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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP Rafael Avila Matede O que Bergson pensou sobre Heráclito e Parmênides - Notas sobre o Caderno Negro MESTRADO EM FILOSOFIA São Paulo/SP 2017

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP Avila Mat… · 1884 and 1898 before publishing his first work, Time and Free Will: An Essay on the Immediate Data of Consciousness

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Rafael Avila Matede

O que Bergson pensou sobre Heráclito e Parmênides -

Notas sobre o Caderno Negro

MESTRADO EM FILOSOFIA

São Paulo/SP

2017

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Rafael Avila Matede

O que Bergson pensou sobre Heráclito e Parmênides -

Notas sobre o Caderno Negro

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Mestre

em Filosofia, sob a orientação do Prof.

Peter Pál Pelbart.

São Paulo/SP

2017

Banca Examinadora

________________________________________

Prof. Dr. Peter Pál Pelbart (Orientador)

________________________________________

Prof. Dr. Sandro Kobol Fornazari

________________________________________

Profa. Dra. Viviane Bagiotto Botton

Suplentes:

________________________________________

Prof. Dr. Henry Burnett

________________________________________

Profa. Dra. Sonia Campaner

Dedicatória

À Natalie Graue

AGRADECIMENTOS

À Márcia, minha mãe, que me concebeu à luz e às sombras da magia do candomblé, a

quem devo os primeiros passos nos caminhos do corpo e do espírito. Ao querido

amigo Lauro Góes, que sacou de prima o meu interesse pela filosofia, a quem devo o

primeiro contato com a filosofia grega. Ao orientador Peter Pál Pelbart, por me

apresentar à apaixonante arte do conceito e por me ajudar a encontrar as minhas

próprias palavras. À Ana Godoy, amiga sombra e leitora generosa que me

acompanhou até os últimos momentos desse trabalho. À Laura Vinci pelo apoio

irrestrito, e ao Zé Miguel Wisnik pelas palavras encorajadoras. Ao amigo Aury Porto

e toda a mundana companhia de teatro pelas experiências inesquecíveis. Ao meu

irmão Vitor, que me ensinou a lutar. Ao Gabriel Beçak, irmão tardio e eterno

confidente, com quem partilho a paixão pela filosofia.

À Natalie Graue, amor de todas as horas, que me acompanhou ao longo dessa

travessia.

À Capes e ao CNPQ por me concederem a bolsa que permitiu desenvolver esse

trabalho de pesquisa.

RESUMO

O trabalho a seguir se insere numa proposta geral que visa apresentar aspectos das

filosofias de Heráclito e Parmênides através dos cursos ministrados por Bergson na

Universidade de Clermont-Ferrand entre 1884 e 1898, período anterior a publicação

de sua primeira obra Ensaio sobre os dados imediatos da conesciência. Ressaltaremos

a perspectiva de Bergson em relação às doutrinas de Heráclito e Parmênides, de modo

a tornar claros os efeitos restauradores de sua interpretação capaz de renovar os

conceitos caros a esses filósofos, da mesma forma que torna patente traços de sua

filosofia futura. Acreditamos que um estudo aprofundado dos cursos de Bergson

contribui tanto para a pesquisa das obras de sua filosofia madura quanto para a

pesquisa no campo da filosofia grega.

Palavras-chave: Bergson. Heráclito. Parmênides. Ser. Devir.

ABSTRACT

The following work presents aspects of the philosophies of Heraclitus and Parmenides

through the courses given by Bergson at the University of Clermont-Ferrand between

1884 and 1898 before publishing his first work, Time and Free Will: An Essay on the

Immediate Data of Consciousness. Bergson’s perspective is highlighted in relation to

the doctrines of Heraclitus and Parmenides in order to clarify the restorative effects of

his interpretation, which renews important concepts of these philosophers at the same

time as showing features of his future philosophy. We believe a deep study of

Bergson’ s courses will contribute both to the research of his mature philosophy as

well as to research in Greek philosophy.

Keywords: Bergson. Heráclito. Parmênides. Being. Becoming.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 9

2 AULA UM: A DUPLA AFIRMAÇÃO E O PRINCÍPIO DE

CONTRADIÇÃO 13

3 ENTRE AULAS 28

4 AULA DOIS: A ALMA EM HERÁCLITO E O SER CORPÓREO EM

PARMÊNIDES 34

5 O DIA E A NOITE 47

REFERÊNCIAS 55

9

1 INTRODUÇÃO

O título deste trabalho é uma paráfrase do título da tese latina O que

Aristóteles Pensou Sobre o Lugar [Quid Aristoteles de loco senserit], defendida por

Bergson na Sorbonne, em 1889, juntamente com a tese principal intitulada Ensaios

Sobre os Dados Imediatos da Consciência [Essai Sur Les Donées Immédiates de La

Conscience]. Na tese latina, seguindo rente o discurso filosófico de Aristóteles, o

mais próximo possível do ponto de vista do autor, Bergson se dirige aos leitores

familiarizados com a filosofia aristotélica, mostrando especificamente a origem e a

função da teoria do lugar, um tema constante de um dos cursos ministrados por

Aristóteles no Liceu, reunido no livro delta da Física. Caminhando no rastro do autor,

Bergson reconstitui parte do trajeto percorrido por Aristóteles, frequentando os

mesmo lugares, as mesmas referências e, por vezes, à sua maneira, movendo-se da

mesma forma que o autor, de modo a recuperar matizes específicas do pensamento

aristotélico distintivas da teoria do lugar.

As duas teses, redigidas entre 1883 e 1888, têm motivos diversos. No Essai

encontra-se um dos principais conceitos criados por Bergson, a duração, um dos

marcos teóricos da sua filosofia. A tese latina também é um trabalho original,

renovador de um tema da Física, mas se caracteriza menos pela criação de um

conceito inaugural próprio de Bergson e mais pelo estudo original, porém restrito, dos

conceitos que compõem a teoria do lugar em Aristóteles. Por um lado, em razão do

caráter restrito, a tese latina não tem a amplitude da tese principal; mas, por outro, ela

prepara, em parte, o conceito bergsoniano de espaço que, ao lado da duração, compõe

a teoria das multiplicidades desenvolvida na tese principal.

O Essai é um trabalho elaborado em harmonia com a filosofia do seu tempo,

em que são discutidas as principais descobertas científicas da época, sobretudo no

campo da psicofísica, alvo de severas críticas de Bergson. São poucas as referências

aos antigos filósofos, apenas um dos argumentos de Zenão contra o movimento, no

segundo e no terceiro capítulo, é citado. Considerando o aspecto geral do Essai, a

princípio Bergson é um filósofo contemporâneo, sob muitos aspectos próximo aos

modernos, e, a não ser pela breve referência a Zenão, nada mais sugere sua relação

com a filosofia antiga. Já na tese latina, ao defender com perícia que a Física de

Aristóteles não trata do espaço, mas do lugar, Bergson mostra não só domínio

completo sobre o tema, capaz de renovar um tema assente em Aristóteles, senão

10

também um amplo conhecimento dos filósofos antigos, percorrendo com naturalidade

o pensamento de Leucipo e Demócrito, evocados como aliados na demonstração de

sua tese.

É que a ocasião do seu doutoramento, em 1889, reúne dois trabalhos

representativos de duas diferentes faces de Bergson: a do filósofo que formula o seu

primeiro grande conceito no Essai, e a do professor de filosofia grega e sua tese sobre

Aristóteles, cuja carreira, iniciada em 1881, na Universidade de Clermont-Ferrand, o

levará até a cátedra de filosofia grega e latina no Collège de France, em 1900. As

relações teóricas entre as duas teses, em que as conclusões inovadoras derivadas do

trabalho sobre Aristóteles se inserem na tese geral do Essai, não indicam somente que

há um vínculo teórico, mas também uma relação fecunda entre o professor de

filosofia grega, frequentador assíduo do mundo antigo, e o filósofo da duração, livre

pensador contemporâneo.

Se o elo entre as teses reflete o trânsito criativo entre o professor e o filósofo,

o que mais poderiam revelar os próprios cursos sobre a filosofia grega, ministrados

por Bergson paralelamente à redação de ambas as teses? Para a sorte dos leitores

interessados na amizade entre o professor e o filósofo, esses cursos encontram-se

transcritos e publicados, ainda que a sua ampla divulgação tenha sido

terminantemente proibida por Bergson, conforme consta em seu testamento redigido

em 1937, quatro anos antes de sua morte:

Declaro haver publicado tudo o que queria oferecer para o público. Portanto, proíbo

formalmente a publicação de qualquer manuscrito ou de qualquer trecho de manuscrito de

minha autoria que possa ser encontrado entre os meus papéis ou em outro lugar. Proíbo a

publicação de qualquer curso, de qualquer aula, de qualquer conferência de que alguém

possa ter tomado nota ou que eu mesmo possa ter anotado. Proíbo igualmente a

publicação de minhas cartas e oponho-me a que se contorne essa proibição como foi feito

no caso de J. Lachelier, cujas cartas foram postas à disposição dos leitores da Biblioteca

do Institut de France, sendo que ele proibira que as publicassem. Quem envia uma carta

conserva sua propriedade absoluta. É usurpar-lhe esse direito divulgar o conteúdo de sua

carta para o público, mesmo restrito, que frequenta uma biblioteca. Por que uma violação

de propriedade literária teria necessariamente de assumir a forma impressa? Peço a minha

mulher e a minha filha que processem judicialmente qualquer pessoa que desatenda às

proibições que acabo de formular. Elas deverão exigir a supressão imediata do que

houver sido publicado1.

De fato, a proibição de Bergson em relação aos cursos foi respeitada até o ano

2000, cem anos após a publicação de sua primeira obra, quando os seus livros,

incluindo as transcrições dos cursos, caíram em domínio público. Sorte, portanto, para

1 Mossé-Bastide, R.-M. Bergson éducateur. Paris, PUF, 1955, p. 352.

11

os leitores que puderam aguardar quarenta e três anos para ter acesso ao conteúdo dos

cursos, desde a data da proibição até liberação do material, ou para aqueles que,

recém-chegados à Bergson, já o encontraram em domínio público – como é o meu

caso.

As “notas sobre o Caderno Negro”, subtítulo desse trabalho, se referem ao

enigmático caderno de capa preta anotado anonimamente pelos alunos do

primeiríssimo curso universitário sobre a filosofia grega ministrado por Bergson na

Universidade de Clermont-Ferrand. Dispor do Caderno Negro me motivou a refazer

parte do trajeto percorrido pelo filósofo através das aulas do professor,

especificamente as que tratam sobre Heráclito e Parmênides, por reunirem duas

doutrinas antagônicas, representativas, do ponto de vista do professor, de duas

diferentes perspectivas filosóficas com as quais a filosofia grega posterior estará

sempre às voltas, e, a meu ver, de dois diferentes domínios constantes no

bergsonismo.

Nas primeiras páginas do Caderno, as preliminares de Bergson informam

sobre a importância da interpretação para o método de reconstrução dos fragmentos

de texto sobre Heráclito e Parmênides: esses filósofos não deixaram escritos, são

conhecidos apenas através dos relatos mais ou menos precisos de outros filósofos ou

comentadores, significando que “não basta compreender o sentido literal dos textos

que nos restam. É preciso, se possível, repensar a doutrina de que esses escritos são a

tradução [...] cabe restabelecer e adivinhar”2. À medida que interpreta esses filósofos,

repensando as suas doutrinas, a própria perspectiva filosófica de Bergson irrompe em

meio à crítica aguda do professor de filosofia grega, revelando traços do bergsonismo

e, ao mesmo tempo, renovando as teses assentes sobre Heráclito e Parmênides, tal

como ocorre com o trabalho sobre Aristóteles.

O modo que encontrei para trabalhar o duplo aspecto das aulas de Bergson

revelou-se na medida em que eu caminhava ora ao lado do professor, ora ao lado do

filósofo: por seguir colado à perspectiva de Bergson, significativa tanto de sua índole

filosófica quanto das nuances insuspeitas das filosofias de Heráclito e Parmênides,

percebi que as notas tomadas do Caderno Negro, componentes desse trabalho,

repercutiam por simpatia justamente o modo de trabalho do professor e do filósofo,

visto a proximidade do método interpretativo aplicado em seus cursos e em sua tese

2 Bergson, H. Cursos sobre a filosofia grega. São Paulo, Martins Fonte, 2005, p. 182.

12

latina com o método intuitivo desenvolvido posteriormente em sua filosofia, segundo

o qual não se pode conhecer algo, nesse caso um autor, sem antes se aproximar do seu

discurso, rente às suas preferências, simpatizando com seus movimentos não para

mimetizá-lo, senão para ver o que ele viu, perceber como ele percebeu o objeto de sua

filosofia. O leitor familiarizado com a filosofia de Bergson notará sem dificuldades o

bergsonismo de fundo presente nesse trabalho, proporcional à proximidade que

mantive com a perspectiva do professor, ela própria impregnada do pensamento

latente do filósofo. E notará também que as doutrinas de Heráclito e Parmênides,

renovadas através do crivo filosófico de Bergson, curiosamente representam o que há

de mais atual no campo da filosofia grega.

À exceção da parte intitulada “Entre Aulas”, nas demais seguirei rente o

Caderno Negro, ao lado de Bergson, visando apresentar aspectos das filosofias de

Heráclito e Parmênides revelados graças ao gênio filosófico e à mestria do historiador

dispostos em Bergson.

13

2 AULA UM: A DUPLA AFIRMAÇÃO E O PRINCÍPIO DE CONTRADIÇÃO

Ao abrirmos o Caderno Nreto, nos defrontamos com um caderno de classe nos

moldes daqueles que eram feitos pelos estudantes de filosofia na École Normale

Supérieure, na época em que o jovem Bergson ainda era aluno de Émile Boutroux,

onde cada curso era anotado por um aluno, o todo era relido pelo professor e em

seguida era depositado na biblioteca da universidade para consulta3. À primeira vista,

o conteúdo, em parte, é o que se poderia esperar de um curso universitário sobre a

filosofia grega. Conforme as anotações do caderno negro, constam os filósofos

gregos, de Tales a Aristóteles, e seus principais intérpretes. O tom escolar e o

didatismo sugerem que Bergson é um professor em exercício, transmitindo

impessoalmente as doutrinas dos antigos filósofos.

Mostra-se indiferente a Platão e a Aristóteles, limitando-se a reproduzir o

principal da escola de Atenas. Bergson permanece frio em suas exposições, até entrar

em cena Anaximandro e Heráclito, quando, explicitamente, o professor dá lugar ao

filósofo que desperta como se entrasse repentinamente em seu elemento. Diferente da

monotonia de antes, as aulas agora apresentam longas reflexões, profundas e vivas, do

filósofo autor de Matéria e Memória, ainda em gestação. A diferença de tom e

tratamento teórico revelam o que agrada a Bergson nos antigos, pelo menos nessa

época.

É a partir do diálogo entre Bergson e os jônios que vemos iluminada uma das

fontes do bergsonismo, a saber, a filosofia da mudança ou do devir jonista. Importa à

Bergson que os jônios, ao se colocarem do ponto de vista da realidade, consideraram

as coisas tal como são fora de todo raciocínio que o pensamento possa construir.

Bergson diz que a partir dessa perspectiva, afeitos às contínuas mudanças dos

elementos sensíveis, os jônios foram naturalmente “levados ao dinamismo e à ideia de

mudança universal4”.

A escola jônia introduziu no pensamento antigo as ideias de transformação,

mudança e movimento eterno. Por meio dessas ideias, diz Bergson, os pensadores da

Jônia “procuraram uma definição da existência e desembocaram nesta definição, à

3 Bergson, H. Cursos sobre a filosofia grega. São Paulo, Martins Fonte, 2005, p. 17.

4 Ibidem, p. 204.

14

qual não falta profundidade: a existência consiste na mudança ou no movimento”5.

Uma análise atenta das anotações do caderno negro nos mostra que, dentre os jônios,

Anaximandro e Heráclito são considerados por Bergson os filósofos que deram a

forma mais clara ao dinamismo e realizaram a análise mais profunda da ideia de

mudança na antiguidade6.

Longe disso, as leituras de Simplício, Zeller e Lassalle consagradas às

doutrinas de Anaximandro e Heráclito sustentam que, embora considerem a mudança,

a dupla jônia não o faz senão do ponto de vista mecanicista. Para compreendermos

melhor em que sentido a leitura dinamista e a leitura mecanicista alteram, nesse

contexto, o estatuto da mudança no pensamento de Anaximandro e Heráclito, e em

que medida a interpretação de Bergson renova o sentido dos principais conceitos

caros a esses filósofos, diremos que os dinamistas admitem “que a matéria é capaz de

se transformar qualitativamente, de se tornar diferente do que ela é”, ao passo que os

mecanicistas, inversamente, supõem que as coisas dispostas na matéria podem

organizar-se variamente umas com as outras, “mas que cada uma delas permanece

eternamente aquilo que ela é”7. Se para os dinamistas as coisas estão em contínua

mudança, ao contrário para os mecanicistas as coisas não mudam, permanecendo

idênticas a si mesmas.

Podemos notar no fundo do dinamismo, de saída, a perspectiva da mudança e,

no fundo do mecanicismo, a perspectiva oposta que parte da imutabilidade. A opção

por uma leitura dinamista dos jônios nos mostra que Bergson, embora não se

considere um filósofo dinamista, coloca-se de saída na mudança, condição sem a qual

a compreensão da centralidade da mudança no pensamento jonista seria inviável. É,

por exemplo, a partir da perspectiva da mudança que Bergson verá no ἄπειρον

(ilimitado) de Anaximandro não um princípio abstrato, mas o atributo de uma matéria

primitiva ainda não determinada, homogênea e ilimitada, a μιγμα (migma), palavra

grega que pode ser traduzida por “pré-mistura”. A migma, ou pré-mistura, é o

princípio das coisas. Bergson diz que na pré-mistura de Anaximandro os elementos

estão contidos em potência, não em ato. As coisas se determinam e adquirem

qualidade ao saírem desse elemento primitivo, passando da potência à existência, do

homogêneo ao heterogêneo, por via de transformação. O número das transformações

5 Bergson, H., op. cit., p. 204.

6 Ibidem, p. 202.

7 Ibidem, p. 193.

15

é infinito e se dá em função do movimento perpétuo da qual a natureza é dotada,

interior à pré-mistura, “que faz com que as qualidades se recriem pelo simples fato de

sair dela”8.

Simplício, por meio de uma leitura mecanicista, considera que as coisas saem

da pré-mistura por via de simples separação, uma vez que elas já estariam

justapostamente contidas no elemento primitivo, acostadas umas às outras, e

determinar-se-iam ao separar-se da matéria primitiva por meio de um processo

mecânico de diferenciação. Ou seja, para Simplício, as coisas permanecem as

mesmas, uma vez que no processo mecânico de separação não há mudança. A

mudança, para Simplício, é, na verdade, um rearranjo permanente de coisas

imutáveis: não há mudança real, mas apenas a reiteração perpétua da identidade das

coisas9.

Para Bergson, ao contrário, a mudança é absoluta, uma vez que afirma que o

processo por meio do qual as coisas saem da pré-mistura se dá por via de mudança ou

transformação. Para ele, a mudança de que fala Anaximandro consiste na fluidez

contínua de uma matéria em constante mutação, diferindo-se perpetuamente de si

mesma. Se a perspectiva da mudança de Bergson sobre as doutrinas jônias afirma a

centralidade da ideia de mudança no pensamento de filósofos marcados

profundamente pela experiência do devir, a perspectiva da imutabilidade do

mecanicismo, ao supor a imutabilidade das coisas e substituir a mudança pela

eternidade, como veremos mais adiante, faz da ideia de mudança uma mera abstração

mecânica, uma construção intelectual sem a marca da experiência sensível. Sem

dúvida, há uma certa noção de eternidade nas doutrinas jônias, mas uma eternidade

concreta, diz Bergson, uma vez que se trata de uma eterna mudança universal,

engendrada por um movimento perpétuo, inerente à natureza, percebida por

Anaximandro e Heráclito nas ininterruptas transformações dos elementos sensíveis.

Desse modo, podemos supor que o contrário pode ser dito sobre a eternidade dos

mecanicistas: uma eternidade abstrata, uma vez que não parte da experiência, mas

apenas do raciocínio.

É no curso sobre Heráclito que temos a oportunidade de acompanhar um

aprofundamento dos estudos sobre a tradição dinamista jônia, em que vemos uma

8 Bergson, H. op. cit., p. 193-197.

9 Ibidem, p. 194.

16

nova linha de reflexão cruzar o quadro de ensino de Bergson: a doutrina dinâmico-

panteísta de Heráclito ocupa o primeiro plano em suas análises. O fogo heraclitiano

não será um princípio metafísico abstrato, tampouco um princípio inteiramente

material. Para Bergson, embora o fogo seja realmente um elemento material, não se

trata, porém, de um fogo qualquer, mas de uma substância primitiva, a mais apta a

produzir e a mudar. Para que essa substância mude e produza incessantemente, é

necessário a ação permanente de dois outros princípios, a guerra e a harmonia: “é por

meio da ação da guerra e da harmonia sobre o fogo que este se transforma

infinitamente”10

, diz Bergson.

Com efeito, “a guerra, diz Heráclito, é o rei e o pai de todas as coisas”. Quanto

à harmonia, é difícil definir sua natureza. Bergson diz que “ela se manifesta sobretudo

pela medida”, uma vez que Heráclito afirma que “o fogo eterno acende-se segundo

uma regra e apaga-se segundo uma regra”11

. Para todos os efeitos, diz Bergson, “a

guerra e a harmonia são apenas dois aspectos diferentes de uma força que compele a

matéria primitiva, o fogo, a se transformar e a voltar a ser ela própria”12

.

Impulsionado por essa força, o fogo é criação, uma vez que “o fogo torna-se tudo”,

gerando os objetos particulares; e, impulsionado por essa mesma força, mas na

direção inversa, o fogo é destruição, já que “todas as coisas tornam-se fogo”13

,

fazendo com que os objetos particulares retornem a sua condição primitiva. Logo, o

fogo originário só se mantém, a produzir e a mudar, se a mudança numa direção

conduzir à mudança na outra, de maneira que “o universo passa, portanto, por

alternâncias de criação e destruição”14

. Ou seja, a realidade se faz ou se desfaz

continuamente como consequência de uma metamorfose universal, ao mesmo tempo

em que o fogo permanece sempre ele próprio em meio ao fluxo das coisas.

Se a guerra é o pai de todas as coisas, é porque a permanente discórdia ou

tensão entre os opostos é condição para a mudança, para os intermináveis ciclos de

criação e destruição que sustentam a realidade. Acaso a luta entre os contrários

chegasse ao fim, a própria mudança cessaria e o universo deixaria de existir - é por aí,

diz Bergson, que devemos entender a censura feita por Heráclito a Homero por ter

10

Bergson, H. op. cit., p. 199. 11

Ibidem. 12

Ibidem. 13

Ibidem. 14

Ibidem, p. 201.

17

dito: “possa a discórdia afastar-se dos deuses e dos homens”15

. Nesse dia, diz

Heráclito, tudo desapareceria.

Bergson recusa a hipótese de Heráclito ter descoberto o princípio panteístico,

retomado posteriormente por Hegel, no qual a lei universal das coisas é a contradição:

alguns textos de Heráclito, de fato, podem servir a essa hipótese, caso o princípio de

contradição determine de saída a leitura. E como há realmente em todo panteísmo a

tendência para admitir a coexistência dos contrários, é comum afirmar que a doutrina

de Heráclito consiste num emaranhado de contradições. No entanto, ao contrário

dessa hipótese, Bergson diz que foi o eleata Parmênides, e não Heráclito, quem partiu

do princípio de contradição sob sua forma mais absoluta.

Parmênides não deixou dúvidas sobre a força da contradição em seu

pensamento, ao formular o princípio de sua doutrina em diversos fragmentos do seu

poema. Ser ou não ser, diz Parmênides. Segundo esse princípio, uma coisa não poder

ser e não ser, ao mesmo tempo e sobre o mesmo aspecto, sob pena de contradizer-se.

Parmênides impõe ao ser o princípio de contradição sob sua forma mais lógica,

conferindo realidade apenas ao que pode existir segundo as condições de

inteligibilidade determinadas por esse princípio. “O motivo de sua doutrina, portanto,

é indicado com precisão. Parmênides supõe uma identidade entre o pensamento e as

coisas”16

, de maneira que a realidade é concedida apenas àquilo que está em

conformidade com um princípio diretor do raciocínio, ou seja, a realidade deve

conformar-se unicamente ao princípio de contradição. Assim, o ser é, o não-ser não é.

Para Parmênides, “a fonte de toda ilusão, científica ou não, é a crença na

realidade do não-ser”17

. Acreditar no não-ser é deixar-se enganar pela mistura

equivocada entre o ser e o não-ser, admitida como um meio-termo entre ambos, um

estado intermediário, quando uma coisa já não é mais aquilo que era e ainda não é o

que irá ser. Bergson nota que a mistura denunciada por Parmênides entre o ser e o

não-ser é não mais que o princípio de contradição aplicado ao devir, pois é próprio à

ideia de mudança essa transição contínua, ser o que nunca está aí quando tentamos

representá-la, seja por não ser mais o que era ou ainda não ser o que será.

15

Bergson, H. op. cit., p. 199. 16

Ibidem, p. 208. 17

Ibidem, p. 207.

18

Parmênides procurou demonstrar que o ser transitório da mudança - o não-ser,

ou a mistura entre ser e não-ser -, não se presta à razão, pois só pode ser afirmado em

termos contraditórios: sob certos aspectos o ser é, e sob certos outros aspectos o ser

não é. E como não se poderia pensar a mudança sem essa contradição, sem afirmar

que uma coisa é e não é, ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto, resulta que o ser

em meio ao devir, ou seja, o meio-termo entre o ser e o não-ser, é ininteligível e,

como tal, não pode existir. Só é real o que não se contradiz, eis a condição para a

existência na filosofia do ser de Parmênides.

Com efeito, o ser parmenidiano está livre de contradições. Diferente do devir,

ele “não foi e não será”18

, ou seja, é imutável, imune às vicissitudes da mudança que o

tornaria passível de contradição. Exterior ao devir, o ser não está sujeito ao “presente

transitório” da mudança, à mistura contraditória entre o ser e o não-ser do devir.

Inversamente, o ser imutável, porque não devém, existe num presente eterno, sempre

semelhante a si próprio, motivo pelo qual não escapa à razão, pois está sempre aí, não

se faz ou se desfaz como o ser fugidio da mudança; mas, ao contrário, está completo,

já feito, é sempre o mesmo, e por isso pode ser enunciado em conformidade com o

princípio de contradição: o ser é (o ser existe), não podendo não ser, pois o não-ser

não é (o não-ser não existe), portanto, não pode ser19

.

O ser de Parmênides nos mostra que a condição para a não-contradição é a

imutabilidade, ou, que o princípio de contradição depende da identidade absoluta do

ser para operar plenamente. A identidade absoluta é a indivisibilidade absoluta do

ser, pois o ser não poderia dividir-se sem admitir partes diferentes dele próprio, assim

como não poderia diferenciar-se sem admitir a existência de contrários. E como a

divisão ou diferenciação violam a identidade desfazendo a unidade do ser pela

existência de um contrário, resulta que o ser idêntico a si próprio é necessariamente

uno, isto é, que todas as coisas que existem são da mesma natureza do ser, não

havendo partes exteriores a ele próprio, de maneira que de dois contrários só pode

haver um. Se a coexistência dos contrários implica em contradição, inversamente a

identidade absoluta e a unidade indivisível do ser instauram a não contradição.

É que, na verdade, estamos diante de um princípio de dupla face, pois, o

princípio de contradição, ao depender da identidade e da unidade para operar a não

18

Bergson, H. op. cit., p. 208. 19

Ibidem, p. 208.

19

contradição, está vinculado a outro princípio racional, o princípio de identidade. A

ação deste duplo princípio, contradição-identidade, consiste em: afirmar a identidade

por meio da proposição “o que é, é” e introduzir a não contradição por meio da

proposição “o que é não pode ser e não ser”, prolongando a afirmação da identidade

em negação do que dela difere. Bem amarrados, a identidade e a não contradição

garantem um isto, ou seja, um objeto inteligível porque essencialmente imutável,

sempre igual a si mesmo; e aplicado à realidade, esse duplo princípio resulta no

postulado geral da doutrina de Parmênides, segundo o qual o ser é, e o não-ser, não

é20

.

Se os contrários parecem existir, se os fenômenos que percebemos parecem

distinguir-se uns dos outros, “é porque acreditamos em uma diferença”21

, é porque

acreditamos na coexistência dos contrários, na mistura ilusória entre o ser e o não-ser

do devir. Na realidade, conforme o sistema de Parmênides, o ser apenas é e qualquer

contrariedade, isto é, qualquer possibilidade da existência do contrário, é

imediatamente cancelada pelo duplo princípio de contradição e de identidade. É

assim, por exemplo, que Parmênides dirá que apenas o ser existe, da mesma forma

como o masculino e o dia. E que os contrários, o não-ser, a mulher, a noite, são

ilusões, na verdade não existem.

Ocorre que, na realidade, diz Bergson, o devir transcorre alheio às exigências

do princípio de contradição e identidade. O mundo material, campo das sensações, se

nos apresenta sempre como uma sucessão de qualidades, isto é, a experiência sensível

nos mostra que a realidade consiste na mudança, que as coisas sempre tornam-se

outras, que os contrários coexistem na realidade independentemente de qualquer

critério de inteligibilidade. De maneira que, se Parmênides exige a imutabilidade e a

unidade de seu objeto sob a forma da identidade absoluta e não contraditória do ser, e

acredita com isso demonstrar a impossibilidade do devir, é unicamente porque sua

doutrina “consiste essencialmente em aplicar o princípio de contradição [e identidade]

sob sua forma absoluta e lógica ao ser e em suputar a priori um mundo sensível que

se conforme estritamente a esse princípio”22

.

20

Bergson, H. op. cit., p. 208. 21

Ibidem, p. 210. 22

Bergson, H. op. cit., p. 210.

20

A filosofia do ser não parece em nada com a filosofia da mudança. O princípio

de contradição parte da negação da mudança, portanto não pode ser este o motivo da

doutrina de Heráclito, o que nos mostra que Bergson tem razão quando diz que não

foi Heráclito, mas Parmênides quem pôs em ação o princípio de contradição em sua

filosofia.

A julgar pela crítica de Parmênides à mudança, Heráclito não se expressa em

termos de ser ou não ser, em conformidade com o princípio de contradição, mas

afirma, contraditoriamente, que um coisa é, sob certos aspectos, e não é, sob certos

outros aspectos. Dito de outro modo, Parmênides, por força do princípio de

contradição, afirma o ser e nega o não-ser, enquanto Heráclito, alheio às exigências

deste princípio, afirma o ser e afirma também o não-ser.

Se a dupla afirmação de Heráclito nos choca pelo fato da contradição, é

porque, assim como Parmênides, colocamos de saída a razão, sob a forma do

princípio de contradição, como condição para a realidade das coisas, nos esquecendo

que Heráclito expôs sua doutrina procurando não as condições de inteligibilidade e

aplicando-as à realidade, como fez Parmênides, mas partiu da própria realidade,

atendo-se às ininterruptas transformações dos elementos materiais, para chegar

finalmente a sua doutrina.

Uma vez afeito às múltiplas aparências que os fenômenos assumem

sucessivamente nos sentidos, a fim de encontrar uma explicação para as coisas,

Heráclito é conduzido pela experiência a concluir que a existência consiste justamente

na mudança. Para Bergson, Heráclito atingiu esta definição, “à qual não falta

profundidade”23

, unicamente porque “considerou as coisas tal como aparecem fora de

todo o raciocínio que o pensamento possa construir”, colocando-se no ponto de vista

do fenômeno, por assim dizer, ao invés de circunscrevê-lo nos limites do princípio de

contradição.

Se é verdade que Heráclito põe a contradição no fundo das coisas quando diz

“que os contrários sucedem-se, metamorfoseando-se um no outro e

metamorfoseando-se em tudo”24

, ele limita-se, diz Bergson, à constatação de um fato,

a saber, que é pelo efeito de movimentos contrários que tudo muda. Nada nos mostra

que Heráclito procurou subsumir este fato ao princípio de contradição, uma vez que

23

Ibidem, p. 204. 24

Bergson, H. op. cit., p. 85.

21

este princípio, visando a inteligibilidade, consiste justamente em negar a coexistência

dos contrários, isto é, em conciliá-los por meio da identidade absoluta, suspendendo,

conforme veremos adiante, a luta entre os opostos e cancelando a guerra, ideia

fundamental para doutrina de Heráclito, sem a qual não haveria mudança e,

consequentemente, nada existiria.

Mas o nada parece impossível em Heráclito. O não-ser só é possível quando

nos fixamos além da realidade movente para compreendê-la e representá-la

inteligivelmente por meio do princípio de contradição. Conforme vimos, este

princípio de que uma coisa é ou não é tem por alvo a identidade absoluta pela

eliminação do seu contrário, isto é, para que exista uma identidade absoluta é preciso

que o seu contrário desapareça. Ora, o princípio de contradição opera, ao menos para

o entendimento, justamente esse desaparecimento de um dos contrários.

Para que um dos contrários desapareça é preciso produzir, ao menos

logicamente, uma espécie de negativo do real, uma não-existência, o nada, a instância

(ou não-instância) de toda oposição à identidade absoluta do ser, de toda a

contrariedade que forçaria o ser a metamorfosear-se em seu contrário. De maneira que

o não-ser só é possível quando esperamos que as coisa sejam o que são, isto é, quando

dizemos que uma coisa é, entendendo por isso que ela é sempre a mesma que

pretendíamos que fosse desde o início, de modo que o seu contrário não pode existir

sob pena de corromper a identidade estabelecida. Assim, é somente porque admitimos

que o que é, é, que podemos dizer que o devir nunca é, que nunca é o que era e nunca

é o que será25

.

Ocorre que Heráclito não se expressa em termos de ser ou não-ser, como faz

Parmênides, tampouco se expressa em termos de ser e não-ser, incorrendo em

contradição conforme acusa a crítica eleata. Ao que parece não há não-ser em

Heráclito. Se Heráclito não se expressa em termos de coisa e não-coisa, definindo a

existência presente como o que é ou o que não é, é porque o isto – que Parmênides

chama de ser, conferindo-lhe identidade absoluta –, é, para Heráclito, o estado

presente de uma matéria em constante transição.

A “coisa” em Heráclito é o estado presente, implicado pelo estado que o

precedeu, e implicando o estado que o sucederá, ou seja, a “coisa” é o efeito presente

25

Ibidem, p. 175.

22

de uma transição contínua de estados sucedendo-se uns aos outros. Se podemos dizer

que há ser em Heráclito, entendendo por isso um estado presente em constante

transição, o devir não se constituirá mais por um presente sempre negativo, diferente

do que foi ou do que será, como em Parmênides, mas como o estado sempre positivo,

atual, da diferença do ser em relação a ele próprio.

Uma vez que esse processo é contínuo, que não há separação entre os estados,

um estado entrando pelo outro estado a ponto de quase confundirem-se em meio às

permanentes metamorfoses pelas quais passam, resulta que a existência é uma

continuidade, e, como tal, não poderia haver o nada como uma ausência de existência,

ou um ser como uma existência separada do fluxo contínuo do devir, visto que o nada

e o ser exterior ao devir, separados do processo, implicariam na não fluidez da

mudança.

O ser e o não-ser não permitem pensar adequadamente a existência em meio

ao devir. Para compreendê-la é necessário, como veremos adiante, substituir a cisão

entre a existência e o nada pela existência fluida, contínua, o ser imutável e o nada

estéril pelo ser como manifestação presente de um estado da mudança, segundo os

movimentos que a compõem, e a não contradição pela coexistência dos contrários.

A afirmação da existência em meio ao devir, conforme supomos em Heráclito,

baseados em Bergson, é ao mesmo tempo a dupla afirmação da realidade dos

contrários como movimentos opostos que coexistem em permanente tensão. É porque

os movimentos contrários coexistem, ou seja, é porque lutam, conforme diz Heráclito,

que tudo muda e as coisas existem. Os contrários conforme se nos apresentam,

coexistindo na realidade, só podem ser enunciados tal como o são por meio da dupla

afirmação, isto é, a dupla afirmação é a forma propositiva que expressa a luta entre os

opostos, no sentido que a afirmação de um contrário e a afirmação do outro contrário,

ao mesmo tempo, não permitem a conciliação de suas diferenças sob uma mesma

identidade, mas conduzem os contrários à guerra.

A dupla afirmação é ao mesmo tempo a afirmação da existência em meio ao

devir como duplo processo constituído por movimentos divergentes. O devir como

um processo de movimentos contrários, agitado pela luta entre os opostos, é a guerra.

A guerra é o duplo processo dos contrários em devir por meio do qual se dissociam

um do outro, como diz Bergson, ou diferenciam-se um do outro, como poderíamos

23

dizer. Ao diferenciarem-se um do outro, metamorfoseiam-se nas coisas, e as coisas

umas nas outras.

A diferenciação como o duplo movimento em direções contrárias consiste em

dois momentos: um quando o objeto particular é gerado, determinando-se numa

forma específica; e o outro, quando o objeto perde sua especificidade,

indeterminando-se. O primeiro momento é a criação das coisas, ao passo que o

segundo momento é a destruição das coisas. Os dois momentos desse duplo processo

de movimentos contrários em devir são contemporâneos um do outro, uma vez que a

guerra consiste justamente na contínua tensão entre os opostos, de maneira que a

diferenciação é o estado presente das coisas, ou seja, o processo por meio do qual as

coisas mudam constitui a própria existência atual das coisas.

Heráclito chama o primeiro momento de “o caminho para baixo”, quando as

coisas se solidificam ao sair da matéria originária, o fogo. E o segundo momento é

chamado por ele de “o caminho para cima”, quando as coisas se evaporam (“se

espiritualizam”, diz Bergson)26

retornando a sua condição ígnea. O fogo em si, a

matéria elementar, é a plena metamorfose, o elemento da guerra por excelência, pois é

pura diferenciação. A distância do fogo determina o estado atual das coisas, do sólido

ao gasoso, passando pelo líquido: quanto mais próximas ao fogo, mais as coisas

tendem a mudar, ao passo que quanto mais distantes do fogo, as coisas tendem a se

demorar em suas formas específicas.

As coisas não estão separadas ou reunidas no fogo por dele saírem

distanciando-se até a mais permanente solidez, ou por evaporarem de volta ao estado

ígneo: o estado atual das coisas é a própria materialização constante do fogo, para

baixo ou para cima. Bergson diz que as coisas que descem, afastando-se do fogo e

solidificando-se em formas determinadas, só evaporam retornando a sua condição

primitiva porque conservam o elemento originário. As coisas em seu estado atual, os

diferentes fenômenos que percebemos são, portanto, o fogo diferenciando-se dele

mesmo e, ao mesmo tempo, voltando a ser ele próprio.

O fogo, por ação simultânea dos movimentos contrários de descida e subida,

ou solidificação e evaporação, metamorfoseia-se quando se solidifica em formas

variadas, e permanece ele próprio quando evapora de volta ao seu estado primitivo, de

26

Bergson, H. op. cit., p. 84.

24

maneira que as coisas em devir são o estado sempre atual do fogo sendo ele mesmo e

diferente dele próprio, ao mesmo tempo uno (ígneo) e múltiplo (sólidos),

indeterminado e determinado, segundo um ritmo: ele permanece o mesmo conforme

muda, criando as coisas, e muda conforme permanece o mesmo, destruindo as coisas.

O fogo não é somente metamorfose radical, mas é também permanência absoluta: ele

é uno, pois permanece ele mesmo, e é também múltiplo, pois se diferencia de si

mesmo. “As coisas tomadas em conjunto são o todo e o não-todo, algo que se reúne e

se separa, que está em consonância e dissonância, de todas as coisas provém uma

unidade, e de uma unidade, todas as coisas”27

.

Quando dizemos que a matéria elementar é ao mesmo tempo una e múltipla,

somos forçados a admitir que o uno é o múltiplo, e o múltiplo é o uno. Com efeito, a

dupla afirmação de Heráclito embaralha os contrários e, à primeira vista, caso

sigamos a direção habitual do raciocínio, o resultado que encontramos nessa mistura é

a unidade desses contrários sob uma mesma identidade: posto que o uno é o múltiplo

e o múltiplo é o uno, então, ambos são a mesma coisa.

Uma identidade, porém, impossível, pois, como vimos, uma vez que

colocamos de saída a identidade, a sua contraface, a não-contradição, ato contínuo

estabelece que o uno é o contrário do múltiplo no sentido que a unidade é a não

multiplicidade, e a multiplicidade é a não unidade. Definindo ambos os termos por

negações, tomando um pela exclusão do outro, por fim concluiremos que nada são,

que a luta dos contrários é uma ilusão e a realidade deve ser uma existência sempre

idêntica a si mesma, separada do seu contrário, tal como faz Parmênides.

Ou, se quisermos, poderemos fazer dessa identidade uma verdade, se

considerarmos Hegel que diferentemente de Parmênides não procura conformar a

realidade à não contradição, mas faz da própria contradição uma lei do real. Nesse

caso, diremos que a coexistência dos contrários implica realmente em contradição, no

sentido de que é necessário ambos os termos negarem-se mutuamente para insistirem

em suas identidades. E, uma vez que estas se eliminam, visto que a identidade de um

contrário se afirma por meio da negação da identidade do outro contrário, segue-se

que o devir será o curso de uma guerra de aniquilação recíproca entre os opostos em

função de uma identidade sempre negada, cujos contrários em movimento negativo

27

Bergson, H. op. cit., p. 197.

25

permanecem irreconciliáveis até se reunirem diluídos num mesmo fundo comum,

identificados um com o outro no absoluto, onde finalmente serão a mesma coisa, e ao

invés de partimos da identidade para chegar à não contradição, simplesmente faremos

o inverso, partindo da contradição para chegar à identidade não contraditória.

Seja como for, no sentido de Parmênides que separa os contrários por exclusão

de um dos opostos, ou no sentido de Hegel que reúne os contrários por dissolução, os

dois lados do princípio de dupla face, contradição-identidade, são virados e revirados

por ação do negativo em função da identidade. Com vistas à inteligibilidade, os

contrários apartados ou dissolvidos por via do negativo se reconciliam numa

identidade indiferente, liberados de uma vez por todas do incompreensível combate

que travam na realidade.

Se a dupla afirmação de Heráclito nos leva a admitir que o uno é o múltiplo e

o múltiplo é uno é menos porque procura a inteligibilidade da luta entre os opostos, e

mais porque limita-se a constatar os movimentos dessa luta. Por tomar os contrários

segundo os movimentos que realizam, e não segundo a identidade que os tornaria

inteligíveis, a dupla afirmação heraclitiana não julga os opostos em separado,

tampouco pretende reuni-los, mas considera ambos os contrários implicados um no

outro em regime de copertinência.

Trata-se de colocar a questão da coexistência dos contrários em Heráclito em

termos de movimento, de maneira a fazer da dupla afirmação um princípio de

movimento e não um princípio racional. A dupla afirmação como um princípio de

movimento conserva a continuidade essencial dos movimentos contrários: os

contrários não estão separados por suas diferenças, nem reunidos indiferentemente,

mas são conexos, isto é, continuam-se um no outro porque se diferenciam um do

outro, de maneira que a copertinência dos movimentos contrários deve-se à

continuidade entre os movimentos, e, ao mesmo tempo, à dupla direção que assumem

e os diferencia um do outro.

Em termos de movimento, a unidade não é a indivisibilidade de algo sempre

idêntico a si próprio, tal como o ser imóvel de Parmênides, mas é a indivisibilidade do

movimento sempre diferente de si próprio. Dito de outro modo, a unidade entendida

como a continuidade do movimento não é a reunião dos movimentos separados, assim

como a duplicidade do movimento entendida como diferenciação da unidade em

26

relação a si mesma não é a separação da unidade de movimento: a unidade da

duplicidade, em termos de movimento, é a continuidade da diferenciação porque é em

razão da continuidade do movimento ao mesmo tempo uno e duplo que os contrários

se diferenciam e se conectam. Logo, em termos de movimento a unidade não é

identidade, e os diferentes movimentos não são uma contradição: a movência una e

dupla é a continuidade da diferenciação segundo o movimento de movimentos.

Na medida em que a matéria elementar se transforma por efeito do movimento

de movimentos, ela é também una e múltipla. A unidade da matéria, assim como a

unidade do movimento, é a continuidade da mudança, isto é, corresponde à

continuidade do movimento que a compele a se transformar. E a multiplicidade dos

objetos materiais, assim como a duplicidade dos movimentos, é o efeito da

metamorfose contínua da unidade de transformação, que corresponde à diferenciação

contínua dos movimentos divergentes em relação à unidade de movimento. De

maneira que o uno é o múltiplo e o múltiplo é o uno não é a fórmula de uma realidade

contraditória, como em Hegel, nem é a prova da impossibilidade da mudança segundo

a identidade não contraditória do ser como em Parmênides, mas, em termos de

movimento de movimentos, e não em termos de inteligibilidade, a unidade da

multiplicidade da matéria é metamorfose de metamorfoses.

Se a mudança material é contínua, tal como diz Heráclito, é porque não há

dissociação entre o movimento que produz a mudança e a matéria que se transforma,

uma vez que as transformações materiais, a transição contínua entre os diferentes

estados pelos quais a matéria passa diferenciando-se de si mesma e voltando a ser ela

própria, revelam a atividade contínua da diferenciação dos movimentos que a

compelem, eles mesmos diferenciando-se e voltando a ser eles próprios.

Conforme avançamos com a dupla afirmação, as relações entre os contrários,

bem como as relações entre o uno e múltiplo, pouco a pouco se tornam menos

relações lógicas de oposição e contradição e mais relações de continuidade, menos

uma questão de por em ação os conceitos de uno e múltiplo da matéria ou do

movimento, e mais a continuidade da diferenciação que expressa em termos de fluxo

as transformações da matéria em movimento, onde temos apenas metamorfose de

metamorfoses segundo movimento de movimentos.

27

Com efeito, de que outra forma as oposições poderiam confluir senão por

meio da continuidade da diferenciação, isto é, do fluxo? Por considerar a continuidade

da mudança e não as identidades que nos conduzem às contradições, a dupla

afirmação de Heráclito não resiste ao fluxo, mas apega-se aos seus movimentos,

deixando-se levar pela força de arrasto contra a qual as categorias da lógica formal

oferecem resistência, de modo que a mudança segundo a dupla afirmação não é uma

ideia contraditória, mas a afirmação de uma realidade movente que escapa por todos

os lados do ser idêntico a si mesmo.

28

3 ENTRE AULAS

Nesse intervalo, cabe comentarmos a desconfiança de Bergson sobre a

vocação de Aristóteles como historiador da filosofia, conforme encontramos nas notas

preliminares do Caderno Negro: Bergson não se limitou aos relatos de Aristóteles,

mas incluiu em sua pesquisa outras fontes classificadas em três categorias: as que

compreendem as obras filosóficas que chegaram até nós, escritas pelos próprios

filósofos; os relatos de Aristóteles e Platão; e os autores que retrataram os mais

antigos filósofos apoiados em Aristóteles e Platão. Em relação à Aristóteles Bergson

afirma que é a ele “que devemos o maior número de informações precisas”, mas

adverte que “não se deve esquecer que o objetivo de Aristóteles é dogmático: propõe-

se a estabelecer a verdade de sua própria teoria e, nos seus predecessores só busca

uma confirmação de suas ideias. Daí vem que, com muita frequência, ele altere o

pensamento dos outros por percebê-lo através do seu. Deve-se dar mostra de

prudência quando se lança mão de Aristóteles como historiador da filosofia”28

Com efeito, Aristóteles define o ser como toda realidade, ora referida em

termos substanciais (substância), ora como afecções da substância (modos da

substância). Na Metafísica IV, num trecho inteiramente dedicado a apresentar a

metafísica como ciência do ser enquanto ser Aristóteles demonstra a eficácia de seu

método, capaz de organizar a mudança segundo os parâmetros lógicos formais do seu

sistema, representando a mudança pela vinculação das qualidades e estados à uma

substância em si mesma inalterável (sujeito), que serve de suporte absolutamente

estável às qualidades provisoriamente estáveis (predicados), cuja mudança se dá pela

sucessão das diferentes qualidades, sempre em relação à substância estável que lhe

serve de suporte29

.

A substância estável é uma unidade, “o ser e o um são a mesma coisa e uma

realidade única”, da mesma forma como “a matemática tem partes, e destas, uma é

primeira e a outra é segunda, e as restantes seguem em série uma depois da outra”30

: a

unidade substancial é a primeira em razão de sua estabilidade e os modos da

substância são sucessivamente as qualidades atribuídas à substância, sendo a

metafísica, assim como a matemática, a ciência capaz de ordenar as partes, de

28

Bergson, H. Cursos sobre…, op. cit., p. 184. 29

Aristóteles. Metafísica. São Paulo, Loyola, 2002, p. 132. 30

Ibidem, p. 135.

29

estabelecer, em meio às diferentes qualidades, a substância estável à qual essa

multiplicidade qualitativa se refere, pois “mesmo que o um se diga em muitos

sentidos, todos os diferentes sentidos são ditos em referência ao sentido originário”31

:

A metafísica ordena a totalidade articulando dois princípios contrários caros à

matemática, o uno e o múltiplo, que são a síntese de todos os contrários32

. O critério

de busca mais seguro para encontrar a substância estável é o princípio de não

contradição33

. Esse princípio, que possuímos a priori, é definido por Aristóteles nos

seguintes termos: “é impossível que uma mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e

não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto. Este é o mais seguro de

todos os princípios”34

.

Não resta dúvida de que o princípio ao qual Aristóteles se refere, que é o mais

seguro para o conhecimento do ser, é o mesmo princípio que, conforme vimos com

Bergson, é formulado por Parmênides sob a forma do ser e do não-ser. No que se

refere ao ser, as doutrinas de Aristóteles e Parmênides parecem mesmo tratar, cada

uma à sua maneira, de utilizar o princípio de não-contradição como critério para a

inteligibilidade do real. Em Parmênides, o princípio de não-contradição elimina a

mudança, isto é, a multiplicidade dos modos do ser pela unidade absoluta e indivisível

do ser; e em Aristóteles, a mudança é ordenada pela articulação do um e do múltiplo

segundo a precedência da unidade substancial do ser sobre os modos em que se diz,

sendo o ser a substância estável que serve de suporte às sucessivas qualidades a ele

atribuídas. Embora ambas as doutrinas busquem apreender o real por meio de um

critério racional, tendo em vista o ser como uma unidade indivisível que permite à

razão a priori extrair o imutável naquilo que muda, o fato é que não há, em

Parmênides, uma formulação explícita do princípio de não-contradição, assim como

não há em Aristóteles nenhuma menção à doutrina do ser em Parmênides como sendo

a primeira formulação do princípio de não contradição. No entanto, a lógica da

identidade, como vimos, é a outra face do princípio de não contradição, relativa à

31

Aristóteles, op. cit., p. 143. 32

Ibidem, p. 139. 33

Ibidem, p. 152: “E o princípio mais seguro de todos é aquele sobre o qual não é possível errar: esse

princípio deve ser o mais conhecido de todos e deve ser um princípio não hipotético. Com efeito, o

princípio que deve necessariamente ser possuído por quem quer conhecer qualquer coisa não pode ser

uma pura hipótese, e o que deve conhecer necessariamente quem queira conhecer qualquer coisa já

deve ser possuído antes que se aprenda qualquer coisa. É evidente, portanto, que esse princípio é o

mais seguro de todos.” 34

Ibidem, p. 132.

30

ideia do ser como unidade, e a relação entre o ser e o um pode ser encontrada na

doutrina do ser de Parmênides e na ciência do ser enquanto ser de Aristóteles – aliás,

Aristóteles elogia Parmênides por ter sido o primeiro dentre os antigos a relacionar o

ser ao um35

.

Bergson não é o único a estabelecer uma ligação entre Parmênides e

Aristóteles por meio do principio de contradição, segundo as declarações de Reale:

“há muito que os intérpretes apontaram nesse princípio de Parmênides a primeira

grande formulação do princípio de não contradição”36

. E Charles Khan afirma37

que

foi Reinhardt quem estabeleceu primeiro essa relação: “Parmênides declarou, de certa

forma, o princípio de não contradição, assim como muitas escolas reconhecem desde

o tempo de Reinhardt”, declarando que o princípio de não contradição é formulado

pela primeira vez por Parmênides e, posteriormente, retomado e aperfeiçoado por

Aristóteles38

. Ocorre que os cursos de Bergson são ministrados em 1880 e a obra de

Reinhardt data de 1916. É possível que outros autores, assim como Bergson, tenham

notado a relação entre Parmênides e Aristóteles antes de Reinhardt, mas o

reconhecimento oficial, por assim dizer, dessa tese como via de pesquisa no campo da

filosofia antiga só ocorreu com Reinhart. Não podemos afirmar categoricamente que

Bergson foi o primeiro a estabelecer a relação entre Parmênides e Aristóteles, mas

podemos dizer que seus cursos anteciparam as conclusões das pesquisas mais recentes

sobre Parmênides.

Desde os eleatas, todo postulado que não corresponda às exigências a priori do

raciocínio será considerado incoerente do ponto de vista lógico-formal. Não somente

as doutrinas posteriores serão submetidas a esse crivo, mas a história pregressa

também será apreciada segundo esses termos, como é o caso dos relatos de Aristóteles

sobre Heráclito. Aristóteles, logo após definir o princípio de não contradição,

demonstra a sua eficácia utilizando a filosofia de Heráclito como modelo de uma

filosofia contraditória, cujo postulado geral da coexistência dos contrários é o

exemplo por excelência da incoerência de um discurso filosófico que nega o princípio

35

Aristóteles, op. cit. p. 20. 36

Ibidem, p. 21. 37

Khan, C. Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser. Rio de Janeiro: Ed. da PUC-RIO, 1997. 38

Reinhardt, K. Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie. Bonn, Friedrich Cohen,

1916.

31

de não contradição39

. Em Metafisica VI, onde Aristóteles define o princípio do

terceiro excluído, que proíbe um termo médio entre os opostos40

- ou a mistura

ilusória entre o ser e não-ser, se considerarmos também Parmênides –, ou em

Metafísica XI, 5, 30, onde Aristóteles afirma que Heráclito, por ter admitido a

coexistência dos contrários negou o princípio de não contradição41

, Aristóteles

submete a filosofia da mudança ao princípio de não contradição e identidade, a forma

propositiva da dupla afirmação e a coexistência dos contrários às categorias lógico

formais, como é de se esperar por força do seu sistema, no qual a identidade da

unidade substancial aliada ao princípio de não contradição estabelece uma unidade

imutável relativa ao ser enquanto ser. Sem dúvida, contra os argumentos de

Aristóteles, nos termos da lógica formal, não é possível considerar a dupla afirmação

de Heráclito como forma propositiva da coexistência dos contrários, e é certo que

Bergson não desconhece a crítica de Aristóteles a Heráclito, pois foi com base nas

definições aristotélicas do princípio de não contradição que Bergson interpretou a

doutrina do ser de Parmênides, e, uma vez que conhecia os argumentos de Aristóteles,

conhecia também sua refutação da dupla afirmação de Heráclito.

Para Bergson, porém, não é Heráclito quem se contradiz por postular a

coexistência dos contrários sob a forma da dupla afirmação negando o princípio de

não contradição, mas é Aristóteles quem termina por equivocar-se sobre a doutrina de

Heráclito ao supor que a dupla afirmação deve ser analisada a partir dos critérios

lógicos do seu próprio sistema e não de acordo com as particularidades do sistema de

pensamento jônio presentes em Heráclito, de maneira que Bergson considera os

relatos de Aristóteles sobre Heráclito insuficientes porque anacrônicos, e sua crítica

indevida porque serve apenas para provar sua própria tese, como veremos adiante.

Bergson diz repetidas vezes que a filosofia de Heráclito deve ser considerada a

partir daquilo que constitui o coração de sua doutrina, a saber, a mudança. E Bergson

39

Aristóteles, op.cit., p. 120: “Efetivamente é impossível [...] supor que o mesmo é e não é, como

alguns pensam que disse Heráclito.” 40

Ibidem, p. 267. 41

Ibidem, p. 483: “[…] é provável que se o próprio Heráclito fosse interrogado desse modo, ele seria

obrigado a admitir que nunca é possível que as proposições contraditórias sejam verdadeiras juntas

quando referidas às mesmas coisas. Ele abraçou essa doutrina sem dar-se conta do que dizia. E, em

geral, se fosse verdade o que ele diz, então não poderia ser verdadeira nem aquela sua afirmação, isto é,

que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pode ser e não ser. De fato, assim como a afirmação e a negação,

tomadas separadamente, não são uma mais verdadeira que a outra, o mesmo ocorre se tomadas juntas e

se consideradas como uma única afirmação: a conjunção delas como afirmação não será mais

verdadeira que a conjunção delas como negação.”

32

levou a termo o seu critério evitando o exame lógico da mudança a partir do princípio

de não contradição, por acreditar que o sistema dinamista de Heráclito parte da

experiência e não do puro raciocínio, isto é, por crer na possibilidade de Heráclito ter

buscado expressar a experiência sensível da mudança segundo uma lógica outra que

não a lógica formal.

Segundo Conde, autor do artigo Das críticas de Aristóteles à Heráclito42

, os

novos estudos sobre Heráclito encontram terreno quando Cherniss mostra em seu

livro A Crítica Aristotélica à Filosofia Pré-Socrática as limitações da crítica de

Aristóteles aos seus predecessores. Cherniss diz que “Aristóteles não intenta, em

nenhum dos trabalhos que conhecemos, dar uma posição histórica da filosofia

anterior. Utiliza essas teorias como interlocutores dos debates fictícios que propõe

para para nos conduzir inevitavelmente às suas própria conclusões [...]”43

. Assim

como Bergson, de saída Cherniss critica em Aristóteles a falta de perspectiva histórica

em seus relatos sobre os filósofos pré-socráticos, conforme verificamos em outro

trecho onde Cherniss afirma.

Na esteira de Cherniss, Kirk, outro expoente dos estudos pré-socráticos, recusa

não só os relatos de Aristóteles, como também os de Platão: ele afirma que nos relatos

desses filósofos “poucas são as citações verbatim de Heráclito que se encontra em

ambos, nem estavam eles realmente interessados numa cuidadosa apreciação objetiva

dos seus predecessores mais antigos”44

. No caso de Aristóteles, diz Kirk, Heráclito é

atacado “pelo fato de negar o princípio de contradição, quando afirma que os

contrários são ‘os mesmos’ ”, o que se afigura como “uma interpretação errada de

Aristóteles, ao julgá-lo, anacronicamente, em função dos seus próprios padrões

predominantemente lógicos”45

. A crítica de Cherniss e Kirk, assim como a de

Bergson, mostram o equívoco de Aristóteles em interpretar as doutrinas precedentes

não para se aproximar do pensamento caro aos filósofos que o precederam, mas para

utilizá-los em proveito do seu sistema, de modo a reiterar os princípios de sua própria

doutrina. Em suma, tanto para Cherniss e Kirk, quanto para Bergson, a interpretação

42

Conde, O. Dos críticas de Aristóteles a Heráclito: lógica y estilo a la luz de la ecuación oralidad-

escritura. Hypnos, São Paulo, ano 7, n. 8, p. 51-71, 1º sem. 2002. Disponível em:

<http://www.hypnos.org.br/revista/index.php/hypnos/article/view/123>. Acesso em: 20 dez. 2016. 43

Cherniss, H. F. La crítica aristotélica a la filosofía presocrática. México, Universidad Nacional

Autonoma de Mexico. p. 12. 44

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 192. 45

Ibidem, p. 192.

33

anacrônica de Aristóteles não é a melhor fonte de pesquisa no que se refere ao sistema

de pensamento jônio.

Ocorre que a crítica de Cherniss ao anacronismo de Aristóteles abre caminho

aos novos estudos no campo da filosofia jônia setenta anos depois dos cursos de

Bergson. Conde diz que a crítica de Cherniss, bem como todo o seu livro, assentaram

“as bases em que muitos estudiosos se apoiaram, dando lugar aos avanços

subsequentes no campo da filosofia pré-socrática”46

. Cherniss, ao mostrar que o

anacronismo das análises de Aristóteles faziam de seu relato histórico um documento

impreciso sobre as doutrinas jônias, demandou dos intérpretes que o sucederam uma

releitura dessas doutrinas. Cherniss, de certa forma, recuperou a autonomia de

pesquisa dos historiadores ao liberá-los dos relatos de Aristóteles, a única fonte até

então considerada para o estudo do pensamento jonista. Liberados de Aristóteles, os

novos estudos sobre os jônios se permitiram uma hipótese diferente da de Aristóteles,

a saber, que talvez a lógica jônia, sobretudo a de Heráclito, não é a mesma que a de

Aristóteles, visto que a partir de Cherniss, tornou-se possível vislumbrar outra formas

de pensamento, mais próximas a Heráclito e aos filósofos jônios em geral, diferentes

do pensamento categorial da lógica formal.

Se o ponto de vista de Bergson sobre os anacronismos de Aristóteles não abre

caminho para novos estudos na área da história da filosofia pré-socrática do seu

tempo - como ocorreu posteriormente com Cherniss e seus pares - , abre caminho para

sua própria leitura, que liberada da perspectiva de Aristóteles permitiu a ele um novo

olhar sobre o sistema filosófico jônio, antecipando as linhas de pesquisas mais

recentes sobre esses filósofos. Bergson, antes dos avanços recentes das pesquisas

sobre Heráclito, em função de seu crivo quanto à imprecisão dos relatos Aristóteles,

conquistou para si a autonomia necessária para supor em Heráclito uma forma de

pensamento que não correspondia em nada a lógica formal, razão pela qual pôde levar

em conta a ideia de mudança não a partir do princípio de não contradição, próprio ao

pensamento categorial, mas a partir de uma lógica própria à mudança. Daí o ponto de

vista de Bergson sobre a dupla afirmação de Heráclito não estar sujeito à refutação de

Aristóteles: Bergson não supõe que Heráclito e Aristóteles pensassem da mesma

forma, portanto, considerou necessário repensar a doutrina de Heráclito segundo os

termos do próprio filósofo jônio.

46

Conde, O., op. cit., p. 52

34

3 AULA DOIS: A ALMA EM HERÁCLITO E O SER CORPÓREO EM

PARMÊNIDES

É que os contrários, enquanto simples oposições lógicas, destituídos de

movimento, são para Heráclito meras aparências, constituem somente uma coleção de

qualidades díspares e sem relação entre si, apenas uma multiplicidade desconexa

cujas partes isoladas umas das outras não revelam o modo pelo qual as coisas fluem

continuamente, são apenas o resultado do conhecimento estático das coisas obtido

unicamente por meio dos sentidos. Os dados dos sentidos não revelam a mudança

entre os contrários, revelam apenas cada um dos contrários sucedendo-se um após o

outro da mesma forma como percebemos o dia suceder-se à noite sem nos darmos

conta da transição contínua entre esses dois estados da natureza, da mudança em

processo entre essas duas qualidades; consideramos apenas o dia ou apenas a noite,

separadamente, de onde concluímos pela existência de duas qualidades contrárias e

aparentemente desconexas. Heráclito critica a polimatia, o conhecimento dos

contrários como simples disparidades desconexas, e acusa o senso comum e os sábios

por andarem em busca desse falso conhecimento. Pitágoras, por exemplo, é criticado

porque “praticou a investigação mais do que todos os outros homens e, tendo feito

uma seleção destas qualidades, adaptou-as como suas – sabedoria, aprendizagem de

muitas coisas, astuciosa velhacaria”47

; e as pessoas comuns são criticadas porque, de

um modo geral, “não compreendem como o que está em desacordo concorda consigo

mesmo”48

.

Se os dados dos sentidos são insuficientes para compreendermos a mudança

entre os contrários, podemos supor que é preciso introduzir uma outra forma de

conhecimento, que, no entanto, deve permanecer na esfera dos sentidos, visto

Heráclito afirmar que “as coisas que se podem ver, ouvir e conhecer são as que eu

prefiro”49

. Para Heráclito, não parece se tratar da busca de um caminho que leva à

compreensão da mudança entre os contrários fora da percepção, mas de buscá-lo na

própria percepção: trata-se, na verdade, de saber interpretar a linguagem dos sentidos,

pois, segundo ele, “más testemunhas são os olhos e os ouvidos se tiverem almas que

47

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M. Os Filósofos Pré -Socráticos. Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 1983, p. 227. 48

Ibidem, p. 199. 49

Ibidem, p. 194.

35

não entendam a sua linguagem”50

. Não é o caso, portanto, de renunciar à percepção,

mas de introduzir nos dados imediatos dos sentidos uma interpretação, algo que não

está dado de começo, capaz de conectar os contrários separados pela percepção

sensível. Para Heráclito, o elemento que intervém nos dados dos sentidos

interpretando-os é o logos, que Bergson traduz por nous, capaz, segundo Bergson, de

compreender a mudança universal, e, segundo Heráclito, de compreender que “há

uma conexão de tensões opostas”51

, e que essa “conexão invisível é mais poderosa

que uma visível”52

, e compreender também que “a verdadeira constituição das coisas

gosta de se ocultar”53

. O fato oculto entre as coisas seria, podemos supor, a conexão

de tensões opostas, isto é, a continuidade da diferenciação que simultaneamente

conecta e diferencia os contrários “como no caso do arco e da lira”54

, cujo modo de

conexão se dá em função de tensões contrárias, duas direções divergentes que se dão

ao mesmo tempo sem, no entanto, constituírem cada uma duas partes desconexas. Se

assim for, significa que, se bem interpretados, os dados dos sentidos nos permitem

conhecer o modo de conexão pelo qual duas tensões contrárias continuam uma na

outra ou o meio pelo qual uma multiplicidade aparentemente desconexa estabelece

uma relação entre os seus diferentes componentes.

Segundo Bergson, esse modo de conexão por tensões opostas, como vimos

anteriormente, é próprio do fogo, o elemento constituinte das coisas. Vimos que o

fogo é o motor do processo cosmológico cujo duplo modo operativo, ao mesmo

tempo gerador e destruidor, transforma todas as coisas. A versão mais aceita pela

maioria dos intérpretes, segundo Kirk, cujos trabalhos notadamente representam os

avanços mais recentes nos estudos da obra de Heráclito, é que o duplo modo

operativo do fogo parece realmente corresponder ao modo de conexão entre os

opostos, similar ao que é verificado no caso da lira e do arco. Assim como Bergson,

Kirk acredita que o fogo estabelece uma conexão entre os contrários – pois é o

elemento comum a todos os contrários, e por isso pode ser também o elemento de

conexão entre eles –, e essa conexão corresponde à simultaneidade contínua dos

movimentos divergentes de geração e destruição, uma espécie de conexão entre

tensões opostas. Esse modo operativo permite compreender os contrários como

50

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 194. 51

Ibidem, p. 199. 52

Ibidem. 53

Ibidem. 54

Ibidem.

36

movimentos divergentes, segundo o qual as qualidades contrárias se diferenciam uma

da outra enquanto permanecem conexas uma à outra. O fragmento 67 de Heráclito

pode esclarecer o que Bergson chama de movimentos divergentes de geração e

destruição do fogo, e Kirk chama de modo operativo de tensões opostas do fogo:

Heráclito diz que todos os contrários passam por mudanças “do mesmo modo que o

fogo, quando misturado com especiarias, é designado segundo o aroma de cada uma

delas”55

. As diferentes qualidades se apresentam aos sentidos como sendo as

extremidades de um processo contínuo de tensões opostas ou movimentos

divergentes, de onde temos a queima das especiarias de um lado – a destruição ou

transformação de cada uma delas – e do outro lado os diferentes aromas gerados pela

queima. Podemos entender que o fogo é o elemento da mudança porque o processo de

transformação, o modo operativo de tensões opostas ou movimentos divergentes de

geração e destruição é pleno e, ao mesmo tempo, o fogo permanece ele mesmo como

substância intermediária entre as diferentes qualidades. Nesse sentido, o modo

operativo do fogo atua como uma espécie de moderador extremo entre os contrários,

uma conexão entre tensões opostas que mantém a harmonia entre eles, a queima de

um lado sendo proporcional ao aroma do outro, o equilíbrio de uma unidade

dependendo das tensões opostas, como no caso do arco e da lira. É como escreve

Kirk:

[...] há uma conexão […] através de tensões opostas, que garante esta coerência –

precisamente como a tensão do arco e da lira, exatamente equilibrada pela tensão

para fora exercida pelos braços do instrumento, produz um complexo coerente,

unificado, estável e eficiente.56

Vista dessa forma, a conexão oculta entre os contrários é um processo que visa a

estabilidade por meio da mudança, e o fato oculto entre os contrários, aparentemente

desconexos, a continuidade que a boa interpretação segundo o logos introduz no

sentido de completar os dados imediatos dos sentidos, como diz Bergson, é a própria

ordem do mundo, a unidade essencial cuja coesão depende dos movimentos em

direções divergentes, de tensões opostas ou da reação equilibrada entre os contrários,

como afirma Kirk.

A posição de Kirk é representativa da hipótese de o logos em Heráclito ser

uma espécie de fórmula unificadora do real derivada da compreensão da ordem do

55

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 197. 56

Ibidem, p. 198.

37

mundo, capaz de completar os sentidos e revelar o modo como os contrários são

coesos numa unidade e, ao mesmo tempo, como essa unidade subsiste em função do

equilíbrio entre os movimentos contrários. Esse ponto de vista de Kirk tende a

acentuar o caráter estável da unidade, a estabilidade sendo o que persiste através da

mudança segundo uma ordenação dinâmica marcadamente influenciada pela lei

mecânica de conservação de energia, onde a mudança é um processo de equalização

das partes em função do todo, como num jogo de soma zero, e Bergson coloca-se da

mesma forma afirmando que o nous compreende uma ordem do mundo que visa o

equilíbrio através da mudança. De fato, em Heráclito, encontramos esse gênero de

mudança, ele realmente se refere à mudança como um processo de equivalência entre

as partes em função do todo onde “todas as coisas são uma igual troca pelo fogo e o

fogo por todas as coisas, como as mercadorias o são pelo ouro e o ouro pelas

mercadorias”57

. Isso mostra que o fogo pode ser considerado, segundo o seu modo

operativo, enquanto elemento sensível, isto é, enquanto princípio material, motor

constante do processo de transformação dos corpos físicos que garante a estabilidade

por meio da mudança; e que o logos aliado à percepção pode ser considerado a

compreensão da medida ou harmonia inerente a esse processo. Essa hipótese, comum

a Bergson e a Kirk, tem o mérito de considerar o logos e a estabilidade como dois

elementos centrais na doutrina de Heráclito, em contraposição à crítica de Platão que

reduz a filosofia de Heráclito a um sensualismo capaz somente de constatar o fluxo

perpétuo da matéria; mas, caso essa hipótese permaneça circunscrita na esfera das

transformações materiais, ela consequentemente limitará a filosofia de Heráclito à

física dos corpos. É nesse ponto que Bergson se afasta de Kirk.

Para Bergson, além do pensamento sobre a mudança material conservadora do

todo, parece haver também um segundo pensamento de Heráclito sobre a mudança,

em que o fogo “muda a maneira de uma pessoa humana, que passa por uma série de

estados, que muda continuamente e, não obstante, permanece sempre ela própria”58

.

Esse gênero de mudança parece ser a de um fogo mais puro, que não pode ser criado

pelos homens e pelos deuses. Em Heráclito, encontram-se de fato fragmentos que

falam sobre “um fogo sempre vivo”, incriado, que “sempre existiu e existe e há de

existir”59

. Esse fogo é, para Bergson, “a luz, um fogo eterno e eternamente móvel”60

;

57

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 205. 58

Bergson, H. Cursos sobre..., op. cit, p. 200. 59

Ibidem, p. 84.

38

para Heráclito, “é o raio que governa todas coisas”61

. O fogo vivo é diferente do fogo

físico, cuja atividade revela apenas o modo fluído de mudança dos elementos

sensíveis, e está em pé de igualdade com os demais elementos materiais, como a água

e a terra, todos eles participantes do ciclo natural e estável de mútuas compensações.

No entanto, Bergson afirma que não se trata de duas substâncias diferentes, mas de

uma mesma substância que muda de maneiras diferentes, é “uma substância ativa que

pode tomar a forma de substância passiva, o que não a impede de conservar sua

natureza primitiva e de tornar-se novamente espírito depois que o foi”62

.

A atividade do fogo vivo não pode ser conhecida pela observação exterior das

transformações dos elementos sensíveis, uma vez que o logos da percepção externa

nos revela apenas as transformações conservadoras do mundo material. No entanto,

essa atividade deve ser encontrada nos elementos sensíveis, já que ela se conserva na

substância passiva, de maneira que o único meio de encontrá-la é conhecendo a

porção da atividade primitiva conservada nas próprias coisas. O que pode ser a

atividade primitiva das coisas e, no entanto, não pode ser percebida diretamente pelos

sentidos externos é a alma. Para Bergson, em Heráclito, “a alma vem do fogo como

todo resto, só que, nela, o fogo divino conservou-se mais puro”63

. Para Bergson,

Heráclito está se referindo à percepção interna das mudanças da alma, a porção do

fogo vivo conservada no interior dos seres e de nós mesmos. Se com a sensibilidade

associada ao logos temos uma visão da totalidade, com a percepção dos movimentos

da alma encontramos o ilimitado: “não é possível descobrir os limites da alma,

mesmo percorrendo todos os caminhos: tão profunda medida ela tem”64

. O gênero de

mudança do fogo vivo só pode ser conhecido, pela percepção interna dos movimentos

da alma, e, uma vez que essa percepção é interior aos seres, só podemos conhecer a

mudança do fogo vivo conhecendo as mudanças da nossa própria alma, que muda,

“passa por diferentes estados e, ao mesmo tempo permanece ela própria”65

, ou seja, a

alma é substancial e mutável, e o gênero de mudança que se verifica nela é o de uma

substância que muda.

60

Bergson, H. Cursos sobre..., op. cit, p.84. 61

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 205. 62

Bergson. H. Aulas de Psicologia e Metafísica. São Paulo, Martins Fonte, 2014, p. 374. 63

Bergson, H. Cursos sobre… op. cit., p. 84.201. 64

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 211. 65

Bergson, H. Cursos sobre…, op. cit., p. 200.

39

É numa imagem de Heráclito que a substância mutável pode ser encontrada, e,

nessa imagem, o gênero de mudança da alma. Referimo-nos à imagem do rio descrita

por Ário, segundo a qual Heráclito afirma que o rio é o mesmo e é outro, pois “para

os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por ele correm…

Dispersam-se e… reúnem-se … juntas vêm e para longe fluem… aproximam-se e

afastam-se”66

. De acordo com essa versão, o rio muda e permanece: há um rio, mas de

alguma forma ele é sempre outro, de maneira que podemos pensar uma relação entre

‘o mesmo’ rio e o ‘outro’ rio em que ‘mesmo’ não parece significar necessariamente

idêntico, e ‘outro’ não parece querer dizer absolutamente distinto: segundo Ário,

Heráclito teria dito que há uma coisa, o mesmo rio; mas é também, de certa forma,

diferente.

É possível compreender a imagem do rio heraclitiano descrita por Ário como

um gênero de mudança em que a relação entre o mesmo e o outro equivale à ideia de

suporte (substância) e mudança (fluxo constante): certamente, o leito do rio persiste

sob o fluxo constante das águas, sendo o mesmo rio porque há leito – um suporte

sobre o qual correm as águas –, e o rio é sempre diferente porque o fluxo constante

sobre o leito implica uma mudança constante das águas. No entanto, a imagem do rio

não parece uma simples descrição da dinâmica dos fluxos das correntes de um rio,

nem da geografia onde está sulcado seu leito. Heráclito poderia tê-lo descrito como

um rio qualquer, simplesmente para compará-lo à realidade que flui como a corrente

de um rio, como o faz quando descreve a atividade do fogo físico para compará-la à

mudança conservadora dos elementos materiais.

Se considerarmos até o fim a hipótese de Bergson, e levarmos em conta a

versão de Ário, poderíamos dizer que o rio é o ‘mesmo’ e é ‘outro’ apenas para

alguém, somente para a alma capaz de afirmar a substancialidade e as metamorfoses

do rio: ele é o mesmo pois a alma conserva a sua imagem, e é também outro rio

porque o mundo sensível incessantemente assoma à alma “através dos canais de

percepção, como através de uma janela”67. O rio conservado numa imagem é o mesmo

sem ser idêntico, pois sua imagem guardada na alma coexiste com as mudanças

qualitativas que abalam a sensibilidade. A existência do rio se organiza em função da

66

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 202. 67

Ibidem, p. 213.

40

alma, segundo uma fusão constante da imagem que persiste sendo ela própria com as

novas impressões sensíveis que incrementam e modificam essa imagem.

Provavelmente, é nesse sentido que devemos entender a máxima de Heráclito que

citamos anteriormente, segundo o qual “não é possível descobrir os limites da alma”,

ela é o ilimitado, pois é nela que a realidade se expande a cada mudança, o mesmo rio

é sempre novo. O problema de uma substância que muda pode ser resolvido

introduzindo uma teoria da memória, não formulada por Heráclito nesses termos, nem

por Bergson na época do curso universitário. A teoria da memória, que inclui o

conceito de duração capaz de explicitar a mudança substancial só seria formulado por

Bergson em seu primeiro livro, sete anos depois das aulas sobre Heráclito. Se

forçamos a entrada da memória nesta discussão é porque, embora ela não esteja

explicitada, a ideia de uma substância que muda contém os rudimentos de sua teoria

futura.

Vimos em Heráclito que a mera oposição lógica entre os contrários consiste

numa má interpretação dos sentidos, incapaz de introduzir a mudança contínua que

conecta as qualidades aparentemente distintas e desconexas, sendo a boa interpretação

aquela capaz de ler os sentidos atravessando as contrariedades aparentes para

reconectar as diferentes qualidades através de uma contínua mudança cosmológica.

Porém, o logos do processo cosmológico expressivo das transformações dos

elementos sensíveis é ele ainda uma interpretação lógica do devir, uma vez que a

mudança conservadora que nele se verifica é ordenada segundo uma medida, uma

proporção. A mudança puramente lógica implica que um elemento material deixe de

ser o que ele é para dar lugar a outro elemento, a água evapora-se, transformando-se

em ar, ao mesmo tempo em que o ar condensa-se, transformando-se em água, de

maneira que o logos do processo cosmológico é a expressão da simultaneidade da

mudança segundo uma troca equivalente, uma sinergia onde o todo não se modifica

energeticamente, mas as partes se alteram completamente. Nesse sentido, todos os

elementos mudam e nenhum deles permanece, ou seja, não há uma substância que

muda, mas apenas a mudança evanescente dos elementos materiais, deixando de ser o

que são continuamente. O logos do processo cosmológico segue a lógica das

transformações materiais que, por sua vez, é apenas uma lógica de equivalência que

persegue a estabilidade pela constante igualação das partes pelo todo. Podemos supor

que esse mesmo logos pode ser também uma má interpretação se buscar introduzir

41

nas mudanças da alma a mesma lógica que se verifica no mundo material, uma vez

que a alma é substancial e ao mesmo tempo mutável, não é evanescente como os

elementos materiais, não deixa de ser o que é quando muda, mas muda sem deixar de

ser o que é. O logos do processo cosmológico, segundo Heráclito, refere-se apenas ao

mundo material, é a formulação do todo a partir das mudanças observadas no mundo

exterior, é o que se pode ver, ouvir e conhecer segundo a ordem do mundo.

Se há em Heráclito uma substância que muda, ela só pode ser encontrada na

alma, uma vez que a observação através dos sentidos, que se coaduna com as

mudanças simultâneas e evanescentes do mundo exterior, não pode servir para a

compreensão da mudança substancial da alma, já que no mundo exterior não se

verifica uma substância que perdure em meio à mudança. Ao contrário, a mudança da

alma é a de uma existência substancial, não evanescente, é um ser que perdura no

devir, essencialmente diferente do ser atemporal parmenidiano. A aula de Bergson

encerra-se aí, com a hipótese de um ser do devir heraclitiano.

No entanto, na aula sobre Parmênides há uma hipótese que surge como

contraponto ao ser em Heráclito, e parece ampliar as diferenças entre as duas

concepções de existência, a que se verifica no devir e a que se verifica fora do devir,

revelando por contraste a natureza do ser em Heráclito. É como se o ponto de vista de

Bergson sobre Heráclito fosse mais bem esclarecido pelo ser em Pamênides, não por

complementaridade, porque nada falta ao pensamento de Heráclito que pudesse ser

suprido pelo pensamento de Parmênides, mas porque o ser pamenidiano é relativo à

existência lógica que Heráclito não admite em sua doutrina, justamente por considerá-

la alheia à mudança. De maneira que Parmênides inverte o caminho da filosofia de

Heráclito: em vez de ir de encontro à percepção e na experiência da mudança aceder

ao ser que nela persiste ou à visão do devir cosmológico, a filosofia de Parmênides

vai de encontro à percepção para deter-se no que ela oferece de menos mutável, para

fazer das qualidades desconexas e sem relação umas com as outras o objeto por

excelência de sua filosofia.

É verdade, dissemos anteriormente que Parmênides rompeu absolutamente

com a experiência sensível e formulou os princípios de sua doutrina puramente sob as

exigências a priori do raciocínio, o que é verdadeiro de acordo com Bergson. Mas

Bergson diz também que é possível um ser em Parmênides relativo a uma existência

sensível, ou, mais propriamente, é possível Parmênides ter convertido uma existência

42

sensível em existência atemporal, pela abstração de uma qualidade sensível através

das faculdades de abstração e generalização do raciocínio. O ser de Parmênides tem

origem na experiência sensível, não a que Heráclito busca com sua filosofia, mas a

experiência inversa, aquela que a percepção nos oferece dos objetos determinados no

espaço, considerados unidades distintas e desconexas.

E é realmente possível o ser parmenidiano ter sua gênese na percepção, pois,

se observarmos bem o motivo da doutrina de Parmênides, veremos que ela tem em

vista o mesmo alvo que Heráclito, a saber, o mundo sensível em perpétuo devir. De

fato, o que são os contrários, coexistentes em Heráclito e contraditórios em

Parmênides, senão as qualidades tal como se apresentam aos sentidos? Certamente, o

mundo sensível está posto para ambos, e nele a percepção das qualidades sucedendo-

se umas às outras. Cada um a sua maneira discute as qualidades contrárias percebidas

no mundo material, campo das sensações: o dia e a noite, o quente e o frio etc. Em

Heráclito o devir é a própria realidade, as qualidades contrárias sucedendo-se ou

transformando-se umas nas outras, de modo que o dia e a noite coexistindo

conectados pela mudança que se verifica na passagem de um ao outro são

significativos do devir cosmológico, assim como a mudança da alma é significativa da

existência dos seres no devir. Para Parmênides, o devir é irreal, e o fluxo é uma

confusão de qualidades que são e não são, a sucessão sendo o resultado de uma

sensibilidade que afirma a existência de uma qualidade e, em seguida, a existência da

qualidade contrária, incapaz que é de estabelecer por ela mesma uma identidade

coerente para um dos contrários. Heráclito segue a mudança material através da dupla

afirmação, ora afirmando uma existência, ora afirmando uma existência contrária de

modo a estabelecer uma unidade entre elas, da mesma forma como procura a

estabelecer a existência da alma como substância duradoura em meio à mudança,

significando que importa para Heráclito o logos afirmativo da existência das coisas

segundo a percepção, de acordo com dois gêneros distintos de mudança. Parmênides

persegue o imutável através do princípio de não contradição e identidade, afirmando

uma existência e negando uma existência contrária, de modo a viabilizar a percepção

estática de uma qualidade isolada das demais, removida da sucessão qualitativa

percebida pelos sentidos, importando à sua doutrina a determinação a priori da

identidade atemporal da qualidade percepcionada, convertida por isso mesmo em

43

unidade indivisível, em existência eternamente imutável, de acordo com os atributos

do ser lógico.

A existência lógica de uma qualidade abstraída da mudança em Parmênides é

considerada por Bergson em razão “dos fragmentos de Parmênides que nos

representam o ser como contínuo, homogêneo”68

, segundo o qual o ser aparece

primeiro como representação geral do espaço, visto que “nem é divisível, pois é

homogêneo; [...] é todo contínuo”69

, e, em seguida, como um corpo cujos limites o

determinam e o distinguem num espaço homogêneo, “pois forte Necessidade o retém

nas grilhetas de um limite, que de ambos os lados o encerra”70

. Certamente não se

trata de uma continuidade temporal, uma vez que o próprio Parmênides a descarta ao

afirmar que o ser “nunca foi e nunca será”71

, pois “a Justiça jamais soltou as grilhetas

para lhe permitir nascer ou morrer”. Isso significa que o ser retido por limites fora do

tempo existe como unidade distinta no espaço? É possível, pois, uma vez fora do

tempo, o ser pode muito bem ser representado como unidade em si contínua porque

indivisível, um corpo determinado espacialmente, isto é, uma existência abstraída do

tempo e identificada como unidade no espaço, “pois agora é como um todo, um só,

contínuo”72

. Se, em função do primeiro fragmento que aponta o ser como uma

continuidade espacial, concordarmos que a noção de limite empregada por

Parmênides no segundo fragmento pode ser entendida como um limite espacial,

podemos supor que o ser representado como uma unidade no espaço é senão

determinação, isto é, trata-se das condições de um objeto estável, sem potencial para

mudar, cuja distinção equivale a determinidade arbitrária exigida pela investigação da

Verdade segundo as condições de inteligibilidade impostas pelo princípio de não

contradição e identidade. Realmente, o princípio de não contradição e identidade

incide sobre uma existência determinando-a, pois esse princípio de dupla face é senão

a questão determinante e intransitiva colocada à existência sob a forma proposicional

‘o que é não pode ser e não ser ao mesmo tempo’, que pode ser resumida na pergunta

‘o que é?’ dirigida a uma existência que assoma à percepção. Se a existência responde

à pergunta revelando a sua face determinada é porque, em alguma medida, a

percepção e o raciocínio a priori coincidem na imutabilidade, resultando na

68

Bergson, H. Cursos sobre…, op. cit., p. 209. 69

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit., p. 261. 70

Ibidem, p. 260. 71

Ibidem. 72

Ibidem, p. 261.

44

representação abstrata de uma existência como unidade no espaço, eternizada fora do

tempo.

A Verdade é o poema de Parmênides sobre a univocidade do que é veraz: tudo

o que existe tem o seu contrário, portanto, há sempre duas vias para o conhecimento

das coisas, mas, de dois caminhos, um “é aquilo que lhe é impossível não ser”73

, ao

passo que o outro é “aquilo que não é, e que forçoso se torna que não exista”74

.

Quando trilhamos unicamente o caminho daquilo que é, encontramos a única verdade

que é possível encontrar, a saber, a unidade do ser. O ‘um’ é o centro abstrato para o

qual devem convergir tanto o pensamento quanto a qualidade percebida, de modo que

o pensamento abstrato e a qualidade abstraída devem permanecer alinhados como

duas unidades, formando uma única unidade. Embora abstratos, ambos devem se

comportar à maneira dos sólidos: o ‘um’ abstrato não pode se dividir sem deixar de

ser o que é, da mesma forma como um corpo não o pode. É como se o ‘um’ fosse um

sólido abstrato, sujeito à mesma lógica dos corpos concretos no espaço. Uma vez que

Bergson associa os princípios da doutrina de Parmênides ao princípio de não

contradição e identidade, e supõe um ser corpóreo em Parmênides, podemos inferir

que as condições de inteligibilidade sob a forma do princípio de não contradição e

identidade ao ser corpóreo, a determinidade que este princípio exige do seu objeto,

que ele seja exatamente o que é não podendo ser outro, se consubstancia com a ideia

que fazemos dos sólidos, e coincide com a apreensão sensível de uma existência

sólida e distinta. E Parmênides satisfaz essas condições quando concebe o ser segundo

os seus limites, sob a forma de uma esfera, dando contornos, forma e limite ao que é,

ou seja, representando o ser no espaço: o ser é extenso.

Segundo Parmênides, a ideia que o senso comum faz das coisas já é um

começo da Verdade, pois ao acreditar na sucessão qualitativa, acredita na percepção,

que ora afirma uma existência, ora afirma uma existência contrária; primeiro

percebemos o dia, “uma chama etérea do fogo, brando e muito leve, em todas as

direções idêntico a si mesmo”75

, e, em seguida, percebemos “o contrário, noite escura,

densa na aparência e pesada”76

. A opinião do senso comum é o alicerce da verdade,

uma vez que a percepção nos oferece uma existência de cada vez. Caso fixemos o

73

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit. p. 255. 74

Ibidem. 75

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit. p. 266. 76

Ibidem.

45

pensamento no ‘agora’ da percepção, o objeto presente só poderá ser o que é, pois

Parmênides “considera o pensamento e a percepção como sendo a mesma coisa”.

Enquanto um, o pensamento e a percepção alinhados se encontram num presente

intransitivo, em que a pergunta ‘o que é?’ dirigida pelo pensamento à percepção é

respondida pela coisa percepcionada. Mas as qualidades se sucedem uma à outra na

percepção, e com ela o pensamento também muda, conforme afirma Simplício a

propósito de Parmênides: “o pensamento varia segundo a prevalência do quente ou do

frio”77

. Para Parmênides, o erro do senso comum, é o de “dar nome a duas formas, das

quais não precisavam de nomear mais do que uma”. O senso comum acredita na

coexistência dos contrários, sua opinião é que as coisas mudam porque a percepção e

o pensamento sobre elas igualmente mudam. Mas o senso comum só procede dessa

forma porque descuida do ‘agora’ do pensamento e da percepção, recorrendo à

memória onde a recordação de uma qualidade se mistura à recordação de outra

qualidade. E por lembrarem que uma qualidade se sucede a uma outra, pensam em

ambas ao mesmo tempo, pois a mistura entre uma e outra na memória dá-lhes a ilusão

que ambas coexistem, quando, na verdade, se nos atermos ao agora do pensamento e

da percepção, veremos que existe apenas uma das duas. É somente nessas condições

da existência que assoma agora à percepção que podemos determinar o que ela é

abstraindo seu potencial para ser diferente do que é, conforme poderíamos supor caso

nos lembrássemos de ela ter sido sucedida por uma existência contrária, ou, caso

atentássemos para as variações da percepção e do pensamento.

É nesse sentido que Parmênides, ao mesmo tempo em que admite um

princípio de verdade na opinião do senso comum, critica “a incapacidade que lhe

dirige no peito o pensamento errante”, esquecido do presente imediato do pensamento

e da percepção, perdido entre as coisas que coexistem na memória, pensando em

ambas ao mesmo tempo sem poder pensar em nenhuma delas em particular, como se

tivessem duas cabeças, “gente dicéfala”78

. De maneira que é preciso ignorar qualquer

sentido interno que nos permitisse rememorar a mudança, da mesma forma como é

preciso ignorar as variações dos sentidos externos, negar tanto a sucessão presente

quanto a sucessão passada: é preciso abstrair essa potência, nossa e das coisas, de

pensar a mudança e de mudar. A existência verdadeira é tudo aquilo que não tem

77

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit. p. 272. 78

Ibidem, p. 257.

46

potencialidade para ser diferente do que é no presente, um presente irredutível à

sucessão temporal, eternizado no pensamento a partir de uma percepção.

As condições de inteligibilidade implicam que o ser e o pensamento

coincidam na esfera da determinação, a razão sob a forma a priori do princípio de

contradição e identidade coincidindo com o ser enquanto objeto a priori do

raciocínio, ambos atendendo simultaneamente à exigência de imutabilidade da

questão ‘o que é?’, que por sua vez só pode ser respondida por uma existência

separada da realidade movente. Essa mesma questão pode ser posta inúmeras vezes a

cada uma das qualidades convertidas em unidades no espaço, de maneira que as

unidades multiplicadas comporiam uma multiplicidade distinta. Se Parmênides não

estabeleceu as condições de uma multiplicidade distinta, composta por unidades

separadas umas das outras no espaço, certamente ele estabeleceu as condições para

representá-las como unidades no espaço por meio do raciocínio a priori governado

pelo princípio de não contradição e identidade. A interpretação de Bergson sugere que

Parmênides definiu as condições de inteligibilidade iniciais para representar as

qualidades como unidades fora do tempo ao associar o ser ao um. Mais propriamente,

Parmênides teria concebido o ser lógico, uma unidade vazia a ser preenchida por

qualquer qualidade submetida às condições do raciocínio a priori. O discurso sobre a

realidade em Parmênides tem em vista o um e, como alvo do conhecimento, como

enunciado, o um é o todo, absoluto em si mesmo, significando que a inteligibilidade

sob a forma do princípio de contradição e identidade pode ser entendida como sendo a

determinação logicamente necessária para estabilizar o objeto em meio à mudança.

47

5 O DIA E A NOITE

O dia e a noite são os estados da natureza que melhor representam o problema

dos contrários, duas imagens recorrentes em Heráclito e Parmênides. Essas não são

somente as imagens mais recorrentes entre os dois filósofos quando se dirigem ao

senso comum, senão dois estados da natureza presentes nos mitos gregos de origem

do mundo.

Embora antagônicas, as doutrinas de Heráclito e Parmênides concordam

quanto às opiniões do senso comum: para ambos, na opinião do senso comum, os

contrários são senão a sucessão qualitativa representada por suas extremidades mais

estáveis, uma vez que, popularmente, as qualidades contrárias expressam a sucessão:

o dia e a noite são dois nomes da sucessão qualitativa, assim como todos os nomes

que expressam qualidades contrárias nomeiam o devir por aderirem aos estados mais

estáveis da mudança. O senso comum nomeia uma qualidade em meio à mudança

porque um instante da sucessão parece perdurar com o sol luminoso que persiste

através das horas, o qual é chamado ‘dia’, igual a si mesmo enquanto não avança

sobre ele a noite escura. E quando não há mais a luz do dia e o instante agora perdura

com a escuridão, esse presente é chamado ‘noite’, igual a si mesma enquanto

nenhuma réstia de luz romper no horizonte. Por um lado, o senso comum admite que

a sucessão contínua do dia pela noite é a de uma qualidade determinada sucedendo

uma outra qualidade determinada, o dia em si e a noite em si existindo separadamente

um do outro, alternando-se perpetuamente. E, por outro lado, admite também que o

dia e a noite, embora existam individualmente, transformam-se um no outro a cada

crepúsculo, significando que há, na realidade, uma mesma mudança qualitativa

contínua que ora manifesta-se à percepção como a claridade do dia, ora como o

escuro da noite.

Se as qualidades contrárias são simples oposições extremas de uma mudança

contínua, nomeadas e individualizadas em razão de sua estabilidade para a percepção

sensível, que marcam a sucessão qualitativa e, ao mesmo tempo, são efeitos de uma

mesma mudança que se desenvolve indefinidamente, podemos afirmar que a relação

entre os contrários é para o senso comum, de um modo geral, uma espécie de síntese

do tempo em sua formulação mais regular, um jogo simples entre o instável e o

estável – entre o ser e o devir, para pôr a questão em termos filosóficos –, cujas regras

são facilmente entendidas por todos.

48

Para Heráclito, a ilusão do senso comum é acreditar que as qualidades

contrárias, o dia e a noite, são fenômenos distintos e sem relação entre si. Heráclito

busca atravessar as contrariedades aparentemente desconexas sustentadas pela opinião

do senso comum para atingir a mudança contínua em processo entre as qualidades

contrárias. Sua filosofia mostra que no auge do dia ou da noite não é possível

perceber a mudança qualitativa contínua em processo entre essas duas qualidades

determinadas. É como se Heráclito, por assim dizer, pedisse a atenção do senso

comum para o que ocorre entre as duas qualidades determinadas, isto é, os dois

crepúsculos, o início do dia e o início da noite, quando a transição entre o claro e o

escuro faz com que o dia e a noite se interpenetrem um no outro ao ponto de

coexistirem na percepção menos como qualidades contrárias e mais como um

processo contínuo de mudança qualitativa. Contra a ideia popular de sucessão

qualitativa na qual uma qualidade determinada dá lugar a uma outra qualidade

determinada, o dia cedendo espaço à noite sucessivamente, Heráclito pede ao senso

comum que não a considere apenas dois fenômenos isolados, sem relação entre si,

senão como uma troca simultânea do claro pelo escuro, onde um lado do mundo

clareia ao mesmo tempo em que o outro escurece. De modo que Heráclito admite os

contrários afirmados pelo senso comum, contanto que considerados segundo a

mudança entendida como o processo de troca através do qual eles se transformam

simultaneamente. Em suma, quando Heráclito afirma a coexistência dos contrários

contra a ideia do senso comum de que uma qualidade determinada sucede uma outra

qualidade determinada, é menos porque as qualidades existem em separado e mais

porque coexistem enquanto efeito de uma única mudança simultânea, oculta quando

percebemos apenas o dia ou apenas a noite, mas manifesta quando presenciamos nos

crepúsculos os estados intermediários entre ambas.

Inversamente, Parmênides acena para o senso comum apoiando a ideia

popular de uma sucessão de qualidades determinadas existindo separadamente

conforme se alternam uma após a outra: é bem-vindo o auge do dia e da noite quando

ambas as qualidades, em suas formas determinadas, permitem identificá-las, assim

como a ideia de que ambas existem separadamente satisfaz em parte a exigência de

unidade em Parmênides, já que o dia e a noite enquanto qualidades determinadas são

percepções suficientemente estáveis para o pensamento tomá-las em separado uma da

outra, como duas unidades distintas. Parmênides pede apenas que o senso comum

dispense a ideia de transformação associada à sucessão qualitativa, porque uma

49

qualidade igual a si mesma em todos os sentidos não pode participar em nenhuma

medida de um suposto processo de transformação, sob pena de indeterminar-se

deixando de ser o que é. Nesse sentido, ao contrário de Heráclito, Parmênides pede ao

senso comum que desvie a atenção dos crepúsculos, por assim dizer, onde as

qualidades instabilizadas se mesclam e se indeterminam, e a mantenha no auge do dia

ou da noite, ali onde elas são determinadas e podem ser tomadas separadamente.

Se Heráclito censura o senso comum por admitir as qualidades contrárias

como dois fenômenos díspares e sem relação entre si, e Parmênides censura o

consenso popular por admitir que as qualidades contrárias se transformam umas nas

outras segundo um processo contínuo de mudança, podemos dizer que a censura de

um ao senso comum corresponde inversamente ao motivo da filosofia do outro,

mutuamente. Ou seja, Heráclito censura a opinião do senso comum sobre as

qualidades imutáveis, que por sua vez correspondem ao motivo da doutrina de

Parmênides, e este, inversamente, censura a mudança admitida pelo senso comum,

que por seu turno é relativa ao motivo da doutrina de Heráclito. Logo, as opiniões do

senso comum terminam por compor-se das duas teses antagônicas, de maneira que as

duas perspectivas excludentes em Heráclito e em Parmênides, em razão dos motivos

antagônicos de suas filosofias, convivem diversamente nas opiniões do senso comum.

Se, de acordo com as críticas de Heráclito e Parmênides, as opiniões do senso comum

podem ser relativas à mudança qualitativa ou às qualidades imutáveis, e as suas

filosofias se desenvolvem no sentido inverso daquilo que criticam, podemos dizer que

ambas são dois diferentes prolongamentos teóricos de duas diferentes opiniões: a da

mudança, que se constitui numa ontologia da mudança em Heráclito, e a da

imutabilidade, que se consolida numa ontologia da imutabilidade. E, uma vez que as

opiniões do senso comum são justamente aquelas derivadas do conhecimento obtido

através da experiência, alheias às especulações filosóficas, as filosofias de Heráclito e

Parmênides têm raízes na experiência, e, consequentemente, dizem respeito à

percepção.

Considerar o embate teórico entre Heráclito e Parmênides, travado no solo

comum da percepção, só é possível porque Bergson põe as questões relativas a essas

doutrinas em termos de percepção, admitindo, da mesma forma que o senso comum,

que “essas doutrinas opostas podem ser consideradas igualmente verdadeiras”, pois

50

“tudo depende do ponto de vista”79

– aqui, para Bergson, ‘ponto de vista’ quer dizer

realmente uma percepção, uma visão que reflete um modo de perceber a realidade.

Para Bergson, o solo comum da percepção, entendido como território de coexistência

das duas perspectivas, tem valor na medida em que o conhecimento obtido através da

experiência, partilhado pelo senso comum, pode considerar uma existência tal como

aparece numa percepção: o senso comum admite uma existência imutável, e admite

também uma existência mutável, na medida em que as qualidades percebidas lhe

parecem estáticas ou dinâmicas, de acordo com a experiência que o envolve.

Se essas duas perspectivas, misturadas nas opiniões do senso comum,

distinguem-se nitidamente em dois princípios antagônicos nas doutrinas de Heráclito

e Parmênides, é porque ambos os filósofos não consideram as qualidades percebidas

sem antes operar uma distinção entre a sua aparência e a sua existência: para

Parmênides a mudança é uma aparência, e a imutabilidade uma existência; ao passo

que para Heráclito, inversamente a imutabilidade é uma aparência, e a mudança uma

existência. Porém, ainda que um considere aparente o que é existente para outro,

ambos ainda tratam as qualidades da mesma forma que o senso comum, isto é,

consideram-nas tal como aparecem numa percepção. Isto significa que tal distinção

não tem o mesmo sentido dicotômico que a distinção entre o inteligível e o sensível

operada posteriormente por Platão, segundo a qual a existência é supra sensível,

relativa à ideia, e as qualidades sensíveis são apenas aparências sem valor ontológico,

de maneira que, para Heráclito e Parmênides, a distinção entre a aparência e a

existência não correspondem a divisão da realidade em dois mundos, um inteligível e

o outro sensível, senão a altercação de duas visões (percepções) de mundo que se

distinguem em função da intenção de suas filosofias, se é a de conhecer o que as

coisas são segundo o modo pelo qual se transformam, ou se é a de conhecer o que as

coisas são segundo as condições de inteligibilidade colocadas por um raciocínio a

priori.

Na verdade, a partir da discussão sobre o dia e a noite, esses dois marcadores

extremos da sucessão qualitativa caros ao senso comum, Heráclito e Parmênides

desenvolvem duas diferentes teorias da percepção cuja ingenuidade é próxima às

opiniões do senso comum das quais se originam. Ainda que sejam mais complexas do

que as opiniões do senso comum, ambas as teorias lidam com a realidade a partir dos

79

Bergson, H. Cursos sobre…, op. cit.,, p. 231.

51

dados imediatos dos sentidos, sem levar em conta “toda a extensão do problema”80

,

pois, assim como a distinção entre o inteligível e o sensível, “a distinção entre o

sujeito e o objeto, fundamento da filosofia moderna, é algo desconhecido pelos

Antigos”81

. De maneira que, embora mais complicadas do que às opiniões do senso

comum, as filosofias de Heráclito e Parmênides são simples se comparadas aos

problemas que a filosofia encontrou no decurso do seu desenvolvimento,

permanecendo ingênuas na medida em que não incluem esses problemas em seus

núcleos especulativos.

No entanto, a simplicidade dessas doutrinas é inversamente proporcional à sua

amplitude: elas representam dois domínios diferentes do pensamento entre os quais a

filosofia posterior sempre estará às voltas. O interesse de Heráclito pela mudança

qualitativa conduz a atenção para o mundo sensível, onde a mudança evanescente se

dá simultaneamente em todas as partes, mas também chama atenção para as mudanças

sucessivas da alma substancial que perdura em meio aos diferentes estados pelos

quais passa. Seja a mudança evanescente dos elementos da natureza, seja a mudança

substancial da alma a teoria da percepção em Heráclito tem por objeto a mudança

qualitativa. E, como a intenção de sua filosofia é a de saber como as coisas que

existem na alma e na natureza mudam qualitativamente, o pensamento de Heráclito se

desenvolve no domínio da qualidade onde tudo é heterogêneo a tudo. Diferentemente

de Heráclito, o interesse de Parmênides é menos pela mudança qualitativa e mais pela

representação de uma qualidade como uma unidade. Sua teoria da percepção também

conduz a atenção para o mundo sensível, onde a sucessão qualitativa permite a

coincidência entre uma qualidade mais estável e as exigências de determinação e

unidade do pensamento. De uma certa forma, Parmênides também chama a atenção

para uma interioridade, mas o mundo interior em Parmênides é análogo ao mundo

exterior percebido, já que o pensamento se consubstancia com a percepção estável dos

objetos sensíveis determinados. De maneira que não há alma em Parmênides, isto é,

não há uma substância que perdura em meio à mudança, senão apenas uma

interioridade constituída pelo pensamento sob a forma do raciocínio a priori. Na

medida em que o ser em Parmênides é uma unidade lógica vazia a ser preenchida por

qualquer qualidade passível de determinação, o alvo de sua filosofia é menos a

diferença qualitativa e mais aquilo que é indiferente e comum às diferentes

80

Bergson, H. Cursos sobre…, op. cit., p. 182. 81

Ibidem.

52

qualidades, a saber, a quantidade. Logo, o pensamento de Parmênides, diferentemente

de Heráclito, se desenvolve no domínio da quantidade onde as qualidades convertidas

em unidades são tautologias, isto é, representam sempre uma mesma síntese

unificadora, e, consequentemente tudo equivale a tudo, ou seja, tudo é homogêneo a

tudo.

Recuadas em relação aos problemas ulteriores da filosofia, esses dois pontos

de vista apresentam in natura, por assim dizer, duas tendências divergentes da

percepção, uma que forma uma multiplicidade quantitativa e outra que forma uma

multiplicidade qualitativa. Em seu curso, Bergson afirma que as doutrinas gregas

ulteriores oscilaram entre esses dois pontos de vista, buscando reconciliar esses

domínios distintos, ora reduzindo a qualidade à quantidade, ora reduzindo a

quantidade à qualidade. Na medida em que procuram explicar uma pela outra, as

doutrinas que assim procedem terminam por confundir esses domínios que, para

Bergson, na época dos cursos, “talvez sejam irreconciliáveis”82

. Importa ressaltar que,

logo após os cursos sobre a filosofia grega, a tese central de sua primeira obra retoma

o problema, mas dessa vez Bergson decididamente declara as duas perspectivas

irreconciliáveis e, não obstante, coexistentes: o Essai mostra que, embora

irreconciliáveis as duas perspectivas constituem dois modos distintos de percepção da

realidade, ou “dois aspectos da vida consciente”, ou ainda “duas realidades de ordem

diferente, uma heterogênea, a das qualidades sensíveis, a outra homogênea, que é o

espaço”, relativas ao eu superficial e ao eu profundo, que “não fazem senão uma

única e mesma pessoa”83

.

Sem aprofundar a tese de Bergson no Essai, em razão do caráter deste trabalho

restrito aos cursos sobre Heráclito e Parmênides, importa apenas salientar que a obra

inaugural da filosofia de Bergson restaura justamente a distinção entre um domínio

qualitativo e um domínio quantitativo, confundidas pelas doutrinas filosóficas, mas

estanques em Heráclito e Parmênides. De certa forma, a ingenuidade original de

Heráclito e Parmênides é intencionalmente retomada por Bergson, o que lhe permite

recuar para a posição desses filósofos, fora dos intrincados problemas surgidos da

conciliação entre uma multiplicidade qualitativa e uma multiplicidade quantitativa. A

originalidade da abordagem de Bergson em seus cursos se deve justamente a esse

recuo em relação aos intrincados labirintos dialéticos da filosofia, que se consolidará

82

Bergson, H. Cursos sobre…, op. cit., p. 231. 83

Bergson, H. Ensaios Sobre os Dados Imediatos da Consciência. Lisboa, Ed. 70, 1927, p. 88.

53

mais adiante no Essai, quando claramente esses diferentes domínios recebem

contornos próprios, relativos a objetos e métodos distintos, a multiplicidade

qualitativa sendo da alçada da filosofia, e a multiplicidade quantitativa da esfera da

ciência.

Os cursos de Bergson permitem pensar que no domínio da quantidade, com

Parmênides, encontramos a gênese arcaica da ciência: o mérito de Parmênides é o de

“supor a harmonia entre o ser e o pensamento”84

, e de determinar as condições de

inteligibilidade para a apreensão do ser sob a forma do raciocínio a priori.

Parmênides determinou as condições de inteligibilidade para a representação das

coisas enquanto unidades distintas, reservando ao pensamento um lugar no espaço em

harmonia com os objetos exteriores determinados. Sua doutrina, tendo tomado para si

o domínio da quantidade, não se ocupou com o modo pelo qual as coisas se

determinam, mas apenas pelas coisas já feitas, acabadas e inertes. Já no domínio da

qualidade, com Heráclito, encontram-se os rudimentos fósseis da filosofia: a

originalidade de Heráclito é ter procurado no domínio da qualidade conhecer “como

as coisas foram feitas”85

, a partir do qual tomou para si a heterogeneidade radical,

onde não se pode conhecer a natureza das coisas sem antes apegar-se ao seu modo de

formação ou determinação. Em Heráclito, o modo pelo qual as coisas se determinam,

ou melhor, o modo pelo qual as coisas se transformam naquilo que são,

continuamente, revela a vida das coisas.

Para Bergson, os aforismos de Heráclito versificam um mundo visto desde

dentro: por analogia, Heráclito exterioriza os atributos da alma conferindo ao mundo

exterior evanescente uma existência mutável e substancial. Os hexâmetros de

Parmênides, na direção inversa, metrificam um mundo visto desde fora, relativo aos

objetos determinados, interiorizados em pensamento graças a sua harmonia com os

princípios diretores do raciocínio.

No fim das contas, Bergson admite tanto a perspectiva da mudança em

Heráclito, relativa a uma realidade heterogênea, quanto à perspectiva da imutabilidade

em Parmênides, relativa a uma realidade homogênea, contanto que seja levado em

conta o fato que a mudança é uma realidade das próprias coisas, e a filosofia deve nos

lançar de encontro a elas, seguindo os seus movimentos cuja lógica própria desafia as

condições de inteligibilidade próprias do raciocínio a priori sob a forma lógica da

84

Bergson, H. Cursos sobre…, op. cit., p. 210. 85

Ibidem, p. 202.

54

identidade e da contradição, enquanto que a imutabilidade é uma realidade apenas

para nós, quando tomamos as coisas em função das exigências de nossas faculdades

racionais, circunscrevendo a vida movente dos seres nos limites da razão.

O dia e a noite representam não só as teorias da percepção em Heráclito e

Parmênides relativas, dependendo do ponto de vista, a duas unidades ou a uma única

unidade de transformação das qualidades umas nas outras, senão também duas teorias

incipientes da memória. As qualidades em Heráclito respondem a uma dinâmica

fluida, a transformação sendo uma interpenetração de uma qualidade pela outra, seja

na alma ou nos elementos materiais. O modo fluido do pensamento de Heráclito, no

entanto, se choca com a dureza do pensamento de Parmênides: a fluidez penetrante

das qualidades, tal como admitida por Heráclito, é típica do uso da memória para o

conhecimento, em que as qualidades coexistem misturadamente umas com as outras

impedindo o conhecimento objetivo, cuja solidez justapõe em blocos as qualidades

percepcionadas, tal como a filosofia parmenidiana exige.

Heráclito é o filósofo dos crepúsculos, por assim dizer, tanto quanto sua

filosofia expressa um mundo fluido em permanente metamorfose. Parmênides seria o

filósofo das horas altas do dia e da noite, se não fosse pelo fato de expressar sua

preferencia ontológica apenas pelo dia e pelo pensamento objetivo, conferindo à noite

e à memória a esfera do não-ser. A memória, tão escura quanto a noite, não é objeto

de conhecimento porque não permite divisar claramente os contornos das coisas tal

qual a luz do dia e do conhecimento objetivo permitem.

Tão negro quanto a noite e a memória é este caderno de Bergson que conduziu

a esta pesquisa pelos caminhos da percepção em Heráclito e Parmênides. Depois do

Caderno Negro a teoria da memória em Bergson iluminará com a luz translúcida da

memória o problema da percepção, estanques entre esses filósofos. Para Bergson

qualquer percepção já é memória: o presente luminoso e objetivo de Parmênides só

existe por uma arbitrariedade do raciocínio, pois, na verdade, a percepção de um

objeto nasce da invasão do passado no presente, da luz negra da memória sobre as

coisas, que, por ser translúcida, não é imediatamente percebida86

. E, realmente, a

origem popular do dia e da noite, encontrada nos mitos gregos de origem do mundo87

,

informam que o dia nasceu da noite.

86

Bergson, H. O Pensamento e o Movente. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 175. 87

Kirk, G. S.; Raven, J. E.; Schofield, M., op. cit. p. 130.

55

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