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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Marcos Beck Bohn A Notícia e a “Passagem” do Tempo A interferência do fluxo noticioso na percepção humana de passado, presente e futuro MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Beck Bohn.pdf · – notadamente, a de Mario Bunge. Assim, a memória é vista como fundamental para a manutenção da autonomia

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Marcos Beck Bohn

A Notícia e a “Passagem” do Tempo

A interferência do fluxo noticioso na percepção humana de passado,

presente e futuro

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Marcos Beck Bohn

A Notícia e a “Passagem” do Tempo

A interferência do fluxo noticioso na percepção humana de passado,

presente e futuro

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para obtenção do título de

MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a

orientação do Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira.

SÃO PAULO

2014

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Marcos Beck Bohn

A Notícia e a “Passagem” do Tempo

A interferência do fluxo noticioso na percepção humana de passado,

presente e futuro

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para obtenção do título de

MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a

orientação do Prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira.

APROVADO EM: ___ DE ______________ DE 2014.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

___________________________________________________

___________________________________________________

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RESUMO

Esta pesquisa examina o grau de interferência da notícia audiovisual na percepção humana da

passagem do tempo. Em um ambiente contemporâneo onde os meios de comunicação

definem suas próprias escalas temporais, novas relações temporais podem se estabelecer entre

o indivíduo telespectador e as notícias consumidas. Bastante mutáveis e eventualmente nada

similares entre si, tais intervalos de tempo delimitados externamente interagem com a linha do

tempo interna do sujeito. Assim, o presente trabalho empreende uma reflexão interdisciplinar

sobre (i) o modo de delimitação e consolidação do tempo pela notícia; (ii) o modo como

oscila – avança e recua, acelera e atrasa – o tempo da notícia; e, por fim, (iii) a eventual

descontinuidade entre o tempo da notícia audiovisual e o tempo subjetivo do indivíduo. Como

base teórica, parte-se da filosofia de Henry Bergson e de sua descrição do modo humano de

recordar: através de paradas virtuais no tempo. A verdadeira duração, aquilo que sentimos e

vivemos, está ausente da lembrança. Compreendemos o tempo através de uma representação

linear, sendo nossas lembranças constituídas por registros fixos no tempo unidimensional e

anterior de nossa memória, caracterizando uma descrição filosófica condizente com a

neurociência de Antonio Damásio e Gerald Edelman. As definições de tempo e memória, por

sua vez, são desenvolvidas a partir de uma perspectiva geral e sistêmica, portanto, ontológica

– notadamente, a de Mario Bunge. Assim, a memória é vista como fundamental para a

manutenção da autonomia do indivíduo. Já o conceito de tempo é considerado a partir da

percepção humana primordial que o sustenta e cria, aquela de antes de e depois de algum

evento (conforme Kenneth G. Denbigh). O tempo, neste trabalho, é o tempo irreversível da

fenomenologia (conforme Ilya Prigogine e Isabelle Stengers). Quanto aos eventos, podem vir

a ser retratados pelas notícias, constituindo assim um novo evento audiovisual, em que uma

representação de fatos é elaborada sobre uma representação do tempo, continuamente

recriando e reforçando a lógica humana linear de retrospecção. Considera-se, entretanto, que a

intensidade do fluxo noticioso possa estar além da capacidade de processamento interna do

indivíduo. A investigação analisa a íntegra de um telejornal, especificamente no que tange aos

intervalos de tempo estabelecidos em cada notícia separadamente. Tal análise indica ser

possível tomar como procedente a hipótese de que o fluxo noticioso contemporâneo, ao

interagir com as paradas virtuais da recordação do indivíduo, pode alterar sua memória,

interferindo em sua autonomia.

Palavras-chave: notícia, tempo, memória, jornalismo, televisão, autonomia.

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ABSTRACT

This research examines the degree of interference of the audiovisual news in the human

perception of time. In the contemporary environment, where the media define their own

temporal scales, new temporal relations can be established between the individual viewer and

the news consumed. Quite changeable and eventually anything similar, such externally

delimited time intervals interact with the internal timeline of the subject. Thus, the present

work undertakes an interdisciplinary reflection about (i) the way of demarcation and

consolidation of time by the news; (ii) the way oscillates – advances and retreats, accelerates

and delays – the time of news; and, finally, (iii) the possible descontinuity between the time of

audiovisual news and the subjective time of the individual. The philosophy of Henry Bergson

and his depiction of the human way of recollecting – through virtual halts in time – will

constitute the theoretical framework of this work. Real duration, what we feel and live, is

absent from remembrance. We comprehend time through a linear representation, our

remembrances consisting of records fixed in the one-dimensional and anterior time of our

memory, characterizing a philosophic description consistent with the neuroscience of Antonio

Damásio and Gerald Edelman. The definitions of time and memory are developed from a

general and systemic, and therefore ontological, perspective, notably as discussed by Mario

Bunge. Thus, memory is seen as fundamental to the maintenance of the autonomy of the

individual. Time is considered as arising from the primordial human perception that sustains

and creates it, the one of earlier than and later than any event (according to Kenneth G.

Denbigh). Time, in this work, is the irreversible time of phenomenology (according to Ilya

Prigogine and Isabelle Stengers). As for events, they can as well be portrayed by the news,

thus constituting a new audiovisual event, in which a representation of facts is elaborated on a

representation of time, continually recreating and reinforcing the linear human logic of

retrospection. It is considered, however, that the intensity of the news flow may be beyond the

individual‟s internal processing capacity. This research analyses the full of a newscast,

focusing on the time intervals established in each news separately. The analysis of this

empirical data will offer plausible evidence for sustaining the argument made here that the

contemporary news flow, when interacting with the virtual halts of the recollection of an

individual, may alter the memory, interfering in the person´s autonomy.

Keywords: news, time, memory, journalism, television, autonomy.

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AGRADECIMENTOS

A execução de um empreendimento como este seria menos prazerosa e menos

desprovida de sentido se, ao final, inexistissem espaço – e tempo – para se manifestar a

importância de algumas pessoas para e durante o processo. Agradecimentos, então:

Ao Professor Doutor Jorge de Albuquerque Vieira, orientador, pela generosidade com

que compartilhou reflexões que se expandem, tanto espacial como temporalmente, para muito

além dos limites do universo, por vezes caótico, desta investigação. O aconselhamento preciso

e o acolhimento precioso que dele recebi foram fundamentais para as ideias aqui

apresentadas;

À Professora Doutora Christine Greiner, por alertar-me sobre a necessidade de

aceitar a imprecisão de Bergson acerca da localização da memória fora do corpo. Além de

ampliar a compreensão de sua filosofia, o acréscimo que isso trouxe à pesquisa reforçou

substancialmente, acredito o argumento que busco apresentar;

Ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, pela

abertura à interdisciplinaridade, primordialmente, e pela isenção concedida através de bolsa

da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Capes, a qual também sou

grato;

À Cida Bueno, secretária do Programa, cujo apoio e prontidão colaboraram muito

para a organização e continuidade desta pesquisa;

A Cilene Frias e Ricardo Melo, chefes de redação do SBT que viabilizaram uma

licença de quatro meses para dedicação exclusiva a esta dissertação durante o segundo

semestre de 2013;

A Jorge Sacramento, por relembrar-me de que o processo é dinâmico;

E, por fim, a meus pais. A minha mãe, pela rica e intensa trajetória, nem sempre

linear em sua duração, e que adquire mais coerência com este trabalho. A meu pai, pela

presença de sua memória.

As falhas e o que ainda há por fazer, é claro, são minha responsabilidade.

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VLADIMIR: That passed the time.

ESTRAGON: It would have passed in any case.

VLADIMIR: Yes, but not so rapidly.

[Pause.]

SAMUEL BECKETT, WAITING FOR GODOT

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................

1.1 A relação notícia-tempo-indivíduo..........................................................................

1.2 A notícia perante Bergson.......................................................................................

1.3 Hipótese...................................................................................................................

1.4 Descrição dos capítulos...........................................................................................

2 REFERENCIAL TEÓRICO........................................................................................

2.1 Abordagem ontológica............................................................................................

2.1.1 Realidade sistêmica.........................................................................................

2.1.2 Parâmetros sistêmicos.....................................................................................

2.1.3 Função memória..............................................................................................

2.2. O conceito de tempo...............................................................................................

2.2.1 O medir linear do tempo..................................................................................

2.2.2 Tempo irreversível, tempo primordial.............................................................

2.2.3 O tempo é presente..........................................................................................

2.2.4. A notícia é presente.........................................................................................

2.2.5 O sentido do tempo..........................................................................................

2.2.6 A linearidade do tempo....................................................................................

2.3 Memória linear........................................................................................................

2.3.1 A imprecisão de Bergson.................................................................................

2.3.2 A memória é presente......................................................................................

2.3.3 A função da memória.......................................................................................

2.3.4 Mais que o lugar, a existência da memória.....................................................

2.3.5 Mente linear.....................................................................................................

3 METODOLOGIA.........................................................................................................

3.1 A escolha das notícias..............................................................................................

3.1.1 Aleatoridade.....................................................................................................

3.2 A prática ontológica aplicada ao tempo das notícias...............................................

3.3 Análise das notícias.................................................................................................

3.3.1 Escalada...........................................................................................................

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3.3.2 Primeira notícia – Comparativo da repressão a manifestações.......................

3.3.3 Segunda notícia – Arco-e-flecha na guarda municipal....................................

3.3.4 Terceira notícia – O relógio da morte..............................................................

3.3.5 Quarta notícia – Nobel de Química.................................................................

3.3.6 Quinta notícia – Giro internacional.................................................................

3.3.7 Sexta notícia – Gasta mais quem ganha mais..................................................

3.3.8 Sétima notícia – Aumento da taxa Selic e índice da inflação..........................

3.3.9 Oitava notícia – Poderes especiais para Maduro.............................................

3.3.10 Nona notícia – Uma mulher no banco central americano.............................

3.3.11 Décima notícia – Câmara aprova o Mais Médicos........................................

3.3.12 Décima primeira notícia – Julgamento dos recursos do mensalão................

3.3.13 Décima segunda notícia –Chamada de série de reportagens.........................

3.3.14 Décima terceira notícia – Gols da Série B.....................................................

3.3.15 Décima quarta notícia – Morte de Norma Bengell........................................

3.3.16 Décima quinta notícia – Encerramento.........................................................

4 CONCLUSÃO...............................................................................................................

4.1 Notícia, parte da memória.......................................................................................

4.2 A notícia e a existência do tempo............................................................................

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................

ANEXO A.........................................................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa toma a notícia como objeto de investigação. Dentro de um universo

noticioso que permeia e atua de forma contundente na sociedade ocidental, pretende-se

discutir a existência de uma interferência das notícias audiovisuais na percepção humana do

tempo. As notícias consideradas são aquelas apresentadas em telejornais diários de emissoras

de televisão aberta brasileiras. As particularidades e os temas específicos da notícia em si

fogem, entretanto, ao escopo deste trabalho. Os acontecimentos que a notícia relata e

transmite, assim como o modo como o faz, com sobriedade ou exaspero, conjuntamente às

opções editoriais e políticas das instituições emissoras, constituem elemento secundário para

esta investigação. Aquilo que a este trabalho interessa está, ou pode estar, acredita-se, presente

em qualquer notícia de televisão, independentemente do que trate e de como trate1. Fala-se da

relação das notícias audiovisuais com o tempo, e de como o tempo é expresso e manejado por

elas. Igualmente, busca-se discutir não os exíguos minutos que costumam durar cada uma

delas – mesmo que essa breve duração, quando reunidas as notícias para compor um telejornal

diário, converta-se em item concernente ao debate aqui proposto. O conteúdo de cada notícia

é considerado na maneira como lida com o tempo durante o processo de relatar a história ali

contida. Assim, o efeito do fluxo noticioso contemporâneo sobre a percepção do indivíduo é o

que intriga e motiva esta investigaçâo.

1.1 A relação notícia-tempo-indivíduo

Detentores de uma linguagem própria e do poder de manifestá-la, os organismos

midiáticos audiovisuais possuem condições de definir suas próprias escalas temporais.

Bastante mutáveis e eventualmente nada similares entre si, tais formas de delimitar intervalos

de tempo interagem com as linhas do tempo internas de cada um de nós. Tem-se em conta

mais que o corriqueiro anunciar de eventos esportivos e culturais ou de novas atrações,

sempre a coroar datas em nosso calendário. O intuito deste trabalho é avaliar o papel do jorro

noticioso naquilo que entendemos como passagem do tempo, examinando a participação da

notícia em nossa contínua e subjetiva construção do passado, com sua respectiva ação sobre o

1 Considera-se indiferente, para a presente discussão, se a notícia audiovisual é assistida, alternativamente, em

um computador ou em um telefone celular.

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presente e, por conseguinte, sobre o futuro. Interdisciplinar em sua gênese, a reflexão proposta

é voltada para três pontos da relação notícia-indivíduo, a saber, (i) o modo de delimitação e

consolidação do tempo pela notícia; (ii) o modo como oscila – avança e recua, acelera e atrasa

– o tempo da notícia; e, por fim, (iii) a eventual descontinuidade entre o tempo da notícia

audiovisual e o tempo subjetivo do indivíduo. Através desse procedimento metodológico,

espera-se tecer considerações que permitam uma aproximação à questão fundamental desta

pesquisa, a qual pode ser expressa como qual a interferência – ou o grau de interferência –

do fluxo noticioso contemporâneo na percepção humana do tempo?

Diante da combinação de elementos aparentemente segmentados que a questão

apresenta, fruto já de sua concepção originalmente interdisciplinar, considera-se necessário

abordá-la de maneira a conciliar os termos – oriundos de áreas científicas distintas – que a

compõe. Para isso, a investigação se vale da ontologia como conduzida por Mario Bunge:

“Perspectivas ontológicas (ou metafísicas) são respostas para questões ontológicas. E questões

ontológicas (ou metafísicas) são questões com um alcance extremamente amplo” (1977, p. 1).

Mesmo sem a pretensão de vasculhar toda a variedade de aspectos concernentes a eventuais

interferências que o fluxo noticioso audiovisual a nos envolver possa ter em nossa percepção

da passagem do tempo, acredita-se que a pergunta inicial deste trabalho condiz com uma

adjetivação a defini-la como ampla, geral – ontológica, portanto. É a partir da correlação entre

alguns dos elementos que se considera mais relevantes neste processo perceptivo que se busca

formular reflexões a respeito de sua natureza.

Tem-se como premissa que das notícias televisivas emerge mais que o saber de fatos

não fisicamente presenciados, tenham eles acontecido muito perto ou muito longe. Uma

informação não necessariamente explícita ou central é, conforme se tentará indicar,

contiguamente trazida pela notícia: informação secundária ou até mesmo subliminar a definir

intervalos temporais referentes ao acontecimento e à narrativa do acontecimento. Em outras

palavras, uma gestão externa do tempo atinge continuamente o tempo interno do sujeito

espectador, podendo, assim, uma nova relação se estabelecer para o indivíduo: uma relação,

antes inexistente, do espectador e de sua memória com a temporalidade do fato como narrado

pela notícia audiovisual. Constitui essa nova aliança um novo vínculo temporal entre o sujeito

e aquilo que ele acaba de se dar a conhecer.

Logo, é no entrelaçamento notícia-tempo-indivíduo que se encontra o foco da

presente discussão. A notícia audiovisual inevitavelmente exibe, embutida nela que está, uma

temporalidade própria. Mais que estarmos a conhecer algo que não vivenciamos, aquilo que é

transmitido nos é muitas vezes apresentado em uma ordenação temporal alheia, quiçá

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discreprante, de nosso tempo subjetivo e imediatamente circundante. Tanto na velocidade da

narrativa em si (lenta, rápida), como no relacionar do fato descrito com outros eventos

(passados ou futuros, similares ou antagônicos). E essa é uma lida com o tempo, uma vez que

a ela nos submetemos, sobre a qual não temos controle.

1.2 A notícia perante Bergson

O pensamento de Henri Bergson acerca da maneira como assentamos nossas

recordações – em intervalos lineares e temporalmente fixos na memória – é o ponto de partida

para esses questionamentos. As notícias não aparentam estar desconectadas de uma conduta

linear e retrospectiva, e seria uma surpresa se o estivessem, produto eminentemente humano

que são. Além de lidar com a representação de fatos passados, fazem-no através de uma

compreensão espacial e unidimensional do tempo. A notícia é uma representação de fatos

elaborada sobre uma representação do tempo, continuamente recriando e reforçando a lógica

humana linear de retrospecção. De acordo com Bergson, existe na mente humana algo que

chega a ser uma confusão entre espaço e tempo. Tal desalinho, para o filósofo, é em grande

parte devido à linguagem, manifestando-se no fato de que a “duração é sempre expressa em

termos de extensão; os termos que designam tempo são emprestados da linguagem de espaço”

(1968, p. 13). As palavras que usamos para contar o tempo retratam medidas espaciais e

lineares, como se o tempo efetivamente corresse sobre uma linha, talvez semelhante àquelas

que periodicamente traçamos e as quais imaginamos, ilusioriamente, darem-nos algum

controle sobre aquilo que retratam.

Neste cenário, mesmo que composta por palavras e imagens, a notícia audiovisual

tem na linguagem verbal sua maior ferramenta, ainda muito semelhante a uma estética

radiofônica. A imagem pode ser seu maior alicerce, mas, sem a coadnução de uma descrição

oral, seria provavelmente insuficiente como elemento transmissor primordial da informação

noticiosa, ao menos no formato a que estamos habituados. As exceções, se é que existem,

dificilmente prescindiriam de alguma intervenção falada, por menor que fosse, como uma

simples frase dita por um locutor a anunciar a imagem que estaria por vir. Desse modo, a

análise é prioritariamente conduzida a partir da linguagem verbal, mantendo-se sempre à tona,

entretanto, a indelével importância das imagens na consolidação das relações temporais

lineares expressas pela notícia audiovisual.

Concomitamente, é interessante observar que o entendimento de Bergson sobre a

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maneira como constituímos nossa memória – dispondo instantâneos de nossas lembranças

(como fotografias daquilo que vivemos) sobre nossa linha do tempo interna e individual –

apresenta consonância com a compreensão alcançada pela neurociência a respeito do

funcionamento cerebral. O cérebro lida de forma linear com os estímulos que recebe, sejam

eles externos ou provenientes do corpo. A mente apresentar semelhante linearidade é bastante

razoável. Há coerência em nossa memória distribuir linearmente as recordações que guarda.

Mais ainda, é precisamente a partir da percepção de um ordenamento sequencial entre eventos

que a noção de tempo surge na consciência humana. A mente consciente, fruto de uma

atividade cerebral que é, ao que tudo indica, linear, reconhece a existência de uma sucessão

igualmente linear de acontecimentos a configurar um antes e um depois. A evolução do

mundo em que estamos inseridos, e no qual temos a consciência de estar, manifesta-se para

nós através de eventos consecutivos. É dessa continuidade que floresce na mente humana o

conceito de tempo. E essa sequência de fatos e momentos, quando por um de nós vivenciada,

é assim também armazenada, de uma forma linear e unidimensional, em nossa memória.

Memória essa fundamental para nossa permanência e desenvolvimento como indivíduos e

como espécie; em suma, essencial a nossa autonomia diante de um tempo que passa sem

cessar, ou diante de nossa passagem sem cessar pelo tempo da vida neste universo.

1.3 Hipótese

A reunião de pensamentos advindos de estudos dedicados a diferentes ciências,

brevemente apresentada acima, constitui o cerne desta pesquisa. A discussão aqui

desenvolvida o é dentro de uma perspectiva que tem na ontologia seu referencial primeiro e

fundamental, a qual se ambiciona seguir a partir do entendimento de que “uma das vantagens

da prática ontológica é que, ao lidarmos com traços muito gerais de coisas, podemos utilizar

os mesmos para fazer comparações e conexões inter e transdisciplinares” (VIEIRA, 2008, p.

26). Da mesma forma, é igualmente também a partir de uma perspectiva interdisciplinar que

está elaborada a hipótese deste trabalho, exposta abaixo e cujos termos buscam congregar

elementos concernentes ao referencial teórico como um todo, dentro de uma abordagem

sistêmica.

Assim, por mais que os fluxos noticiosos operem sob uma lógica de retrospecção

linear, que é portanto similar a do indivíduo, isso não garante que a capacidade de

processamento da mente humana seja condizente com o volume de informações transmitido e

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tornado disponível pelos meios de comunicação. A processualidade interna e biológica do

sujeito talvez não esteja preparada para lidar com as variadas e diversas escalas temporais

oferecidas ininterruptamente pelas notícias. Portanto, a hipótese cuja coerência se investiga é

assim formulada: o fluxo noticioso contemporâneo, ao interagir com as paradas virtuais do

tempo de recordação subjetivo do indivíduo, pode alterar sua memória, interferindo em sua

autonomia.

1.4 Descrição dos capítulos

A notícia nos transmite informações que amplamente definem o espaço que

ocupamos e o tempo em que vivemos. O que pode reivindicar uma sociedade cuja maioria

parece delegar a outros o controle cotidiano do seu tempo passado, presente e futuro? As

particulares paradas virtuais de nossa recordação individual, únicas e instrospectivas e através

das quais contamos e recontamos nosso próprio tempo, talvez não mais nos pertençam. Se

alterada a memória, repertório de informações que construímos e carregamos para

posicionarmo-nos ante o mundo, pode redundar também alterada nossa autonomia.

A prática ontológica aparenta ser apropriada ao desenvolvimento desta discussão, ao

indicar, conforme Bunge, o reconhecimento, a análise e a inter-relação “dos principais traços

do mundo real como conhecido através da ciência”, permitindo que se produza “um retrato

unificado da realidade” (1977, p. 5). Afinal, de acordo com o autor, toda questão científica é

derivada da questão primeira da ontologia, que inquire, simplesmente, como é o mundo.

Inicia-se o referencial teórico com uma apresentação dos termos da hipótese que

requerem uma definição mais aprofundada: tempo, interferência das notícias e memória. A

diversidade entre tais elementos leva à referida abordagem ontológica, conduzida a partir de

uma realidade sistêmica onde parâmetros como permanência, ambiente e autonomia são

definidos, para a posterior apresentação da função memória, fundamental para este trabalho.

Segue-se com a apresentação do tempo como o compreendemos e apreendemos,

linearmente. A contraposição entre o tempo irreversível da fenomenologia e o tempo

reversível da física clássica é mencionada, com o entendimento de que o tempo irreversível

deve estar em todos os níveis da matéria, para depois referir-se o surgimento do conceito de

tempo a partir da percepção humana primordial de uma sequência entre eventos. A partir

disso, considera-se que a notícia é também um evento no tempo, a ocupar a íntegra do

intervalo de tempo que durar (o que não impede que outras coisas aconteçam

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concomitantemente). Apresenta-se ainda a noção de colapso relacional, segundo a qual depois

que duas quaisquer coisas internalizam uma relação, isso não pode mais ser desfeito – sendo

que essa internalização, por sua vez, indica o sentido do fluir do tempo.

A parte final do referencial teórico aprecia o entendimento de Bergson acerca de

como armazenamos nossas recordações – em intervalos linearmente fixos na memória –, mas

não sem ressaltar a imprecisão do filósofo acerca da localização da memória fora do corpo.

Seu pensamento é colocado à contraluz de estudos mais recentes provindos da neurociência, e

nessa contraposição se encontrará uma peculiar similaridade acerca da função da memória,

redundando numa melhor compreensão de por que possuímos uma mente que lida com o

tempo – e não só com o tempo – de forma linear.

A metodologia apresenta a análise da íntegra de um telejornal, em busca de

referências temporais e do manejo do tempo por parte das notícias. Quando somos então

conduzidos à conclusão e a considerações finais sobre a participação das noticias e dos meios

de comunicação em nossa percepção da passagem do tempo, em plena concordância com

Mario Bunge em sua ponderação de que “quanto mais chegamos a saber, mais questões

podemos lançar, e menos finais nossas soluções provam ser” (1977, p. 2, tradução nossa).

16

2 REFERENCIAL TEÓRICO

O impulso para refletir sobre tempo e memória surge do interesse em observar a

interferência, ou o grau de interferência, do vertiginoso fluxo noticioso destas primeiras

décadas do século XXI em nossa percepção da passagem do tempo. A abordagem que se

considera apropriada é calcada na interdisciplinaridade, permitindo relacionar, de forma

coerente, conceitos oriundos de campos científicos distintos – contudo, complementares. As

notícias exibidas em telejornais diários de emissoras de televisão aberta brasileiras constituem

o substrato de onde será selecionada a amostra da pesquisa.

Estende-se, como pano de fundo, o pensamento de que o consumo e a exposição aos

meios noticiosos, por parte dos espectadores, é componente fundamental da organização da

sociedade. A relação que se considera haver entre órgão emissor e sujeito receptor de notícias

não é, entretanto, igualitária. Acredita-se na existência de uma forma de precedência

(BUNGE, 1979, p. 250) entre aquele que se propõe a prover informação e aquele que a

consome. Ao assistir a um telejornal ou a uma única notícia separadamente, o sujeito adquire

alguma informação (qualquer que seja, mesmo um novo relato de algo que já conhecia) que

antes não possuía. Por mais que detenha o alardeado poder de trocar de canal ou de desligar o

aparelho televisor (ou algum artefato tecnológico que o substitua), o indivíduo é o polo

subsequente – e menos potente – nessa relação.

Desde sua gênese impressa nos séculos XV e XVI, e mesmo antes de sua

consolidação, ainda no início do século XVII, no formato em que as consumimos hoje, as

notícias têm sido instrumento imperioso em nosso conhecer de um mundo próximo e distante

(HABERMAS, 1989; THOMPSON, 1995). Igualmente, os entes que as emitem são atores de

um processo que flui dentro da integralidade do ambiente socioeconômico em que vivemos.

Thompson observa que os meios de comunicação, quaisquer que sejam, ao prescindir da

materialidade da presença física, geram algo distinto dos encontros da vida cotidiana:

De um modo fundamental, o uso de meios de comunicação transforma a

organização espacial e temporal da vida social, criando novas formas de ação

e interação, e novos modos de exercício do poder, os quais não estão mais

vinculados ao compartilhamento de um local comum (1995, p. 4, tradução

nossa).

Mais ainda, a participação dos meios de comunicação na sociedade não se restringe à

esfera individual e doméstica do sujeito. Inexiste vida pública e conjunta eximida da

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participação dos órgãos comunicativos. Por notório que seja, as notícias audiovisuais e seus

emissores adquiriram uma participação que abrange a totalidade da vida do indivíduo e da

sociedade, tanto local como globalmente, e é desse modo que essa investigação as considera.

O fluxo noticioso é a célere e afiada extremidade do polo mais forte de uma coexistência

emissor-receptor em que o tempo é um só para todos – ao contrário, ao que tudo indica, do

poder de contá-lo.

2.1 Abordagem ontológica

A qualidade interdisciplinar está no âmago da discussão aqui proposta, revelando-se

já nos termos que exprimem seu objetivo primordial: discutir a eventual interferência do fluxo

noticioso em nossa percepção da passagem do tempo. A começar pela busca de uma definição

de (1) o que é o tempo e de como se poderia retratar e atestar sua passagem. Será o tempo que

passa, ou seremos nós que passamos no tempo? Do mesmo modo, (2) como estimar a

interferência das notícias em um único indivíduo, considerando o substancial – senão pleno –

grau de subjetividade envolvido nessa relação? E mais: que tipo, qual forma de interferência?

A própria noção de um intenso fluxo noticioso poderia ser questionada, uma vez que a

intensidade da exposição ao – assim considerado – contínuo jorro informativo contemporâneo

igualmente depende, ou deveria depender, em larga medida, do sujeito espectador. Além

disso, há diversas alternativas possíveis para se definir e abordar (3) percepção e memória,

atributos humanos sem os quais as questöes aqui apresentadas inexistiriam.

É fato que a reunião de elementos variados possa concorrer para um menos profundo

esmiuçar de suas características, ao contrário daquele encontrado em estudos restritos pela

especificidade. Por outro lado, e mais importante para a presente pesquisa, o percorrer de

rotas interdisciplinares deve viabilizar uma compreensão como um todo da relação notícia-

tempo-indivíduo. A fundamentação teórica que se propõe almeja, portanto, o geral e o

completo:

A complexidade exige que possamos entender e modelar a interação entre

coisas e processos de naturezas muitas vezes bem diversas, sob pena de não

captação do que há de fundamental nesses sistemas (VIEIRA, 2008, p. 25).

Trabalha-se com uma visão que engloba os diferentes componentes da interação

entre um tempo gerido externamente e o tempo interno do indivíduo. É de uma abordagem

18

ontológica que se está a falar, a permitir, conforme Vieira, uma maior clareza no entendimento

de conceitos como, entre outros, tempo e processo, essenciais para a presente discussão. A

ontologia possibilita a “comparação entre objetos de ciências específicas nas tentativas inter e

transdisciplinares”, uma necessidade “flagrante nas ciências da complexidade” (ibid). A

presente investigação é efetivamente uma tentativa interdisciplinar que busca, ao congregar

ciências distintas, encontrar pontos de convergência que colaborem para ilustrar – como um

todo – o modo como o sujeito espectador percebe o tempo na forma em que é manejado pelas

notícias. O enfoque ontológico proporciona abordar a questão de maneira condizente com seu

entrelaçamento com a plenitude tanto do ambiente como do indivíduo, cotidiano em que o

processo humano de apreensão do tempo das notícias se dá sem separações a determinar os

limites de aplicabilidade de uma ciência em detrimento de outra. Busca-se, em suma, a prática

de uma ontologia científica, conforme apresentada por Bunge:

Se isso é assim então não é preciso haver qualquer hostilidade entre ciência e

metafísica (científica). Não há sequer uma lacuna, menos ainda um abismo,

entre elas: a ontologia é ciência geral e as ciências factuais são metafísica

específica. Em outras palavras, ambas ciência e ontologia investigam a

natureza das coisas, mas, enquanto a ciência o faz em detalhe e assim produz

teorias abertas a escrutínio empírico, a metafísica é extremamente geral e

pode somente ser verificada por sua coerência com a ciência (1977, p. 16,

grifo no original, tradução nossa).

Desse modo, é fundamental que a reunião de correntes científicas e filosóficas não

necessariamente similares aqui aplicada o seja de forma coerente, abordando e clarificando a

relação notícia-tempo-indivíduo como um todo. Cabe ressaltar que Bunge trata ontologia e

metafísica quase como sinônimos, levando Vieira a ponderar que:

[...] “embora a rigor haja diferenças entra as duas áreas, é nesse sentido que

estaremos adotando aqui uma certa identificação entre uma „Teoria da

Realidade‟ (Metafísica) com uma „Teoria do Ser ou dos Objetos‟

(Ontologia). Mais ainda, toda ciência será uma Ontologia Regional, na

medida em trabalha com tipos de objetos específicos” (2008, p. 22).

Em consonância com os dois autores imediatamente acima citados, este trabalho se

desenvolve através da combinação de ontologias regionais (ciências específicas), no intuito de

estabelecer um recorte do mundo real e analisá-lo a partir do conhecimento científico

disponível, produzindo, assim, um retrato condizente e coeso da realidade (BUNGE, 1977, p.

5; VIEIRA, 2008, p. 22-3). Antes, entretanto, de examinar a percepção que podemos ter da

passagem do tempo segundo a cronologia apresentada pelas notícias, é apropriado expor e

19

delimitar os conceitos científicos e os parâmetros ontológicos utilizados na análise do

processo aqui investigado.

2.1.1 Realidade sistêmica

Colocadas lado a lado, diferentes interpretações da realidade podem colaborar para o

entendimento da relação notícia-tempo-indivíduo da maneira como esta se apresenta na

realidade: integrada ao cotidiano do sujeito e, no que tange às possíveis consequências da

imersão do indivíduo nesse universo noticioso, sem separação formal entre o que concerne a

este ou àquele campo científico. A existência de um cenário – qualquer que seja – e de um

período de tempo em que um indivíduo dedica sua atenção às notícias audiovisuais é tomada

como real. Vieira ressalta, entretanto, que “admitir uma realidade implica a necessidade de

hipóteses ontológicas sobre a mesma” (2008, p. 24). Para o autor, em consonância com

Bunge, essas hipóteses podem ser expressas como a realidade é sistêmica, complexa e

legaliforme (obedece a leis). Assim, dentro de uma ontologia científica a nos auxiliar na

investigação de uma realidade sistêmica e complexa, congregamos também com Bunge na

concepção de que todas as coisas interagem com pelo menos alguma outra coisa, constituindo

sistemas:

Um sistema, então, é um objeto complexo, cujos componentes são mais inter-

relacionados do que livres. Se os componentes são conceituais, o sistema também o

é; se eles são concretos ou materiais, então eles constituem um sistema concreto ou

material. (1979, p. 4, tradução nossa).

Independentemente se conceitual ou concreto, um sistema possui ainda, segundo o

autor, uma composição, um ambiente e uma estrutura bem definidos. A composição é

basicamente aquilo que o compõe, enquanto a estrutura é a relação entre esses componentes e

também destes com o ambiente em que o sistema se insere. “O ambiente deve ser incluído na

descrição de um sistema porque seu comportamento depende criticamente da natureza do seu

meio” (BUNGE, 1979, p. 5). Entre sistema e ambiente há mais que uma mera relação – há

uma conexão. Permanente ou não, dinâmica ou não, a existência de uma conexão entre duas

coisas requer que pelo menos uma delas aja sobre a outra, e o mesmo vale para um sistema e

seu ambiente (sendo que o ambiente pode ser também caracterizado como um sistema).

Assim, conforme Bunge, o ambiente de qualquer sistema (em determinado instante no tempo)

20

é o conjunto de todas as coisas não pertencentes ao sistema, mas que agem sobre ele ou

sofrem alguma ação exercida por ele sobre elas. Já o sistema que tampouco agir ou sofrer

ação alguma por parte de outra coisa é tido como um sistema fechado, sendo que,

efetivamente, o único sistema sempre fechado é o universo (BUNGE, 1979, p. 6-9).

Igualmente tomando a realidade como formada por sistemas abertos, Vieira amplia a

conceituação de sistema apresentando, em paralelo a Bunge, a definição seguida por Avanir

Uyemov, segundo a qual um agregado de coisas será um sistema quando, além de interagirem,

tais elementos “venham a partilhar propriedades” (VIEIRA, 2008, p. 29-30). Conforme

observado por Vieira, entretanto, a definição de Uyemov exibe uma limitação ao deixar de

explicitar a existência de um sistema ambiente (como referido por Bunge) a envolver qualquer

outro sistema. A referência a este sistema envoltório é necessária porque todos os sistemas –

exceto o universo – são sempre abertos em algum nível. Apesar desta pequena discrepância,

ambas definições de sistema são, para Vieira, compatíveis. Assim, uma vez que não são

conflitantes, serão mantidas à tona. Ainda mais significativos, contudo, são os parâmetros

sistêmicos relacionados por Vieira, a alguns dos quais é necessário dedicar pormenorizada

atenção.

2.1.2 Parâmetros sistêmicos

Parâmetros sistêmicos são características comuns a todo e qualquer sistema,

presentes à revelia da natureza e das particularidades de cada um. Seguem-se aqui as

definições conforme apresentadas por Vieira (2008, p. 31-42). Desse modo, são duas as

classes de parâmetros sistêmicos: os básicos ou fundamentais, existentes em todo e qualquer

sistema em qualquer momento de sua história; e os evolutivos, que podem surgir ao longo da

história e da evolução de qualquer sistema, mas não necessariamente em todos os sistemas.

Pela relevância que possuem para o desenvolvimento desta pesquisa, sendo através deles que

se chegará a uma primeira noção do que pode ser uma ideia de passagem do tempo, cabe

observar em mais detalhe os parâmetros básicos ou fundamentais – que vem a ser

permanência, ambiente (este, já citado, mesmo que ainda não especificamente como

parâmetro sistêmico) e autonomia.

Aparentemente o mais fundamental dentre os três, a permanência remete a algo que

todas as coisas buscam a partir do momento em que passam a existir: simplesmente,

permanecer. À primeira vista e instintivamente mais associada aos seres vivos

21

(contraditoriamente, talvez aqueles que mais facilmente pereçam), a permanência é algo

buscado por todos os entes da realidade, sejam eles produtos da natureza ou criação humana

(meios de comunicação inclusos). Distinta, mesmo que não apartada da ideia de

sobrevivência, a permanência é a duração no tempo de quaisquer objetos, inclusive os

anteriores ao surgimento da vida ou que prescindem dela como a conhecemos. O saber

científico atual permite concluir, pondera Vieira, expandindo a reflexão para o âmbito da

cosmologia e do universo (único sistema sempre fechado em todos os níveis), que a

permanência dos sistemas nele contidos (ou seja, tudo que existe) nada mais é que uma

estratégia encontrada pelo próprio universo para garantir sua própria permanência.

Para que a evolução universal prossiga a contento, é preciso que os sistemas contidos

no universo sejam abertos, possibilitando a troca de matéria, energia e informação com outros

sistemas. O mais proximamente imediato, indica Vieira, costuma ser o ambiente, segundo

parâmetro sistêmico básico ou fundamental. É no sistema ambiente que se acumulam os

estoques necessários para garantir os processos de permanência. O universo, em última

instância, é o ambiente de todas as coisas e de todos os sistemas – mas alguma proximidade é

requerida para que trocas efetivas aconteçam. Nesse sentido, Bunge faz observação relevante

ao ressaltar que, com exceção da astronomia e da cosmologia, a atenção se localiza “não nas

transações de um um sistema com o resto do universo, mas somente naquela porção do

mundo que exerce uma influência significativa sobre a coisa de interesse” (1979, p. 9,

tradução nossa). Um sistema aberto, portanto, encontra nas trocas com seu ambiente imediato

os elementos (de conhecimento, inclusive, como também culturais e emocionais) necessários

a sua permanência.

Por fim, a autonomia, diretamente ligada aos estoques referidos acima, armazenados

pelos sistemas ao longo do tempo através de trocas com o ambiente. Espécie de

internalizações a colaborar para a permanência do sistema, os estoques (de informações, de

energia, etc.) garantem a autonomia. Além disso, prossegue Vieira, o estoque informativo, ao

participar do processo evolutivo de um sistema, adquire uma qualidade histórica, originando o

que Bunge designa como uma função memória. Antes de nela concentrar esforços, cabe

concisamente mencionar que os três parâmetros sistêmicos fundamentais – permanência,

ambiente e autonomia – atuam em conjunto: a permanência sendo viável no ambiente através

do qual se elabora a autonomia, que, por sua vez, constitui-se, conforme explicitado por

Vieira, em memória ou hábito.

Dirigindo agora a atenção para a função memória, é através dela que uma proposta

de abordagem para aquilo que entendemos – ou consideramos entender – como passagem do

22

tempo será, enfim, trazida à investigação.

2.1.3 Função memória

Considerar-se-á uma conceituação geral da função memória, aplicável a qualquer

sistema, sempre tendo em mente o caráter fundamental da memória (conjunto de estoques)

para a autonomia e para a permanência de, igualmente, qualquer sistema:

Uma função memória conecta o sistema presente ao seu passado,

possibilitando possíveis futuros. Em sistemas de baixa complexidade, a

memória é simples (...), mas em sistemas complexos ela pode surgir

exatamente com o significado a que estamos habituados, como na memória

de um ser humano, um complexo processo cerebral e celular (VIEIRA,

2008, p. 35).

Além disso, a relação de uma coisa ou de um sistema com seu passado surge,

segundo Bunge, quando o estado da coisa ou do sistema, em sua evolução, deixa de depender

apenas da fase atual de um qualquer processo, passando a depender também de um ou de

alguns estados anteriores (1977, p. 247). Essa operação do passado sobre o presente constitui

a função memória. De maneira correlata e subsequente, é possível designar a ação da função

memória M sobre um determinado estado E do sistema no tempo t. Sendo esse estado

denotado por E(t),:

[...] este estado é o resultado da elaboração de estados passados E(t–τ) por

meio da memória M, ou seja, E(t) = E(t – τ) * M(τ), tal que * indica uma

operação executada por M sobre o estados passados. (...) Podemos pois

conceber a ideia de memória como a de uma transformação interna ao

sistema, na evolução de seus estados no tempo (SANTAELLA e VIEIRA,

2008, p. 87).

Sendo ainda a função memória diretamente ligada à autonomia de um sistema,

considera-se coerente o entendimento de que a memória, além de armazenar o estoque de

informações necessário à permanência de um sistema, representa também o histórico de suas

transformações ao longo da passagem do tempo. Transformações essas que são também

produto das trocas ocorridas entre um sistema e seu ambiente. De acordo com Santaella e

Vieira, “a continuada interação sistema/ambiente altera os dois, criando processos e

transformações irreversíveis ao longo do tempo” (2008, p. 83). Quando uma alteração dessa

23

natureza ocorre é chamada de internalização da relação. Por fim, considerando que a

definição ontológica da função memória é condizente com o entendimento de memória para o

senso comum, a definição será útil na tentativa de quantificação dos efeitos, sobre o sujeito, da

internalização de relações temporais que se considera alheias ao ritmo – quiçá à capacidade –

de processamento mental do indivíduo espectador.

Mais que a antiga e recorrente mera impressão de um relógio a correr mais rápido, a

percepção atual da passagem do tempo pode efetivamente não ser a mesma que tiveram os

anteriores a nós, desprovidos que eram da possibilidade de se colocar diante de uma tela

incessantemente a prover estímulos audiovisuais dotados de uma cronologia própria e

estranha ao alternar do que é dia e noite. Para levar a termo, e de forma apropriada, tal

discussão, faz-se necessário elaborar algumas considerações acerca do conceito de tempo.

2.2 O conceito de tempo

O trabalho aqui desenvolvido tem na vida cotidiana seu ponto de partida e seu

ambiente de investigação. Leva em conta aspectos da relação indivíduo-notícia como essa se

dá no dia-a-dia dos sujeitos. Ao se falar em tempo e na interferência que o fluxo noticioso

possa representar na percepção de sua passagem, busca-se coerência com o tempo como

habitualmente o percebemos. Em outras palavras, conforme Vieira (2008), uma abordagem

realizada através de uma perspectiva objetiva, realista e crítica: a realidade existe, é sistêmica,

complexa e obedece a leis (sendo organizada, não caótica). Imersos na rotina deste cenário,

comungamos no leigo entendimento – advindo do corriqueiro virar dos dias – de que o tempo

passa. Mesmo assim, talvez não haja uniformidade naquilo que tal percepção representa, por

generalizada e eminentemente humana que seja. Para um determinado sujeito, o tempo que

leva para determinada coisa acontecer pode parecer mais tempo do que para outro, mesmo que

este tempo seja o mesmo. Pode igualmente levar mais tempo, e ainda assim parecer menos.

Alguns dias se arrastam; outros, costumeiramente os mais memoráveis, só se percebe que

passaram quando de fato já se foram.

Da mesma forma, dentro da complexidade de uma realidade sistêmica, a que leis

obedece o tempo, se é que o faz? Será pouco provável a viabilidade de alguma vez

constrangê-lo a seguir qualquer regra, humana e artificialmente determinada. Por mais que

possamos sentir seus efeitos, de alguma forma (mesmo que falha) contá-lo e estimar com

precisão quanto tempo leva para algo acontecer, independentemente de quaisquer

24

subjetividades, o tempo inexiste como objeto tangível: dependemos dele e sentimos seus

efeitos, mas ele continua inacessível e fora de nós. Ao percebermos a etérea e indelével

presença do tempo, com suas inevitáveis consequências, criamos representações que

possibilitem, de alguma forma (novamente, mesmo que falha) lidar com ele. Em face da

inviabilidade de apreendê-lo e confiná-lo, elaboramos interpretações que deem uma forma e

um sentido ao tempo – tanto um sentido físico e fenomenológico, de onde vem e para onde

vai, quanto um sentido ontológico, o que é o tempo para o homem.

2.2.1 O medir linear do tempo

O tempo, entretanto, não parece possuir qualquer verdadeira trajetória, uma vez que a

existência dessa pressuporia um deslocamento no espaço. Mas é precisamente através de uma

ideia – mesmo que enganosa – de trajetória temporal que lidamos com o tempo. Tal

compreensão funciona diante das demandas, inclusive as de sobrevivência e permanência, do

mundo macroscópico e consciente dos humanos. Parte considerável da ciência, notadamente a

Física e os avanços dela advindos com as descobertas de Newton e Einstein, baseia-se

também em uma noção de medida espacial do tempo.

Por descaracterizada que seja, a prática científica de tomar o tempo como se palpável

fosse é condizente com a realidade cotidiana. A imagem temporal resultante, entretanto, deixa

de lado aquilo que constitui a essência do tempo – a duração. A observação é do francês

Henry Bergson, cujos pensamentos são a inspiração primeira e fundamental desta

investigação. Conforme reflexão elaborada pelo filósofo ainda nas primeiras décadas do

século XX, contemporâneo de Einstein que foi, o medir da duração é efetuado através de

uma linha, que passa a espelhar o tempo. Na visão de Bergson, esse modo de medir

“contrasta radicalmente com todos os outros processos de medida”, por eliminar da

representação exatamente aquilo que deseja representar. A linha traçada e medida, enfatiza

Bergson, é imóvel – enquanto o tempo é mobilidade:

O medir do tempo nunca lida com a duração como duração; o que é contado

é somente um certo número de extremidades de intervalos, ou momentos, em

suma, paradas virtuais no tempo (1968, p. 11, grifo no original, tradução

nossa).

25

As notícias, objeto da presente discussão, retratam eventos passados e,

eventualmente, tentam contemplar os futuros. Ao reproduzir o quando dos fatos que reconta e

prediz (através de datas, horários), uma notícia trabalha com delimitações temporais que, se

alinhadas às paradas virtuais no tempo descritas por Bergson, a elas parecem se assemelhar. O

intervalo temporal pode não estar explicitamente contado ou medido (tantos anos, algumas

horas...), ou nem mesmo ser o mote principal do que é ali contado, mas o lidar noticioso com

o tempo se dá através de momentos fixos cronologicamente. A duração do fato original, ao ser

narrado pela notícia, está dela excluída, dando origem a outro fato ou evento, a notícia em si,

com sua própria duração.

Bergson (1968), no entanto, vai além e chega a dizer que o tempo não só é o que está

acontecendo, como leva tudo a acontecer. Essa consideração remete à “ideia de um tempo

universal defendida por Bergson”, conforme comentam Prigogine e Stengers (1992, p. 197)

ao citarem o debate havido entre Bergson e Einstein – que o filósofo teria perdido, por um

erro na interpretação de parte das teorias da relatividade de Einstein. Para a reflexão aqui

estruturada, a relevância deste paralelo está naquilo que os autores consideram ser uma

característica que seu trabalho compartilha com o de Bergson: a visão de que “o ponto de

partida de qualquer pensamento que busque a realidade deve ser nossa experiência mais

íntima” (Prigogine e Stengers, p. 15). Os autores partem dessa concepção para propor uma

inversão aos procedimentos da física tradicional. Veja-se.

2.2.2 Tempo irreversível, tempo primordial

Dito de forma bastante breve, o tempo para a física clássica é uma grandeza como

outra qualquer e, assim, a partir do estabelecido pelas equações da dinâmica, possuiria um

caráter que não entraria em desacordo com uma crença em sua reversibilidade. A percepção

da passagem do tempo, aludida parágrafos acima como pertinente à vida cotidiana e

condizente com a realidade, seria, conforme ressaltado por Prigogine e Stengers (contrários a

esse entendimento que são), nada mais que “derivada relativamente às leis fundamentais da

física” (1992, p. 6). Existiria um tempo reversível, de tal forma que os eventuais processos

irreversíveis da natureza seriam particularidades de um tempo a ser, para nós, inacessível.

Em absoluto desacordo com tal enfoque, Prigogine e Stengers propõem que se

inverta o modo de abordagem do pensamento científico. Os processos reversíveis é que

devem ser tomados, defendem ambos, como particularidades de um tempo essencialmente

26

irreversível. O tempo fenomenológico deve abranger o tempo das equações, a flecha do tempo

não deve ser ignorada: “Ou nós chegamos a identificar o tempo irreversível em todos os

níveis, ou então não poderemos compreendê-lo em nenhum lugar” (1992, p. 16). O tempo

cotidiano, em que o leigo e o cientista comungam do mesmo calendário, ampulheta de sentido

único cuja areia não cessa de escorrer, não pode ser apartado do tempo da ciência.

Por outro lado, se Bergson excede ao considerar que o tempo leva tudo a acontecer,

Prigogine e Stengers podem ter também exacerbado ao afirmar, categoricamente, a existência

do tempo como algo, para nós, inatingível. Ao analisar o surgimento do universo a partir de

uma perspectiva fenomenológica, eles estabelecem considerações bastante interessantes

acerca de por que o tempo não apresenta a reversibilidade ainda hoje seguida por

determinadas correntes da física tradicional. Observam os autores que “Einstein permitiu-nos

pensar a unidade indissociável do espaço-tempo e da matéria. No entanto, esta unidade não

significa equivalência”. Na sequência de seu raciocínio, expõem ainda que o tempo que

conhecemos é o tempo de nosso universo, surgido, segundo a ciência, com o Big Bang, mas

que a flecha desse tempo não é criada pelo surgimento do universo e, sim, “atualizada pela

flutuação que desencadeia o nascimento desse Universo. O tempo precede a existência” (p.

167-8, grifo nosso). Por mais válida que seja a intenção de unificar os conceitos de tempo da

ciência e do cotidiano, e reafirmando o vínculo desta pesquisa com o tempo da realidade

diária, da fenomenologia, será que somos providos, como espécie, de efetivas condições de

processamento cerebral e de compreensão consciente para poder afirmar que o tempo, mesmo

que o seja, é anterior a tudo?

Kenneth Denbigh, para quem o tempo deve ser prioritariamente encarado como um

conceito humanamente construído, apresenta concordância com Prigogine e Stengers quando

estes dizem que a unidade inseparável do espaço-tempo e da matéria não significa que sejam

equivalentes. Comenta Denbigh que, por mais que as medidas de intervalos espaciais e

temporais não sejam, conforme Einstein, invariantes (exceto dentro de um único sistema de

referência), “a relatividade não elimina a distinção entre tempo e espaço” (DENBIGH, 1981,

p. 45, tradução nossa). Ao discutir as teorias da relatividade geral e restrita (na qual teria

ocorrido a falha interpretativa por parte de Bergson) e as afirmações de Einstein acerca da

simultaneidade (ou não) de eventos distantes, Denbigh simplifica a questão observando que,

em termos práticos, o único intervalo temporal entre dois eventos que não apresentará

variação – relativa à distância – é aquele atestado por relógios posicionados no exato local

onde ambos eventos acontecem (1981, p. 45). De outro modo, o sistema de referência

interfere em qualquer medida temporal que se faça. Dito de maneira muitíssimo breve, para

27

quaisquer dois eventos, um observador em movimento registraria um intervalo de tempo entre

eles que diferiria daquele mensurado por um observador parado. Mas isso apenas para

grandes intervalos e grandes distâncias. No corriqueiro dia-a-dia, essas diferenças temporais

entre eventos, se existem, são insignificantes e inobserváveis.

Para a intenção presente, acata-se a dificuldade, quiçá a incapacidade, de tratarmos a

duração em termos que lhe sejam genuínos correspondentes. Tempo e espaço, por

indissociáveis que possam ser, não são equivalentes, a tal ponto que:

[...] é um lugar-comum que nós não temos um aparelho sensorial que forneça

conhecimento de relações temporais tanto quanto os sentidos que temos para

prover conhecimento de relações espaciais (DENBIGH, 1981, p. 11,

tradução nossa).

É exibindo este desequilíbrio na habilidade para perceber espaço e tempo que

estamos imersos em um ambiente permeado por notícias produzidas e oferecidas por meios de

comunicação. Empresas públicas ou privadas que, também em busca de permanência, fazem

parte de nosso tempo e de nossa duração – mesmo que lidemos com essa duração sem

estarmos aptos a plenamente representá-la, mais aptos que somos para falar e apreender o

mundo em termos de espaço que de tempo:

Habitualmente, quando falamos de tempo, nós pensamos na medição da

duração, e não na duração em si. Mas essa duração que a ciência elimina, e a

qual é tão difícil de conceber e expressar, é o que se sente e vive

(BERGSON, 1968, p. 12, tradução nossa).

Sentimos e vivemos o tempo acompanhados por empresas que, em legítimo processo

ontológico – o que não é o mesmo que dizer eticamente legítimo –, batalham para

permanecer, assim como todos nós. O lidar dos meios de comunicação com o tempo, em

contínua busca por solidificar sua permanência, atraindo e retendo o telespectador, é parte

desse processo, refletindo-se nos noticiários que apresentam.

2.2.3 O tempo é presente

Demonstrar a presença da flecha do tempo em todos os níveis da matéria, do muito

pequeno ao muito grande, é a tarefa a que se dedicam Prigogine e Stengers na obra “Entre o

Tempo e a Eternidade”. Para os autores, o tempo existe fora e antes de nós, sendo – afirmam –

28

desprovida de vínculo pleno com a realidade uma ciência que ignore o tempo irreversível do

cotidiano e da fenomenologia. Descobertas ocorridas a partir dos anos 1950 levaram, segundo

eles, à “necessidade de ultrapassar a negação do tempo irreversível que constitui a herança

deixada pela física clássica” (1992, p. 13). Com profundidade e detalhamento, sustentam ser

possível – e necessário – encontrar o tempo irreversível em qualquer dimensão da matéria,

tentativa essa em que diversos outros cientistas fracassaram. Notadamente Boltzmann, que

falhou ao tentar explicar a irreversibilidade dos processos termodinâmicos microscópicos

através das leis da dinâmica macroscópica, reino da física clássica em que impera um tempo

tido como reversível. Inadvertidamente, Boltzman fez uso do reversível para tentar explicar o

irreversível.

Para Prigogine e Stengers, como dito, a abordagem deve ser inversa, não havendo

desacordo entre os dois níveis da matéria, o muito grande e o muito pequeno. Se pista falsa

há, está presente no nível macroscópico, cujo estado de equilíbrio obnubila a presença da

flecha do tempo, sempre observável no nível microscópico. Assim, a singularidade deixa de

estar na irreversibilidade e se transfere para os processos teoricamente reversíveis, ponto de

partida e objeto da física clássica e dinâmica, em que a reversão das consequências as

remeteria, supostamente, de volta às causas existentes quando da condição inicial. Essa “nova

coerência”, como a chamam Prigogine e Stengers, promoveria um reencontro com “a

diferença intrínseca entre o passado e o futuro, sem a qual não podemos nem pensar, nem

falar, nem agir” (1992, p. 192). A vida, lugar-comum de que eventualmente nos esquecemos,

dá-se no agora.

O tempo relevante para esta investigação é o do cotidiano, da experiência íntima. Em

duas palavras, o tempo presente – que só existe em nossa consciência porque reconhecemos a

diferença intrínseca entre o que passou e que está por vir. Para Denbigh, a percepção da

existência de uma realidade presente2 precede “qualquer outro conceito temporal” (1981, p.

14, tradução nossa). A ordem temporal que coletivamente adotamos depende

fundamentalmente de uma noção de presente coletivo. Trabalhamos, como espécie e como

sociedade, com um acordo intersubjetivo de coexistência em um mesmo e único presente –

um tempo simultâneo e compartilhado. Sem a consciência primeira de que os eventos a se

ordenarem tenham sido, em algum momento, presentes a todos nós, a construção de uma

sequência temporal coerente seria inviável. Somente com essa condição atendida, afirma

Denbigh, é que pôde emergir a noção de que um evento aconteceu antes ou depois de outro,

2 “Presentness”, no original em inglês.

29

com a subsequente ordenação entre antes e depois, coletivamente acordada, a partir desse

critério.

Fora claramente percebido pelos antigos – embora talvez nunca

explicitamente declarado – que há uma ordem serial única de eventos (isto é,

que o tempo é unidimensional), e isso, é claro, foi a base para o

estabelecimento de um sistema confiável para a datação de eventos através

do uso de calendários e relógios primitivos (1981, p. 12, tradução nossa).

O consenso público acerca de uma ordem entre os acontecimentos, ainda anterior a

qualquer formalização científica, é que teria originado o conceito de tempo que utilizamos. É

igualmente interessante, também conforme Denbigh, que os termos que designam o

surgimento de uma ordem temporal já pressupõem a existência desse ordenamento (1981, p.

13). Palavras como antes e depois fazem sentido graças a um contexto em que eventos se

sucedem continuamente. O mesmo vale para suceder, cedo, tarde, e assim se poderia seguir

citando exemplos que, indefinidamente, remeteriam a uma noção de ordenamento temporal

compartilhado sem o qual essas palavras sequer fariam sentido. Diferença entre antes e depois

que está também presente nas notícias – inclusive se manifestando através delas. Seja pelos

eventos que retratam, originalmente ordenados no tempo coerente e sequencial da realidade

de que são extraídos; seja pelo evento que a própria exibição das notícias vem a ser, elas

também ordenadas em um telejornal a pervadir e alterar o ambiente do indivíduo espectador,

imiscuindo-se no repertório de relações internalizadas pelo sujeito durante a continuidade do

tempo presente que comunga com as noticias.

2.2.4. A notícia é presente

A duração habitual de uma notícia, quando veiculada em meio audiovisual, gira em

torno de um a dois minutos, intervalo que ocupa contiguamente ao sujeito no ambiente em

que estiverem a pessoa e a notícia. A notícia pode estar na sala e não no quarto, mas, onde

estiver, ocupará integralmente aquele tempo. Fará isso, evidentemente, pelo tempo que durar.

A notícia estará presente no tempo do ambiente do indivíduo durante a totalidade de sua

duração. A reflexão acima parte de uma citação indireta feita por Kenneth G. Denbigh em seu

livro Three Concepts of Time:

30

(...) se um corpo existe durante um intervalo temporal (...), ele existe

igualmente durante qualquer parte do intervalo, enquanto uma propriedade

correspondente não se aplica ao espaço, uma vez que se um corpo existe por

todo um volume, somente uma parte do corpo existe em alguma parte do

volume (WHITEHEAD apud DENBIGH, 1981, p. 46, tradução nossa).

Denbigh segue e encontra sucinta clareza ao expressar que a diferença entre tempo e

espaço está presente na própria noção de existência de um corpo. Enquanto um volume ocupa

nada mais que o espaço correspondente a suas dimensões, estará presente na integralidade do

tempo em que existir. Considera-se viável expandir esse raciocínio para um evento. Enquanto

durar, o evento ocupará todo o tempo de sua duracão – o que não impede, a priori, que outros

eventos concomitantes também o façam, em qualquer conjunto de momentos ou mesmo na

integralidade de um mesmo intervalo de tempo. A notícia retrata fatos, eventos. Quando de

sua veiculação, se torna ela também um evento – a preencher, durante determinado intervalo

(exclusivamente ou não), a íntegra do tempo do ambiente aonde aporta sua transmissão.

Assim como os termos que designam o ordenamento temporal já pressupõem a

existência desse, é significativo observar a utilização, ou mesmo a necessidade de utilização,

de verbos que pressupõem a existência de uma dimensionalidade espacial para referir tempo,

como ocupar e existir. Eventual evidência, manifesta na linguagem, de nossa efetiva maior

capacidade de compreender e lidar com o espaço do que com o tempo.

Tempo que compartilhamos com as notícias quando de sua veiculação. Condições

necessárias para tal, é preciso eletricidade, um aparelho receptor que opere a contento e, claro,

que esteja ligado. O que ainda assim não garante que se esteja a prestar atenção àquilo que é

exibido. O tempo aceita e permite que dois ou mais eventos ocorram simultaneamente em um

mesmo intervalo. Mais coisas podem acontecer em um ambiente enquanto um aparelho

receptor audiovisual está nele ligado. A relação com uma notícia que ocupe a temporalidade

do ambiente depende também, portanto, da disponibilidade do indivíduo. O noticioso pode

apenas estar lá, sem que se atente para o que comunica – o que tampouco impede que alguma

efetiva troca entre sujeito e ambiente ocorra. A internalização de alguma alteração ou

perturbação no ambiente provocada pelo meio audiovisual não é necessariamente

desvinculada da ação individual, mas pode também acontecer à revelia da disposição do

sujeito. Uma vez que algum aparelho estiver ligado e algum telejornal começar, estejam a

visão e a audição atentamente voltadas à tela ou não, a notícia estará, com suas palavras, sons

e imagens, presente no ambiente.

Isso talvez dê origem ainda a uma espécie de outro tempo da notícia, além de sua

duração e do tempo que ocupa no ambiente. Um tempo, em certo sentido, simbólico. Menos

31

atrelado aos pontos inicial e final das notícias, mais vinculado à confiança na existência dos

noticiários. O aparelho televisor pode estar desligado, mas representa a certeza de que, em

determinados intervalos de tempo, as notícias estarão lá. A presença dos organismos

noticiosos, assim, amplia-se para além do intervalo em que o evento noticiário acontece.

Como se a espera ou a expectativa fosse já uma presença. Se assim for, e acredita-se que de

fato o é, o tempo comungado entre indivíduo e notícia passa a ser não apenas aquele em que

estão frente a frente, mas o tempo como um todo. Uma garantia de existência se solidifica. As

notícias estão lá e vão continuar a estar. Basta aguardar a hora certa. Os meios noticiosos

audiovisuais, mais do que meros provedores de notícias, como que adquirem uma

onipresença. Mesmo fora dos horários em que efetivamente exibem seus noticiários, estão

presentes. A notícia, motivação primeira, adquire um caráter subalterno. Enquanto existem

sem ocupar espaço físico algum, exceto aquele reservado a seus respectivos aparelhos

receptores, os meios audiovisuais se tornam onipresentes no tempo. As notícias, quando

ocupam um ambiente, são apenas a manifestação comprobatória dessa existência contínua,

presença ininterrupta.

2.2.5 O sentido do tempo

Autores citados acima permitem já que se trabalhe com o entendimento de que

mudanças no sistema ambiente podem levar a trocas entre um sistema aberto e o ambiente,

agora alterado, que o envolve. Sendo a internalização de tais mudanças o centro da questão

aqui debatida, e tendo sido mencionada como elemento concernente à discussão a atenção do

sujeito às notícias audiovisuais, da concisão do seguinte trecho advém um aspecto que se

considera interessante e peculiar na relação notícia-indivíduo:

A sensibilidade do sistema, ou seja, seu nível de abertura, faz com que, a

partir das interações com o ambiente, as intensidades das propriedades do

sistema mudem no tempo, provocando mudanças de estados. E tais

mudanças podem provocar a referida internalização das relações

(SANTAELLA e VIEIRA, 2008, p. 86).

O nível de abertura do indivíduo ao material noticioso audiovisual depende também

dele próprio, o espectador. O primeiro ato nesse sentido seria ligar a televisão ou dispositivo

em que pretende assistir às notícias. Depois, prestar atenção ou não ao que é exibido. Outro

possível cenário é haver notícias chegando ao ambiente independentemente de qualquer ação

32

do sujeito. De qualquer modo, é possível ao espectador algum controle sobre o nível de

atenção que dedicará a flutuação ambiental que dele se aproxima. A própria opção entre se

colocar como espectador (sentando-se diante de um televisor) ou fazer outra coisa enquanto

há um televisor ligado (conversar, ler, cozinhar) é já um indicativo da predisposição e da

sensibilidade do indivíduo. A mudança de estado que experimentará é, em alguma medida,

voluntária – assim como a eventual internalização subsequente à alteração que o sistema

constituído pela pessoa percebe no ambiente quando há notícias presentes.

Internalização registrada e que, através da função memória, pode mudar as

propriedades do sistema aberto do indivíduo e levá-lo a um novo estado – alteração que é

também um indicativo da passagem do tempo. E mais do que isso. Internalizada uma relação,

conforme Uyemov, é inviável desfazê-lo. O sistema alterado por uma mudança no ambiente

que o envolve não possui condições de voltar atrás e readquirir sua característica anterior. A

consequência dessa assimetria entre sistema e ambiente é explicitada pelo autor através da

noção de colapso relacional:

O colapso relacional significa que depois que as coisas entram numa certa

relação elas atingem um tal estado (resultante do efeito desta relação) que

elas não podem se livrar de sua relação a não ser abolindo sua existência

como coisas dadas (UYEMOV, 1975, p. 61).

A impossibilidade de retorno ao estado inicial, qualquer que seja esse estado, define,

para Uyemov, a orientação para onde, ou por onde, segue o tempo. Assim, a internalização

das relações constitui-se não só em registro da passagem do tempo, como também aponta um

sentido para a flecha do tempo: “o tempo flui na direção que corresponde à transição de

sistemas externos para sistemas internos” (UYEMOV, 1975, p. 62). Ao internalizar, a partir de

sua subjetividade e em sua memória, a informação apresentada por uma notícia, o sistema

indivíduo sofre uma alteração que não apresenta possibilidade de ser desfeita. Apenas esta

nova parada na linha do tempo interna da recordação do sujeito já seria indicação da

passagem de seu próprio tempo. Se a notícia trouxer ainda referências temporais explícitas,

eventualmente a se inter-relacionarem com os registros temporais particulares do indivíduo,

mais intensa poderá ser sua sensibilidade – seu nível de abertura – para essa informação e a

alteração que provoca no ambiente. A respectiva internalização determina, a partir do

entendimento de Uyemov, o sentido para onde, naquele momento, deu-se o fluir do tempo.

33

2.2.6 A linearidade do tempo

As observações acerca de uma ideia de apreensão do tempo surgida do estanque e do

imóvel, de eventos e intervalos originalmente fixos numa cronologia anterior ao homem,

entretanto, aparentam conter algum desacordo com o pensamento de Bergson. O ordenamento

sequencial dos eventos pressupõe que estejam fixos, presos a uma linearidade onde a duração

é tida como mero intervalo insípido entre eles. A representação espacial como geradora do

conceito humano de tempo parece deixar de lado aquilo que se sente e vive entre os eventos.

Quase como se o tempo inexistisse caso algum conceito não atestasse e referendasse sua

existência. A passagem do tempo seria, assim, nada mais que o infinito sobrepor de intervalos

dispostos sobre uma linha. A linha do tempo, é verdade, mas tomar essa representação como a

imagem plena do tempo possa ser, talvez, exagerada sistematização de uma experiência tão

rica e profunda que sequer dispomos de linguagem e dimensão apropriadas para descrevê-la.

A própria menção a uma existência do tempo é pobre naquilo que quer transmitir –

existir pressupõe dimensão, fisicalidade, volume. O tempo como coisa palpável e tangível não

existe, sequer talvez se possa dizer que esteja presente, mas o sentimos e nele vivemos. Seu

representar linear e unidimensional – como grandeza física espacial, enfim – é-nos útil como

ferramenta e instrumento coletivo. Mesmo aquém daquilo que tenta espelhar, ajuda-nos com

um certo mensurar da verdadeira duração, essa em que o passado se mantém ativo e

continuamente pressionando o avanço do presente. Para Bergson, não sem ironia, o tempo

como nada mais que o intervalo entre eventos é o tempo do matemático: desinteressado do

que ocorre “dentro” do intervalo, interessam-lhe apenas as condições que permitam “calcular

o estado do sistema” em qualquer instante de qualquer intervalo (1998, p. 22, tradução

nossa). Por menor que seja esse intervalo, e mesmo que o instante escolhido esteja dentro do

intervalo considerado, esse será ainda, observa Bergson, um momento estático, desprovido do

real fluir do tempo.

Apesar da pertinência desse aparte, considera-se continguamente que o pensamento

bergsoniano não nega haver um sentido seguido pelos acontecimentos e pela evolução. Os

eventos acontecem uns depois dos outros; alguns, ao mesmo tempo. Por artificial que seja,

mensurar o tempo entre eles através de uma compreensão espacial é um procedimento que

não entra em conflito com a realidade como a percebemos. O medir linear da passagem do

tempo pode excluir daquilo que mede exatamente o que busca representar – a duração real –,

mas viabiliza um acordo público acerca do conceito de tempo e de sua representação. Mesmo

apartado da verdadeira essência da duração, que quiçá nem possamos cotidiana e

34

continuamente alcançar, o lidar unidimensional com o tempo assegura o apreender de alguma

coisa que, mesmo deficitária, represente o tempo. “A ideia de um eixo orientado do tempo é

uma metáfora”3 – a concisão de Vieira é esclarecedora. E essa representação, por sua vez, é

funcional para as demandas e a organização do dia-a-dia individual e coletivo. Enfim,

independentemente do modo como cada um vive e sente a duração real, Denbigh parece ter

razão ao expor sua contrariedade diante de uma coisificação do tempo.

O „tempo‟ não está „lá fora‟ como uma coisa substancial como um rio a fluir;

é mais uma entidade abstrata, uma construção. As coisas que estão „lá fora‟,

sobre as quais a construção do tempo é baseada, são os objetos materiais e

seus eventos e processos (1981, p. 3, aspas e grifos no original, tradução

nossa).

O conceito de tempo como o conhecemos não foi elaborado a partir das notícias, mas

a partir de eventos, e muito anteriormente a qualquer especificação do que vem a ser a ideia

de notícia como a reconhecemos hoje. As notícias, entretanto, adquiriram a condição de

eventos em si mesmas, contendo tanto a indicação do sentido da flecha do tempo (através da

internalização daquilo que transmitem) como reiteram o próprio conceito de tempo

unidimensional que coletivamente adotamos (através da sequência linear em que são

transmitidas). Imateriais, não são objetos, mas se referem a eventos reais e se convertem elas

próprias em eventos reais, sendo geradoras e participantes de processos que sucessivamente

reconstroem e reafirmam o fluir desse tempo que, quando tomado como linear, podemos de

alguma forma deficitária dominar.

2.3 Memória linear

All I've got is some memories / Stuck in an old shoe box

Mick Jagger and Keith Richards, It Won't Take Long

A relação entre a memória do indivíduo e as notícias exibidas pelos meios de

comunicação audiovisuais é de fundamental relevância para a presente discussão. Tendo em

mente o notório, intuitivo e estreito vínculo da percepção do tempo com a memória, a relação

notícia-tempo-indivíduo poderia quase ser expressa como notícia-tempo-memória. Ou seja, a

3 Encontro de orientação em 20/08/2013.

35

eventual interferência das notícias na memória praticamente constitui a própria discussão.

Para desenvolvê-la, trabalha-se em acordo com uma ontologia científica, a partir do

entendimento de que a realidade existe, é composta por sistemas, todos abertos em pelo

menos algum nível e a interagir com o ambiente, absorvendo e cedendo informação e sendo

afetados por essa troca.

A existência de uma comunicação (Santaella apud Santaella e Vieira, 2008, p. 83)

entre sistema e ambiente oferece, portanto, sustentação à pergunta sobre uma eventual

interferência das notícias na percepção humana do tempo, uma vez que “não há o sistema que

seja perpassado por uma flutuação ambiental e saia perfeitamente imune quanto a isso”

(SANTAELLA e VIEIRA, 2008, p. 82). A cronologia singular das notícias, acredita-se, pode

constituir uma interferência na temporalidade subjetiva do espectador. Se as variações na

informação disponível no ambiente contribuem para a evolução do sistema aberto por ele

envolto, e, assim, para a construção de sua história, e se essa memória colabora para a

definição do tempo do sistema que a possui, as variações ambientais causadas pelo fluxo

noticioso, podem redundar em uma alteração na percepção do tempo por parte do indivíduo. A

interação das notícias com os eventos que marcam a linha do tempo interna do sujeito pode

interferir na subjetividade do sistema espectador.

O acúmulo de estoques de informação (qualquer informação, consciente ou

inconsciente, como as funções vitais) que constitui a memória de um indivíduo é fundamental

para sua autonomia e consequente permanência. O enfoque ontológico e sistêmico permite

observar que os meios de comunicação noticiosos têm igualmente na memória elemento

fundamental para sua permanência. Seja a memória conservada pelo próprio meio de

comunicação (o registro audiovisual de sua trajetória), seja a memória a seu próprio respeito

que gera – e sustenta – na lembrança dos indivíduos receptores das notícias.

2.3.1 A imprecisão de Bergson

Esta pesquisa encontra seus fundamentos na ontologia e na interdisciplinaridade.

Assim, apesar de eventual desconforto pela maneira como aparta a filosofia da ciência exata,

as explanações de Kenneth Denbigh acerca do tempo e do conceito linear de tempo têm sido

úteis a este trabalho. Do mesmo modo, não há desacordo com o autor quando ele observa, no

prefácio de seu livro Three Concepts of Time, que “qualquer investigação adequada sobre o

„tempo‟ é necessariamente em parte científica e em parte filosófica” (1981, p. V, aspas no

36

original, tradução nossa). É igualmente como se desenvolve este trabalho, sem destituir a

filosofia daquilo que tem de científico, e sem retirar da ciência mais dura aquilo que tem de

filosófico. Em uma discussão que tem no pensamento de Henri Bergson seu impulso

principal, esta observação se deve não apenas às referências a conceitos oriundos da física e à

discussão sobre a natureza do tempo. Um outro corpo de conhecimento bastante técnico, mas

que igualmente se aproxima de discussões que flertam com a filosofia, também integra a

presente investigação. Fala-se da neurociência como abordada por dois de seus expoentes,

António Damásio e Gerald Edelman, traziada inicialmente à tona como contraponto à crença

de Bergson na imaterialidade das recordações, estando a memória, para o filósofo,

armazenada em algum lugar fora do corpo. O traçar deste paralelo, no entanto, apesar da

divergência acerca de sua localização, revela haver uma significativa confluência no modo

como veem a memória Bergson e os neurocientistas.

Bergson trabalha com o conceito de uma memória pura, preservada nos recônditos de

algum lugar ausente do organismo corporal e biológico que as vivenciou. A alma é reputada

como agente importante no guardar humano da memória. Mesmo um célere atentar aos

estudos contemporâneos do cérebro humano é suficiente para fazer ver que acatar a existência

de um armazém elevado e exclusivo da memória seria, em boa medida, um devaneio

discrepante a um trabalho científico. Por mais que esse remetimento ao insondável possa,

ainda hoje, ser culturalmente compreendido, tal imprecisão demanda um desvio e um

acréscimo à investigação.

O cérebro segue apresentando enigmas sobre seu funcionamento. É o próprio caráter

sem igual da atividade mental humana que pode dar margem ao surgimento de explicações

baseadas além do terreno. Como observa Gerald Edelman, quando se estuda as células

cerebrais, os neurônios, “estamos lidando com algo diferente de qualquer outra coisa no

universo” (1992, p. 17, tradução nossa). São três os aspectos que levam à singularidade do

neurônio, a saber, seu formato, sua capacidade de ligação com outros neurônios, gerando

redes neuronais, e sua função química e elétrica. Sem qualquer desmerecimento ao

espetacular e produtivo acúmulo de funções protagonizado pelo neurônio, é na função elétrica

que se acredita estar a razão por que tendemos, na cultura humana, a ver o cérebro e a mente a

partir de uma perspectiva esotérica, quase sobrenatural. Temos eletricidade a correr dentro de

nossas cabeças, impulso de natureza similar àquele que viabiliza a presença audivisual em

nosso ambiente cotidiano.

Interessado na percepção e na memória humanas, Bergson é um homem da filosofia

que se debruçou sobre questões relativas à neurociência. Por outro lado, seus pares do fim do

37

século XX e do início do século XXI, se assim os podemos chamar, são neurocientistas que,

diante da impossibilidade de estudar o cérebro como se do corpo separado fosse, e a mente

como se separada do cérebro fosse, avançam a tal ponto que enveredam, com propriedade,

pela filosofia. Os dois nomes a que se faz referência são os já citados António Damásio e

Gerald Edelman. A singularidade dessa dicotomia está no fato de haver significativos pontos

de convergência entre o pensamento bergsoniano e o dos neurocientistas. Com as devidas

ressalvas às divergências factuais (notadamente acerca da localização da memória) entre

Edelman e Damásio de um lado, Bergson de outro, este paralelo não será traçado no intuito de

encontrar uma validade inconteste em Bergson, ou de desabonar a neurociência. Ao contrário

– esta pesquisa louva a interdisciplinaridade. Na ampla especificidade das diferentes correntes

de pensamento, com pleno reconhecimento de que devem ser respeitados os contextos em que

se inserem cada uma delas, é prazeroso verificar, em Bergson, aspectos de consonância com

os neurocientistas e, nestes, uma profundidade filosófica que se aproxima da bergsoniana.

2.3.2 A memória é presente

Para Bergson, assim como nossa duração é mais que a mera substituição de um

instante por outro, a memória é mais que a faculdade de armazenar lembranças. O passado,

em verdade, não cessa de nos acompanhar, debruçando-se sobre o presente – que logo

também o integrará como recordação adquirida. A parcela ou o trecho do passado que vêm à

tona a cada instante, entretanto, é somente aquele que possui relação com o momento

presente:

Essas memórias, mensageiras do inconsciente, lembram-nos do que

arrastamos atrás de nós despercebidamente. Mas, mesmo que possamos não

ter uma ideia distinta disso, sentimos vagamente que nosso passado

permanece presente para nós (BERGSON, 1998, p. 5, tradução nossa).

A descrição do filósofo francês sobre a presença da memória em nosso presente

aparenta ser condizente com a definição ontológica da função memória exposta acima,

segundo a qual o estado de um sistema, a qualquer tempo, resulta da elaboração e do

processamento, por meio da memória, dos estados anteriores. Em suma, ambas

conceitualizações descrevem memórias a agir sobre o momento presente. Memórias, para

Bergson, fundamentais na experiência – mesmo na vivência – da verdadeira duração, descrita

38

por ele como “o contínuo progresso do passado que consome o futuro e que se expande à

medida que avança” (1998, p. 4, tradução nossa). Em um ambiente permeado por organismos

noticiosos e por aquilo que veiculam, a assimetria ocasionada por uma notícia é parte dessa

duração – participa instantaneamente do presente. Uma vez internalizada a informação antes

desconhecida pelo sujeito, passa a fazer parte de seu passado – e, portanto, em maior ou

menor medida, participará também de seu futuro. Seja, conforme Bergson, pelo contínuo

avanço das memórias sobre o que se está a viver; seja, conforme denota a função memória,

pela reelaboração do presente a partir das memórias acumuladas até então.

A proximidade entre a definição sistêmica de memória e o entendimento de Bergson

vai além do esgueirar de lembranças passadas a emergir no presente. O contínuo relacionar

daquilo que se está a viver com aquilo cuja duração já passou contém tanto o sentido da

flecha do tempo, como o define Uyemov, como os elementos necessários ao surgimento de

um conceito de tempo linear, como mencionado por Denbigh. Se o tempo unidimensional

com que trabalhamos advém da relação entre eventos que ocorrem sequencialmente, um

evento anterior a ricochetear no evento do agora estabelece um intervalo baseado na noção

intrínsica de antes e depois, originando portanto a base para uma compreensão coletiva do

tempo como linear e sequencial. Contiguamente, para que um evento anterior possa se

relacionar com o momento presente, é preciso que faça parte do repertório de experiências –

da memória – do sujeito. A internalização necessária a esse acúmulo indica o sentido da flecha

do tempo.

Bergson, contudo, apresenta ainda um outro aspecto que se considera relevante para

a discussão. Para ele, a permanência do passado no presente impede a consciência de passar

mais de uma vez pelo mesmo estado. Mesmo que as condições sejam as mesmas – no dizer de

Bergson, as circunstâncias –, o indivíduo a se relacionar com elas já não mais será o mesmo.

O ambiente agora similar a algum ambiente anterior não o era quando vivenciado da primeira

vez, a internalização ocorrida então passou a integrar os estados passados do sujeito. Houve

portanto uma transformação em sua memória. As exatas mesmas condições de antes envolvem

agora uma outra subjetividade, já avançada no tempo:

Nossa personalidade, sendo construída a cada instante com sua experiência

acumulada, muda sem cessar. Mudando, ela impede qualquer estado, embora

superficialmente idêntico a outro, de alguma vez se repetir em sua

verdadeira profundidade. É por isso que nossa duração é irreversível

(Bergson, 1998, p. 6, tradução nossa).

39

A irreversibilidade do tempo do sujeito, para Bergson, é introduzida pela

impossibilidade – engendrada pela memória – de revivermos qualquer momento que seja.

Consideração consonante à abordagem sistêmica aqui seguida, segundo a qual essa memória

que inviabiliza qualquer reviver é advinda de uma internalização sequencial de relações e

eventos – a indicar não só a existência e o sentido da flecha do tempo, como o próprio

conceito de tempo linear que adotamos. Tempo irreversível porque não podemos revivê-lo, ou

não podemos revivê-lo porque é irreversível? Retórica questão, não será por alguma vez

respondê-la que poderemos alguma vez voltar no tempo.

A visão fenomenológica de Bergson, cuja citação imediatamente acima combina em

breves linhas a irreversibilidade, o sentido e o conceito de tempo, é expressa a partir da

experiência do indivíduo. O avanço do sujeito, em seu contínuo armazenar de memórias a

impedir o reviver de qualquer situação, é a própria constatação de um tempo cuja sensação de

passagem é contínua e sem retorno, sendo outra vez termos vinculados ao espaço – avançar,

passagem – a representar, ou a tentar representar, o tempo em sua transitoriedade. A duração

compartilhada com o noticiário terá sido para sempre essa, rever uma notícia nunca será como

vê-la da primeira vez, o tempo passado ao término do noticiário é intervalo de um tempo que

já não viveremos mais.

2.3.3 A função da memória

O que mede a intensidade da vida, senão a nossa lembrança? Vivemos a cada instante

no limiar entre um futuro sempre a desaparecer e um passado continuamente a chegar. O

passado só desaparece com a morte, definitivo apagar da lembrança. O futuro, quando chega,

logo esvanece. Existe como contínua expectativa de um presente, por sua vez, quase

inexistente. Lugar intangível sobre o qual permanecemos, fugaz fronteira entre o que acabou

de ser e o que ainda não é. É sobre ela que inevitavelmente estivemos e estaremos, retidos no

espaço indivisível e no tempo eterno do agora. A um instante do futuro, recém vindos do

passado.

Se quando ao futuro chegarmos esse já terá deixado de sê-lo, do passado talvez

estejamos mais próximos, porque mesmo lá estávamos. Em suas considerações acerca da

mente humana, redigidas em um mundo centanariamente anterior ao em que vivemos,

Bergson expõe o melífluo caráter do presente. No menor intervalo possível entre um estímulo

e sua respectiva percepção, muitos outros estímulos subsequentes acontecem, separados de

40

sua percepção por outros intervalos, e assim sucessivamente. Dirigindo-se a um leitor real ou

imaginário, distante talvez no tempo que ocupa mas contemporâneo no espaço das ideias que

compartilha, escreve Bergson.

Sua percepção, embora instantânea, consiste assim em uma incalculável

multitude de elementos recordados; e, na verdade, toda percepção é já

memória. Praticamente, nós percebemos somente o passado, o presente puro

sendo apenas o invisível progresso do passado consumindo o futuro (1911,

p. 194, grifo do autor, tradução nossa).

Percebemos nada senão o passado. Por instigante que seja, há um componente de

retórica nesse entendimento da percepção mentalmente consciente. Mesmo realmente

existindo, o intervalo de tempo entre perceber e ter a consciência de perceber é irrelevante.

Nossa percepção do presente, como reconhece Bergson, é instantânea.4 Seria por demais

angustiante, para dizer o mínimo, viver a perceber somente o passado. O fluxo de ser – de

estar vivo – é a própria fronteira. Não por acaso, termos bastante semelhantes são utilizados

por Bergson em sua definição de duração exposta mais acima, que indica um passado

continuamente a progredir futuro adentro. O ser existe como limiar. Em nossa expectativa

pelo futuro, vivemos acumulando nosso passado, também conforme a perspectiva ontológica

acerca de nossas recordações. “Uma memória sistêmica surge quando a internalização das

relações torna os estados sucessivos dependentes uns dos outros, em alguma medida”

(SANTAELLA e VIEIRA, 2008, p. 87).

Se a existência é adquirir lembranças, como lembramos? Lembramos quase como se

não lembrássemos do verdadeiro tempo que vivemos enquanto vivíamos. Mais que mero jogo

de palavras, essa característica da memória humana advém de nossa já referida incapacidade

de perceber o tempo em sua natureza única e primeira de duração. Tomamos o tempo como se

espacial fosse, a se mover sobre uma linha. Ao confiná-lo em nossa memória, novamente o

fazemos eliminando sua mobilidade. Mobilidade, entretanto, que não corresponde a um

movimento espacial. Somos incapazes de apreendê-la, a ponto de ser incerto afirmar que seja

o tempo que passa ou que sejamos nós a passar no tempo. Mesmo assim, quando descrevemos

esse fluir, fazemo-lo à margem de qualquer duração. Os próprios termos que utilizamos, para

reiterar observação de Bergson, são tomados da linguagem de espaço. A nossa lembrança,

compreensivelmente, conjuga-se a esse (ao que tudo indica, involuntário) modo de operação

4 Medições do instante necessário à percepção humana já foram realizadas. Em média, precisamos de duzentos

milissegundos para reconhecer um padrão de percepção, e de setecentos a oitocentos milissegundos para

processar um conceito. Meio segundo equivale a quinhentos milissegundos (DAMÁSIO, 2010, p. 157-8).

41

cerebral. Impossibilitados de dominar a inexorável constância da passagem do tempo, é

através de uma sequência linear que construímos e acessamos nossa memória. Através de uma

linha do tempo. Para Bergson (1911, 1968), nossas recordações são instântaneos – como

fotografias mentais – de experiências efetivamente vividas em sua duração passada, mas que

emergem fixas no tempo linear e anterior de nossa lembrança.

Partindo de uma perspectiva absolutamente diversa da bergsoniana, e em meio a

detalhadas explicações sobre a atividade cerebral e o respectivo surgimento da mente humana

consciente, Damásio expõe, não sem contentamento, a forma como entende que se dá o

processo de recordação.

Afortunadamente, baseamo-nos em episódios-chave da nossa vida, ou

melhor, num conjunto deles, e, dependendo das necessidades do momento,

limitamo-nos a recordar um determinado número de cenas e trazê-las para o

episódio presente (DAMÁSIO, 2010, p. 265).

Mais ainda, é por ele enaltecido o fato de não acontecer, em nossa mente humana

consciente de sua própria consciência, a recordação integral das lembranças que registramos

ao longo da vida. O dito por Damásio demanda atenção pelos termos utilizados para designar

o modo como lembramos: através, segundo ele, de cenas e episódios-chave. Seria demasiado

imprudente considerar que existe aqui uma similaridade com as paradas virtuais no tempo

descritas por Bergson? Uma convergência pontual, sem dúvida, mas que adquire dimensão

significativa ao se considerar a importância do processo de recordação na construção do eu

autobiográfico damasiano5.

O fio condutor deste texto se mantém próximo a Bergson e lá encontra a função

prática e usual da memória definida como “a utilização da experiência passada para a ação

presente” (1911, p. 87). Tendo em mente a citação de Damásio contida acima, demandará

pouco esforço recordar seu dizer de que, ao lembrarmos, o fazemos de acordo com a

necessidade do momento presente. Se o raciocínio que conduziu os dois pensadores a tal

conclusão foi certamente distinto, e essa diferença de rota não deve nunca ser desconsiderada,

claro parece estar que ambos cruzaram paisagens análogas nos caminhos de suas reflexões.

E não só ambos. Utilizando parâmetros e meios de investigação, acredita-se, bastante

mais próximos de Damásio que de Bergson, Edelman é sucinto ao expor o que considera uma

das funções primordiais da memória humana. “A memória seria inútil se não pudesse, de

algum modo, ter em conta a sucessão temporal dos eventos – de eventos sensoriais bem como

5 DAMÁSIO, 2010.

42

de padrões de movimento” (EDELMAN, 1992, p. 104). Está novamente manifesta a presença

de uma escala temporal em nosso processo de lembrança. Igualmente relevante é verificar

que, ao trazermos à tona a também curta e direta definição de Edelman para a memória, uma

confluência entre os três autores parece se configurar: “[...] em qualquer forma que assuma, a

memória é a habilidade de repetir uma performance” (1992, p. 102). Reunindo-se as duas

citações de Edelman, aventa-se, em paráfrase combinada, que a memória é a capacidade de

reproduzir uma performance anterior considerando a sucessão temporal dos eventos vividos.

Sucessão de eventos que, na mente humana, segundo Bergson, é armazenada na memória de

forma linear. Temos então a conjunção dos três pensadores: Edelman, com sua reprodução de

performances temporais; Damásio, com seu lembrar de cenas e remetê-las ao presente; e

novamente Bergson, não só com suas paradas virtuais no tempo da consciência, mas também

com a afirmação de que a “memória é impotente enquanto permanecer sem utilidade”

(BERGSON, 1911, p. 181). Um dizer que é praticamente a inversão do dito por Edelman

sobre uma das funções primordiais da memória, o levar em conta a sequência dos eventos no

tempo.

A divergência permanece, entretanto. Onde estará guardada – a salvo – a nossa

memória?

2.3.4 Mais que o lugar, a existência da memória

Lembranças guardadas a salvo, até certo ponto. Independentemente de crenças

religiosas e espirituais e do sentimento individual de existência da alma, o lugar primeiro da

memória não é outro senão o corpo. Corpo que não é uma caixa-forte, não é sequer uma caixa

de sapatos (a caixa de sapatos pode ser até mais segura). Doenças, substâncias químicas e

impactos emocionais são capazes de alterar a construção e o armazenamento de nossas

lembranças. A memória pode morrer antes da morte. Em que lugar do corpo estarão

localizadas essas memórias?

Fazer a pergunta não significa que se encontrará a resposta. A questão é de qualquer

modo formulada porque, diante de abordagens providas pela neurociência contemporânea,

sugere-se que há pontos de contato entre o pensamento bergsoniano e o que hoje se sabe e

conhece do cérebro e da mente humanos. Longe do intuito, reitera-se, de promover um

desagravo ou uma defesa inconsistente de Bergson, o que se deseja – ao colocá-lo na

contraluz de estudos recentes – é sustentar que suas reflexões, mesmo que parcialmente

43

desconexas do saber alcançado pela neurociência, possuem valor filosófico relevante para

uma investigação sobre como e se as notícias interferem na percepção humana da passagem

do tempo. O tempo, afinal, aparenta ser o mesmo. Mas novos elementos emergidos na busca

de permanência empreendida pela espécie humana parecem ter ampliado a complexidade e a

quantidade de eventos com que temos, individual e coletivamente, de lidar. Tenha talvez

havido um aumento nas demandas necessárias ao entendimento de como lembramos desse

tempo que não cessa de chegar e é já passado quando o percebemos. É também desse lembrar

de que trata Bergson, e, acredita-se, com notável propriedade.

Embora firme em suas convicções, o próprio Bergson se mostrava ciente da

imprudência de elaborar, com o parco conhecimento de que dispunha, hipóteses acerca das

tarefas desempenhadas por diferentes áreas do cérebro. “Indubitavelmente, há um risco

considerável em se aventurar, sem evidências suficientes, pelos obscuros problemas da

localização cerebral” (BERGSON, 1911, p. 163). Seria justamente seu desconhecimento sobre

aquilo que estudava uma das razões para tomar a existência do etéreo como alicerce

científico? Nesse sentido, é curioso que, poucas linhas adiante, Bergson proponha que se

deixe de considerar o cérebro como um “depósito de memórias”, o que – no mínimo – abre

espaço para a chegada do espírito como elemento importante na concepção bergsoniana de

lugar da memória.

2.3.5 Mente linear

Ainda assim, mesmo que as memórias estivessem armazenadas fora do corpo,

Bergson acredita que é no cérebro que essas memórias são processadas e reprocessadas.

Quando trazida à tona por alguma associação ou necessidade do momento presente, a

memória se cristaliza na mente do corpo que a requer. “Virtual, essa memória somente pode

se tornar real por meio da percepção que a atrai. Impotente, ela toma emprestada vida e força

da sensação de presente na qual ela se materializa” (BERGSON, 1911, p. 163). Na

combinação da memória com a instantânea percepção sensorial, emerge o reconhecimento do

que se está a viver. A memória intocada pelo presente, para Bergson, se mantém pura – porém

sem qualquer efeito sobre o presente.

A tarefa do cérebro é organizar essa contínua profusão de estímulos advindos tanto

do presente como da memória. Atividade seguidamente realizada sem a participação

consciente do indivíduo. Tanto que, não raro, somos surpreendidos pelas recordações que nos

44

vêm à mente. Na dinâmica desse processo, o cérebro faz uso de uma estrutura narrativa,

selecionando e organizando os estímulos numa sequência temporal. Damásio considera que

essa “gestão estratégica” tenha surgido na mente humana muito antes do aparecimento da

consciência. “A mente é um resultado absolutamente natural da evolução e é em grande

medida não-consciente, interna e velada. Torna-se conhecida graças à estreita abertura que a

consciência lhe confere (DAMÁSIO, 2010, p. 222)”. A consciência nos dá a consciência da

mente. A mente, porém, é anterior aos processos humanos conscientes.

Sendo apropriado observar novamente que, para Denbigh, é da percepção da

existência de uma sequência única entre os eventos – a partir da noção intrínsica de antes de e

depois de – que emerge o conceito de tempo unidimensional que utilizamos. De forma

contígua, para Uyemov, é a internalização das relações que indica o sentido da flecha do

tempo. Internalização que se dá, na perspectiva ontológica, regida por uma função memória,

em que o estado do sistema a qualquer tempo t é sempre resultado da ação da memória –

armazenada até o tempo imediatamente anterior a t – sobre o sistema. Seguindo os eventos

que originam esta memória um ordenamento linear e sequencial, e sendo esse ordenamento a

origem do conceito de tempo unidimensional que adotamos, é razoável que a estratégia

desenvolvida pela memória para lidar com o tempo passado seja igualmente linear. E, uma

vez que ao representarmos o tempo o fazemos suprimindo a duração, é também razoável que

os eventos, uma vez na memória, estejam lá registrados de forma fixa. Isentos de sua duração

única e original, como um retrato a imobilizar e reter em uma imagem parada um momento

que, quando vivido, ocupou a integralidade do tempo de sua duração.

Se lembramos através de paradas virtuais no tempo, é provável que o façamos

porque assim opera nossa mente. O modo humano de lembrar, ao que tudo indica, não é

resultado de uma escolha. Se até mesmo na organização imediata do momento presente o

fazemos através de uma narrativa, é razoável que o armazenamento dessa vivência aconteça

de maneira similar. Na combinação dos estímulos do agora com aqueles trazidos da memória,

cujo resultado é a percepção do momento presente, a mente cria e recria linhas do tempo. A

percepção da vida é continuamente organizada sobre uma dimensão espacial. A mente

humana registra a duração da vida armazenando, do início ao fim, uma sucessão fixa de

eventos. Seja ou não a vida nada mais que a continuidade dessa sequência, a maneira como

recordamos é consequência disso, o depois passando a ser antes até que se atinja o evento

derradeiro, aquele que já não mais recordaremos. A memória linear que possuímos parece ser

a única possível.

45

3 METODOLOGIA

3.1 A escolha das notícias

Os meios de comunicação audiovisuais podem ser muito eficazes em sua intensa

luminosidade a clamar por atenção. Nesta disputa, utilizam sem parcimônia os artefatos de

que dispõem, continuamente ampliando suas estratégias e, assim, os ativos oferecidos ao

telespectador. Considera-se que os termos da hipótese aqui debatida, entretanto, independem

de grandiosos investimentos financeiros, eventualmente cabotinos, como de qualquer

pirotecnia. Mais ainda quando o assunto de que se trata é a informação noticiosa, item que,

mesmo que adquira valor financeiro, dificilmente prescindirá de um conteúdo que, se não

sobressair à forma, seja-lhe ao menos equivalente.

Assim, para discutir se as notícias de televisão podem ou não ter alguma

interferência em nossa passagem do tempo, optou-se pela simplicidade. Entre as emissoras

abertas brasileiras que transmitem em rede nacional, escolheu-se o telejornal noturno (de

segunda a sábado, às 21 horas) da TV Cultura, o modelo mais próximo que o país possui de

uma televisão pública e que, apesar de ter recentemente aberto espaço para anúncios pagos em

sua programação, não parece ter a disputa pela audiência como uma de suas principais

motivações. Apesar disso, o formato de noticioso que apresenta é bastante similar ao dos

outros canais gratuitos disponíveis no Brasil – as diferenças entre eles, exceto talvez pelos de

tom notoriamente sensacionalista e policialesco, são majoritariamente de grau, não de tipo.

3.1.2 Aleatoridade

Dito isso, passemos ao telejornal analisado. Assim como se buscou eliminar alguma

eventual exacerbada magnitude da emissora que o produz, havia também uma preocupação

em não se escolherem deliberadamente notícias intrinsicamente impactantes. Um grande

evento, seja político, econômico, esportivo, ou mesmo uma tragédia, é bastante provável que

gere uma conexão imediata com o indivíduo que com ele tome contato, seja presencialmente,

seja através de um dispositivo audiovisual. Desse modo, em vez de centrar a investigação em

notícias referentes a fatos extraordinários, optou-se por considerar a íntegra de uma edição,

escolhida aleatoriamente, do Jornal da Cultura, como é chamado o referido programa

46

jornalístico.

A definição da aleatoriedade, porém, pode ser questionada. Consciente ou

inconscientemente, algum critério participa da tomada de qualquer decisão. Bunge aborda a

questão observando que duas coisas são aleatórias quando não há relação entre elas.

Aleatoriedade, entretanto, não significa ausência de probabilidade, sendo que um fato é

completamente aleatório, dentro de um conjunto de possibilidades, se a probabilidade de que

ocorra “é independente da ocorrência ou não ocorrência” de outros fatos possíveis (1977, p.

208, tradução nossa). A probabilidade de algum produto audiovisual ser selecionado para

análise durante a execução desta pesquisa, é claro, existia. Igualmente, existia probabilidade

de algum grande evento noticioso acontecer nesse mesmo período. O intuito foi, então,

eliminar qualquer relação de causalidade entre o evento escolha do telejornal e qualquer outro

evento noticioso significativo.

A partir disso, estabeleceu-se um critério que se considera atender a definição de

aleatoridade apresentada por Bunge. Vinculadas ao processo acadêmico de um mestrado, uma

etapa significativa no trajeto das reflexões aqui esboçadas é sua apresentação para um

conjunto de professores a compor uma banca de qualificação. Os critérios de agendamento da

data em que a exposição se deu restringem-se ao ambiente universitário e à disponibilidade

dos envolvidos, estando desconectados, portanto, das ocorrências noticiosas a movimentar o

ambiente jornalístico audiovisual. Inexiste relação entre a referida data e as notícias daqueles

dias – aconteceram de forma aleatória entre si. Há, entretanto, uma relação direta, em nada

aleatória, entre a ocorrência da banca de qualificação e a continuidade deste trabalho. Com

isso, o telejornal selecionado foi o exibido no dia seguinte à qualificação, em 9 de outubro de

2013.

3.2 A prática ontológica aplicada ao tempo das notícias

O pensamento de Mario Bunge é referido por Jorge de Albuquerque Vieira na

conceituação de uma prática científica ontológica, o qual é igualmente seguido nesta

investigação, a partir da convicção de que

O conhecimento em Ontologia pode ajudar cientistas a planejar, entre outras coisas,

adequadas observações e medidas segundo novas perspectivas, visando sempre

aumentar o repertório das representações do sistema coerentes com a realidade

(VIEIRA, 2008, p. 26).

47

Diante da imensa e constante participação dos meios de comunicação na realidade da

vida pública ocidental (a qual o Brasil, mesmo que precariamente, reproduz), inclusive na

elaboração e compreensão da realidade diária por parte do indivíduo, é a partir da esfera

particular do espectador que se estrutura a interrelação sobre a qual esta investigação se

debruça. Alega-se que o tempo interno do indivíduo lida com uma temporalidade externa,

advinda das notícias. Nesse sentido, é relevante observar que se considera possível haver

diferentes temporalidades em diferentes notícias. Uma notícia, em sua singularidade, a

depender do fato que retrata e também da maneira como o faz, não apresentará um manejo do

tempo necessariamente igual ao de outra notícia, que trate de outro fato e esteja elaborada de

outra maneira. Ou até mesmo entre duas notícias que tratem do mesmo fato, mas que tenham

sido exibidas em horários diferentes ou por emissoras diferentes. Temporalidades que podem

avançar ao futuro em uma tentativa de prospecção do porvir, ou recuar ao passado na procura

de conexões com acontecimentos anteriores.

Mais ainda, as notícias são costumeiramente apresentadas em concisos agrupamentos

(geralmente, algo em torno de quarenta e cinco minutos, média aproximada da duração dos

noticiários de televisão no Brasil), o que resulta na exibição sequencial de uma série de

escalas temporais possivelmente distintas entre si. A temporalidade de uma notícia é

sucessivamente seguida por outra, compondo também uma temporalidade nova, a do

telejornal, síntese de acontecimentos locais e globais a envolver o telespectador em uma

atmosfera informativa em que tempo e espaço se diluem e confundem – seja na representação

linear do tempo pelas notícias, e na apreensão dessa pelo telespectador, seja no rompimento

instantâneo de distâncias a permitir que conheçamos, às vezes quase instantaneamente, fatos

que, mesmo se assim desejássemos, nunca chegaríamos a tempo de vivenciar.

A natureza desse fluxo noticioso, supõe-se, pode distoar do fluxo de processamento

mental do espectador, tanto no volume de informações como na transmissão de uma

temporalidade estranha ao tempo subjetivo de cada um de nós. Tendo em mente que nossa

memória é estruturada a partir da sucessão de estados que experimentamos, através também

da internalização de alterações no ambiente em que estivermos, e sendo essa memória

constituinte de nossa autonomia, se efetivamente houver um descompasso entre o tempo das

notícias e o nosso, pode nossa autonomia restar alterada. Apesar do alto grau de subjetividade

envolvido na percepção de tais efeitos, acredita-se que a complexidade dos elementos

envolvidos nesse processo (tempo, memória) não deve inviabilizar uma tentativa de

coerentemente agregá-los e debatê-los. Passemos a isso, uma vez que tanto para o sistema ser

humano como para o sistema noticioso,:

48

[...] há assim uma certa hierarquia entre os três parâmetros básicos: primeiro,

a permanência; ela é efetiva através do meio ambiente, com a consequente

elaboração de autonomia, incluindo aí a memória ou o hábito” (VIEIRA,

2008, p. 35).

A memória é item fundamental para a permanência, seja do indivíduo, seja do meio

de comunicação. Na relação entre ambos, bem como em todas as outras, o ambiente é

fundamental para que o parâmetro sistêmico da permanência possa ser sustentado pela

autonomia. Quanto à memória, entretanto, a permanência de uma emissora de televisão parece

depender menos dos arquivos em que armazena a história de suas transmissões e mais de que

o público, mesmo que minoritário, relacione-se de alguma forma com o material exibido pelo

canal. E essa relação do indivíduo com a notícia apresentada se dá, conforme exposto acima,

através não da memória externa contida no arquivo da emissora, mas através da memória

interna do próprio sujeito espectador: seja apresentando algo por ele desconhecido e que

provoque uma alteração agora internalizada; seja relacionando a notícia com algum

acontecimento anterior (caso em que o arquivo da emissora é bastante útil), permitindo ao

indivíduo que faça também essa relação, mas dentro de sua linha do tempo interna e

particular.

3.3 Análise das notícias

A análise das notícias6 apresentadas pelo telejornal selecionado será feita de acordo

com a ordem original de exibição, uma a uma ou em blocos. Referências temporais diretas e

indiretas serão indicadas, com o objetivo de realçar (i) o modo de delimitação e consolidação

do tempo pela notícia, (ii) o modo como oscila – avança e recua, acelera e atrasa – o tempo da

notícia, e (iii) a eventual descontinuidade entre o tempo da notícia audiovisual e o tempo

subjetivo do indivíduo. A transcrição integral do Jornal da Cultura considerado está no Anexo

A. Comecemos pelo resumo inicial, chamado de “escalada” no jargão das redações de

televisão, recurso costumeiramente utilizado em noticiosos.

6 Para um outro enfoque acerca da notícia, verificar Henn (1994, 2000)

49

3.3.1 Escalada

Apresentador (em quadro): Boa noite. (1) O Banco Central eleva a taxa de juros

para 9,5% ao ano. E veja também os seguintes assuntos (entram imagens): (2) Ministro

Joaquim Barbosa espera os recursos do mensalão e evita falar de prisões de condenados

ainda este ano. (3) Um relógio que prevê a morte, mas com o objetivo de alertar. (4) Polícia

russa diz que havia drogas no navio do Greenpeace. Ativistas negam. (5) Pela primeira vez

na história dos Estados Unidos, uma mulher vai comandar o banco central. (6) Vítima de

câncer, a atriz Norma Bengell morre aos 78 anos.

Dos seis assuntos destacados na abertura do jornal, cardápio principal daquela

edição, todos apresentaram alguma referência temporal. De forma esquemática:

(1) A taxa de juros ao ano. Estabelece um índice anual, referência temporal direta.

(2) A espera pelos recursos e evitar falar de prisões ainda este ano7. Esperar denota

tempo, assim como não estabelecer um prazo para as prisöes.

(3) Um relógio que prevê a morte. Relógios contam o tempo, a morte é o tempo

acabado.

(4) Havia drogas. Verbo no passado, remete a algo já acontecido e a uma

investigação em andamento – o tempo está passando.

(5) Pela primeira vez na história. Nunca acontecera antes.

(6) Norma Bengell morre aos 78 anos. A morte e a idade da atriz quando de seu

falecimento – inexista talvez referência temporal mais direta, é certamente a mais definitiva.

É interessante observar que, a partir do item (2), quando imagens passam a ilustrar o

que é dito pelo apresentador, uma legenda é sobreposta a elas. O texto que apresenta é

bastante sucinto, composto por duas palavras em uma das cinco manchetes e por apenas uma

nas quatro restantes. Entre as cinco legendas, três são uma referência temporal direta.

Seguindo a numeração adotada acima, temos:

(2) Expectativa. Além de manifestar opinião acerca das prisões, denota espera por

que aconteçam – referência temporal bastante clara.

7 Cabe ressaltar que a frase (2) da “escalada” possui duplo sentido, podendo dar a entender que Joaquim Barbosa

só falaria depois do fim do ano sobre as prisões dos condenados, enquanto o ministro evitou, na verdade, falar

sobre a ocorrência das prisões antes do fim do ano.

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(3) Tempo precioso. Acerca do relógio que faz a contagem regressiva para a morte,

remete à vida como período precioso – referência temporal claríssima.

(4) Complicou. Sem referência temporal direta, acerca da disputa entre russos e

ativistas do Greenpeace.

(5) Poderosa. Sem referência temporal direta, acerca da nova diretora do banco

central norte-americano.

(6) Despedida. De Norma Bengell, falecida na madrugada daquele dia – como dito,

referência temporal definitiva.

Entre as seis manchetes destacadas na abertura do jornal, momento que se apresenta

para o telespectador o que a edição tem de melhor, para assim atraí-lo e retê-lo, todas

possuíam alguma referência temporal, sendo que, em três delas, a legenda que as

acompanhava também o fazia. Dois seis assuntos, dois traziam uma perspectiva em relação ao

futuro (a taxa de juros a partir daquele momento e a possível prisão dos condenados no

mensalão), enquanto os outros quatro se referiam diretamente ao passado. Além da referência

temporal contida no “boa noite” proferido na abertura – se “bom dia” fosse, seriam outro

momento e outra temporalidade. Vejamos as notícias uma a uma.

3.3.2 Primeira notícia – Comparativo da repressão a manifestações

Apresentador: A justiça mandou soltar o casal preso na segunda-feira durante os

protestos no centro de São Paulo. Hoje, um grupo de manifestantes seguiu da Avenida

Paulista até a Assembleia Legislativa. A repórter Juliana Barletta tem os detalhes. Boa noite,

Juliana.

A edição do Jornal da Cultura com que trabalhamos foi exibida numa quarta-feira, de

maneira que o casal agora libertado estava preso há dois dias. Além da similaridade (fala-se

de dois protestos), o encadeamento das frases reforça a sequência temporal entre a

manifestação de segunda e a de quarta-feira. Nesta última, a menção ao trajeto percorrido traz,

indiretamente, uma referência ao tempo que os manifestantes levaram para fazê-lo, assim

como a eventuais consequências para o deslocamento urbano dos cidadãos que não tomaram

parte no protesto. Em duas frases, portanto, três referências temporais, duas diretas e uma

indireta.

O apresentador passa então a palavra para a repórter, que faz uma participação ao

51

vivo. A própria entrada ao vivo constitui uma referência temporal. É o agora chegando ao

ambiente do espectador, através do dispositivo audiovisual. Recurso comumente utilizado no

início dos telejornais, o telejornal sai da serenidade pré-combinada e segura do estúdio e se

transfere para o local onde o evento está acontecendo. Ou estava, uma vez que a primeira

informação que a repórter transmite é a de que “os manifestantes já se dispersaram aqui na

porta da Assembleia Legislativa de São Paulo”. Depois de relatar que o protesto ocorrera

tranquilamente, o que pode ser considerado uma referência temporal aos eventos anteriores

que ocorreram no país a partir de junho de 2013, muitos deles violentos, e diante da

inexistência, no Brasil, de um “protocolo específico para a polícia lidar com as

manifestações”, a repórter anuncia uma reportagem sobre como a segurança pública de outros

países lida com os protestos.

O sujeito que assistiu à reportagem foi então informado de que a Inglaterra também

não possui leis específicas, mas que agressores podem ficar presos por até dez anos; ficou

sabendo ainda, entre outras coisas, que em Paris, na França, está garantido o direito a

manifestações com trajeto pré-estabelecido e autorizado, mas excessos são coibidos; já no

Brasil, esse controle, informa a reportagem, é da Polícia Militar, sendo que o dano ao

patrimônio público pode gerar uma pena de até três anos de cadeia. A matéria, quase

integralmente ilustrada com imagens de confrontos entre forças de segurança e manifestantes,

é concluída com a informação de que o casal solto naquela data fora preso com base na “Lei

de Segurança Nacional de 1983, época da ditadura”.

Em um minuto e trinta e seis segundos, o telespectador pôde ver imagens de dois

países separados do Brasil por um oceano, numa comparação em que o critério tempo de

prisão foi citado por duas vezes, além da referência a uma lei herdada do regime militar

brasileiro, substituído por uma democracia quase trinta anos antes da exibição da reportagem.

Com o nível de envolvimento e de internalização a depender, é claro, da subjetividade do

individuo, o conjunto de referências temporais e de deslocamento apresentado em um curto

intervalo é múltiplo – e espantoso. Uma pessoa que tenha vivido durante a ditadura, estado na

Inglaterra e em Paris e ainda por ventura participado de alguma manifestação pode, diante de

uma reportagem como essa, ser remetida a vínculos e emoções intensas em uma velocidade

descomunal. E estamos apenas no começo do noticiário.

52

3.3.3 Segunda notícia – Arco-e-flecha na guarda municipal

A segunda matéria, mais leve e um tanto jocosa, retrata uma prática incorporada pela

guarda municipal da cidade de Várzea Paulista. De acordo com o texto lido pelo apresentador,

“uma volta ao passado”: os integrantes da corporação passaram a utilizar “o tradicional arco-

e-flecha” em treinamentos. Quando da exibição da reportagem, o “esporte de origem

indígena” estava sendo praticando “há pelo menos dois meses”. O texto apresenta referências

temporais diretas e um entendimento bastante próprio e contundente acerca de o uso do arco-

e-flecha ser tomado como volta ao passado, mesmo que os artefatos utilizados sejam

modernos e de aspecto arrojado. De qualquer modo, a contraposição temporal do uso

contemporâneo de um instrumento considerado antigo subjaz integralmente a construção da

reportagem.

3.3.4 Terceira notícia – O relógio da morte

A terceira reportagem exibida pelo Jornal da Cultura aborda o “relógio da morte”.

Invenção de um norte-americano, conta-nos o apresentador, o objetivo é estimular “hábitos

saudáveis e prolongar a vida”. A matéria começa com uma singela pergunta, “O que você

faria se soubesse o dia da sua morte?”, para mais adiante explicar que, a partir de algumas

informações pessoais, o aparelho, que também funciona como um relógio comum, “calcula

quantos anos, meses, dias, horas, minutos e segundos o dono vai viver”. Pelo tema abordado,

acredita-se que seria pouco provável que algum espectador não se envolvesse de alguma

forma com o assunto apresentado, imaginando talvez em que ponto do futuro o referido

relógio terminaria sua contagem regressiva particular. Nesse sentido, cabe uma menção à

intervenção da repórter, quando aparece em quadro, em uma relojoaria, para dizer que

“nenhum especialista conseguiria adiantar ou atrasar os ponteiros” do relógio da morte. Pelo

tema de que trata a matéria, mesmo sem fazer referência a qualquer data específica,

considera-se que estabelece uma referência temporal intensa, principalmente em relação ao

futuro e a quanto ainda se vai viver, mas também ao passado e a quanto já se viveu.

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3.3.5 Quarta notícia – Nobel de Química

A quarta notícia, a de menor duração até então, relata quem foram os ganhadores do

prêmio Nobel de Química em 2013. A referência temporal direta que apresenta é em relação

aos anos 1970, quando os “três cientistas criaram as bases dos potentes programas utilizados

para compreender e prever os processos químicos”. O anúncio da premiação se dá em

Estocolmo, na Suécia, informação que pode, pela distância, significar uma referência

temporal.

3.3.6 Quinta notícia – Giro internacional

A quinta notícia é, na verdade, um bloco apresentando uma sequência de notícias

internacionais, com um globo a indicar a localização do país onde o fato se deu. O primeiro

local indicado é a Itália, onde o premiê do país e o presidente da Comissão Europeia foram

vaiados ao chegar à ilha de Lampeduza, “porta de entrada de imigrantes ilegais na Europa”. A

narração informa ainda que “os dois líderes anunciaram que os duzentos e oitenta imigrantes

ilegais mortos num naufrágio na semana passada serão enterrados com honras de estado”. A

referência temporal é direta, tanto em relação à semana anterior como em relação à data futura

da realização do funeral.

Gira o desenho do globo terrestre e somos transportados para a Rússia, onde

autoridades locais afirmam, segundo a narração, ter encontrado drogas no navio do

Greenpeace utilizado no ataque a uma plataforma de petróleo no mês anterior, razão pela qual

“trinta ativistas, incluindo uma brasileira, estão presos no país”. Além da referência temporal

direta, o fato de haver uma brasileira entre os presos, com a respectiva exibição de imagens

dela e de outros integrantes do Greenpeace atrás das grades, pode gerar um vínculo afetivo

com o telespectador brasileiro.

Movimenta-se o globo outra vez e o sujeito que assistia ao Jornal da Cultura soube

que “no Japão, seis operários da usina nuclear de Fukushima foram contaminados com

radiação”. A narração relembra que o local foi atingido por “um terremoto seguido de

tsunami” em 2011 e que “até hoje são registrados vazamentos de material radioativo”. A

referência temporal ao passado é direta.

O último giro do globo leva o telespectador até a China, onde cientistas

“desenvolveram a primeira córnea artificial do mundo”, depois de dez anos de pesquisa. A

54

narração informa que 70% dos voluntários testados passaram a enxergar melhor. Há uma

referência direta a tempo decorrido – os dez anos de pesquisa – como também a uma

perspectiva de futuro – a possibilidade de enxergar melhor.

3.3.7 Sexta notícia – Gasta mais quem ganha mais

Apresentador: Uma pesquisa revela que os hábitos de consumo dos brasileiros

mudam conforme o aumento da renda. Quem ganha mais, gasta mais, e não é só tendência da

classe emergente.

A reportagem começa e o repórter narra as aquisições recentes de um publicitário:

“Arthur, de trinta e dois anos, viu a renda familiar melhorar nos últimos tempos. Conseguiu

matricular o filho de quatro anos numa escola particular e, quando recebeu o primeiro

aumento, comprou um carro. No ano passado, deu entrada na casa própria.” Além das idades

citadas, tem-se referências temporais diretas em nos últimos tempos, em quando recebeu o

primeiro aumento e no ano passado. Uma em cada uma das três frases que abrem a matéria.

Uma fala do personagem é inserida, para que ele diga que a próxima etapa é “ir morar” na

nova casa – uma referência temporal de futuro. Por outro lado, o indivíduo espectador pode

estabelecer uma comparação entre a vida do personagem que acaba de conhecer e sua própria,

eventualmente em termos de quais as aquisições que fez nos últimos tempos, quando recebeu

o primeiro – e, mais importante, o mais recente – aumento, e ainda lembrar-se de sua situação

habitacional – aluguel, financiamento ou moradia quitada. Passado e futuro de uma vida

inteira se mesclando no presente de um provável sofá.

A reportagem segue com a apresentação das faixas de renda utilizadas na definição

das classes sociais brasileiras e os respectivas aquisições priorizadas pelos integrantes de cada

uma delas. As migrações entre as faixas farão com que o mercado tenha que se ajustar aos

novos hábitos de consumo, observa um economista entrevistado, ao que o repórter contrapõe

que metade das famílias gastou mais do que a própria renda em 2012. O economista responde

destacando a importância de poupar. Tem-se, portanto, uma referência ao passado, com a qual

uma imediata relação pode se estabelecer por parte do espectador que simplesmente se

perguntar tenho gasto mais do que ganho?, e, contígua a ela, uma referência, mesmo que

menos direta, ao futuro: poupar.

55

3.3.8 Sétima notícia – Aumento da taxa Selic e índice da inflação

Apresentador: O comitê de política monetária do Banco Central anunciou agora há

pouco a elevação da taxa básica de juros da economia em 0,5%. É o quinto aumento

consecutivo da Selic, que chega agora a 9,5% ao ano. O Copom acredita que a medida vai

ajudar a controlar a inflação. Mais cedo, o governo divulgou o aumento da inflação em

setembro, mas, pela primeira vez no ano, o índice acumulado nos últimos doze meses ficou

abaixo dos 6%.

Novamente, encontram-se diversas referências temporais em poucas linhas. O

anúncio acontecido há pouco. A sequência que chega ao quinto aumento consecutivo.

Divulgada mais cedo, a inflação de setembro subiu, uma referência temporal por si só, mas

ficou abaixo de determinado patamar pela primeira vez no ano. Na sequência, um gráfico a

ocupar toda a tela é exibido, apresentando um comparativo da inflação de setembro em

relação a agosto e também em relação a setembro do ano anterior. O índice acumulado no

ano e nos últimos doze meses também é apresentado. Uma fala do ministro da Fazenda é

inserida, e Guido Mantega observa que o governo vai “continuar alerta para impedir que a

inflação volte a subir e atrapalhar o consumidor brasileiro". Em seguida, um dos dois

convidados presentes no estúdio do telejornal auxilia o apresentador na interpretação dos

dados.

A íntegra do trecho, a partir da referência à divulgação da taxa Selic pelo

apresentador, com o posterior gráfico em tela cheia, seguido pela fala de Mantega e pelos

comentários do convidado, tem uma duração de quatro minutos e vinte segundos. Dentro da

gramática dos noticiários televisivos, longos minutos dedicados à economia, mas em que se

está primordialmente falando, para utilizar linguagem jornalística, do futuro do bolso do

consumidor e cidadão brasileiro.

3.3.9 Oitava notícia – Poderes especiais para Maduro

O telejornal retorna ao noticiário internacional, desta vez com o foco na América do

Sul. Informa o apresentador que “Seis meses depois de assumir a presidência da Venezuela,

Nicolas Maduro pede decreto para governar o país sozinho por um ano”. Imagens do discurso

de Maduro em Caracas são exibidas, acompanhadas da informação de que o requerimento por

poderes especiais é feito a dois meses das eleições municipais. Fica-se sabendo ainda que a

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fala do presidente venezuelano no parlamento durou três horas e que a crise econômica no

país “se aprofundou” desde que ele foi empossado, em abril.

A notícia dura pouco mais de um minuto. Ordenando no tempo os eventos citados

nesse pequeno intervalo, temos: (1) a posse de Maduro em abril, (2) o agravamento da crise

na Venezuela nos seis meses seguintes, (3) a fala de três horas no parlamento, (4) as eleições

municipais em dois meses e (5) o pedido do presidente para autonomia plena durante um ano.

Haja calendários para compreender tal quantidade de processos em tão curto período de

tempo. O telespectador que tenha apresentado um bom nível de abertura para essa notícia

recebeu, em sessenta segundos, as seguintes referências temporais: um intervalo de seis meses

para trás, um intervalo de três horas ocorrido no dia em que a notícia é exibida, e mais dois

intervalos para frente, um com dois e o outro com doze meses. Supondo que tenha

internalizado as informaçóes e as relacionado com algum intervalo temporal subjetivo,

possuirá uma mente privilegiada se não se tiver confundido até mesmo com suas próprias

memórias. Alguma interação, entretanto, é provável que possa ter havido entre a memória do

sujeito e a notícia apresentada.

3.3.10 Nona notícia – Uma mulher no banco central americano

Apresentador: Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, uma mulher deve

comandar o Federal Reserve, o Banco Central.

A reportagem começa a ser exibida e o telespectador é rapidamente informado de que

a nomeação aconteceu naquele mesmo dia, que o atual presidente do banco central norte-

americano fica no cargo até janeiro e que a nova ocupante foi conselheira de Bill Clinton

enquanto este ocupou a presidência dos Estados Unidos. A narração informa ainda que a

“indicação coincidiu com o nono dia de paralisação parcial” no país. A falta de acordo entre

democratas e republicanos sobre o novo orçamento do país levou oitocentos mil funcionários

a entrar em férias, afetando serviços públicos e mantendo pontos turísticos fechados. “Só na

última semana, cerca de trinta casamentos” que seriam realizados em um conhecido parque

tiveram que ser cancelados.

De acordo com a praxe televisiva noticiosa, a matéria é bastante breve, possui um

minuto e quinze segundos e, durante esse intervalo de tempo conduz o telespectador pela

troca de comando no banco central americano, definida naquela data, mas que só aconteceria

quase três meses depois, relembra-o do período de Bill Clinton na presidência e de que os

57

serviços públicos estão parados há nove dias, e conclui com a informação de que casamentos

estão sendo cancelados devido a isso. Elementos diversos e díspares a movimentar

aceleradamente o ambiente do indivíduo espectador, abrindo um leque de possibilidades de

internalizações e subsequentes inter-relações com a memória e com o tempo privado do

sujeito.

3.3.11 Décima notícia – Câmara aprova o Mais Médicos e giro de notícias

Em formato semelhante ao do giro internacional, a décima notícia exibe uma série de

notas ilustradas com imagens, mas de fatos acontecidos no Brasil. Inicia-se com a informação

destacada pelo apresentador, acerca da aprovação, na Câmara dos Deputados, da medida

provisória que criava o programa Mais Médicos, sendo que “o Ministério da Saúde vai

conceder os registros temporários e os conselhos regionais de medicina ficam encarregados de

fiscalizar a atuação desses profissionais”. Em seguida, ainda na mesma seara, o espectador foi

informado da possível suspensão da venda de planos de saúde de vinte e seis operadoras, que

foram punidas por demora no atendimento aos segurados. Segue-se falando de saúde e o

Jornal da Cultura informa que o o estado de São Paulo iria abrir “concorrência para a

construção de três hospitais” através de parceria público-privada. O giro segue e são exibidas

imagens do rompimento de uma adutora na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, alagando

ruas e deixando cento e sessenta mil pessoas sem água. Em Goiânia, professores em greve e

revoltados com a redução no vale-transporte protestaram invadiram a câmara de vereadores e

passaram a noite no local. A imagem volta a mostrar o apresentador, no estúdio, e ele

acrescenta que “ainda sobre o Mais Médicos, a Câmara dos Deputados aprovou agora à noite

a emenda que permitiu incluir médicos aposentados no programa federal”.

Este segmento do telejornal é o que apresenta menos menções a datas e a intervalos

temporais fixos, mas é significativo por estar dividido entre três referências explícitas ao

futuro e três ao passado. Em relação ao futuro, o sujeito que atentou ao que foi transmitido

tomou conhecimento de que mais médicos poderiam chegar ao país, assim como poderia vir a

ser suspensa a comercialização de planos de saúde, além de receber a informação acerca da

abertura de uma licitação para a construção de novos hospitais em São Paulo. No que tange ao

passado, os problemas com o vazamento de água no Rio de Janeiro, com a impressionante

imagem da cratera provocada pelo rompimento da tubulação de água, os professores que

dormiram na câmara de vereadores de Goiânia, e a informação quase de última hora, de

58

“agora à noite”, acerca da inclusão de médicos aposentados no programa Mais Médicos.

3.3.12 Décima primeira notícia – Julgamento dos recursos do mensalão

A notícia acerca do andamento do processo de julgamento da ação penal 470 no

Supremo Tribunal Federal, conhecida popular e inicialmente apenas como mensalão e depois

passando a ser também chamada de mensalão do PT (pela posterior emergência do mensalão

mineiro ou tucano, envolvendo políticos do PSDB, partido adversário) possui tal quantidade

de referências temporais que se considera mais apropriado e eficaz manter a íntegra de sua

descrição, destacando as menções diretas e indiretas a tempo. Observe-se que a notícia dura

um minuto e quarenta e cinco segundos.

Apresentador: O ministro Joaquim Barbosa pretende começar ainda este mês o

julgamento dos novos recursos dos condenados do mensalão. Ao mesmo tempo, ele acredita

que Supremo Tribunal Federal pode finalizar o processo dos 13 condenados que não têm

direito a novo julgamento. A decisão pode levar para o início do cumprimento da pena de

prisão.

Narração (entram imagens): O ministro Joaquim Barbosa, o presidente do Senado,

Renan Calheiros, e a presidente Dilma Rousseff receberam hoje da Câmara dos Deputados a

medalha comemorativa aos 25 anos da constituição. Parlamentares que participaram da

elaboração da carta também receberam a medalha, entre eles o deputado José Genoíno,

condenado no processo do mensalão, que se submeteu a uma cirurgia cardíaca recentemente

e foi representado por um irmão. Mais cedo, no STF, o ministro Joaquim Barbosa falou sobre

os próximos capítulos do processo do mensalão. Hoje, o STF publicou o resumo do

julgamento dos primeiros recursos. Amanhã, deve sair a íntegra, e, na sexta-feira, começa a

contar o prazo de 5 dias para a apresentação de novos recursos, os chamados embargos dos

embargos. A previsão do Supremo é que esta fase seja rápida. Após a análise desses recursos,

Joaquim Barbosa acredita que o tribunal vai declarar o trânsito em julgado para os

condenados que não têm direito aos embargos infringentes, que permitem um novo

julgamento. Com isso, os 13 dos 25 réus sem direito a embargos infringentes poderão ir para

a cadeia ainda este ano. Entre eles, o delator do mensalão, Roberto Jefferson, e o deputado

federal Valdemar Costa Neto.

São pelo menos treze referências temporais diretas, tanto em relação ao passado

quanto ao futuro, havento intervalos cronologicamente definidos como outros não

59

estabelecidos. Seria interessante estimar quantos destes intervalos um possível telespectador

conseguiria reproduzir após assistir a esta notícia. Por outro lado, parece procedente se

considerar que, pelo envolvimento emocional que o caso do mensalão petista despertou no

país, internalizações significativas possam ocorrer diante de notícias que o refiram, tanto na

subjetividade dos correligionários da sanha vingadora que brotou em alguns setores da

sociedade brasileira, como na percepção daqueles que veem na ação penal 470 um julgamento

politico antes de tudo.

3.3.13 Décima segunda notícia – Chamada de série de reportagens

A décima segunda intervenção noticiosa no Jornal da Cultura de 09 de outubro de

2013 foi o anúncio da exibição, a partir da semana seguinte, de uma série de reportagens

entitulada de “Questão Racial”. Conforme o resumo apresentado, os negros, maioria da

população brasileira, ainda encontram mais dificuldades para obter “educação e emprego”,

além de receber “salários menores”.

Exceto pela referência à semana que vem, quando as reportagens passariam a ser

exibidas, a chamada não apresenta referências temporais diretas. Apresenta, no entanto, uma

referência a temporalidades implícitas que pode ser considerada bastante forte. A primeira

delas, claro, refere-se ao período da escravidão, e acredita-se que não seria necessário um

conhecimento preciso acerca de sua duração, abolida em 1888 que foi, para alguma referência

a esse passado brasileiro ser elaborada pelo telespectador, mais ainda se possuir algum

envolvimento com a dominação a que foram submetidos os negros. Igualmente, ao definir os

entrevistados pelas reportagens como “vítimas do racismo”, acredita-se também que alguma

relação pessoal com a história do individuo espectador, seja ele quem pratica o racismo,

aquele que o sofre ou quem o condena, possa ocorrer, gerando alguma internalização a partir

da percepção e através da memória do sujeito espectador, seja pela lembrança favorável ou

contrária à história escravocrata do Brasil – assim como de suas consequências, ainda hoje

presentes.

O apresentador volta a aparecer em quadro, reforça a exibição da série a partir da

segunda-feira seguinte e em seguida comenta que um telespectador pede pela internet “que a

gente fale da greve dos professores no Mato Grosso”. A informação que transmite então dá

conta de que a greve começou há dois meses, por aumento salarial e contra os gastos com a

Copa do Mundo. A referência temporal direta são os dois meses, mas há também –

60

conjuntamente – a menção futura à Copa e aos protestos que haviam recentemente acontecido

no país, durante a Copa das Confederações, além de uma referência temporal – mesmo que

não explicitada pelo apresentador – ao próprio Jornal da Cultura, que destacara no começo da

edição o protesto ocorrido naquele dia em São Paulo, capital.

A palavra segue com o apresentador e ele faz nova intervenção em relação à

segunda-feira seguinte, comentando que:

[...] o programa Roda Viva vai entrevistar a ex-senadora Marina Silva, que

acaba de se filiar ao PSB, do Eduardo Campos. O programa será ao vivo

logo após o Jornal da Cultura, e você já pode mandar a sua pergunta a ex-

senadora, uma das virtuais candidatas à presidência da república em 2014.

Mais uma vez, uma breve sequência a reunir referências temporais diretas tanto ao

passado quanto ao futuro, acrescidas da importância de um dos eventos que refere, seja para o

indivíduo, seja para a sociedade, a eleição presidencial.

3.3.14 Décima terceira notícia – Gols da Série B

A referência temporal ao passado recente é clara, os gols exibidos são

majoritariamente os da rodada mais recente. Começa-se com um jogo do Palmeiras, cujo

descenso para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro de futebol foi, pela tradição do

time no futebol brasileiro, bastante destacada. O espectador é informado de que a equipe é

líder da Série B, e de que o vice-líder, o Chapecoense, empatara no jogo realizado no dia

anterior e voltaria a jogar no sábado seguinte. Se mantivesse a posição, o time subiria para a

primeira divisão pela primeira vez.

Quando a câmera volta a enquadrar o estúdio, o apresentador observa que um dos

convidados está sorrindo, ao que ele responde que é palmeirense e que a equipe voltaria à

primeira divisão no ano seguinte. O apresentador então pergunta se o Palmeiras, ao retornar,

ganharia o campeonato da Série A. A resposta que recebe é um espirituoso lugar-comum: “Eu

não faço previsões a respeito do futuro, só a respeito do passado”. Passado cuja interpretação

a seu respeito pode efetivamente mudar, mas que está seguramente posicionado sobre uma

linha. Quanto ao futuro, Balzac foi preciso ao escrever que “não há nada mais infalível do que

um profeta mudo”8.

8 Os Jornalistas (Ediouro, 1999).

61

3.3.15 Décima quarta notícia – Morte de Norma Bengell

A matéria de encerramento do jornal é dedicada à morte da atriz Norma Bengell,

ocorrida naquele dia. Ao anunciar a reportagem, o apresentador diz: O corpo da atriz Norma

Bengell será cremado amanhã no memorial do Carmo, no Rio de Janeiro. Ela morreu nesta

madrugada aos 78 anos, vítima de um câncer no pulmão.

Em cerca de dez segundos, o espectador recebe três delimitações temporais: a morte

na madrugada, a cremação no dia seguinte e os setenta e oito anos de duração da vida da

atriz. Em seguida, aproximadamente vinte segundos de imagens do filme Os Cafajestes são

exibidas, enquanto a narração informa que Norma Bengell, “no ano de 1962, aos 27 anos,

protagoniza o primeiro nu frontal do cinema brasileiro”. Tem-se então um salto temporal para

2010, ano em que, o índivíduo que estiver a assistir é informado, a atriz foi entrevistada por

Antônio Abujamra no programa Provocações, da própria TV Cultura – ao que um trecho da

entrevista, de um minuto e trinta segundos, é exibido. Mais do que aquilo que é dito por ela e

pelo entrevistador, a força da inserção da entrevista concedida poucos anos antes da morte da

atriz está na imagem da mulher em idade avançada. A beleza da juventude resiste nos traços

da senhora septuagenária, mas no abrupto salto temporal de quase cinquenta anos (das cenas

de nudez do filme de 1962 para a entrevista de 2010) reverbera a infalibilidade da passagem

do tempo, mais ainda quando ambas imagens são reunidas pelo derradeiro evento da vida

daquela mulher, intervalo temporal acabado e definitivo de sua história.

3.3.16 Décima quinta notícia – Encerramento

Como informações finais do telejornal, o apresentador informa que uma reportagem

de um programa da emissora recebera um prêmio jornalístico e que poderia ser vista no

domingo seguinte. Além disso, o âncora dedica o “boa noite” para um ganhador de loteria que

perdera o prazo de noventa dias para retirar o prêmio de vinte e três milhões de reais,

encerrado no dia anterior. “Mas ele ganhou uma nova chance. A Caixa Econômica Federal

informou que o acertador poderá buscar o prêmio quando terminar a greve dos bancários”.

Passado e futuro intercalados no improvável desapego de um cidadão a experimentar o

desconhecimento acerca da própria fortuna.

62

4 CONCLUSÃO

O intuito dessa investigação residia em examinar a interferência – ou o grau de

interferência – da notícia audiovisual na percepção humana do tempo, motivação surgida da

observação cotidiana do papel significativo dos meios de comunicação na vida e na

organização da sociedade, muitas vezes a determinar horários e rotinas dos telespectadores,

fato a depender também do interesse e da afeição destes por determinados programas ou

assuntos.

São aspectos de base, de fundamento na relação notícia-tempo-indivíduo que aqui se

consideraram, na tentativa de aproximação a uma compreensão mais geral – ontológica –

dessa relação. Perguntar-se sobre a interferência que têm ou podem ter organismos noticiosos

em nossa percepção da passagem do tempo apartando – por uma inadequada devoção aos

limites de uma ciência ou outra – elementos importantes à discussão resultaria, acredita-se,

em debate afastado da complexa realidade do ambiente da vida cotidiana, contraditoriamente

desconectado da irrestrita presença das notícias em nossa sociedade.

Dentro de uma abordagem baseado na ontologia científica como apresentada por

Mario Bunge, partiu-se de parâmetros sistêmicos fundamentais (permanência, ambiente,

autonomia), definindo-se a função memória como diretamente ligada à autonomia e à

consequente permanência dos sistemas no ambiente. Elaborou-se ainda uma reflexão sobre o

conceito sequencial e unidimensional de tempo, surgido da percepção humana de antes e

depois, e se manifestou concordância com o tempo irreversível da fenomenologia.

A partir da filosofia de Bergson, observou-se que o modo humano de recordar e de

armazenar recordações – através de paradas virtuais no tempo – é condizente com a maneira

linear como medimos o tempo, mesmo que, ao fazê-lo, deixemos de lado sua duração, aquilo

que se vive e sente. Bergson, porém, crê no armazenamento da memória em algum lugar fora

do corpo, entrando em desacordo com a neurociência da atualidade. Estabelecendo-se,

entretanto, um paralelo entre o pensamento bergsoniano e o trabalho mais contemporâneo de

neurocientistas, verificou-se com contentamento que há consideráveis pontos de contato entre

ambos no que tange à função primordial da memória, qual seja, auxiliar-nos diante das

demandas do momento presente.

Sendo a memória a coleção de nossos estados ao longo do tempo, e podendo esses

estados sofrerem alterações diante de mudanças no ambiente em que estivermos, buscou-se

verificar as interferências temporais que as notícias, ao aportarem no ambiente, possam

63

representar. Para isso, analisou-se a íntegra de um telejornal, com o foco nas referências

temporais diretas ao passado e ao futuro apresentadas pelo conjunto de todas as notícias.

Verificou-se que o tempo é vertiginosamente manejado pelas notícias, sendo as referências ao

passado e ao futuro mescladas de forma intensa, com os relatos – sempre temporalmente

lineares – avançando e recuando no tempo em velocidades que aceleram e atrasam de acordo

com a demanda informativa, à revelia do indivíduo espectador.

O nível de abertura a tais variações, por outro lado, é bastante subjetivo, assim como

o efeito que possam vir a ter sobre cada sujeito separadamente. É preciso manter à tona o

entendimento de que “uma relação será dita externa quando os dois elementos envolvidos

puderem entrar e sair da mesma sem alterar suas histórias; caso contrário, a relação será dita

interna” (SANTAELLA e VIEIRA, 2008, p. 84). Há diversas variáveis envolvidas na relação

do telespectador com as notícias a provocarem alguma flutuação em seu ambiente, mas, a

partir do momento em que houver um nível de abertura suficiente para que alguma

internalização aconteça, o indivíduo terá sofrido uma alteração, por mínima que seja, em sua

memória – e a memória, conforme exposto nas páginas anteriores, é também responsável pela

autonomia de qualquer sistema. Além disso, a notícia terá sido também um evento a permitir

que se defina o tempo a partir da noção de antes e depois, e a subsequente internalização, caso

ocorra, terá indicado o sentido do fluir do tempo.

Assim, acredita-se, resta comprovada a hipótese de que o fluxo noticioso

contemporâneo, ao interagir com as paradas virtuais da recordação do indivíduo, pode alterar

sua memória, interferindo em sua autonomia. Fica por verificar a possibilidade de se mensurar

o tipo e o grau dessa interferência, contiguamente à pergunta que inquire por que uma notícia

se torna memória permanente.

4.1. Notícia, parte da memória

Mesmo com a incerteza acerca de um tempo que preceda a existência, anterior ao

Big Bang, esta investigação tem como verdadeiro o fluir de uma flecha do tempo,

independente da percepção humana. A direção que segue em seu definir do que é antes e do

que é depois, a partir dos conceitos anteriormente expostos, é a da internalização de relações.

Seres surgidos em um ambiente que assim antecipadamente operava, desenvolvemo-nos em

harmonia com tal realidade – marcha do tempo que acompanhamos. Nesse processo, vivemos

acumulando o passado, história de todos e cada um. Duração que conecta o havido com o

64

agora, intervalo único a compreender a íntegra da vida do sujeito, a lhe garantir permanência e

evolução. Para Bergson, evolução que é a essência da vida e implica em um presente em que

o passado persiste, coesa duração a garantir um perene evoluir. “Continuidade de mudança,

preservação do passado no presente, duração real – o ser vivo parece, então, compartilhar

esses atributos com a consciência” (BERGSON, 1998, p. 22-3, tradução nossa). O passado

permanece, à revelia de nossa vontade, vinculado a nosso presente. Duração indivisível a se

confundir com a flecha do tempo, reinventando-a e a reforçando a cada instante, amálgama e

sentido de nossa perene evolução e de nossa finitude. Tempo contínuo, pontiaguda

extremidade de um presente sempre a avançar. Prévia realidade que encontramos e com a qual

precisamos, espacial e temporalmente, lidar.

O presente que esvanece sem cessar é armazenado, igualmente sem cessar, em nosso

passado. E o faz organizadamente, de acordo com uma ordem temporal em que o único e

fundamental critério é a primordial percepção de antes e depois. Registro de nossa duração

sentida e vivida no tempo, mas que a contém e dispõe como sequência de eventos no espaço

de uma linha do tempo disposta unidimensionalmente em nossa memória. A partir disso,

considera-se que a notícia audiovisual pode reforçar nossa compreensão espacial do tempo.

Durante uma exibição noticiosa, relações podem ser internalizadas, indicando tanto o

sentido do tempo como um entendimento linear de sua passagem. O colapso relacional

acontece e o sistema indivíduo está efetivamente alterado. A notícia é um evento no tempo –

e, uma vez internalizada, torna-se também um evento no tempo particular do sujeito. Passa a

fazer parte de sua memória, encaixando-se no conjunto de todos os outros eventos que

compõem essa memória. Assim como as experiências não-noticiosas, algumas originarão

recordações mais sólidas que outras, terão mais relevância que outras. Mas, de alguma forma,

terão sido parte da vida e do registro subjetivo da vida do indivíduo que internalizar uma

notícia.

Tendo-se em mente a definição da função memória mais acima apresentada, a

diferença de informação trazida pela notícia à internalidade do sujeito não só ocupa um

intervalo em suas lembranças, como com elas se relaciona. A notícia – como qualquer outra

informação percebida e apreendida – não é absorvida de maneira cristalina. Entra para o

acervo de informações do indivíduo e é reelaborada9 a partir da história do sujeito até então.

9 A sequência deste processo de uma nova elaboração levaria a descrição para aquilo que a função de

transferência detalha como uma possível próxima etapa no comportamento de um sistema, após o surgimento de

alguma assimetria no ambiente. Conforme Santaella e Vieira (2008, p. 87-8), a função de transferência leva o

sistema a devolver ao ambiente a informação recebida, mas transformada segundo sua própria memória. A ideia

de reelaboração é portanto advinda da definição de função de transferência.

65

Gera uma transformação interna e passa a fazer parte desse histórico de transformações.

Recuperando a notação seguida por Santaella e Vieira (2008), seja um sistema de memória M

e estado E. Para qualquer instante t no tempo, o estado do sistema pode ser expresso como

E(t) = E(t – τ) * M(τ)

onde τ representa o tempo passado até o momento imediatamente anterior a t, e o

operador * indica a ação da memória M – acumulada até o tempo τ – sobre a variação no

estado E do sistema entre os tempos t e τ. A notação representa o processo em que a memória

age sobre a assimetria presente no ambiente, depois ou enquanto essa é internalizada. O

intervalo definido pelos instantes τ e t é o intervalo de tempo processual em que ocorre a

internalização da diferença de informação trazida ao ambiente pelas notícias. Delimita o

período em que ocorre o colapso relacional. Depois de sua ocorrência, é inviável ao indivíduo

se desvincular do evento que acaba de vivenciar. Se o sujeito no ambiente não estivesse, ou se

a emissão do noticioso ao ambiente não aportasse, essa vinculação não aconteceria. Ao

compartilhar o tempo do ambiente com uma notícia, o indivíduo foi afetado pela diferença

gerada por ela. Mais que a própria notícia, o evento é perceber a assimetria suscitada por sua

exibição. O intervalo τ – t corresponde à duração da notícia (ou do noticiário, se o

considerarmos integralmente), um tempo definido em que se sentiu e viveu um ambiente

alterado pela presença da notícia.

O intervalo de tempo processual, é verdade, pode se estender para além do término

da notícia (ou do noticiário). Nada impede a notícia de reverberar internamente mesmo depois

de sua exibição e correspondente apreensão pelo sujeito. A memória pode seguir elaborando e

reelaborando a diferença internalizada. Mas, em certo sentido, esse poderia ser considerado já

um outro tempo processual. O instante t representa o momento em que a notícia terminou. Se

o estado do sistema segue a mudar a partir disso, será já um outro estado que apresentará.

Deixará de ser um E (t) para ser um E (t1), por exemplo, mesmo que a assimetria externa não

esteja mais presente no ambiente. A informação que gerou o desequilíbrio entre os instantes τ

e t, entretanto, permanecerá registrada na memória do indivíduo.

4.2 A notícia e a existência do tempo

Acordando-se que a noção de ordenamento dos eventos a partir de um critério de

antes e depois foi fundamental para a criação de um conceito de tempo, seriam as notícias um

conjunto de eventos que reforça per se o próprio conceito de tempo? A exibição de uma única

66

notícia configura já uma marca temporal em termos de antes e depois. Da mesma maneira,

argumentou-se logo acima que as notícias, em um ambiente onde o tempo flui no sentido da

internalização das relações, podem elas próprias apontar o sentido do tempo. Isso, a partir do

momento em que o sistema aberto do indivíduo internaliza a diferença (de informação, de

desejo, de poder, de status, entre tantas outras) que emerge no ambiente com a exibição de um

noticiário, abundante em significados com seus diversos elementos simbólicos. Desse modo,

as notícias podem ser não só indicativas do sentido da flecha do tempo (quando

internalizadas), como também estabelecer uma sequência de eventos própria ao surgimento do

conceito de tempo, uma vez que esse advém de uma relação baseada na ideia comum de antes

e depois.

Nesse sentido, tanto uma notícia singular como um telejornal podem representar

eventos a conferir procedência ao tempo unidimensional que coletivamente adotamos.

Considere-se então um ambiente com pessoas e permeado por notícias. Considere-se que

essas notícias trazem informações que, de outro modo, não chegariam até ali. Os indivíduos

presentes estão agora envoltos por uma atmosfera noticiosa que ocupa a íntegra do tempo de

sua veiculação, qualquer que seja esse tempo. Outras coisas podem acontecer nesse mesmo

tempo, mas isso não reduz o tanto de tempo ocupado pelas notícias. O ambiente passa a

conter informações de que não dispunham os indivíduos. A própria presença de um noticiário,

produto audiovisual, é já uma diferença de informação. Considere-se que um ou mais

indivíduos atentem, por um instante que seja, ao que é veiculado. O tempo passou – e esse

sujeito já não é mais o mesmo.

De qualquer modo, não o seria, mas a mudança experimentada contém elementos da

diferença de informação surgida com a chegada da notícia. O sistema noticioso gera uma

assimetria no ambiente. Mesmo que involuntariamente, o indivíduo percebe essa diferença.

Ao apreender a informação que antes ali não existia, sofre o sujeito uma alteração que não

pode ser desfeita. Ao final desse processo, que decorre durante a exibição de uma notícia, a

assimetria advinda da presença do noticiário está reduzida. A relação com o ambiente se

internaliza, e se torna inviável, para o sujeito, o retorno ao estado anterior. O tempo ocupado

pela notícia define o próprio intervalo de tempo processual em que se dá a internalização da

relação entre o sistema indivíduo e o sistema ambiente. Um processo que guarda as

características do colapso relacional, na maneira como Uyemov (1975) o conceitualiza – a

relação entre o indivíduo e a notícia só desaparecerá se o próprio sujeito desaparecer. Mesmo

que o noticiário desapareça, o indivíduo já internalizou o que fora veiculado. Como referido

anteriormente, ainda a partir de Uyemov, essa internalização é também uma indicação do

67

sentido da flecha do tempo.

Ao se considerar que cada notícia é também um evento, a duração desse evento é

contígua a um período da duração da vida do sujeito que compartilha o ambiente com a

notícia veiculada. A duração que se sente e vive, conforme Bergson, recebe da notícia a

delimitação de um intervalo temporal. Aquele que é o da própria duração da notícia. É esse o

intervalo de tempo processual da internalização das relações, a estabelecer um antes e um

depois para o sujeito. Se o nível de abertura for suficiente, um novo intervalo se constitui ao

longo da duração do indivíduo a cada notícia veiculada.

(...) o começo e o término de um processo encerram um intervalo que é

chamado a duração daquele processo. Nós podemos agora definir tempo

como o conjunto de todos os intervalos temporais ou, mais simplesmente,

como o conjunto de todos os presentes (DENBIGH, 1981, p. 20, grifos no

original).

Por mais que o próprio Denbigh reconheça que essa definição poderia ser ainda mais

bem elaborada, ela não é desprovida de clareza ao expor uma definição linear de tempo.

Linear, por trabalhar com a ideia de intervalos, o que já pressupõe um início e um fim para

cada um deles. A notícia audiovisual possui igualmente um ponto inicial e um ponto final. Ela

define um período do presente e faz parte do conjunto de presentes que compõem o tempo –

que vem a ser o tempo unidimensional caracterizado por Denbigh, conceito primordialmente

oriundo da noção de um presente coletivo. Sendo a notícia também um evento, além de

possuir a sua própria duração, ela colabora para a existência do conceito de um tempo linear,

baseado em nossa compreensão instintiva da existência factual de antes e depois.

Antes da chegada da notícia ao ambiente, o indivíduo nele inserido não sente ou vive

qualquer assimetria referente a ela. Durante a exibição de uma notícia, dá-se o intervalo de

tempo processual em que ocorre a internalização da relação entre o sujeito e o ambiente agora

ocupado pelo noticioso. O indivíduo apreende a notícia – e o tempo fluiu nesse sentido.

Depois da notícia, constituiu-se um evento cujo começo e fim correspondem às extremidades

do intervalo em que notícia e sujeito compartilharam o mesmo ambiente. Esse único evento,

se alinhado a qualquer outro da história do indivíduo (inclusive outra notícia), é já suficiente

para definir o tempo linear que coletivamente trabalhamos. A notícia reafirma o tempo

unidimensional e indica o sentido da flecha do tempo, sendo possível expandir esse

entendimento para um noticiário como um todo, com seu conjunto de notícias individuais. O

noticiário é também um evento que ocupa um intervalo no tempo e, se considerado como um

único processo temporal, pode ser descrito de forma similar à proposta para uma notícia

68

isoladamente. Com a distinção de, durante o intervalo de tempo correspondente à sua duração,

poder gerar uma série mais numerosa de internalizações (uma, ou pelo menos uma, para cada

notícia apreendida e internalizada).

A abordagem a partir do tempo de processo permite ainda a consideração da

existência de um outro intervalo, mais relacionado ao caráter simbólico da presença constante

das notícias. Mesmo que não configure um tempo processual durante o qual ocorre a

internalização de relações advindas das notícias, há um intervalo contíguo ao tempo de

duração de uma única notícia e ao tempo de duração de um telejornal: o período – cada vez

mais raro, é verdade – em que se está afastado de noticiários audiovisuais. Exceto por aquelas

dedicadas exclusivamente às notícias, as próprias emissoras de televisão se encarregam de

estabelecer intervalos dessa natureza. Na configuração habitual dos canais abertos brasileiros,

costumam se estender por pelo menos um turno ao longo do dia, ou seja, há noticiários

matinais, ao meio-dia ou no início da tarde, e à noite. Além é claro dos intervalos

estabelecidos pelos próprios indivíduos telespectadores. Pois bem, a sequência de tais

intervalos, sejam os determinados pelo sujeito, sejam os determinados pelos meios de

comunicação, estabelece também uma sequência de presentes. Sendo o tempo, a partir de

Denbigh, a sequência de todos os intervalos temporais – de todos os presentes –, aprecia-se

que, no limite, a periódica existência do noticiário, de cuja futura presença no ambiente resta

pouca dúvida, define o tempo.

69

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70

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JORNAL DA CULTURA. TV Cultura, São Paulo, 21 horas, 09 de outubro de 2013.

Disponível em <http://tvcultura.cmais.com.br/jornaldacultura/videos/jornal-da-cultura-09-10-

2013>. Acesso em 13 de outubro de 2013.

PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. A nova aliança: metamorfose da ciência.

Tradução de Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1984.

PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eternidade. Tradução de

Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SANTAELLA, Lucia; VIEIRA, Jorge de Alburquerque. Metaciência – Uma Proposta

Semiótica e Sistêmica. São Paulo: Editora Mérito, 2008.

THOMPSON, John, J. The Media and Modernity. Cambridge: Polity Press, 1995.

UYEMOV, Avanir. “Problem of direction of time and the laws of system's de-

velopment”. Em: Kubat, L. Zeman, J. (Eds). Entropy and Information in Science and

Philosophy. Praga: Elsevier Sci. Publ. Co. p. 54-63, 1975.

VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Semiótica, Sistemas e Sinais. Tese (Doutorado em

Comunicação e Semiótica), PUC-SP, São Paulo, 1994

VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ontologia Sistêmica e Complexidade – Formas de

Conhecimento: arte e ciência, uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão

Gráfica e Editora, 2008.

71

ANEXO A

Jornal da Cultura – Quarta - feira, 21 horas, 09 de outubro de 2013

Apresentador: William Corrêa

Convidados:Sérgio Fausto, cientista político, e Antonio Corrêa de Lacerda, professor de

Economia da PUC-SP

Escalada

Apresentador: Boa noite. O Branco Central eleva a taxa de juros para 9,5% ao ano. E veja

também os seguintes assuntos: Ministro Joaquim Barbosa espera os recursos do mensalão e

evita falar de prisões de condenados ainda este ano. Um relógio que prevê a morte, mas com o

objetivo de alertar. Pòlícia russa diz que havia drogas no navio do Greenpeace. Ativistas

negam. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, uma mulher vai comandar o Banco

Central. Vítima de câncer, a atriz Norma Bengell morre aos 78 anos.

Apresentador: Vão me ajudar a fazer esta edição do Jornal da Cultura o professor de

economia da PUC de São Paulo, Antônio Corrêa de Lacerda e o cientista político Sérgio

Fausto. Contamos também com a sua opinião, mande os comentários pelo Facebook e pelo

Twitter do Jornal da Cultura.

Primeira notícia

Apresentador: A justiça mandou soltar o casal preso na segunda-feira durante os protestos no

centro de São Paulo. Hoje, um grupo de manifestantes seguiu da Avenida Paulista até a

Assembleia Legislativa. A repórter Juliana Barletta tem os detalhes. Boa noite, Juliana.

Repórter ao vivo: Olá, boa noite, William. Os manifestantes já se dispersaram aqui na porta

da Assembleia Legislativa de São Paulo. O protesto foi organizado por um grupo de

estudantes da USP, que reinvindica eleições diretas para reitor e vice-reitor da universidade. A

manifestação foi pacífica, não houve registros de atos de vandalismo, e também não foi

notada a presença de nenhuma pessoa que utiliza-se técnica Black Block. Aqui no Brasil, não

existe um protocolo específico para a polícia lidar com as manifestações. Vamos ver como

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acontece em outros países? O Jornal da Cultura compara.

Narração repórter: A Inglaterra não possui leis sobre como os policiais devem agir durante

as manifestações, mas os agressores podem receber penas que que variam de multa até 10

anos de prisão. O monitoramento é feito a partir das redes sociais. As câmeras ajudam na

identificação dos agressores, podendo prendê-los após as manifestações. Em Paris, a

responsabilidade de controlar eventos que reunem milhares de pessoas, como passeatas e

comemorações do futebol, é da companhia republicana de segurança, o órgão especializado

da polícia. Cabe à CRS garantir o direito das manifestações num trajeto pré-estabelecido e

autorizado. Contra os excessos, os agentes podem usar escudos e armas não-letáis, como gás

lacrimogênio e jatos d'água. O uso de balas de borracha está restrito a casos de legítima

defesa. No Brasil, o controle das manifestações é tarefa da Polícia Militar. Em casos de

abusos, os policiais podem usar bombas de gás lacrimogênio, escudos, cacetetes e também

balas de borracha. Danos a bens privados podem ser punidos com três a seis meses de prisão

mais multa. Se o patrimônio for público, a pena pode chegar a três anos. Luana Bernardo

Lopes e Humberto Caporali, presos na segunda-feira, no centro de São Paulo, foram soltos

hoje. O casal foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional de 1983, época da ditadura. Eles

vão responder em liberdade por dano ao patrimônio, incitação ao crime, associação criminosa

e pichação de monumento urbano.

Repórter ao vivo: Aqui ao meu lado está a socióloga Ester Solano, da UNIFESP. A Esther é

espanhola, está aqui no Brasil há dois anos, e nos últimos meses tem participado de quase

todas as manifestações para fazer uma pesquisa sobre a atuação dos Black Blocks, aqui em

São Paulo. Esther, como que você avalia a atuação da polícia durante as manifestações em

São Paulo?

Entrevistada: Olha, Juliana, no começo das manifestações a polícia de São Paulo agiu de

forma bem mais cautelosa e talvez mais inteligente do que a polícia do Rio. Agora, eu estou

um pouco preocupada, depois da coletiva de imprensa, que nós vimos hoje na Secretaria de

Segurança Pública, sobre as novas medidas que vão ser tomadas, medidas mais duras, contra

especificamente as pessoas que utilizam a tática Black Block. O meu medo é que estejamos

entrando num aspiral de violência, num momento de ação e reação diretamente, então, esse

que é o problema, entra numa lógica de violência que vai ser um pouco complicado sair

depois. É um movimento reativo. Então vamos ver o que acontece agora. Mas a minha

preocupação pessoalmente é esta.

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Repórter ao vivo: Muito obrigada, Esther, por sua atenção. William.

Segunda notícia

Apresentador: Uma volta ao passado bem distante para qual a guarda fiscal de Várzea

Paulista, no interior de São Paulo, invés de revólveres, pistolas e fúzis, os guardas estão

utilizando o tradicional arco-e-flecha. Mas só nos treinamentos, que fique bem claro isso.

Narração repórter: Força, concentração e boa pontaria. É assim o dia a dia dos guardas

municipais de Várzea Paulista, município localizado a 42 quilômetros de São Paulo. Há dois

meses, pelo menos 20 dos cerca de 120 integrantes da corporação da cidade praticam o

esporte de origem indígena, o arco-e-flecha. A ideia é melhorar a mira e o autocontrole dos

agentes da cidade que utilizam arma de fogo.

Repórter: O começo era para ser uma brincadeira, uma atividade na hora de lazer, mas a

prática se tornou séria e acabou entrando na rotina de treinamento da guarda municipal de

Várzea Paulista.

Repórter: Essa modalidade foi idealizada pelo inspetor Edson Barcaro, que iniciou no

esporte há acerca de 7 meses, e reconhece os benefícios dessa atividade.

Entrevistado: Mais tranquilidade, raciocínio melhor, respiração.

Narração repórter: O equipamento utilizado é emprestado por uma loja de material

esportivo da cidade. O treino não é obrigatório na corporação, mas existe uma espécie de

campeonato, com medalhas para os melhores, como fórmula de estimular ainda mais o grupo.

Entrevistado: Tira o estresse da gente da rua, do dia a dia, e acaba desestressando aqui e

acaba praticando bastante arco-e-flecha.

Narração repórter: E a população, o que achou dessa novidade?

Entrevistado: Meio estranho, né?

Entrevistado: Se for para o bem de todos, que seja bem-vindo.

Entrevistado: Desatualizado, não é para a nossa época esse tipo de coisa.

Narração Repórter: Mas os moradores de Várzea Paulista podem ficar tranquilos, já que o

arco-e-flecha não serão praticados nas ruas da cidade.

Entrevistado: É só um equipamento auxiliar, só para colaborar com a gente, só vem agregar

ao treinamento, mas não em atividade no dia de trabalho.

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Terceira notícia

Apresentador: Uma invenção está dando o que falar. É o relógio da morte, criado por um

americano. Mas a ideia tem um objetivo positivo: forçar a pessoa a buscar hábitos saudáveis e

prolongar a vida.

Narração repórter: O que você faria se soubesse o dia da sua morte?

Entrevistado: Tudo o que eu pudesse fazer e mais um pouco.

Entrevistado: Ah, eu iria curtir a vida e deixar os problemas pra lá.

Narração repórter: No filme "Antes de Partir", os personagens vividos por Morgan Freeman

e Jack Nicholson descobrem que estão doentes e têm pouco tempo de vida. Os dois então

saem em busca de aventuras. Pois um americano decidiu inventar um relógio que permite

registrar a data do falecimento de cada um. Frederick Coutinho criou o que está sendo

chamado de relógio da morte. Com base em informações pessoais, como estilo de vida, o

aparelho calcula quantos anos, meses, dias, horas, minutos e segundos o dono vai viver. A

contagem regressiva para o fim desse tempo é marcado no relógio de pulso. Ele indica as

horas também.

Entrevistado:Eu não compraria nem o original, nem o falsificado.

Entrevistado: Para mim não, mas eu compraria para a minha sogra.

Narração repórter: Outro filme, "O preço do amanhã", com Justin Timberlake, retrata essa

ideia. Num futuro distante, um cronômetro embutido no braço das pessoas, faz a contagem

regressiva do tempo de vida. Quando o relógio chega a zero, a pessoa morre.

Repórter: Para o criador da ideia, o relógio não é só um jeito de lembrar que um dia todos

nós morreremos, mas é uma forma de fazer as pessoas pensarem que não importa quanto

tempo você tem nas mãos, mas o que você vai fazer com ele. Agora o relógio da morte tem

um porém, nenhum especialista conseguiria adiantar ou atrasar os ponteiros.

Narração repórter: O relógio da morte também alerta para a necessidade de se evitar os

fatores de risco.

Entrevistada– cardiologista: No Brasil é muito frequente você ver essa condição devido ao

empurrão com a barriga, esperam muitas vezes algo de grave acontecer, como deixar de

fumar, ter um derrame ou enfarto, para ser um motivo pelo qual ele vai parar de fumar.

Narração repórter: Acostumada a lidar com perspectiva de morte, a cardiologista diz que

cada um reage de um jeito quando sabe que está chegando a hora.

Entrevistada – cardiologista: Tem gente que tem essa capacidade de administrar a morte, no

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sentido de tentar resolver problemas da terra, que vão ficar para a família e terão que ser

resolvidos. E outros, não. Outros têm atitude de paralisação, de negação do fato.

Narração repórter: O relógio da morte ainda não está à venda. O criador pede doações no

site de financiamento coletivo para conseguir fabricar a invenção. Se for produzido, terá que

ser impecável, porque faltarão relojoeiros dispostos a melhorá-lo. O senhor acha que daria

para concertar um relógio da morte que quebrasse?

Entrevistado: Não, não dá, não. Teria que acabar de quebrar para não ver o relógio.

Apresentador: Lacerda, eu sei que o senhor é economista, mas é inevitável essa pergunta:

Você viu uma contabilidade negativa quando se está relacionada à morte?

Antonio Corrêa de Lacerda: É, isso tem a ver com a economia no seguinte sentido: um dos

grandes dilemas da ecomonia está em você gastar o que tem ou poupar para o futuro. Se você

soubesse o quanto exatamente você iria viver, você poderia equacionar isso melhor, entre o

prazer presente e a poupança futura.

Apresentador: Mas isso iria gerar inflação, porque as pessoas iam gastar tudo quando tivesse

chegando a morte, não?

Antonio Corrêa de Lacerda: Por um outro lado, o PIB provavelmente também iria

aumentar.

Apresentador: Sérgio, você compraria um relógio desses?

Sérgio Fausto: Eu acho uma ideia meio tola, porque aquilo é uma estimativa com base em

algumas variáveis, que você pega na média da população. Ele não contabiliza um fator da

vida humana que é um acaso, ele não é capaz de estimar qual é a chance que você tem de

atravessar uma rua, ser atropelado, ou cair um reboco na sua cabeça, a vida é mais divertida

do que esse reloginho imagina de ser.

Quarta notícia

Apresentador: Três cientistas ganharam o Nobel de Química em Estocolmo, na Suécia. Eles

foram os pioneiros no uso de computadores em processos químicos.

Narração:O austríaco Martin Karplus, o britânico Michael Levitt e o israelense Arieh

Warshel, que também tem nacionalidade americana, ganharam o Nobel de Química em 2013

pelo desenvolvimento de modelos multi escala para os sistemas químicos complexos. O

Comunicado foi feito nesta quarta-feira pela Real Academia de Ciências Suéca, que concede o

76

prêmio. Nos anos 70, os três cientistas criaram as bases dos potentes programas utilizados

para compreender e prever os processos químicos, que têm aplicações ilimitadas, não apenas

para pesquisa científica, mas também para os engenheiros e para a indústria. Os premiados

com o Nobel de Química 2013, tornaram possível cartografar os misteriosos caminhos da

química mediante o uso de computadores, afirmou o comitê Nobel.

Quinta notícia

Apresentador: Vaias, insultos e gritos. Assim que o premiê italiano e o Presidente da

Comissão Européia foram recebidos na ilha italiana de Lampedusa, a porta de entrada de

imigrantes ilegais na Europa.

Narração: Ao chegarem a ilha italiana, o premiê Enrico Lettae o Chefe Europeu José

Emanuel Barroso foram recebidos por um grupo de manifestantes que exigiam maior atenção

das autoridades. Os dois líderes anunciaram que os 280 imigrantes ilegais mortos num

naufrágio na semana passada, serão enterrados com honras de estado. Trinta milhões de

dólares foram doados para ajudar os refugiados em Lampedusa. Autoridades russas afirmam

que encontraram drogas dentro do navio do Greenpeace. A organização chamou a denúncia de

falsa e caluniosa. Trinta ativistas, incluindo uma brasileira, estão presos no país, acusados de

pirataria. Eles foram detidos no mês passado, depois de atacar uma plataforma de petróleo no

Ártico, em protesto a exploração do combustível. No Japão, seis operários da usina de

Fukushima foram contaminados com radiação. O acidente aconteceu depois que um deles

retirou por engano um tubo do sistema de tratamento de água radioativa. Pelo menos sete

toneladas do líquido contaminado podem ter escapado. Em 2011, a central nuclear japonesa

foi atingida por um terremoto seguido de tsunami. Até hoje são registrados vazamentos de

material radioativo na usina. Depois de uma década de pesquisas, cientistas chineses

desenvolveram a primeira córnea artificial do mundo. A película, que é protetora do olho, foi

criada com base na córnea de porcos, que possuem sistemas parecidos com o dos humanos.

Os novos tecidos foram testados em 115 pacientes. 70% dos voluntários apresentaram

melhora na capacidade de enxergar. A descoberta pode ajudar pacientes que sofreram danos

nas córneas e tiveram a visão prejudicada.

Apresentador: A Rússia está tentando de tudo para punir os ativistas do Greenpeace.

Sérgio Fausto: O governo Putin tem uma atitude, uma política deliberada, de grande dureza,

77

de grande repreensão, contra quaisquer movimentos sociais que coloquem em cheque a

autoridade do poder russo, o controle do poder russo, sobre a situação política, sobre o

território russo. Eu acho estraordinariamente suspeita essa alegação de que havia droga dentro

de navio do Greenpeace. Você pode criticar o Greenpeace, mas certamente o Greenpeace não

está envolvido com o tráfico internacional de drogas. Tem toda a chance, tem toda a aparência

de ser uma armação do governo russo para criminalizar o Greenpeace, especificamente essa

equipe que procurou fazer essa intervenção nessa plataforma de petróleo no mar ártico.

Antonio Corrêa de Lacerda: Eu também concordo com o Sérgio Fausto. Acho que isso está

muito mal explicado, no mínimo, porque temos aí um problema de falta de tranparência, e

essa acusação parece um tanto forjada.

Intervalo

Sexta notícia

Apresentador: Uma pesquisa revela que os hábitos de consumo dos brasileiros mudam

conforme o aumento da renda. Quem ganha mais, gasta mais, e não é só tendência da classe

emergente.

Narração repórter: Arthur, de 32 anos, viu a renda familiar melhorar nos últimos tempos.

Conseguiu matricular o filho de 4 anos numa escola particular e, quando recebeu o primeiro

aumento, comprou um carro. No ano passado, deu entrada na casa própria.

Entrevistado: Já tenho carro quitado hoje e consegui agora comprar a casa, só estou

esperando sair para ir morar.

Repórter: Um estudo recente que tem como base a pesquisa de orçamento domiciliar do

IBGE, revela que os hábitos de consumo dos brasileiros mudam conforme aumenta a renda.

Uma das tendências apontadas no levantamento revela que o cidadão passa a consumir

produtos e serviços mais sofisticados.

Narração repórter: O consumo no Brasil foi classificado de acordo com os padrões de

gastos da população, e com a renda mensal domiciliar. Quem saiu da linha da pobreza, com

renda que varia de R$500,00 a R$2.500,00, passou a consumir itens de maior valor agregado,

como motocicletas, celulares pré-pagos e produtos da linha branca. Quem migrou para a

classe média ou classe C, é chamado de emergente, com salário de R$2.500,00 a R$5.000,00,

prefere pagar escola particular e comprar carros nacionais. Os já estabelecidos na classe

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média, com renda de R$5.000,00 a R$7.500,00, a chamada classe B, investem em ações e

gastam com viagens aéreas e hotéis. O IBGE considera rico ou classe A, quem atinge renda

acima de R$7.500,00. Entre as preferências desse público, estão ativos imobiliários e carros

importados. O levantamento mostra uma forte tendência de movimento da classe emergente

para a classe B, que pode chegar a 37% dos domicílios em 2020. O mercado nacional terá que

se reposicionar frente aos novos hábitos de consumo do brasileiro.

Entrevistado –economista: Mais investimento em educação, mais investimento em tudo

relacionado com a terceira idade e mais investimento no interior.

Narração repórter: Mas quando a inflação acelera, reduz o poder de compra do consumidor.

No ano passado, os gastos de 51% das famílias brasileiras foram maiores que a própria renda.

Entrevistado – economista:Primeiro poupar. Tudo indica que o Brasil vai continuar

crescendo, vai ter inflação controlada, mas você está mais vulnerável crescendo a 2% do que

crescendo a 4 ou 6%, então é bom ficar previnido.

Apresentador: Aumentar os gastos na mesma proporção de renda, a conta não vai fechar?

Antonio Corrêa de Lacerda: Essa é uma tendência muito comum em todas as classes de

renda, como a própria matéria destacou. A primeira mudança das classes de menor renda é a

mudança do padrão alimentar. Quando você tem um aumento da renda, em geral, a primeira

mudança se dá no padrão alimentar. Nas demais classes de renda, você vai sotisficando o

consumo. E é muito difícil você convencer as pessoas a resistir ao impulso de consumo para

aumentar a poupança, isso é uma das razões, inclusive, que o Brasil tem uma baixa poupança.

A nossa desigualdade é muito grande, então quando as pessoas emergem, tem uma senção

social vinculadas ainda, eles querem mudar o padrão de consumo. E no planeta, é evidente

que se todos quiserem repetir os padrões de consumo vigentes, não haverá planeta suficiente.

É questão do desenvolvimento da sustentabilidade. Então no dilema que a gente vive, existe a

probabilidade com a melhora da economia e a geração de renda, geração de emprego, que as

pessoas possam consumir mais. No entanto, no âmbito global essa conta não fecha. Quer

dizer, você tem um problema de que os recursos naturais necessários para manter esse padrão

de consumo, não se sustenta a longo prazo.

Sérgio Fausto: Sobretudo quando se leva em consideração países gigantes com populações

que estão aumentando sua renda, entrando no mercado de consumo global, como China e

Índia. O Brasil é uma parte importante disso, mas não é a maior parte no processo. É

interessante essa matéria, e eu queria comentar a recomendação que foi feita de que as

famílias poupem mais. O que é uma recomendação absolutamente sensata, ela tem sentido e

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ela na medida do possível deve ser observada. Do ponto de vista mais geral, a poupança das

famílias no Brasil seguirá em níveis baixos porque é evidente que as pessoas que tem um

consumo muito reprimido, nessas primeiras faixas de renda, veja que os bens que são

adquiridos, não são bens supérfulos, quando se fala de motocicleta, não é motocicleta para

passear nas ruas dos jardins no final de semana, mas sim para o cara ir trabalhar, para o cara

evitar o transporte coletivo. Quando ele compra um celular, aquilo tem uma função de

trabalho, quando ele é um profissional autônomo. É evidente que essas pessoas vão consumir

mais. Isso coloca a questão da importância da poupança do setor público, porque quando você

pega a poupança geral do país, ela é uma poupança privada das famílias e a poupança do setor

público. Se as famílias não vão conseguir poupar o suficiente, o estado deve fazer um esforço

de poupança adicional sob penada gente depender muito da entrada de poupança externa. O

que é positivo, mas tem um limite.

Apresentador: Lacerda, vou ler aqui o twitter do Oscar de Castro: Economizar, economizar,

que hora vai gastar?

Antonio Corrêa de Lacerda: Pois é, aí a gente lembra da matéria anterior do relógio da

morte. Esse conflito entre o consumo presente e a poupança futura, sempre estará presente nas

decisões racionais das pessoas. Por todos os fatores que nós comentamos aqui, o impulso ao

consumo é muito grande, o apelo ao consumo. É muito interessante alguns dos alunos fazendo

algumas pesquisas com as pessoas de baixa renda e tentando explicar para uma pessoa que ao

invés de você comprar uma máquina de lavar ou refrigerador a prestação, que você vai pagar

duas ou três vezes o valor do produto, procure poupar e pagar a vista. E uma senhora

perguntou para o aluno: "Quer dizer então que eu espero dois anos poupando e até lá eu

enfrento o tanque?"

Sétima notícia

Apresentador: O comitê de política monetária do Banco Central anunciou agora há pouco a

elevação da taxa básica de juros da economia em 0,5%. É o quinto aumento consecutivo da

CELIC que chega agora a 9,5% ao ano. O COPOM acredita que a medida vai ajudar a

controlar a inflação. Mais cedo o governo divulgou o aumento da inflação em setembro, mas

pela primeira vez no ano, o índice acumulado nos últimos 12 meses ficou abaixo dos 6%.

Narração: A inflação oficial medida pelo IPCA, Índice de Preços ao Consumidor Amplo do

IBGE, atingiu em setembro 0,35%, índice superior ao de agosto, de 0,24%. Porém, é menor

80

que o de setembro do ano passado (2012), de 0,57%. No ano, a inflação acumula alta de quase

4%. E nos últimos 12 meses, 5,86%, resultado comemorado pelo governo. O ministro da

fazenda, Guido Mantega, disse que apesar da inflação estar dentro da meta, é preciso

continuar controlando os preços.

Entrevistado – Ministro da Fazenda: Isso não significa que nós vamos descuidar. O

governo tem que continuar alerta para impedir que a inflação volte a subir e atrapalhar o

consumidor brasileiro.

Apresentador: Vamos mostrar agora no telão um gráfico com o desempenho da inflação

anual desde janeiro, eu peço ajuda ao meu comentarista. Vemos aí que setembro foi o único

mês deste ano que tivemos uma inflação abaixo dos 5. No mês de junho chegamos a quase 7.

O que representa isso aqui para o ano todo? Estamos na meta estipulada pelo governo?

Antonio Corrêa de Lacerda: Bem, na verdade, nós temos um centro da meta que é 4,5%, e

essa meta tem uma tolerância de dois pontos a mais ou a menos. Então, a situação em que

estávamos em junho, era de uma inflação lá no teto dessa meta. Desde então ela vem cedendo

e ao longo dos 12 meses vai caminhando abaixo dos 6%, que é o nível que vamos

provavelmente fechar o ano. Não é o ideal, mas eu diria que uma situação muito parecida com

a maioria dos países em desenvolvimento. Até países como a Índia, que tem uma inflação

mais elevada do que o Brasil, chega a 9%. É uma situação de desconforto, evidentemente,

ninguém gosta de inflação, e particularmente no nosso caso, a inflação é muito influenciada

pela intensa ação, ou seja, o reajuste automático, preços de contratos, de tarifas, então ela tem

que ser combatida. E grande parte de algumas das medidas que estão sendo tomadas, como a

elevação de juros, visa exatamente esse retrocesso no nível da inflação.

Apresentador: Para outubro, novembro e dezembro, fim de ano, aumento de vendas, gera

mais inflação ou não?

Antonio Corrêa de Lacerda: Muito provavelmente a inflação vai ficar mais próxima no

acumulado de 12 meses, dos 6%, até por que tem um outro fator que aí importante, é que

muito provavelmente nós teremos um ajuste nos preços dos combustíveis, os preços estão

defasados, tem o efeito da desvalorização cambial, que empata com os custos da Petrobrás, e

muito provavelmente o governo fará um ajuste ainda este ano.

Apresentador: Mas a expectativa é de ajuste este ano ainda?

Antonio Corrêa de Lacerda: Este ano ainda. Muito provavelmente ocorrerá.

Apresentador: E mesmo assim teremos a inflação nessa meta de até 6,5%?

Antonio Corrêa de Lacerda: Sim, pois no acumulado do ano, quer dizer, você depende

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muito da base, existem outros preços que retrocedem um pouco, existem a desvalorização do

câmbio, que está próximo dos R$2,20, acho que ano que vem o câmbio vai ultrapassar esse

nível. Mas é muito provável que com o adiamento das medidas de restrição monetária nos

Estados Unidos facilitem um pouco essa tarefa, e as intervenções do governo, conseguindo

controlar um pouco a desvalorização cambial. Então o impacto do câmbio sobre a inflação

deve ser mais pra calma esse ano com algum impacto maior no ano que vem. Então eu vejo

uma inflação muito próxima dos 6%.

Oitava notícia

Apresentador: Seis meses depois de assumir a presidência da Venezuela, Nicolas Maduro

pede decreto para governar o país sozinho por um ano.

Narração: Durante um discurso de três horas na Assembleia Nacional, em Caracas, o

presidente Nicolas Maduro pediu poderes especiais para governar o país por um ano, com o

objetivo de combater a corrupção e o que ele chama de guerra econômica.

Trecho discurso: Venho pedir o mecanismo, venho pedir poderes a militantes para

aprofundar, acelerar, e lutar por uma nova ética política, por uma nova vida republicana.

Narração: Se o pedido for aceito pelo parlamento venezuelano, Maduro vai poder pelo

período de 1 ano, emitir decretos que não precisam passar pelo aval do congresso. A proposta

é feita a dois meses das eleições municipais na Venezuela, consideradas um plebiscito sobre a

gestão do presidente. Depois que Maduro assumiu o poder em 19 de abril, a crise econômica

no país se aprofundou com uma inflação que ameaça bater recordes, somando quase 33%

desde o início do ano.

Apresentador: Maduro pede poderes especiais para uma nova ética política, mas não está na

contra-mão da ética política?

Sérgio Fausto: É uma ética muito peculiar. Primeiro que esse mecanismo chamado 'Lei

Habilitante' está previsto na constituição venezuelana. O Chaves fez uso desse mecanismo

diversas vezes. Ele permite que o congresso delegue poderes praticamente absolutos para o

executivo e para o executivo legislar diretamente por decreto em algumas áreas pré-

selecionadas. O que o Maduro está procurando fazer com isso? Ele enfrenta uma crise

econômica que só faz piorar a cada dia. A inflação é um termômetro claro dessa deterioração

da situação econômica na Venezuela. Além disso, tem o problema da deterioração da imagem

82

política dele. Existe muito dúvida, e dúvida crescente, sobre a capacidade do Maduro de ter

liderança sobre o bloco de poder organizado em torno do chavismo. Então ele procura dessa

maneira responder a dois desafios: deterioração econômica de um lado e deterioração da sua

autoridade política de outro. Ocorreu recentemente uma cena que acabou servindo para

ilustrar esse processo de perda de prestígio político do Maduro. Ele foi fazer uma caminhada

de bicicleta e caiu da bicicleta. Os seguranças tentaram ampará-lo, foi uma cena patética, que

é uma cena ilustrativa dessa situação de crise política que a Venezuela vive e que com lei

habilitante ou sem lei habilitante, eu confesso meu ceticismo em relação a capacidade que o

governo do Maduro tem de encontrar uma solução para isso.O que coloca no horizonte da

Venezuela um aprofundamento da crise. Quer dizer, eu não descartaria o prazo de um ano ou

fazer previsões,mas uma espécie de remanejamento interno do chavismo, que possa

transformar o Maduro numa espécie de rainha da Inglaterra com fisionomia mais cabocla e a

transferência de poder real de maneira mais nítida que já existiu para grupos militares em

torno do Diosdado Cabello, que é outra figura importante dentro do chavismo. É uma franca

crise do chavismo na Venezuela, o que não quer dizer que existe uma solução democrática

disso, não existe alternância de poder a vista. Pode haver um remanejamento interno dentro

do chavismo.

Apresentador: Você citou a bicicleta só para dizer que o governo está tropeçando?

Sérgio Fausto: Exatamente. Tropeçando, pedalando e caindo.

Antonio Corrêa de Lacerda: Essa é a piada pronta, né? Imagine a manchete do jornal da

oposicão dizendo: "Presidente Maduro caiu".

Nona notícia

Apresentador: Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, uma mulher deve comandar

o Federal Reserve, o Banco Central.

Narração: O Presidente Barack Obama nomeou hoje Janet Allen, vice-presidente do Federal

Reserve para substituir Ben Bernanke a frente do Fed. O mandato dele termina em janeiro. O

nome da economista, de 67 anos, ainda precisa passar pelo senado. Se aprovado, será a

primeira vez que uma mulher vai dirigir o Banco Central da maior economia do mundo. Allen

participou do grupo de conselheiros do ex-presidente Bill Clinton. A indicação coincidiu com

o nono dia de paralisação parcial dos Estados Unidos. Democratas e republicanos ainda não

chegaram a um acordo sobre o novo orçamento do país. Enquanto isso, 800 mil funcionários

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estão em regime de férias coletivas. Vários prédios administrativos e pontos turísticos

continuam fechados, complicando a vida de milhares de turistas e americanos. Só na última

semana, cerca de 30 casamentos programados para Parks foram cancelados. Estes noivos

perderam 15 mil dólares. Tiveram que realizar a cerimônia em outro local e contar com a

ajuda de familiares e amigos para pagar as despesas da cerimônia.

Apresentador: Uma mulher no Banco Central Americano é uma boa notícia para o Brasil?

Sérgio Fausto: É uma boa notícia. O fato de ser uma mulher é interessante, ela é uma

acadêmica especializada em mercado de trabalho, ela desbancou a candidatura do Larry

Summers, que era o favorito do Obama, mas que é um homem muito identificado com a

indústria financeira americana, e com políticas mais restritivas do lado monetário. Ela,

portanto, é uma pessoa que dá segmento a esta política adotada pelo Ben Bernanke.Isso

significa que, evidentemente que ela não é uma pessoa leniente com a inflação, mas ela tem

grande preocupação com o crescimento. O Ferder Americano tem que observar essas duas

variáveis. O mandato dela é para encontrar o melhor ponto de equilíbrio entre o crescimento e

a inflação. Ela é favorável a essa política de estímulo monetário. Para o Brasil é bom em que

sentido? É bom por que quão mais suave for a introdução de uma política monetária mais

restritiva, mais espaço o Brasil vai ter para acomodar pressões inflacionários, porque com a

medida em que começar esse processo de restrição monetária maior nos Estados Unidos e

aumento da taxa de juros no mercado americano, a tendência do nosso campo será

desvalorizar. Os dólares vão para lá invés de ficar aqui.

Antonio Corrêa de Lacerda: Na verdade, o fato positivo é de você ter escolhido uma mulher

com esse perfil e com experiência e formação teórica inquestionáveis. Você pode,

eventualmente, gostar menos ou mais da linha teórica dela, mas ela tem uma excelente

formação e é experiente. Uma mulher de 67 anos. Nesses casos a experiência pesa muito,

porque uma decisão mais afoita põe a perder não só o desempenho do próprio país mas da

economia mundial. A economia norte-americana é a maior economia do mundo, conduz o

dólar, que é a moeda preferida no acumulo de reserva na formação de preços, nas transações

comerciais e financeiras, então os rumos dos Estados Unidos afetam a economia mundial.

Então quanto mais cauteloso for esse processo de ajuste, que inevitavelmente virá, isso evitará

solavancos, o que facilitará a condução, principalmente, da crise europeia e dos países em

desenvolvimento como o Brasil.

Sérgio Fausto: Ela é a primeira presidente do Banco Central, no período mais recente, sem

vinculações com o Wall Street. Isso é muito importante no ponto de vista da legitimidade do

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seu mandato a frente do Banco Central Americano.

Apresentador (pergunta via Facebook): Até que ponto os gastos do governo pesam na

inflação?

Antonio Corrêa de Lacerda: O gasto público ele tem sim um efeito inflacionário. Agora, o

grande desafio do Estado é que ele tem que cumprir funções que nem sempre o setor privado

ou as famílias tomariam essa decisão. Normalmente, as funções de investimentos de longa

maturação ou compromissos sociais que ficam por conta do Estado. Isso não é uma licença

para o Estado gastar mais, mas é importante a gente registrar que existem funções específicas

do Estado que implicam nos maiores gastos. Agora, o que o Estado tem que fazer é melhorar a

gestão e a eficiência no uso de gastos, para que o retorno social e econômico desses gastos

seja o melhor possível sem gerar grande pressão inflacionária.

Sérgio Fausto: E ao mesmo tempo calibrar a sua política fiscal para que em momentos de

pressão inflacionária ele diminua a expansão da política fiscal, ter uma política fiscal mais

contida, coisa que no Brasil não temos sido capazes de fazer num período mais recente.

Intervalo

Décima notícia

Apresentador: A Câmara dos Deputados aprova o texto principal da medida provisória do

programa Mais Médicos.

Narração: A proposta permite a vinda de médicos estrangeiros ou brasileiros que se

formaram no exterior sem a necessidade de revalidação do diploma. O Ministério da Saúde

vai conceder os registros temporários e os conselhos regionais de medicina ficam

encarregados de fiscalizar a atuação desses profissionais. O Superior Tribunal de Justiça

autoriza a Agência Nacional de Saúde a suspender a venda de novos planos médicos de 26

operadoras. O STJ derrubou as liminares que permitiam a comercialização dos planos. As

operadoras foram punidas por demora na marcação de consultas e negação de tratamento e

cirurgias. O estado de São Paulo anuncia concorrência para a construção de três hospitais pela

parceria público-privada. A iniciativa é inédita no país. O investimento previsto supera 770

milhões de reais. Adutora da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro se

rompe na Vila Isabel, na zona norte da cidade. O vazamento inundou ruas, complicou o

trânsito e deixou uma enorme cratera na via. Para realizar os reparos, o fornecimento de água

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foi interrompido para 160 mil pessoas. Professores municipais de Goiânia em greve montam

barracas e espalham colchões e passam a noite na Câmara Municipal de Goiânia. O plenário

foi invadido por cerca de 300 professores, que protestam contra as mudanças no projeto que

reduziu o valor do auxílio-transporte da categoria.

Apresentador: E ainda sobre o Mais Médicos, a Câmara dos Deputados aprovou agora à

noite a emenda que permitiu incluir médicos aposentados no programa federal.

Décima primeira notícia

Apresentador: O ministro Joaquim Barbosa pretende começar ainda este mês o julgamento

dos novos recursos dos condenados do mensalão. Ao mesmo tempo, ele acredita que Supremo

Tribunal Federal pode finalizar o processo dos 13 condenados que não têm direito a novo

julgamento. A decisão pode levar para o início do cumprimento da pena de prisão.

Narração: O ministro Joaquim Barbosa, o presidente do Senado, Renan Calheiros, e a

presidente Dilma Rousseff receberam hoje da Câmara dos Deputados a medalha

comemorativa aos 25 anos da constituição. Parlamentares que participaram da elaboração da

carta também receberam a medalha, entre eles o deputado José Genoíno, condenado no

processo do mensalão, que se submeteu a uma cirurgia cardíaca recentemente e foi

representado por um irmão. Mais cedo, no STF, o ministro Joaquim Barbosa falou sobre os

próximos capítulos do processo do mensalão. Hoje, o STF publicou o resumo do julgamento

dos primeiros recursos. Amanhã, deve sair a íntegra, e, na sexta-feira, começa a contar o prazo

de 5 dias para a apresentação de novos recursos, os chamados embargos dos embargos. A

previsão do Supremo é de que esta fase seja rápida. Após a análise desses recursos, Joaquim

Barbosa acredita que o tribunal vai declarar o trânsito em julgado para os condenados que não

têm direito aos embargos infringentes, que permitem um novo julgamento. Com isso, os 13

dos 25 réus sem direito a embargos infringentes poderão ir para a cadeia ainda este ano. Entre

eles, o delator do mensalão, Roberto Jefferson, e o deputado federal Valdemar Costa Neto.

Apresentador: É rápida a análise desses embargos dos 13 condenados, embargos de

declaração, é isso que falta?

Sérgio Fausto: Aparentemente mais rápidos que a análise dos embargos infringentes. E não

existe nenhuma razão para, no caso de crimes cuja a sentença foi finalizada, que não haja um

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cumprimento imediato da pena. Uma dúvida que eu tenho é a seguinte: mesmo nos casos

daqueles réus que em alguns crimes cabe o embargo infringente, em outros crimes o caso já

transitou em julgado. Já houve condenação por outros crimes. Me pergunto se o caso em que

houve, por exemplo, José Dirceu. Formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, coube

embargo infringentes porque o placar foi mais apertado, formação de quadrilha com certeza, o

que pode mudar o regime prisional dele. Mas ele não foi acusado apenas por formação de

quadrilha, existe um conjunto de outros crimes dos quais ele foi acusado. Sob os quais não

coube embargo infringente, o placar foi dilatado no STF. Nesse caso, digamos, havendo pena

de prisão, ainda que no regime aberto ou semi aberto, não deveria ser imediatamente

cumprido, enquanto se aguarda o exame do embargo infringentes, que se refere

especificamente a alguns crimes nos quais o placar foi apertado. Existem outros crimes no

qual o processo já transitou. Dúvida, eu não sou jurista.

Antonio Corrêa de Lacerda: Eu também não sou jurista, mas eu tenho a impressão que o

aceite dos embargos infringentes, se por um lado não significa a liberação ou a não

condenação dessas pessoas, por outro lado vai definir o tamanho da pena e a forma de

condenação. Então me parece que antes da conclusão da presunção dos embargos infringentes

você não tem como executar a pena.

Apresentador: Que aí não está transitado em julgado o caso ainda.

Sérgio Fausto: Tem uma emenda que eu acho que valeria a pena citar, que é a chamada

emenda Peluso, que ela é importante porque tem uma mudança com relação a possibilidade

desses eternos recursos que vão intervir na aplicação da pena. A emenda diz basicamente o

seguinte: que havendo trânsito em julgado,que o tribunal condenou ainda há possibilidade

recorrer ao STF ou STJ, mas se houve condenação a pena de prisão ou qualquer outra pena,

passa a ser cumprida. Portando, o réu do caso vai para a cadeia e da cadeia ele recorre. Acho

que medidas nessa natureza dariam uma senilidade necessária a execução penal no Brasil.

Décima segunda notícia

Apresentador: Apesar de viverem em um país onde só a maioria, os negros, ainda sofrem

para conseguir educação e emprego. Ganham salários menores e ocupam poucas cadeiras nas

universidades. Os desabafos e as expectativas dessas vítimas do racismo você acompanha a

partir da semana que vem aqui no Jornal da Cultura na série Questão racial.

Entrevistada: Eu costumo dizer que mulher negra é gorda. É difícil.

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Entrevistado: Você trabalha na limpeza? Não, sabe, eu sou meio gerente lá, analista. E pode?

Repórter: A maioria dos trabalhadores brasileiros é negra. Se declara como parda ou preta

para o IBGE, mas vê a minoria branca receber os melhores salários.

Entrevistado: Ele vai ter dificuldade em entrar no mercado de trabalho por causa da cor da

sua pele.

Entrevistado: Você vai ter que ser melhor que todos eles para conseguir a mesma coisa que

uma pessoa mediana.

Narração repórter: Mas num país como o Brasil, que ainda nega o racismo, essas expressões

de discriminação muitas vezes são disfarçadas.

Entrevistado: Fala-se tanto em direitos iguais e aqui no Brasil não existe. Direitos iguais para

negro não existe.

Apresentador: Acompanhe então Questão racial, a partir de segunda-feira. No Facebook, o

internauta José de Sousa pede que a gente fale da greve dos professores no Mato Grosso. Aqui

vai então: os professores estão em greve há dois meses, por melhores salários e plano de

carreira. Eles protestam contra os gastos da Copa, que consideram excessivos e falta de

atenção com a educação no país.

Apresentador:Na próxima segunda-feira, o programa Roda Viva vai entrevistar a ex-

senadora Marina Silva, que acaba de se filiar ao PSB, do Eduardo Campos. O programa será

ao vivo logo após o Jornal da Cultura, e você já pode mandar a sua pergunta a ex-senadora,

uma das virtuais candidatas à presidência da república em 2014. O endereço é:

cmais.com.br/rodaviva.

Intervalo

Décima terceira notícia

Apresentador: Campeonato Brasileiro, série B. O Chapecoense tem o artilheiro da

temporada, Bruno Rangel, com 27 gols e o Palmeiras segue firme na liderança com mais um

goleada.

Narração: A goleada do Palmeiras começou a ser desenhada quando o garoto Leandro foi

derrubado na área. Pênalti, que Allan Kardec bateu e fez. Palmeiras 1, Figueirense, 0. O

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segundo gol também foi de pênalti, Ananias foi calçado, Mendieta bateu e marcou. No

cruzamento da esquerda, Allan Kardec bateu de cabeça. E fechando a goleada, a linda jogada

de Juninho, que deixou dois adversários no chão e rolou para Serginho marcar. Final:

Palmeras 4, Figueirense, 0. O Chapecoense está na vice-liderança da série B, perto de subir

para a série A do ano que vem pela primeira vez. Ontem, empatou com o América e Natal por

1 a 1. Gol de Bruno Rangel, de pênalti. Bruno marcou 27 gols em 27 jogos. No sábado, o

Chapecoense joga contra o Havaí, time que também é de Santa Catarina e oculpa o terceiro

lugar na tabela da série B.

Apresentador: O Sérgio está sorrindo aqui, por quê, hein?

Sérgio Fausto: Por que meu time é líder da série B com 9 pontos de vantagem e vamos

garantir o nosso lugar na série A. Mais duas ou três rodadas.

Apresentador: E ano que vem ganhar o campeonato brasileiro?

Sérgio Fausto: Eu não faço previsões a respeito do futuro, só a respeito do passado.

Décima quarta notícia

Apresentador: O corpo da atriz Norma Bengell será cremado amanhã no memorial do

Carmo, no Rio de Janeiro. Ela morreu nesta madrugada aos 78 anos, vítima de um câncer no

pulmão.

Narração: A atriz, cantora e diretora Norma Bengell foi uma das mulheres mais admiradas no

Brasil. E tudo começou com o filme "Os Cafajestes", de Ruy Guerra. No ano de 1962, aos 27

anos, ela protagoniza o primeiro nu frontal do cinema brasileiro. Em 2010, em entrevista ao

programa Provocações, do apresentador Antonio Abujamra, aqui na Cultura, Norma falou da

escolha para o papel, quem financiou o filme e sobre como era ser uma mulher tão desejada:

Norma Bengell: Cantada, perseguida. Uma vez aqui em São Paulo, eu fui perseguida por um

bando, tive que me esconder dentro de um hotel. O Jece Valadão que me convidou. O Guerra

não queria, o Guerra queria Edna Valetim, porque ele achava que cabelo era sexy. E aí o

Gerson assim: a Norma não é? E aí fui eu. E quem produziu esse filme foi um bicheiro,

chamado Castor de Andrade.

Antonio Abujamra:Fala para mim da repercussão na época.

Norma: Foi um escândalo. E não tem nada demais, né? Porque é uma coisa sensual,

obviamente.

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Abujamra:Hoje não tem nada demais. Na época foi uma loucura.

Norma: Foi. Eu fui banida a pauladas de Belo Horizonte, as mulheres com pau. Eu ia fazer

um filme do Sérgio Ricardo. Eu desci do avião e subi de volta.

Abujamra:Assistindo hoje ao seu nu frontal, não parece uma coisa de freira perto do que

agora se vê na televisão?

Norma: Eu acho que agora tem pessoas legais, que fazem nu, mas outras muito vulgares.

Apresentador: É uma tristeza.

Sérgio Fausto: E a gente comentava aqui entre nós, como é difícil para as mulheres que

foram de uma beleza esplendorosa na juventude, o envelhecimento é muito difícil. Eu lembro

de um comentário da Marieta Severo, que falou: "Para mim o envelhecimento é uma coisa

mais tranquila porque eu nunca fui uma mulher de uma beleza exuberante". Ela é uma mulher

de um talento extraordinário. Eu acho que Fernanda Montenegro também tem esse

envelhecimento mais tranquilo. E eu acho que para as mulheres que o cartão de visita é uma

beleza muito esplendorosa,esta perda do esplendor da juventude é mais difícil do que para o

normal das pessoas em geral.

Apresentador: E Norma Bengell envelheceu em uma cadeira de rodas.

Sérgio Fausto: É terrível.

Antonio Corrêa de Lacerda: Ela marcou uma época de renascimento ou de fortalecimento

do cinema nacional. Ela é uma das marcas dessa época e isso vai ficar registrado para a

história.

Décima quinta notícia

Apresentador: O programa Repórter Eco acaba de conquistar o primeiro prêmio SOS Mata

Atlântica, a reportagem com o título serviços ambientais fala dos trabalhos de conservação e

um dos biomas mais devastados no país. A reportagem completa você vê no Repórter Eco,

domingo, às 17:30. Lacerda e Sérgio, obrigado pela presença, boa noite para vocês. E o nosso

boa noite vai para o desconhecido ganhador da Mega Sena, em Ponta Grossa, no Paraná. O

prazo de 90 dias para retirar os 23 milhões de reais terminou ontem, mas ele ganhou uma

nova chance. A Caixa Econômica Federal informou que o acertador poderá buscar o prêmio

quando terminar a greve dos bancários. E fica aí uma pergunta: será que o afortunado

desconhecido não pensa em dinheiro? A seguir, você assiste ao Senhor Brasil.Boa noite para

você, até amanhã.