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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Antonia da Conceição Espírito Santo Cognições Sociais e Discursos: Renato Russo em diálogo com alunos de uma escola pública paulistana MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Antonia da Conceição Espírito Santo

Cognições Sociais e Discursos: Renato Russo em diálogo com

alunos de uma escola pública paulistana

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Antonia da Conceição Espírito Santo

Cognições Sociais e Discursos: Renato Russo em diálogo com

alunos de uma escola pública paulistana

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como

exigência parcial para obtenção do título de MESTRE

em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra.

Regina Célia Pagliuchi da Silveira.

SÃO PAULO

2009

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Banca Examinadora

...........................................................................................

...........................................................................................

...........................................................................................

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O Sonho possível

Ai de nós, se deixarmos de sonhar sonhos possíveis.

Ai daqueles e daquelas, entre nós, que pararem com a sua capacidade de

sonhar, de inventar a sua coragem de denunciar e de anunciar.

Ai daqueles e daquelas, que se negarem a visitar, de vez em quando, o amanhã, o

futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora.

Ai daqueles que, em lugar desta viagem constante ao amanhã, se atrelam a um

passado de exploração e de rotina.

Paulo Freire

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AGRADECIMENTOS

A gratidão é uma forma de compartilhar o sentimento de satisfação pela

concretização de um objetivo. Portanto, meus sinceros agradecimentos a todos

aqueles que contribuíram, valiosamente, na realização deste trabalho:

à Professora Doutora Regina Célia Pagliuchi da Silveira, coenunciadora

deste trabalho, levando-me a aprimorar e ampliar meus conhecimentos, além

de sua sabedoria, paciência e generosidade na orientação;

às Professoras Doutoras Doroti Maroldi Guimarães e Marilena Zanon, pela

valiosa contribuição e sugestões apresentadas a este trabalho;

aos Professores do Programa de Língua Portuguesa da PUC-SP, que me

proporcionaram momentos de reavaliação de meus conhecimentos;

aos colegas do Mestrado e, em especial, à Deborah Gomes de Paula, pelo

apoio e pelas importantes contribuições;

à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro;

à Direção da Escola Estadual Caetano de Campos-Consolação, pela

tolerância às minhas frequentes manifestações de angústia e aos alunos do

primeiro ano do ensino médio, do diurno, que me ofereceram a base deste

trabalho.

aos meus familiares, pela compreensão e incentivo;

e a Deus, por me fazer entender que Ele é o princípio e o fim de todas as

coisas.

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Cognições Sociais e Discursos: Renato Russo em diálogo com alunos de

uma escola pública paulistana

Antonia da Conceição Espírito Santo

Dissertação situada na Análise Critica do Discurso, em interdisciplinaridade com a

Linguística de Texto, a Teoria das Representações Sociais e a Teoria da Enunciação. Tem

por Objetivo Geral, contribuir para os estudos dos papéis sociais, em diferentes grupos

sócio-culturais brasileiros e por Objetivos Específicos: identificar os diferentes papéis

sociais que compõem a estrutura da sociedade do nosso sertanejo nordestino; examinar

qual funcionamento esses papéis têm entre si, a partir da interação do sertanejo nordestino

com outros grupos sociais; e reconhecer os valores culturais e ideológicos, contidos na

representação dos diferentes papéis sociais examinados.

Justifica-se, pois frequentes avaliações da educação brasileira apontam a ineficiência das

escolas públicas no processo ensino-aprendizagem e as soluções apontadas são,

comumente, apresentadas por profissionais que atuam fora da escola e, portanto, o

contexto da sala de aula e o perfil do aluno são desconsiderados. O ponto de partida da

investigação foi conhecer as diferentes representações sociais, que são formas de

conhecimento armazenadas na memória de longo prazo dos alunos, através de um

questionário para caracterizá-los e para a escolha de uma música de suas preferências. A

hipótese orientadora da pesquisa decorre da dialética entre o social e o individual e o

procedimento metodológico foi teórico-analítico, o que propiciou a análise do texto-base a

partir das categorias Sociedade, Cognição e Discurso, sendo complementada por

intertextos.

Os resultados obtidos indicam que: 1) o texto-base traz, representado em língua, uma

denúncia de Renato Russo contra a injustiça e a opressão social, relativas às classes

carentes, oriundas da migração nordestina; 2) a metrópole é representada por diferentes

grupos sociais, cada um com papéis sociais específicos, determinados pela ideologia do

Poder; 3) o Poder se institui a partir do poder econômico, que reorganiza as demais

hierarquias sociais, presentes nas representações dos marcos de cognição social, intra,

inter e extragrupais. Conclui-se que a cidadania não é atribuída a todos os brasileiros, pois,

as classes mais carentes têm dever com o Estado, porém, o Estado não tem dever com

elas.

Palavras-chave: Análise Critica do Discurso; Representações Sociais; o cidadão brasileiro

e os Discursos Institucionais.

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Social Cognition and Discourse: Renato Russo in a dialog with São Paulo

public school students.

Antonia da Conceição Espírito Santo

This Dissertation is situated on the Critical Analysis of the Discourse, in interdisciplinarity

with Text Linguistics, Social Representation Theory and Enunciation Theory. Its General

Purpose it to contribute with the study of the different roles in different Brazilian social and

cultural groups, and its Specific Purposes are: to identify the different social roles forming

the social structure of our northeastern country man (“sertanejo”); to examine how such

roles function, focusing the interaction of the northeastern country man with other social

groups; and to recognize the cultural and ideological values contained in the representation

of the different social roles examined.

It is justified that the frequent evaluations of Brazilian education evidence the inefficiency of

public schools in the teaching-learning process, the solutions commonly presented being

given by professionals who are out of school and, thus, the classroom context and the

student profile are not considered. The setting point of the investigation was to know the

different social representations, which are kinds of knowledge stored in the students’ long

term memory, by means of a questionnaire to characterize them and to choose one of their

favorite songs. The hypothesis guiding the research results from the dialect between the

social and the individual aspects, and the methodological proceeding was the theoretical-

analytical one, which enabled the analysis of the base-text, taking into consideration the

categories Society, Cognition and Speech, being supported by internal texts.

The results obtained evidence that: 1) the base-text brings Renato Russo’s complaint

against social injustice and oppression in the lower classes resulting from northeastern

migration; 2) the big city is represented by different social groups, each one with specific

social roles determined by the Power ideology; 3) the Power is established by the economic

power, which reorganizes the other social hierarchies, present in the representations of the

social cognition signs, intra, inter and extra group. In conclusion, the citizenship is not

attributed to all Brazilian citizens, since lower classes are subject to the State, although the

State is not responsible for them.

Key-words: Critical Analysis of the Discourse; Social Representations; The Brazilian

Citizen and the Institutional Discourse.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................01

CAPÍTULO I

MATERIAL E MÉTODOS UTILIZADOS NA SELEÇÃO DO TEXTO-BASE E

SUA CONTEXTUALIZAÇÃO....................................................................................07

1.1 A pesquisas para seleção do material ............................................................08

1.2 Resultados obtidos dos questionários...............................................................09

1.2.1 Idade dos alunos.....................................................................................09

1.2.2 Naturalidade dos alunos e dos pais.........................................................10

1.2.3 Identificação por mudanças de pontos geográficos do país ...................11

1.2.4 A seleção do texto-base ..........................................................................12

1.3 Métodos utilizados ...........................................................................................13

1.3.1 As categorias textuais da narrativa de história .......................................13

1.3.2 As representações sociais ......................................................................14

1.4. O compositor Renato Russo e o texto-base “Faroeste Caboclo” ....................16

1.4.1 Apresentação do texto-base “Faroeste Caboclo” ...................................19

1.4.2 O texto-base ...........................................................................................20

1.4.3 A temática do álbum “Que país é este” ..................................................24

1.4.4 “Faroeste Caboclo” e a temática do álbum .............................................29

1.4.5 Intertextualidade no álbum “Que país é este” .........................................33

1.4.5.1 Intertexto 1: O reggae ..............................................................33

1.4.5.2 Intertexto 2: Baader-Meinhof blues .............................................34

1.4.5.3 Intertexto 3: Metrópole ................................................................36

CAPÍTULO II

FUNDAMENTOS TEÓRICOS: LINGUÍSTICA DE TEXTO, TEORIA DAS

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO, COM

VERTENTE SÓCIO-COGNITIVA ............................................................................37

2.1 A Linguística de Texto .....................................................................................38

2.1.1 Os esquemas mentais ...........................................................................42

2.1.2 A Teoria da Memória por armazéns ......................................................44

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2.1.3 A crônica e a estrutura textual argumentativa ........................................47

2.2 Intertextualidade: reconstrução histórica por intertextos .................................50

2.3 A Teoria das Representações Sociais .............................................................54

2.4 Análise Crítica do Discurso ..............................................................................58

2.5 Polifonia ...........................................................................................................64

2.6 O texto e as expressões indexais ....................................................................65

2.7 A construção das figuras no intra-texto e as noções de relevância e

saliências .........................................................................................................67

CAPÍTULO III

ANÁLISES DO TEXTO-BASE “FAROESTE CABOCLO” E RESULTADOS

OBTIDOS .................................................................................................................72

3.1 Análise do texto-base ......................................................................................73

3.1.1 Sociedade ...............................................................................................73

3.1.1.1 Grupo Social: Cristianismo .............................................................74

3.1.1.2 Grupo Social: Os Excluídos, sócio-economicamente ....................81

3.1.1.3 Grupo Social: Moradores de grandes centros urbanos .................85

3.1.1.4 Grupo Social: dos Bandidos ...........................................................87

3.1.1.5 Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas e dos

Usuários de drogas ........................................................................89

3.1.1.6 Grupo Social: Instituições Penais e Policiais .................................91

3.1.1.7 Grupo Social: Mídia televisiva.........................................................92

3.1.1.8 Grupo Social: Os Corruptos ..........................................................93

3.1.1.9 Grupo Social: O Extragrupo ..........................................................94

3.1.1.10 Grupo Social: dos Migrantes ..........................................................94

3.1.1.11 Grupo Social: Os Políticos .............................................................96

3.1.1.12 Grupo Social: da Família ................................................................97

3.1.2 Cognição .................................................................................................97

3.1.3 Discurso ...............................................................................................106

3.1.3.1 Os episódios narrativos .................................................................107

3.1.3.2 A estrutura argumentativa em “Faroeste Caboclo” .......................111

3.1.3.3 O título do texto-base “Faroeste Caboclo” ...................................113

3.1.3.4 As pressuposições e subentendidos em “Faroeste Caboclo” ......114

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3.1.4 O papel dos intertextos e interdiscursos, na leitura de reconstrução

histórica do texto-base ..........................................................................117

3.1.4.1 Intertexto 1: O reggae ..................................................................117

3.1.4.2 Intertexto 2: Baader-meinhof blues ..............................................118

3.1.4.3 Intertexto 3: Metrópole .................................................................119

3.1.4.4 Análise dos intertextos e “Faroeste Caboclo”, em relação ao

marco de cognição social .............................................................120

3.1.5 Outros intertextos: com referências bíblicas ........................................124

3.1.6 Conclusões obtidas das análises dos intertextos .................................129

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................135

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................139

ANEXOS.................................................................................................................144

Anexo 1: Que país é este ...................................................................................145

Anexo 2: Conexão Amazônica ...........................................................................146

Anexo 3: Tédio (com um T bem grande pra você) .............................................147

Anexo 4: Eu sei ...................................................................................................148

Anexo 5: Mais do mesmo ...................................................................................149

Anexo 6: Angra dos Reis ....................................................................................150

Anexo 7: Química ...............................................................................................151

Anexo 8: Depois do começo ...............................................................................152

Anexo 9: Se fiquei esperando meu amor passar ................................................153

Anexo 10: Índios ...................................................................................................154

Anexo 11: Pais e filhos .........................................................................................155

Anexo 12: Geração Coca-Cola .............................................................................156

Anexo 13: Sagrado coração .................................................................................157

Anexo 14: Questionário para pesquisa .................................................................158

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APRESENTAÇÃO

Esta dissertação está vinculada à linha de pesquisa “Texto e Discurso nas

Modalidades Oral e Escrita”, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua

Portuguesa, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

A pesquisa realizada está situada na Análise Crítica do Discurso, com vertente

sócio-cognitiva e complementada com a Teoria das Representações e bases

tipológicas da Linguística de Texto.

Tem-se por tema, as formas de identificação sócio-cognitivas que alunos do

primeiro ano de ensino médio, da Escola Estadual Caetano de Campos –

Consolação, têm com a música de Renato Russo.

Tem-se por pressuposto, que há uma dialética entre o social e o individual, na

medida em que o social guia o individual e este o modifica.

Com visão pragmática, entende-se que os estudos de língua só podem ser

realizados no uso efetivo dos seus sujeitos produtores: locutor-interlocutor. Dessa

forma, a atenção dos linguistas volta-se para o texto e o discurso.

Entende-se que o discurso é uma prática sócio-interacional, que se define por

participantes, suas funções e suas ações. Dependendo do gênero textual, os

participantes do discurso representam papéis sociais diferentes e, dessa forma,

cada papel adquire uma função específica na interação comunicativa. Logo, as

ações são controladas pelas funções de cada papel que os participantes

representam.

A pesquisa realizada trata da letra de uma música de Renato Russo, que tem por

título “Faroeste Caboclo”. O discurso examinado é de denúncia e o seu

produtor constrói sentidos interagindo com seus interlocutores, de forma que eles

construam uma narrativa formalizada, textualmente, pela crônica contemporânea.

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Entende-se, nesta dissertação, que o texto é visto como produto linguístico, que

traz representado em língua, a partir das intenções de seu produtor e da

informação. O texto-base analisado é relativo à denúncia da ausência de cidadania

para um determinado grupo social brasileiro, o sertanejo nordestino, embora a

cidadania seja um direito que as pessoas têm, ao se situarem em uma nação, pois

elas têm deveres para com o Estado e este para com elas.

O texto crônica é entendido, conforme Silveira (2000), como sendo da classe

textual opinativa. As crônicas têm suas origens na Europa, onde podiam ser

definidas como texto bibliotecário construído pelo cronista, que tinha por tarefa

ordenar, no tempo (cronos), um conjunto de textos escritos por outros autores.

Em Portugal, o cronista Fernão Lopes apresenta uma modificação para a crônica

original, introduzindo um texto escrito por ele próprio, para entrelaçar textos de

outros autores. Introduz, também, características do povo português, deixando de

focalizar apenas a vida da corte.

No Brasil, a crônica é introduzida no século XIX, com a chegada da corte

portuguesa no Rio de Janeiro, que, além de D. João VI, chega, também, a

imprensa e, consequentemente, o jornal.

Os textos crônicas passam a fazer parte do Folhetim, promovendo o acesso ao

público leitor, fato que lhes propicia interação lúdica. Atualmente, a crônica

jornalística é diferenciada em: crônica do cotidiano e crônica de notícia (cf. Scafuro,

1999).

A pesquisa desta dissertação está delimitada à crônica do cotidiano, que traz,

representado em língua, o cotidiano da vida dos brasileiros, tematizado pelo seu

produtor, Renato Russo. Busca-se examinar os papéis sociais que identificam um

determinado grupo social, no Brasil, o sertanejo nordestino.

As contribuições dadas pela Psicologia Social, com o Interacionismo

Simbólico, propiciaram que se entendesse a sociedade, tanto como uma estrutura,

quanto como um funcionamento.

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A sociedade, vista como uma estrutura, compreende a identificação de quais

papéis sociais um determinado grupo social seleciona, por se identificar com eles.

A sociedade, entendida como um funcionamento, implica quais papéis sociais

podem interacionar-se, a partir de determinado núcleo.

Dessa forma, esta dissertação tem por Objetivo Geral, contribuir para os estudos

dos papéis sociais, em diferentes grupos sócio-culturais brasileiros e por Objetivos

Específicos:

1. identificar os diferentes papéis sociais que compõem a estrutura da

sociedade do nosso sertanejo nordestino, que migra de sua região, em

busca da sobrevivência em um grande centro urbano;

2. examinar qual funcionamento esses papéis têm entre si, a partir da

interação do sertanejo nordestino com outros grupos sociais;

3. reconhecer os valores culturais e ideológicos, contidos na representação

dos diferentes papéis sociais examinados.

Justifica-se esta pesquisa, pois, frequentes avaliações da educação brasileira

apontam a ineficiência das escolas públicas no processo ensino-aprendizagem e as

soluções apontadas são, comumente, apresentadas por profissionais que atuam

fora da escola e, portanto, o contexto da sala de aula e o perfil do aluno são

desconsiderados. Consequentemente, muitas vezes, planejamento, conteúdo e

metodologia são estabelecidos pelas escolas, antes de se conhecer o aluno,

quando não copiados, integralmente, ano após ano e questões relativas à

formação do sujeito-cidadão são minimizadas.

Outrossim, a questão da identidade do sertanejo nordestino, aqui tratada,

perpassa pela vida de muitos cidadãos brasileiros, inclusive de alguns alunos e/ou

seus familiares e, portanto, tratar dessa questão possibilitará a ampliação e/ou

reformulação de conhecimentos de mundo.

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O ensino geral de língua tem suas origens na Grécia e decorre da necessidade dos

mestres transformarem seus alunos em nobres pensadores. Dessa forma, antes de

se conhecer o aluno, os professores traçavam, para eles, o perfil do aluno ideal, a

fim de que se comportassem como nobres. A partir dessa concepção, eram

selecionados os conteúdos, as tarefas e as avaliações e todos os alunos eram

instruídos para se identificarem com esse perfil traçado.

A partir do século XX, na Europa, houve mudança nas práticas de ensino. Opta-se

por um ensino específico, que atendesse às necessidades e dificuldades dos

alunos. O professor passa a ser visto como um facilitador do aprendizado e, para

tanto, faz-se necessário que se conheça o real perfil do aluno que está em sala de

aula.

No Brasil, ainda mantém-se o ensino geral nas escolas públicas, ou seja, trabalha-

se para um aluno ideal, não real e, portanto, surgem problemas de interação

professor-aluno e, consequentemente, de aprendizagem.

Portanto, esta dissertação se justifica, na medida em que busca conhecer o aluno

e, principalmente, resgatar suas cognições sociais, a partir de sua identificação

com valores atribuídos a papéis sociais representados no texto “Faroeste Caboclo”.

O procedimento metodológico adotado compreende:

1. seleção de informantes-alunos, num total de cento e cinquenta,

regularmente matriculados e frequentando o primeiro ano do ensino

médio, do período diurno, da Escola Estadual Caetano de Campos –

Consolação.

Esses alunos foram selecionados tendo por critério o já vivido e

experienciado por eles, por meio do discurso, pois, no ensino médio, a

maioria dos alunos tem por objetivo o acesso à universidade e, também,

muitos já trabalham, portanto, conhecem as Instituições Sociais: Família,

Igreja, Escola e Empresa;

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2. o texto para análise foi selecionado com base na escolha dos alunos,

que, pressupostamente, já se identificavam com o papel de denunciador,

representado por Renato Russo, sobre a ausência de cidadania atribuída

a determinado grupo social brasileiro, o sertanejo nordestino;

3. as análises realizadas seguiram um procedimento teórico-analítico e a

seleção teórica está fundamentada nas categorias analíticas Sociedade,

Cognição e Discurso, propostas por van Dijk (1997).

Essas análises foram elaboradas percorrendo a alinearidade do texto

selecionado, de forma a diferenciar quantos grupos sociais estão

representados, quais papéis sociais identificam cada um deles e quais

valores culturais e ideológicos são atribuídos a cada papel social.

A hipótese orientadora da pesquisa decorre da dialética entre o social e o

individual. Dessa forma, tem-se por hipótese, que as cognições sociais dos alunos

são relativas a grupos sociais diferentes; todavia, os discursos públicos, tal como a

música de Renato Russo analisada, constróem cognições extragrupais, de forma a

dar origem a uma unidade imaginária, na diversidade de grupos sociais, onde estão

situados os diferentes alunos de uma mesma classe escolar.

Esta dissertação busca responder à seguinte pergunta:

No atual conflito existente entre os diferentes grupos sociais de alunos, de

uma mesma classe escolar, o que pode, unitariamente, identificá-los com

papéis sociais e quais valores são atribuídos a esses papéis?

Três capítulos compõem esta dissertação, a saber:

• Capítulo I: “Material e métodos utilizados na seleção do texto-

base e sua contextualização” - apresenta resultados de uma

pesquisa realizada com alunos de uma escola pública paulistana e a

respeito da produção de letras musicais de Renato Russo, com o seu

papel de denunciador, na sociedade contemporânea, fato que o mantém

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vivo, mesmo após sua morte, nas cognições sociais de alunos

adolescentes de uma escola pública paulistana. Apresenta, ainda, os

intertextos selecionados na obra de Renato Russo, que propiciaram a

síntese ou a progressão semântica das representações sociais,

atualizadas em língua, no texto-base selecionado.

• Capítulo II: “Fundamentos teóricos: Linguística de Texto, Teoria das

Representações Sociais e Análise Crítica do Discurso, com vertente

sócio-cognitiva” – revê fundamentos teóricos da Linguística de Texto,

relativos a esquemas textuais; da Teoria das Representações Sociais,

por seus papéis e questões identitárias; e da Análise Crítica do Discurso,

proposta por van Dijk (1997), através das Categorias Analíticas:

Sociedade, Cognição e Discurso.

• Capítulo III: “Análises do texto-base ‘Faroeste Caboclo’ e resultados

obtidos” - apresenta as análises que foram orientadas pela inter-relação

das categorias Sociedade, Cognição e Discurso, bem como os

resultados obtidos. Por se tratar de um texto narrativo-crônica, os

resultados obtidos são relativos aos episódios que compõem a narrativa

da história do texto analisado, de forma a descrever os papéis sociais e

seus devidos valores culturais e ideológicos.

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CAPÍTULO I

MATERIAL E MÉTODOS UTILIZADOS NA SELEÇÃO DO TEXTO-

BASE E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO

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CAPÍTULO I

MATERIAL E MÉTODOS UTILIZADOS NA SELEÇÃO DO TEXTO-

BASE E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO

Esta dissertação busca examinar os papéis sociais e os devidos valores atribuídos

a eles por Renato Russo, em seu texto musical “Faroeste Caboclo”.

Entende-se que as representações sociais não são meras formas de conhecimento

do mundo existencial, pois há uma convenção de valores sociais que integram cada

representação social. Essa prática social caracteriza os conhecimentos da

memória social de longo prazo, que guiam as formas de conhecimentos individuais,

de forma dialética: o social guia o individual e este modifica, progressivamente, o

social.

1.1 A pesquisa para seleção do material

O material selecionado, para análise, decorre da escolha feita por cento e

cinquenta alunos do primeiro ano do ensino médio, a partir do seguinte critério:

• foi entregue aos informantes-alunos, para que eles respondessem, por escrito,

questionário (Anexo 14) composto pelas seguintes áreas:

a) identificação dos alunos, por naturalidade e idade;

b) identificação dos alunos e dos pais, por mudanças de pontos geográficos no

país;

c) a escolha do tipo de texto, que o aluno mais gosta de ler/ouvir.

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1.2 Resultados obtidos d

Em face da diversidade de respostas obtidas nos questionários

alunos e visando melhor caracterização e compreensão dos dados obtidos, foram

elaborados gráficos, que serão apresentados a seguir,

idade dos alunos; naturalidade dos alunos e dos pais;

de pontos geográficos do país; e a

1.2.1 Idade dos alunos

Nº de alunos

Os dados, ora apresentados

realidade das escolas públicas, amplamente divulgada na mídia, ou seja, a sala de

aula é composta por grupos com idade heterogênea. Todavia, há algo que os

identifica: são adolescentes

Aurélio da Língua Portuguesa

0

30

60

90

120

150

14 15Idade

obtidos dos questionários

Em face da diversidade de respostas obtidas nos questionários entregues aos

alunos e visando melhor caracterização e compreensão dos dados obtidos, foram

, que serão apresentados a seguir, com as seguintes variáveis:

aturalidade dos alunos e dos pais; identificação por mudanças

de pontos geográficos do país; e a seleção do texto-base.

dos alunos

ora apresentados, não revelam nenhuma novidade em relação à

realidade das escolas públicas, amplamente divulgada na mídia, ou seja, a sala de

aula é composta por grupos com idade heterogênea. Todavia, há algo que os

identifica: são adolescentes; termo, este, assim caracterizado pelo Novo Dicionário

da Língua Portuguesa (1975):

15 16 17 18 acima de 18

9

entregues aos

alunos e visando melhor caracterização e compreensão dos dados obtidos, foram

com as seguintes variáveis:

dentificação por mudanças

não revelam nenhuma novidade em relação à

realidade das escolas públicas, amplamente divulgada na mídia, ou seja, a sala de

aula é composta por grupos com idade heterogênea. Todavia, há algo que os

izado pelo Novo Dicionário

acima de 18

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“adolescência. [Do lat. Adolescentia] S.f. (...) 2. Psicol. Período que se estende da

terceira infância até a idade adulta, marcado por intensos processos conflituosos e

persistentes esforços de auto-afirmação. Corresponde à fase de absorção dos

valores sociais e elaboração de projetos que impliquem plena integração social.”

Renato Russo, ao escrever o texto “Faroeste Caboclo”, tinha dezenove anos, logo,

um adolescente, fato que autoriza a inferência de que o autor escrevia, com

propriedade, sobre sua época, traduzindo as inquietações dos jovens. Levando-se

em consideração a definição acima, sobre adolescência, pressupõe-se que Renato

Russo representa o papel de porta-voz dos conflitos sociais e anseios de

autoafirmação, vividos por muitos adolescentes, desencadeando uma forte

identificação.

1.2.2 Naturalidade dos alunos e dos pais

Naturalidade dos alunos Naturalidade dos pais

Nº de

Alunos

150 120 90 60 30 0 Naturalidade Cidade de SP Interior de SP Nordeste Outros estados

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Através deste gráfico, conclui-se que a maioria dos alunos, bem como seus pais,

deixou sua cidade de origem, vindo para São Paulo. Denota-se que a cidade de

São Paulo comporta cidadãos egressos de diferentes regiões brasileiras.

1.2.3 Identificação por mudanças de pontos geográficos do país

Identificação dos alunos e dos pais, por mudanças de pontos geográficos do país,

destacando-se os que nasceram na capital de São Paulo e os egressos de outras

cidades.

Naturalidade dos alunos Naturalidade dos pais

% 100 80 60 40 20 0 Naturalidade Cidade de SP Outras Cidades

Tem-se, neste gráfico, um retrato da grande metrópole, São Paulo: a população

migrante de outras cidades sobrepõe aos nativos. Setenta e quatro por cento

dos alunos pesquisados migraram de outras cidades, enquanto seus pais atingiram

o percentual de noventa por cento, índices altamente significativos, quando se

analisa os problemas sociais do sertanejo nordestino e das metrópoles brasileiras.

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1.2.4 A seleção do texto-base

Todos os alunos indicaram, como texto de preferência para se ler/ouvir, nomes de

músicas, aparecendo como as mais votadas: “Faroeste Caboclo”, de Renato

Russo; “Deixo”, interpretada por Ivete Sangalo; e “Senhor do Tempo”, de Charlie

Brown Jr., como se vê no gráfico a seguir:

Nº de Alunos 150 120 90 60 30 0 Músicas Deixo Faroeste Caboclo Senhor do Tempo Outras

A partir dessa seleção, as três músicas mais votadas retornaram aos alunos, para

que escolhessem somente uma delas, de acordo com sua preferência, apurando-se

o seguinte resultado:

Nº de Alunos 150 120 90 60 30 0 Músicas Deixo Faroeste Caboclo Senhor do Tempo

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“Faroeste Caboclo”, de Renato Russo, o texto mais votado, passou, então, a ser

considerado o texto-base desta pesquisa e será analisado tendo por critério a

segmentação da linearidade textual.

1.3 Métodos utilizados

O procedimento metodológico é teórico-analítico e orientado pelas categorias

textuais da narrativa de história e pelas representações sociais que identificam os

personagens dessa historia.

1.3.1 As categorias textuais da narrativa de história

O texto-base está formalizado pela narrativa de história e os estudos, já realizados,

sobre tipologia de textos, indicam que a narrativa de história é um esquema textual,

designado superestrutura, por Kintsch e van Dijk (1978).

A superestrutura da história é definida por três categorias obrigatórias e uma

optativa: Apresentação, Conflito e Resolução, que podem ou não virem seguidas da

categoria Moral.

A categoria Apresentação agrupa as palavras e frases que constróem sentidos

relativos a uma situação de equilíbrio, construída com personagens, tempo,

cenário-espaço e espaço-cenário. Essa categoria reúne os sentidos relativos aos

papéis representados por cada personagem, situados em determinado tempo e

espaço, recorrendo aos conhecimentos sociais dos leitores, de forma a construir,

para eles, uma expectativa do que acontecerá.

A categoria Conflito reúne as palavras e frases que constróem sentidos relativos a

uma quebra de expectativa do leitor, de forma a construir, para eles, um conflito

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vivido pelos personagens da história, que entram em desequilíbrio com a situação

inicial da Apresentação.

A categoria Resolução reúne as palavras e frases que constróem sentidos relativos

à forma como o conflito é solucionado, para que os personagens retomem o

equilíbrio, em suas relações de papéis.

A categoria Moral reúne as palavras e frases que constróem sentidos opinativos, ou

seja, valores que possam guiar os leitores a enfrentarem novas situações.

Uma narrativa de história, segundo Reis & Lopes (1988), pode ser Simples ou

Complexa. A Narrativa Simples é formalizada com apenas um episódio e cada um

deles é organizado pelas categorias: Apresentação, Conflito e Resolução. A

Narrativa Complexa é construída com um grande número de episódios, todos

interligados pela opinião do autor, que está agrupada na categoria Moral.

1.3.2 As representações sociais

Considerando-se que cada episódio compreende personagens, tempo e lugar, cada

personagem, dependendo do momento histórico e da situação geográfica, é

construído com papéis sociais que compõem a estrutura social do grupo, onde eles

se situam. Assim, os papéis sociais são representações identitárias de um grupo

social (cf. Resende & Ramalho, 2006).

O texto-base analisado traz, representado em língua, diferentes grupos sociais que

integram, em sua maioria, a cultura de massa, representada pelos grupos: dos

Excluídos, sócio-economicamente – composto pelos grupos dos Trabalhadores,

Rural e da Periferia, do Interior – dos Bandidos; dos Traficantes; dos

Contrabandistas e dos Usuários de Drogas; das Instituições Penais e dos Policiais;

e dos Migrantes.

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A cultura de elite está representada pelos grupos: dos Políticos; do Clérico; dos

Burgueses (pessoas de poder aquisitivo); da Mídia Televisiva; dos Corruptos; e o

grupo Urbano faz parte, tanto da cultura de massa, quanto da cultura de elite, pela

própria diversidade que lhe é peculiar.

Traz, também, caracterizado em língua, um grupo de Poder, representado pelos

grupos: dos Políticos, dos Policiais e das Instituições Penais, da Mídia Televisiva e

do Clérico, que impõem, ideologicamente, um grupo de valores positivos e

negativos, discriminando os demais grupos sociais.

Para se analisar os valores culturais ideológicos teoricamente, as análises estão

fundamentadas em van Dijk (2000), que propõe a ideologia vista como um conjunto

de valores impostos pelos participantes do Poder. Como tais participantes são

membros de grupos de Poder diferentes, as ideologias são plurais: grupo de Poder

no Tráfico de Drogas, grupo de Poder Político no Estado e grupo de Poder

Econômico e, consequentemente, os demais grupos sociais são marginalizados.

Ainda, segundo van Dijk, os grupos dominados e discriminados pelo Poder, em

certo momento, reagem, impondo, também, suas ideologias e, nesse conflito,

também não se pode falar na ideologia de um Poder, pois elas sempre serão

plurais.

Segundo Silveira (2007), os termos Ideologia e Cultura são definidos por um

conjunto de valores sociais, que guia o comportamento e a atitude das pessoas.

Todavia, há diferença entre Ideologia e Cultura, pois esta compreende um conjunto

de valores atribuídos ao vivido e ao experienciado, socialmente, pelas pessoas,

conforme os seus objetivos e interesses.

As culturas, também, são plurais, assim como os grupos sociais, pois têm raízes

históricas e contemporaneidade; mas, a cada contemporaneidade ocorre uma

mudança, que produz uma dinâmica nos valores atribuídos, uma vez que os

problemas novos dos grupos sociais são resolvidos pelos valores histórico-sociais.

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Assim, a Cultura é vista como um conjunto de valores transmitidos socialmente, no

e pelo próprio grupo social. Enquanto a Ideologia compreende um conjunto de

valores impostos pela(s) classe(s) de Poder, para se manter em sua posição e,

dessa forma, discriminar quem ameaça seu Poder. Os valores ideológicos são

estáticos e só desaparecem quando a classe de Poder, que os impõem,

desaparece e, ao aparecer uma nova classe de Poder, outra ideologia será

imposta.

1.4 O compositor Renato Russo e o texto-base “Faroeste

Caboclo”

Na tentativa de se caracterizar o texto-base selecionado para análise, poder-se-ia

dizer que:

Renato Manfredini Júnior nasceu em 1960 e faleceu em 1996. Teve infância e

adolescência tranquilas, em família de classe média alta, vivendo em Nova York,

dos sete aos dez anos, em função do trabalho do pai. Essa experiência, mais tarde,

o beneficiaria em sua primeira profissão, professor de inglês, língua que

aprendera, desde pequeno. Retornando ao Brasil, foi morar no Rio de Janeiro e,

depois, em Brasília. Dos quinze aos dezessete anos, teve problemas sérios de

saúde, impossibilitando-o, inclusive, de andar durante esse período.

Apesar da complicação natural da situação, Renato trancava-se em casa,

aproveitando o tempo para ler e estudar muito: ouvia música clássica, lia a

Enciclopédia Britânica, livros e revistas sobre música e a coleção “Os Pensadores”,

fato considerado, pela mãe, como atípico para um jovem de sua idade e justificado,

ironicamente, pelo próprio Renato, dizendo “sou diferente”. Era extremamente bem

informado, tinha vasta cultura e gostava de planejar o futuro.

É nesse período que nasce o desejo de ser músico e cria uma banda fictícia, em

que o cantor/alterego chamava-se Eric Russel, cujo sobrenome foi em homenagem

ao filósofo Jean-Jacques Rousseau, ao pintor Henri Rousseau e ao filósofo

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Bertrand Russell. Esta mistura filosófica e artística daria origem, posteriormente, ao

seu sobrenome artístico, Russo.

O compositor Renato Russo surge em meio à atmosfera juvenil da Brasília dos

anos setenta, assim caracterizada: o efeito da ditadura militar sobre a juventude

fazia parte do cotidiano desses jovens e marcaria a história de cada um;

estudantes na capital, muitos cresceram sob a exigência íntima de falar alguma

coisa sobre o assunto e, então, surgiram as bandas musicais que assumiram esse

papel e, por isso, seus fãs atribuíam-lhes caráter messiânico – fato este muito

marcante em Renato Russo; a efervescência do lugar; as rodinhas dos jovens de

classe média, alguns eram filhos de professores, que moravam na Universidade de

Brasília, outros filhos de diplomatas ou de executivos, que se reuniam nos saguões

dos blocos habitacionais; a falta do que fazer, na capital do país, potencializa o

surgimento de diversas bandas musicais, opção fundamentalmente alternativa com

a chegada de discos de punk rock, trazidos de Londres; as “paqueras”, as primeiras

experiências com drogas, as bebedeiras, as brigas com os “playboys”, a relação

com os policiais, etc. Aconteciam, também, as chamadas “rockonhas”, festas com

muito som e ervas, que acabavam, frequentemente, com a chegada da polícia.

Sobre essa época, Percino (2005, p. 4-5) comenta:

“Naquele engenho dos anos finais da ditadura, assumir uma postura

comportamental diferenciada era diretamente se comprometer com um estilo oposto

às regulamentações e protótipos oficiais. Conta-se que os policiais, apesar de tudo,

tinham um certo respeito – “devem ser filhos de políticos ...” – e que, às vezes,

desafiavam os meninos, no máximo, para um embate de flexão de braços no meio

da rua. Renato, coitadinho, que tinha problema nas pernas, era sempre o último a

acabar as flexões. Calças rasgadas e alfinetes eram o suficiente para chocar a

sociedade brasiliense. Os garotos foram caracterizados como “o movimento punk

de Brasília” e o núcleo do grupo, do qual faziam parte os amigos do Renato, era

conhecido como “turma da colina”¹. Esses garotos reuniam-se para conversar,

partilhavam suas idéias, planejavam a montagem de bandas, que, aos poucos, iam

surgindo com apresentações nas esquinas das ruas, tendo como destaque o punk

_______________ 1 Colina era o nome de um conjunto de quatro prédios, dentro da Universidade de Brasília.

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rock, com nítida influência das bandas estrangeiras, que norteavam o universo

musical desses jovens. Essa referência musical estrangeira aconteceu porque o

Brasil, no final dos anos 70, vivia uma expectativa de abertura política e parte

da juventude ousava se expressar, ainda que marginalmente, seduzidos pelas

letras do punk rock vindo da Europa e que, além de toda a irreverência tão peculiar

a essas bandas, apregoava uma proposta nova, com a filosofia “faça-você-

mesmo”.

Assim, os jovens brasilienses da época assimilaram essas ideias,

buscando concretizar outro tipo de linguagem musical, outra via cultural,

expressa, sobretudo, pela presença conceitual, pelo apelo subjacente no

discurso, como afirma Percino (p. 6):

“Cria-se que isso poderia cumprir o papel de agente canalizador de uma

existência renovada e até mesmo estimular, num momento adiante, uma “agitação”

na maneira de interpretar e transformar os conteúdos cotidianos. O jovem

Russo, por exemplo, utilizava as letras do Sex Pistols nas suas aulas de

inglês na Cultura Inglesa em Brasília; e tudo era uma grande novidade, pois a

irreverência e o modo cru com que as letras decodificavam a vida e o mundo

propunha aos alunos, mais do que o exercício da língua inglesa, um exercício

interpretativo e formador de opinião.”

É nesse cenário que Renato Russo, em 1978, formou sua primeira banda musical,

“Aborto Elétrico” e, em 1979, com dezenove anos, compôs letra e melodia de

“Faroeste Caboclo”, embora não a lançasse, naquele momento. Em 1982,

abandonou a banda e decidiu fazer trabalhos solos. Em 1984, com dois amigos,

cria a banda “Legião Urbana”, atuando inicialmente como guitarrista, e depois,

como cantor, lançando o primeiro álbum, no ano seguinte, que alcança grande

sucesso e marca sua consagração, atingindo, então, os grandes anseios dos

jovens brasileiros, com seus refrões poderosos e letras que falavam de

inseguranças emocionais e do niilismo da geração crescida durante o regime

militar.

Em face desse contexto sócio-político tão efervescente da época, despertou-se o

interesse em pesquisar o porquê de as bandas de Renato terem sido assim

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designadas. Para Aborto Elétrico há duas versões: a primeira é que o nome teria

surgido em decorrência de uma invasão do campus da UNB, pelo Exército, numa

das famosas ações do governo, durante a ditadura militar, quando uma estudante

universitária grávida teria perdido o filho, em consequência de um cassetete elétrico

– inventado em 1968 e dava choque – utilizado por um soldado mais afoito; a

segunda, apresentada pelo próprio Renato, numa entrevista do grupo concedida à

Revista “Showbizz”, diz que o nome surgiu num daqueles encontros dos amigos, no

térreo de um dos blocos de apartamentos da Colina e, em suas divagações à

procura de um nome, aparecia a palavra elétrico, e alguém o chamou de tijolo

elétrico. Imediatamente, um de seus companheiros o corrigiu, dizendo que deveria

ser Aborto Elétrico. Acrescentara, ainda, que tal fato desmentia a lenda da primeira

versão.

Para o nome Legião Urbana, a explicação é que Renato pretendia montar um

núcleo mínimo para a banda – baixo e bateria – e convidar guitarristas e

tecladistas para tocarem como convidados, completando a banda e representando,

assim, uma legião de músicos da cidade. Entretanto, essa ideia não foi adiante,

mas o nome da banda permaneceu e Renato fez uma adaptação do mote cunhado

pelo imperador Júlio César “Romana Legio omnia vincit, Legião Romana tudo

vence”, passando a usar a frase em latim como lema da banda: “Urbana Legio

omnia vincit, Legião Urbana tudo vence”, epíteto presente em quase todos os

encartes de álbum da banda.

1.4.1 Apresentação do texto-base “Faroeste Caboclo”

O texto-base “Faroeste Caboclo”, composto por Renato Russo em 1979, foi

lançado somente em 1987, em seu terceiro álbum com a banda Legião Urbana,

intitulado “Que país é este” – que é também o nome de uma das músicas do disco.

“Faroeste Caboclo”, com 159 versos e, aproximadamente, nove minutos de

duração, narra a trajetória de vida do personagem João de Santo Cristo, um

homem que sai de uma fazenda do interior da Bahia, segue para Salvador e depois

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para Brasília, torna-se traficante, contrabandista, apaixona-se, tenta mudar de vida,

mas retorna ao crime e morre num duelo com seu rival.

É uma obra de ficção, do final dos anos setenta, porém, parece familiar ao retratar

temas ainda tão presentes nos dias atuais: desigualdade social, violência, drogas e

traficantes, criminalidade, contrabando, injustiças sociais e o papel da televisão.

Essa é uma característica que permeia, não somente essa letra, mas todo o álbum.

Renato Russo está caracterizado no texto como um compositor de denúncias e

denunciar implica explicitar o que socialmente é silenciado e proibido de ser dito e

todas as formas de proibição são reproduções ideológicas do Poder.

Assim, a seguir, será apresentado o texto-base, tema central desta pesquisa e,

em seguida, uma análise da temática das outras letras de música, inseridas no

mesmo álbum de “Faroeste Caboclo”, cujo objetivo é verificar as possíveis ligações

temáticas entre o texto-base e as demais composições, ampliando, desta forma, as

possibilidades de compreensão.

1.4.2 O texto-base

FAROESTE CABOCLO (Renato Russo)

1 Não tinha medo o tal João de Santo Cristo, 2 Era o que todos diziam quando ele se perdeu. 3 Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda 4 Só para sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu. 5 Quando criança só pensava em ser bandido, 6 Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu... 7 Era o terror da cercania onde morava 8 E na escola até o professor com ele aprendeu.

9 Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro 10 Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar. 11 Sentia mesmo que era mesmo diferente 12 E sentia que aquilo ali não era o seu lugar 13 Ele queria sair para ver o mar 14 E as coisas que ele via na televisão 15 Juntou dinheiro para poder viajar 16 E de escolha própria, escolheu a solidão.

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17 Comia todas as menininhas da cidade 18 De tanto brincar de médico, aos doze era professor. 19 Aos quinze, foi mandado pro reformatório 20 Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror. 21 Não entendia como a vida funcionava – 22 Discriminação por causa da sua classe, sua cor 23 Ficou cansado de tentar achar resposta 24 E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.

25 E lá chegando foi tomar um cafezinho 26 E encontrou um boiadeiro com quem foi falar 27 E o boiadeiro tinha uma passagem 28 E ia perder a viagem, mas João foi lhe salvar. 29 Dizia ele: - Estou indo pra Brasília 30 Neste país lugar melhor não há. 31 Estou precisando visitar a minha filha 32 Eu fico aqui e você vai no meu lugar.

33 E João aceitou sua proposta e num ônibus entrou no Planalto Central. 34 Ele ficou bestificado com a cidade 35 Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal. 36 – Meu Deus, mas que cidade linda. 37 No Ano Novo eu começo a trabalhar. 38 Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro 39 Ganhava cem mil por mês em Taguatinga.

40 Na sexta-feira ia pra zona da cidade 41 Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador. 42 E conhecia muita gente interessante 43 Até um neto bastardo do seu bisavô: 44 Um peruano que vivia na Bolívia 45 E muitas coisas trazia de lá. 46 Seu nome era Pablo e ele dizia 47 Que um negócio ele ia começar.

48 E Santo Cristo até a morte trabalhava 49 Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar. 50 E ouvia às sete horas o noticiário 51 Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar. 52 Mas ele não queria mais conversa 53 E decidiu que com o Pablo ele iria se virar. 54 Elaborou mais uma vez seu plano santo 55 E, sem ser crucificado, a plantação foi começar.

56 Logo, logo, os malucos da cidade souberam da novidade: 57 – Tem bagulho bom aí! 58 E João de Santo Cristo ficou rico 59 E acabou com todos os traficantes dali. 60 Fez amigos, freqüentava a Asa Norte 61 E ia pra festa de rock, pra se libertar. 62 Mas de repente

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63 Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade 64 Começou a roubar.

65 Já no primeiro roubo ele dançou 66 E pro inferno ele foi pela primeira vez. 67 Violência e estupro do seu corpo. 68 – Vocês vão ver, eu vou pegar vocês. 69 Agora o Santo Cristo era bandido 70 Destemido e temido no Distrito Federal. 71 Não tinha nenhum medo de polícia 72 Capitão ou traficante, playboy ou general.

73 Foi quando conheceu uma menina 74 E de todos os pecados ele se arrependeu. 75 Maria Lúcia era uma menina linda 76 E o coração dele pra ela 77 O Santo Cristo prometeu. 78 Ele dizia que queria se casar 79 E carpinteiro ele voltou a ser. 80 – Maria Lúcia pra sempre eu vou te amar 81 E um filho com você eu quero ter.

82 O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe com

dinheiro na mão. 83 E ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta 84 Uma resposta de João: 85 – Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança 86 Isso eu não faço não. 87 E não protejo general de dez estrelas, 88 Que fica atrás da mesa com o cu na mão. 89 E é melhor o senhor sair da minha casa 90 Nunca brinque com um Peixes, ascendente Escorpião. 91 Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse: 92 – Você perdeu sua vida, meu irmão.

93 Você perdeu sua vida, meu irmão. Você perdeu sua vida, meu irmão. 94 Essas palavras vão entrar no coração 95 E eu vou sofrer as conseqüências como um cão. 96 Não é que o Santo Cristo estava certo 97 E seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar. 98 Se embebedou e no meio da bebedeira 99 Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar. 100 Falou com Pablo que queria um parceiro 101 E também tinha dinheiro e queria se armar. 102 Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia em

Planaltina.

103 Mas acontece que um tal de Jeremias, 104 Traficante de renome, apareceu por lá. 105 Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo 106 E decidiu que com João ele ia acabar.

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107 Mas Pablo trouxe uma Winchester-22 108 E Santo Cristo já sabia atirar. 109 E decidiu usar a arma só depois 110 Que o Jeremias começasse a brigar.

111 O Jeremias, maconheiro sem-vergonha, 112 Organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar. 113 Desvirginava mocinhas inocentes 114 E dizia que era crente, mas não sabia rezar. 115 E Santo Cristo há muito não ia pra casa 116 E a saudade começou a apertar. 117 – Eu vou embora, eu vou ver Maria Lúcia. 118 Já está em tempo de a gente se casar.

119 Chegando em casa então ele chorou 120 E pro inferno ele foi pela segunda vez. 121 Com Maria Lúcia Jeremias se casou 122 E um filho nela ele fez. 123 Santo Cristo era só ódio por dentro e então o Jeremias pra um duelo

ele chamou. 124 Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou. 125 E você pode escolher as suas armas, que eu acabo mesmo com você,

seu porco traidor. 126 E mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa pra quem jurei o meu

amor. 127 Santo Cristo não sabia o que fazer 128 Quando viu o repórter na televisão 129 Que deu notícia do duelo na TV 130 Dizendo a hora e o local e a razão.

131 No sábado então, às duas horas, 132 Todo o povo sem demora foi lá só para assistir 133 Um homem que atirava pelas costas 134 E acertou o Santo Cristo e começou a sorrir. 135 Sentindo o sangue na garganta, 136 João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir. 137 E olhou pro sorveteiro e pras câmeras 138 E a gente da TV filmava tudo ali.

139 E se lembrou de quando era criança e de tudo que vivera até ali. 140 E decidiu entrar de vez naquela dança 141 – Se a via-crucis virou circo, estou aqui. 142 E nisso o sol cegou seus olhos e então Maria Lúcia ele reconheceu. 143 Ela trazia a Winchester-22 144 A arma que seu primo Pablo lhe deu.

145 – Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é. 146 E não atiro pelas costas não. 147 Olha pra cá filha-da-puta, sem vergonha. 148 Dá uma olhada no meu sangue

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149 E vem sentir o teu perdão. 150 E Santo Cristo com a Winchester-22 151 Deu cinco tiros no bandido traidor. 152 Maria Lúcia se arrependeu depois 153 E morreu junto com João, seu protetor. 154 E o povo declarava que João de Santo Cristo era santo porque

sabia morrer. 155 E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que eles

viram na TV. 156 E João não conseguiu o que queria, quando veio pra Brasília

com o diabo ter. 157 Ele queria era falar pro presidente, 158 Pra ajudar toda essa gente 159 Que só faz sofrer.

1.4.3 A temática do álbum “Que país é este”

A começar pelo título do álbum, Que país é este – segundo a banda, é uma

exclamação de desabafo, mas repercute como pergunta, ao ser cantada pelos

jovens – que aponta em direção à discussão de temas nacionais, como forma de

desmascaramento da sociedade, esse é um disco que mostra a força inicial do

rock básico da banda, tendo o protesto à sociedade como tônica, além de

questionamentos existenciais.

O álbum é composto por nove músicas – todas escritas por Renato Russo e em

parcerias – em que alguns títulos antecipam o conteúdo de suas letras, como em:

Conexão Amazônica, escrita em 1980, denuncia o uso de uma região que interliga

o tráfico internacional ao tráfico brasileiro; Tédio, escrita em 1979, retrata um

período de ostracismo resultante da situação sócio-política do Brasil; e Angra dos

Reis, que aborda a relação entre a construção de usinas e os prejuízos ambientais

refletidos na vida humana.

Outro aspecto relevante desse álbum é que, das nove músicas, oito apresentam

foco narrativo em primeira pessoa e apenas em “Faroeste Caboclo” tem-se o foco

narrativo em terceira pessoa, quase em sua totalidade. Contudo, a tônica do álbum

é que o “EU” assume a cosmovisão do “ELE”, encarnando-o, para criticá-lo.

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É uma lógica discursiva para denunciar a mísera alternativa de realização

individual, como em “O reggae”, em que o autor utiliza-se da ironia, afirmando e

criticando, ao mesmo tempo:

“Assistia o jornal da TV / E aprendi a roubar pra vencer / Nada era como eu

imaginava / Nem as pessoas que eu tanto amava / Mas e daí? / Se é mesmo assim,

/ Vou ver se tiro o melhor pra mim.”

Nessa perspectiva, vêm à tona questões relevantes na construção da cidadania e

da identidade brasileira, como:

a) A floresta Amazônica e os índios

“Terceiro mundo se for / Piada no exterior / Mas o Brasil vai ficar rico / Vamos

faturar um milhão / Quando vendermos todas as almas / Dos nossos índios em um

leilão.” (Que país é este – Anexo 1)

“Os tambores da selva já começaram a rufar / A cocaína não vai chegar / Conexão

amazônica está interrompida” (Conexão Amazônica – Anexo 2)

Os recursos naturais, as florestas brasileiras não são preservadas, são invadidas

por estrangeiros e, consequentemente, a vida e as terras dos índios são,

frequentemente, ameaçadas e desrespeitadas. Falta consciência ecológica e a

Amazônia é vista como “terra de ninguém” e, por isso, alguns tiram proveito da

região como rota do tráfico e na exploração ilegal da floresta, provocando conflitos,

violência e mortes.

“No Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense / Mato Grosso, nas Geraes e

no Nordeste tudo em paz / Na morte eu descanso mas o sangue anda solto /

Manchando os papéis, documentos fiéis / Ao descanso do patrão” (Que país é este

– Anexo 1)

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Contudo, na ótica das autoridades, “do patrão”, essa “guerra” que acontece na

Amazônia e em outras regiões brasileiras, está dentro da normalidade, está tudo

em paz, não há nada que os incomode.

b) Corrupção

“Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado / Ninguém respeita a Constituição /

Mas todos acreditam no futuro da nação” (Que país é este – Anexo 1)

“Moramos na cidade, também o presidente / E todos vão fingindo viver

decentemente / Só que eu não pretendo ser tão decadente não” (Tédio – Anexo 3)

“Um dia pretendo tentar descobrir / Por que é mais forte quem sabe mentir / Não

quero lembrar que eu minto também” (Eu sei – Anexo 4)

Denuncia-se, aqui, a prática da ilegalidade, tanto em classes dominadas – as

favelas, quanto em classes dominantes – o Senado em Brasília, em que o

individual se sobrepõe ao social, revelando a falsidade ideológica presente em

alguns grupos sociais. Entretanto, apesar da violação dos direitos e deveres dos

cidadãos, executada de forma dissimulada – “E todos vão fingindo viver

decentemente” – todos ainda acreditam no futuro do país.

c) A exclusão social e as favelas

“Ei menino branco o que é que você faz aqui / Subindo morro pra tentar se divertir /

Mas já disse que não tem / E você ainda quer mais / Por que você não me deixa em

paz?” (Mais do mesmo – Anexo 5)

Denota-se, nesse trecho, a seguinte correspondência:

Morro Favelas do Rio de Janeiro Negros

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Tem-se, aqui, o contraste entre o mundo da burguesia, caracterizado pelo menino

branco e o mundo das favelas no morro, que se confrontam, no momento em que

o menino branco sobe o morro. Todavia, o distanciamento se mantém: o menino

branco, ao subir o morro, representa, agora, a conscientização dos direitos do

cidadão:

“E agora você quer que eu fique assim igual a você / Bondade sua me explicar

com tanta determinação / Exatamente o que eu sinto, como penso e como sou”

(Mais do mesmo – Anexo 5);

Enquanto que a favela representa, há anos, o desprovimento total de qualquer

direito do cidadão:

“Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim / É mesmo, como vou crescer se nada

cresce por aqui? / Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel.” (Mais do mesmo –

Anexo 5)

Além disso, a favela é caracterizada, também, como lugar de corrupção e violência:

“ Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado” (Que país é este – Anexo 1)

“E quando tem chacina de adolescentes / Como é que você se sente?”

(Mais do mesmo – Anexo 5)

d) Ausência do exercício de cidadania/alienação

“Quem vai tomar conta dos doentes?” (Mais do mesmo – Anexo 5)

Os doentes são as pessoas que estão paralisadas, em estado de inércia; não

conseguem reagir a essa situação de miséria das favelas e se acomodam. Porém,

há no texto o “EU”, alguém consciente, vivendo a mesma realidade e que acredita

poder fazer algo por essa gente, o “OUTRO”. Na verdade, essa conscientização

sócio-política dos problemas da favela é despertada no “EU” – talvez estivesse

adormecida – através do encontro com o menino branco:

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“Bondade sua me explicar com tanta determinação / Exatamente o que eu sinto,

como penso e como sou / Eu realmente não sabia que eu pensava assim” (Mais do

mesmo – Anexo 5)

Acomodar-se, facilmente, à situação é um traço cultural muito forte no brasileiro,

mesmo quando seus direitos estão sendo ignorados. As autoridades responsáveis

fingem que não veem, maquiam a realidade e o povo finge que está feliz, aderindo

facilmente aos apelos da classe dominante:

“E agora você quer um retrato do país / Mas queimaram o filme / E enquanto isso,

na enfermaria / Todos os doentes estão cantando sucessos populares.” (Mais do

mesmo – Anexo 5)

E no último verso, desse mesmo texto, caracterizando a desvalorização da

identidade, da cultura brasileira e da falta de nacionalismo dos governantes, tem-

se: “(e todos os índios foram mortos)”.

Em “Conexão Amazônica” (Anexo 2), tem-se outro exemplo dessa

alienação: “E você quer ficar maluco sem dinheiro e acha que está tudo bem”.

E como solução a essa alienação, usando de ironia, em “Tédio” (Anexo 3), o autor

sugere “Tédio com um T bem grande pra você”, fazendo alusão a “tesão”, antítese de

tédio, propondo mudança de atitude.

Para continuar enfatizando essa alienação, o autor, em “Angra dos Reis” (Anexo

6), utiliza-se da questão ecológica repercutida no aquecimento global:

“Deixa, se fosse sempre assim quente / Deita aqui perto de mim / Tem dias em que

tudo está em paz / E agora todos os dias são iguais”.

E ainda, nesse mesmo texto, o autor ironiza:

“Deixa pra lá, a angra é dos reis / Por que se explicar se não existe perigo? / Mesmo se as

estrelas começassem a cair / E a luz queimasse tudo ao redor / E fosse o fim chegando

cedo / E você visse nosso corpo em chamas / Deixa pra lá.”

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Finalmente, convém ressaltar outras questões abordadas em duas letras,

não mencionadas até então: em “Química” (Anexo 7), escrita em 1981, o pretexto

é a disciplina de química, para se discutir o vestibular e a imposição dos valores

culturais e ideológicos na vida dos jovens, em detrimento às suas escolhas:

“Estou trancado em casa e não posso sair / Papai já disse, tenho que passar / Nem

música eu posso mais ouvir / E assim não posso nem me concentrar / Ter carro do

ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão / Ter filho na escola, férias na Europa,

conta bancária, comprar feijão / Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo,

burguês padrão / Você tem que passar no vestibular.”

E em “Depois do começo” (Anexo 8), escrita em 1982, o equilíbrio aparece como

sinônimo de apatia, de alienação e, por isso, propõe o desequilíbrio como solução,

como forma de chocalhar a consciência social das pessoas: “Vamos deixar as

janelas abertas / Deixar o equilíbrio ir embora”.

Ainda nesse texto, há trechos em que não existe unidade lógica – há coesão, mas

não há coerência – recurso utilizado sugerindo a necessidade de anarquia total na

ordem das coisas, como forma de atingir o equilíbrio consciente, pensado e não

induzido pela ideologia do Poder, vigente até então:

“Acender um intervalo pelo filtro / Usar um extintor como lençol / Jogar pólo-

aquático na cama / Ficar deslizando pelo teto / Retalhar as cortinas desarmadas /

Com a faca surda que a fé sujou.”

1.4.4 “Faroeste Caboclo” e a temática do álbum

Assim como em todas as outras letras desse álbum, “Faroeste Caboclo”, também,

trata de temas nacionais, tendo, como foco principal, a reflexão sobre as

interferências do comportamento social no comportamento individual e vice-

versa. O protagonista da crônica, João de Santo Cristo, um bandido na vida real

e que, antagonicamente, agrega em seu nome uma referência bíblica, “Santo

Cristo”, apresenta uma trajetória que exemplifica bem essa inter-relação entre o

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individual e o social: é um personagem que tem sonhos, tenta concretizá-los,

através do trabalho, depara com os entraves do capitalismo e, no meio do caminho,

acaba cedendo às tentações do mundo do crime.

A alienação das pessoas é outro tema que aparece caracterizando duas classes

sociais: “E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que eles viram na TV”, em

que a expressão “não acreditou” revela a total falta de empatia da alta burguesia,

com o mundo ora mostrado.

E em “Todo o povo sem demora foi lá só para assistir”, revela a falta de sensibilidade

do povo, que encara o crime como um grande evento, uma espécie de catarse

frente à sociedade, como se vê em: “E o povo declarava que João de Santo Cristo era

santo porque sabia morrer.”, ou seja, matou e morreu em defesa de sua honra.

Outro exemplo dessa alienação tem-se em:

“Sentindo o sangue na garganta,

João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir.

E olhou por sorveteiro e pras câmeras

E a gente da TV filmava tudo ali.

E se lembrou de quando era criança e de tudo que vivera até ali.

E decidiu entrar de vez naquela dança

- Se a via-crucis virou circo, estou aqui.”

Estando prestes a morrer, João associa todo o lado festivo do evento, com seus

sonhos de criança: bandeirinhas, sorveteiro, câmeras, TV filmando e o povo

aplaudindo traduzem o desejo de ser alguém reconhecido, socialmente. Porém,

contrariamente, naquele momento, o que se mostrava era um evento de violência,

em que um bandido estava prestes a morrer e o povo – em estado de

alienação – aplaudia o fim de seu sonho. Por isso, entrega-se de vez à ironia de

sua trajetória (“Se a via-crucis virou circo, estou aqui”), ou seja, sua incessante busca

por uma vida digna culmina, ironicamente, com aplausos, por estar redimindo-se

a um final trágico: matando Jeremias e sendo morto.

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Em todos os casos, o que prevalece é um olhar desprovido de sensibilidade,

gerando a banalização: no caso da burguesia, por não conseguir estabelecer

relação entre esses dois mundos tão diferentes; e no caso do povo, por tratar-se

de uma cena perfeitamente integrada e “acomodada”, em seu cotidiano.

Em “Conexão Amazônica”, fala-se em “auto-exílio”:

“Estou cansado de ouvir falar / Em Freud,Jung, Engels, Marx / Intrigas intelectuais /

Rodando em mesa de bar / Mas alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de

ninguém / Auto-exílio nada mais é do que ter seu coração na solidão”.

E em “Faroeste Caboclo”, tem-se:

“Sentia mesmo que era mesmo diferente / E sentia que aquilo ali não era o seu

lugar / Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na televisão / Juntou

dinheiro para poder viajar / E de escolha própria, escolheu a solidão.”

No primeiro caso, vê-se um distanciamento entre o “pensar” e o “ter”, mostrando

que não basta ter conhecimentos filosóficos, é preciso “ação” para mudar os rumos

de uma sociedade; e a percepção dessa realidade é que gera o auto-exílio do

indivíduo, pela sua impotência para transformar essa realidade. No segundo, há

também um distanciamento entre o “pensar” e o “ter”, porém, é algo que

impulsiona o eu-poético à mudança e o auto-exílio significa acreditar e buscar, a

todo custo e solitariamente, a concretização de seus sonhos.

As Instituições Penais também são denunciadas em “Faroeste Caboclo”,

pelo descumprimento de seu papel social, fomentando, ainda mais, a violência

interna e, por isso, denominadas “inferno”: “Aos quinze, foi mandado pro reformatório /

Onde aumentou seu ódio de tanto terror. / E pro inferno ele foi pela primeira vez. / Violência

e estupro do seu corpo.”

Outro tema abordado é a cidade de Brasília, como rota de tráfico e contrabando.

Em “Conexão Amazônica”, vê-se:

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“Os tambores da selva já começaram a rufar / A cocaína não vai chegar / Conexão

Amazônica está interrompida”.

E em “Faroeste Caboclo”, tem-se: “Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo

revendia em Planaltina.”

Além dessa caracterização, Brasília representa, para as pessoas da periferia, a

possibilidade de concretização de seus sonhos:

“E o boiadeiro tinha uma passagem / E ia perder a viagem, mas João foi lhe salvar. /

Dizia ele: - Estou indo pra Brasília / Neste país lugar melhor não há. / - Meu Deus,

mas que cidade linda / No Ano Novo eu começo a trabalhar.” (Faroeste Caboclo).

Todavia, esconde seu lado ruim, da corrupção, das contravenções:

“Nas favelas, no Senado / Sujeira pra todo lado” (Que país é este);

“O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe com dinheiro na

mão. / E ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta.”

(Faroeste Caboclo);

“Vivemos na cidade, também o presidente / E todos vão fingindo viver

decentemente” (Tédio).

E é o lugar onde mora o “diabo”, aquele que faz seu povo sofrer:

“E João não conseguiu o que queria, quando veio pra Brasília com o diabo ter. / Ele

queria era falar pro presidente, / Pra ajudar toda essa gente / Que só faz sofrer.”

(Faroeste Caboclo).

É, em Brasília, que ocorre a grande transformação de João de Santo Cristo:

começa a roubar, conhece o traficante Pablo, entra para o tráfico de maconha,

conhece Maria Lúcia, envolve-se com o traficante Jeremias e vira bandido,

destemido e temido. Ou seja, sua trajetória, em Brasília, representa a

desmistificação da cidade dos sonhos, revelando-se uma cidade comum e com

todos os problemas tão peculiares ao Brasil.

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1.4.5 Intertextualidade no álbum “Que país é este”

A música “Faroeste Caboclo” é reconstruída, historicamente, a partir de intertextos

selecionados no mesmo álbum, Que país é este, de Renato Russo, a fim de

verificar como as representações sociais, presentes no texto-base, são expandidas

por retomadas em outros textos. Foram selecionados três intertextos, a saber: “O

reggae, Baader-Meinhof blues e Metrópole”.

1.4.5.1 Intertexto 1: O reggae – Renato Russo / Marcelo Bonfá

Ainda me lembro aos três anos de idade O meu primeiro contato com as grades O meu primeiro dia na escola Como eu senti vontade de ir embora Fazia tudo que eles quisessem Acreditava em tudo que eles me dissessem Me pediram pra ter paciência Falhei Gritaram: - Cresça e apareça! Cresci e apareci e não vi nada Aprendi o que era certo com a pessoa errada Assistia o jornal da TV E aprendi a roubar pra vencer Nada era como eu imaginava Nem as pessoas que eu tanto amava Mas e daí, se é mesmo assim Vou ver se tiro o melhor pra mim.

Me ajuda se eu quiser, me faz o que eu pedir Não faz o que eu fizer Mas não me deixe aqui Ninguém me perguntou se eu estava pronto E eu fiquei completamente tonto Procurando descobrir a verdade Nos meios das mentiras da cidade Tentava ver o que existia de errado Quantas crianças Deus já tinha matado. Beberam o meu sangue e não me deixam viver Têm o meu destino pronto e não me deixam escolher Vêm falar de liberdade pra depois me prender Pedem identidade pra depois me bater Tiram todas as minhas armas Como posso me defender? Vocês venceram essa batalha. Quanto à guerra, vamos ver.

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Justifica-se a seleção do intertexto 1, pois traz, representado em língua, o sentido

mais global do texto-base:

“Beberam o meu sangue e não me deixam viver

Têm o meu destino pronto e não me deixam escolher.”

Essa representação, em língua, é social e guia a representação do personagem

João de Santo Cristo, ou seja, apresenta a dialética entre o social e o individual.

No que se refere ao individual, Renato Russo afirma:

“Vocês venceram essa batalha.

Quanto à guerra,

vamos ver.”

Portanto, o Intertexto 1 progride, semanticamente, o texto-base, na medida em que

a denúncia feita torna-se causa para a consequência, que é instigar o público jovem

a uma mudança social.

1.4.5.2 Intertexto 2 - Baader-Meinhof blues – Renato Russo e

Dado Villa-Lobos

A violência é tão fascinante E nossas vidas são tão normais E você passa de noite e sempre vê Apartamentos acesos Tudo parece ser tão real Mas você viu esse filme também.

Andando nas ruas Pensei que podia ouvir Alguém me chamando Dizendo meu nome.

Já estou cheio de me sentir vazio Meu corpo é quente e estou sentindo frio Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber Afinal, amar o próximo é tão demodé.

Essa justiça desafinada É tão humana e tão errada

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Nós assistimos televisão também Qual é a diferença?

Não estatize meus sentimentos Pra seu governo, O meu estado é independente.

Já estou cheio de me sentir vazio Meu corpo é quente e estou sentindo frio Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber Afinal, amar o próximo é tão demodé.

Justifica-se a seleção do Intertexto 2, pois a Facção Exército Vermelho, também

conhecida como Baader-Meinhof, foi uma organização guerrilheira alemã, de

extrema esquerda, fundada em 1970, na Antiga Alemanha Ocidental e dissolvida

em 1998. Recebeu a alcunha Baader-Meinhof, depois que Andréas Baader

escapou da polícia, graças à ajuda de uma jornalista de esquerda, Ulrike Meinhof.

As raízes da Facção Exército Vermelho podem ser encontradas no Movimento

Estudantil Alemão, dos anos 1960. Inicialmente, centrados na crítica à Instituição

Universitária, os estudantes alemães, da época, viraram suas atenções para

eventos internacionais, como a Guerra do Vietname, a pobreza do Terceiro Mundo

ou à questão da energia nuclear. Os estudantes criticavam, igualmente, aquilo que

lhes parecia ser a relutância da sociedade alemã, em confrontar-se com seu

passado nazista. Para alguns, o Estado que vigorava, na República Federal da

Alemanha, era continuação do Estado Nazista.

A Facção Exército Vermelho, Baader-Meinhof, realizou uma série de manifestações

de protestos, contra a violação de direitos humanos e todas terminaram em

fracasso e resultaram na prisão dos manifestantes principais, que foram julgados e

condenados. Porém, durante todo o seu percurso de existência, essa Facção

procurou recrutar militantes para suas ideias e, embora a Baader-Meinhof tenha

atuado durante mais de trinta anos, seus líderes principais foram mortos nas ruas

ou em suicídios simulados nas prisões.

O intertexto 2 traz, representado em língua, a metáfora da Facção Baader-Meinhof,

que luta contra a opressão e a injustiça social. Ele intertextualiza Baader e Meinhof

e os demais líderes da Facção Exército Vermelho com João de Santo Cristo, que

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luta pela sobrevivência, em busca da justiça e dos direitos humanos e é destruído,

tanto quanto os líderes da referida facção.

1.4.5.3 Intertexto 3 - Metrópole – Renato Russo

É sangue mesmo, não é mertiolate E todos querem ver E comentar a novidade. É tão emocionante um acidente de verdade Estão todos satisfeitos Com o sucesso do desastre: Vai passar na televisão Por gentileza, aguarde um momento. Sem carteirinha não tem atendimento - Carteira de trabalho assinada, sim senhor. Olha o tumulto: façam fila por favor. Todos com a documentação. Quem não tem senha não tem lugar marcado. Eu sinto muito mas já passa do horário. Entendo seu problema mas não posso resolver: É contra o regulamento, está bem aqui, pode ver. Ordens são ordens. Em todo caso já temos sua ficha. Só falta o recibo comprovando residência. Pra limpar todo esse sangue, chamei a faxineira - E agora eu vou indo senão perco a novela E eu não quero ficar na mão.

Justifica-se a seleção do intertexto 3, pois ele está intertextualizado com o texto-

base, a partir de “sangue” (“Sentindo o sangue na garganta”) e “televisão” (“Quando

viu o repórter na televisão / Que deu a notícia do duelo na TV / E a gente da TV filmava

tudo ali.”)

Em síntese, este capítulo é composto pelo procedimento metodológico que orientou

as análises realizadas, tanto em relação à seleção do material, quanto aos critérios

metodológicos adotados.

O capitulo seguinte apresenta as bases teóricas relativas ao procedimento

metodológico indicado neste capítulo, ou seja, o procedimento teórico-analítico.

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CAPÍTULO II

FUNDAMENTOS TEÓRICOS: LINGUÍSTICA DE TEXTO, TEORIA

DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ANÁLISE CRÍTICA DO

DISCURSO, COM VERTENTE SÓCIO-COGNITIVA

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CAPÍTULO II

FUNDAMENTOS TEÓRICOS: LINGUÍSTICA DE TEXTO, TEORIA

DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ANÁLISE CRÍTICA DO

DISCURSO, COM VERTENTE SÓCIO-COGNITIVA

Esta dissertação está fundamentada em princípios teóricos da Linguística de

Texto e da Análise Crítica do Discurso, com vertente sócio-cognitiva, que oferecem

subsídios para o tratamento do processamento cognitivo das informações,

enquanto processo interpretativo, propiciando a compreensão discursiva. Dessa

forma, tem-se por ponto de partida, a Teoria das Representações Sociais, proposta

por Serge Moscovisci (2007).

2.1 A Linguística de Texto

A Linguística de Texto tem suas origens nas Gramáticas de Texto, construídas na

década de sessenta. Em geral, os gramáticos de texto tiveram formação gerativista

e, por essa razão, mantiveram a Teoria dos Componentes – o da base, o

transformacional e o da superficialização – da teoria Gerativo-Transformacional.

Todavia, os gramáticos de texto ultrapassaram o limite da frase, em busca da

dimensão do texto. Os estudos realizados, por eles, seguiram duas direções: do

texto-enunciado para o texto-processo ou do texto-processo para o texto-

enunciado. Para tanto, foi necessário interdisciplinaridade da Linguística com a

Psicologia, privilegiando, nesta última, a Teoria das Memórias.

Segundo os gramáticos de texto, a comunicação humana não se reduz a

uma sequência de palavras e frases. Dessa forma, esses gramáticos postulam uma

competência textual, ou seja, um conjunto interiorizado de regras para serem

aplicadas, de forma ordenada, na construção do texto-processo. As tarefas

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propostas pelos gramáticos de texto são: a noção de completude do texto; a

coerência e a coesão textuais; e a tipologia de textos.

Com o desenvolvimento dos estudos e a construção de gramáticas textuais, os

estudiosos verificaram que nenhum texto tem a mesma leitura, seja pelo mesmo

leitor, em momentos diferentes, seja por leitores diferentes. Dessa forma,

concluíram a não-existência de regras gramaticais para a construção de sentidos.

De forma geral, quando os gramáticos de texto chegam à hipótese nula de um

conjunto de regras ordenadas para construir sentidos, aparece a Linguística

Textual, também designada Linguística de Texto.

Na década de setenta, consolida-se a LinguísticaTextual, que tem, por objeto de

estudo, a boa formação de um texto, a partir da noção de completude textual, das

noções de coerência e de coesão, além de diferentes construções de tipologias

textuais. Consequentemente, as noções de coesão e coerência passam a ser

relacionadas às estratégias de compreensão discursiva, abandonando-se, assim, a

noção de regras ordenadas de compreensão.

No que se refere à tipologia de textos, Kintsch e van Dijk (1978) propõem que as

histórias são organizadas por um esquema textual ou superestrutura, que se

apresenta como uma forma social de conhecimento do texto. A superestrutura da

história define-se por categorias textuais, com suas regras de ordenação:

Apresentação, Conflito e Resolução, que podem ou não virem seguidas de Moral.

Esses autores (1983) apresentam a descrição de outras superestruturas, tais

como: a do relato científico e a estrutura argumentativia.

Isemberg (1987), tratando da tipologia de textos, propõe que, uma tipologia que

possa dar conta dos diferentes tipos de texto, convencionados socialmente,

deve partir de uma hierarquia mais alta, a classe de texto. Esta se define por um

conjunto de traços constantes, que ocorrem em diferentes tipos de texto, em

diferentes gêneros discursivos.

Nesse sentido, a narrativa é uma classe de texto, que se define pela sequência

cronológica de ações. Dependendo do gênero discursivo, a narrativa modifica-se

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em um tipo de texto específico, como por exemplo: o relato científico no discurso

científico; a história no discurso ficcional; a crônica no discurso jornalístico e/ou

literário.

A Linguística de Texto, para dar conta da boa formação do texto, passa a

diferenciar texto-produto de texto-processo. O texto-produto tem natureza

linguística, como produto da enunciação de um sujeito enunciador; trata-se, assim,

do que o texto traz representado em língua, decorrente da seleção lexical e das

regras gramaticais, realizadas pelo enunciador; enquanto que o texto-processo tem

natureza memorial, cognitiva e, para se tratar dele, foi necessário que os linguistas

de texto buscassem, interdisciplinarmente, a Teoria dos Esquemas, de Bartlet

(1932) e a Teoria das Memórias por Armazéns (Kintsch e van Dijk, 1978).

Inicialmente, a Linguística de Texto, ao se consolidar, foi interdisciplinar, mas,

progressivamente, para tratar da compreensão discursiva e da enunciação, foi

necessário que se recorresse à inter, multi e transdisciplinaridade. Dessa forma, a

Linguística de Texto situa-se em transdisciplinaridade com as Ciências da

Cognição.

A partir de então, quando a Linguística de Texto foi desenvolvida com

interdisciplinaridade entre Linguística e Psicologia, as formas de conhecimento do

mundo são privilegiadas para o estudo das memórias, momento que, de forma

geral, é designado por virada cognitiva, na linguística.

Assim sendo, a Linguística de Texto vai explicar a coesão pelas relações sintáticas

estabelecidas por quem compreende um texto e realizadas no produto linguístico.

Tais relações sintáticas retomam palavras do texto: para o que vem antes de

uma determinada palavra, anáfora; para o que vem depois de uma determinada

palavra, catáfora; e remete-se a elementos fora do texto, esófora.

Portanto, a coesão passa a ser explicada por formas remissivas referenciais,

responsáveis por se entender o texto com uma manutenção temática referencial,

seguida de uma progressão semântica, de forma a impedir uma circularidade do

que é enunciado.

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Por sua vez, a coerência é relativa ao texto-processo, onde se situa a construção

do sentido, passando a ser explicada por um processo de expansão das

informações recebidas do texto-produto, que é realizado por inferências e por

explicitações de implícitos. A expansão textual é designada, segundo Kintsch e van

Dijk (1978), por base de texto e definida por um n-túplos de proposições, sendo que

cada proposição é um sentido.

O processo de expansão é recursivo, com um processo de redução, sendo, este,

entendido como a construção de um sentido mais global para os sentidos

secundários. Em outros termos, uma macroproposição que reduz os sentidos

microproposicionais. Assim, a coerência é vista, na dimensão cognitiva, como os

sentidos mais globais de um texto.

Uma das tônicas da década de oitenta, quando a Linguística de Texto,

definitivamente, se instaura, foi exatamente a ampliação do conceito de coerência,

devido à perspectiva pragmático-enunciativa, introduzida para os estudos do texto-

processo. Assim, a coerência, definitivamente, deixa de ser tratada no texto-produto

e passa a ser tratada como um fenômeno muito mais amplo: a coerência se

constrói, interativamente, entre o leitor e o texto, em função da atuação de uma

complexa rede de fatores, de ordem linguística, cognitiva e sócio-interacional.

Em síntese, a diferença entre texto-produto e texto-processo é que o texto-produto

é a representação em língua, portanto, de natureza linguística; e o texto-processo

é o conjunto de representações mentais, das formas de conhecimento e tem

natureza memorial.

A coesão é um processo de leitura que se remete para trás, para frente e para fora

do texto, de forma a reagrupar o texto enunciado em língua. A coerência é o

processamento da informação que expande os sentidos em um n-túplos de

proposições, ao mesmo tempo que as reduz, em um sentido mais global..

Para o estudo do texto-produto, os linguistas textuais recorreram à Teoria da

Enunciação, que é composta pelo seguinte quadro enunciativo: a) pessoas: EU,

que enuncia para um TU, interlocutor; b) a enunciação atende às intenções do

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enunciador, de forma a guiar a sua seleção lexical e gramatical, para dar conta de

como o TU, interlocutor, possa ser convencido ou persuadido pelo enunciador; c) e

o ELE, do que se enuncia como unidade referencial, em progressão semântica, de

forma a recorrer ao “dado”, o já sabido pelo TU; d) e ao “NOVO”, o que se informa

que o TU não sabe.

Para Kerbrat-Orecchioni (1980), enunciar é representar o mundo em língua, é

construir o texto, argumentativamente, com subjetividade. Enunciar implica

escolher léxico e regras gramaticais e, considerando-se que o texto enunciado é

produto da subjetividade do enunciador, a autora propõe que não há textos

objetivos, em oposição a textos subjetivos. Para ela, todos os textos são subjetivos,

embora haja graus diferentes de subjetividade: textos mais subjetivos/ textos

menos subjetivos.

Durante o Estruturalismo, houve a crença no significado unitário do signo: para

cada significante há um significado. Progressivamente, os estudos lexicológicos e

lexicográficos obtêm resultados que desmistificam a crença no significado unitário

do signo. Dessa forma, o significante de um signo é visto como uma designação,

que contém, semanticamente, vários significados, com naturezas distintas:

significados linguísticos, significados enciclopédicos (culturais e ideológicos) e

significados interacionais.

Consequentemente, a noção de implícitos é introduzida para os estudos linguísticos

e explicitar implícitos faz parte do processo de expansão das informações e

dependendo das intenções de quem anuncia, para um determinado TU, um texto-

produto conterá muitos/poucos implícitos.

2.1.1 Os esquemas mentais

Segundo Bartlet (1932), as formas humanas de conhecimento não são aleatórias,

mas construídas por esquemas mentais organizados, relativos a conhecimentos

declarativos, a planos, à estratégias, a acontecimentos e à ações, entre outros.

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Um esquema mental pode ser exemplificado por um conhecimento declarativo, ou

seja, por uma sequência de ações explicitadas de forma ordenada no tempo, um

script, com seqüência de ações situadas em uma relação de tempo anterior e

posterior, expressas por sentidos secundários. O sentido mais global de um script

é designado frame e, no processamento da informação, os conhecimentos são

construídos de forma organizada, ou seja, existe uma construção hierárquica dos

sentidos formalizados, a partir de um frame.

Denhiere e Baudet (1992) analisam as representações através de operações

cognitivas. Propõem que os esquemas mentais, evocados pelo texto, constróem as

representações mentais, utilizando-se de operações cognitivas. Os seres humanos

têm uma forma especial de construir representações, pois projetam seu ponto de

vista, de acordo com o seu referente social, escolhendo a que grupo querem

pertencer.

Segundo van Dijk (1992), frame é um esquema mental que contém o sentido mais

global, atribuído a alguém ou a alguma coisa. A partir desse sentido mais global, se

organizam os sentidos secundários, construídos a partir da sequenciação dos

participantes e suas ações, cronologicamente. Assim, para o autor, script são

sequências de ações, verbais ou não-verbais, a partir de um modelo contextual e

tem relação com um ponto de vista, projetado sobre o mundo existencial. Cada

ponto de vista é guiado por interesses, objetivos e propósitos, que podem ser

sociais ou individuais.

Os esquemas mentais são guardados na memória de longo prazo, que está

dividida em dois grandes armazéns: o individual e o social. Tanto o armazém

individual, quanto o social, aloca os esquemas mentais, de forma organizada, em

sistemas de conhecimento, como os de língua, de mundo e de interação sócio-

comunicativa.

O sistema de conhecimentos de língua compreende os conhecimentos do léxico e

de elementos gramaticais; os conhecimentos de mundo são enciclopédicos e

relativos ao mundo concreto, que se representa como forma de conhecimento por

seres, seus fazeres, suas características, suas funções e o cenário (lugar e tempo)

em que os personagens se situam; e os conhecimentos interacionais são relativos

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a atos de fala, estruturas argumentativas, superestruturas textuais, regras

conversacionais, entre outros.

O armazém de longo prazo individual agrupa formas de conhecimento, construídas

a partir de experiências individuais, em sistemas de conhecimento, da mesma

forma que os sociais.

2.1.2 A Teoria da Memória por Armazéns

Segundo a Teoria da Memória por Armazéns, de Atkinson (1975), é necessário

distinguir: memória de curto prazo, memória de médio prazo e memória de longo

prazo.

A memória de curto prazo propicia a entrada da informação, a ser processada, na

memória de trabalho. Trata-se de uma memória sensorial, cuja entrada é realizada

por um dos sentidos humanos; tudo depende do código semiótico utilizado para a

representação do texto-produto. No caso da informação linguística, os sentidos

captadores são: a audição e a visão do interlocutor, para uma interação

comunicativa normal.

Por se tratar de uma memória sensorial, a memória de curto prazo é quantitativa,

para dar entrada às sequências de palavras e frases de um texto-produto, a fim de

possibilitar a produção de sentidos por um interlocutor e a quantidade de

informação, que ela retém, é medida por um chunk. Quando o chunk está lotado, a

informação que vinha entrando fica perdida e, para tanto, é necessário que ele seja

esvaziado, para que não haja perda de novas informações. Assim, processando a

informação, esvazia-se o chunk, de forma recursiva.

Entre a memória sensorial de curto prazo e a memória de médio prazo, localiza-se

a memória de trabalho. Esta é qualitativa e transforma, no caso do texto-produto

linguístico, as palavras e frases em proposições semânticas.

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A memória de trabalho, como já foi indicado, ao tratar da coerência textual,

processa a informação por um movimento de expansão, a partir de inferências e

explicitação de implícitos e por um movimento de redução, construindo sentidos

mais globais, para os sentidos secundários expandidos.

Os sentidos menores, microproposições, são produzidos pelo leitor e compreendem

um n-túplos de proposições, pois dependem das estratégias conhecidas e usadas

pelo leitor. Um leitor imaturo produz um número reduzido de microproposições, ao

passo que um leitor maduro produz maior quantidade delas, seguindo a orientação

do que está representado, em língua, no texto-produto.

Durante o processamento por expansão e redução, o que já foi processado fica

armazenado na memória de médio prazo, sendo reformulado, a todo momento,

durante a leitura de um texto, num movimento de “ir” e “vir”: ir para a memória de

curto prazo e vir para a memória de trabalho. Ao concluir o processamento da

informação, vinda do texto, o agente processador armazena a forma de

conhecimento obtido na memória de longo prazo e aí fica guardada, para ser

ativada pelo agente processador, durante um outro processamento.

A memória de trabalho, para produzir as proposições, recorre,

estrategicamente, à memória de longo prazo, que mantém as formas de

conhecimento guardadas em dois grandes armazéns: o social, também chamado

de memória semântica; e o individual, também chamado de memória episódica.

O armazém social guarda as formas de conhecimento construídas no e pelo

discurso em sociedade, principalmente, os discursos institucionalizados. O

armazém individual guarda as formas de conhecimento construídas a partir de

experiências pessoais com o mundo. Outrossim, tanto o armazém social, quanto o

individual, da memória de longo prazo, é construído, organizadamente, por

sistemas de conhecimentos.

Em síntese, na memória de trabalho, cada palavra, sequência de palavras, frases e

sequências de frases são transformadas em proposições, de forma expansiva. A

memória de médio prazo vai armazenando a expansão das proposições, para que

a memória de trabalho, recursivamente, expanda os sentidos secundários e reduza

em sentidos mais globais, constituindo as macroproposições.

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Dessa forma, segundo Kintsch e van Dijk (1983), o texto-processo é definido por:

base de texto, microestrutura, macroestrutura e superestrutura.

A base de texto é semântica e compreende um n-túplos de proposições, que estão

armazenados na memória de médio prazo e produzidos na memória de trabalho.

A microestrutura é construída pela ordenação expansiva das microproposições, a

partir das sequências de palavras e frases do texto-produto, de forma a construir a

coesão do texto.

A macroestrutura compreende um conjunto das macroproposições, ou seja, os

sentidos mais globais do texto, construídos pela transformação redutora de várias

microproposições em uma macroproposição.

A superestrutura é a projeção de um determinado esquema textual, para a memória

de trabalho.

Segundo Koch & Travaglia (1989), o conjunto das macroproposições constrói o

sentido mais global de um texto, em sua completude, de forma a produzir a

coerência do texto, pelo princípio da interpretabilidade.

Os estudos sobre a memória tiveram maior destaque, a partir das descobertas

tecnológicas na área da informação e da inteligência artificial, na medida em que

estabelecem relação de analogia entre o cérebro humano e a inteligência artificial.

Denhiere e Baudet (1992), ao tratarem da compreensão discursiva pela leitura,

diferenciam as representações mentais ocorrentes e tipos. A representação mental

ocorrente é construída durante a leitura de um texto, na memória de trabalho,

interligando a memória de curto prazo à memória de médio prazo. A representação

mental tipo é armazenada na memória de longo prazo e ativada para a memória de

trabalho, guiando, desta forma, a construção da representação ocorrente.

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2.1.3 A crônica e a estrutura textual argumentativa

A crônica atual é considerada um texto brasileiro, mas teve sua origem, em

Portugal, no século XIV, época em que o cronista organizava e ordenava,

cronologicamente, narrativas, memórias e outras histórias escritas por autores.

Fernão Lopez passa a incorporar, na crônica, resultados de suas investigações, de

forma a registrar os acontecimentos históricos e também fatos ligados à vida da

corte e do povo, atribuindo outra orientação para a crônica, possibilitando a análise

crítica, a partir de documentos autênticos.

Van Dijk (1978) constrói diferentes superestruturas textuais, entre elas a da

argumentação. Segundo o autor, todos os textos são argumentativos e, por essa

razão, ainda que de forma provisória, apresenta uma estrutura argumentativa que

organizaria qualquer tipo de texto, a saber:

Argumentação

Justificativa Conclusão

Marco de cognição Circunstância

Pontos de Partida Fatos

Legitimidade Reforço

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As denominações dessas diferentes categorias hierárquicas são provisórias e

poderão ser substituídas por outras, dependendo do tipo de argumentação, que

varia de acordo com o contexto institucional em que os argumentos são

instaurados.

A categoria Conclusão agrupa a opinião construída no texto e, para ser

argumentada, precisa de justificativa, que agrupa a categoria Marco das Cognições

Sociais e as Circunstâncias.

A categoria Marco das Cognições Sociais compreende um conjunto de

conhecimentos, instaurado como ponto de partida das interações sócio-

comunicativas, de um grupo social. Ninguém argumenta a respeito dos

conhecimentos sociais, pois, eles são dados como “verdades” possíveis/prováveis,

para o grupo social que os conhece.

Para que haja argumentação, é necessário construir uma Circunstância, em relação

aos conhecimentos sociais, pois ela é nova e não é do conhecimento social do

grupo. Para tanto, a argumentação é realizada a partir de provas, que são os Fatos

a ela apresentados e são construídos por Pontos de Partida, pelos argumentos de

Legitimidade e de Reforço.

Os argumentos de Legitimidade são selecionados no marco das cognições sociais

e os de Reforço compreendem repetições, paráfrases ou retomadas que possam

argumentar a respeito da Circunstância criada, em relação ao marco de cognição

social. Nem todos os elementos argumentativos precisam estar explícitos no texto

e, muitos, podem manter-se implícitos, pois são formas culturais de conhecimento.

Segundo Vignaux (1986), a enunciação é vista como a colocação da língua em

funcionamento, por um ato individual e trata-se de uma atividade exercida por

aquele que fala, num dado momento e de determinado lugar e, também, por aquele

que escuta, naquele momento e de determinado lugar.

Nesse sentido, os sujeitos envolvidos, no processo da enunciação, estão imersos

em um contexto situacional, que é histórico e extrapolam o universo linguístico, já

que estão referenciados numa prática que transcende os aspectos puramente

linguísticos, ainda que marcados no enunciado.

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Tratando, especificamente, do gênero crônica, Scafuro (1999), em sua pesquisa

sobre o tema, considera que existe uma diversidade de tratamentos para esse tipo

de texto, que se caracteriza: pela linguagem do cotidiano; pelo tema relativo ao

cotidiano; pelo folhetim que organiza um texto dedicado a distrair o leitor; pela

maneira curta; e pela articulação argumentativa.

Para a autora, as crônicas revelam o cotidiano, pois apresentam uma sequência

de ações usuais, que se caracterizam por acontecimentos diários e, desta forma,

definem o espaço urbano e cultural e as representações sociais desses espaços,

buscando explicar a realidade e reunindo valores que constróem o mundo, ao

categorizá-lo.

Quando a autora aborda a organização tipológica textual da crônica brasileira,

sugere que sua definição pode ser obtida pela articulação de duas categorias

hierarquizadas: Marco de Cognições Sociais e Avaliação Opinativa do cronista,

construídas por um paradoxo, como se demonstra a seguir:

Focalização

Paradoxo

Estrutura textual A Estrutura textual B

Focalização do jornalista Focalização do cronista

Polo 1 Polo 2

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2.2 Intertextualidade: reconstrução histórica por intertextos

A Linguística de Texto caracteriza a linguagem humana por textualidade,

intertextualidade e argumentatividade. Embora privilegie o estudo da

textualidade, como característica da linguagem humana, que tece representações

mentais e em língua, para a boa formação do texto-produto e do texto-processo, a

intertextualidade e a argumentatividade, também, são estudadas.

A intertextualização participa da textualização, na medida em que as formas de

conhecimento, já armazenadas na memória de longo prazo, são ativadas, para

construção da representação mental ocorrente.

Segundo Maingueneau (1996), todos os textos são respostas para outros textos e,

nesse sentido, não existe texto autofundado. Ele sempre estará intertextualizado

com textos já produzidos, anteriormente.

Dessa forma, para haver um bom processamento da informação, é necessário

verificar como ocorre a intertextualização de temas, realizada por um mesmo autor

ou por autores diferentes.

No que se refere ao texto literário, segundo Eagleton (1997), o significado de uma

obra literária não se restringe às intenções do seu autor e novos significados

poderão ser dela extraídos, sendo, muitos deles, inusitados, em comparação com a

ideia inicial de seu autor ou de seu público contemporâneo.

Diante disso, a obra literária produz uma leitura heurística inicial, durante a qual, o

leitor reconhece as palavras e frases, seguindo a linearidade do texto, e, assim,

produzindo sentidos. A leitura hermenêutica segue a leitura heurística e diferencia-

se dela, por ser alinear; logo, é um “ir” e “vir” contínuo, intra-texto, da direita para a

esquerda, de baixo para cima e nas diagonais.

A leitura hermenêutica requer a leitura de reconstrução histórica, através de

intertextos do texto-base lido. Durante a leitura hermenêutica, o leitor segmenta o

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texto-base, para inserir nele um outro texto, que o complementa, expandindo-o ou o

reduz, concluindo-o. Para a seleção de intertextos, é necessário pensar, sempre,

para qual texto o texto-base é uma resposta ou para qual texto o texto-base é a

origem.

O texto-base, objeto de estudo desta dissertação, não é literário; porém, é artístico

e, de certa forma, pode ser lido com os mesmos procedimentos de leitura de um

texto literário. Os sentidos do texto-base não se restringem às intenções do seu

autor e novos sentidos poderão ser dele extraídos, sendo muitos, inusitados, em

comparação à ideia inicial do seu autor e/ou de seu público leitor.

Assim, para a leitura de reconstrução histórica, o leitor precisa buscar um outro

texto, para o qual o texto-base é uma resposta e o entendimento dar-se-á “quando

nossos horizontes de significados e suposições históricas se fundem com o

horizonte dentro do qual a obra é colocada.” (Eagleton 1977, p.99)

O conceito de intertextualidade, segundo Fávero e Koch (1983), envolve as várias

formas pelas quais a produção e a recepção de um texto pressupõem o

conhecimento de outros textos, isto é, “diz respeito aos fatores que tornam a

utilização de um texto dependente de um ou mais textos previamente existentes”

(p. 28).

Com o objetivo de ampliar esse conceito, Koch (1986) propõe a divisão da noção

de intertextualidade, em um sentido amplo e em um sentido restrito. Em sentido

amplo, considera que a intertextualidade se faz presente em todo e qualquer texto;

um texto relaciona-se com outros textos, dos quais nasce e para os quais aponta, o

que caracteriza todo texto como, necessariamente, incompleto.

Essa incompletude é válida tanto pela correspondência de um texto com outros

textos, quanto por sua ligação com os conhecimentos prévios do leitor, em relação

à linguagem e ao seu conhecimento de mundo. Em sentido restrito, a

intertextualidade se dá quando há a relação de um texto com outros textos, prévia e

efetivamente produzidos, ou seja, quando existe a inserção de um segundo texto,

anteriormente produzido.

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Em Koch (1991), discute-se a questão da intertextualidade e polifonia serem

consideradas um só fenômeno, a partir da noção de que em um texto há

sempre a presença de outros, o que determina seu caráter heterogêneo. Conclui-se

que, na intertextualidade, a alteridade se faz pela presença de um intertexto, tanto

explícita, quanto implicitamente presente – dialogando com o conceito de

Maingueneau (1996), da heterogeneidade citada e heterogeneidade constitutiva.

Ainda segundo Koch, o conceito de polifonia, em sentido estrito, sobrepõe o de

intertextualidade, isto é, todo exemplo de intertextualidade é também exemplo de

polifonia, porém, o inverso não é verdadeiro. Em contrapartida, considerando-se a

intertextualidade em sentido amplo e a polifonia como sinônimo, o fenômeno da

linguagem passa a ser caracterizado como essencialmente polifônico. E conclui

que, quando a intertextualidade é analisada em sentido amplo, é preciso buscar

intertextos para os quais o texto-base é uma refuta ou uma retomada; quando é

analisada em sentido estrito, é preciso buscar intertextos que mantenham

relações expressivas com o texto-base.

Para Kristeva (1974), a palavra “literária” encontra-se numa intersecção

tridimensional, num “cruzamento de superfícies textuais”, ou seja, três dimensões

que correspondem ao sujeito da escritura, ao destinatário e aos textos exteriores.

Se, por um lado, horizontalmente, a palavra no texto pertence, simultaneamente,

ao sujeito da escritura e ao destinatário, verticalmente, ela estará direcionada

para o corpus literário anterior ou sincrônico.

Numa concepção ampla, a intertextualidade se apresenta em toda manifestação

textual-discursiva e configura-se como condição de existência do próprio discurso.

A interdiscursividade configura-se como o processo de incorporação de temas e/ou

figuras de um discurso em outro. Dessa forma, pode-se afirmar que a

intertextualidade implica a interdiscursividade, pois o enunciador, ao referir-se a um

texto, refere-se, também, ao discurso ora manifestado.

A intertextualidade no processo comunicativo é fundamental para o entendimento

do texto e seu processo argumentativo, pois a língua pode ser entendida como

uma forma de ação sobre o outro. Para Kristeva (2003), um texto é resposta para

um outro texto e pode ser tratado a partir do texto-produto. Dessa forma, a palavra

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é considerada texto-base para a inserção de um outro texto, como uma progressão

desse texto-base.

Assim, o enunciador não é ideal e abstrato, nem é representante de uma

comunidade homogênea. Ele é constituído por uma heterogeneidade e, segundo

Kristeva, essa heterogeneidade resulta no recurso argumentativo, em que o sujeito

não é, ele se faz e se desfaz, na complexidade em que se incluem o outro e seu

discurso. Um texto resulta sempre do entrecruzamento de outros textos e de outros

autores, outros indivíduos, diferentes grupos ideológicos e diferentes discursos.

Segundo Silveira (2000), a manifestação da representação, em língua, ocorre na

inter-relação entre o texto-processo e o texto-produto, sendo o processo, de

natureza mental e o produto, a materialidade linguística dessas formas de

conhecimento. A intertextualização é definida, assim, como a ativação de

conhecimentos, no momento do processamento expansivo das informações do

texto-base. Logo, a intertextualidade pressupõe a presença de um texto em um

outro texto, produzido anteriormente, o chamado intertexto. O diálogo entre os

intertextos e as diversas ações sociais pressupõem múltiplas realidades.

O sujeito que “fala” atua sob orientação da prática social em que está inserido e,

dessa forma, para Maingueneau (2002), os textos são elaborados dentro da

interdiscursividade, ou seja, no processo discursivo entre práticas sociais diversas,

com participantes e intenções diversos.

Os intertextos, para o autor, estão presentes na formação ideológica, a partir da

alteridade e, desse modo, repetem o que a classe dominante impõe (eles têm

ideologia), por meio do discurso citado, usado como argumento de autoridade e do

discurso indireto, que ao relatar o que se entende, fica previsível a manipulação de

informações.

Desse modo, o discurso como prática social tem, no processo da

interdiscursividade, relação com a origem do discurso, que nunca é híbrido, pois, a

cada enunciação, prevê mudanças sobre o que já foi dito.

A noção de intertextualidade permite uma leitura na linearidade do texto-produto e,

assim, cada referência pode, na intertextualidade, dar lugar a outro sentido ou

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fragmento de outro texto. O processo de textualização se dá na relação entre o

texto-processo e o texto–produto, de forma a considerar as condições de produção

do texto e seu contexto discursivo.

2.3 A Teoria das Representações Sociais

Quando os estudos da Psicologia Social tornam-se multidisciplinares com a

Psicologia do Conhecimento, a Psicologia da Memória e o Interacionismo

Simbólico, aparece a Teoria das Representações Sociais, como a ideia de

construção de uma Psicologia Social do Conhecimento e é sob essa acepção que

ela deve ser vista.

Segundo Moscovisci (2000, p.8),

“Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tratam,

distribuem e representam o conhecimento. Mas o estudo de como, e por que as

pessoas partilham o conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum,

de como eles transformam idéias em prática – numa palavra, o poder das idéias, –

é o problema específico da Psicologia Social.”

Logo, sob o ponto de vista da Psicologia Social, o conhecimento nunca é uma

simples descrição ou uma cópia do estado de coisas, em que se encontra o

referente no mundo concreto. Ao contrário, o conhecimento é sempre produzido

através da interação e da comunicação e sua expressão está sempre ligada aos

interesses humanos que estão, nele, implicados.

O conhecimento emerge do mundo, onde as pessoas se situam e interagem, onde

os interesses humanos, necessidades e desejos encontram expressão, satisfação

ou frustração.

Em síntese, o conhecimento surge das paixões humanas e, portanto, nunca é

desinteressado; ao contrário, ele é sempre produto de um grupo específico de

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pessoas, que se encontra em circunstâncias específicas, nas quais, o grupo está

engajado em projetos definidos.

Segundo o autor, uma Psicologia Social do Conhecimento está interessada nos

processos, através dos quais o conhecimento é gerado, transformado e projetado

no mundo social. Frente ao exposto, Moscovisci apresenta a sua Teoria das

Representações Sociais, que está situada no mundo anglo-saxão:

“As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, se

entrecruzam e se cristalizam continuamente, através de uma palavra, de um gesto,

ou de uma reunião em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de

nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as

comunicações que estabelecemos. Nós sabemos que elas correspondem, de um

lado, à substância simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado, à prática

específica que produz essa substância, do mesmo modo como a ciência ou mito

correspondem a uma prática científica ou mítica.” (p. 9)

Segundo o autor, a realidade das representações sociais é fácil de ser

compreendida, mas o seu conceito não o é:

“Há muitas boas razões para que o conceito de representações sociais seja

complexo. Na sua maioria, elas são históricas e é por isso que nós devemos

encarregar os historiadores da tarefa de descobrí-las. As razões não-históricas

podem todas ser reduzidas a uma única: sua posição “mista”, no cruzamento entre

uma série de conceitos sociológicos e uma série de conceitos psicológicos. É nessa

encruzilhada que nós temos de nos situar.” (p.10)

A perspectiva sociológica tratou da sociedade e a definiu como uma estrutura de

unidades inter-relacionadas. Assim, por exemplo: a estrutura política, no Brasil

atual, é composta por uma estrutura democrática, que compreende, na hierarquia

mais alta, o Presidente da República e seus ministros, o Senado e a Câmara dos

Deputados Federais; numa estrutura intermediária, o Governador e os Deputados

Estaduais; na estrutura mais baixa, o Prefeito e os Vereadores. Assim sendo,

poder-se-ia dizer que a sociedade é definida por uma multiplicidade de estruturas

sociais.

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Numa perspectiva psicológica, a cognição é entendida como a construção, a

circulação e a interação de conhecimentos, que são tanto individuais, quanto

sociais, de forma a se entender que a memória de longo prazo é composta por dois

armazéns: o social e o individual. Ao se estabelecer a interdisciplinaridade, a

perspectiva psicológica do conhecimento e a perspectiva social das estruturas

sociais, ocorre o Interacionismo Simbólico.

Segundo Bazilli et all. (1998), o Interacionismo Simbólico é o modelo teórico

construído com os protagonistas sociais e suas interações em sociedade. Segundo

eles, há duas grandes vertentes para o Interacionismo Simbólico: a primeira, trata

da estrutura social, definindo-a por papéis sociais; e a segunda, trata das funções

que os protagonistas sociais têm na interação simbólica.

A interação é vista como uma relação de protagonistas, como por exemplo: médico-

paciente; professor-aluno; patrão-empregado, entre outras. De forma geral,

entende-se o interacionismo como simbólico, porque ele é produto do discurso, a

partir do uso efetivo da língua.

O modelo teórico do Interacionismo Simbólico é construído com a metáfora teatral,

de forma a se descrever a estrutura social, a partir de dois planos: o palco e os

espectadores. O palco é distribuído em: cena, coxia, ponto, personagens e ações.

Com a metáfora teatral, aparece a teoria dos papéis sociais, segundo a qual, as

pessoas, como indivíduos, têm o direito de escolha para representar determinado

papel, dependendo de suas intenções. Dessa forma, ocorre a diferença entre EU e

MIM. O EU escolhe o papel que quer representar, de forma a criar para o TU, uma

imagem de si, que é o MIM.

No que se refere à análise do discurso, o Interacionismo Simbólico contribui para se

instaurar uma categoria analítica, relativa aos papéis sociais representados no

cenário discursivo.

A Teoria das Representações parte da Teoria dos Papéis e busca verificar como se

constróem as formas de conhecimento, associando os papéis sociais à percepção

do mundo e à sua representação cognitiva. Dessa forma, busca, através dos

intercâmbios comunicativos, como as representações sociais, como formas de

conhecimento, são estruturadas e transformadas.

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Logo, a Teoria das Representações exclui a crença no “poder ilimitado da mente”,

em conformar a realidade, em penetrá-la e ativá-la, em determinado curso dos

acontecimentos.

Para o Interacionismo Simbólico, o pensamento é visto como agindo sobre a

realidade e modificando-a. Por essa razão, aparece o postulado de que as

representações sociais possuem, precisamente, duas funções:

a) em primeiro lugar, elas convencionalizam os objetos, pessoas ou

acontecimentos que encontram, dando-lhes uma forma definitiva,

localizam-nos em uma determinada categoria e, gradualmente, os colocam

como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de

pessoas. Todos os novos elementos, que se juntam a esse modelo,

sintetizam-se nele. Mesmo quando uma pessoa ou objeto não se adéqua,

exatamente, ao modelo, a mente força-o a assumir uma determinada

forma, entrar em determinada categoria e se tornar idêntico aos outros, sob

pena de não ser compreendido. Logo, cada experiência é somada a uma

realidade pré-determinada por convenções, que claramente define suas

fronteiras, distingue mensagens significativas e não-significativas e liga

cada parte a um todo, colocando cada pessoa em uma categoria específica.

Por isso, a realidade é para a pessoa, em grande parte, determinada por

aquilo que é, socialmente, aceito como realidade;

b) em segundo lugar, as representações são prescritivas, isto é, elas se

impõem sobre as pessoas, com uma força irresistível. Esta força é uma

combinação de uma estrutura que está presente, antes mesmo de

começarmos a pensar, pois é uma tradição que decreta o que deve ser

pensado. Assim, essas representações, que são partilhadas socialmente,

penetram e influenciam a mente de cada um; elas não são pensadas pelo

indivíduo, restando-lhe, apenas, a opção de repensá-las, recitá-las e

reapresentá-las.

Assim, segundo Moscovisci (2000, p.37):

“Eu quero dizer que as representações são impostas sobre nós, transmitidas e são

o produto de uma seqüência completa de elaborações e mudanças que ocorrem no

decurso do tempo e são o resultado de sucessivas gerações. Todos os sistemas de

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classificação das representações, como formas de conhecimento, e todas as

imagens, além de todas as descrições, que circulam dentro de uma sociedade,

implicam um elo de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na memória

coletiva e uma reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um

conhecimento anterior e que quebra as amarras da informação presente.”

Logo, por serem as representações prescritivas, as experiências e ideias passadas

não são mortas para as pessoas; elas continuam a ser ativadas, a mudar e a

infiltrar experiências e ideias atuais.

Ainda segundo Moscovisci (p.38):

“Podemos afirmar, à luz da história e da antropologia, que as representações são

entidades sociais, com uma vida própria, comunicando-se entre elas, opondo-se

mutuamente e mudando em harmonia com o curso da vida; esvaindo-se apenas

para emergir novamente sob novas aparências. Geralmente, em civilizações tão

divididas e mutáveis como a nossa, elas co-existem e circulam através de várias

esferas de atividade, onde uma delas terá precedência, como resposta à nossa

necessidade de certa coerência, quando nos referimos a pessoas ou coisas.”

Moita Lopes (2003) afirma que os papéis sociais são representações mentais, que

propiciam a identificação das pessoas com determinados papéis. A noção de

identidade está atrelada à noção de alteridade, sendo a primeira, a representação

social, com a qual a pessoa se identifica e a segunda, a representação do outro,

com o qual a pessoa não se identifica. Em sociedade, dependendo dos papéis

escolhidos pela pessoa para serem representados, elas constróem, para si, uma

identidade.

2.4 Análise Crítica do Discurso

Todas as vertentes da Análise Crítica do Discurso estão agrupadas na

transdisciplinaridade das Ciências Cognitivas, diferentemente da Análise do

Discurso, que se estabelece nas Ciências Sociais. Análise Crítica do Discurso é

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método, focaliza o social e reconstrói o contexto para analisar o discurso; é o social

mais o cognitivo que possibilitarão a plena compreensão de um texto.

Na década de sessenta, um grupo de pesquisadores, vinculados à Escola de

Frankfurt, desenvolveu uma abordagem de estudo da linguagem em ação,

conhecida como Linguística Crítica. Na década de oitenta, outros estudiosos se

dedicaram ao desenvolvimento dessa abordagem, porém, foi Fairclough o primeiro

a usar a expressão “Análise Critica do Discurso”, que pode ser considerada uma

continuação da Linguística Critica.

Análise Crítica do Discurso (ACD) vem sendo usada, mais especificamente, para

referir-se à abordagem linguística critica, adotada por pesquisadores que

consideram a unidade mais ampla do texto, como uma unidade comunicativa

básica. O termo “crítico” tem suas origens na Linguística Sistêmica da Escola de

Frankfurt, que tem, também, por ponto de partida, as ideias marxistas para

Ideologia. Os analistas do discurso, com visão crítica, voltam-se, com

especificidade, para os discursos institucionais, de gênero social, tais como: o

discurso político, o da mídia, o religioso, etc., que materializam relações de luta e

de conflitos sociais, mais ou menos explícitas, linguisticamente.

A ACD tem por objetivo principal denunciar o domínio das mentes das pessoas,

a partir dos discursos públicos e institucionais, ainda que pressuponha a existência

de uma dialética entre o social e o individual: o social guia o individual e este

modifica o social. Trata-se, portanto, de entender esta dialética, a partir da Teoria

da Ação, segundo a qual, toda forma de comunicação estabelece-se por uma

interação entre os participantes discursivos.

Considera-se que o discurso é uma prática social, que pode ser definida por um

contexto discursivo, que é o modelo mental e compreende participantes, suas

funções e suas ações.

A ACD vem sendo realizada por diferentes vertentes, sendo que uma delas é a

sócio-cognitiva, da qual van Dijk é seu maior expoente. Van Dijk (1997) propõe a

Análise Critica do Discurso a partir de três categorias analíticas, a saber:

Sociedade, Cognição e Discurso, que se inter-relacionam, na medida em que uma

se define pela outra.

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A Sociedade é vista como um conjunto de grupos sociais. Cada grupo social é visto

como uma reunião de pessoas que têm, em comum, os mesmos objetivos,

interesses e propósitos. Dessa forma, por haver diferença entre os grupos sociais,

há um constante conflito intergrupal. Todavia, os discursos públicos, por terem

acesso a um grande número de grupos sociais, produzem uma unidade imaginária

entre eles, que é extragrupal.

A Cognição é compreendida como um conjunto de representações mentais, que

são formas de conhecimento. Cada representação mental é construída devido à

projeção de um ponto de vista para se observar o que acontece no mundo e esse

ponto de vista é guiado, socialmente, pelos objetivos, interesses e propósitos

comuns a um grupo e, portanto, diferem de um grupo para outro.

Essa diferença constrói um constante conflito intergrupal, devido às suas próprias

cognições sociais. O conjunto de conhecimentos, construídos por um grupo social,

forma o Marco das Cognições Sociais deste grupo. O conflito intergrupal decorre de

oposições entre os Marcos de Cognição Social de grupos diferentes.

O Discurso é entendido como uma prática social que se define por participantes,

suas ações e funções e todas as formas de conhecimentos sociais são construídas

no e pelo discurso.

Em van Dijk (2002), o conhecimento envolve dimensões cognitivas, sociais e

discursivas. Na dimensão cognitiva, o conhecimento é visto como uma espécie de

crença, pois, para o autor, todas as formas de conhecimento são avaliativas.

A epistemologia, tradicionalmente, diferencia episteme de opinião. Os

conhecimentos epistêmicos são conferíveis nas coisas que ocorrem no mundo;

dessa forma, decorrem de ações, pessoas e objetos observáveis e que produzem

uma forma de conhecimento, atribuindo, ao dito, valor de verdade ou falsidade. A

opinião é uma forma de avaliar o que ocorre no mundo real e, por essa razão, não

é observável, nem comprovável, podendo ser aceita ou rejeitada.

Entretanto, com a Teoria das Representações, as noções de episteme e opinião

passam a ser revistas. Van Dijk (1997) discute essa diferença e conclui que todas

as formas de conhecimento, por serem representações do real, são avaliativas,

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portanto, opinativas. Essas formas de conhecimento são construídas no e pelo

discurso e, portanto, todas as formas de conhecimentos sociais são crenças e não

epistemes.

Na dimensão social da interação comunicativa, nos discursos que não são

autoritários – logo são crenças – é necessário que se faça uma justificativa e ela

implica a condição de que o conhecimento só vale quando é justificado, ou seja,

para excluir especulações que não sejam verificáveis e culturalmente aceitas.

Nesse sentido, as noções de verdade e real são definidas de modo social,

principalmente, em termos de concordância, compartilhamento ou critérios sociais.

Tratando-se da dimensão discursiva, no discurso cotidiano, as crenças são

descritas como conhecimentos de fatos, quando há concordância entre aquele que

fala e aquele que ouve. O Discurso é entendido como uma prática social definida

por um esquema mental, que compreende os participantes, suas funções e suas

ações.

Esses participantes são tanto de discursos públicos institucionalizados, quanto de

eventos discursivos particulares. O texto está inserido na dimensão discursiva e

visto como um produto linguístico, cujas palavras têm o poder de difundir

conhecimentos atuais, culturais e ideológicos.

Como todas as formas de conhecimento são construídas no e pelo discurso,

embora haja conflitos intergrupais, os discursos públicos institucionalizados

constróem uma unidade imaginária, com campos de similitude para os diferentes

Marcos de Cognição Social, designada memória social, que compreende os

conhecimentos extragrupais.

Os Marcos de Cognições Sociais são construídos por um conjunto de

representações sócio-cognitivas, moldadas pela ideologia do grupo de Poder do

referido Marco de Cognição Social. Portanto, para van Dijk (2000), as ideologias

são plurais e compreendem formas de avaliação, para o que está representado

como forma de conhecimento no mundo.

Dessa forma, entre a designação e o designado, há uma avaliação ideológica

imposta pelo grupo de Poder, que reside na memória social dos grupos sociais, de

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forma a propiciar a discriminação de grupos sociais menos favorecidos,

dependendo dos interesses dos participantes do Poder.

Segundo van Dijk (1992), a Ideologia desempenha papel central na (re)produção

dos processos de persuasão. Consiste em um marco sócio-cognitivo que, de forma

inconsciente, para os grupos minoritários, assegura a realização dos interesses e

objetivos do grupo dominante: a solidariedade entre os membros do grupo de

Poder prevalece sobre as divisões de classe, com as quais joga intertextualmente,

mas hierarquiza sua ideologia ao formular e produzir marcos para a sociedade, ou

seja, transforma fatores sociais, que são combinados com dimensões culturais da

ideologia dominante. Assim, as ideologias devem incorporar conhecimentos e

crenças sociais.

Embora ambas sejam crenças, Silveira (2000) diferencia cultura de ideologia,

apesar de ambas se definirem como formas de opinião social. A Cultura é

transmitida, de geração para geração e esses valores guiam o comportamento das

pessoas, ao experienciarem e vivenciarem o que ocorre no mundo. A Ideologia,

também, compreende valores transmitidos, socialmente, pelos discursos

institucionalizados, públicos; todavia, esses valores são transmitidos com o objetivo

de discriminar pessoas e grupos sociais, o que não acontece com os

conhecimentos culturais.

Os conhecimentos culturais, conforme Silveira (1999), decorrem de formas de

representação do que foi vivido e experienciado, socialmente, num determinado

momento histórico. Pelo fato de a cultura ser transmitida, de geração para geração,

suas formas de representação, enquanto crenças, têm raízes históricas, mas são

dinâmicas, pois, a cada contemporaneidade, cada geração precisa resolver

problemas novos. O velho resolve o novo, construindo e reconstruindo um trajeto

cultural na sociedade.

Como cada grupo tem um Marco de Cognição Social, para a autora, as culturas são

plurais, embora haja uma unidade imaginária nacional, extragrupal. As culturas

oferecem formas de conhecimentos, para a construção das ideologias pelas

classes de Poder e a dinâmica ideológica decorre da mudança de interesses

dessas classes de Poder.

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Em suma, para a ACD, o discurso é uma pratica sócio-interacional, sendo que a

interação é entendida nas relações interpessoais, inter-sociais, inter-institucionais,

na medida em que definir interação implica a dinâmica de formas de conhecimento,

que constróem o novo interacionado com o velho e projetam as imagens do futuro,

pelo imaginário.

O discurso, como prática social, tomando por base a Teoria do Interacionismo

Simbólico, propicia que van Dijk (1997) apresente a noção de contexto discursivo,

definida por um esquema mental, constituído por participantes, suas funções e suas

ações. O Interacionismo Simbólico propicia, ainda, que van Dijk apresente os

diferentes grupos sociais, cada qual com a sua estrutura social específica de

papéis, que participa do Marco de Cognição Social do referido grupo.

Cada prática discursiva seleciona, na estrutura social, conhecida pelo grupo social

– o qual compõe o marco de suas cognições sociais – papéis sociais para

caracterizar os seus participantes e estes já estão inter-relacionados, cada qual na

própria estrutura da sociedade. Nesse sentido, a interação simbólica entre os

papéis sociais define as funções discursivas dos participantes e quais ações eles

podem praticar, numa determinada condição de produção discursiva.

Van Dijk (1997) diferencia os discursos públicos institucionais dos eventos

discursivos particulares. Os discursos públicos institucionais, ideologicamente, são

organizados pelas seguintes categorias: Poder, Controle e Acesso.

A categoria Poder reúne um grupo de participantes que tem o poder de tomar

decisões, de forma a realizar ações e com elas incluir ou excluir valores sociais.

A categoria Controle agrupa um conjunto de participantes que tem por função

executar as decisões tomadas pelo Poder e, para tanto, determina quais ações

serão realizadas.

A categoria Acesso reúne um conjunto de participantes que dão acesso ao público

às decisões tomadas pelo Poder e controladas em suas práticas.

Os eventos discursivos particulares não têm acesso ao público e, por essa razão,

não precisam de ser controlados pelo Poder.

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2.5 A Polifonia

Ducrot (1987) formulou sua teoria polifônica, tendo como ponto de partida o

conceito de polifonia de Bakhtin. O autor considera que num mesmo enunciado

isolado ressoam várias vozes e, com essa concepção, contesta a ideia de que

cada enunciado é produzido por um único autor, aquele que se diz “EU” e propõe

distinguir locutores e enunciadores, em uma mesma enunciação.

Segundo o autor, o locutor é aquele que, no enunciado, é visto como seu

responsável, enquanto o enunciador é o produtor físico do enunciado, um ser

empírico; e os enunciadores são as outras vozes presentes na enunciação. Assim,

a polifonia é a incorporação das vozes de outros enunciadores, feita no próprio

discurso, uma vez que o pensamento do “outro” é constitutivo do “EU” e,

consequentemente, a produção dos sentidos está condicionada pela alteridade.

Ele trabalha com o conceito de polifonia, ou seja, o indivíduo representa a fala de

vários outros falantes, quando ouve, seleciona e cria, em cima disso, a sua fala, o

seu discurso. Num discurso poder-se-ia descobrir quais classes são privilegiadas,

quais são menos privilegiadas e os interdiscursos que permeiam tudo isso.

Quando Ducrot (1981) apresenta a necessidade de dintinguir locutor de enunciador,

em face das múltiplas vozes existentes no interior de um discurso, revê, também, a

noção de ato ilocutório, pois o discurso persuasivo tem, por intenção, levar o

“OUTRO” a abandonar o que sabia e acatar o que lhe está sendo proposto, por

meio da argumentação. O ato ilocucional apresenta as intenções do “EU” e o ato

perlocucional apresenta o reconhecimento das intenções do “EU” pelo “TU” e

determinam o sucesso ou fracasso da persuasão, pois o “TU” é levado a fazer algo,

a partir do que alguém diz.

Tratando-se da argumentação, os intertextos se constróem em um discurso

polifônico, em que o texto 2 refuta o texto 1, apesar de esse ter sido o seu ponto de

partida, o que Brandão (1997) denomina de (E1), um enunciador que produz o

enunciado afirmativo e (E2) o enunciador que o contradiz.

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Segundo Brandão (1997), a argumentação está centrada no discurso e esta é

sócio-interacional: é feita por um sujeito e dirigida a outros sujeitos, também em

ação. Considera que a Teoria da Argumentação na língua, proposta por Ascombre

& Ducrot, está articulada com a teoria da polifonia, para a qual Ducrot postula a

existência de um diálogo de vozes, de forma a isentar o locutor, no seu dito, do

valor de verdade/falsidade.

2.6 O texto e as expressões indexais

Cavalcanti (1989) postula que o aspecto pragmático da interação tenta explicar a

negociação de sentido, durante a interação, comparado ao sentido em abstração,

ou seja, a relação entre o sentido pragmático e semântico. Acrescenta, reportando-

se a Leech (1983), que a semântica – como parte da gramática e a ela cabe a

compreensão de sentido – e a pragmática – como parte da retórica e a ela cabe a

interpretação de sentido – estão em relação de complementaridade e a tarefa da

pragmática é a de explicar a espécie de relação entre o sentido e a força

ilocucionária. E para poder atribuir força ilocucionária, os leitores dependem de sua

competência comunicativa, que compreende aspectos concernentes a

procedimentos de interpretação, esquemas e conhecimento acumulado. Sua

competência comunicativa é influenciada pelo aspecto sócio-psicológico, através

dos sistemas de valores na memória, ativados durante a interação.

A interpretação pragmática, segundo Cavalcanti, é a negociação de significados,

por um processo interativo, que compreende a interação EU-Texto; num segundo

momento, o processo é interacional, ou seja, EU-TU.

Durante o processo interativo, o autor, ao enunciar o seu texto, deixa saliências

lexicais e gramaticais, para que o leitor tenha uma orientação de leitura do texto-

produto. Dessa forma, a interação autor-leitor é realizada por expressões indexais,

que guiam o procedimento interpretativo, durante o qual, o leitor atribui força

ilocucionária a enunciados, ou seja, os atos retóricos por meio de uma série de

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processos, que envolve a reconstrução da intenção pressuposta do escritor, seus

propósitos e outras razões possíveis.

De acordo com Cavalcanti, problemas de interpretação pragmática são definidos

como ambiguidades ou discrepâncias, resultantes de desencontros na negociação

de significado, através da interpretação de atos retóricos, que se tornam

transparentes na interação, devido a itens, contextualmente, relevantes. Esses

problemas podem estar relacionados somente à força ilocucionária, somente ao

conteúdo proposicional ou a ambos.

A autora menciona Zaefferer (1977), em seu estudo sobre desvios da compreensão

e que se refere a esses problemas como leituras questionáveis, tanto semânticas,

quanto pragmáticas. Outrossim, Cavalcanti inclui leituras semântico-pragmáticas

questionáveis, uma vez que considera difícil demarcar, claramente, a fronteira entre

conteúdo proposicional – o semântico – e a força ilocucionária – a pragmática.

Define essas leituras questionáveis, como reflexos de desencontros entre

expressões indexais intrinsecamente salientes e extrinsecamente relevantes no

texto e nos sistemas de valores/estruturas de conhecimento do leitor.

Acrescenta, ainda, que esses problemas podem resultar de uma combinação de

desencontros de pressuposições, com base em estruturas de conhecimento, de

expectativas e em sistema de valores. Em suma, problemas de interpretação

pragmática têm por base, principalmente, desencontros entre o mundo do leitor e a

visão de mundo potencialmente veiculada no texto.

Artigos sobre a subjetividade na linguagem, escritos por Benveniste (1966),

motivaram a ampliação dos estudos sobre a semântica linguística, visando

introduzir, na própria linguagem, determinado número de fenômenos ligados à

enunciação, que antes eram ligados à fala. Com este objetivo, Ducrot (1981) parte

do princípio de que muitos Atos de Enunciação têm uma função argumentativa, que

visa levar o destinatário a uma certa conclusão ou dela desviá-lo. E que a frase

pode conter diversos morfemas, expressões ou termos que, além de seu conteúdo

informativo, servem para dar orientação argumentativa ao enunciado, a conduzir o

destinatário em uma direção ou direções.

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O autor define as classes argumentativas pelas circunstâncias e, portanto, são

relativas a uma conclusão particular, a um locutor determinado, levando-se em

conta sua identidade e situação: ideológica, sociológica e espaço-temporal. Para

tanto, Ducrot, através de alguns exemplos de morfemas, estabelece algumas

escalas argumentativas, levando-se em conta: as proposições, implicações

(inferências), valor essencial do morfema e valor argumentativo.

Ducrot trabalha com os conceitos de pressuposição e atos de linguagem.

Considera que o sentido de um enunciado está no ato de linguagem e que há

implicaturas lexicais e textuais, assim como conclusões e argumentos explícitos e

implícitos. E nesses argumentos, tanto explícitos quanto implícitos, há sempre: o

posto, o dito e o “EU”, o locutor; o pressuposto, de conhecimento do “EU” e do

“TU” (nós), pertence ao domínio comum dos dois interlocutores; e o subentendido,

construído pelo “TU”, que acresce ao posto sentidos novos e não é do componente

linguístico, mas do retórico.

2.7 A construção das figuras no intra-texto e as noções de

relevância e saliências

Há tempos, as palavras são empregadas em sentido figurado e, um

exemplo típico, é o caso da Bíblia. Na Retórica Antiga, já se discutia o “sentido

próprio versus sentido figurado”, pois havia a crença no significado original e

unitário das palavras. Ao longo do tempo, muitos estudos foram se desenvolvendo

e continuam sendo desenvolvidos, atualmente, a respeito da questão.

A Retórica Clássica denominava as figuras de “tropos”, classificando-as em: figuras

de pensamento, aquelas relacionadas ao modo de pensar e figuras de palavra, as

relacionadas ao modo de se expressar. Assim, as figuras eram consideradas

“desvios” da norma, uma vez que rompiam com a estrutura lógica.

Em Benveniste (1976), as figuras passam a ser descritas como mudanças nas

coordenadas ou deslocamento no interior dos conjuntos, causados por operações

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de supressão, adjunção, supressão-adjunção e permutação. Essa é uma visão que

define as figuras apenas como ornamento.

Propondo uma nova perspectiva, a autora Palma (1998) faz um estudo das figuras

de oposição que se constróem por processos associativos, como: a antítese, o

paradoxo, a litotes, a ironia e o eufemismo, postulando a inexistência do sentido

literal, a priori, pois, são as especificidades contextuais que atualizam o real sentido

da palavra, no texto.

Quando diferencia o sentido literal do figurado, Palma (p.102) postula que:

“O conteúdo das informações expressas no nível lingüístico, relacionados a um

evento específico, será determinado por fatores culturais, por crenças e por valores

daquele que recebe a mensagem, devendo estar adequado à situação. Quando

isso não ocorre, ou seja, quando essas expectativas do usuário frustram-se, ele

realiza um processo interpretativo mais acurado e complexo, apreendendo, então, o

sentido figurado.”

Cavalcanti (1989) denomina, “itens contextualmente relevantes”, as palavras e

expressões com as quais o leitor escolhe interagir em leitura e representam o seu

ponto de vista na interação com o texto. Cada leitor escolhe esses itens, de acordo

com suas motivações, seus conhecimentos, interesse imediato, enquanto realiza a

leitura e essa escolha, que numa primeira instância pode ser considerada como

periférico no texto, poderá ou não coincidir com os itens que foram sinalizados pelo

autor, para serem tomados como relevantes.

Esses itens contextualmente relevantes são, potencialmente, ligados a problemas

de interpretação pragmática em leitura, isto é, são elementos importantes para a

atribuição de força ilocucionária e deram origem ao “Princípio de Relevância”, para

o qual Cavalcanti reporta-se à proposta de Sperber & Wilson (1981), que o definem

como princípio central na interpretação e tem, como determinantes, a comunicação

produtiva e receptiva, o que significa dizer que, por um lado, o escritor apresenta o

que considera relevante, através da saliência no texto e, por outro lado, o leitor

procura e interage com esses aspectos salientes no texto.

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Entretanto, a autora ressalta que o conceito de relevância do leitor não é restrito ao

domínio do texto – conceito divergente de Sperber & Wilson – pois o aspecto sócio-

psicológico da interação ficaria fora do escopo da pragmática. Cavalcanti acredita

que expectativas mais específicas, diferentes daquelas apresentadas pelo escritor,

representam a contribuição idiossincrática – pistas contextualmente relevantes – do

leitor para a interação, que é uma adição às expectativas sistemáticas na

interpretação pragmática.

O Princípio de Relevância é a base da ideia da heurística da interpretação,

segundo Cavalcanti, em que o papel do leitor é descobrir o melhor caminho para

negociar significado, tendo em vista as expressões indexais e focalizando os

aspectos salientes do texto, em busca de melhor compreensão das reais intenções

do autor. E acrescenta uma definição de Sperber & Wilson (1981, p.18), do ponto

de vista do ouvinte/leitor:

“... a relevância de um enunciado é estabelecida em relação a um conjunto de

crenças e suposições, isto é, um conjunto de proposições; relevância é uma

relação entre a proposição expressa por um enunciado de um lado, e o conjunto

de proposições na memória acessível do ouvinte, de outro lado.”

Em síntese, pautada nessa definição, a autora considera que o Princípio de

Relevância norteia-se pela relação entre os aspectos salientes do texto e o

conhecimento prévio e acumulado do leitor, sendo a informação nova trabalhada

com base no quadro de referência pessoal do leitor, incluindo seus sistemas de

valores.

Decorrente do Princípio de Relevância, Cavalcanti, embasada em Leech (1983),

apresenta, também, o Princípio de Economia , em que o escritor torna aspectos de

seu enunciado redundantes, propositalmente, para que o ouvinte/leitor possa

maximizá-lo, ou seja, a redundância pode representar, no texto, uma saliência

intencional do autor.

Cavalcanti (1989) postula que a saliência no texto dá-se pelos itens lexicais

chave, enquanto a relevância dá-se por itens contextualmente relevantes. Os itens

lexicais chave classificam-se em: itens restritivos – tratam-se de palavras ou

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expressões que adquirem valor de adjetivo no enunciado e, portanto delimitam a

interpretação semântica/pragmática; itens associativos – aqueles que dão a ideia

de uma coesão lexical e aparecem em pares ou sequenciados, no contexto; e itens

iterativos – aqueles que se relacionam com o referente, sustentam os itens lexicais

chave.

Segundo a autora, Itens lexicais chave são expressões linguísticas existentes na

superfície textual e, cognitivamente, produzem saliências, na medida em que levam

às inferências ostensivas, de acordo com o princípio de relevância, com a

finalidade de buscar uma solução para o problema encontrado durante o

processamento das informações. São sinais chave representantes do elo

subjacente entre leitor e texto, exercendo o papel de ativar molduras, esquemas e

sistemas de valores e, portanto, são considerados fonte de problemas potenciais de

interpretação pragmática, na interação leitor-texto.

Para a autora, o conceito de itens lexicais chave está atrelado a dois prismas:

semântico, porque se baseia na saliência assinalada pela coesão léxico-gramatical

e de estrutura de informação no texto; e pragmático, porque se refere às

expressões indexais, cuja saliência é negociada em termos de relevância-leitor, em

busca da criação da coerência.

A inter-relação entre diferentes itens lexicais chave, no texto, é que sustenta essa

definição quanto ao aspecto semântico, pois a saliência de um item lexical chave

só se justifica diante de outros itens lexicais, ou seja, não podem ser caracterizados

como palavras isoladas. Quanto ao aspecto pragmático, a definição se sustenta,

se considerada em relação a itens contextualmente relevantes, na interação leitor-

texto.

Em suma, para Cavalcanti, itens lexicais chave centralizam informação, a qual,

apresenta relações semânticas diretas no texto e relações pragmáticas indiretas, na

interação leitor-texto. Servem de alicerce para o estabelecimento de conteúdo

proposicional e força ilocucionária, ativando as estruturas de conhecimento e os

sistemas de valores do leitor, além da função de instigadores à construção de

pressupostos, em relação ao todo ou a parte do texto. São, portanto, expressões

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indexais salientes que ocorrem no texto, preservando sua unidade, através de

coesão topical e servindo de base para a criação de coerência.

Este capítulo foi composto pelas questões teóricas pertinentes ao procedimento

metodológico selecionado, o teórico-analítico e as análises realizadas, com essas

bases teóricas apresentadas, compõem o próximo capítulo.

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CAPÍTULO III

ANÁLISES DO TEXTO-BASE “FAROESTE CABOCLO” E

RESULTADOS OBTIDOS

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CAPÍTULO III

ANÁLISES DO TEXTO-BASE “FAROESTE CABOCLO” E

RESULTADOS OBTIDOS

Este capítulo apresenta as análises realizadas e seus respectivos resultados,

seguidos de discussão.

3.1 Análise do Texto-Base

Trata-se de uma narrativa com linguagem poética, com progressão linear, tendo

como referente a exclusão social, sob o ponto de vista sócio-econômico e que

mostra a saga de João de Santo Cristo. Todavia, essa narrativa está modificada,

textualmente, em uma crônica do cotidiano, evidenciada pela opinião implícita do

cronista Renato Russo, sobre o referente do texto. E para compreendê-la, norteado

pela Análise Crítica do Discurso, estabeleceu-se como critério, as três categorias

analíticas: Sociedade; Cognição; e Discurso, postuladas por van Dijk (1997).

3.1.1 Sociedade

Considerando-se que a sociedade é constituída por conjuntos de grupos sociais e

que cada grupo social é uma reunião de pessoas, que têm em comum os mesmos

objetivos, interesses e propósitos, serão identificados, a seguir, os grupos sociais

representados no texto-base.

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3.1.1.1 Grupo Social: Cristianismo

- verso 1: “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo”

Nome bíblico, João Batista, que Nome próprio, construído

era um dos apóstolos de Jesus. com o nome próprio de Jesus,

adjetivado por Santo.

- verso 4: “Só para sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu.

Nome próprio do filho de Deus, Jesus Cristo, nascido de Maria.

- verso 9: “Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro

Templo onde os cristãos se reúnem para rezar.

- verso 10: “Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.

Mesa especial consagrada aos sacrifícios religiosos.

- verso 28: “E ia perder a viagem, mas João foi lhe salvar.

Nome próprio de um dos apóstolos Obter a salvação eterna;

de Jesus. livrar-se das penas do Inferno.

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- verso 54: “Elaborou mais uma vez seu plano santo”

Sagrado; está adjetivando plano: elaborado de acordo

com os preceitos religiosos.

- verso 55: “E, sem ser crucificado, a plantação foi começar.

Pregado na cruz; crucifixo; aquele que padeceu o suplício

da cruz: Jesus Cristo.

- verso 66: “E pro inferno ele foi pela primeira vez.”

Segundo o Cristianismo, lugar ou situação pessoal, em que se

encontram os que morreram em estado de pecado.

- verso 74: “E todos os pecados ele se arrependeu.”

Ruptura e/ou transgressão de preceito religioso.

- verso 75: “Maria Lúcia era uma menina linda”

Nome próprio da mãe de Jesus. Nome próprio que deriva de luce, que deu

origem a dois significados: a) luze Luzia

Santa Luzia: a protetora dos olhos, a luz

do bem; b) lúcifer luz: a luz do mal, o diabo.

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- verso 79: “E carpinteiro ele voltou a ser.”

Profissão exercida por São José, o pai de Jesus, segundo a bíblia.

Possivelmente, essa também teria sido a profissão de Jesus, uma

vez que, nessa época, era tradição os filhos aprenderem o ofício

do pai.

- verso 103: “Mas acontece que um tal de Jeremias,”

Nome próprio de um profeta bíblico.

- verso 114: “E dizia que era crente, mas não sabia rezar.”

Que crê; que tem fé ou crença Dizer ou fazer oração ou

religiosa. súplica religiosa.

- verso 141: “ – Se a via-crúcis virou circo, estou aqui.”

Caminho da cruz; calvário.

- versos 148/149: “Dá uma olhada no meu sangue / E vem sentir o teu perdão.”

Termos usados no Cristianismo, em que sangue simboliza o

sacrifício, a morte de Jesus, em nome de seu povo, para

que todos alcançassem o perdão, a remissão de seus pecados.

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- verso 156: “E João não conseguiu o que queria, quando veio pra Brasília

com o diabo ter.”

O chefe dos demônios, o gênio do Mal; anjo mal, que tendo se

rebelado contra Deus, foi precipitado no Inferno e procura a

perdição da humanidade.

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Cristianismo

A fim de explicitar a análise desse grupo, torna-se relevante entender,

primeiramente, o significado do termo Cristianismo, conforme definição da Nova

Enciclopédia Ilustrada Folha (1996, p.242):

“Religião cristã, baseada na crença em Jesus Cristo como o filho encarnado de

Deus e na adesão aos seus ensinamentos. O cristianismo, a maior religião do

mundo, foi originariamente uma seita do judaísmo e compartilha com este a crença

em um Deus único e onipotente. Jesus, que era um judeu, era tido por seus

seguidores como Messias e Filho de Deus, o cumprimento das profecias milenares

e escatológicas (isto é, relativas ao fim dos tempos) a respeito do Salvador. Jesus

proclamou uma nova aliança entre Deus e a humanidade, diferentemente daquela

mencionada nos textos bíblicos judaicos. Um aspecto fundamental é a crença de

que Jesus é o filho de Deus feito carne; dessa crença se elaborou a doutrina da

“Trindade, segundo a qual Deus reúne em si três pessoas – o Pai, o Filho e o

Espírito Santo – , sem deixar de ser único. Jesus é Deus e homem, uma pessoa

com duas naturezas (humana e divina). Ele morreu crucificado e sua morte

representa um sacrifício através do qual toda a humanidade foi redimida de sua

condição pecadora; sua ressurreição dentre os mortos simboliza a esperança na

vida eterna, tal como expressa na doutrina da expiação ou purificação dos pecados.

O livro sagrado cristão é a Bíblia, cuja primeira parte, o Antigo Testamento, consiste

nas escrituras sagradas hebraicas. Os cristãos reconhecem a vigência moral dos

Dez Mandamentos, mas acrescentam-lhes os ensinamentos de Jesus sobre o amor

de Deus pela humanidade, encontrados na segunda parte da Bíblia, o Novo

Testamento. Este reúne relatos sobre a vida de Jesus e escritos da época de

formação e desenvolvimento das comunidades e doutrina cristãs. A doutrina do

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amor divino é considerada o aspecto central da relação entre Deus e a humanidade,

e os cristãos são chamados a mostrar o mesmo amor em suas relações com os

demais seres humanos. Desde o seu início, o cristianismo caracterizou-se por uma

forte tradição de culto comunal e, em muitos casos, de rituais bastante elaborados.

(...) Modernamente, o cristianismo está difundido por todo o mundo, com

comunidades e missões na Ásia e seitas e congregações em rápido crescimento na

África e América do Sul. Há, em diversas regiões, uma pluralidade de movimentos e

tendências, como a Teologia da Libertação, que associa a mensagem cristã à luta

por justiça social, e outras correntes mais conservadoras, fundamentalistas ou de

ênfase na espiritualidade.”

Levando-se em consideração essa definição de Cristianismo, em que se afirma que

Jesus é Deus e homem, um ser com duas naturezas distintas: humana e divina e

todos os termos bíblicos empregados no texto-base, conclui-se que o sobrenome

Santo Cristo, sob o ponto de vista cristão, é o perfil de João sendo traçado com

contornos parecidos com os de Jesus Cristo: pobre, marginalizado e carpinteiro.

As figuras bíblicas, que têm seus caminhos cheio de dores e provações,

assemelham-se à descrição do personagem no texto. Porém, estranhamente, há

referência divina atrelada a um personagem tido como bandido: em seu sobrenome

“João de Santo Cristo” e no verso “Só para sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe

deu”.

Nota-se, aqui, um paradoxo intencional, porém conflitante e suscita encontrar

respostas às perguntas: segundo o Cristianismo, Jesus simboliza o amor, o bem,

enquanto o Diabo simboliza o ódio, o mal. Por que o texto-base diz que Jesus deu

ódio ao personagem? Poderia João ser bandido e, ao mesmo tempo, ter uma

essência de bondade, de generosidade?

João - bandido - ódio

x

Jesus Cristo - santo - amor

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Apesar de conflitantes, tais características integram-se no texto, indicando que

João, um ser originariamente bom, fora transformado pela sociedade – pelas

constantes injustiças sociais – em um bandido, em um mártir, assim como Jesus

também o fora. Carrega em seu nome essas duas características: João de Santo

Cristo – um homem santo no nome e um homem diabólico, bandido no cotidiano,

ou seja, com duas naturezas – a divina e a humana – tal qual Jesus também é

descrito.

Essa constatação nos reporta ao filósofo Rousseau que diz: “Todo homem nasce

bom. A sociedade é que o corrompe.” Quem rege a vida do personagem é um

destino cego e implacável, que está acima de sua vontade própria. E,

consequentemente, sua vida fora tomada pela inconformidade, pela

impotencialidade e pelo ódio a uma sociedade que o rejeita e o agride. João de

Santo Cristo, cuja dor acentua o sofrimento das classes sociais mais baixas,

representa a figura do próprio mártir, pelas seguintes razões:

a) nasceu bom, mas a sociedade o tornou mau, evidenciado no verso

“...quando ele se perdeu”. Significa que houve um tempo em que ele era bom

e depois se perdeu; e, para se perder, subentende-se que ele era certo,

antes de se perder;

b) a todo momento, a figura de João reporta-se ao mito cristão, sugerindo

que todos têm uma cruz para carregar. Há várias passagens com o uso de

termos do domínio religioso, referindo-se a João de Santo Cristo, em que há

uma aproximação com Jesus Cristo, constituindo-se como um dos muitos

“cristos” crucificados em nossa sociedade, cotidianamente. Porém, por ser

um “cristo” muito mais humano que o bíblico, cede às tentações;

c) analisando o nome dos dois outros personagens, tem-se outras evidências

dessa aproximação de João com Jesus Cristo:

- Maria Lúcia, o nome de sua amada: Maria é a mãe de Jesus, uma figura

acolhedora; enquanto Lúcia possui dois significados: a luz do bem,

reportando-se a Santa Luzia e a luz do mal, reportando-se ao Diabo. Maria

Lúcia agrega as duas naturezas: uma luz que desgraça e, ao mesmo tempo,

salva; sintetiza o amor que salva e o amor que mata.

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- Jeremias, o seu rival: um adversário poderoso, que surge para

desequilibrar o mundo de João. Traz em seu nome referência a um profeta

do Velho Testamento, que recebeu de Deus a missão de converter o povo

de Jerusalém e a cumpre fielmente. Porém, o Jeremias do texto é um profeta

às avessas, seduzindo e conduzindo as pessoas aos vícios e aos desvios

das normas sociais. É o vilão que se opõe à figura heróica de Santo Cristo.

Representa o bandido profissional, já plenamente estabelecido, diferente de

João que luta para não ceder às tentações;

d) o ódio que corre em suas veias não foi escolha própria, mas uma

imposição divina, estava predestinado: “... o ódio que Jesus lhe deu.”

Embora a palavra inferno faça parte do domínio religioso, aparece no texto, com

duas acepções diferentes:

• caracterizando uma instituição que não cumpre sua função social, a

prisão:

“Já no primeiro roubo ele dançou / E pro inferno ele foi pela primeira vez.”

• caracterizando o sentimento de decepção, ódio, desilusão do

personagem, ao ser traído pela mulher amada:

“Chegando em casa então ele chorou / E pro inferno ele foi pela segunda vez. /

Com Maria Lúcia Jeremias se casou”

Ainda dentro do domínio religioso, a palavra diabo foi usada caracterizando as

pessoas responsáveis por tantas injustiças sociais sofridas pelo personagem e

por sua comunidade. Cita a cidade de Brasília como o lugar onde mora o diabo, o

que permite concluir que há uma referência aos políticos brasileiros, em especial ao

Presidente da República:

“E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília,

com o diabo ter.

Ele queria era falar pro presidente,

Pra ajudar toda essa gente

Que só faz sofrer.”

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João é João de Santo Cristo, porque há uma comparação entre sua caminhada e a

do filho de Deus, que pode ser estendida a outros indivíduos marginalizados e,

portanto, todos têm uma peregrinação constante e dolorosa, todos carregam,

inevitavelmente, sua cruz. Logo, existe a fusão do modelo do herói grego – aquele

que nasce para servir, o defensor de seu povo – e do ideal de sacrifício cristão,

cuja intenção do texto não parece reforçar essas idéias, mas conduzir à reflexão,

fazer um questionamento sobre as relações sociais vigentes.

3.1.1.2 Grupo Social: Os Excluídos, sócio-economicamente

- verso 1: “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo”

Denota alguém sem poder, sem prestígio, sem identidade social.

- verso 22: “Discriminação por causa de sua classe, sua cor”

Preconceito social e racial.

- verso 49: “Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar.”

Salário insuficiente para a sobrevivência.

- verso 132: “Todo o povo sem demora foi lá só para assistir”

O conjunto das pessoas pertencentes às classes menos

favorecidas; plebe.

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- versos 158/159: “Pra ajudar toda essa gente / Que só faz sofrer.”

Referência explícita às pessoas que estão à margem

da sociedade.

O personagem João de Santo Cristo, na narrativa apresentada em “Faroeste

Caboclo”, circula por diferentes subgrupos sociais e, embora todos se incluam no

Grupo dos Excluídos, sócio-economicamente, esses subgrupos, também, serão

explicitados e analisados a seguir, pois integram as justificativas utilizadas pelo

autor, em defesa de seu ponto de vista:

a) Grupo Social: dos Trabalhadores

- versos 37 a 39: “No Ano Novo eu começo a trabalhar. / Cortar madeira,

aprendiz de carpinteiro / Ganhava cem mil por mês em

Taguatinga.”

- verso 41: “Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador.”

- versos 48/49: “E Santo Cristo até a morte trabalhava / Mas o dinheiro

não dava pra ele se alimentar.”

- verso 79: “E carpinteiro ele voltou a ser.”

- verso 99: “Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar.”

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b) Grupo Social: Rural

- verso 3: “Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda”

Grande propriedade rural.

- verso 26: “E encontrou um boiadeiro com quem foi falar”

Tocador de boiada.

c) Grupo Social: da Periferia de Brasília

- versos 38: “Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro”

Trabalho típico de regiões do interior.

- verso 39: “Ganhava cem mil por mês em Taguatinga.”

Cidade localizada na periferia de Brasília,

possuindo um núcleo rural.

- verso 124: “Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é

pra lá que eu vou.”

Cidade da periferia de Brasília.

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- verso 102: “Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo

revendia em Planaltina.”

Cidade da periferia de Brasília.

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Excluídos, sócio-

economicamente

No Brasil, a exclusão racial está inserida na exclusão social. Basta observar as

periferias das cidades, para se comprovar esse fato. O texto, também, aponta

nessa direção, ao caracterizar esse grupo, através da figura de João de Santo

Cristo: são pessoas sem identidade social, discriminadas por causa da classe e da

cor, sofrem privações econômicas e são designadas, negativamente, como povo.

Incluem-se nesse grupo:

a) os trabalhadores, caracterizados por ganharem salários incompatíveis

com suas necessidades básicas, além de sofrerem com a questão do

desemprego;

b) grupo rural, representado, no texto, pelas pessoas de baixo poder

aquisitivo, que ora são empregados dos fazendeiros – e comumente são

exploradas – ora vivem em propriedades próprias, mas em precárias

condições de vida. Em marasmo da fazenda, que representa o ponto de vista

dessas pessoas, evidencia-se o contraste entre os seus sonhos e a dura

realidade em que vivem, fato que explica a freqüente migração para os

grandes centros urbanos, em busca de melhores oportunidades de vida.

Excluem-se, no texto, as pessoas de alto poder aquisitivo, que são os donos

das fazendas;

c) grupo da periferia, caracterizado, no texto, pelas cidades satélites

Taguatinga, Ceilândia e Planaltina, em Brasília e que oferecem trabalho de

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mão-de-obra pesada, como em “cortar madeira, aprendiz de carpinteiro”,

diferentemente dos trabalhos desenvolvidos em grandes centros urbanos.

Tem-se, também, o aspecto negativo atribuído pela alta sociedade às

periferias – e ratificado no texto – como o reduto das contravenções:

drogas, violência, crimes, enfim, onde “nascem” os bandidos. Ratificando

essa idéia, temos no episódio do duelo entre João e Jeremias, o cenário da

periferia: “Amanhã, às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, ...”

3.1.1.3 Grupo Social: Moradores de grandes centros urbanos

- versos 13/14: “Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na

televisão”

O que se mostra na televisão é o mundo das grandes cidades.

- verso 24: “E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.

- verso 29: “Dizia ele: - Estou indo pra Brasília”

- verso 35: “Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal.”

- verso 40: “Na sexta-feira ira pra zona da cidade”

- verso 60: “Fez amigos, freqüentava a Asa Norte”

Área nobre de Brasília, onde se localiza a Universidade de Brasília.

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- verso 63: “Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade”

- verso 155: “E a alta burguesia da cidade não acreditou na estória que

eles viram na TV.”

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Moradores de grandes

centros urbanos

Grupo que simboliza a possibilidade de concretização dos sonhos, de ascensão

social das pessoas excluídas sócio-economicamente e a mídia, através da

televisão, fomenta essa idealização do urbano, mostrando um mundo ideal e não

real, sob o ponto de vista das elites. O mundo real das classes baixas só é

mostrado em eventos de criminalidade, de violência, ratificando o estigma da

periferia como reduto da bandidagem, como em: “Santo Cristo não sabia o que

fazer/Quando o viu o repórter na televisão/Que deu notícia do duelo na TV/Dizendo a hora

e o local e a razão./E a gente da TV filmava tudo ali.”

O texto faz referência a Salvador e Brasília, destinos de João de Santo Cristo, ao

deixar o interior da Bahia, representando a possibilidade de resgate da cidadania,

tão almejada pelo personagem. Porém, esse encantamento que o urbano exerce

sobre o homem do interior, do sertão, impulsionando-o a deixar suas origens, pode

transformar-se em profunda desilusão, diante de todos os obstáculos peculiares à

difícil relação campo-cidade, por seus valores intrínsecos tão diferentes e já

sedimentados, socialmente.

O espaço urbano encanta: “Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal./ - Meu Deus,

mas que cidade linda.”, mas esconde a dura realidade aos olhos de seus migrantes,

devorando suas esperanças e empurrando-o novamente para a marginalidade.

João de Santo Cristo, estando novamente à margem da sociedade, agora em meio

a todo fascínio da cidade grande, não resiste e entrega-se ao mundo da ilegalidade,

para alcançar a tão sonhada ascensão social, através do tráfico, podendo, enfim,

participar do mundo glamuroso da alta sociedade, além do Poder, ora adquirido: “E

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João de Santo Cristo ficou rico/E acabou com todos os traficantes dali./Fez amigos,

freqüentava a Asa Norte/E ia pra festa de rock, pra se libertar.”

3.1.1.4 Grupo Social: dos Bandidos

- verso 1: “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo,”

- verso 6: “Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu...”

- verso 7: “Era o terror da cercania onde morava”

- verso 9: “Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”

- verso 64: “Começou a roubar.”

- verso 69: “Agora o Santo Cristo era bandido”

- verso 70: “Destemido e temido no Distrito Federal”

- versos 71/ 72: “Não tinha nenhum medo de polícia / Capitão ou traficante,

playboy ou general.”

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: dos Bandidos

O texto apresenta João como alguém que: “Desde criança só pensava em ser bandido,

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/Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu...” E aqui surgem algumas

perguntas:

- É possível uma criança só pensar em ser bandido? Seria o exemplo da família, o

ambiente que a levaria a pensar assim? A morte do pai, com um tiro de soldado,

provoca em João um ódio ainda maior, aguçando sua sede de vingança. Mas o que

provocaria ódio em uma criança?

- O motivo da morte do pai fica por conta das inferências do leitor, justificadas pelo

uso das reticências colocadas no final do verso, autorizando as seguintes

indagações: seria o pai de João um bandido e, por isso, foi morto pela polícia? Ou

foi uma vítima inocente da polícia?

Para responder a todas essas perguntas, há duas possibilidades de leitura

autorizadas pelo texto:

- A primeira, e já explícita no grupo social do Cristianismo, é que João de Santo

Cristo era um cristão de fato, era bom na sua essência, mas fora corrompido pela

sociedade, através da exclusão social, pela marginalidade em que vivia seu povo e

pela morte do pai, como vítima inocente da polícia. Explicar-se-ia, então, o ódio que

sentia por essa sociedade que o rejeita e, por isso, encontra, no crime, a

possibilidade de vingança e de sobrevivência.

- A segunda, é que o pai de João era de fato um bandido e, por influência, João,

ainda criança, pensa em seguir o seu exemplo, ideia que se concretiza após a

morte do pai, por um policial. Por isso, tomado pelo ódio, não tinha medo, era o

terror da cercania, era destemido e temido, não tinha nenhum medo de polícia,

capitão, traficante, playboy ou general.

Dessa forma, a referência a nomes bíblicos seria, apenas, alusão a uma prática

cultural de os pais colocarem esses nomes em seus filhos, sem haver,

necessariamente, qualquer semelhança entre a trajetória de vida desses

personagens; espera-se, na adoção de tal comportamento, que haja similitude

entre a vida do santo e a vida do filho, como se operasse um milagre

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transformador, na vida de alguém. Porém, o que o texto mostra é o contrário:

enfatiza-se o contraste existente entre os nomes bíblicos – caracterizados pelo bem

– e a vida real dos personagens – caracterizados pelo mal; e dessa relação resiste

apenas o nome de santo e todo o resto é marcado por atitudes fora-da-lei, no

âmbito divino e social.

Esse argumento encontra respaldo numa referência a Jeremias: “E dizia que era

crente, mas não sabia rezar.”; e numa referência a João: “Ia pra igreja só pra roubar o

dinheiro”. Evidencia-se, aqui, um traço cultural familiar de religiosidade, mas que

nega pertencer a uma religião, ser cristão efetivamente.

3.1.1.5 Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas e

dos Usuários de drogas

- versos 44/45 : “Um peruano que vivia na Bolívia / E muitas coisas trazia

de lá.

Por sua localização geográfica, é Subentendem-se diversas

um país com tradição na rota do mercadorias: armas de fogo

contrabando e do tráfico no Brasil. e drogas, entre outras.

- versos 46/47: “ Seu nome era Pablo e ele dizia / Que um negócio ele ia

começar.”

Nome do líder do narcotráfico colombiano, Pablo Escobar.

- verso 55: “E sem ser crucificado, a plantação foi começar.

Subentende-se a plantação de maconha.

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- versos 58/59: “E João de Santo Cristo ficou rico / E acabou com todos os

traficantes dali.

- verso 102: “Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia

em Planaltina.”

- versos 103/104: “Mas acontece que um tal de Jeremias,/ Traficante de

renome, apareceu por lá.”

- versos 107/108: “Mas Pablo trouxe uma Winchester-22 / E Santo Cristo já

sabia atirar.”

- versos 111/112: “O Jeremias, maconheiro sem-vergonha, / Organizou a

Rockonha e fez todo mundo dançar.

- versos 56/57: “Logo, logo, os malucos da cidade souberam da novidade:/

Tem bagulho bom aí!”

- verso 111: “O Jeremias, maconheiro sem-vergonha,”

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: dos Traficantes, dos

Contrabandistas e dos Usuários de drogas

Bolívia, Brasília e Pablo são nomes, no texto, que fazem referência explícita ao

tráfico e contrabando, no Brasil: Bolívia e Brasília, por fazerem parte da rota de

entrada e Pablo, por ser nome próprio de Pablo Escobar, grande líder do

narcotráfico, na Colômbia.

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O nome Pablo sintetiza: a marca de experiência no assunto de um grande chefe; a

referência aos cartéis colombianos; e o poder de sedução às pessoas

marginalizadas, pela possibilidade de conquista da tão desejada ascensão

social, ainda que ilegalmente. O personagem João, seduzido por Pablo e

consciente de sua opção, começa uma plantação de maconha, fica rico e acaba

com todos os traficantes da região.

O personagem Jeremias representa o líder do tráfico em comunidades brasileiras

da periferia, que refuta a tentativa de entrada de outros traficantes, na mesma

região, provocando a chamada “guerra do tráfico”.

3.1.1.6 Grupo Social: Instituições Penais e Policiais

- verso 19: “Aos quinze, foi mandado pro reformatório”

Alusão à Casa de Apoio ao Menor, antiga FEBEM.

- versos 65/66: “Já no primeiro roubo ele dançou / E pro inferno ele foi

pela segunda vez.

Subentende-se que agora seja uma prisão, uma cadeia.

- verso 6: “Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu...”

- verso 87: “E não protejo general de dez estrelas,”

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Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Instituições Penais e

Policiais

Tanto as Instituições Penais, quanto os Policiais são representados, no texto,

como corresponsáveis pela perdição total do personagem João de Santo Cristo.

Inicialmente, quando o pai é morto por um soldado – fato que aumenta o seu ódio

e seu desejo de vingança – e aparece como o desencadeador de sua entrada no

mundo do crime. Depois, ao ser preso por duas vezes, as Instituições Penais são

chamadas de “inferno”, por deixarem de cumprir a sua função social e contribuírem

para que saísse de lá, ainda mais revoltado, reforçando sua necessidade de

continuar no mundo do crime:

“Aos quinze, foi mandado pro reformatório/Onde aumentou seu ódio diante de tanto

terror/Violência e estupro do seu corpo./- Vocês vão ver, eu vou pegar vocês.”

3.1.1.7 Grupo Social: Mídia Televisiva

- versos 13/ 14: “Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na

televisão”

- versos 128 a 130: “Quando viu o repórter na televisão / Que deu notícia do

duelo na TV/ Dizendo a hora e o local e a razão.”

- verso 138: “E a gente da TV filmava tudo ali.”

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Mídia Televisiva

A televisão veicula o tráfico e ele queria sair para ver o mar e tudo aquilo que

também é mostrado pela televisão e serve para fomentar seus sonhos e desejos

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consumistas. O tráfico é considerado objeto de notícia, pois, trata do inusitado: a

briga entre grupos de traficantes. Todavia, o conteúdo de veiculação da televisão é

o mundo ideal e não o real, que só é mostrado quando há interesse em reafirmar

as diferenças de classes. Logo, tem-se aqui a síntese do propósito ideológico da

mídia televisiva: reafirmar seu poder de sedução e de persuasão, frente aos pontos

de vista, por ela defendidos.

3.1.1.8 Grupo Social: Os Corruptos

- versos 82/83: “O tempo passa e um dia vem à porta um senhor de alta classe

com dinheiro na mão. / E ele faz uma proposta indecorosa e

diz que espera uma resposta.”

- versos 87/88: “E não protejo general de dez estrelas, / Que fica atrás da mesa

com o cu na mão.”

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Corruptos

Nesse grupo, evidencia-se o código ético existente até mesmo no mundo do crime,

que rege, principalmente, aquilo que eles não fazem por dinheiro algum, como

se vê em:

“ – Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança /

Isso eu não faço não.”

Por outro lado, para o corrupto, o dinheiro representa uma moeda de troca entre

duas classes sociais distintas: a classe pobre que, por vezes, permite “vender-se”

em nome da conquista material; e a classe rica, na concretização de seus fins, em

nome de uma pseudo justiça para preservar poder e “status”.

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3.1.1.9 Grupo Social: O Extragrupo

- verso 2: “Era o que todos diziam quando ele se perdeu.”

Tem valor extragrupal.

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: O Extragrupo

A palavra “todos”, pronome indefinido, neutraliza a individualidade de cada grupo

social, no sertão da Bahia, – lugar de origem do protagonista da narrativa – e,

portanto, trata-se do extragrupal. Essa neutralização decorre da representação do

papel social, com valor negativo, representado por João de Santo Cristo, quando

“se perdeu”, decisão, esta, caracterizada e reconhecida como anti-ética, pela

comunidade local.

3.1.1.10 Grupo Social: dos Migrantes

- verso 12: “E sentia que aquilo ali não era o seu lugar”

Sertão da Bahia. Identificação de João com o grande

centro urbano.

- verso 15: “Juntou dinheiro para poder viajar”

A representação de como sair do lugar de origem.

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- verso 24: “E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.”

Sertão da Bahia. Grande centro Urbano.

- verso 27: “E o boiadeiro tinha uma passagem”

Meio para sair de Salvador e ir para um centro maior,

a capital do país.

- versos 29/30: “Dizia ele: - Estou indo pra Brasília / Neste país lugar melhor

não há.”

Descrita e caracterizada como o melhor lugar

do Brasil.

- versos 36/37: “- Meu Deus, mas que cidade linda. / No Ano Novo eu começo

a trabalhar.”

Brasília, concretização de um sonho: João, queria viver

num grande e importante centro urbano.

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Migrantes

Grupo representado, no texto, pelas pessoas que sonham com uma vida melhor,

que lutam e acreditam que podem conquistar melhores condições de vida. Alguém

ativo, consciente e inconformado com sua situação social, características que o

transforma em andarilho inquietante à procura, por toda parte, da felicidade.

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3.1.1.11 Grupo Social: Os Políticos

- verso 51: “Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar.”

Papel social inter-relacionado ao Presidente da República e

representa o controle do Poder do Presidente.

- verso 157: “Ele queria era falar pro presidente,”

O mais alto papel social hierárquico da estrutura social política.

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: Os Políticos

Grupo considerado, no texto, como corresponsável pelo sofrimento do personagem

João de Santo Cristo e também de seu povo, de sua comunidade. Os políticos

representam as promessas não cumpridas, o descrédito daquilo que falam: “E Santo

Cristo até a morte trabalhava / Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar. / E ouvia às

sete horas o noticiário / Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar.”

Brasília é considerada a morada do “diabo”, aquele que é responsável por todas as

maldades, todas as injustiças e sofrimentos. E o Presidente da República,

considerado autoridade máxima no comando do país e, consequentemente, da vida

das pessoas, representa o próprio diabo, com quem João de Santo Cristo desejava

se encontrar, para pedir compaixão ao seu povo, que tanto sofre.

Nesse grupo social, o Poder é representado pelo Presidente, que nomeia seus

ministros para o controle das decisões tomadas por ele e, dessa forma, Poder e

Controle não têm acesso ao público.

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3.1.1.12 Grupo Social: da Família

- verso 6: Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu.

Referência à paternidade de João de Santo Cristo.

Resultados obtidos da análise do Grupo Social: da Família

Observa-se, no texto-base analisado, que o Grupo Social: da Família é

representado, cognitivamente, apenas por relações de consanguinidade. João de

Santo Cristo não se refere à mãe, a irmãos, a tios ou a avós. Refere-se, apenas, ao

pai, que é morto por um policial, fato que caracteriza a representação da Instituição

Família como falida, cancelando seus papéis sociais, sua estrutura social e a

interação entre seus membros.

3.1.2 Cognição

O texto-base desta dissertação, “Faroeste Caboclo”, enquadra-se no gênero

crônica do cotidiano, pois, há a representação dos marcos da cognição social,

através dos diferentes grupos sociais presentes no texto e é um texto opinativo, a

respeito de algo que está situado no marco das cognições sociais, para o qual se

constrói uma circunstância, que é um juízo de valor, construído por um paradoxo:

valor positivo e valor negativo. Entretanto, sua linguagem não é a do cotidiano, pois

a expressão linguística é construída com a linguagem poética e organizada de

forma argumentativa.

A partir dos grupos sociais identificados no texto-base, serão relacionadas suas

respectivas formas de representações mentais, que são as formas de

conhecimento válidas para todos os membros do grupo, ou seja, seus marcos de

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cognição social serão apontados. Cada marco de um grupo é definido a partir dos

papéis sociais selecionados, pelo grupo, para serem representados por eles. Por

isso, quando se analisa e compara cada grupo social e seus respectivos marcos de

cognição social, percebe-se que é possível fazer um reagrupamento, pois, alguns

deles se alinham, enquanto outros se opõem.

• Grupos Sociais que se alinham e que serão renomeados:

- Grupo Social: da Família

- Grupo Social: dos Excluídos, sócio-economicamente

- Grupo Social: dos Bandidos Grupo Social:

- Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas do Povo

e dos Usuários de drogas

- Grupo Social: dos Migrantes

O termo povo deve ser entendido, conforme verbete retirado do Novo

Dicionário Aurélio (1975): o conjunto das pessoas pertencentes às classes

menos favorecidas; plebe. O alinhamento de todos esses grupos, em

Grupo Social: do Povo justifica-se, pois, no texto, é desta forma que

estão representados.

Torna-se relevante ressaltar, também, que tanto o Grupo Social: da Família,

quanto o Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas e dos Usuários

de drogas foram realinhados nesse Grupo Social: do Povo, levando-se em

consideração a caracterização desses grupos apresentada pelo texto. É

óbvio que a representatividade desses grupos sociais não se encontra,

apenas, no Grupo Social do Povo.

O Grupo Social: do Povo, na memória social, tem valor negativo, pois seus

membros são representados como feios, sem educação e carregam o estigma de

causadores dos males sociais. Porém, o cronista Renato Russo estabelece uma

relação de oposição a este ponto de vista, colocando esse grupo na zona de

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intersecção, uma vez que sua intenção é mostrá-lo como vítima da sociedade, que

o impede de ascender, socialmente.

- Grupo Social: dos Traficantes, dos Contrabandistas Grupo Social: dos

e dos Usuários de drogas Contraventores

- Grupo Social: dos Corruptos

O Grupo Social: dos Contraventores tem, como marco de cognição social, o

oportunismo, a exploração de pessoas marginalizadas e Renato Russo reforça

esse ponto de vista, no texto, por adesão.

- Grupo Social: das Instituições Penais Grupo Social: das

- Grupo Social: dos Policiais Instituições Policiais

Esse grupo, das Instituições Policiais, tem, como marco de cognição social, a

proteção, pois são os mantenedores da ordem social; enquanto no texto, por

oposição, representam a repressão, a violência e o abuso de Poder.

Sabendo-se que a crônica é um gênero textual que apresenta polaridade, pois,

implicitamente, traz a avaliação sobre o que está sendo focalizado pelo seu

discurso subjacente, será mostrado, a seguir, como se dá essa polaridade, entre

dois hiperônimos: bandido e sociedade, sob o ponto de vista do marco de cognição

social e do cronista Renato Russo.

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Focalização

Antítese

Marco da cognição social

Polo negativo Polo positivo bandido socieda - é o agente do mal à soc - é a vítima do bandi

Focalização

Antítese

Cronista Renato Russo

Polo negativo Polo positivo

sociedade bandido

Sociedade - é agente do mal ao bandido.

- é composta pelos incluídos.

- é responsável pelas injustiças

sociais.

- empurra o indivíduo para o

mundo do crime.

- não proporciona, a todos , o direito à cidadania.

Bandido

- é agente do mal à sociedade.

Sociedade

- é vítima do bandido.

Bandido - é vítima da sociedade.

- são os excluídos.

- na essência, é um ser bom.

- luta pelo resgate de sua

cidadania.

- o mundo do crime é a única

alternativa de sobrevivência. - a marginalização, imposta

pela sociedade, legitima seu

ato.

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Evidencia-se, nessas polaridades, a antítese empregada no texto-base, entre

bandido e sociedade e é em torno dessa ideia que a narrativa se desenvolve,

tendo como objetivo a reflexão acerca dos valores individuais e sociais, presentes

no texto e como os dois se interagem.

No marco da cognição social, o bandido representa o mal e a sua condição social é

determinada por escolha própria; por isso, deve ser afastado da sociedade que, por

sua vez, é a vítima e precisa ser protegida, não assumindo qualquer

responsabilidade. Enquanto que, sob o ponto de vista do cronista, é a sociedade a

principal responsável pela condição do bandido, pois ela não lhe garante os direitos

intrínsecos a todo cidadão, como emprego e salário justo.

João de Santo Cristo deixa a vida pacata da fazenda, viaja para Brasília em busca

de trabalho e, ao conseguí-lo, depara com a difícil equação de trabalhar muito e

ganhar pouco. Tal fato, acrescido do fascínio exercido pela cidade grande, faz

João mudar de trajetória e ceder à tentação do dinheiro fácil e farto, prometido pelo

mundo do crime.

A seguir, será mostrada a polaridade entre o marco de cognição social dos grupos

representados no texto e o ponto de vista do cronista, enfatizando o Grupo Social:

do Povo e sua relação com os demais grupos.

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Focalização

Marco de cognição social

Polo negativo Polo graduado Polo positivo

Grupo Social:

do Povo

Grupo Social: da

Mídia televisiva

Grupo Social: das

Instituições policiais

Grupo Social: dos

Contraventores

Grupo Social: dos Mo-

radores dos grandes

centros urbanos

Grupo Social: dos

Políticos

Grupo Social: o

Extragrupo

Grupo Social: do

Cristianismo

Grupo Social: da

Família

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Focalização

Cronista Renato Russo

Polo negativo Polo graduado Polo positivo

Culturalmente, no Brasil, a classe social alta atribui valor negativo ao indivíduo

pobre e preto, caracterizado como oriundo das periferias, vistas como reduto do

crime. Por esta razão é que, no marco da cognição social, o Grupo Social: do Povo

e dos Contraventores se opõem ao Grupo Social: dos Moradores dos

grandes centros urbanos, pois representam-lhe uma ameaça. Ao mesmo tempo,

este último, tem como aliados e protetores, o Grupo Social: das Instituições

Policiais e o Grupo Social: do Cristianismo, capazes de atenuarem essa ameaça.

Grupo Social: dos

Contraventores

Grupo Social: o

Extragrupo

Grupo Social: da

Família

Grupo Social: das

Instituições Policiais

Grupo Social: dos

Moradores dos gran-

des centros urbanos

Grupo Social: do

Povo

Grupo Social: dos

Políticos

Grupo Social: do

Cristianismo

Grupo Social: da

Mídia televisiva

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Todavia, sob o ponto de vista do cronista Renato Russo, o Grupo Social: do Povo –

representado, no texto-base, por João de Santo Cristo – adquire valor positivo e os

grupos que se opõem são: o Grupo Social: dos Contraventores, o Grupo Social:

das Instituições Policiais e o Grupo Social: dos Políticos, pois, são eles os

responsáveis pelos conflitos vividos pelo protagonista.

No texto, o Grupo Social: dos Moradores dos grandes centros urbanos passa a ter

valor graduado, pois, representa tanto o valor positivo, como o valor negativo:

positivo, quando João deixa a fazenda e, deslumbrado, acredita que, em Brasília,

tudo será diferente em sua vida; e negativo, quando João descobre o outro lado da

cidade grande: a violência, o crime, o tráfico de drogas, a ambição e as dificuldades

de sobrevivência, em que o clímax dessas descobertas dá-se com sua morte.

O texto “Faroeste Caboclo” é uma narrativa que tem como seu protagonista, João

de Santo Cristo, personagem que, junto com os demais, sintetizam valores cristãos

positivos e valores sociais negativos, como mostrados no quadro a seguir:

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VALORES POSITIVOS ZONA DE INTERSECÇÃO VALORES NEGATIVOS CRISTÃOS SOCIAIS __________________________________________________________________________ - Jesus dá amor - pecados - Jesus dá ódio - criança é anjo Ø - criança só pensa em ser bandido - colocar dinheiro na - pobre - roubar dinheiro caixinha do caixinha do altar altar - santo - marginalizado - bandido - crucificação de Jesus Ø - a morte causada por um soldado - céu - marasmo da fazenda - inferno - arrependimento Ø - reformatório/Febem - ser crente/saber rezar Ø - não saber rezar - via-crucis - carpinteiro - trabalhava até a morte e o dinheiro não dava pra ele se alimentar - sangue/perdão Ø - crucificado, castigo, sentimento de culpa - influência religiosa da Ø - má influência dos família boyzinhos da cidade - Jesus Ø - Diabo - Igreja: templo de oração Ø - Igreja: prática de roubo Ø Ø - violência, estupro Ø Ø - corrupção Ø Ø - traição Ø Ø - falsidade Ø Ø - covardia, não ser homem

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Verifica-se, nesta análise, que os valores sociais selecionados, pelo texto, são

antagônicos em relação aos valores cristãos, evidenciando-se um contraste entre a

religiosidade exacerbada do brasileiro e suas dificuldades sócio-econômicas.

Reforça a ideia da crença como verdade, contrastando com a dura realidade social

do brasileiro.

3.1.3 Discurso

Neste trabalho, a análise será tanto linguística, quanto ideológica, pois ambas são

imprescindíveis ao estudo de qualquer uso de linguagem. Outrossim, a linguística

dá conta dos recursos utilizados, estrategicamente, pelo autor, enquanto a

ideológica pressupõe uma avaliação implícita e ambas se complementam no

entendimento do sentido global do texto. E mais, o caráter ideológico é importante,

quando se pretende utilizar o “como se diz” para expressar o “que se diz”, de

acordo com a Teoria da Enunciação.

Entende-se o discurso como uma prática sócio-interacional, constituída por seus

participantes, funções e ações, que se atualizam na enunciação, no texto-produto

enunciado. Há discursos institucionais públicos e eventos discursivos particulares.

O texto-base selecionado é construído por um discurso público institucionalizado e,

também, pelo discurso empresarial, porque é o dono da empresa que toma

decisões em sua gravadora, de forma a lucrar economicamente. O Controle coloca

em prática essa ideologia do Poder e, para tanto, verifica qual cantor e quais

músicas têm a preferência popular, a fim de que o que for gravado seja vendável.

Dessa forma, Renato Russo e sua coletânea satisfazem tanto o Poder, quanto o

Controle e, por essa razão, a sua obra tem acesso ao grande público.

Na categoria Discurso agrupa-se, também, o texto-produto, pois, segundo a ACD,

as formas de representação, em língua, constróem novas formas de conhecimento,

tanto ideológicas, quanto culturais.

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3.1.3.1 Os episódios narrativos

O texto-produto analisado, “Faroeste caboclo”, é do tipo narrativo e, portanto,

formado por episódios, que se agrupam a partir das categorias narrativas da

história: Apresentação, Conflito e Resolução e serão descritos a seguir:

• Episódio 1: João de Santo Cristo, na infância.

- Apresentação: João de Santo Cristo, quando criança, morando

numa fazenda e já pensava em ser bandido.

- Conflito: o pai de João é morto com um tiro, por um policial.

- Resolução: com sentimento de vingança, começa a praticar

roubos na igreja, aterrorizando a todos.

• Episódio 2: João de Santo Cristo, na adolescência.

- Apresentação: João de Santo Cristo, aos doze anos, ainda

vivendo na fazenda, continua no mundo do

crime, mas com várias inquietações acerca da

vida que levava.

- Conflito: aos quinze anos, é mandado para um

reformatório – a FEBEM atual – que só contribuiu

para aumentar seu ódio à sociedade, pois,

enfrenta ali, todo o tipo de hostilidade, tão

peculiar ao ambiente, mas não condizente com

as expectativas daquele jovem.

- Resolução: cansado de não encontrar respostas a tantas

perguntas, em seus questionamentos, resolve,

então, sair da fazenda e ir para Salvador.

• Episódio 3: João de Santo Cristo, em Salvador e em Brasília.

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- Apresentação: chegando em Salvador, encontra-se com um

boiadeiro que lhe oferece uma passagem para

Brasília. Desembarca na rodoviária, encanta-se

com a decoração natalina da cidade e já faz

planos para começar a trabalhar, no Ano

Novo, fato este que se confirma. Trabalha na

periferia, em Taguatinga e, às sextas-feiras,

frequenta os pontos de diversão da cidade.

- Conflito: João conhece um neto bastardo de seu bisavô,

Pablo, traficante boliviano, que o convida para ser

seu parceiro.

- Resolução: João resiste à tentação e continua sua rotina de

homem trabalhador.

• Episódio 4: João passa a ser traficante de maconha.

- Apresentação: desiludido com a expectativa de uma vida melhor

e seduzido pela possibilidade de ganhar muito

dinheiro, decide juntar-se a Pablo, iniciando a

plantação de maconha e logo fica rico.

- Conflito: torna-se líder do tráfico da região, passando a

fazer parte do mundo glamuroso da cidade e,

por influência de outros jovens, começa a

roubar, vai preso e é submetido ao horror

existente na prisão: violência e estupro.

- Resolução: transtornado pelo acontecimento, decidiu tornar-se

bandido, enfrentando a tudo e a todos.

• Episódio 5: João conhece seu grande amor.

- Apresentação: Santo Cristo conhece Maria Lúcia e apaixona-se.

- Conflito: arrepende-se de tudo que fizera, até então.

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- Resolução: entrega-se ao amor, planeja casar-se, ter filho e

volta a trabalhar como carpinteiro, abandonando o

mundo do crime.

• Episódio 6: João enfrenta uma tentativa de suborno.

- Apresentação: João é, novamente, tentado a ceder ao mundo do

crime.

- Conflito: aparece em sua casa um homem da alta

sociedade tentando suborná-lo, para cometer

um crime em nome de um general do alto

escalão.

- Resolução: João recusa a proposta, mas, como que

amaldiçoado, perde o emprego, logo em seguida.

• Episódio 7: João passa a ser contrabandista, em Planaltina.

- Apresentação: volta ao mundo do crime, agora como

contrabandista de armas, em Planaltina.

- Conflito: conhece Jeremias, traficante de renome, que não

aceita a invasão de seu território.

- Resolução: Jeremias promete matar Santo Cristo.

• Episódio 8: João sofre decepção amorosa.

- Apresentação: João, com saudades de Maria Lúcia, decide ir ao

seu encontro.

- Conflito: descobre que ela está casada com Jeremias e

espera um filho.

- Resolução: tomado pelo ódio, chama seu rival para um

duelo e a mídia televisiva faz, desse

acontecimento, um grande evento.

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• Episódio 9: O duelo entre João e Jeremias.

- Apresentação: João é atingido por Jeremias, com um tiro pelas

costas.

- Conflito: antes de morrer, por instantes, faz uma

retrospectiva de sua vida e percebe que é

chegado o fim.

- Resolução: recebe sua arma de Maria Lúcia e acerta cinco

tiros em Jeremias. Maria Lúcia, num ato de

reconhecimento do amor de João e, por

arrependimento, suicida-se.

• Episódio 10: A real intenção de João, em Brasília.

- Apresentação: momento de revelação do real motivo da

peregrinação de João de Santo Cristo, até chegar

em Brasília.

- Conflito: sua intenção é pedir ao presidente para fazer

alguma coisa pelo seu povo, para acabar com as

injustiças sociais sofridas pela sua comunidade.

- Resolução: João morre, sem concretizar seu desejo.

Um gráfico das macroproposições, de cada episódio, realça o desenvolvimento da

narrativa, em progressão linear e cronológica, apresentando-se desta forma:

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Epi Episó

3.1.3.2 A estrutura argumentativa em “Faroeste Caboclo”

Segundo a estrutura argumentativa postulada por van Dijk (1978) e sendo

“Faroeste Caboclo” um texto opinativo e argumentativo, sua estrutura está assim

organizada:

Episódio 1 João de Santo

Cristo, na

infância.

Episódio 2 João de Santo

Cristo, na

adolescência.

Episódio 5 João

conhece

seu grande

amor.

Episódio 3 João de Santo

Cristo, em

Salvador e em

Brasília.

Episódio 4 João passa a

ser traficante

de maconha.

Episódio 6 João enfrenta

uma tentativa

de suborno.

Episódio 7 João passa a

ser

contrabandista,

em Planaltina.

Episódio 8 João sofre

decepção

amorosa.

Episódio 10 A real

intenção de

João, em

Brasília.

Episódio 9 O duelo entre

João e

Jeremias.

FAROESTE CABOCLO

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Argumentação As políticas sociais dos governos não são

representativas para as classes populares

carentes.

Justificativa Vivem à margem da

sociedade, os grupos

sociais mais carentes.

Conclusão O sertanejo nordestino

pobre, não tem

cidadania.

Marco de cognição O pobre fica cada vez

mais pobre e o rico

cada vez mais rico.

Circunstância Os grupos mais carentes

vivem em periferias, nas

favelas.

Ponto de Partida O sertanejo nordestino,

pobre, deixa seu lugar de

origem, migrando para as

grandes metrópoles.

Fatos Grupos sociais

marginais:tráfico de

drogas, violência, crimes.

Legitimidade A magia dos grandes

centros urbanos, para o

sertanejo nordestino pobre.

Reforço Questão de

sobrevivência.

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3.1.3.3 O título do texto-base “Faroeste Caboclo”

Visando compreender melhor o texto “Faroeste Caboclo”, estabeleceu-se, como

ponto de partida desta análise, o entendimento do título do texto, tendo com

referência a Grande Enciclopédia Larousse (1998):

Faroeste. S. m. (do inglês Far West) 1. gênero cinematográfico de peripécias

movimentadas, criado nos Estados Unidos, que relata as aventuras dos

desbravadores do Oeste norte-americano, no século XIX. 2. películas de bangue-

bangue, caracterizadas pela luta armada entre forasteiros e nativos, entre ladrões e

proprietários, entre chefes e empregados, entre outras. 3. lugar onde reina a lei do

mais forte.

Caboclo. S. m. (do tupi Kari’boka, que procede do branco). 1. mulato de cor

acobreada, descendente de índio. 2. mestiço de branco com índio. 3. sertanejo,

homem do sertão, de pele queimado de sol, caipira, roceiro. 4. sertanejo

desconfiado ou traiçoeiro.

As predicações contidas nos dois verbetes, ao construírem, inter-lexicalmente,

“Faroeste Caboclo”, propicia que certas predicações sejam canceladas e outras

privilegiadas. Assim, o conteúdo das expressões “Faroeste Caboclo” pode ser

compreendido como bangue-bangue, passado pela televisão e transformado em

espetáculo, para ser objeto de curiosidade dos telespectadores. Esse bangue-

bangue é produzido por personagens desbravadores de uma metrópole brasileira,

Brasília, em busca de um lugar em sua estrutura social, representados, no texto,

pelo personagem principal, João de Santo Cristo, o sertanejo caboclo.

“Faroeste Caboclo” está, intra-textualmente, tecido com “João de Santo Cristo”;

porém, Santo Cristo está inter-textualizado com Jesus, que morre na cruz,

injustamente, morto pelos judeus, que é o seu próprio povo. Os nomes próprios

“José” e “João” fazem parte da cultura popular e atualizam a religiosidade cristã,

que é a raiz histórica do povo brasileiro. “João” é primo de Jesus e foi quem o

batizou, no intra-texto bíblico; enquanto que na música “Faroeste Caboclo”, João é

o nome popular, intertextualizado com o personagem bíblico “Batista” e “Santo

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Cristo” está intertextualizado com a morte de Jesus, pois, o personagem da

narrativa da história, do texto-base, é morto por um membro de seu próprio grupo.

3.1.3.4 As pressuposições e subentendidos em “Faroeste

Caboclo”

O pressuposto é um recurso argumentativo, pois o interlocutor, ao introduzir no

discurso um conteúdo pressuposto, torna-se coautor de um ponto de vista, uma vez

que o pressuposto não é colocado em discussão, mas apresenta-se como verdade

inquestionável. A pressuposição delimita as possibilidades de interpretação do

leitor, através de uma lógica criada pelo produtor do texto, porque, enquanto o

posto é proposto como verdadeiro, o pressuposto é, de certa forma, imposto como

verdadeiro, é indiscutível.

O subentendido é a informação veiculada por um enunciado e sua atualização

depende da situação/contexto em que se dá a interlocução. É uma construção

textual que se constitui em um meio de proteção para o falante, pois o locutor pode

dizer o que quer, sem comprometer-se inteiramente.

O subentendido é de responsabilidade do ouvinte, enquanto o pressuposto é dado

pelo locutor como uma informação inquestionável ou apresentada como tal, tanto

para o locutor, quanto para o interlocutor, pois decorre, necessariamente, de um

marcador linguístico.

Segundo Fiorin (2006, p.184),

“O pressuposto pode ser contestado, mas é formulado para não o ser. Já o

subentendido é construído, para que o falante, caso seja interpelado, possa,

apegando-se ao sentido literal das palavras, negar que tenha dito o que

efetivamente quis dizer.”

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Para o autor, existem dois tipos de subentendidos: a alusão, que se refere a fato

conhecido pelos sujeitos da interlocução ou faz menção a algum conteúdo de outro

texto ou discurso; e a ironia, que possui caráter maldoso, através da insinuação.

Em “Faroeste Caboclo” tem-se:

• “Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu ...”

As reticências foram empregadas como recurso de cancelamento de uma

informação: o motivo pelo qual o pai foi morto. O posto é que um policial matou o

pai de João. O termo “policial” traz como subentendido: aquele que protege o

cidadão de bem e pune o criminoso. Logo, há um pressuposto: o pai de João era

um bandido ou um inocente, morto injustamente.

• “Não tinha medo o tal João de Santo Cristo

Era o que todos diziam quando ele se perdeu.”

A conjunção temporal “quando” indica que houve um momento.

“Ele se perdeu”, pressupõe que houve um momento em que ele era certo, pois o

perder-se, entendido como o momento em que João começa a agir na ilegalidade,

pressupõe o não se perder, entendido que houve um momento em que João agia

na legalidade.

• “— Meu Deus, mas que cidade linda,

No Ano Novo eu começo a trabalhar.”

A conjunção “mas” liga dois segmentos que não indicam oposição entre si; indica

uma exclamação de júbilo, quando vê pela primeira vez, a cidade de Brasília e

toda a beleza dos enfeites natalinos (“Saindo da Rodoviária, viu as luzes de Natal”); fica

subentendido que João chegou à cidade, no mês de dezembro, época em que,

tradicionalmente, os enfeites natalinos são expostos.

“... eu começo a trabalhar.” é o posto e o conteúdo pressuposto é que João estava

chegando sem emprego à cidade, mas, com a certeza de que seria bem sucedido

na nova cidade e que já no Ano Novo estaria trabalhando. Tem-se como

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pressuposto, também, que o tempo de espera para um novo emprego seria de

menos de um mês, considerando-se que ele chegou em dezembro e no Ano Novo

ele já estaria empregado, revelando um sentimento de otimismo.

• “E dizia que era crente, mas não sabia rezar.”

A conjunção “mas” indica uma oposição entre os dois segmentos: ser crente versus

não saber rezar. Assim, há um pressuposto: Jeremias cultivava apenas o traço

cultural da religiosidade e não era um religioso, pois, rezar é uma característica

marcante desse grupo, os crentes; ou seja, saber rezar está no marco da cognição

social do grupo.

• “E Santo Cristo há muito não ia pra casa”

“Sob uma má influência dos boyzinhos da cidade

Começou a roubar.”

Tem-se, como contexto, a criminalidade e, como pressuposto, que João morava em

uma região da periferia de Brasília e praticava seus crimes, no centro da cidade,

argumento esse justificado pela expressão “boyzinhos da cidade”, em que o

termo “boyzinhos” é usado, culturalmente, para jovens de poder aquisitivo, que não

trabalham e os pais sustentam; e o termo “da cidade” é usado, culturalmente,

referindo-se à região central da cidade.

• “Dá uma olhada no meu sangue

E vem sentir o teu perdão.”

O termo “sangue” refere-se a João de Santo Cristo e “perdão” refere-se a Jeremias.

Considerando as referências bíblicas contidas em “Faroeste Caboclo” e a

caracterização desses dois personagens, chega-se ao pressuposto: o sangue de

João representa o sangue de Jesus Cristo e o perdão de Jeremias representa o

perdão concedido aos fiéis religiosos. Elabora-se, então, o seguinte subentendido:

os termos sangue e perdão fazem alusão ao Cristianismo, em consonância com a

representação e trajetória dos personagens João e Jeremias, apresentadas pelo

texto.

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3.1.4 O papel dos intertextos e interdiscursos, na leitura

de reconstrução histórica do texto-base

A fim de realizar a leitura de reconstrução histórica do texto-base, busca-se

mostrar como a intertextualidade contribui na produção de sentidos, a partir do

levantamento e da seleção de intertextos.

A análise dos intertextos segue o critério de segmentação do texto-base, para nele

inserir segmentos ou texto completo de um intertexto.

3.1.4.1 Intertexto 1: O reggae

Texto-Base Intertexto 1

Quando criança só pensava em ser bandido , Ainda me lembro aos três anos de idade

Anda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu... O meu primeiro contato com as grades

Ele queria sair para ver o mar Assistiu o jornal da TV

E as coisas que ele via na televisão E aprendia a roubar para vencer

O boiadeiro tinha uma passagem Ninguém me perguntou se eu estava

pronto

Estou indo pra Brasília E eu fiquei completamente tonto

Neste país, lugar melhor não há Procurando descobrir a verdade

Estou precisando visitar a minha filha Nos meios das mentiras da cidade

Eu fico aqui e você vai no meu lugar

E João aceitou sua proposta

Só para sentir no seu sangue Tentava ver o que existia de errado

O ódio que Jesus lhe deu. Quantas crianças Deus já tinha matado

Beberam o meu sangue e não deixam

viver.

E a gente da TV filmava tudo ali Assistiu o jornal da TV

E a alta burguesia da cidade

Não acreditou na história que eles viram na TV.

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O Intertexto 1 traz representado, em língua, o sentido mais global do texto-base,

que é a denúncia feita por Renato Russo, a respeito da injustiça e da opressão

social nas classes mais carentes, refletindo desde muito cedo na vida das crianças,

como se fosse algo hereditário. Renato Russo, ao fazer a sua denúncia, instiga os

jovens a lutarem pelos direitos humanos e pela cidadania a todos os brasileiros,

como se vê em: “Vocês venceram essa batalha / Quanto à guerra / Vamos ver.”

A cidadania implica uma interação entre o nativo e o Estado: o cidadão tem deveres

com o Estado e este deveres com o cidadão. As classes sociais carentes

brasileiras têm deveres com o Estado, contribuem com seu trabalho para a

produção econômica do país; mas o Estado não tem deveres com essas classes

sociais, que para sobreviverem ou se tornam marginais, bandidos e traficantes, ou

são ignoradas, banidas do contexto social.

3.1.4.2 Intertexto 2: Baader-Meinhof Blues

O Intertexto 2 está intertextualizado com o texto-base pela similitude de

representação entre os membros da Facção Baader-Meinhof e João de Santo

Cristo, que compreende a luta contra a opressão e a injustiça estatal com o povo.

Da mesma forma que os membros da Facção Baader-Meinhof foram militantes,

batalhadores, idealistas e praticaram muita violência, João de Santo Cristo luta para

ser um bom e honesto trabalhador, mas o que ganha não dá para comer. Assim,

para realizar o sonho de implorar a ajuda, a compaixão do Presidente da República

“pra ajudar toda essa gente / que só faz sofrer”, ele luta, cai na marginalidade e é

morto.

Texto-base Intertexto 2

E João não conseguiu o que queria Já estou cheio de me sentir vazio

Quando veio pra Brasília Meu corpo é quente e já estou sentindo frio

Com o diabo ter. Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber

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Ele queria era falar pro presidente Afinal, amar ao próximo é tão demodé.

Pra ajudar toda essa gente

Que só faz sofrer.

Não entendia como a vida funcionava A violência é tão fascinante

Discriminação por causa de sua classe, sua cor E nossas vidas são tão normais

Essa justiça desafinada

É tão humana e tão errada

Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar Não estatize meus sentimentos

Ele queria era falar pro presidente Pra seu governo

O meu estado é independente.

O Intertexto 2 relaciona-se ao texto-base por uma narrativa de idealistas, que lutam

pela justiça e contra a opressão social; todavia, na conclusão da primeira narrativa,

há o extermínio pela violência e na segunda, o contexto é de violência, porém há

um clamor pela resistência do cidadão ao extermínio de sua identidade.

3.1.4.3 Intertexto 3: Metrópole

O Intertexto 3 expande o excesso de deveres impostos pela burocracia estatal à

população brasileira e focaliza a televisão como o veículo que transforma o

desastre em evento festivo.

Texto-base Intertexto 3

Sem carteirinha não tem atendimento

Olha o tumulto: façam fila por favor.

Santo Cristo não sabia o que fazer É sangue mesmo, não é mertiolate

Quando viu o repórter na televisão E todos querem ver

Que deu notícia do duelo na TV E comentar a novidade

Dizendo a hora e o local e a razão. É tão emocionante ver um acidente de

verdade

No sábado então, às duas horas Estão todos satisfeitos

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Todo o povo sem demora foi lá só pra assistir Com o sucesso do desastre

Só para assistir Vai passar na televisão.

E a gente da TV filmava tudo ali.

E Santo Cristo com a Winchester-22

Deu cinco tiros no bandido traidor

Maria Lúcia se arrependeu depois

E morreu junto com João, seu protetor.

O Intertexto 3 está intertextualizado com o texto-base, de forma a denunciar o papel

da televisão, que dá acesso ao público às diferentes formas de violência social,

gerando sua banalização e induzindo as pessoas a aprenderem a ser marginais,

como se vê em: “Assistia o jornal da TV / E aprendi a roubar pra vencer” (Intertexto 1: O

reggae).

3.1.4.4 Análise dos intertextos e “Faroeste Caboclo”, em relação

ao marco de cognição social

Considerando-se que a sociedade capitalista não aceita o fracassado – o homem

do povo – e o marginaliza até a destruição e que esse rótulo de “fracassado” está

no marco de cognição social da classe dominante, o cronista Renato Russo opõe-

se a esse ponto de vista, quando aponta essa sociedade capitalista como

responsável por essa condição do homem, apresentando-o como vítima.

Nesse sentido, o texto “O reggae” estabelece uma relação de adesão ao ponto de

vista do cronista, complementando-o, mostrando um homem que, desde criança,

está fadado a “engolir” todas as imposições culturais e ideológicas da sociedade,

novamente na condição de vítima:

“Beberam o meu sangue e não me deixam viver / Têm o meu destino pronto e não

me deixam escolher / Vêm falar de liberdade pra depois me prender / Pedem

identidade pra depois me bater / Tiram todas as minhas armas / Como posso me

defender?”

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Embora foquem questões no âmbito existencial, os outros dois

intertextos estabelecem a mesma relação de adesão ao texto-base: “Baader-

Meinhof blues” aborda os temas indiferença social e solidão, enquanto “Metrópole”

trata, também, da indiferença social e da alienação; porém, ambos apresentam o

homem como vítima da sociedade.

Buscando-se analisar a relação entre texto-base e seus intertextos, serão

destacadas algumas saliências encontradas na superfície textual do texto-base,

estabelecendo relações cotextuais:

• A criança e a herança cultural

Em “Faroeste Caboclo”, a referência a João de Santo Cristo, quando criança, indica

que a violência fazia parte de seu mundo, nessa fase. Pela própria ingenuidade

característica da infância, é comum uma criança querer imitar o comportamento

das pessoas que a cercam, quase sempre vistas como “seus heróis”,

independentemente da avaliação social de tal conduta. João, ao ver o pai morto,

por um policial – o agente repressor da violência – vem à tona o desejo exacerbado

de vingança, encarnado na figura do bandido.

Em “O reggae”, há complementação dessa ideia: a criança representa a fase em

que os valores culturais e ideológicos são impostos ao indivíduo,

independentemente de sua vontade:

“Como eu sentia vontade de ir embora / Fazia tudo que eles quisessem / Acreditava

em tudo que eles me dissessem / Têm o meu destino pronto e não me deixam

escolher”.

Há, também, referência bíblica, utilizando-se de um paradoxo: “Quantas crianças

Deus já tinha matado.”, em que a intenção do autor é criticar e até ironizar – quando

responsabiliza Deus pela morte de crianças – um traço cultural marcante, a

religiosidade imposta pela instituição familiar, que, teoricamente, estaria pautada

em valores humanos defendidos pelo Cristianismo – amor, justiça, dignidade,

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verdade, solidariedade, entre outros – mas que, na prática, são ignorados e

desrespeitados. Enfatiza-se aqui, o distanciamento entre o falar e o agir, em que

adultos impõem às crianças suas crenças cristalizadas interiormente, porém, não

vivificadas através de exemplos.

• O conflito existencial

Em “Faroeste Caboclo”, tem-se: “Não entendia como a vida funcionava - / Discriminação

por causa de sua classe, sua cor / Ficou cansado de tentar achar resposta”.

E, em “O reggae”, tem-se: “Ninguém me perguntou se eu estava pronto / E eu fiquei

completamente tonto / Procurando descobrir a verdade / Nos meios das mentiras da

cidade”.

Em ambos os textos, fica evidente tratar-se de um “EU” questionador, em fase de

formação e que busca entender como funciona essa engrenagem social, diante da

complexidade existencial.

Com outro enfoque, “Baader-Meinhof Blues” denuncia a questão da indiferença

social, do individualismo exacerbado e da falta de solidariedade, provocando um

“vazio”, ou seja, retrata a profunda solidão do indivíduo, em meio a uma multidão,

gerando o conflito existencial:

“Andando nas ruas / Pensei que podia ouvir / Alguém me chamando / Dizendo meu

nome. /Já estou cheio de me sentir vazio / Meu corpo é quente e estou sentindo frio

/ Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber / Afinal, amar o próximo é tão

demodé.”

Em “Metrópole”, também, aparece a questão do individualismo exacerbado:

“Eu sinto muito mas já passa do horário. / Entendo seu problema mas não posso

resolver: / É contra o regulamento, está bem aqui, pode ver. / E agora eu vou indo

senão perco a novela / E eu não quero ficar na mão.”

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Nota-se, aqui, a ambiguidade das relações: o “EU” mostra-se sensibilizado com a

situação do “OUTRO”, porém, o que prevalece são seus interesses próprios, como

que energizados em torno de si mesmos.

• A mídia televisiva

“Ele queria sair para ver o mar / E as coisas que ele via na televisão” – (Faroeste

Caboclo).

Restringindo-se à área de entretenimento, evidencia-se, aqui, o fascínio exercido

pela televisão nas pessoas de classes inferiores, pois o que se veicula na televisão

é o mundo da classe dominante, para a qual a ênfase deve estar no belo. Logo,

retrata o diferente, o novo, o desconhecido e, por vezes, mágico, para essa

população marginalizada, representada, no texto, por João de Santo Cristo, vivendo

no interior da Bahia.

Entretanto, quando o foco é a área jornalística, o que se vê nos textos é a violência

televisionada, criando o efeito de espetáculo moderno que desperta o interesse das

pessoas, mas não as sensibiliza; é a comercialização dos eventos metropolitanos,

expondo a submissão e a domesticação acrítica dos que a assimilam, como se vê

em “Metrópole”:

“É sangue mesmo, não é mertiolate / E todos querem ver / E comentar a novidade. /

É tão emocionante um acidente de verdade / Estão todos satisfeitos / Com o

sucesso do desastre: / Vai passar na televisão”.

Já em “Baader-Meinhof Blues”, a crítica está na massificação da televisão, em

que o geral se sobrepõe ao individual; critica-se a atuação da televisão em prol dos

interesses ideológicos das classes dominantes e, portanto, apresenta um retrato fiel

da sociedade, sob o comando dessa mesma elite; é a tentativa de predomínio

absoluto sobre o indivíduo, pertencente às camadas sociais inferiores, simulando,

reproduzindo e encenando o discurso geral, ideologizado:

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“Essa justiça desafinada / É tão humana e tão errada / Nós assistimos televisão

também / Qual a diferença? / Não estatize meus sentimentos / Pra seu governo, / O

meu estado é independente.”

3.1.5 Outros Intertextos: com referências bíblicas

A narrativa “Faroeste Caboclo” apresenta várias referências bíblicas, a começar

pelo protagonista que traz como sobrenome “Santo Cristo”, uma menção explícita

ao Cristianismo, no aspecto semântico. Entretanto, o que causa estranhamento é o

fato dessa referência estar ligada ao nome de um personagem fora-da-lei. Outras

referências conflitantes aparecem no texto como:

“... o ódio que Jesus lhe deu.”

“... um tal Jeremias, traficante de renome...”

“... Maria Lúcia, aquela menina falsa ... “

Jesus, Jeremias, Maria e Lúcia são nomes ligados ao Cristianismo e, portanto,

possuem valores positivos; todavia, no texto, adquiriram valores negativos. Há,

também, citação de outros termos, com a mesma força semântica: crucificado,

igreja, carpinteiro, salvar, inferno, sangue, perdão, diabo.

Percebe-se, claramente, que a narrativa desenvolve-se a partir da tríade

sociedade/indivíduo/religião, estabelecendo-se uma inter-relação de oposição. E

que numa sociedade capitalista é fácil compreender essa antítese, sociedade

versus indivíduo. Entretanto, o que deixa dúvida é o fato de valores

positivos cristãos estarem, paradoxalmente, ligados a valores negativos sociais.

Por este motivo, o propósito, aqui, é buscar compreender por que tantas citações

bíblicas e qual a intenção do autor ao empregar tantos paradoxos e, para isso,

outros textos de Renato Russo, com referências similares, serão analisados e

comparados com o texto-base.

Os outros intertextos selecionados, com referências bíblicas, são:

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• Depois do começo (Anexo 8)

Um texto que propõe o desequilíbrio, uma inversão na ordem das coisas, como

forma de ruptura com o aparente equilíbrio vigente, resultado da alienação social.

Nesse contexto às avessas, a religião, também, se enquadra: clama por Deus,

mas, ao mesmo tempo, se declara ateu, ou seja, fica explícito o aspecto da

religiosidade, em que as pessoas simplesmente verbalizam uma crença herdada,

mas não demonstram opção por uma religião, como em:

“Abrir a geladeira e deixar o vento sair

Cuspir um dia qualquer no futuro

De que já desapareceu

Deus, Deus, somos todos ateus.”

Há uma proposta de substituir a retórica pela ação, substituir um Deus divino por

um deus plebeu, na tentativa de reverter a contemplação pela ação, como se vê

em:

“Vamos cortar os cabelos do príncipe

E entregá-los a um deus plebeu.”

• Se fiquei esperando meu amor passar (Anexo 9)

Faz uma exaltação ao amor, um sentimento que liberta o homem de suas

inseguranças, tornando-o forte, confiante em si mesmo e capaz de transcender o

corpo físico, chegando ao plano espiritual. Desliga-se do plano material e

sintoniza-se com o espiritual, momento em que o “EU” atinge, mentalmente, esse

plano espiritual, como se estivesse conversando com Deus:

“Começo a ficar livre

Espero. Acho que sim.

De olhos fechados não me vejo

E você sorriu pra mim

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo

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Tende piedade de nós

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo

Tende piedade de nós

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo

Daí-nos a paz ...”

• Índios (Anexo 10)

Retrata o inconformismo do “EU” diante das atitudes humanas, representadas pelo

“OUTRO” no texto. E desse inconformismo advém o lamento (“Quem me dera”)

presente em todo o texto, por não conseguir entender a ganância, o egoísmo e as

contradições humanas. E a religiosidade, tão marcante na instituição familiar,

também está presente como herança recebida pelo “EU” e que ele tenta

compreender: o mistério da Santíssima Trindade. Ao mesmo tempo, mais uma vez,

questiona a relação amor a Deus e amor ao próximo, tão próximas, na teoria, mas

distantes, na prática.

“Quem me dera

Ao menos uma vez

Entender como um só Deus

Ao mesmo tempo é três

Esse mesmo Deus

Foi morto por vocês

Sua maldade, então

Deixaram Deus tão triste.

Quem me dera

Ao menos uma vez

Acreditar por um instante

Em tudo que existe

E acreditar

Que o mundo é perfeito

Que todas as pessoas

São felizes.”

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• Pais e Filhos (Anexo 11)

Aborda a relação entre pais e filhos e os problemas que interferem nessa relação:

separação dos pais, conflitos de geração, crianças abandonadas e, como solução,

para todos esses problemas, propõe o amor incondicional. A questão da

religiosidade familiar aparece, agora, de forma mais explícita:

“Meu filho vai ter

Nome de santo

Uummhumm!

Quero o nome

Mais bonito ...”

• Geração Coca-Cola (Anexo 12)

A temática desse texto é um protesto à força da indústria americana no Brasil

e ao consumismo ingênuo do povo brasileiro, denominado Geração Coca-Cola. Os

autores desse protesto são os filhos dessa geração, que se intitulam burgueses

sem religião, o que significa ruptura com toda a herança familiar e remete à

pressuposição de que, o que restou, foi apenas religiosidade:

“Quando nascemos fomos programados

A receber o que vocês

Nos empurraram com os enlatados

Dos U.S.A., de nove as seis.

Somos os filhos da revolução

Somos burgueses sem religião

Somos o futuro da nação

Geração Coca-Cola.”

• Sagrado Coração (Anexo 13)

Esse título remete à expressão do Cristianismo “Sagrado Coração de Jesus” e,

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para se obter melhor fundamentação, realizou-se uma pesquisa, em site da

Internet, sobre o seu significado:

“Sagrado Coração de Jesus é uma devoção praticada pela Igreja Católica, que se

comemora todas as primeiras sextas-feiras de cada mês. Consiste na veneração do

Coração de Jesus. A origem desta devoção deve-se a Santa Margarida Maria

Alacoque, uma religiosa de uma Congregação conhecida como Ordem da

Visitação. A Santa Margarida Maria teve extraordinárias revelações por parte de

Jesus Cristo, que a incumbiu pessoalmente de divulgar e propagar no mundo esta

piedosa devoção.”

A partir dessa definição, nota-se que o texto “Sagrado Coração” enfatiza o

distanciamento entre fé e ação, entre o que se diz e o que se faz. O “EU” se

pergunta quem é e onde está esse ser divino, tão poderoso, que “permite” esse

caos social; enfatiza-se o hiato existente entre fé e prática social, fato que o

impossibilita de aceitar o mistério da fé cristã:

“Falam de algum lugar

Mas onde é que está?

Onde há virtude e inteligência

E as pessoas são sensíveis

E que a luz no coração

É o que pode me salvar

Mas não acredito nisso

Tento mas é só de vez em quando

Onde está este lugar?

Onde está essa luz?

Se o que vejo é tão triste

E o que fazemos tão errado?”

Porém, apesar da dificuldade em compreender esse mistério, redime-se a esse

sentimento de fé, suplicantemente, como única prerrogativa para encontrar ajuda e

conforto ao seu coração. Ao mesmo tempo que questiona esse hiato, deixa claro

que, diante de tantos problemas existenciais e sociais, só há uma opção: apelar

para o divino:

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“Por isso lhe peço por favor

Pense em mim, ore por mim

E me diga:

_ Este lugar distante está dentro de você

E me diga que nossa vida é luz

Me fale do sagrado coração

Porque eu preciso de ajuda”

Após as análises desses intertextos, conclui-se que a religiosidade é uma temática

bastante presente nos textos de Renato Russo e que, assim como os demais

temas abordados por ele, tem como objetivo conduzir os leitores à reflexão, a

questionamentos acerca da sociedade vigente. Há uma ênfase sobre esse hiato

existente entre fé e ação e esta é mais uma das questões sociais repercutidas nas

letras de música do autor.

3.1.6 Conclusões obtidas das análises dos intertextos

O texto “Faroeste Caboclo” está enquadrado no gênero crônica, visto que é um

texto opinativo, que tem por tema o cotidiano, construído de forma narrativa.

Entretanto, não se trata de linguagem do cotidiano, pois, sua expressão linguística

foi construída com a linguagem poética e organizada de forma argumentativa, fato

que se observa, também, em outros intertextos.

Quando a análise estava centrada apenas no texto-base, as inferências e a

compreensão do texto ficaram reticentes e a necessidade de buscar outros textos

de Renato Russo tornou-se latente. A partir de então, após analisar vários outros

textos, por similitude temática, percebe-se, nitidamente, que a matéria-prima

dessas letras do autor é a complexidade existencial da vida moderna, com todas

suas ramificações temáticas possíveis, indicando uma leitura mais negativa do que

positiva, quanto às possíveis soluções.

Ler esses textos de Renato Russo significa lidar com as contradições o tempo todo,

já que essas letras tentam reproduzir as contradições presentes na vida humana.

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Explicita que a esfera particular não está dissociada da esfera social e que a

dimensão pessoal está, cotidianamente, em confronto com a dimensão coletiva,

provocando um dos conflitos mais característicos da vida moderna, o existencial,

frente às dificuldades sociais. Alguns temas como cura, salvação, redenção e

transfiguração são os efeitos almejados pela poética de Renato Russo e, apesar

das tentativas explícitas de transmitir positividades, há um tom melancólico e

desencantado com a sociedade vigente.

O que Renato Russo fez foi dar voz a um “EU” que, por vezes, decodifica o seu

mundo, mas que noutras vezes não, negando-o, omitindo-o, por um processo

criativo de fingimento. O “EU” joga a culpa no “OUTRO”, fazendo-se de vítima,

seguindo uma lógica discursiva em que o “EU” encarna o “OUTRO” para criticá-lo,

ou seja, afirmando e criticando, ao mesmo tempo.

O “EU” é visto, não como mero espectador alheio ao ritual da vida ao seu redor,

mas, como convém a alguém que já conhece o seu papel, sendo tanto vítima,

quanto participante ativo. É, ao mesmo tempo, ator e contemplador, sendo, por

vezes, “EU” e “ELE” dentro do discurso, fundamentados pelo uso constante de

paradoxos.

Numa focagem crítica, vê-se que a própria dinâmica da sociedade brasileira e das

relações existenciais foram contempladas em versos, estando sempre submissas a

um processo histórico-social que, no mundo atual, assimilam-se as contradições de

classe, como por exemplo, em “Faroeste Caboclo”, em que João recebe o nome de

santo, por herança familiar de religiosidade e torna-se um bandido.

Tanto no tema sobre a mídia televisiva, quanto sobre a religiosidade, enquanto

herança familiar, o que se vê é uma tentativa de ridicularizar, criticamente, os

artifícios da alienação, simulando, reproduzindo e encenando o discurso geral

ideologizado. E, a partir dessa ridicularização, assumindo o discurso dos outros, o

autor revela a ineficácia dessa postura, expondo a sua essência egoísta e, ao

mesmo tempo, revelando a submissão e a domesticação acrítica daqueles que a

assimilam.

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Percebe-se um discurso em tom catártico, na tentativa de reproduzir a sensação do

indivíduo, diante de uma sociedade em estado agonizante, em que o autor revela

seu desejo de resgatar a pureza básica do ser humano, reconstruindo-o ou

dignificando-o, de alguma maneira, denunciando os esquemas de desintegração

que rechaçam esse objetivo.

Ao mesmo tempo em que suas letras possuem esse tom melancólico, diante da

situação caótica do país, ele, também, trata de amor, como que um antídoto a tanta

dor, a tanto sofrimento. João de Santo Cristo apaixona-se por Maria Lúcia e, apesar

desse amor não ser bem sucedido, ele representa a possibilidade de resgate de um

cidadão, fora da lei, voltar a comportar-se de acordo com as regras sociais.

É como se o amor o aliviasse, o anestesiasse, diante das dores sofridas pela

injustiça social, conduzindo-o à alienação, ao conformismo com a situação. Nessa

mesma perspectiva apresenta-se o amor universal, o amor a Deus. Diante de

tantas inquietações e aflições, só resta uma opção: apelar para o divino, para o

plano espiritual.

Todavia, até mesmo esse Ser Supremo é questionado pelo eu-poético, quando não

consegue entender como esse Ser, que diz amar seus filhos, pode permitir que eles

sofram tanto. Por isso, usando de ironia, atribui a Jesus sentimentos antagônicos,

como, por exemplo, em “Faroeste Caboclo”, quando cita que João sentia ódio –

concedido por Jesus – desde criança.

O intento de Renato Russo é conduzir o leitor a uma reflexão sobre a questão

da religiosidade versus a questão social, em que a primeira se estabelece, apenas,

no plano da intencionalidade das pessoas e a segunda se estabelece na

realidade concreta do cotidiano dessas pessoas e, para a qual, propõe uma saída:

lutar contra essa situação, trocando a apatia pela ação e o egoísmo pela

solidariedade.

Consequentemente, denuncia as desigualdades sociais e apresenta os grupos do

Poder Institucionalizado, impondo suas ideologias aos grupos subalternos, cujo

objetivo é a manutenção dessa estrutura social, que atende, exclusivamente, a

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seus interesses. Denuncia o Poder institucionalizado, através do personagem João

de Santo Cristo, um sertanejo nordestino, que simboliza a decepção, a falta de

perspectiva, a luta pela sobrevivência, encarnando o papel pertencente ao grupo

social dos excluídos, socialmente.

Em síntese, tanto o texto-base, quanto os três intertextos analisados, todos de

Renato Russo, são textos da classe narrativa, modificados em um texto opinativo,

crônica do cotidiano e todos estão monofonizados pela denúncia social,

representada por uma polaridade de valores.

Os valores positivos/negativos, impostos como representações sociais pela classe

dominante, estão invertidos em relação aos valores positivos/negativos das classes

mais carentes. Essa inversão é denunciada como uma ausência de diálogo e de

preocupação da elite com o povo e está explicitada no Intertexto 2, por: “Todo

mundo sabe e ninguém quer mais saber / Afinal amar o próximo é tão démodé.”

Dessa forma, a opressão, a miséria e a marginalidade são representadas, pelas

classes elitistas, como objeto de curiosidade. No Intertexto 3, a denúncia de Renato

Russo está focalizada na mídia que, ao invés de se preocupar com os direitos

humanos das classes mais carentes, transforma a injustiça social em objeto de

curiosidade para os telespectadores.

Quando se pensa no perfil dos informantes-alunos, da escola pública Caetano de

Campos – Consolação, através da pesquisa para escolha do texto-base, realizada

inicialmente, há de se destacar os seguintes números: vinte e seis por cento

desses alunos e quarenta por cento de seus pais são egressos de cidades

nordestinas; vinte e seis por cento dos alunos e seis por cento de seus pais

nasceram em São Paulo; quarenta e oito por cento dos alunos e cinquenta e quatro

por cento de seus pais nasceram no interior de São Paulo e em outros estados.

Constatou-se, então, que setenta e quatro por cento desses alunos e noventa e

quatro por cento de seus pais deixaram suas cidades de origem, para viverem em

São Paulo, o que permite afirmar que o perfil desses alunos assemelha-se ao perfil

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de João de Santo Cristo, que deixa sua terra natal e migra para grandes centros

urbanos, em busca de melhores condições de vida.

O sertanejo nordestino, representado por João de Santo Cristo, é alguém que, por

herança familiar, já nasce sem identidade social, sem cidadania e, ao tentar

resgatá-la, vê-se como muitos outros brasileiros, que, ao migrarem de suas cidades

de origem para os grandes centros urbanos, fugindo da marginalidade, acabam,

igualmente, marginalizados, nesses grandes centros, impossibilitados de romper

essa barreira social, tão fortemente construída pelo Poder Institucionalizado.

Dessa forma, conclui-se que a identificação com Renato Russo e suas

composições dá-se pelo saber constituído através do experienciado ou pelo

conhecimento de mundo adquirido em seus grupos sociais. Renato Russo retrata

uma camada social brasileira excluída socialmente e, para seus admiradores,

simboliza o “grito dos excluídos”, disseminados por toda parte do nosso país.

Ao se encerrar este capítulo, retoma-se a pergunta que orientou a investigação

realizada:

- No atual conflito existente entre os diferentes grupos sociais de alunos, de

uma mesma sala de aula, o que pode, unitariamente, identificá-los a papéis

sociais e quais valores são atribuídos a esses papéis?

A pesquisa realizada possibilita a seguinte resposta:

Os alunos de uma mesma sala de aula, de uma escola pública paulistana,

pertencem a grupos sociais diferentes, percorrendo desde grupos elitistas até mais

carentes. A idade média dos informantes da pesquisa é de quinze anos e, portanto,

em plena adolescência. Segundo os psicólogos, a adolescência é um período

intermediário entre a infância e a vida adulta e, nesse período, os jovens já estão

expostos às diferentes estruturas sociais de seus grupos e já têm as

representações avaliativas dos papéis sociais que compõem cada estrutura.

Outrossim, ainda segundo os psicólogos, a busca por uma identidade única é um

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dos problemas que adolescentes, frequentemente, encaram, desafiando

autoridades e regras, como um caminho para se estabelecerem como indivíduos.

E, nesse sentido, não aceitam a imposição ideológica do Poder político e

econômico e identificam-se com papéis sociais representados por artistas

idealistas, justiceiros e lutadores por sobrevivência, atuando como modelos de

comportamento.

Portanto, as representações, em língua, das músicas de Renato Russo, constróem,

para eles, novas formas de conhecimento, a partir da denúncia da desigualdade

social, demonstrando uma identificação tanto com os papéis, quanto com a

denúncia.

Essa empatia entre autor e público jovem dá-se pela utilização de determinados

elementos linguísticos e semânticos, focando diretamente o universo juvenil e

revelando-se como alguém que compreende os problemas, os conflitos e

apreensões desses jovens. Incorpora, em seus textos, a complexidade

característica da adolescência, ajudando-os a refletir sobre sua condição pessoal e

social, apresentando-lhes caminhos, que podem ou não ser trilhados.

Utiliza-se de um discurso em que reaparecem as imagens do cotidiano

adolescente, remodeladas em uma linguagem atraente a esses jovens, a musical,

revelando um pouco da história de cada jovem e, consequentemente, valorizando-

o, fato que, muitas vezes, é negado pela sociedade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No término desta dissertação, os objetivos orientadores da pesquisa são revistos,

tendo como Objetivo Geral, contribuir para os estudos dos papéis sociais, em

diferentes grupos sócio-culturais brasileiros.

Acredita-se que a descrição dos papéis sociais, nas estruturas sociais dos

diferentes grupos representados no texto-base e retomados nos intertextos

analisados, possa contribuir com os estudos discursivos dos diferentes grupos

sócio-culturais brasileiros e sua inter-relação com os grupos sócio-ideológicos

brasileiros.

Entende-se que as ideologias grupais têm suas origens nas culturas sociais, porém

são modificadas e podem ser examinadas pelas categorias analíticas: Poder,

Controle e Acesso ao público, de forma a denunciar o domínio das mentes no e

pelos discursos institucionais.

Os Objetivos Específicos são:

1. identificar os diferentes papéis sociais que compõem a estrutura da

sociedade do nosso sertanejo nordestino, que migra de sua região em

busca da sobrevivência, em um grande centro urbano.

Os resultados obtidos indicam que o sertanejo nordestino, extragrupalmente, tem

uma estrutura social organizada, com os seguintes papéis:

• Grupo Social: da Família, representado pelo papel de consanguinidade.

• Grupo Social: dos mais Carentes, representado pelo papel do marginal

(que é preso ou morto pela polícia); pelo papel do professor na escola;

pelo papel da igreja na coleta de dinheiro; pelo papel do soldado, que

mata quem pratica infração; e esse conjunto de papéis é representado

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pelo “marasmo da fazenda”. O papel mais hierarquizado é o de “João de

Santo Cristo”, que representa a marginalidade social, como se vê em:

“Quando criança só pensava em ser bandido

Era o terror da cercania onde morava.”

“E na escola até o professor com ele aprendeu”

“Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”

“Sentia mesmo que era mesmo diferente”

O segundo Objetivo Específico é:

2. examinar qual funcionamento esses papéis têm entre si, a partir da

interação do sertanejo nordestino, com outros grupos sociais.

Esses papéis interacionam-se, de forma a:

• incluir o sertanejo nordestino no grupo social da metrópole, composto por

pessoas que trabalham, arduamente, e não conseguem obter dinheiro

para sobreviverem;

• incluir o sertanejo nordestino em grupo de marginais traficantes, onde

obtém ascensão social ao dinheiro e, consequentemente, ao Poder;

• incluir o sertanejo nordestino no grupo social de criminosos, onde é

julgado e preso, por ser de grupo social carente.

O terceiro e último Objetivo Específico é:

3. reconhecer os valores culturais e ideológicos, contidos na representação

dos diferentes papéis sociais examinados.

Os valores culturais implicam, tanto a cultura da elite, quanto a cultura popular. Na

cultura da elite, os grupos sociais têm cidadania e justiça social, podendo, até

mesmo, serem marginais, pois o dinheiro dá, a eles, prestígio social. Na cultura

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popular, o desejo da sobrevivência guia as ações das pessoas, tornando-as

migrantes, em busca de uma vida melhor, nas grandes metrópoles.

Dessa forma, os valores culturais positivos são atribuídos a ter uma casa, comida,

amigos e fé. Os valores ideológicos da elite estão relacionados, positivamente, a ter

Poder: Poder de decisão, Poder de julgamento, Poder de premiar e Poder de

castigar. O Poder é exercido pelas pessoas que o detém, sempre visando a sua

manutenção e, por essa razão, discriminam qualquer grupo social que ameace a

perda desse Poder.

Assim sendo, o grupo ideológico das classes mais carentes atribui valor positivo à

submissão, por reprodução ideológica do Poder, o que impede a mudança no

Poder e, dessa forma, ideologicamente, são representadas como pessoas

incapazes e medrosas, pois só assim serão submissas.

A hipótese orientadora da pesquisa mostrou-se adequada, pois as cognições

sociais dos alunos são relativas a grupos sociais diferentes. Todavia, há cognições

extra-grupais, construídas pelos discursos públicos, no caso, as músicas de

Renato Russo, que dão origem a uma unidade imaginária, que é a luta pela

liberdade, contra a opressão e a desigualdade social.

Dessa forma, passam a representar:

“Já estou cheio de me sentir vazio

Meu corpo é quente e estou sentido frio.

Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber

Afinal, amar o próximo é tão demodê.”

Essa representação opõe-se à:

“essa justiça desafinada

é tão humana e tão errada

(...)

Não estatize meus sentimentos

Pra seu governo

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Meu estado é independente.”

Essas representações estão interacionadas com o desejo de mudança, expresso

em:

“Vocês venceram essa batalha

quanto à guerra

vamos ver.”

Esta dissertação não se quer conclusiva, pois entende-se que ela abre perspectiva

para a denúncia do domínio das mentes pelos discursos públicos,

institucionalizados pelo Poder. Ao prosseguir essa pesquisa far-se-á necessário

levantar as diferentes representações sociais, inter e extragrupais, de forma a abrir

perspectivas para estudos identitários do brasileiro.

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A N E X O 1

QUE PAÍS É ESTE Renato Russo Nas favelas, no senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a constituição Mas todos acreditam no futuro da nação Que país é esse No amazonas, no araguaia iá, iá, Na baixada fluminense Mato grosso, minas gerais e no Nordeste tudo em paz Na morte o meu descanso, mas o Sangue anda solto Manchando os papéis e documentos fiéis Ao descanso do patrão Que país é esse Terceiro mundo, se for Piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios num leilão Que país é esse

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A N E X O 2

CONEXÃO AMAZÔNICA Renato Russo / Felipe Lemos Estou cansado de ouvir falar Em Freud, Jung, Engels, Marx Intrigas intelectuais Rodando em mesa de bar Yeah, yeah, yeah, O que eu quero eu não tenho O que eu não tenho eu quero ter Não posso ter o que eu quero E acho que isso não tem nada a ver Yeah, yeah, yeah, Os tambores da selva já começaram a rufar A cocaína não vai chegar Conexão amazônica está interompida Yeah, yeah, yeah, E você quer ficar maluco sem dinheiro e acha que está tudo bem Mas alimento pra cabeça nunca vai matar a fome de ninguém Uma peregrinação involuntária talvez fosse a solução Auto-exílio nada mais é do que ter seu coração na solidão Yeah, yeah, yeah!

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A N E X O 3

TÉDIO (com um T bem grande pra você) Renato Russo Moramos na cidade, também o presidente E todos vão fingindo viver decentemente Só que eu não pretendo ser tão decadente não

Tédio com um T bem grande pra você Andar a pé na chuva, às vezes eu me amarro Não tenho gasolina, também não tenho carro Também não tenho nada de interessante pra fazer Tédio com um T bem grande pra você Se eu não faço nada, não fico satisfeito Eu durmo o dia inteiro e aí não é direito Porque quando escurece, só estou a fim de aprontar Tédio com um T bem grande pra você

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A N E X O 4 EU SEI Renato Russo Sexo verbal Não faz meu estilo Palavras são erros E os erros são seus... Não quero lembrar Que eu erro também Um dia pretendo Tentar descobrir Porque é mais forte Quem sabe mentir Não quero lembrar Que eu minto também... Eu sei! Eu sei!... Feche a porta do seu quarto Porque se toca o telefone Pode ser alguém Com quem você quer falar Por horas e horas e horas... A noite acabou Talvez tenhamos Que fugir sem você Mas não, não vá agora Quero honras e promessas Lembranças e histórias... Somos pássaro novo Longe do ninho Eu sei! Eu sei!...

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A N E X O 5 MAIS DO MESMO Renato Russo / Dado Villa-Lobos / Renato Rocha / Marcelo Bonfá Ei menino branco o que é que você faz aqui Subindo o morro pra tentar se divertir Mas já disse que não tem E você ainda quer mais Por que você não me deixa em paz? Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim E agora você quer que eu fique assim igual a você É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui? Quem vai tomar conta dos doentes? E quando tem chacina de adolescentes Como é que você se sente? Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel. Sempre mais do mesmo Não era isso que você queria ouvir? Bondade sua me explicar com tanta determinação Exatamente o que eu sinto, como penso e como sou Eu realmente não sabia que eu pensava assim E agora você quer um retrato do país Mas queimaram o filme E enquanto isso, na enfermaria Todos os doentes estão cantando sucessos populares. (e todos os índios foram mortos).

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A N E X O 6 ANGRA DOS REIS Renato Russo / Renato Rocha / Marcelo Bonfá Deixa, se fosse sempre assim Quente, deita aqui perto de mim Tem dias, que tudo está em paz E agora os dias são iguais Se fosse só sentir saudade Mas tem sempre algo mais Seja como for É uma dor que dói no peito Pode rir agora que estou sozinho Mas não venha me roubar Vamos brincar perto da usina Deixa prá lá, a angra é dos reis Por que se explicar se não existe perigo? Senti teu coração perfeito batendo à toa E isso dói Seja como for É uma dor que dói no peito Pode rir agora que estou sozinho Mas não venha me roubar Vai ver que não é nada disso Vai ver que já não sei quem sou Vai ver que nunca fui o mesmo A culpa é toda sua e nunca foi Mesmo se as estrelas começassem a cair E a luz queimasse tudo ao redor E fosse o fim chegando cedo E você visse o nosso corpo em chamas! Deixa pra lá. Quando as estrelas começarem a cair Me diz, me diz pra onde é que a gente vai fugir?

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A N E X O 7

QUÍMICA Renato Russo Estou trancado em casa e não posso sair Papai já disse, tenho que passar Nem música eu não posso mais ouvir E assim não posso nem me concentrar Não saco nada de Física Literatura ou Gramática Só gosto de Educação Sexual E eu odeio Química Não posso nem tentar me divertir O tempo inteiro eu tenho que estudar Fico só pensando se vou conseguir Passar na porra do vestibular Chegou a nova leva de aprendizes Chegou a vez do nosso ritual E se você quiser entrar na tribo Aqui no nosso Belsen tropical Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão Ter filho na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão Você tem que passar no vestibular.

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A N E X O 8 DEPOIS DO COMEÇO Renato Russo Vamos deixar as janelas abertas E deixar o equilíbrio ir embora Cair como um saxofone na calçada Amarrar um fio de cobre no pescoço Acender o intervalo pelo filtro Usar um extintor como lençol Jogar pólo-aquático na cama Ficar deslizando pelo teto Da nossa casa cega e medieval Cantar canções em línguas estranhas Retalhar as cortinas desarmadas Com a faca surda que a fé sujou Desarmar os brinquedos indecentes E a indecência pura dos retratos no salão Vamos beber livros e mastigar tapetes Catar pontas de cigarros nas paredes Abrir a geladeira e deixar o vento sair Cuspir um dia qualquer no futuro De quem já desapareceu Deus, Deus, somos todos ateus Vamos cortar os cabelos do príncipe E entregá-los a um deus plebeu E depois do começo O que vier vai começar a ser o fim.

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A N E X O 9 SE FIQUEI ESPERANDO MEU AMOR PASSAR Renato Russo / Marcelo Bonfá / Dado Villa-Lobos Se fiquei esperando meu amor passar Já me basta que então, eu não sabia Amar e me via perdido e vivendo em erro Sem querer me machucar de novo Por culpa do amor Mas você e eu podemos namorar E era simples: ficamos fortes. Quando se aprende a amar O mundo passa a ser seu Quando se aprende a amar O mundo passa a ser seu Sei rimar romã com travesseiro Quero a minha nação soberana Com espaço nobreza e descanso. Se fiquei esperando meu amor passar Já me basta que estava então longe de sereno E fiquei tanto tempo duvidando de mim Por fazer amor fazer sentido. Começo a ficar livre Espero. Acho que sim. De olhos fechados não me vejo E você sorriu pra mim "Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo Tende piedade de nós Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo Tende piedade de nós Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo Dai-nos a paz...”

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A N E X O 10 ÍNDIOS Renato Russo Quem me dera Esse mesmo Deus Assim pude trazer Ao menos uma vez Foi morto por vocês Você de volta pra mim Ter de volta todo o ouro Sua maldade, então Quando descobri Que entreguei a quem Deixaram Deus tão triste. Quem é sempre só você Conseguiu me convencer Que me entende Que era prova de amizade Eu quis o perigo Do início ao fim. Se alguém levasse embora E até sangrei sozinho Até o que eu não tinha Entenda! E é só você que tem Assim eu pude trazer A cura pro meu vício Quem me dera Você de volta pra mim De insistir nessa saudade Ao menos uma vez Quando descobri Que eu sinto Esquecer que acreditei Que você sempre só você De tudo que eu ainda não Que era por brincadeira Que me entende vi. Que se cortava sempre Do início ao fim. Nos deram espelhos Um pano-de-chão E vimos um mundo doente De linho nobre e pura seda E é só você que tem Tentei chorar e não A cura do meu vicio consegui. Quem me dera De insistir nessa saudade Ao menos uma vez Que eu sinto Explicar o que ninguém De tudo que eu ainda não vi. Consegue entender Que o que aconteceu Quem me dera Ainda está por vir Aos menos uma vez E o futuro não é mais Acreditar por um instante Como era antigamente. Em tudo que existe E acreditar Quem me dera Que o mundo é perfeito Ao menos uma vez Que todas as pessoas Provar que quem tem mais São felizes ... Do que precisa ter Quase sempre se convence Quem me dera Que não tem o bastante Ao menos uma vez Fala demais Como a mais bela tribo Por não ter nada a dizer. Dos mais belos índios Não ser atacado Quem me dera Por ser inocente. Ao menos uma vez Que o mais simples fosse visto Eu quis o perigo Como o mais importante E até sangrei sozinho Mas nos deram espelhos Entenda!

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A N E X O 11

PAIS E FILHOS Renato Russo / Dado Villa-Lobos / Marcelo Bonfá Estátuas e cofres Eu moro com a minha mãe E paredes pintadas Mas meu pai vem me visitar Ninguém sabe Eu moro na rua O que aconteceu... Não tenho ninguém Eu moro em qualquer lugar ... Ela se jogou da janela Do quinto andar Já morei em tanta casa Nada é fácil de entender... Que nem me lembro mais Eu moro com os meus pais Dorme agora Huhuhuhu! ... ouh! Ouh! ... Uuummhum! É só o vento É preciso amar as pessoas Lá fora... Como se não houvesse amanhã Por que se você parar Quero colo! Prá pensar Vou fugir de casa Na verdade não há ... Posso dormir aqui Com vocês Sou uma gota d’água Estou com medo Sou um grão de areia Tive um pesadelo Você me diz que seus pais Só vou voltar Não entendem Depois das três... Mas você não entende seus pais ... Meu filho vai ter Você culpa seus pais por tudo Nome de santo Isso é absurdo Uummhum! São crianças como você Quero o nome O que você vai ser Mais bonito... Quando você crescer?

É preciso amar haahaa as pessoas Como se não houvesse amanhã Por que se você parar Prá pensar Na verdade não há... Me diz, por que que o céu é azul Explica a grande fúria do mundo São meus filhos Que tomam conta de mim...

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A N E X O 12

GERAÇÃO COCA-COLA

Renato Russo / Fê Lemos

Quando nascemos fomos programados Vamos fazer nosso dever de casa A receber o que vocês E aí então vocês vão ver Nos empurraram com os enlatados Suas crianças derrubando reis Dos U.S.A., de nove as seis. Fazer comédia no cinema com as suas leis. Desde pequenos nós comemos lixo Comercial e industrial Somos filhos da revolução Mas agora chegou nossa vez Somos burgueses sem religião Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola Somos os filhos da revolução Geração Coca-Cola Somos burgueses sem religião Geração Coca-Cola Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Depois de 20 anos na escola Depois de 20 anos na escola Não é difícil aprender Não é difícil aprender Todas as manhas do seu jogo sujo Todas as manhas do seu jogo sujo Não é assim que tem que ser Não é assim que tem que ser Vamos fazer nosso dever de casa Vamos fazer nosso dever de casa E aí então vocês vão ver E aí então vocês vão ver Suas crianças derrubando reis Suas crianças derrubando reis Fazer comédia no cinema com as Fazer comédia no cinema com as suas leis suas leis. Somos os filhos da revolução Somos filhos da revolução Somos burgueses sem religião Somos burgueses sem religião Somos o futuro da nação Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola Geração Coca-Cola. Depois de 20 anos na escola Não é dificil aprender Todas as manhas do seu jogo sujo Não é assim que tem que ser.

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A N E X O 13 SAGRADO CORAÇÃO Renato Russo Sei que tenho um coração Mas é difícil de explicar De falar de bondade e gratidão E estas coisas que ninguém gosta de falar Falam de algum lugar Mas onde é que está ? Onde há virtude e inteligência E as pessoas são sensíveis E que a luz no coração é o que pode me salvar Mas não acredito nisso Tento mas é só de vez em quando Onde está este lugar? Onde está essa luz ? Se o que vejo é tão triste E o que fazemos tão errado ? E me disseram! Este lugar pode estar sempre ao seu lado E a alegria dentro de você Porque sua vida é luz E quando vi seus olhos E a alegria no seu corpo E o sorriso nos seus lábios Eu quase acreditei Mas é tão difícil Por isso lhe peço por favor Pense em mim, ore por mim E me diga: - Este lugar distante está dentro de você E me diga que nossa vida é luz Me fale do sagrado coração Porque eu preciso de ajuda.

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A N E X O 1 4 E.E. CAETANO DE CAMPOS – CONSOLAÇÃO ALUNOS DO 1º ANO DO ENSINO MÉDIO - 2008 QUESTIONÁRIO - 1ª Etapa

1. Aluno: _____________________________________________________

2. Idade: _____________________

3. Naturalidade do aluno: _______________________________

4. Naturalidade dos pais: ________________________________

5. Tipo de texto que mais gosta de ler/ouvir:

__________________________________________________

6. Cite o nome de um texto/música de sua preferência:

__________________________________________________

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

QUESTIONÁRIO - 2ª Etapa Escolha uma dessas músicas, de acordo com sua preferência: ( ) Senhor do Tempo – Charlie Brown Jr. ( ) Deixo – Ivete Sangalo ( ) Faroeste Caboclo – Legião Urbana ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

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