serão divididas em:

Articulação intersetorial no Paefi

Apoio à família em sua função protetiva

Construção do PIA

Para refletir sobre o trabalho social realizado no Paefi, faz-se necessário

colocar elementos que permitam perceber quem são as famílias e os indivíduos

atendidos nesse serviço. Como dito em outros momentos deste estudo, a população

a que são destinados os serviços do Creas possui como característica principal a

situação de risco e de vulnerabilidade social em razão da violação de seus direitos.

Dentre as bases do trabalho no Paefi estão a acolhida e a construção de

vínculos com a população atendida. Neste trabalho, a palavra acolhida é entendida

para além da compreensão de acolhimento institucional. Em que pese o fato de que,

dentre as seguranças sociais afiançadas no Suas esteja preconizada a segurança

de acolhida – ofertada em caso de necessidade de alimento, vestuário e abrigo por

período determinado ou indeterminado, materializada por meio dos serviços de

acolhimento institucional ou em família acolhedora –, aqui, a palavra acolhida é

respaldada na ênfase ao acolhimento e à escuta, ao direito de solicitar um serviço

de que necessita e de ser recebido, acolhido e ouvido em suas necessidades. A

esse respeito, Nery (2009, p. 210, grifo nosso), em sua tese sobre o trabalho de

assistentes sociais e psicólogos na política de assistência social, coloca:

A perspectiva de segurança social de acolhida [...] volta-se para a percepção de um conteúdo relacional – entre trabalhador e usuário – gerados de uma prontidão diferenciada capaz de estabelecer confiança, interesse e adesão às atividades propostas. No campo da segurança de acolhida, entendida nesses termos, a escuta qualificada constitui a ação profissional mais referida pelos trabalhadores.

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Sobre esse aspecto, as profissionais entrevistadas colocam:

Assistente social do Creas-Paefi 3

Acho que uma das primeiras [preocupações quando se começa um atendimento] é o que ela está solicitando. Uma das primeiras coisas é a demanda inicial que ela traz e, a partir daí, da escuta, a gente vai identificando outras coisas imediatas que se possa direcionar também. Mas, a principio, acho que não existe alternativa a não partir do que ela trouxer. (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 1

As famílias que são atendidas no Creas são tão vulneráveis, tão vulneráveis, que [se pode caracterizar como] um núcleo familiar que tem problemas. Você não consegue destacar uma única pessoa daquela família. Às vezes, para você conseguir vincular essa pessoa ao serviço, para você conseguir sensibilizar essa família, esses membros dessa família, você de fato precisa fazer um acompanhamento individual, sistemático, lento, para começar haver algum progresso. É difícil, porque, para você criar esse vínculo, demanda do profissional um atendimento quase que de cuidador. Por outro lado, se você não o acompanha em algumas questões, você não consegue progredir. [...]

A construção desse vínculo com os usuários é muito difícil. Então, à medida que esse vínculo se dá, em nenhum momento você pode dispensá-lo. Mesmo que depois você referencie no Cras, se essa pessoa vier te procurar, você não pode dizer: “Olha, não é mais comigo”. Eu sou sua referência, você confia no que eu digo, então, por mais que [essa nova questão] não seja comigo, eu vou te dar novamente a orientação, vou te receber, te ouvir.

Mas eu acho que não é todo mundo que tem esse olhar: uma vez que a pessoa se vinculou a mim – por mais que o vínculo não seja comigo, mas seja com a instituição – você não pode dispensar para não correr o risco de cindir novamente. (24 mar. 2014)

Diante do exposto, observa-se que garantir a acolhida no trabalho

desenvolvido no Paefi é fundamental para que o vínculo se estabeleça e as demais

ações de acompanhamento possam ser realizadas. Assim, no âmbito do Paefi, a

acolhida tem dimensão de escuta para a compreensão da situação imediata ali

colocada, identificação de elementos que possibilitem a realização do estudo social

a fim de conhecer outras situações que representem risco e violação de direitos. A

acolhida pode, inclusive, significar orientação e informação para acesso a direitos

sociais e encaminhamento a programas e serviços. É o ponto de partida, mas

também a premissa que delineia todo o trabalho social realizado no Paefi.

Essa compreensão mais profunda e ampliada de acolhida, vista como

prontidão profissional no decorrer do acompanhamento, mostra-se como uma

possibilidade de mediação do assistente social nesse contexto, pois a escuta das

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demandas do cotidiano é fecunda de possibilidades de identificação de situações de

pobreza, de exploração e de violência.

[...] Ter a sensibilidade de escuta – o que está por traz disso? A pessoa chega porque alguém indicou a ela sem saber muito por que. “Ah, não sei, vim aqui para me inscrever no curso do Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego]

29”. Aí você começa a conversar e

entender porque a encaminharam ou porque que ela veio. Qual é a situação de violência que tem ali. E aí, você vai identificando isso e propondo alguns encaminhamentos. Inicia um acompanhamento daquela família. (ASSISTENTE SOCIAL DO CREAS-PAEFI 2, 27 mar. 2014)

3.5.2 A articulação intersetorial no Paefi e a questão da judicialização da proteção social especial

Dentre as fragilidades existentes no trabalho social do Paefi, no que diz

respeito à intersetorialidade, está a relação com os órgãos que compõem o sistema

de justiça. Como dito no item anterior, a carência de reflexões no âmbito interno da

assistência social implica fragilidades no externo, ou seja, no intersetorial.

Entretanto, há especificamente na esfera judicial uma cultura de determinações, que,

somada à fragilidade conceitual da proteção social especial e aos serviços ofertados

pelo Creas, não poucas vezes tem gerado desgaste no cotidiano profissional do

Creas. Por esse motivo, destinou-se um item específico para tratar dessa questão.

A gente não consegue trabalhar nos limites da própria Secretaria, do que ela nos oferece, [o trabalho do Creas] é muito para fora... É muito mais voltado para fora do que a gente às vezes imagina, porque quando chega um caso, todos os recursos são buscados senão o trabalho fica inviabilizado.

[A articulação intersetorial] é um fator de dificuldade, porque quando nós assumimos isso – como já foi dito aqui, tudo é muito novo, é de 2011, 2012... –, a gente não tem essa dimensão. Você começa a se envolver com as situações, com os casos que vão demandando essas coisas e quando você vê, está envolvido até a cabeça com o Poder Judiciário como um todo: Varas, MP, Defensoria, tudo – se relacionando, ligando para o juiz, conversando com ele, conversando com o promotor de justiça, com o defensor público, buscando a educação, a saúde... Porque, sem a parceria delas, nós não conseguimos desenvolver um bom trabalho – desde os meninos de medidas socioeducativas, a questão da educação, até os casos de drogadição, violência contra a mulher – por vezes, é necessário o apoio

29

Programa interministerial em que estão envolvidos os Ministérios da Educação, do Trabalho, da Assistência Social, da Previdência Social e o Exército. O objetivo é oferecer, por meio de convênios e parcerias com organizações como Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), cursos de qualificação profissional.

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de um o hospital e você acaba se envolvendo com o Pérola Byngton30

... o que leva a uma série de coisas... E isso vai dando para nós – pessoas que vão e enfrentam – o arcabouço técnico que trouxe da escola, da faculdade, de sua formação... a gente tem que se virar com isso.

Nós vamos construindo um modelo. É daí que vem a minha preocupação: de sentir essa ausência de suporte, porque vai-se construindo alguma coisa... vai-se fazendo parte dessa história... porém, se não têm-se os fluxos, você constrói esse caminho para cada caso. (ASSISTENTE SOCIAL DO CREAS-PAEFI 1, 27 mar. 2014)

Neste item, com vistas a fomentar a reflexão das entrevistadas, a

pesquisadora mencionou a fala de um juiz de infância da capital: “Todo caso em que

criança e adolescente estiver em situação de risco, encaminharei para o Creas,

encaminharei inclusive para que o Creas providencie a inclusão dessas pessoas nas

demais políticas públicas de habitação, saúde, etc.”. Diante da afirmação, as

profissionais comentam:

Assistente social – gestão 1

O trabalho do Creas, de verdade, é supersério, sou superdefensora, mas eu acho que nós somos injustiçados na medida em que ficamos sobrecarregados. E, além disso, tem que a questão da judicialização da assistência – nós viramos técnicos no Creas para subsidiar a ação do Judiciário. Tem esse “cumpra-se! Cumpra-se!”. E os prazos sempre muito curtos, porque não se tem tempo. E fica nessa cobrança insana e o técnico sendo responsabilizado nominalmente pelo descumprimento. [...]

Uma coisa que eu falo muito, você pode fazer um relatório de narrativa da desgraça alheia, ou pode entender o que está acontecendo e fazer uma intervenção. Essa intervenção demanda muito mais que os 15 dias, 20 dias ou 30 dias que o Judiciário dá. Só que eles têm uma dificuldade de entender isso e para eles a finalidade é para instrução de processo. Então, fazer a visita pela visita nenhum técnico concorda. Às vezes, o que a gente fazia: uma visita, uma narrativa, mandava para o Judiciário e aí começava o acompanhamento. Só que eles também não entendem isso, porque eles querem tudo de prontidão. Às vezes, por exemplo, quando eles falam de avaliação da condição mental... de fato, às vezes, você encontra pessoas que não têm condições para responder por si. E aí você sugere e chama a saúde e depende de outro profissional, de outra Secretaria, para fazer essa intervenção, essa análise, essa manifestação para então fazer uma articulação de rede, ver o que é possível. Enfim, isso atropela completamente os prazos do Judiciário e atropela completamente a qualidade de qualquer trabalho. (24 abr. 2014)

30

Hospital de referência para o atendimento de mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência.

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Assistente social – gestão 2

Essa questão da judicialização da assistência é também porque o Judiciário não entende o nosso papel e os técnicos acabam fazendo pela pressão de ser ordem judiciária, com medo de sofrer represálias. Porque você não pode simplesmente ter um relato de uma visita. Eu bato muito nisso: “Gente, o juiz manda uma visita. Uma visita! Manda o técnico dele fazer uma visita então!” O que ele quer de mim é um acompanhamento da família. Eu não vou fazer uma visita para ele. Então, “faça uma visita e me passe [a informação]: se idoso tem condições de responder por si, se ele tem casa própria, se ele tem aposentadoria. Chame ele lá [no Judiciário] e pergunte! Vai fazer um técnico da assistência social ir até a casa dele e fazer esse tipo de pergunta? Ou eu faço o acompanhamento dele ou não vou responder”. Mas, para a assistência social estar segura e responder isso para o Judiciário, vai levar um tempo ainda para amadurecer o papel do Creas. (24 abr. 2014)

A pesquisadora questiona às assistentes sociais se as instâncias superiores

da Smads têm buscado refletir com os órgãos judiciais as mudanças recentes nas

atribuições da política de assistência social:

Há um esforço para fazer essa interlocução, mas a dificuldade para a compreensão do que é o trabalho extrapola, porque é difícil para um juiz entender que às vezes um atendimento de uma solicitação sua pode demorar de cinco a seis horas. Tudo para eles [deve ser feito] prontamente.

Para você sensibilizar uma pessoa... a pessoa escuta, chora, sofre, precisa chamar outros membros da família, fazer uma reunião... por vezes, é preciso ir ao final de semana... acionar a rede... E, para eles, de verdade, isso não existe: “Uma entrevista não dura mais do que meia hora. Então, não tem por que você me dizer que precisa de mais tempo do que eu estou te dando”.

É muito fácil você dizer “faça uma visita”, mas às vezes você está entrando numa área, numa comunidade que tem uma situação de tráfico, que tem uma situação de risco que você precisa estar acompanhado por alguém daquela comunidade para conseguir acessar aquela família. Precisa fazer quatro, cinco, seis visitas para conseguir conversar com aquele usuário, que, às vezes, tem transtorno psiquiátrico e pode levar muito tempo para se obter uma aproximação. Isso para eles (Judiciário, Promotoria) não existe, são obstáculos que os técnicos impõem. Mas é só quem está ali no dia a dia que sabe. Você também não pode forçar uma situação e constranger o usuário, pois uma coisa que as pessoas têm dificuldade de compreender é que o respeito é também um direito.

O que o Judiciário entende sobre o que é o melhor para aquela família, pode não ser o que aquela família tem de projeto para si. Tem algumas famílias especiais. Por exemplo, teve a historia dos ciganos: os filhos dos ciganos receberam, como medida protetiva, o acolhimento institucional, porque as crianças não estavam na escola – culturalmente, cigano não estuda. As crianças estavam em situação de trabalho infantil: os ciganos são nômades, eles vão de porta em porta vendendo as coisas e levam os filhos. Então, são aspectos que você tenta explicar, mas não é fácil a compreensão. (ASSISTENTE SOCIAL – GESTÃO 1, 24. abr. 2014)

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Apesar de algumas tentativas em âmbito municipal, o diálogo acaba se

estabelecendo com cada juiz, promotor ou defensor público, dependendo da região

de abrangência do Creas. Nesse sentido, o Creas, por meio do profissional oficiado

nominalmente, busca sozinho estratégias para dar andamento em seu trabalho.

Contudo, para estabelecer diálogo – cuja maior parte parece ocorrer em âmbito local

–, o profissional necessita ter clareza de qual prática deve ser desenvolvida no Paefi.

Como será debatido no item sobre formação continuada, questiona-se, de onde vem

essa clareza? Quais estratégias são construídas para fortalecer a compreensão do

profissional sobre a assistência social, no que diz respeito ao trabalho no Suas?

Pelo fato de o acompanhamento das situações de risco e de violência

constituir-se no cerne do trabalho do Creas, é comum o recebimento de

determinações judiciais para estudos sociais, avaliações da situação da família e,

inclusive, determinações indevidas, como, por exemplo, a avaliação da condição

mental, a averiguação da situação de violência. Nesse contexto, os profissionais

sofrem pressões cotidianas para o cumprimento, dentro dos prazos estabelecidos,

das determinações que se originam das autoridades judiciárias, ou seja, que são

emanadas por outro Poder que não o Executivo, ao qual estão ligados.

Em face do exposto, há que se discutir urgentemente o real papel do Creas

no sistema de garantia de direitos. É um equívoco – inclusive na perspectiva da

defesa de direito – que a emissão de relatórios para instrução de processos se dê

em detrimento do acompanhamento à população. A dificuldade de compreensão de

atribuições, a falta de equipe técnica nos órgãos judiciais e de profissionais

suficientes nos Creas têm agudizado essa situação.

A relação da proteção social especial com os órgãos do sistema de justiça se

dá cotidianamente e tem como emblema as audiências concentradas, realizadas em

situações de acompanhamento da situação do acolhimento institucional de crianças

e adolescentes. Esse trabalho é destacado pelo fato de o Paefi ter seus profissionais

compondo a equipe para a construção e operação do PIA, bem como participação

direta nas audiências concentradas.

A partir de 2010, as audiências concentradas tornaram-se uma demanda para

os profissionais da assistência social. Conforme o artigo 101 do Estatuto da Criança

e do Adolescente (ECA), o acolhimento institucional é medida de proteção a

crianças e adolescentes em situação de risco e garante que, havendo ameaça ou

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violação de seus direitos, poderá, dentre outras medidas de proteção31, ser aplicada

a medida de acolhimento institucional ou familiar, respeitando o caráter provisório e

excepcional e o direito à convivência familiar e comunitária.

A fim de aperfeiçoar a sistemática de ações destinadas a garantir a

convivência familiar de crianças e adolescentes, o ECA foi alterado pela lei 12.010

de 2009, esta que é um marco para o trabalho com crianças e adolescentes em

situação de acolhimento no Brasil, tornando-se a linha que interliga as políticas

públicas na etapa do acolhimento institucional. Nela, constam os seguintes

princípios: condição da criança e do adolescente como sujeito de direitos,

prevalência da família, obrigatoriedade da informação, oitiva obrigatória e

participação presentes no ECA e sua consonância com as seguranças de autonomia

e segurança de vivência familiar.

O ECA (grifo nosso), no artigo 88, versa sobre as diretrizes da política de

atendimento. Preconiza, em seu inciso VI, a

integração operacional de órgãos do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria, do Conselho Tutelar e as instituições encarregadas da execução das políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de maior agilidade no atendimento de crianças e adolescentes inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional, com vistas à sua rápida integração à família de origem ou, se tratar de solução comprovadamente inviável, sua colocação em família substituta.

Assim, de acordo com o §1o do artigo 19, do ECA32:

§ 1o Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de

acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei.

§ 2o A permanência da criança e do adolescente em programa de

acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois) anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária.

Nesse contexto, é proposto o PIA, com o objetivo de desenvolver ações que

visem à reintegração familiar. De acordo com o § 5o, do artigo 101, o PIA deverá ser

31

Dentre as medidas de proteção previstas no ECA (artigo 101), estão: encaminhamento dos pais ou responsável; matrícula em estabelecimento de ensino; inclusão em programa comunitário de auxílio à família; requisição de tratamento de saúde; acolhimento institucional, entre outras. 32

Modificado pela Lei 12.010 de 2009.

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elaborado considerando a opinião da criança ou do adolescente e garantindo a oitiva

dos pais ou responsável.

Essa iniciativa está relacionada com o direito da ampla defesa e contraditório

que a família tem desde o momento em que a criança ou o adolescente é acolhido,

visando negar qualquer decisão impositiva por parte do Estado sem que a família

tenha condições de manifestar-se. Logo, é fundamental o papel da Defensoria

Pública, sobretudo nas ações em que há risco de destituição do poder familiar33.

Em cumprimento à determinação de avaliação semestral da situação de

crianças ou adolescentes em acolhimento institucional, as audiências concentradas

foram instituídas pela Instrução Normativa 02/2010, do Conselho Nacional de

Justiça, com o objetivo de regularizar o controle dos serviços de acolhimento

institucional para o desenvolvimento de ações que busquem a reintegração familiar.

Na mesma toada, a Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de

Justiça de São Paulo (CIJ-TJSP) publicou o Parecer 04/2010, a fim de estabelecer

novas diretrizes a respeito dos procedimentos de verificação e adequação quanto ao

contraditório e ampla defesa na infância e juventude. O Parecer aponta para a

necessidade de o Cras-Paif e o Creas-Paefi assumirem o acompanhamento de

crianças, adolescentes e suas famílias em situação de vulnerabilidade social.

Retrata também o esforço de abandonar definitivamente práticas de controle como

as que marcavam o Código de Menores:

As consequências tutelares eram drásticas, voltadas praticamente sempre ao afastamento da família e de institucionalização de crianças, sem previsão de procedimentos pautados pelo contraditório.

A mudança mais fundamental operada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é a passagem de uma concepção tutelar para uma outra, fundada na garantia universal de direitos, tanto individuais como sociais, econômicos e culturais, tornando crianças e adolescentes sujeitos de direitos, em tudo equiparados a adultos, além de terem outros direitos específicos, dos quais o de participação, com direito a voz e a escuta, e dos mais significativos. [...] abandonamos também a antiga figura toda poderosa do antigo juiz de menores, que mandava e desmandava sem procedimentos claros [...] e fundamos a justiça da infância e da juventude democrática, respeitadora de direitos humanos e das garantias legais e processuais, tanto das famílias como das crianças e adolescentes. (CIJ-TJSP, 2010, p. 2)

33

A destituição do poder familiar ocorre quando, garantidos ampla defesa e contraditório, são esgotadas as possibilidades de permanência da criança ou adolescente na família de origem.

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Esse movimento intenciona superar a perspectiva intervencionista nas

famílias com vistas a garantir o direito à participação de crianças e adolescentes

(CIJ-TJSP, 2010, p. 2). Assim, é necessário que a rede socioassistencial atente para

o ranço histórico de tendência ao controle propondo práticas emancipadoras,

considerando que as audiências concentradas devem se constituir num espaço de

defesa coletiva de direitos na relação Judiciário/Creas-Paefi.

A situação de cumprimento de determinações judiciais, construção – e em

alguns casos imposição – do PIA põe em pauta a questão do controle e práticas

conservadoras no trabalho com famílias:

Assistente social – gestão 1

Porque a família que está no Creas, é a família que “falhou”. Ela falhou em algum momento e ela perdeu a sua capacidade protetiva e então foi parar dentro do Creas. Já vai com um estigma e, junto com esse estigma, vem um peso enorme, para o trabalho, para a intervenção. Esses estigmas que vão se construindo: “Essa mulher... os filhos dela não vão estudar, eles são todos terríveis. Esses meninos dentro da escola só dão trabalho. Criança de abrigo é terrível, essa mulher é uma ‘porca’”. Ninguém está vendo se ela tem condição mental, se ela está num quadro depressivo, isso é um segundo olhar. Num primeiro momento, é o julgamento: essa família falhou e por algum motivo alguém a levou para o Creas [...].

O Estado falha lá trás e depois culpabiliza a família, mas se a pessoa tivesse a vida inteira acesso aos meios de informação, [para] construir alguma condição mais crítica, mas para quem tem alguma limitação cognitiva (porque a gente tem muitas famílias assim), com transtornos mentais e questões cognitivas importantes, mesmo assim, elas poderiam ter sido melhor orientadas, e aí não teriam chegado nesse extremo tão grande. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 1

[...] “todo pai tem que trabalhar, toda mãe tem que manter a casa limpa, toda criança tem que ir para escola de uniforme e rabo no cabelo”. [...] culpando a mulher, culpando o usuário pelas falhas: “você que não soube manter o seu filho dentro de casa”. Sempre a mulher mesmo, até porque na maior parte das famílias [...], as mulheres são o eixo. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 2

Elas se culpam muito, já culturalmente elas se culpam e se você tem o Poder Judiciário culpando-as também... Porque eles culpam essa mãe: “Você só vai ter seu filho de volta, se você arrumar um emprego, se você tiver uma casa, se você fizer tratamento... se você não fizer nada disso, seus filhos nunca mais vão voltar para você!” (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 1

Até a forma como chegam as situações, as denúncias de violência, de negligência. Eu já peguei denúncia assim: “O pai é negligente, ele não levou”, porque fizeram o encaminhamento por escrito e ele não levou. E a

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outra técnica dizia: “Como o senhor pôde? O senhor falhou! Estava tudo certo, marcado, o senhor perdeu, agora por sua culpa a criança....” e aí...: “O senhor sabe ler?”, “Desculpa, senhora, eu não sei”.

São coisas que você está ali responsabilizado o homem. Ninguém perguntou se ele sabia ler para dar o encaminhamento por escrito.

Uma mãe negligente: “Ela é negligente, porque não compareceu”, chegou assim: “Negligente”. Aí eu fui fazer a visita, a mulher estava com câncer terminal. Ela não tinha condição de sair de casa.

Coisas assim... Nas denúncias de idoso, um volume enorme de denúncias de idosos demenciados que ficavam gritando “eu não comi hoje! Eu estou passando fome, estou passando fome!”, as pessoas passam na rua e pensam: “Nossa! Estão negligenciando!”, aí você vai lá e a pessoa esqueceu que comeu. Eu cheguei lá ela estava comendo e cinco minutos depois... “eu estou passando fome, me tira dessa casa...”. Tem coisas que muito rapidamente você vê “gente! olha o equívoco! olha o tamanho da barbaridade!” e acaba ali o caso.

Mas têm situações que às vezes você vai para atender uma demanda e você descobre dez. Então, tem casos que se multiplicam, [por exemplo], eu já fui chamada: “Tem uma pessoa com transtorno psiquiátrico lá”. Eu cheguei lá tinham dez pessoas na casa, todos com transtorno mental. Ele ainda saía de casa, tinha gente que não saía de casa há anos. Era o que era visível, era o que estava incomodando. Então, tá, vamos referenciar. Quem vai dar a medicação? Tem que ter um cuidador na casa. Ok. É uma casa inteira de pessoas com transtorno mental, quem é o cuidador? Tem casos que são muito mais graves. E tem casos que até a própria rede tem dificuldade na compreensão, na aceitação... tem esse julgamento. Então, a princípio, todo mundo é sujo, todo mundo é negligente, todo mundo tem sua falha e todo mundo está ali para ser apontado. Mas, às vezes, são questões tão simples é uma falta de orientação, é uma pessoa que não teve acesso mesmo.

Voltando um pouco, eu penso é que o Estado intervém muito na família do pobre. Isso ainda é verdade, porque eu falo, se uma família de classe média tem um filho usuário de drogas, ela resolve isso no âmbito privado. Se a família do pobre tem um filho usuário de drogas, isso vai parar no serviço público e o mundo inteiro vai intervir. A história do Bernardo

34: ele foi

reclamar para o juiz que ele não estava sendo bem tratado... “mas é filho de médico... Ah, então devolve”. Aí se resolve em âmbito privado.

Às vezes eu acho de verdade o Estado extremamente invasivo, tem coisas que a pessoa tem condição de resolver no âmbito privado e uma política meio higienista: meio... “ah, essa mulher, chega! Ela já teve filhos o suficiente!” – mas se ela está dando conta de cuidar dos filhos, ainda que com uma limitação financeira, se ela consegue cuidar dessas crianças com zelo e proteção, tudo bem! Agora vai lá o Estado e fala “não, você vai fazer a laqueadura”. (24 abr. 2014)

34

A profissional refere-se a Bernardo Boldrini, que, em 4 de abril de 2014, foi assassinado pela madrasta e uma amiga. O pai da criança é médico. O crime, que ocorreu no noroeste do Rio Grande do Sul, ainda está em investigação. O Conselho Tutelar, a Vara de Infância e Juventude e o Ministério Público do município já tinham atendido Bernardo que se queixara que não recebia carinho e atenção; posteriormente, o caso foi arquivado. Em 4 de junho de 2014 o Senado aprovou o Projeto de Lei 58/2014 chamado de Lei Menino Bernardo, até então conhecida como Lei da Palmada, que, com base no ECA, proíbe qualquer forma de castigos corporais a crianças e adolescentes. O projeto foi encaminhado para sanção da Presidência da República. Informações disponíveis em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardo-boldrini/>.

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Nos relatos acima não faltam exemplos de controle e enquadramento das

famílias, sobre os quais as profissionais entrevistadas realizam uma leitura de

situação e se posicionam de maneira crítica. Entretanto, o movimento de reflexão

fez-se necessário em algum momento em que os argumentos conservadores de

julgamento da família eram postos. As entrevistadas citam diversas situações de

julgamento de “família negligente”, “família incapaz” e, somente por meio do trabalho

técnico e da reflexão sobre a situação, apresentam argumentos que rebatem a

perspectiva de julgamento em relação às famílias.

Eufrásio (2014, p. 162, grifo nosso) aponta que o trabalho com famílias,

quando realizado sob influências conservadoras, tende a realizar educação moral

dos indivíduos para cumprimento das funções predeterminadas.

[...] o trabalho com famílias na assistência social sofre influência de tendências conservadoras ou (neo) conservadoras muito presentes na atualidade, como é o caso do individualismo exacerbado. Sujeitos individuais são pressionados a agir para a transformação de suas vidas por meio de esforço pessoal da capacitação profissional, da autoestima, da confiança, da fé, entre outras qualidades e capacidades pessoais que estes devem ter ou buscar adquirir. A ideologia conservadora tenta nos impedir de enxergar que vivemos em um mundo em que as condições objetivas para alcançarmos um alto grau de desenvolvimento pessoal existem, no entanto, usufruem delas uma pequena parcela das pessoas [...].

A premissa conservadora no trabalho com famílias mascara os determinantes

históricos da situação de violência e violação e, por conseguinte, impede o

profissional de estabelecer mediações e exercer sua prática profissional no sentido

de defesa e ampliação de direitos.

Considerando o universo de trabalho no Creas, cabe destacar a análise de

Berberian (2013), que apresenta diversos usos conservadores na avaliação de

situações de negligência e aponta que o termo negligência é viciado, pois traz

consigo julgamentos como “preguiça” e “desleixo”. A autora afirma que, em se

tratando de políticas públicas para defesa de direitos, o uso mais adequado seria o

termo desproteção, que permite uma compreensão em que pode ou não haver

intencionalidade em desproteger, colocando a situação posta no panorama da

totalidade social. Assim, há que se refletir sobre qual o papel do Estado de proteção

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e qual sua tendência ao controle das famílias – sobretudo das famílias pobres.

Heller (1978) é esteio para compreender a totalidade e a práxis social

transformadora. A autora atenta para o risco da ultrageneralização e,

consequentemente, dos juízos provisórios. Assim, os homens são capazes de atuar

e se orientar com base nesses juízos, que poderão representar preconceitos, pois –

ultrageneralizados – não poderão tornar-se mais precisos. No entanto, quando se

trata da compreensão do todo, é necessário abandonar esses juízos provisórios:

Os juízos provisórios (e os preconceitos) são meros exemplos particulares de ultrageneralização. Pois é característico da vida cotidiana em geral o manejo grosseiro do “singular”. Sempre reagimos a situações singulares, respondemos a estímulos singulares e resolvemos problemas singulares. Para podermos reagir, temos de assumir o singular, do modo mais rápido possível, sob uma universalidade; temos de organizá-lo em nossa atividade cotidiana, no conjunto de nossa atividade vital; em suma, temos de resolver o problema. Mas não temos tempo de examinar todos os aspectos do caso singular, nem mesmo os decisivos: temos de situá-lo o mais rapidamente possível sob o ponto de vista da tarefa colocada. [...] Tão somente a posteriori torna-se “evidente” na prática que podemos dissolver aquela analogia e conhecer o fenômeno singular – nesse caso, o homem em questão – e sua concreta totalidade e, assim, avaliá-lo e compreendê-lo. (HELLER, 2008, p. 54).

3.5.3 A matricialidade sociofamiliar como enfrentamento à visão conservadora

no trabalho com famílias

O texto de introdução da PNAS (BRASIL, 2004, p. 16) aponta que, para a

construção da política pública de assistência social, é necessário considerar as três

principais vertentes da proteção social: as pessoas, as circunstâncias em que vivem,

e a família, que é seu núcleo primeiro.

A PNAS foi inovadora ao compreender em seu texto diversas configurações

familiares. No item denominado “famílias e indivíduos” já abarca, também, pessoas

que vivem sozinhas ou não possuem vínculos familiares – famílias unipessoais.

Além de considerar dados demográficos a respeito da transformação das

famílias ao longo do tempo, a NOB-Suas-2005 (BRASIL, 2004, p. 91) compreende-a

como “[...] núcleo afetivo, vinculado por laços consanguíneos, de aliança ou

afinidade que circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno

de relações de geração e de gênero”.

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É importante lembrar que, no Brasil, o trabalho com famílias nas políticas

públicas – em boa parte realizado por assistente sociais – já teve traços marcantes

de conservadorismo e disciplinamento como as ações fomentadas pela Igreja

Católica e as diretrizes do Código de Menores (IAMAMOTO, 2012). Por receio de

que a ênfase no trabalho com famílias seja um retorno ao conservadorismo, esse

tema é permeado por tensões no âmbito da produção de conhecimento em serviço

social.

Assim, cabe fomentar o debate a respeito da relação família e política social:

A complementaridade Família – Estado está cada vez mais tênue, depositando-se nas famílias uma sobrecarga que na maioria das vezes não conseguem suportar, tendo em vistas as precárias condições socioeconômicas em que parcela considerável da população está submetida. Isso se acentua ainda mais quando se trata de configurações familiares que não contam com reconhecimento social e legal, pois, além de todas as questões vividas pelas demais famílias, a elas cabem fazer frente de todas as questões vividas nas relações com amigos, com a vizinhança, com a escola dos filhos e no trabalho, além de não poderem contar em certos casos, com o amparo legal e previdenciário disponível para as configurações familiares reconhecidas social e legalmente (GUEIROS, 2002, p. 117, grifo nosso).

Diante desse quadro de sobrecarga das famílias, na perspectiva de

reconhecer os usuários como sujeitos de direitos, no estudo do trabalho do Paefi,

são necessárias, por um lado, a reflexão sobre o conceito matricialidade

sociofamiliar no Suas, considerando o avanço e a importância desse princípio e, por

outro lado, as discussões no âmbito do serviço social acerca do trabalho com

famílias e subjetividade, sempre numa busca de problematização e reflexão.

Para compreender as demandas atuais, uma análise, em perspectiva

histórico-crítica, evidencia a urgência de proposições no âmbito da Política de

Assistência Social tendo em vista a intenção de dirimir ações focalizadas, garantindo

a reflexão e a formação continuada do assistente social nesse contexto.

A respeito do papel da família na política social brasileira, observa-se que a

centralidade na família posta na PNAS poder ter uma ação de revés se não debatida

e compreendida pelos profissionais do Suas como um princípio com vistas à defesa

e promoção de direitos.

Essa postura pode gerar uma sobrecarga da família nas expectativas de

execução de políticas públicas, chegando-se ao encolhimento do papel do Estado

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num discurso em que a família é posta como centro, meio e fim para a efetivação de

acesso às políticas públicas e aos direitos sociais. Exemplo disso são as famílias

atendidas e referenciadas no Paefi e as inúmeras cobranças que recebem para

saírem e equacionarem a situação de violência e violação de direitos em que se

encontram, como pontuado na situação das audiências concentradas. Nesse

contexto, as famílias se tornam – na ambiguidade que as palavras permitem –

responsáveis pela superação da situação de violência que vivenciam.

Assim, o “familismo”, termo utilizado por Miotto e Campos (2012), situa-se no

mesmo princípio da lógica per si que existe nos programas focalizados de

transferência de renda. Desse modo, fica posto o desafio de desenvolver autonomia

e cidadania em consonância com o desenvolvimento dos direitos sociais e com o

dever do Estado pela sua efetivação.

Por considerar a tendência e o risco do familismo e do conservadorismo no

trabalho com famílias, defende-se aqui que o marco conceitual apresentado no texto

da PNAS e da NOB-Suas é inovador e que, a partir desses postulados, é possível

avançar para a construção de uma nova modalidade de trabalho com famílias.

A perspectiva da matricialidade sociofamiliar aponta para uma prática

profissional, inserida na política de assistência social, que acompanha a família em

suas diferentes etapas, rebatendo a compreensão de que o Estado deve intervir

apenas quando a família falta ou falha. Nesse sentido, refuta também o trabalho com

famílias direcionado para a resolução de problemas.

Conforme Mioto (2013), abordar o trabalho com famílias no campo da política

social requer a realização de dois movimentos. O primeiro diz respeito à inserção da

família no âmbito da política de assistência social sob a ótica do direito. A autora

afirma que há expectativas antagônicas a respeito da família (ora de garantir direitos,

ora de cobrança e julgamentos quanto à sua “incapacidade”).

O segundo movimento caracteriza-se pelo redimensionamento do trabalho

com famílias, baseado na teoria social crítica, sob dois pilares: a interpretação das

demandas e o alcance e a direcionalidade das ações profissionais. O primeiro pilar

requer do profissional a superação do atendimento estritamente individualizado,

direcionando o trabalho apenas pelos casos que se apresentam no cotidiano. A

família não é só singular, expressa em si as características da sua realidade e do

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seu tempo.

O segundo pilar diz respeito à direcionalidade que o assistente social dá à sua

ação profissional junto às famílias. Por mais que as demandas possam parecer ter

resolutividade em âmbito singular, faz-se necessário que o profissional reflita sobre o

que está colocado em seu cotidiano. Mioto (2013) alerta que é corriqueira a

tendência do profissional buscar soluções na rede social primária – a família – ou na

secundária – a rede de serviços e políticas públicas –, sem, contudo, refletir a

totalidade. Mioto (2013, p. 12) afirma que “trabalhar com família significa recorrer à

categoria da totalidade como possibilidade de compreensão do objeto de trabalho

[...]”.

Em alguns trechos do texto da PNAS é apresentada a expressão centralidade

na família, mas, na maior parte, usa-se o conceito matricialidade sociofamiliar. Para

este trabalho, optou-se pelo segundo, em decorrência da compreensão de que a

família nunca pode ser compreendida isolada, como única responsável por zelar e

garantir seu bem-estar. Mais que junção das palavras social e família, a

matricialidade sociofamiliar, além de estar em consonância com os princípios da

Carta Magna de 1988, parece ser mais adequada quando se propõe a pensar a

sociedade e a política pública sob a perspectiva de totalidade.

Afora a construção de um conceito que se basta em si mesmo, a

matricialidade sociofamiliar necessita ser amplamente discutida nos âmbitos da

política pública de assistência social e do serviço social, com o objetivo de estancar

quaisquer vertentes conservadoras no trabalho com famílias.

Sposati (2009) coloca como desafio para a consolidação da assistência social

a implantação de fato da matricialidade sociofamiliar. Aponta como desafios: 1) a

defesa de direitos dos diversos segmentos (crianças e adolescentes, idosos,

mulheres, pessoas com deficiência, etc.), que precisa ser associada à realidade e

características das famílias; 2) a necessidade de se ter clareza das metodologias de

trabalho com família, pois muitas vezes as ações se resumem a realizar grupos

apenas com mulheres; 3) a necessidade de se conhecer o significado e as

implicações concretas da matricialidade sociofamiliar no Suas.

A autora também problematiza que o modelo de trabalho social com famílias

requer aclaramento quanto a se tratar de proteção social ou de administração de

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acessos sociais. Isso significa que o conceito “capacidade protetiva da família” é

ainda um tema que demanda mais estudos (SPOSATI, 2009, p. 42).

O Suas como um todo pressupõe o desenvolvimento de capacidades para

maior autonomia, o que, segundo a PNAS (BRASIL, 2004, p. 16, sic) “implica em

incremento de capacidades de famílias e indivíduos”. Contudo, há que se considerar

que a palavra capacidade tem como "sombra" a incapacidade – o que coloca a

família num lugar de fragilidade e na linha tênue de ser avaliada como incapaz de

proteger. Nesse sentido, Andrade e Matias (2009, p. 215, grifo nosso) afirmam:

Assim, a família deve ser apoiada com o objetivo de exercer sua função protetiva, de forma a responder ao dever de sustento, guarda e educação de suas crianças, adolescentes e jovens e garantir proteção aos seus demais membros em situação de dependência [...]. O trabalho social com famílias visa a apoiá-las e fortalecê-las como protagonistas sociais e não culpabilizá-las ou responsabilizá-las pela sua ação ou condição.

O trabalho social com famílias e indivíduos deve ser desenvolvido na

perspectiva da matricialidade sociofamiliar, sob a garantia da “segurança do

desenvolvimento da autonomia individual, familiar e social” (BRASIL, 2005, p. 91,

grifo nosso) e da construção do protagonismo social.

Nesse sentido, o PIA pode ser um instrumento favorecedor do

desenvolvimento da autonomia e do protagonismo das famílias. É importante que o

plano seja de fato da família ou do indivíduo. Ao profissional que realiza o

acompanhamento cabe o papel de identificar fragilidades, desenvolver ações com

vistas ao fortalecimento de vínculos, resgatar projetos e fomentar reflexões, a fim de

que o usuário delineie qual será o percurso que pretende percorrer para o acesso

aos seus direitos.

O PIA tem sido muito utilizado no acompanhamento de crianças e

adolescentes em situação de acolhimento institucional (Lei 12.010/2009) e de

adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas (Lei 12.594/2012). No

primeiro caso, não há prazo para o PIA ser elaborado, mas seu envio é determinante

para a avaliação da condição do acolhimento da criança ou adolescente. No

segundo caso, o PIA deve ser elaborado em 45 dias para as situações de

semiliberdade e internação e em 15 dias para os casos de liberdade assistida e de

prestação de serviços à comunidade. Cabe destacar que esses prazos representam

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apenas os primeiros apontamentos no instrumento, haja vista que o vínculo com o

usuário leva tempo diferenciado para ser construído.

Ambas as leis afirmam que o PIA deve ser elaborado sob responsabilidade da

equipe técnica e construído com a participação efetiva da criança/adolescente e

sua família. Contudo, no cotidiano acelerado do profissional do Creas, acaba se

tornando um instrumento de registro sobre estratégias pensadas para determinadas

famílias, com vistas a informar o órgão judicial (geralmente Ministério Público ou

Vara de Infância) a respeito das ações que têm sido desenvolvidas. Todavia, é

importante refletir mais sobre o potencial que o PIA e o Plano Familiar de

Atendimento (PFA) possuem para o trabalho social que é realizado no Paefi.

Não há ampla discussão ou bibliografia sobre a construção do PIA, e,

sobretudo, do PFA, no Creas. Em 2013, a Secretaria Estadual de Assistência Social

lançou o documento Caderno de Orientações: Referências Técnicas para a

Construção do Plano de Desenvolvimento Familiar, que, em síntese, busca

proporcionar a “instrumentalização ético-jurídico-política, teórico-metodológica e

técnico-operacional para que o trabalho com famílias contribua na efetiva

emancipação desses sujeitos” (SEDS, 2013, p. 14).

O documento recomenda, também, que o PFA deve ser construído

gradualmente com e pela família, sendo entendido com parte de uma metodologia

de trabalho com famílias. Oportunamente, é apresentada uma sugestão de modelo

de prontuário, com I – Identificação da Família; II – Diagnóstico Familiar e Análise

Técnica; III – Plano de Desenvolvimento Familiar. Independentemente da estrutura a

ser adotada para o prontuário, há que se considerar que os dados sobre a família

precisam ser registrados num único documento ou pasta de modo que toda a equipe

técnica possa acessar.

Em relação ao atendimento caso a caso, é necessário tecer algumas

considerações sobre as especificidades da proteção social especial. O documento

Orientações Técnicas sobre o PAIF – volume 2 (BRASIL, 2012, p. 42), que versa

especificamente acerca do trabalho social com famílias, no âmbito da proteção

social básica, recomenda que devem ser desenvolvidas ações com o intuito de

superar o acompanhamento particularizado da família, contudo, faz uma ressalva:

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A opção pela utilização de ações particularizadas no atendimento às famílias deverá ocorrer em casos extraordinários e têm por princípio conhecer a dinâmica familiar mais profundamente e prestar um atendimento mais específico à família, como nos casos: de suspeita de violação de direitos [...] Precauções devem ser tomadas para que as ações particularizadas não se tornem práticas tecnicistas de resolução de “casos” [...]. O atendimento particularizado a uma família buscará atingir as finalidades do Serviço e não somente resolver o “caso” ou o “problema” de determinada família.

Essa consideração revela que, em casos de violação de direitos, deve-se

pensar estratégias para cada família, sem, contudo, perder o horizonte da

matricialidade sociofamiliar. Infelizmente, o Paefi ainda não conta com um material

norteador que considere as especificidades de seu trabalho com famílias; porém, é

possível refletir – a partir do material elaborado para o Paif – sobre as possibilidades

a serem construídas para o Paefi. Isso se configura num grande desafio, pois é

urgente discutir as diversas situações que permeiam o acompanhamento familiar no

contexto da proteção social especial.

Isso [influi] muito no julgamento das pessoas para achar que o Estado é paternalista, que fica tutelando demais, que fica em cima, que não deixa as pessoas... Por outro lado, isso que a gente precisa passar hoje é falha de um Estado que lá trás falhou nas suas atribuições e por isso criou uma família com tanta demanda, tão vulnerável, que você precisa estar ali no dia a dia, no acompanhamento sistemático e fazendo essa coisinha mais miúda que extrapola um pouco a competência técnica. Mas, se você não faz, a gente perde. (ASSISTENTE SOCIAL – GESTÃO 1, 27 mar. 2014)

Nota-se que a própria entrevistada justifica que lidar com “coisinhas miúdas”

do cotidiano extrapolam a competência técnica. Com base no pensamento de

Lefebvre (1968, p. 23) de que “o homem cotidiano se mostra perdido: entravado,

preso por mil laços, às voltas de mil probleminhas miúdos”, é que é necessário

desvelar a miséria e a riqueza do cotidiano, que é onde se coloca o desafio ao

assistente social no Creas-Paefi: 1) compreender o cotidiano da família (sua miséria

e sua riqueza) não apenas no plano imediato de sua vivência, mas como resultado

de múltiplas e complexas determinações (sócio-históricas, conjunturais e familiares);

2) atender conforme cada demanda e de forma individual sempre que necessário; e

3) identificar, no cotidiano do trabalho do Paefi, o potencial de mediações a serem

feitas em relação às políticas de garantia de direitos.

Nada é mais cotidiano do que a família e nada tem mais necessidade e

potencial de mediações do que o trabalho com famílias. Assim, atender de forma

individual – sobretudo em casos de situações agudas de violência que exigem sigilo

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ou correm em segredo de justiça – não é em nada inferior ao trabalho desenvolvido

com contingentes maiores, desde que feitas as devidas mediações nas esferas

singular-particular-universal.

Assim, neste estudo, compreende-se a perspectiva da matricialidade

sociofamiliar como imprescindível para o trabalho com famílias. Quando solicitadas a

discorrer sobre esse tema, as entrevistadas colocam:

A questão da matricialidade sociofamiliar está na pauta do nosso dia a dia de trabalho. Tudo é referenciado ao núcleo familiar, daquele grupo, daquela pessoa, tudo mais. Acho que executamos isso e nossa prioridade é enxergar a totalidade das questões daquele grupo e do território onde está inserido. Aí quando você fala: “Como está o trabalho de família em grupo no Creas?” Eu acho que é um trabalho que está prejudicado hoje. Não chegamos a um denominador comum. Eu não sei se eu estou falando pelos Creas, não sei como é que está aí fora, mas a impressão que eu tenho é que não existe dentro das unidades um trabalho... (ASSISTENTE SOCIAL DO CREAS-PAEFI 1, 27 mar. 2014)

Nesse ponto, nota-se uma confusão entre o trabalho social com famílias e o

trabalho com grupos, pois ora são tratados como a mesma coisa, ora são

diferenciados:

O trabalho com o grupo é primordial dentro do Creas – na verdade, em qualquer área dentro da assistência. Mas o trabalho com famílias é muito rico, mas tem que ter um sentido.

Tem que saber por que eu estou mandando essa família para o grupo e ali do grupo o que eu vou trabalhar com famílias a partir do grupo. [...] Que é a confusão que a gente faz: O Paefi é o grupo? Não, ele não é o grupo. [O trabalho com famílias acontece] desde que eu recebo o expediente [...] O grupo é uma das atividades do trabalho com famílias. (ASSISTENTE SOCIAL DO CREAS-PAEFI 2, 27 mar. 2014)

Com vistas a cumprir o objetivo desta pesquisa, destacou-se nas falas a

intensidade do peso que se coloca sobre a família e alguns exemplos de

cerceamento da autonomia das profissionais. Após exemplificar essa realidade, são

apresentadas as estratégias utilizadas pelas profissionais para superar o

enquadramento das famílias.

Assistente social – gestão 2

Tinham famílias que tinham um projeto, mas a juíza falava “você gosta de fazer o quê?” [a mãe respondia]: “Ah, eu gosto de cozinhar” [Juíza de infância]: “Então monta um ‘negocinho’ na sua casa”. E a coisa foi indo só que ela não queria fazer isso da vida dela. Ela queria fazer unha, queria ser manicure. Era o sonho da sua vida. Mas até ela se

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abrir para mim e falar que não iria fazer o que a juíza falou que era legal ela fazer, isso demorou um tempo, porque a confiança em falar para mim: “Vocês vão lá no Cras pegar material de instrumento de trabalho? Eu não quero fazer isso, mas a juíza falou que eu tenho que fazer, então como eu faço?”. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 1: até nisso...

Assistente social – gestão 2

É verdade! Eu falei: “Mas qual que é o seu projeto?” Aí você começa a construir com ela... E foi assim que ela conseguiu desacolher os filhos rapidamente. Fizemos um trabalho realmente, pois era o que ela queria fazer da vida. Poucas pessoas param de escutar o que a pessoa quer. Você não para. Você não pergunta “o que você quer?”. Você chega lá e fala: “Olha, você tem que arrumar um emprego. Vai no CAT [Centro de Apoio do Trabalhador] e arruma um emprego”. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 1

Terminou agora a audiência: [Juiz de infância]: “Você vai ter que fazer um curso profissionalizante”. [Família]: “Ah, que ótimo! Eu adoraria ser confeiteira”. [Profissional da rede]: “Confeiteira não tem, mas tem o curso de edificações e você vai a partir de amanhã aprender a levantar parede”. Aí, fica assim: “É, eu sei, mas você não tem alternativa. É o curso que tem. Você vai ter que estudar”. Então se joga uma responsabilidade: “Porque você falhou, a gente te deu o curso e você não fez!”, “Porque você não compareceu no curso?” (24 abr. 2014)

A pesquisadora pergunta para as entrevistadas se no cotidiano elas refletem

sobre a realidade das famílias:

Assistente social – gestão 1

Eu estava aqui pensando da formação lá trás – porque alguma coisa a gente tem que trazer e muito a ver da sua formação.

Primeiro, de você trabalhar com a perspectiva do direito – isso a faculdade deixa muito claro: é direito do usuário, não estou fazendo favor. Com a perspectiva da ética, do respeito, isso é a base.

Com o tempo, você vai vendo o significado disso na vida da pessoa. Porque, você pode mudar o destino de uma família se você resolver “meter os pés pelas mãos”, não fizer uma escuta, ou fizer uma escuta unilateral, ou tomar um partido de forma indiscriminada. É aí que se vai dando diretriz, qual é o limite – a questão teórica da coisa. Você vai buscando referências teóricas. Quando você pega casos muito complexos e vai se referenciar em alguma fundamentação acadêmica ou alguma coisa assim, você “ressignifica” o que vinha pensando.

Eu acho que isso é uma construção, de qualquer forma, e a experiência ao longo do tempo também. Uma questão que é um pouco pessoal é você se despir dos seus preconceitos e estar disposto o ouvir e isso não é todo mundo que tem. A gente teve colegas que resistiram muito. Pessoas principalmente com questões religiosas muito fortes – de querer imprimir

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juízo de valores sobre a atuação profissional (isso eu acho muito complicado). Existe muita gente que faz isso ainda. [É necessário lembrar] que você vive num Estado laico, então, vamos tentar garantir que a pessoa se expresse da forma que ela achar melhor. Vamos garantir aqui algumas opiniões.

Vamos tentar entender como é o funcionamento dessa família para ver se de fato tem alguma coisa aqui destoando muito, uma coisa que você vai ter que intervir, ou se ela pode funcionar bem da forma como ela está posta. Enfim, a questão teórica subsidia bastante.

Eu recorro muito a textos – até hoje tenho meus recursos. Eu volto na Lei, eu volto na Portaria, eu volto na Política [Nacional de Assistência Social], eu fico voltando e fazendo um resgate para eles (os textos) me darem parâmetros. Acho importante e a gente faz isso todo dia, eu trabalho com o Plano da Assistência Social [Plas], com o Suas, com o ECA... está tudo em cima da minha mesa, está tudo lá o dia inteiro e eu consulto o dia todo. (24 abr. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 1

E eu acho também que, quando você fala desse exercício de volta, de resgatar, é porque nenhum dos atendimentos é convencional. Os temas não são convencionais. Cada hora é uma coisa, cada hora é uma amplitude, uma exigência, você tem que – o tempo todo – ficar fazendo essa busca que acaba sendo um exercício cotidiano.

[...] Exige uma criatividade muito grande de nós. Talvez por isso não permita muito que a gente traga esse juízo de valor tão alto, ele aparece, mas eu não vejo (pelo menos com os profissionais que eu trabalho) uma coisa tão radical nesse sentido. (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 1

Eu acho que essas referências teóricas fundamentam também [auxiliam] nesse sentido. Lembro de uma vez que teve uma discussão numa capacitação, foi assim: “Eu coloco no meu relatório a condição de higiene em que estava a casa na qual eu fiz a visita ou eu estou partindo para um lado higienista?”

E aí: “Não pode pôr, porque isso é [uma interpretação] higienista”, e eu falei: “Gente! Vocês me desculpem, para mim não é sempre higienista, eu posso estar falando de uma condição sanitária, posso estar falando de um ambiente que, por exemplo, tem ratos lá dentro e isso pode colocar uma família em risco, posso estar falando de uma mulher que está ali numa depressão tão grave que ela não consegue mais manter o autocuidado e o cuidado da casa...

Então depende do seu olhar para aquilo que você está descrevendo. Eu vou descrever: “Essa mulher é porca, porque tinha louça na pia? Não, não é isso!”

Mas eu posso dizer que “tem acúmulo de sujeira dentro da casa, isso está atraindo pragas para dentro da casa e vai colocar a saúde das crianças em risco”. Eu acho que o limite técnico é esse. Para que eu estou dando aquela informação? E por que eu estou voltando o meu olhar para aquilo? É para dizer que a mulher é uma porca? Então não escreve, entendeu?

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Ou eu vou dizer que eu entendi que isso pode ser sugestivo de uma depressão, de um transtorno e que eu entendo que precisa de uma intervenção da saúde, uma avaliação que ela pode estar desenvolvendo uma patologia e aí eu acho que é limite. Eu tenho que estar sempre pensando por que eu estou escrevendo e para quê eu quero aquela informação. (24 abr. 2014).

Assistente social do Creas-Paefi 1

Isso gera alguma angústia e às vezes o técnico se vê numa situação tão imbricada... ele troca com os companheiros: “Estou no caminho certo? É isso? Existe mais alguma coisa?”

É porque a ausência de [um documento que diga] como deve ser uma estrutura formal e do fluxo gera isso nas pessoas, essa insegurança. Você trabalha, constrói, porém, isso se reverte em insegurança, às vezes em frustração.

Quando o caso dá certo, ótimo. [...], porém, ele pode não ser tão exitoso e ter os seus furos – isso também é normal. É normal num procedimento que tem começo, meio e fim. Não que na nossa profissão isso exista com a maior facilidade. Pelo contrário! A gente trabalha muito mais sem começo, sem meio e sem fim.

Mas trabalhando as questões, em algum momento, isso precisa se dar. Ser essencial para enxergar a questão na sua completude, conseguir avaliar aquilo que você fez. Eu vou avaliar, vou parar, vou pensar. Mas não é uma experiência. São pessoas. Nós estamos falando de vidas. E isso traz para o profissional um repensar. A gente está sempre se revendo: “Será que eu estou certo? Será que eu estou louco? Será que foi o senso comum que me fez isso? Será que essa fala que eu tive com o Judiciário poderia ter sido por outro caminho para não causar um dano maior?” (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 1

Eu acho que é um exercício, você tem que ficar resgatando o quanto somos instrumentalizados. Eu acho que não somos instrumentalizados e de um modo geral quando você sai da faculdade, você sai com um pacote de teoria que na hora do trabalho você tem esse choque de realidade, do que eu tenho de projeto, do que a gente pensa enquanto construção cultural de uma família que tenha condições de fazer suas escolhas de forma autônoma, independente, segura e do que a gente tem de dado de realidade, porque quando a gente vai para a área, quando vai trabalhar, de fato, você vê que as pessoas, por privação cultural, por privação de acesso aos meios de informação, não têm condição de fazer essa escolha com essa autonomia que a gente gostaria de exercitar.

Aí volta: “Como a gente faz essa conexão?” Eu acho que é isso. Você tentando apresentar algumas possibilidades. [...] Eu acho que nesse sentido a gente está numa linha extremamente tênue. O quanto eu quero que essa pessoa se emancipe e faça escolhas autônomas e o quanto dou para ela de possibilidades de escolher. Porque eu estou dando para ela um projeto de vida pronto e ela não está se encaixando. (24 abr. 2014).

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Diante do apresentado, observa-se que há um reconhecimento da existência

de medidas controladoras sobre as famílias e que, no cotidiano profissional, há

tentativas de superar as posturas de julgamento e de enquadramento. Cabe

destacar o exercício de “volta e resgate” que duas profissionais mencionaram,

caracterizado por um movimento de mediação, pois o assistente social, no

atendimento à família (singular), localiza na realidade social ampla a situação de

risco e de vulnerabilidade que esta se encontra (universalidade) e relaciona a isso as

suas implicações, manifestações – fazendo um exercício de volta e resgate –,

buscando apoio das legislações, das normativas e do referencial teórico-

metodológico da formação em serviço social.

Assim, pode-se afirmar que a mediação permite superar elementos

conservadores e alienantes no cotidiano profissional, além de possibilitar o

desenvolvimento do trabalho com famílias na perspectiva de autonomia e

protagonismo. Para essa afirmativa, Pontes (2005, p. 179) contribui:

Ora, se o assistente social atua junto ao cotidiano dos grupos excluídos da participação social nos bens e serviços produzidos na sociedade, e a superação do mesmo só se torna possível através da sua mediatização pelos processos homogeneizantes, este profissional não é um mero “mediador”, mas um agente que trabalha com mediações.

Portanto, é no viver cotidiano que se manifestam de maneira imediata as mais

variadas formas de violência, exclusão e exploração. E também é no cotidiano que é

possível identificar, refletir e propor ações emancipadoras junto à população.

O próximo item se propõe a apresentar e refletir sobre o cotidiano e a prática

profissional na perspectiva da mediação na tríade singular-particular-universal.

3.6 O Cotidiano e a Prática Profissional no Trabalho com Famílias

Baptista (2001, p. 110-111) contribui para a reflexão sobre a ação profissional

no cotidiano, atentando para os riscos de desqualificação da prática profissional e de

supervalorização de determinadas tarefas relacionadas ao saber teórico, “tendo em

vista compreender e explicar a profissão, mas raramente instrumentalizá-la”. A

autora atenta ainda para o risco de banalização da vida humana e de perda de

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capacidade da paixão e indignação – elementos fundamentais para uma ação

comprometida.

Assistente social – gestão 1

Você desvaloriza o micro. Eu ouvi na faculdade e isso foi desconstruído na própria faculdade. Então qual problema é mais grave: “é o daquela empresa que vai mandar 1.500 funcionários embora, ou é o dessa mãe que está carregando seu filho deficiente por 5 quilômetros para levá-lo até à AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente]?”; nenhum problema é maior do que o outro. As duas situações precisam de intervenção. Então, eu não vou desqualificar uma – o atendimento à família, o atendimento no micro – porque eu tenho uma situação macro. Até porque tudo isso é parte de um processo socioeducativo mesmo, é uma construção. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 2

Eu acho que é importante, sim, todas essas questões, mas você só vai conseguir resolver isso, quando você resolver aqui embaixo também. E, para mim, nunca foi tão difícil, porque eu sempre trabalhei com movimentos sociais. Então, quando você consegue fazer esses dois lados, você não sofre tanto. E eu tenho colegas que trabalharam comigo no Creas que sofriam muito por isso, porque elas não conseguiam fazer a relação entre o que é ser militante de uma causa, que você considera que é uma questão muito mais ampla do que isto (o trabalho com famílias), no qual você tem que lutar por uma condição de vida.

Eu tenho clareza disso e eu faço isso, só que, no Creas, eu estou lá para atender as famílias. Isso não significa que eu não vá fazer esse trabalho político também, porque eu acho importante. (24 abr. 2014)

Profissional de educação permanente 1

Ao meu ver, a categoria profissional está um pouco abandonada nessa discussão, porque, no cotidiano, o enfrentamento é esse: cabe a você uma atribuição quando se está no lugar institucional (que é uma política pública) cuja função é encaminhar [seus usuários] para algum lugar e a profissão fica cobrando desse profissional. Eu fiquei com dó de uma mulher que eu encontrei em Pindamonhangaba na semana passada. Ela dizia assim “eu estou num dilema, eu sofro muito, porque eu não sei se eu estou trabalhando para a população ou se eu estou atrasando a revolução”. “Eu estou trabalhando para o Capital”; “eu estou atrasando a revolução”. Olha o dilema! Em nenhum momento, passou pela cabeça dela o que ela tem que fazer com o usuário. Por isso ela não discute o trabalho dentro de uma política de Estado.

Em face desses relatos – e da tendência de desvalorização do trabalho com

famílias –, Faleiros (2008, p. 44) afirma que:

Não podemos desprezar a intervenção do Serviço Social no nível micro, nas suas relações imediatas, no apoia às famílias, no apoio às mulheres, aos chefes de famílias pobres, às adolescentes grávidas, aos jovens explorados sexualmente, no trabalho direto com esses segmentos, a curto e médios prazos, porque a mudança é complexa e deve ser articulada num processo micro-macro, pois o mais fundamental – como a totalidade em relação – não está separado do particular e das manifestações imediatas e das mediações estruturais.

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Também, nessa perspectiva, a PNAS (BRASIL, 2004, p.16) aponta em seu

texto que “a proteção social exige a capacidade de maior aproximação possível do

cotidiano da vida das pessoas, pois é nele que os riscos, vulnerabilidades se

constituem”.

Baptista (2001), por sua vez, ratifica a importância de perceber o cotidiano

como espaço privilegiado da intervenção profissional, o “mundo da vida”, o “todo

dia”. O assistente social necessita saber circular pelo ambiente cotidiano com

propriedade para refletir e fundamentar sua intervenção.

Para a autora, a cotidianeidade

[...] é apenas um ponto de partida para uma ação consequente, no qual o profissional por aproximações sucessivas vai desvelando sua objetividade, caminhando do particular para o universal, do campo das microatuações para o das relações sociais mais amplas, para retornar ao particular, às ações localizadas, em outro nível de reflexão. (BAPTISTA, 2001, p. 119).

Observa-se um anseio por procedimentos, pela definição de metodologias,

instrumentais e procedimentos que expliquem ou apontem o “como fazer” no

trabalho com famílias:

Assistente social – gestão 1

Você tenta tirar procedimentos, acho que precisa individualizar, sim. Pelo menos, por núcleo familiar, porque cada família funciona de um jeito. Tem famílias que, no intuito de proteger demais, se tornam vulneráveis. Tem famílias que não conhecem o que é proteção. [...] Por isso, por mais que a gente tente tirar procedimentos, não dá pra colocar num pacote. (24. abr. 2014)

Assistente social – gestão 2

Eu fico pensando nos blocos: tinha tantas famílias de crianças em Saica [Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes], tantas famílias de mulheres vitimas de violência, etc. (24 abr. 2014).

Assistente social do Creas-Paefi 3

Quando se fala na Saúde, há um curso de boas práticas no qual ele traz procedimentos. Não assim: “Você vai receber a pessoa assim ou assado”. Não, não é isso, mas você precisa de uma linha, de um norte, de procedimentos, isso a gente nunca teve.

Me lembro de que bem no comecinho teve num seminário que desdobrou num grupo de trabalho, por bastante tempo, sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes. Tinha esses procedimentos, mas isso acabou se perdendo no tempo. (27 mar. 2014)

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Na busca por respostas ou referências para responder à pergunta “como

trabalhar com famílias?”, Bronzo (2009) apresenta uma reflexão sobre o programa

Puente: Entre la Familia y sus Derechos, desenvolvido e utilizado no Chile, que

apresenta metodologia definida, estipulando procedimentos, periodicidade das

visitas domiciliares e atendimentos. As atividades são desenvolvidas na perspectiva

de fortalecimento de ativos, desenvolvimento de capacidade e empoderamento das

famílias e manejo do risco.

Na perspectiva deste estudo, tais termos denotam que as famílias não

possuiriam capacidades ou seriam inativas e acomodadas, precisando de

estratégias práticas que as mobilizassem. Contudo, feitas as devidas ressalvas, o

programa Puente possui características relevantes como: articulação da rede de

serviços e estudo do território e da realidade das famílias (características também

presentes na PNAS).

Em se tratando de trabalho com famílias em situação de risco e violação,

como é o caso do Paefi, há que se refletir que implantar procedimentos e

metodologias definidas de intervenção pode implicar padronização, não apenas o

trabalho, mas também a realidade das famílias. Como se as situações não

ocorressem de forma diversificada em cada pessoa ou grupo social.

[...] as ferramentas metodológicas devem ser edificadas com base nas especificidades dos sujeitos, em suas identidades, desejos, necessidades, demandas e realidade social, histórica e cultural, isto é, as metodologias devem responder à diversidade sociocultural do país, às particularidades de cada território. (ANDRADE; MATIAS, 2009, p. 216).

Não poucas vezes nota-se nas falas das entrevistadas o atendimento de

“casos”, isto é, a individualização como procedimento de intervenção no trabalho

com famílias no âmbito da proteção social especial. Interessa destacar duas frentes

dessa polêmica. A primeira diz respeito à defesa de que a assistência social mudou,

avançou na perspectiva de direitos e da coletividade:

Uma visão inovadora, dando continuidade ao inaugurado pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Orgânica da Assistência Social de 1993, pautada na dimensão ética de incluir “os invisíveis”, os transformados em casos individuais, enquanto de fato são parte de uma situação coletiva; as diferenças e os diferentes, as disparidades e as desigualdades. (BRASIL, 2004, p. 16, grifo nosso)

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Nesse sentido, afirmam as entrevistadas:

Assistente social do Creas-Paefi 3

Assim, a impressão que dá em nossa caminhada é que pode chegar o momento dos Creas “implodirem”. Até porque não é à toa que ele é um centro de referência especializado. E, pelo menos na nossa cidade, a gente não tem lá dentro técnicos especializados nas demandas e tudo mais.

E quando a gente fala de fazer grupo é uma responsabilidade muito grande, principalmente quando você está atuando com violação de direitos e violências. Então como você vai agrupar pessoas que sofreram situações de violências tão absurdas? Ou mesmo a situação de rua? Como você vai agrupá-los? E qual a intencionalidade desse agrupamento? Qual o objetivo final desse trabalho?

Na unidade onde eu trabalho, por iniciativa técnica, nós tivemos a experiência com um grupo de mulheres vítimas de violência. [porque a profissional tem especialização no tema e compõe uma rede de proteção à mulher vítima de violência] (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 2

Você estava falando de ter especialistas. Quando a gente passa no concurso, vem no nosso holerite “especialista em assistência e desenvolvimento social”, mas não é isso que necessariamente somos.

Somos formados em Serviço Social, não necessariamente somos especialistas. Mas nos é exigido, quando eu digo nos é exigido, o cotidiano nos exige isso, o trabalho nos exige que sejamos especializados em criança e adolescente, em situação de rua, em situação de violência, em idoso em situação de violência, em vulnerabilidade, em mulher vítima de violência e isso a gente tem que buscar por um esforço profissional nosso. (27 mar. 2014)

A pesquisadora perguntou se os profissionais acabam se interessando ou

lendo mais sobre um determinado tema:

Assistente social do Creas-Paefi 2

Sim, entrando num grupo de discussão sobre violência, fazendo parte de uma rede que se identifique: “Então, esse público pode deixar comigo que eu me identifico mais, que eu atendo. Ah, não! Eu me identifico mais com idosos... faço parte da rede do idoso em fóruns de discussão... então, quando vem caso de idoso pode deixar que eu atendo”. A gente acaba se dividindo. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 1

Você tem até um gosto, uma preferência em relação a um determinado tema, porém você tem que estar atento a tudo o tempo todo. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 2

A gente tem falado até agora dessa falta de suporte, falta de fluxo... isso reflete no Paefi, no acompanhamento das famílias. Por que o que de fato você vai usar para acompanhar essas famílias? O que você vai fazer?

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São tantas as violências, tantas as violações! Então, eu acompanho todas as famílias da mesma forma? Não!

E como o programa, que é o Paefi, me dá suporte para eu acompanhar cada família na sua especificidade? E isso fica uma lacuna para a gente, porque nós ficamos “patinando” e tem que pegar cada família e trabalhar a realidade de cada família. E, aí, o Paefi vai se constituir com essa cara: cada família de uma maneira.

A gente tem uma angústia na Sé que é o grupo. É hora de fazer o grupo do Paefi. Ai, meu Deus! Quem que vem para o grupo do Paefi? Todo mundo! Vem o idoso, a criança, o adolescente, a família, a pessoa em situação de rua. O que trabalhar nesse grupo? Com essa diversidade? Começar do básico mesmo? O que falar? O que fazer? (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 3

Justamente o que você falou: “Eu estou fazendo isso, porque é uma diretriz da minha secretaria ou é a minha formação? Ou é o que o Creas tem que fazer? Ou é o meu senso comum?”

A gente fez uma discussão esses dias – lá nas reuniões – a respeito da escuta: estamos perdendo a escuta [...]. Porque ao mesmo tempo em que existe uma diversidade gigante, os casos têm algumas semelhanças, seja pela situação de rua, seja a situação de violência . [...] o histórico [que nos é trazido] é muito comum.

E, aí, por esse volume de atendimento, você vai perdendo a escuta e vai usando procedimentos de atendimento quase que padronizados, até para você dar conta de atender aquela demanda que está na sua frente ou trabalhar naquela pilha de papel que tem na sua mesa. (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 2

“[...] porque o trabalho com famílias a gente faz. Se a gente tiver condições, a gente sabe fazer um trabalho com famílias, isso a gente sabe”. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 1

É, eu acho que a gente sabe fazer. (24 abr. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 3

Uma coisa muito interessante é que as unidades de Creas da cidade funcionam nos procedimentos são... “cada um se vira nos trinta, cada um faz aquilo que a equipe entende que seja mais coerente”. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 1

E acaba criando um jeito único, não uniformizado. Eu acho isso um prejuízo, porque [o Creas] é a cara da assistência na alta e na média complexidade. Ele é a cara da assistência na cidade. Se você mora em Santo Amaro, você é atendido de uma forma, se você chega na Mooca, é atendido de outra. (27 mar. 2014)

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Assistente social do Creas-Paefi 2

E para nós, profissionais, também: hoje eu trabalho no Creas-Sé, se um dia eu for trabalhar no Creas-Capela do Socorro, eu vou ter que reaprender tudo do zero. (27 mar. 2014)

A respeito da complexidade das situações no Paefi, seja pelas tentativas de

“encontrar saídas” para as situações atendidas, seja pelo volume da demanda ou

ainda pelas condições de trabalho, nota-se que os profissionais dos Creas-Paefi da

capital estão desgastados.

Raichelis (2011, p. 434-435) aponta que a condição de trabalho do assistente

social produz um duplo processo contraditório:

a) de um lado, o prazer diante da possibilidade de realizar um trabalho comprometido com os direitos dos sujeitos violados em seus direitos, na perspectiva de fortalecer seu protagonismo político na esfera pública; b) ao mesmo tempo, o sofrimento, a dor e o desalento diante da exposição continuada à impotência frente à ausência de meios e recursos que possam efetivamente remover as causas estruturais que provocam a pobreza e a desigualdade social.

A afirmação da autora é ratificada na fala da assistente social do Creas-Paefi 3

(27 mar. 2014):

Eu posso dizer que, no Creas, o assistente social está num momento de sofrimento. De verdade. De adoecimento. Ele está chegando – na questão física, mental – no limite. Até porque a gente percebe que não há uma defesa do trabalho também. Então, quando você recebe algum tipo de cobrança, de reiteração, de solicitação, não tem o respaldo, tem que atender e pronto.

É porque você não respondeu esse ofício. Não é porque você não tem estrutura. Eu passei por uma situação dessa, fui cobrada por uma juíza por não ter conseguido fazer uma visita e a juíza manda um expediente para a Secretaria dizendo da ineficiência da unidade. Ineficiência: olha o que representa essa palavra. E todo o trabalho que a gente faz? Então é sofrimento, adoecimento e desestímulo também. [...] hoje a gente está num momento de questionar essa coisa de “eu não sou especializado tanto assim”, porque isso vem do amadurecimento dessa equipe, desses profissionais que estão lá. Posso te dizer da unidade em que eu trabalho, muito se pensa sobre a questão da violência, nós queremos muito avançar, mas fica muito na responsabilidade do profissional, do compromisso dele.

De fato, as circunstâncias agudas a que ficam expostos na realidade dos

Creas-Paefi de São Paulo o colocam no limiar do adoecimento profissional. Diante

disso, além da transformação na estrutura das instituições, Raichelis (2011) aponta

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que um caminho para avançar na luta coletiva do trabalho profissional35 seria forjar

sujeitos coletivos capazes de enfrentar essas situações de exploração. Salienta,

ainda, a necessidade de “luta pela qualificação profissional, por espaços coletivos de

estudo e de reflexão sobre o trabalho desenvolvido [...]” como parte da melhoria das

condições de trabalho dos assistentes sociais e da oferta de serviço à população

usuária (RAICHELIS, 2011, p. 436).

No próximo capítulo aborda-se a perspectiva da educação permanente e da

reflexão cotidiana como espaços de construção de conhecimento para o trabalho

social com famílias nos Creas-Paefi.

35

Raichelis compreende o serviço social como trabalho.

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CAPÍTULO 4

A PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO PERMANENTE COMO POSSIBILIDADE DE MEDIAÇÕES NO COTIDIANO DE TRABALHO

4.1 O Porquê de Aproximar as Reflexões da Educação Permanente ao

Creas-Paefi

Como apontado nos Capítulos II e III, a implantação do Suas continua em

construção, um exemplo disso é a aprovação da Política Nacional de Educação

Permanente, em 2013.

A formação dos trabalhadores no Suas está em pauta desde a formulação da

NOB-RH (2006). Trata-se de uma necessidade real, pois em que pesem as

especificidades da formação de cada profissional, o trabalho na assistência social –

na perspectiva do Suas – é permeado por dúvidas e pela necessidade de criar

estratégias de intervenção.

A proteção social especial ainda é um terreno carente de definições que

requer do profissional um constante exercício de reflexão para a execução do seu

trabalho. Nesse sentido, as falas colocadas a seguir são de profissionais envolvidas

na discussão a respeito da educação permanente no âmbito do Suas, na cidade de

São Paulo e no Brasil. As profissionais apresentam elementos que auxiliam a

compreensão do histórico, das origens e da concepção de educação permanente

que está em pauta no Suas, e colocam também suas opiniões e avaliações acerca

dessa perspectiva na realidade de São Paulo.

Em seguida, são apresentadas as falas das assistentes sociais que atuam ou

atuaram no Paefi, em que relatam suas experiências nas capacitações realizadas na

Smads e abordam a necessidade de supervisão, das tentativas locais de reuniões

de estudo e reflexão nas equipes. Um aspecto que se sobressai é a necessidade de

refletir sobre a produção do conhecimento no solo da prática profissional.

Como já mencionado, sobretudo neste trecho da pesquisa, no decorrer da

exposição das falas, são realizadas abreviações apenas quando necessário e a

pesquisadora insere suas reflexões no fim do capítulo.

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4.2 Sobre a Educação Permanente

Profissional de educação permanente 2 Do ponto de vista de regulação, temos dois marcos: teve um primeiro em 2011, que foi a versão preliminar da Política de Capacitação que foi submetida a um debate, foi reconstruída em março desse ano [2013], seguindo o princípio da educação permanente.

Hoje nós utilizamos a resolução de março, que nos dá um norte – ainda insuficiente, do meu ponto de vista – mas já é um norte do que significa trabalhar a educação permanente dos trabalhadores do Suas.

Eu trabalhei nesse GT [grupo de trabalho] em Brasília, coordenado pela gestão do trabalho do Ministério, da Secretaria Nacional de Assistência Social. Era um GT dentro do Conselho Nacional de Assistência. Eu sou uma das que mais advoga [ao] princípio de que a educação permanente nasce no SUS em contraponto à ideia de educação continuada, porque, no SUS, o que se avaliou e se viveu historicamente [foi] uma concepção de grau elevado que [consiste em]: atualizar o profissional, um profissional – em geral, na saúde, o médico.

É preciso que haja um grau de atualização [desse profissional] para que ele possa responder à população com uma tecnologia mais “up to date” e que ele possa, na perspectiva de carreira, ter um destaque. Uma valorização em que quanto mais especializado [o profissional] for, mais sobe na carreira – isso na educação continuada.

O que se vê no SUS é que isso não assegura o direito ao usuário, porque por mais que o médico seja especializado, não é assegurado [ou não significa] que esse médico continue prestando esse serviço [especializado] à população.

De um lado e de outro, você trabalha com gestão de equilíbrio e não de equipe. O especialista é o médico e não o conjunto de profissionais... o psicólogo, o assistente social.

Isso já existia antes do Suas inclusive. Agora, no Suas, todos os processos de capacitação que eu e vários profissionais vimos vivenciando – todos os processos de capacitação federal – sem falar dos municipais – o que foram? Processos de atualização: “Saiu a NOB-Suas, então vamos fazer capacitação! A Tipificação: vamos fazer atualização dos trabalhadores para a Tipificação! NOB-RH, vamos ler a NOB-RH!”. [Isso representa] uma concepção em que, via de regra, você tem que transmitir o conhecimento normativo para que os profissionais executem. (27 dez. 2013)

Profissional de educação permanente 2

[A priorização das capacitações a partir das normas] é compreensível, é plausível. [Pois você tem de] produzir consenso político, produzir hegemonia numa lógica de transmissão.

Acho que, quando o Suas nasce, há também um movimento muito forte do governo federal de fazer a capacitação na lógica de transmissão das normas para você construir a hegemonia do ponto de vista das categorias fundamentais de serviço de acordo com a lei.

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Se eu te respondesse como militante do Suas que sou, eu diria pra você: “tinha que fazer”, mas se eu te respondesse como educadora, eu diria: “é um equivoco”. É um grande equívoco, porque do ponto de vista da norma, da NOB-RH, o que estamos produzindo? (estou falando da massa genérica, mais que os trabalhadores que estão agregados ao Suas ou não) Estamos produzindo baixíssima capacidade crítica das normativas.

Então, como educadora, eu diria é um grande equívoco, porque os profissionais pegam a NOB-RH e dizem assim: “Cumpra-se!” E eu digo: “Calma, não sei se eu vou cumprir, ainda tem que aperfeiçoar, temos que ter leitura crítica de cada norma” – até porque a gente que acompanha mais o debate no governo federal sabe que as normativas são históricas e politicamente produzidas.

Temos visto que à medida que a Assistência Social vai se ampliando dentro da Seguridade Social, o agenciamento de forças dentro do próprio governo federal vai nos “produzindo” – particularmente nos últimos anos do Suas dentro do MDS. [Por isso], é necessário ter muita cautela sobre o risco. Se não tivermos uma leitura histórica da renda ligada ao programa Bolsa Família – que tem toda a razão de ser e etc. – é importante ter claro que há um entrelaçamento arriscado no Suas.

Sem dúvida, essa opção estratégica colocou a Assistência Social num outro patamar do ponto de vista da opção da educação continuada. Voltando ao raciocínio anterior: houve uma escolha do governo federal [em relação à] educação continuada. A ideia era disseminar e criar um consenso – uma estratégia de poder. Se você ler Focault, verá que toda a produção de discurso tem essa força. A produção discursiva é isso: é a construção da verdade. A gente construiu uma verdade e isso tem uma força política inegável, no entanto, produziu uma massa pouco crítica dentro do próprio Suas. E eu penso que isso é perigoso, porque a gente está vivendo um ciclo longo – do meu ponto de vista bacana – de gestão do governo federal na Assistência Social de pessoas que foram militantes da assistência social de muito tempo.

Então, o que a gente tem hoje instalado no governo federal é isso. Agora, caso tenha uma alternância de poder na eleição nacional e os eleitos tenham um outro projeto político, se não tem uma massa crítica formada no País inteiro – que leia criticamente, entenda o Suas e o defenda de uma forma consciente – ele se perde, porque “eu obedeço qualquer um”.

Se eu tinha que obedecer as regulações da secretaria sob a gestão da “Simone Albuquerque”, agora eu obedeço a “Patrícia Almeida”, entende? Se a lógica for só da obediência. Por isso que eu estou dizendo que, como educadora, (é isso que eu vou discutir no meu doutorado) eu acho complicadíssimo, porque você não cria, nessa estratégia de formação, de capacitação, uma possibilidade de leitura de entendimento próprio para valorizar aquilo que quebrou o paradigma anterior – sem sombra de dúvida, quebrou. Mas [é necessário que] o [trabalhador do Suas] seja capaz de fazer essa leitura, se implicar e se responsabilizar em levar adiante esse projeto.

Eu tenho receio, tenho serias dúvidas se os trabalhadores do Suas têm essa capacidade: de se sentirem pertencentes a um projeto histórico que até no governo federal está em risco. Há pessoas que têm que lutar arduamente no governo federal até hoje. Quem está nos municípios – nós aqui – também conhecemos o que é defender o Suas dentro de uma

gestão, dentro de uma secretaria de assistência social. (5 dez. 2013)

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Profissional de educação permanente 1

Atuar como elemento de massa política e como militante dessa política, tudo isso tem um impacto no sujeito. Que sujeito é esse? Que assistente social é esse? Que psicólogo é esse? Que me fala um negocio desse – implicado, envolvido, corresponsável?

Mas, isso, do ponto de vista educativo, assume o aspecto de que o sujeito acaba querendo um modelo de intervenção profissional, um modelo de intervenção na assistência social tal qual o modelo da regulação. Então, a gente foi buscar dentro de um grupo de trabalhadores – de assistentes sociais e psicólogos – sua primeira expectativa que é: como é que faz? Então vamos pensar o como é que faz! Envolver você no “como é que faz”, talvez tenha corrido o risco de criar um “vício”: de eu colocar a lei debaixo do meu braço... daí um pouco sai um documento que vai me dizer: mas a natureza do trabalho da assistência social requer exatamente a desconstrução.

A desconstrução dessa normativa. [Por exemplo, em relação ao] Idoso vítima de violência em casa: não existe norma que vá me dizer o que é isso. Existe sim a centralidade, o fato de colocar no trabalhador, a implicação de sujeito nessa história. Que conhecimento é esse da psicologia, da sociologia, do serviço social. Que faz com que eles se impliquem em sua área?

A gente ouve muito isso, aqui no Espaso a gente cansa de ouvir essas questões, essas indagações: “Bom, mas o que é o trabalho com a família?” “Não quero ouvir falar sobre a matricialidade, o que é a matricialidade? O que é isso? Que concepção é essa no meu cotidiano de trabalho? Na minha questão, na minha relação com aquela mãe, com aquele jovem, com aquele adolescente... Como é que isso se configura?”

Não existe uma receita para isso, mas há uma expectativa muito grande dessa receita. De que a norma traga isso. Então, eu digo que foi uma “faca de dois gumes”, porque se criou esse vício de uma forma de identidade histórica na assistência social, pela eventualidade, pelo improviso: “Ah, a gente vê como é que faz depois”. Então veio com a NOB debaixo do braço, para dizer, com certeza, o como fazer a assistência a social. (5 dez. 2013)

Profissional de educação permanente 2

Essa escola regulamentadora foi [baseada totalmente] na matriz escolar. Isso persiste na formação nossa de que quem sabe é o professor, o aluno não sabe. E que a autoridade é sempre de quem tem mais títulos, de quem é mais velho.

Então, essa matriz que Paulo Freire lindamente desconstruiu não dá autoridade só ao professor, a quem está na universidade e a quem está dentro dos processos da capacitação [....].

Estamos falando da assistência e eu falaria mais de um devir do que de uma prática: a educação permanente para nós é um horizonte na assistência social, mas não é uma prática hoje.

Eu digo isso com muita segurança, porque quando a educação permanente quer romper com essa lógica da educação continuada – de olhar para apenas um indivíduo, de transmitir conhecimento [como] uma coisa muito focada na atualização de conteúdo – a educação permanente e toda aquela discussão que é feita no SUS – nós trouxemos [essa perspectiva] para a assistência, ela veio muito pobre e ainda está pobre.

Mas o que a gente conseguiu alcançar naquele grupo de trabalho do CNAS, que é o que temos hoje, tem duas versões importantíssimas: uma, é a ideia de que a gente tem que trabalhar não com o tema, mas com a

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problemática. Isso é o que foi proposto quando eu estava no Espaso: é desconstruir a categoria de formação e não trabalhar tematicamente [por exemplo, o tema idoso, o tema violência doméstica, etc.] Qual é o problema que eu tenho para trabalhar? Qual é a dificuldade que temos com isso? Se eu sou a coordenadora do Creas, como é que isso me impacta?

Se somos uma equipe de Creas – eu não estou falando agora como coordenadora – nós todos temos que agir como equipe – que problemas enfrentamos cotidianamente com situações de vidas histórica e geograficamente colocadas? Qual é o problema que eu tenho? Qual é o meu desafio profissional? Que resposta eu tenho que produzir coletivamente para lidar com esse tema? Essa perspectiva muda totalmente! Muda o eixo de composição.

Então eu saio de um campo de especialidade – isso está construído dentro da política de educação: [...] Isso começou na medicina, mas a ideia é que eu tenho o conhecimento especializado de alguém na universidade que entende muito de violência contra a mulher, contra a criança, etc.; mas eu só vou acionar o conhecimento desse mega especialista [quando for necessário].

Pegando uma situação concreta, na medicina é assim: eu sou um jovem médico e preciso lidar com um paciente que tem linfoma. Essa situação me convoca eticamente para dar a notícia para essa pessoa, para trabalhar com a consequência da doença na família dele, para entender a melhor terapêutica para esse problema – então, eu preciso conhecer esse mega especialista.

Se a gente trouxer isso para dentro da assistência social, reposiciona tudo: eu vou trabalhar com situações problemáticas, não que elas sejam limites, elas exigem superação, elas exigem um passo além do que está sendo dado. Portanto, elas convocam o trabalhador que está lá pensando numa saída. Ele produz conhecimento para aquela situação. Esse conhecimento não está presente só na universidade, apesar de a universidade dar um aporte diferenciado para ele.

Ou [o trabalhador do Suas] busca outra experiência, noutro lugar que pode ajudá-lo a com essa situação, uma vez que ela não é específica da comunidade que ele trabalha. O pessoal de São Bernardo lida com isso, o pessoal de Cidade Tiradentes e o pessoal da Sé também! Como é que eu faço uma leitura coletiva dessa situação problemática a ponto de eu reconhecer que outros atores podem produzir conhecimento sobre ela? A universidade acumula e produz muito conhecimento, mas a gente tem pouco isso na assistência: que é a pesquisa, que é você ter um campo epistemológico construído – como temos no SUS, como temos na Educação –, pesquisas consistentes não estratosféricas teoricamente, mas concretas, nesse momento histórico que a gente está vivendo.

A universidade tem que vir, no meu ponto de vista, nessa medida, porque [quando] se vem com um discurso teórico macroestrutural que não cola nesse real, acho que tem pouco sentido.

Pesquisas como o Procad [Programa Nacional de Cooperação Acadêmica], coordenadas pela Carmelita, pela Berenice, pesquisas empíricas, eu acho que elas nos trazem muito mais conhecimento necessário hoje – não desconsiderando as macroleituras, mas acho que elas não mais pertinentes para esse momento.

A educação permanente recoloca os sujeitos que ensinam e os sujeitos que aprendem: o trabalhador produz conhecimento, a universidade produz conhecimento, outras políticas produzem conhecimento (pois não é só a assistência que trabalha com família, o Nasf [Núcleo de Apoio à Saúde da Família] também trabalha, tem uma postura quase moralista da educação, mas também é uma perspectiva de

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trabalho com famílias). Essa é uma grande mudança em termos de conteúdo e quem passa o conteúdo? Todo mundo! Quem ensina e quem aprende. Então muda totalmente o eixo da conversa.

Uma outra questão [na educação permanente] que é de difícil equacionamento nesta perspectiva é o plano de carreira – isso está na política nacional de educação permanente, mas ela ainda precisa ter outro pé na gestão do trabalho. Como eu tenho processos em que o conhecimento dessas equipes profissionais – desses trabalhadores de nível médio, de nível superior, de parte da administração – tenho uma interrogação: quando, nessas equipes, a experiência não é imediatamente conhecimento?

Aí eu acho que a categoria cotidiano, na perspectiva de Agnes Heller, vai ser muito útil, porque a experiência é valiosíssima, eu sou uma das pessoas que mais valoriza e tem fundamento para dizer isso: mas a experiência, em si, não é conhecimento [profissional].

Então, para [a experiência] virar conhecimento [profissional], preciso deliberadamente de uma gestão disso, de condições para refletir, sistematizar e colocá-la em dúvida. Eu preciso duvidar da experiência para poder afirma-la.

Nisso [está, no] meu ponto de vista, a riqueza do método científico, que é você colocar em dúvida aquilo que você faz para você poder fazer uma checagem de sua realidade – colocar em dúvida o que fazemos, sempre ter o crivo ético de escutar o usuário.

Então, o trabalhador em sua experiência, pode produzir conhecimento – desde que ele seja sistematizado, problematizado, colocado em dúvida – sempre com o crivo de qual é o valor que ele tem para sua ação com o usuário.

Aí você pode consolidar o conhecimento coletivo dentro da política de assistência social – necessariamente coletivo, diferente da universidade. [...] O conhecimento na assistência social não tem sobrenome, ele é coletivo, porque ele é um bem público.

Na educação permanente [na cidade de São Paulo], se eu tivesse continuado como gestora do Espaso, uma das grandes dificuldades, seria [equacionar] como é que você usa um processo de formação, um recurso de capacitação que tenha o produto final coletivo e eu possa devolver isso do ponto de vista [individual] para o profissional dentro do plano de carreira dele. Isso não é simples, nem um pouco simples, mas acho que esse é o desafio histórico que a gente tem que enfrentar.

Por isso que a [educação permanente] é diferente, quando a gente fala como educadora, a gente critica a opção de transmissão do conhecimento, e a educação permanente faz uma aposta que é muito difícil de você fazer quando está no poder: é muito difícil, num espaço de poder institucional, você ser radicalmente democrático para fazer isso. É [a ideia de] você apostar na autogestão do outro, apostar que o outro tem capacidade e criatividade para inventar, que ele não está só esperando a sua ordem e que a saída que ele encontra pode ser inclusive ao revés de sua ordem como chefe.

A educação permanente, tem uma radicalidade que é muito difícil de se sustentar num lugar de poder – se você tem uma visão tradicional de poder, centralizada – porque ela vem de uma matriz de discussão filosófica de poder. Portanto, o poder está em você e eu sou trabalhadora operacional do Creas: assistente social, secretária, trabalhadora do Espaso...

Essa matriz tem a ideia de multiplicar o maior número possível de dispositivos, à medida que vai trabalhando a capacidade criativa dos trabalhadores – só que [existe o] trabalhador que quer só cumprir a norma

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[e por isso] este é um processo histórico lento, mas também necessário e, eu diria, radical.

Porque, por exemplo, você apostar que são coletivos de trabalhadores do Suas da zona sul aqueles que fazem um processo de autogestão do conhecimento, de troca, e que eles são alimentados esporadicamente pelo Espaso com prevenção, com uma proposta de sistematização... Mas eles já estão construindo porque trocam experiências, põem essas experiências em dúvida, perguntam se ela é pertinente à luz da questão apresentada pelo usuário...

Esse movimento não está sob o domínio do que o Espaso fez no termo de referência: contratou o melhor especialista para dar um curso para ele. Pode ser também, mas não é excludente. [A ideia] é você apostar que o trabalhador tem um potencial criativo – essa é a aposta da educação permanente.

Para uma decisão de gestão é muito difícil: você tem que ser muito democrático porque o [profissional] pode criar uma coisa ao revés do que você queria e nada assegura que aquele que está no mais alto poder institucional é aquele que assegura o direito do usuário, por vezes o que acontece é ao contrário [...].

Uma coisa que nós conversamos – que pega nessa coisa de que a formação de nível superior, seja de que área for, não tem preparado o profissional para lidar com essa complexidade – eu acho que tem uma questão que está cada vez mais ganhando força e está aparecendo a partir de várias vozes, que é a importância de você ter um novo olhar para os cursos de formação inicial. Mas a gente tem que pensar que alguns dos profissionais que atuam no Creas também são de nível médio.

Tem um tratamento a ser dado por conta disso. Como é que se qualifica as pessoas para esse tipo de trabalho, que, genericamente, temos falado que são as profissões do cuidado. [...] nós precisamos trazer essa discussão do profissional do cuidado para o Suas, seja do ponto de vista de sua formação inicial, seja ela de sua formação em nível superior, ou de sua formação em serviço de nível médio.

O que já se começa a discutir é uma formação específica, em nível médio, no âmbito do Pronatec ou de algum outro curso reconhecido pelo MEC [Ministério da Educação], de modo que se qualifique também os profissionais de nível médio.

Esse projeto tem a perspectiva de que você tem que qualificar uma equipe e não um único profissional. Essa é uma das possibilidades de formação. A outra, que eu vejo, é a própria gestão do trabalho no cotidiano. Eu acho também que são dimensões muito pouco cuidadas no dia a dia do trabalho – aí, eu estou falando da coordenação, não estou falando do coordenador, estou falando do lugar de coordenação de trabalhos que envolvem vários sujeitos e vários lugares institucionais – mas para lidar com situações tão complexas, que exaurem muitas pessoas, o trabalho em equipe e a gestão do trabalho na proteção social especial merece muito mais investimento do que tem recebido.

Há um nível de desgaste interno, emocional, o profissional tem de lidar com seus próprios preconceitos. Isso tem uma gama muito complexa e demanda um perfil. Penso que, talvez, demande uma coordenação mais colegiada, não apenas de um coordenador. Um papel de gestão do trabalho mais cuidadoso com esses profissionais. Eu acho que a supervisão tem se tornado muito potente. Estou falando isso como quem fez supervisão no ABC. (27 dez. 2014)

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Profissional educação permanente 1

Nenhum técnico, assistente social ou psicólogo terá a resposta, o conhecimento para dar conta do que aparece [imediatamente no cotidiano]. Então, somada a essa estratégia de metodologia de supervisão, da coordenação colegiada, da parada necessária e permanente, tem uma coisa que estamos precisando encarar de vez. Talvez as receitinhas estejam sendo reeditadas – ou a necessidade de receitas esteja sendo reeditada -, porque o profissional está se dando conta disso: ele produz conhecimento.

Ele necessita buscar conhecimento para além do que ele adquiriu na universidade, isso para mim está muito claro. [A entrevistada cita a experiência num município do interior do estado] a gente viu muito isso: o quanto que as pessoas estão se percebendo a partir do processo de supervisão tendo que conhecer mais. Essa coisa da “receita” ainda está muito presente, mas acho que tem aí um movimento que as pessoas estão percebendo que elas no seu cotidiano, na sua relação com outros membros da equipe, com outros profissionais, com outros saberes, estão produzindo conhecimento para responder à demanda que vem. Porque a demanda que vem é ampla, inespecífica.

A gente pode saber das diretrizes, da legislação, mas o conteúdo, passa pela relação que ela estabelece com o usuário, que é a relação do vínculo com o usuário. Isso ele vai descobrir fazendo. E vai descobrir fazendo se “autorreferenciando” e se referenciando no outro, no colega de equipe. Então, esse é o elemento de construção de conhecimento pelo qual nós estamos começando a caminhar, a transitar. (27 dez. 2014)

4.3 A Formação no Percurso Profissional

Assistente social do Creas-Paefi 3

Minha unidade foi implantada em 2011, e pouco suporte tivemos da Prefeitura, no sentido de formações – coisas práticas, como protocolos de atendimento. Temos materiais impressos, mas que não dão conta da concretude de [para] você operacionalizar isso. Então, o Creas permaneceu e ainda hoje permanece muito sozinho. [...] A gente foi atrás, mas eu senti muita falta foi de uma discussão mais prática da aplicabilidade, menos conceitual. Porque por exemplo, [sobre] o conceitual, nós tivemos um momento aqui no Espaso sobre acolhimento institucional e a gente falava muito sobre os conceitos de família ainda! Questões que estão sedimentadas! Pelo menos a minha formação que é mais recente. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 1

A gente vinha ávido para ouvir esclarecimentos de questões práticas do dia a dia... (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 3

Isso! Estratégias! Acho que os parceiros que vieram, obviamente são pessoas de muito know how, de bagagem, a gente sempre aprende. Mas a

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prática – como eu lido com essa situação que está na minha frente – isso faltou. Nesses três anos, sempre fez falta. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 1

Teve muita coisa relacionada à violência contra a mulher e à criança e ao adolescente em momentos diferentes, mas também [apenas] do ponto de vista conceitual. Muito pouco sobre a questão de fluxo, dos encaminhamentos, dos desdobramentos, do caso, dos instrumentais e da rede de parceiros. [Era necessário] trazer e clarificar essa rede: quem são os atores? A quem podemos recorrer? Com quem contar?

Faz falta isso... Temos que descobrir isso a “fórceps” no dia a dia do trabalho, quando você está com aquela situação gritante na sua frente. Isso é muito desgastante, por isso acho que faltou. [As capacitações de Smads] foram em grande número, mas tenho essa crítica. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 1

A proteção [social] básica demanda uma série de coisas, porém a questão da [proteção social] especial é muito intrincada, é muito vai e volta, muitos “senãos”, muitas observações. Nas visões que temos a respeito, na escuta que fazemos, eu percebo, por exemplo, os técnicos todos muito nivelados dentro do modelo da proteção [social] básica, um pouco fora da particularidade da [proteção social] especial. Nós estamos num caminho de formação, mas essa formação e esse interesse têm vindo conforme a necessidade. Vamos encontrando especialistas em algumas demandas, em algumas áreas por conta do exercício do dia a dia, mas isso acaba deixando umas lacunas. Essa é a grande angústia que o profissional do Creas vive nesse momento: a necessidade de suporte, de aporte, de crescimento técnico para essas demandas. Estamos nesse momento agora, [depois que] instalamos algumas unidades. Elas não são suficientes, porém demos “a cara”. Mas agora precisamos parar, pensar e refletir muito sobre essa prática. (27 mar. 2014)

Assistente social do Creas-Paefi 3

Nós não temos garantias que a nossa rede conveniada tem, por exemplo. O técnico do Creas não tem as garantias como trazer um suporte de fora, uma supervisão de fora, para trabalhar as questões, um momento de discussão.

Temos que fazer reuniões de equipe sem parar o atendimento. [...] e [a

PMSP] oportuniza isso para alguns equipamentos da rede [conveniada] então não há desigualdade na forma de atuação da unidade estatal para a atuação com a rede socioassistencial. (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 2

E tem que ser uma supervisão sistemática mesmo, porque você trabalha com famílias que estão no limite do limite. Elas estão lá, porque elas estão sofrendo e são diversas formas de sofrimento. E além do sofrimento da família, [o profissional] tem o sofrimento do local onde você trabalha, da falta de estrutura, tem vários outros sofrimentos que vão acumulando e você não tem alguém que vai te olhar enquanto profissional, não só de capacitação que é importante, mas de uma supervisão mesmo. (24 abr. 2014)

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Assistente social do Creas-Paefi 2

Acho que [precisamos de] diretriz mesmo. Estou no Creas desde 2012 quando eu vim para a Smads desde que cheguei no Creas já escutei alguns profissionais falarem isso. Não se tem uma linha de atendimento, um protocolo a ser seguido. Na [proteção social] básica talvez tenha algum fluxo fechado para algumas situações. Na proteção [social] especial não tem isso. Cada família que chega [é necessário] ter uma estratégia diferente que você terá que adotar, criar ali junto com a equipe estratégias que nunca se pensou. Eu já ouvi alguns profissionais falarem que na [proteção social] especial “cada caso é um caso” – como a gente costuma dizer. Para cada caso, você tem que montar uma estratégia de atendimento. Não tem um protocolo feitinho, não tem um fluxo feito, mas tem a riqueza da equipe. (27 mar. 2014)

4.4 Gestão e Autogestão do Tempo e do Trabalho: a Criação de Espaços de

Reflexão

Profissional de educação permanente 2

Nós sempre voltamos numa questão de autonomia e heteronomia. Se estamos falando da norma e o quanto se alcança os procedimentos, se se tem regrar os procedimentos, no trabalho, eu sempre aposto que o profissional tem uma perspectiva de autonomia – como ele usa é a pergunta...

Pode-se ter o gestor mais autoritário, mas as pessoas exercitam, elas fazem escolhas, seja de se recolher, ou seja, de omitir coisas e continuar fazendo para continuar fazendo e seguir no projeto que elas têm, profissional, individual ou coletivo, o que seja.

Nós ficamos muito nos debatendo nessa perspectiva de heteronomia e autonomia dos profissionais. Penso que tem um deslocamento delicado de fazer, porque na proteção especial, que a gente tem pela ausência de sistematização desse conhecimento produzido na prática um agenciamento cotidiano como se fosse sempre da emergência. (27 dez. 2013)

Profissional de educação permanente 1

Isso é extremamente desgastante, é uma coisa que esvazia, pois não vemos possibilidade a não ser responder emergências. (27 dez. 2013)

Profissional de educação permanente 2

Por isso falo que é uma questão de gestão do trabalho, é gestão do tempo.

Isso não está na nossa concepção de gestão do trabalho. A meu ver, a concepção que temos de gestão do trabalho é muito restrita. [Se] está discutindo plano de carreira, cargos e salários e capacitação, mas se você for de gestão do trabalho no sentido mais profundo, é a gestão do tempo da equipe.

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Se organizamos o tempo fraturando, na estrutura institucional de São Paulo – não estou falando das pessoas, estou falando do modo como se escolheu institucionalmente tocar essa proteção por frentes é exasperante, porque cada um é responsável por uma temática.

Então, cada um é responsável por uma frente, no máximo uma dupla. Estou falando disso numa estrutura grande como é a estrutura de São Paulo. Acho que isso de um lado fraciona toda a leitura de família, porque toda a vez que a gente fraciona, a gente perde essa perspectiva e de território – que na proteção especial é uma questão controversa, o que é o território da proteção especial.

Mas, de toda forma, o que me parece é que, como temos pouco reconhecimento, conhecemos pouco o conhecimento produzido na prática profissional do Suas.

Não estou falando nem de [proteção social] básica e nem de [proteção social] especial. Na [proteção social] especial, por haver esse baixo reconhecimento, as pessoas ficam batendo cabeça e, via de regra, isoladas em frentes específicas, se “especializando”, mas que no fundo não chega a ser uma especialização é uma “sobre responsabilização”.

Por isso tem uma questão que precisa ser desvendada que é a gestão do trabalho, a gestão do tempo nas equipes.

Aí você pergunta: “As equipes têm ou não autonomia de parar?” Primeiro que na concepção que eu defendo não é “parar” – essa ideia de “parada pedagógica” eu discordo, porque acho que pensamos em movimento, não parando. Quando a gente para, a gente não pensa.

Essa ideia de criar espaços, institucionalizar espaços para que essa escuta da equipe seja potente, para que as pessoas possam se ouvir, para que possam analisar uma mesma situação de pontos de vista diferentes – e ter o aporte externo, uma figura estrangeira nesse momento – eu acho muito saudável, acho que agrega.

É possível ter um regramento mais institucionalizado, São Paulo teve isso nas organizações, nas horas técnicas na Portaria 46. Então, veja, tem até uma regulação, mas o que as organizações, via de regra, fazem? Algumas delas juntam esse dinheiro o ano inteiro para fazer um grande seminário no final do ano ou devolvem o dinheiro – porque é uma concepção do trabalho. [...] [tem a perspectiva da] cogestão da autonomia, não tivemos tempo de discutir coletivamente, mas é criar isso desde um nível mais informal como uma resposta da própria equipe para lidar com os conflitos que ela tem, que ela vivencia, até o nível mais institucionalizado que se tenha.

Porque essa institucionalização será uma gestão do tempo. [...] A escola tem o HTPC [Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo], toda semana. Tem escolas que eu conheço que fazem um HTPC maravilhoso e escolas que os professores ficam tomando chá e falando mal da vida dos outros, falando da novela, pensando na festinha. Então, tem a ver o quanto o profissional valoriza a produção do conhecimento. (27 dez. 2013)

Profissional de educação permanente 2

A equipe da [proteção social especial], se vai conversando e é interessantíssimo quando tem esses papos de autogestão de algum espaço de conversa.

A Secretaria está “em outra” – em nível central está em outra –, mas os

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profissionais, o que é muito interessante, eles fizeram um salto que eu acho que é de sair da discussão de categoria profissional e estar fazendo a discussão do trabalho que é muito interessante, porque vamos conversando, eles têm uma leitura do que é a demanda, do que é responsabilidade deles, do que é da política e do que não é, como se posicionar no Judiciário, porque é uma questão mais densa na [proteção social] especial do que na [proteção social] básica.

Você percebe um discurso coletivo muito mais interessante, muito mais forte. Ainda que seja possível – acho que isso é possível também – reconhecer a singularidade de cada profissional. [...]

Essas duas vias: não é por exclusão ou por oposição. Regular ou não regular esses espaços de discussão sobre o trabalho? Acho que a educação permanente é um processo que contribui muitíssimo para isso. Ela tem dispositivos dentro dela potentes para trabalhar essa perspectiva, que não é nova.

Não tem nenhuma novidade nisso, em Paulo Freire já estava marcada essa discussão. Mas agora a educação permanente vindo para a gestão do trabalho, ela agrega essa perspectiva e tem esses dispositivos e a supervisão é um deles, os grupos de estudo é outro, sistematização de conhecimento é outro.

O que seria uma guinada para outra direção é: como é que você faz o reconhecimento se não for por regulação, por obrigatoriedade como é na educação? Na educação é obrigatória, então se tem de tudo dentro dessas práticas de HTPC e se não fosse obrigatório?

Se fosse por adesão dos profissionais, eles tivessem que instituir como se fosse um grêmio dentro do Cras [ou Creas]? Mas é opcional, é um coletivo que decide.

Se você tivesse algum fomento de que aquela produção do Cras-São Mateus, que, ao fazer uma discussão, produzisse um texto, produzisse uma orientação e isso valesse na carreira do profissional, isso para mim seria o máximo de gestão do trabalho no Suas. Porque os profissionais só fazem se quiserem. Eles são estimulados a fazer, a refletir, a criar espaços dentro do trabalho para refletir, para produzir sobre isso e você ter algum grau de reconhecimento que é necessário.

O reconhecimento institucional é necessário, se não as pessoas também, em algum momento essas coisas se desgastam. A autogestão também chega uma hora que ela cansa, as pessoas também se exaurem. Se não tem uma pessoa nova alimentando – por isso [a importância de] uma pessoa externa.

A gente aqui no Espaso chegou a pensar na supervisão para os coordenadores de Creas, no sentido de forjar um coletivo que dê vazão para queixas, mas que passada essa onda eles pudessem se reconhecer como um grupo que tem solução, que produz saída também, coletiva. Então esse era um desenho, mas a magnitude de São Paulo exige se pensar várias engenhocas, mas era um começo, um primeiro caminho.

O passo fundamental me parece que é esse: se a gente vai topar discutir o trabalho, a qualidade e conteúdo do trabalho imaterial do Suas, de que forma isso vai ser praticado e depois reconhecido, porque eu acho que em algum momento essas coisas tem que se cruzar. O problema é que se a regulação vem antes, você burocratiza. Põe uma régua e nada funciona com régua. (27 dez. 2014)

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A discussão na assistência social precisa caminhar, transitar para uma ideia do coletivo do ponto de vista da abrangência do usuário do ponto de vista do trabalho que a gente oferta.

Eu posso estar no Creas acompanhando uma família, mas aquilo é fruto de uma reflexão e de uma identidade de um grupo. Um identidade de trabalho de um grupo. Que ela se alimenta obviamente de uma forma mais fortalecida, quando eu tenho esses espaços permanentes, não regulados, pois eles não necessariamente precisam ser regulados, instituídos.

Mas quando eu tenho isso apropriado pela equipe e isso é uma coisa que a gente observa – em São Paulo não, pois é tudo muito grande, mas a gente observa isso em pequenas cidades – que quando isso se institui, não do ponto de vista legal, mas do ponto de vista dos sujeitos envolvidos ali, isso é um troféu para o profissional.

O sujeito é indagado cotidianamente, ele olha aquilo e não é por ausência de regulação, a produção é extensiva. Tem as frágeis, tem aquelas que vão para os fundamentos. Mas a gente tem uma produção nesses oito anos [de NOB-Suas] interessante, muito importante.

Porque a regulação, ela acaba ficando [como] um “totem”, não que ela engesse, mas podemos correr o risco de ficar como uma verdade absoluta. Quando na realidade acho que temos esse desafio de entender que esses processos de supervisão, de sistematização do conhecimento, eles qualificam à luz da prática do sujeito que a está vivendo. Acho que esse é um caminho. A educação permanente, ela pode crescer. (27 dez. 2013)

Profissional de educação permanente 1

A interdisciplinaridade e a intersetorialidade têm mais força no Creas.

Você pensar isso no Creas é você pensar no construtor da identidade dele.

Assistente social do Creas-Paefi 2

E para cada caso a gente fica pensando: e o registro de tudo isso? E quem vem depois de nós? Porque nós, por não termos nenhum suporte de fluxo, ou não termos minimamente um protocolo para ser seguido, nós fazemos... Depois nós não estamos mais e virá alguém que vai fazer de outro jeito

Então, acho que pensar numa maneira de que isso seja registrado. Você falou de ultrapassar barreiras, eu vou falar de um caso que a gente acompanhou lá no Creas de uma idosa em situação de vulnerabilidade e o filho com uma questão psiquiátrica grave, ela já com uma doença bastante avançada e com diagnóstico de... chegando ao final da vida e o filho vai ficar sozinho. E a gente: o que fazer numa situação dessas? Conseguimos mobilizar para esse caso um número imenso de profissionais de rede de saúde, de proteção básica. Falamos com o promotor que estava cuidando do caso e ele articula com a gente e cria estratégias ali e às vezes para algumas pessoas muito loucas, mas era o que cabe para aquela e então a gente conseguiu articular e tal, mas como que vai ser com outra família? Como será em outras épocas? Então, acabamos tendo essa dinâmica no Creas de fazer conforme vem chegando a demanda, mas o registro disso, como fica? Como podemos transformar isso em registro? Como podemos propor algum tipo de fluxo?

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Uma luz no fim do túnel, alguma ideia, alguma coisa assim [...], sexta-feira agora fizemos um grupo lá na Sé, um grupo que chama grupo de participação social que tem reunido vários profissionais que fazem parte de fóruns de discussão, do território para saber o que tem acontecido nas mais diversas áreas.

Na sexta-feira trouxeram a professora Bia Abramides para conversar com a gente, fazer uma roda de conversa. Nossa! Isso foi um alívio imenso para nós! Ter aquele tempo, uma manhã que separamos.

Não, estavam todos lá – e a técnica de plantão, que no caso era eu... nem consegui ouvir a palestra dela. Eu nem consegui ouvir o que ela tinha colocado, depois eu fui só trocar com os meus colegas, porque eu estava de plantão, mas independente disso, para os profissionais que ficaram, que conseguiram se desligar, parar, foi um alívio. E ela trouxe isso na fala: “gente, esses momentos, a gente não está fazendo nada de errado” – porque a gente fica tão sucumbido que acha que está fazendo algo errado. Culpados por parar, por não atender o telefone, naquele dia não marcar nada para ter esse tempo de reflexão. Então nos sentimos culpados e isso é parte da nossa prática cotidiana. (27 mar. 2014)

Assistente social – gestão 2

Mesmo nas reuniões que nos tínhamos – as reuniões de discussão de caso – eram reuniões tensas. Elas não são reuniões de supervisão, são reuniões tensas. Todas as reuniões que nós tínhamos lá de equipe, de discussão de caso, de qualquer tipo de reunião que tinha naquele Creas eram reuniões tensas. Não são reuniões agradáveis. (24 abr. 2014)

Assistente social – gestão 1

A rede inteira atropela e isso influencia muito na atuação do assistente social. Por conta do atropelo que é a nossa vida profissional, acabamos caindo no risco de se ver às vezes fazendo a mesma coisa sem crítica. Eu acho que você manter a crítica é um exercício diário, é uma questão de uma escuta de você estar disponível. [...] Eu acho que é uma crítica e eu acho que para isso deveria de ter uma espécie de supervisão alguma coisa para onde esses profissionais pudessem recorrer. Porque a gente trabalha no limite da saúde mental, trabalha com a miséria, com a pobreza, com as coisas que não estão dando certo, com situações extremamente sofridas. Acho que para você conseguir se manter no trabalho ativo, no trabalho crítico, deveria ter supervisão. Eu acho que todo técnico que trabalha não só da assistência, até alguns outros técnicos, deveriam ter de verdade uma supervisão. (24 abr. 2014)

Profissional de educação permanente 2

Eu lembro que quando fazíamos cartografias de práticas de educadores sociais, na assistência mesmo, tinham perguntas que eram muito potentes. A pessoa fazia uma narrativa de prática e aí você perguntava assim: “como isso é possível?” – é uma pergunta boba, mas você fica só repetindo ela: “como é isso é possível?” e a pessoa tem que começar a dizer qual foi o caminho, as escolhas que ela fez para que aquele resultado fosse possível. Era uma pergunta boba, mas a gente ficava horas e isso ajudava as pessoas irem descrevendo o trabalho. E uma outra [pergunta] de um educador que eu gosto muito – o Jorge Larossa – ele tem uma pergunta que é extremamente incômoda de pesquisa. Quando ele faz pesquisa com profissionais da educação ele diz: “e tu, o que pensas?” Porque o tempo, a pessoa está falando... “e, tu, o que pensas?”... (27 dez. 2014)

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Profissional de educação permanente 1

O que você pensa disso que você faz? Porque tem isso, o sujeito não se percebe refletindo sobre o que faz.

Vamos fazer como a gente diz em psicologia, vamos fazer um set, que não precisa ser terapêutico, e vamos pensar sobre o que fazemos. Além disso, que você está pensando, o que mais poderia ser? Isso é muito potente, é muito criativo. (27 dez. 2014)

4.5 Amarrando as Ideias

Este capítulo foi construído com a intenção de apontar perspectivas. Sposati

(2009) menciona que, na construção do sistema de proteção social não contributivo

brasileiro, é interessante utilizar a metáfora da bússola. Nessa imagem, a bússola

representa os marcos regulatórios, ou seja, o que foi construído e consolidado até

aqui. Fazendo uso dessa bússola, o caminho a ser percorrido é construído pelo

profissional no solo do seu cotidiano.

As falas aqui apresentadas revelaram que os profissionais carecem de

estratégias que favoreçam seu aprimoramento. Ao mesmo tempo, as falas revelam

que os assistentes sociais têm construído um legado de conhecimento no que tange

ao trabalho com famílias.

No cotidiano, apesar da insegurança e das dificuldades mencionadas, é

possível afirmar que há conhecimento sendo produzido, mas que precisa de

sistematicidade e mecanismos de socialização. As pesquisas feitas por profissionais

em seus locais de trabalho também são necessárias.

Nesse sentido, a perspectiva da educação permanente – no entendimento da

pesquisadora – pode auxiliar o assistente social a refletir seu cotidiano, a

estabelecer mediações e a construir conhecimento no sentido de fortalecimento do

Suas.

Nesse processo posto pela prática, na medida em que o concreto é resultado das várias práticas humanas e apreendido teoricamente pelo pensamento, teoria e prática se encontram. (SANTOS, 2013, p. 21).

Dessa forma, na perspectiva do materialismo histórico dialético, na prática a teoria só pode ser a mesma, uma vez que ela é o lugar onde o pensamento se põe. A teoria quer, justamente, conhecer a realidade, extrair as

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legalidades, as racionalidades, as conexões internas postas nos produtos da ação práticas dos homens, assim, não há como na prática a teoria ser outra. (SANTOS, 2013, p. 27).

Diante do exposto, o horizonte da educação permanente, se compreendido

numa perspectiva crítica, pode auxiliar, também, a dissipar confusões a respeito da

relação teoria e prática, contribuindo para a socialização do que tem sido

desenvolvido nos Creas–Paefi da capital paulista, partilhando o saber na direção da

construção coletiva do conhecimento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta dissertação foram apresentados elementos que buscaram

favorecer a reflexão acerca da política social de assistência social no âmbito da

proteção social especial, notadamente, no Creas-Paefi.

A partir da tentativa de responder às perguntas – Como é o cotidiano do

trabalho dos assistentes sociais dos Creas-Paefi? Quais são as suas estratégias e

seus desafios para o desenvolvimento do trabalho com famílias e indivíduos em

situação violação de direitos? –, refletiu-se sobre diversas temáticas, como: a

realidade da implementação da PNAS e do Suas na cidade de São Paulo; a

estrutura dos Creas; as características da gestão e das equipes; e, por fim, como é o

cotidiano de trabalho no Paefi.

Percebeu-se que, na realidade de São Paulo, a implantação do Suas se dá de

modo muito peculiar, se comparada ao restante do País, em decorrência do porte e

das diversidades territoriais existentes na cidade. Isso resulta em estratégias

específicas, como, por exemplo, a divisão em Supervisões de Assistência Social

localizadas na região correspondente a cada subprefeitura.

Cabe destacar as manobras de gestão que São Paulo apresenta no

desenvolvimento da assistência social: sejam as adequações tardias às orientações

do MDS – exemplo disso foi o início da implantação dos Creas apenas em 2008 –

seja a exacerbante política de convênios com organizações sociais para execução

dos serviços da rede socioassistencial. Esta última tem, sobretudo, significado o

descumprimento da NOB-RH – como é o exemplo da criação do NPJ para substituir

a equipe técnica do Paefi. Em suma, São Paulo é uma cidade única na realidade

nacional e a implantação do Suas, nesse contexto, ainda é um desafio. Por esse

motivo, o trabalho e os serviços da proteção social especial em São Paulo carecem

ainda de muitos estudos e pesquisas.

Nas reflexões sobre o Paefi, sobressaíram-se os desafios presentes nas

relações intersetoriais com os diversos órgãos do sistema de garantia de direitos,

notadamente, o Judiciário. Há sérios riscos de equívocos nos encaminhamentos, de

desvios nas atribuições do Creas e na linha das relações interinstitucionais, quando

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o Judiciário se arroga o direito de determinar as ações a serem realizadas pelos

profissionais do Executivo. Acrescenta-se a essa realidade a tendência ao

enquadramento e julgamento das famílias, o que mostra a magnitude da

necessidade e articulação das discussão e dos estudos a serem desenvolvidos em

torno dessa temática.

A partir do entendimento de que a família manifesta em si as mais variadas

características da vida cotidiana, as reflexões avançaram pautadas nas categorias

cotidiano e mediação, esta última que se mostrou crucial para a compreensão das

demandas postas ao Paefi.

Compreender, num primeiro momento, como o sofrimento, a exclusão, a

violência, o risco e a vulnerabilidade se manifestam na realidade de cada família e

de cada indivíduo atendido no Paefi, coloca-se como um exercício necessário para o

atendimento digno.

Cabe destacar que, para a realidade da proteção social especial, está

colocado o desafio de refletir sobre as categorias sofrimento, exclusão, violência,

risco e vulnerabilidade em suas mais variadas formas, não apenas quando

ocasionadas pela pobreza – pois a violência atinge todas as classes sociais ainda

que a maior demanda da assistência social seja de pessoas também com privação

de necessidades básicas.

Num segundo momento, é necessário entender essas formas de violação de

direitos na perspectiva da totalidade, exercício fundamental para que o assistente

social desenvolva sua prática profissional com vistas à garantia e defesa de direitos.

Cabe ainda ao profissional interpretar as normativas vigentes no âmbito do Suas –

que são pensadas para a realidade nacional – e aproximá-las de sua realidade local,

especificamente em relação às situações postas à sua intervenção no Paefi. Assim,

esse trânsito da realidade universal para a singular só pode dar-se mediante a

particularidade.

Ao refletir sobre as falas das entrevistadas, notou-se que o cotidiano de

trabalho do Paefi é tenso, repleto de demandas, tarefas e dilemas intra e extra Suas.

As equipes são pequenas e a insegurança e o desgaste do profissional para lidar

com demandas complexas e volumosas são consideráveis.

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Contudo, observou-se que as profissionais entrevistadas desenvolvem

estratégias para o trabalho com famílias em seu cotidiano, cabe destacar: as

discussões de casos, as reuniões de rede, as leituras de materiais e, sobretudo, as

reflexões sobre o que está colocado à sua demanda profissional.

Chamou a atenção da pesquisadora o exercício de reflexão que as

entrevistadas atuantes no Paefi mencionaram a respeito de não julgar e não

sobrecarregar as famílias acompanhadas. Isso revela que – mesmo diante da

tendência ao familismo – os profissionais lidam com essas demandas criticamente e

que o trabalho com famílias não é, por natureza, conservador. Muito se tem

avançado na perspectiva da matricialidade sociofamiliar, pois é nessa perspectiva

que o trabalho com famílias – coletivo ou individualizado – toma proporções de

defesa de direitos, sobretudo à autonomia e ao convívio.

Por diversas vezes as profissionais do Paefi mencionaram a necessidade de

capacitação e aprimoramento profissional para lidar com as demandas de trabalho,

bem como de momentos de reflexão em equipe e, sobretudo, de supervisão de um

profissional externo. Esses comentários fomentaram ainda mais o que a

pesquisadora já levantara como necessidade e o que fora sugerido pelas

professoras Maria Carmelita Yazbek e Maria Lúcia Martinelli na ocasião da

qualificação deste trabalho: é preciso pensar a formação desses profissionais.

Como este estudo não se propôs a discutir a formação como tema central e

foi desenvolvido tendo como pano de fundo o cotidiano do assistente social no

Creas-Paefi, elegeu-se refletir sobre a formação continuada ou a formação em

trabalho. Para isso, fez-se uma breve aproximação da perspectiva da educação

permanente.

A fala das profissionais entrevistadas e suas referências à área de educação

permanente mostraram que, de fato, na realidade dos Creas-Paefi urge – por parte

da gestão – pensar em estratégias de formação emancipadora e participativa dos

profissionais. E por parte dos profissionais urgem a identificação e reflexão sobre o

potencial que possuem em seu cotidiano de trabalho para a construção de um

conhecimento que ancore uma prática efetiva e eficaz no sentido da garantia de

direitos.

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Embora as profissionais do Paefi entrevistadas tenham construído e

desenvolvido um conhecimento específico no que tange ao trabalho com famílias em

situação de risco e vulnerabilidade social, essas estratégias têm sido pouco

registradas ou socializadas.

Em síntese, defender a perspectiva da educação permanente no Suas,

notadamente nos espaços dos Creas-Paefi, é decisivo para que o que se tem

construído nas demandas miúdas do cotidiano seja refletido e socializado. O

caminho para esse tipo de educação deve ter por base um entendimento de que os

trabalhadores atuais da PNAS podem sim ser os vetores de uma posição de ruptura

com a permanência/continuidade de práticas conservadoras na assistência social.

Assim, cabe aos assistentes sociais prosseguirem com a reflexão e

elaboração de mediações entre a teoria assumida e a prática realizada, a fim de

desvelar a miséria e a riqueza escondidas no seu cotidiano profissional e encontrar

os caminhos mais efetivos para – a partir daí – ampliarem a construção de seu saber

sobre a prática, tendo por base um conhecimento teórico consistente.

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APÊNDICES

APÊNDICE A – Perguntas Norteadoras

ENTREVISTA COM ASSISTENTES SOCIAIS – CREAS-PAEFI

1. O CREAS

2. O ASSISTENTE SOCIAL NO CREAS

3. O TRABALHO COM FAMÍLIAS NO PAEFI

3.1 A MATRICIALIDADE SOCIOFAMILIAR

ENTREVISTA COM ASSISTENTES SOCIAIS – GESTÃO SMADS

1. O CREAS

2. O ASSISTENTE SOCIAL NO CREAS

3. O TRABALHO COM FAMÍLIAS NO PAEFI

3.1 A MATRICIALIDADE SOCIOFAMILIAR

ENTREVISTA COM PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO PERMANENTE

1. O CREAS

2. O TRABALHO COM FAMÍLIAS NO PAEFI

3. A INTERSETORIALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE

4. A PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO PERMANENTE COMO POTENCIAL

PARA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO NO COTIDIANO DO PAEFI

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APÊNDICE B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Aceito participar da pesquisa sobre “O assistente social no Creas: um estudo

sobre o trabalho com famílias e indivíduos em situação de violência” em

desenvolvimento pela mestranda Flávia Rodrigues Lima da Hora, sob orientação da

Profa. Dra. Myriam Veras Baptista.

Declaro que fui informado(a) que a pesquisa possui como objetivo geral a análise (a

partir das categorias práxis, cotidiano e subjetividade) do cotidiano de trabalho do

assistente social e das metodologias que utilizam com famílias em situação de risco

e violência no Creas-Paefi na cidade de São Paulo.

Como participante da pesquisa, declaro que concordo em ser entrevistado(a) pela

pesquisadora, ( ) permitindo / ( ) não permitindo a gravação das entrevistas.

Fui informado(a) pela pesquisadora que tenho a liberdade de deixar de responder a

qualquer questão ou pergunta, assim como recusar, a qualquer tempo, participar da

pesquisa, interrompendo minha participação, temporária ou definitivamente.

( ) Autorizo / ( ) Não autorizo que meu nome seja divulgado nos resultados da

pesquisa, comprometendo-se a pesquisadora a utilizar informações que prestarei

somente para os propósitos da pesquisa.

São Paulo, ___ de ________ de 201__.

______________________________ Assinatura entrevistado(a)

______________________________ Assinatura pesquisadora