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1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER HAXKAR JEAN O processo coletivo e o IRDR ante a litigiosidade repetitiva e de massa Mestrado em Direito São Paulo 2020

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

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Page 1: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

OLIVIER HAXKAR JEAN

O processo coletivo e o IRDR ante a litigiosidade repetitiva e de massa

Mestrado em Direito

São Paulo

2020

Page 2: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

OLIVIER HAXKAR JEAN

O processo coletivo e o IRDR ante a litigiosidade repetitiva e de massa

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título de MESTRE em Direito,

na subárea Direitos Difusos e Coletivos, linha de pesquisa

Efetividade dos Direitos de Terceira Dimensão e Tutela da

Coletividade, dos Povos e da Humanidade, sob a orientação

do Prof. Dr. Gilson Delgado Miranda.

São Paulo

2020

Page 3: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

3

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

OLIVIER HAXKAR JEAN

O processo coletivo e o IRDR ante a litigiosidade repetitiva e de massa

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título de MESTRE em Direito,

na subárea Direitos Difusos e Coletivos, linha de pesquisa

Efetividade dos Direitos de Terceira Dimensão e Tutela da

Coletividade, dos Povos e da Humanidade, sob a orientação

do Prof. Dr. Gilson Delgado Miranda.

Aprovado em: _____/_____/_____.

Banca Examinadora

Professor Doutor Gilson Delgado Miranda (Orientador)

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Julgamento:_______________________________________________________________

Assinatura:________________________________________________________________

Professor (a) Doutor (a)______________________________________________________

Instituição: ________________________________________________________________

Julgamento:________________________________________________________________

Assinatura: ________________________________________________________________

Professor (a) Doutor (a)______________________________________________________

Instituição: ________________________________________________________________

Julgamento:________________________________________________________________

Assinatura: ________________________________________________________________

Page 4: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

4

RESUMO

A evolução do direito material conduziu a uma nova visão do direito processual, superando a

visão privatista de tutela do direito individual, para também tutelar os direitos

supraindividuais, o que culminou na elaboração de diplomas legais formadores de um

avançado sistema de tutela coletiva. Apesar disso, o processo coletivo não foi suficiente para,

sozinho, abarcar o constante aumento da litigiosidade, em especial demandas repetitivas e de

massa. Buscando enfrentar o crescente aumento do número de processos e a dispersão

jurisprudencial, o legislador, no Código de Processo Civil/2015, trouxe um novo instrumento

processual denominado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (“IRDR”). A

presente dissertação visa analisar e comparar os principais aspectos dos dois regimes

jurídicos, de modo que se possa extrair desta análise um regime amplo e complementar que,

associado a novas ferramentas de inteligência artificial, seja capaz de proporcionar uma tutela

jurisdicional efetiva, célere e juridicamente segura.

Palavras-chave: Processo coletivo. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

(“IRDR”). Litigiosidade repetitiva e de massa. Efetividade. Celeridade. Segurança jurídica.

Page 5: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

5

ABSTRACT

The evolution of rights has led to a new view of procedural codes, overcoming the privatist

view of the individual right, to also protect group rights, which culminated in the elaboration

of an advanced system of class action and collective protection of those rights. Despite this,

the collective process was not enough to face the constant increase in litigation, in particular

the mass tort cases. Seeking to face the growing increase of the litigation and the

jurisprudence spread, the legislator, in the Code of Civil Procedure of 2015, brought a new

procedural instrument called incident of resolution of repetitive demands (“IRDR”). The

present dissertation aims to analyze and compare the main aspects of the two legal regimes, in

order to extract a new vision of a broad and complementary regime that, associated with new

artificial intelligence tools, can be capable of providing effective, fast and secure judicial

protection.

Keywords: Class action. Incident of resolution of repetitive demands (“IRDR”). Mass tort

cases. Effective. Fast. Secure judicial protection.

Page 6: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

6

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 8

2 A EVOLUÇÃO DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL 12

2.1 Contribuição doutrinária 12

2.2 Evolução legislativa 15

2.2.1 Lei de Ação Popular 15

2.2.2 Lei de Ação Civil Pública 16

2.3 Ações coletivas na Constituição Federal de 1988 22

2.4 Código de Defesa do Consumidor 23

2.5 Mandado de segurança coletivo 26

3 PRINCIPAIS ASPECTOS DO MODELO BRASILEIRO DE PROCESSO

COLETIVO 29

3.1 Microssistema 29

3.2 Conceito e definição dos direitos transindividuais 32

3.3 Legitimidade 38

3.3.1 Natureza jurídica 40

3.3.2 Legitimados 41

3.3.2.1 Legitimidade segundo a jurisprudência 41

3.3.3 Legitimidade do Ministério Público 41

3.3.4 Legitimidade da Defensoria Pública 48

3.3.5 Legitimidade dos entes de direito público interno 51

3.4 Coisa julgada no processo coletivo 51

3.4.1 Limites objetivos, subjetivos, modo de produção e extensão da coisa julgada no

processo coletivo 53

3.4.2 Transporte in utilibus 57

3.4.3 Suspensão da ação individual 59

3.4.4 Limitação territorial 60

4 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015 E SEUS INSTRUMENTOS DE

ENFRENTAMENTO À LITIGIOSIDADE DE MASSA E REPETITIVA 65

4.1 Os precedentes vinculantes no Código de Processo Civil/2015 65

4.1.1 Legislação brasileira e inovação do Código de Processo Civil/2015 65

4.1.2 Crítica e adequação ao sistema brasileiro 67

4.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 71

4.2.1 Origem e conceito 72

4.2.2 Requisitos de admissibilidade 75

4.2.3 Principais efeitos 79

4.2.3.1 Suspensão dos processos 79

4.2.3.2 Efeitos nos demais processos 82

4.2.3.3 Prazo prescricional 84

4.4 (In) constitucionalidade 84

5 APROXIMAÇÃO ENTRE CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E TUTELA

COLETIVA: DIFICULDADES E DESAFIOS 87

5.1 Entraves legais do processo coletivo brasileiro 87

5.1.1 Coisa julgada na tutela de direito individuais homogêneos 89

5.1.2 Litispendência entre demanda individual e processo coletivo 91

Page 7: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

7

5.1.3 Legitimidade ativa 94

5.2 Deficiências dos instrumentos de enfrentamento à litigiosidade de massa e

repetitiva trazidos pelo Código de Processo Civil 99

5.2.1 Formação de coisa julgada 99

5.2.2 Caráter meramente repressivo 102

5.2.3 IRDR somente para questões de direito 103

5.2.4 Ausência de suspensão do prazo prescricional das pretensões individuais 105

5.2.5 Precedentes vinculantes: meio constitucional para a efetiva e qualitativa

redução de processos? 106

5.3 Complementaridade e interdependência entre os modelos de tutela 107

5.3.1 Regime amplo de tutela de direitos coletivos e de tutela coletiva de direitos 107

5.3.2 Subsidiariedade do regime de tutela do Código de Processo Civil frente à

ação coletiva 109

5.3.3 O veto ao artigo 333 do Código de Processo Civil 113

5.4 Outras formas de enfrentamento da litigiosidade repetitiva 118

5.4.1 Custo da litigância 122

5.4.2 Maiores litigantes 127

5.4.3 Litigância de má-fé e fraudulenta 130

5.4.4 Inteligência artificial 132

6 CONCLUSÃO 137

REFERÊNCIAS 147

Page 8: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

8

1 INTRODUÇÃO

A evolução do direito conduziu à criação de novas categorias de direitos. Os direitos

humanos de primeira geração pretendiam limitar os poderes do rei, ou seja, preservar os direitos

de liberdade para que não fossem atingidos em sua esfera jurídica. Seu marco histórico foi a

Magna Carta de 1215.

Somente séculos mais tarde passou-se a tratar e a desenvolver direitos que fossem além

dos direitos de liberdade em razão de uma nova realidade econômica e social trazida pela

revolução industrial, que alterou não somente as relações no âmbito das famílias, mas também

as relações entre patrão e empregado. A Segunda Guerra Mundial foi marco fundamental em

razão de graves violações aos direitos humanos ocorridas no seu decorrer, culminando na

criação de organismos internacionais e tratados destinados a assegurar direitos

supraindividuais, conformando a segunda e a terceira gerações de direitos humanos.

Posteriormente, outros fatores como a expansão da internet e das relações comerciais

e sociais “virtuais”, contratos massificados, ampliação do acesso a serviços como telefonia,

serviço bancário, aeroviário, além da disseminação das informações e da facilidade de acesso

ao Poder Judiciário, o incremento da participação das decisões judiciais nas políticas públicas,

notadamente na área da saúde, culminaram em acentuado aumento no ajuizamento de

demandas.

Não se pretende discutir as causas desse fenômeno, mas perceber o impacto que essas

alterações econômicas, sociais e jurídicas trouxeram na tutela processual, tanto coletiva como

individual, a fim de verificar a efetividade dos direitos difusos e coletivos diante do crescente

número de demandas, em grande parte repetitivas, lançadas ao Poder Judiciário.

O processo civil brasileiro, desde o Código de Processo Civil/1973, passou por

alterações visando tutelar com efetividade a modificação na sociedade e nas relações

comerciais. Passou-se de uma visão exclusivamente voltada ao litígio individual para uma visão

cada vez mais preocupada com a tutela coletiva, revelada por meio de alterações legislativas

que visavam fazer frente à nova forma de litigância.

Paralelamente, desenvolveu-se aos poucos no Brasil um regime de tutela coletiva,

inaugurado pela Lei de Ação Popular de 1965 e, posteriormente, bastante ampliado com a

edição da Lei de Ação Civil Pública em 1985 e do Código de Defesa do Consumidor em 1990.

A Constituição Federal de 1988 também foi um marco importante ao prever, dentre

outras inovações, a possibilidade de tutela de direitos difusos e coletivos em sede de ação civil

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9

pública, conferindo ampla legitimidade para o Ministério Público na tutela do extenso rol de

direitos sociais previstos no novo texto constitucional.

O Código de Processo Civil também passou por diversas alterações legislativas que

buscaram introduzir uma tutela mais eficaz de direitos transindividuais, dentre as quais

destacam-se, mais recentemente, a repercussão geral em sede de recurso extraordinário e os

recursos repetitivos nos recursos especiais.

O Código de Processo Civil/2015 avançou ainda mais, trazendo institutos como o

Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (“IRDR”), o Incidente de Assunção de

Competência (“IAC”), o amicus curiae em sede de demandas individuais com repercussão

coletiva (a fim de garantir maior legitimidade e representatividade adequada na formação dos

precedentes vinculantes1) e a notificação para instauração de tutela coletiva (artigo 139, X).

Estas inovações conferiram maior interação, aproximação e diálogo entre a tutela

individual clássica e a tutela coletiva, que poderia ser ilustrada por dois círculos secantes, ou

seja, embora existam pontos comuns (e.g. artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor e

instrumentos do Código de Processo Civil/2015 como o IRDR), continuam, no modelo atual,

sendo regimes jurídicos diversos2.

O ponto de encontro decorre da constatação de que grande parte das lides, embora

aparentemente individuais, veiculam direito que se revela transindividual, eis que comum a

diversas pessoas, notadamente consumidores, envolvidos na mesma situação, performando

demandas repetitivas.

Outro relevante instrumento no projeto era a possibilidade de converter a ação

individual em ação coletiva, instrumento previsto no artigo 333 do Código de Processo Civil,

mas vetado pela Presidente da República, sob o argumento de que a conversão poderia ocorrer

de maneira pouco criteriosa; além disso, já seriam suficientes os demais instrumentos para

enfrentar a litigiosidade de massa.

Atualmente, portanto, convivem dois regimes bastante diversos de enfrentamento da

litigiosidade de massa e repetitiva: de um lado, o microssistema processual coletivo e, de outro,

os instrumentos do Código de Processo Civil/2015.

1 CAMBI, Eduardo; DAMASCENO, Kleber Ricardo. Amicus curiae e o processo coletivo – uma proposta democrática. In:

GRINOVER, Ada Pellegrini et al. (coord.). Processo coletivo – do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014. 2 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Técnicas individuais de repercussão coletiva X técnicas coletivas de repercussão

individual. Por que estão extinguindo a ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos? In: DIDIER

JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Repercussões do Novo CPC. v. 8. Processo Coletivo. Salvador:

Juspodivm, 2015, pp. 623- 639; GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. In: CIANCI, Mirna et al. (coord.) Novo Código de Processo Civil – impactos na legislação extravagante e interdisciplinar. v.1. São

Paulo: Saraiva, 2016, pp. 15-23.

Page 10: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

10

Nesta pesquisa, buscaremos verificar se há sobreposição entre as tutelas, ou seja, se há

espaço para que atuem de forma complementar ou se uma deve prevalecer sobre a outra. Para

tanto, analisaremos os pontos mais sensíveis do sistema processual (legitimidade ativa, regime

de coisa julgada e litispendência entre processo coletivo e individual) a fim de verificar se

demandam nova leitura, de modo a permitir a existência de um sistema coerente, íntegro e

efetivo de tutela coletiva.

No segundo capítulo, logo após a Introdução, faremos uma breve retrospectiva

histórica do surgimento e evolução da tutela coletiva no Brasil, partindo da lei de ação popular

de 1965 e, posteriormente, ressaltando a influência da doutrina italiana que se refletiu nos

trabalhos acadêmicos brasileiros da época e que logo depois culminaram na edição de dois

avançados diplomas legais: a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor.

No terceiro capítulo analisaremos os principais aspectos do processo coletivo que o

diferencia do sistema de processo individual clássico do Código de Processo Civil: direito

tutelado, legitimidade restrita e regime especial de coisa julgada. A análise do microssistema

processual coletivo permitirá verificar suas principais características de modo a permitir

compará-lo com os novos instrumentos do Código de Processo Civil a fim de verificar suas

deficiências e vantagens.

No quarto capítulo abordaremos as principais características, objetivos e efeitos dos

novos instrumentos de enfrentamento da litigiosidade repetitiva e de massa trazidos pelo

Código de Processo Civil, de modo a verificar como o legislador pretendeu enfrentar os

problemas de assoberbamento do Poder Judiciário e realizar uma análise comparativa entre o

regime do Código de Processo Civil e o do microssistema de tutela coletiva.

Com efeito, no quinto capítulo dedicaremos um primeiro tópico para verificar os

principais entraves do processo coletivo que demandam revisão para aperfeiçoar o

microssistema de processo coletivo, em especial o regime diferenciado de formação da coisa

julgada na tutela dos direitos individuais homogêneos, a relação entre demanda individual e

processo coletivo, além do regime restritivo de legitimidade ativa.

Da mesma forma, apontaremos as deficiências dos instrumentos de enfrentamento da

litigiosidade de massa e repetitiva trazidos pelo Código de Processo Civil, em especial a

inexistência de formação de coisa julgada, o caráter meramente repressivo, a impossibilidade

de resolução de questões de fato, a ausência de suspensão do prazo prescricional das pretensões

individuais, além do risco decorrente da ampliação do rol de precedentes de efeito vinculante.

No mesmo capítulo, pretendemos demonstrar que a tutela processual coletiva e os

novos instrumentos do Código de Processo Civil, em especial o IRDR, não são conflitantes ou

Page 11: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

11

devam prevalecer um sobre o outro, mas interdependentes e complementares, que formam um

regime ainda mais amplo de tutela supraindividual. A ligação entre ambos os sistemas se daria

pelo artigo 333 do Código de Processo Civil, objeto de veto presidencial.

Dedicaremos, por fim, um último tópico para verificar a insuficiência de uma solução

exclusivamente processual para enfrentar a explosão de litígios. Ou seja, demonstrar que os

regimes processuais até então analisados não são suficientes por si só, ainda que superados seus

defeitos, para combater a crescente litigiosidade. É imprescindível rever questões fundamentais

como a excessiva benevolência na concessão de justiça gratuita, a complacência no combate e

enfrentamento da litigância de má-fé e fraudulenta, além da necessidade de tratamento

diferenciado aos grandes litigantes do Poder Judiciário. Abordaremos também os benefícios

trazidos pelo emprego da tecnologia e da inteligência artificial no enfrentamento da

litigiosidade.

Page 12: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

12

2 A EVOLUÇÃO DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL

2.1 Contribuição doutrinária

Conforme visto de forma introdutória, a Revolução Industrial alterou as balizas

econômicas e sociais da sociedade a partir do século XVIII, passando da produção de um

modelo artesanal, centrado na produção familiar, para um modelo de produção por máquinas,

em larga escala.

A Revolução Industrial foi acompanhada de um período de grande crescimento

econômico e enriquecimento das famílias, o que, associado à maior produção, intensificou as

relações negociais.

Posteriormente, outros fenômenos contribuíram para a explosão das relações

comerciais e sociais. Dentre elas, a invenção do telefone, da internet, da propaganda e o

marketing conduziram à uma sociedade que hoje se revela altamente baseada no consumo, o

que tem sido acentuado com as novas ferramentas digitais de compra e de relacionamento.

Paralelamente surgiram novos direitos. Passou-se a tratar o meio ambiente e a proteção

da fauna e da flora em âmbito mundial, o direito à paz, o direito das minorias, os direitos do

consumidor, da criança e do adolescente, dentre outros. Enfim, todos com uma característica

marcante: a transindividualidade.

Conforme pontuaram Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer,

A nova realidade contemporânea estampa a concentração urbana, a globalização, a

produção e o consumo em escala de massa, a padronização de contratos, a elaboração

desenfreada de normas pelo Estado, acordos e convenções coletivas de trabalho,

discussões relacionadas a funcionários, empregados públicos e aposentados,

discussões relacionadas à constitucionalidade ou legalidade de tributos incidentes

sobre milhares de pessoas jurídicas ou naturais, transportes de massa e meios físicos

ou virtuais que difundem informações em proporções até então inimagináveis. Tem-

se, portanto, um cenário propício para danos em massa, que desafiam a ordem jurídica

ao afetarem grande número de indivíduos3.

Há, assim, uma íntima ligação entre a evolução dos direitos humanos e suas dimensões

e o direito coletivo.

Isso porque, desde o desenvolvimento dos direitos humanos de segunda geração ou

dimensão – direitos de igualdade, de amparo aos idosos – iniciou-se um processo de

3 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Ações coletivas e incidente de resolução de demandas repetitivas: algumas considerações sobre a solução coletiva de conflitos. In: ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo

coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 537.

Page 13: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

13

reconhecimento da existência de direitos que superam a esfera individual consagrados na

primeira geração ou dimensão.

Se o surgimento dos direitos humanos esteve associado à uma visão de direito de

liberdade do indivíduo frente ao Estado, desde a segunda geração passou-se a reconhecer

direitos que tutelam uma gama de sujeitos reunidos coletivamente.

Todavia, a legislação brasileira até a década de 1970 era orientada exclusivamente

pelas máximas do estado liberal e capitalista, calcados na autonomia da vontade e máxima

proteção da propriedade individual.

O caráter nitidamente individualista do processo civil brasileiro se revela pela simples

leitura de alguns dispositivos, como o artigo 76 do Código Civil de 1916 que previa: “para

propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral.

Parágrafo único – o interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou à

sua família”.

No mesmo sentido o artigo 6º do Código de Processo Civil/1973 estabelecia que

ninguém poderia pleitear em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.

Igualmente, também revelador do processo civil individualista o regime de extensão

subjetiva da coisa julgada previsto no artigo 472 do Código de Processo Civil/1973: “a sentença

faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”.

Estes dispositivos e a visão que vigoravam inviabilizavam a tutela coletiva de direitos

e a tutela de direitos coletivos, evidenciando-se, assim, a necessidade de reforma.

Isso porque era inviável pretender a proteção de direitos supraindividuais com

fundamento em legislação que restringia a legitimidade ativa e a extensão subjetiva. Seria

inviável que terceiro pudesse manejar e obter tutela judicial sobre um direito que não lhe

pertencia, demandando-se, assim, a evolução da doutrina e da legislação no sentido de permitir

que os direitos difusos fossem representados e tutelados em juízo.

Por esse motivo, Mauro Cappelletti e Bryant Garth apontaram a ação destinada à

defesa dos direitos coletivos como um dos instrumentos de acesso à justiça, configuradores da

terceira onda4.

A contribuição doutrinária brasileira foi essencial para o desenvolvimento da

legislação brasileira. A inspiração, de origem italiana, veio em especial de duas obras coletivas

resultantes de dois Congressos realizados na década de 1970 (Le azioni a tutela di interessi

4 São três as ondas que expressam a evolução do acesso à justiça: (a) assistência judiciária para os pobres; (b) representação dos interesses difusos; (c) efetividade dos mecanismos de acesso à justiça. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso

à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, pp. 67-73.

Page 14: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

14

collettivi, atti del convegno di studio, Universitá do Pavia; La tutela degli interessi diffusi nel

diritto comparato, com particolare riguardo ala protezione dell’ambiente e dei consumatori, III

Congresso Nazionale dell’Associazione Italiano di Diritto Comparato, Universitá degli Studi

di Salerno) e da obra Interessi coletivo e processo: la legitimazione ad agire, de 1979, de

Vincenzo Vigoriti5.

A Lei de Ação Popular de 1965 (Lei n. 4.717/1965), no entanto, anterior aos referidos

congressos, foi precursora do tema no Brasil ao prever a tutela do erário público, espectro

posteriormente alargado com a Constituição Federal de 1988, passando a também tutelar outros

valores como o meio ambiente e o patrimônio histórico.

Posteriormente, fruto do aprofundamento dos estudos da doutrina brasileira, o grande

marco foi a edição da Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), a primeira a positivar as

expressões direito difuso e direito coletivo, ao prever que poderia ser manejada ação civil

pública para a tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” sem, no entanto,

conceituá-los, mas desde logo prevendo esta especial categoria de direito material, nascida da

superação entre interesse público e interesse privado.

Importante perceber a evolução da doutrina e da legislação. Passou-se de uma visão

exclusivamente voltada ao litígio individual para um entendimento cada vez mais preocupado

com a tutela coletiva, revelado por meio de alterações legislativas que parte da doutrina trata

como “ondas”6 de reformas.

Ou seja, a evolução do direito material impôs ao direito processual um novo desafio

na elaboração de um modelo de tutela destes novos direitos. O processo civil, historicamente

voltado à tutela de direitos individuais, teve de se adaptar à nova realidade, estabelecendo

instrumentos a efetivar o amplo rol de direitos que se abria na legislação nacional e

internacional.

A evolução, porém, foi paulatina. Foram necessárias décadas e intensa produção

acadêmica para a edição de leis hoje consideradas formadoras do microssistema processual

coletivo. Veremos, em ordem cronológica, os principais aspectos das leis que amparam a

produção de direitos coletivos no Brasil.

5 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 73. 6 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017.

Page 15: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

15

2.2 Evolução legislativa

2.2.1 Lei de Ação Popular

A ação popular é ferramenta pela qual o cidadão pode participar do controle dos atos

da administração pública, consagrando a democracia participativa de que tratou a Constituição

Federal de 1988, em seu artigo 1º, parágrafo único. A ação popular é

meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação

de atos ou contratos administrativos – ou a estes equiparados – ilegais e lesivos do

patrimônio federal, estadual e municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais

e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos7.

A Lei n. 4.717/1965 (art. 1º), editada sob a égide do regime militar, indicava que a

finalidade era a tutela do patrimônio público, ao prever que qualquer cidadão seria parte

legítima para

pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da

União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de

sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de

seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de

serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio

o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do

patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do

Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou

entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

A referência constitucional feita no artigo é à Constituição de 1946, sob a qual foi

editada. Todavia, já havia menção à ação popular na Constituição de 1934 (art. 113, item 388),

embora logo retirada pela Constituição outorgada de 1937.

O conceito de patrimônio público foi posteriormente ampliado com a Lei n.

6.513/1977, que inseriu o § 1º ao artigo 1º da Lei de Ação Popular segundo o qual consideram-

se patrimônio público os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou

turístico.

A Constituição Federal de 1988, ao tratar da ação popular, ampliou ainda mais o seu

escopo ao prever que se destina à anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade

de que o Estado participe, ao patrimônio histórico e cultural – o que já constava da lei após

1977 – mas também à moralidade administrativa e ao meio ambiente9.

7 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações

constitucionais. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 148-149. 8 Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios. 9 BRASIL. Constituição Federal (1988). Art. 5º, LXXIII.

Page 16: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

16

Assim, a simples ofensa à moralidade administrativa é causa de pedir suficiente para

o manejo da ação popular, buscando tutela de natureza desconstitutivo-condenatória visando

anular ou declarar nulidade dos atos lesivos praticados, inclusive com condenação em perdas e

danos, embora não se deva presumir a lesão ao erário10.

A ação popular, embora integrante do microssistema processual coletivo, limita-se à

tutela de direitos difusos, mas não dos direitos coletivos ou individuais homogêneos11.

2.2.2 Lei de Ação Civil Pública

A Lei de Ação Popular teve papel importante ao inaugurar, do ponto de vista

legislativo, o tema da tutela coletiva no país.

Posteriormente, avançou-se quando da edição da Política Nacional do Meio

Ambiente (Lei n. 6.938/1981), que trouxe previsão de responsabilidade objetiva por danos

causados ao meio ambiente e a terceiros e legitimidade conferida ao Ministério Público para

propor ação de responsabilidade civil e criminal12.

Não havia ainda menção à uma Lei de Ação Civil Pública, mas a legitimidade ao

órgão ministerial foi pela primeira vez expressa no texto legal.

Com fundamento mencionado na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, a Lei

Orgânica do Ministério Público (Lei Complementar n. 40/1981), editada no mesmo ano, trouxe

como função institucional do Ministério Público promover a ação civil pública, nos termos da

lei em questão (artigo 3º, III).

Estes foram os diplomas legislativos que deram origem à uma ampla série de

congressos e estudos sobre o tema e que culminaram com a edição da Lei de Ação Civil Pública,

em 1985.

Conforme retrospecto histórico elaborado por Ada Pellegrini Grinover13, a Lei de

Ação Civil Pública teve origem num seminário sobre direitos difusos, ocorrido na Universidade

10 “[...] Eventual violação à boa-fé e aos valores éticos esperados nas práticas administrativas não configura, por si só,

elemento suficiente para ensejar a presunção de lesão ao patrimônio público, uma vez que a responsabilidade dos agentes em

face de conduta praticada em detrimento do patrimônio público exige a comprovação e a quantificação do dano, nos termos do art. 14 da Lei n. 4.717/1965. Entendimento contrário implicaria evidente enriquecimento sem causa do ente público, que

usufruiu dos serviços prestados em razão do contrato firmado durante o período de sua vigência”. Precedente citado: REsp

802.378-SP, Primeira Turma, DJ 4-6-2007; REsp 1.447.237-MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 16-12-2014, DJe

9-3-2015. 11 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual de processo coletivo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 125; PIZZOL, Patrícia

Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 100. 12 Lei n. 6.938/1981, art. 14, § 1º. Lei da Política nacional do meio ambiente. 13 GRINOVER, Ada Pellegrini (org.). Legitimação da Defensoria Pública à ação civil pública. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do

surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014.

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17

de São Paulo (USP), em 1982. Formou-se, então, uma comissão para elaborar um projeto de

lei, composta por Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e

Waldemar Mariz de Oliveira Junior, a ser apresentado à Associação Paulista de Magistrados

(Apamagis) e, posteriormente, ao Congresso Nacional, pelo deputado Flávio Bierrenbach

(PMDB/SP).

Paralelamente, o Ministério Público de São Paulo, em projeto liderado por A. M. de

Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nelson Nery Junior, que reconhecidamente tomou como ponto

de partida o projeto da comissão Apamagis, cujo objetivo era fortalecer o Ministério Público,

também apresentou o seu projeto de lei, que, por sua vez, foi enviado diretamente ao Ministro

da Justiça Ibrahim Abi-Ackel que o encaminhou ao Congresso Nacional acompanhado de

mensagem do Poder Executivo.

Referido projeto de lei, apesar de ter chegado depois da iniciativa apresentada pelo

Deputado Flávio Bierrenbach, foi aprovado e transformado na Lei n. 7.347/1985.

Interessante notar, porém, conforme registro de Ada Pellegrini Grinover, com base no

trabalho de Rogério Bastos Arantes14, que o projeto inicialmente conferia ao Ministério Público

a titularidade exclusiva da ação coletiva. Depois, por influência de Nelson Nery Junior, admitiu-

se a cotitularidade com as associações, mas retirando a titularidade de outros entes públicos,

que foi depois reintroduzida pelo Ministério da Justiça.

A ação civil pública é espécie do gênero ação coletiva15 e visa à tutela e proteção

dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, embora a lei inicialmente tenha

trazido, em seu artigo 1º, um rol de direitos a serem protegidos, sem mencionar a nomenclatura

difundida com a edição do Código de Defesa do Consumidor.

Em que pese a dúvida inicial sobre a possibilidade de tutela de direitos individuais

homogêneos por meio de ação civil pública, a possibilidade foi reconhecida pela doutrina e

jurisprudência16 após a edição do Código de Defesa do Consumidor, em especial diante dos

seus artigos 83 e 91.

14 ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e Política no Brasil. São Paulo: Sumaré-IDESP-EDUC, 2002, pp. 51-76. 15 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 91. 16 O Ministério Público tem legitimidade para o ajuizamento de ação civil pública com o objetivo de impedir o repasse e de garantir a exclusão ou a abstenção de inclusão em cadastros de inadimplentes de dados referentes a consumidores cujos

débitos estejam em fase de discussão judicial, bem como para requerer a compensação de danos morais e a reparação de

danos materiais decorrentes da inclusão indevida de seus nomes nos referidos cadastros. A Lei n. 7.347/1985, que dispõe

sobre a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública, é aplicável a quaisquer interesses de

natureza transindividual, conforme definidos no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, ainda que eles não digam

respeito às relações de consumo. Essa conclusão é extraída da interpretação conjunta do art. 21 da Lei n. 7.347/1985 e dos

arts. 81 e 90 do Código de Defesa do Consumidor, os quais evidenciam a reciprocidade e complementaridade desses

diplomas legislativos, mas principalmente do disposto no art. 129, III, CF, que estabelece como uma das funções institucionais do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e

social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Mesmo no que se refere aos interesses de natureza

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18

A lei inicialmente abarcou apenas os direitos difusos, valendo-se da técnica da

enumeração de forma taxativa das matérias que poderiam ser tuteladas por meio da ação civil

pública.

Havia, contudo, importante dispositivo que permitia a tutela de qualquer outro

interesse difuso, previsto no artigo 1º, IV (antes da modificação operada pelo Código de Defesa

do Consumidor), que permitiria aplicar a lei, por interpretação analógica, a qualquer outra

situação violadora de direito difuso, ainda que não especificamente arrolada, passando-se,

assim, de uma enumeração numerus clausus para uma enumeração numerus apertus.

O dispositivo, porém, foi vetado pelo Presidente da República17, revelando, desde o

nascedouro da lei, a preocupação com o manejo do poderoso instrumento18, que acabou se

confirmando com a Medida Provisória n. 2180-35/2001, que inseriu outra limitação temática

proibindo o manejo de ação civil pública em demandas envolvendo tributos, contribuições

previdenciárias, FGTS ou genericamente outros fundos de natureza institucional cujos

beneficiários podem ser individualmente determinados (artigo 1º, parágrafo único).

individual homogênea, após grande discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da legitimação processual extraordinária do

Ministério Público, firmou-se o entendimento de que, para seu reconhecimento, basta a demonstração da relevância social da

questão. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal pacificou o tema ao estabelecer que, no gênero “interesses coletivos”, ao qual faz referência o art. 129, III, CF, incluem-se os “interesses individuais homogêneos”, cuja tutela, dessa forma, pode ser

pleiteada pelo Ministério Público. O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha, já decidiu que os interesses individuais

homogêneos são considerados relevantes por si mesmos, sendo desnecessária a comprovação dessa relevância. Ademais,

além da grande importância política que possui a solução jurisdicional de conflitos de massa, a CF permite a atribuição de outras funções ao Ministério Público, desde que compatíveis com sua finalidade (art. 129, IX). Em hipóteses como a

discutida, em que se vise tutelar um determinado número de pessoas ligadas por uma circunstância de fato, qual seja, a

inclusão de seu nome em cadastros de inadimplentes, fica clara a natureza individual homogênea do interesse tutelado.

Outrossim, a situação individual de cada consumidor não é considerada no momento da inclusão de seu nome no cadastro, bastando que exista demanda judicial discutindo o débito, o que evidencia a prevalência dos aspectos coletivos e a

homogeneidade dos interesses envolvidos. Assim, não se pode relegar a tutela de todos os direitos a instrumentos processuais

individuais, sob pena de excluir da proteção do Estado e da democracia aqueles cidadãos que sejam mais necessitados, ou

possuam direitos cuja tutela seja economicamente inviável sob a ótica do processo individual. REsp 1.148.179-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26-2-2013. 17 “O veto incide sobre as expressões constantes dos dispositivos abaixo indicados: Ementa: “como a qualquer outro interesse

difuso”; Art. 1º, IV: “a qualquer outro interesse difuso”; Art. 4º: “ou a qualquer outro interesse difuso; e Art. 5º, II: “ou a

qualquer outro interesse difuso”. As razões de interesse público dizem respeito precipuamente à insegurança jurídica, em detrimento do bem comum, que decorre da amplíssima e imprecisa abrangência da expressão “qualquer outro interesse

difuso”. A amplitude de que se revestem as expressões ora vetados do Projeto mostra-se, no presente momento de nossa

experiência jurídica, inconveniente. É preciso que a questão dos interesses difusos, de inegável relevância social, mereça,

ainda, maior reflexão e análise. Trata-se de instituto cujos pressupostos conceituais derivam de um processo de elaboração doutrinária, a recomendar, com a publicação desta Lei, discussão abrangente em todas as esferas de nossa vida social. É

importante, neste momento, que, em relação à defesa e preservação dos direitos dos consumidores, assim como do

patrimônio ecológico, natural e cultural do País, a tutela jurisdicional dos interesses difusos deixe de ser uma questão

meramente acadêmica para converter-se em realidade jurídico-positiva, de verdadeiro alcance e conteúdo sociais. Eventuais hipóteses rebeldes à previsão do legislador, mas ditadas pela complexidade da vida social, merecerão a oportuna

disciplinação legislativa. Estas as razões de interesse público que me levaram ao veto parcial e que ora submeto à elevada

apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional. Brasília, em 24 de julho de 1985. JOSÉ SARNEY”. Disponível

em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7347-24-julho-1985-356939-veto-17394-pl.html. Acesso em: 29

mar. 2020. 18 “Parece-nos, porém, que o veto se deu não só em razão das pressões de grupos interessados, como também porque o Poder

Executivo só então despertou para os riscos que iria enfrentar quando seus atos fossem questionados em ações civis públicas

(riscos que mais tarde voltou a procurar elidir com o abuso de medidas provisórias, que tiravam com uma mão o que a LACP e o Código de Defesa do Consumidor tinham dado com outra)”. MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em

juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 142.

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19

A limitação temática imposta pela Medida Provisória e por outros diplomas é

corretamente tida por inconstitucional por parte da doutrina.

Hugo Nigro Mazzilli criticou a audácia do chefe do Poder Executivo Federal ao editar

a Medida Provisória n. 2.088-35/2000 que pretendeu intimidar os membros do Ministério

Público ao responsabilizá-los pessoalmente e prevendo a possibilidade de reconvenção em ação

civil pública de improbidade19. Após o ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade

no Supremo Tribunal Federal, a Presidência da República recuou e não reeditou a Medida

Provisória20.

Em relação à limitação temática imposta pela MP 2180-35/2001, embora o Supremo

Tribunal Federal tenha inicialmente, em sede de repercussão geral21, afirmado a

constitucionalidade da limitação, o entendimento parece-nos superado com o julgamento do RE

643.978/DF, também julgado com repercussão geral.

O referido recurso extraordinário foi interposto em face de acórdão oriundo do

Tribunal Regional Federal da 5ª Região no qual decidiu-se que o Ministério Público Federal

detém legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública em face da Caixa Econômica Federal

no que diz respeito à unificação das contas fundiárias dos trabalhadores, uma vez que se litiga

sobre o modelo organizacional dispensado ao FGTS, o que qualificaria o direito individual

homogêneo por possuir expressiva envergadura e relevância social.

O acórdão, julgado pelo tribunal pleno com repercussão geral em 09-10-2019, foi

assim ementado:

Ementa: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL

RECONHECIDA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRETENSÃO DESTINADA À

TUTELA DE DIREITOS INDIVIDUAIS DE ELEVADA CONOTAÇÃO SOCIAL.

ADOÇÃO DE REGIME UNIFICADO OU UNIFICAÇÃO DE CONTAS DO

FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO (FGTS). MINISTÉRIO

PÚBLICO. PARTE ATIVA LEGÍTIMA. DEFESA DE INTERESSES SOCIAIS

QUALIFICADOS. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. REAFIRMAÇÃO DA

JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. 1. No julgamento do RE 631.111 (Rel. Min.

TEORI ZAVASCKI, DJe de 30/10/2014), sob o regime da repercussão geral, o

PLENÁRIO firmou entendimento no sentido de que certos interesses individuais,

quando aferidos em seu conjunto, de modo coletivo e impessoal, têm o condão de

transcender a esfera de interesses estritamente particulares, convolando-se em

verdadeiros interesses da comunidade, emergindo daí a legitimidade do Ministério

19 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 137. 20 Nesta época, antes da Emenda Constitucional n. 32/2001 que deu nova redação ao § 3º do artigo 62 da Constituição Federal de 1988, as medidas provisórias eram reeditadas sucessivamente. 21 Na jurisprudência, porém, há entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, pela

constitucionalidade do dispositivo: “DIREITO CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO INTERPOSTA EM

FACE DE SENTENÇA PROFERIDA EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA QUE DISCUTE MATÉRIA TRIBUTÁRIA

(DIREITO DOS CONTRIBUINTES À RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS À TÍTULO DE TAXA DE

ILUMINAÇÃO PÚBLICA SUPOSTAMENTE INCONSTITUCIONAL). ILEGITIMIDADE ATIVA “AD CAUSAM” DO

MINISTÉRIO PÚBLICO PARA, EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEDUZIR PRETENSÃO RELATIVA À MATÉRIA

TRIBUTÁRIA. REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. ARE 694294 RG, Rel. Min. Luiz Fux, j. 25-04-2013, Acórdão Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-093 Divulg 16-

05-2013 Public 17-05-2013.

Page 20: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

20

Público para ajuizar ação civil pública, com amparo no art. 127 da Constituição

Federal, o que não obsta o Poder Judiciário de sindicar e decidir acerca da adequada

legitimação para a causa, inclusive de ofício. 2. No RE 576.155 (Rel. Min. RICARDO

LEWANDOWSKI, DJe de 1º/2/2011), também submetido ao rito da repercussão

geral, o PLENÁRIO cuidou da questão envolvendo a vedação constante do parágrafo

único do art. 1º da Lei 7.347/1985, incluído pela MP 2.180-35/2001, oportunidade em

que se reconheceu a legitimidade do Ministério Público para dispor da ação civil

pública com o fito de anular acordo de natureza tributária firmado entre empresa e o

Distrito Federal, pois evidente a defesa ministerial em prol do patrimônio público. 3.

A demanda intenta o resguardo de direitos individuais homogêneos cuja amplitude

possua expressiva envergadura social, sendo inafastável a legitimidade do Ministério

Público para ajuizar a correspondente ação civil pública. 4. É o que ocorre com as

pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia

do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos

beneficiários podem ser individualmente determinados (parágrafo único do art. 1º da

Lei n. 7.347/1985). 5. Na hipótese, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, pautado

na premissa de que o direito em questão guarda forte conotação social, concluiu que

o Ministério Público Federal detém legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública

em face da Caixa Econômica Federal, uma vez que se litiga sobre o modelo

organizacional dispensado ao FGTS, máxime no que se refere à unificação das contas

fundiárias dos trabalhadores. 6. Recurso Extraordinário a que nega provimento. Tese

de repercussão geral proposta: o Ministério Público tem legitimidade para a

propositura de ação civil pública em defesa de direitos sociais relacionados ao FGTS.

RE 643978, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. 09-10-2019, Processo

Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-232 Divulg 24-10-2019 Public 25-10-

2019.

Assim, parece-nos que a jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal

caminha no sentido da inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º, ainda que não

declaradamente manifestada, ao se reconhecer a legitimidade do manejo de ação civil pública

em situações que aparentemente se enquadrariam na vedação pretendida quando da edição da

Medida Provisória.

Quanto ao objeto da obrigação veiculada na ação civil pública, em que pese a redação

do artigo 3º, atualmente admite-se, com fundamento no artigo 83 do Código de Defesa do

Consumidor e em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que a pretensão formulada em

juízo seja de pagar quantia, obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, ainda que esta

última não esteja expressamente prevista no dispositivo legal.

No que diz respeito à tutela jurisdicional pretendida, adotando-se a classificação

pentapartite de Pontes de Miranda, admite-se ação civil pública de natureza declaratória,

constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva lato sensu.

Igualmente, não há particularidade quanto ao dano que se busca reparar. Pode ser de

natureza material ou moral. Discute-se, na doutrina e na jurisprudência, a possibilidade de

condenação, em sede de ação civil pública, à indenização pelo dano moral coletivo22.

22 DIREITO PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. CUMULAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DE RECOMPOSIÇÃO DO MEIO AMBIENTE E DE COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. Na hipótese de Ação Civil Pública

proposta em razão de dano ambiental, é possível que a sentença condenatória imponha ao responsável, cumulativamente, as

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21

A ação civil pública pode também buscar a tutela do patrimônio público lesado pela

prática de ato de improbidade administrativa, eis que não há ação específica trazida pela Lei de

Improbidade (Lei n. 8.429/1992); a Lei de Ação Civil Pública foi largamente utilizada nos

últimos anos para esta finalidade. Ela trouxe também relevante instrumento para a tutela

coletiva ao prever o inquérito civil presidido pelo Ministério Público e o poder de requisição

(Lei n.7.347/1985, art. 8º, § 1º).

A Resolução n. 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público assim dispôs

sobre o inquérito civil:

O inquérito civil, de natureza unilateral e facultativa, será instaurado para apurar fato

que possa autorizar a tutela dos interesses ou direitos a cargo do Ministério Público

nos termos da legislação aplicável, servindo como preparação para o exercício das

atribuições inerentes às suas funções institucionais. Parágrafo único. O inquérito civil

não é condição de procedibilidade para o ajuizamento das ações a cargo do Ministério

Público, nem para a realização das demais medidas de sua atribuição própria.

O inquérito civil poderá culminar na propositura de ação civil pública, se reunidos

elementos de convicção suficientes, na celebração de termo de ajustamento de conduta com

eficácia de título executivo extrajudicial (Lei de Ação Civil Pública, art. 5º, § 6º), ou ainda, no

arquivamento do expediente, que deverá ser remetido ao Conselho Superior do Ministério

Público (no caso de Ministério Público Estadual) ou Câmara de Revisão (no caso do Ministério

obrigações de recompor o meio ambiente degradado e de pagar quantia em dinheiro a título de compensação por dano moral

coletivo. Isso porque vigora em nosso sistema jurídico o princípio da reparação integral do dano ambiental, que, ao determinar a responsabilização do agente por todos os efeitos decorrentes da conduta lesiva, permite a cumulação de

obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar. Ademais, deve-se destacar que, embora o art. 3º da Lei n. 7.347/1985

disponha que “a ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não

fazer”, é certo que a conjunção “ou” – contida na citada norma, bem como nos arts. 4º, VII, e 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981 – opera com valor aditivo, não introduzindo, portanto, alternativa excludente. Em primeiro lugar, porque vedar a cumulação

desses remédios limitaria, de forma indesejada, a Ação Civil Pública – importante instrumento de persecução da

responsabilidade civil de danos causados ao meio ambiente – inviabilizando, por exemplo, condenações em danos morais

coletivos. Em segundo lugar, porque incumbe ao juiz, diante das normas de Direito Ambiental – recheadas que são de conteúdo ético intergeracional atrelado às presentes e futuras gerações – levar em conta o comando do art. 5º da LINDB,

segundo o qual, ao se aplicar a lei, deve-se atender “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, cujo

corolário é a constatação de que, em caso de dúvida ou outra anomalia técnico-redacional, a norma ambiental demanda

interpretação e integração de acordo com o princípio hermenêutico in dubio pro natura, haja vista que toda a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos há sempre de ser compreendida da maneira que lhes seja

mais proveitosa e melhor possa viabilizar, na perspectiva dos resultados práticos, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da

norma. Por fim, a interpretação sistemática das normas e princípios ambientais leva à conclusão de que, se o bem ambiental

lesado for imediata e completamente restaurado, isto é, restabelecido à condição original, não há que se falar, como regra, em indenização. Contudo, a possibilidade técnica, no futuro, de restauração in natura nem sempre se mostra suficiente para

reverter ou recompor integralmente, no âmbito da responsabilidade civil, as várias dimensões do dano ambiental causado; por

isso não exaure os deveres associados aos princípios do poluidor-pagador e da reparação integral do dano. Cumpre ressaltar

que o dano ambiental é multifacetário (ética, temporal, ecológica e patrimonialmente falando, sensível ainda à diversidade do

vasto universo de vítimas, que vão do indivíduo isolado à coletividade, às gerações futuras e aos processos ecológicos em si

mesmos considerados). Em suma, equivoca-se, jurídica e metodologicamente, quem confunde prioridade da recuperação in

natura do bem degradado com impossibilidade de cumulação simultânea dos deveres de repristinação natural (obrigação de

fazer), compensação ambiental e indenização em dinheiro (obrigação de dar), e abstenção de uso e nova lesão (obrigação de não fazer). REsp 1328753/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe

03/02/2015.

Page 22: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

22

Público Federal) para homologação do arquivamento ou designação de outro membro do

Ministério Público para ajuizamento da ação (Lei de Ação Civil Pública, art. 9º, §§ 2º, 3º e 4º).

2.3 Ações coletivas na Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 foi editada após as Leis de Ação Popular e de Ação

Civil Pública, mas configurou importante marco na proteção dos direitos supraindividuais e na

formação do microssistema de ações coletivas.

O termo ‘ação coletiva’ é aqui empregado no sentido oposto ao de ação individual; é

gênero que alberga todas as ações que tenham por objeto a tutela jurisdicional coletiva, de

direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos23.

A Constituição Federal tratou em diversos artigos das ações coletivas, levando o tema

a ser definitivamente constitucionalizado, eis que as referências nas Cartas anteriores eram

bastante tímidas.

Resumidamente, podem ser destacados os seguintes pontos trazidos pela Constituição

Federal para o tema das ações coletivas: (i) alargamento das hipóteses de cabimento da ação

popular (art. 5º, LXXIII); (ii) status constitucional conferido à ação civil pública e à

legitimidade do Ministério Público (artigo 129, III); (iii) numerus apertus dos direitos

supraindividuais passíveis de tutela por meio de ação civil pública; (iv) previsão de impetração

de mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX); (v) defesa do consumidor como direito

fundamento e princípio geral da atividade econômica.

No que diz respeito ao alargamento do cabimento da ação popular, conforme visto no

tópico referente à ação popular, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXXIII, alargou

consideravelmente os direitos tuteláveis.

Se no passado apenas era possível manejar ação popular visando anular ato lesivo ao

patrimônio público, a Constituição Federal de 1988 passou a permitir a tutela de qualquer ato

lesivo à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural,

prevendo ainda a isenção de ônus sucumbenciais, salvo em caso comprovado de má-fé.

Outro ponto de destaque do texto constitucional é a previsão, no art. 129, III, de, no

mesmo dispositivo, conferir status constitucional à ação civil pública, tema inédito nas

constituições brasileiras, bem como à legitimidade do Ministério Público para manejá-la.

23 SHIMURA, Sérgio Seiji. Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006, pp. 43-44 apud PIZZOL, Patrícia

Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 91.

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23

Assim, conferiu-se relevante instrumento ao Ministério Público, protegido pela rigidez

do texto constitucional.

O inciso também é relevante ao prever a legitimidade do Parquet para manejo do

inquérito civil e ação civil pública para outros interesses difusos e coletivos, permitindo-se,

assim, a plena abertura da legitimidade a qualquer interesse difuso ou coletivo, conhecido ou

superveniente, configurando a enumeração do texto constitucional como numerus apertus,

conforme pretendia o legislador ao editar a Lei da Ação Popular, posteriormente atingida pelo

veto nas expressões “outros interesses difusos”.

A Constituição Federal de 1988 inovou ao tratar do mandado de segurança coletivo,

atribuindo legitimidade ao partido político com representação no Congresso Nacional ou à

organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em

funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou

associados.

A inovação foi tão somente na legitimidade ativa, eis que o mandado de segurança

coletivo deverá seguir o procedimento comum do mandado de segurança individual; a

impetração deve ser feita sempre em nome próprio da entidade24.

Elencou-se ainda no rol de direitos e garantias fundamentais a obrigação imposta ao

Estado de promover a defesa dos direitos do consumidor (artigo 5º, XXXII) e a todos que

pretendam exercer atividade econômica, enquanto princípio geral, a defesa do consumidor

(artigo 170, V).

Por fim, importante inovação trazida pela Constituição federal de 1988 foi a previsão

contida no inciso XXI do artigo 5º que previu que “as entidades associativas, quando

expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou

extrajudicialmente”, criando a figura da denominada ação coletiva associativa.

2.4 Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor, após anos de esforços da doutrina, constou como

de edição obrigatória pelo constituinte ao prever no artigo 48 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias o prazo de 120 dias, contados da promulgação da Constituição,

para que o Congresso Nacional o elaborasse.

24 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações

constitucionais. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 122.

Page 24: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

24

Antes mesmo da Constituição Federal de 1988, no plano internacional, já havia sido

editada a Resolução n. 39/248, de 09/04/1985, da Assembleia Geral da Organização das Nações

Unidas, que estabeleceu diversas normas internacionais para proteger o consumidor, fixando

diretrizes aos países para que aperfeiçoassem ou editassem leis nesse sentido.

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro teve como grande influência o Projet

de Code de La Consommation¸ Código de Defesa do Consumidor francês, que consolidava

várias normas protetivas ao consumidor, mas que mantinha concomitantemente o Code Civil

de Napoleão e o Code de Commerce, de maneira semelhante ao ocorrido no Brasil.

Os autores do Código de Defesa do Consumidor buscaram inspiração ainda nas leis

gerais da Espanha (Lei n. 26/1984), de Portugal (Lei n.29/1981), do México (Lei federal de

Protección al Consumidor, de 1976) e de Quebec (Loi sur la Protection du Consommateur, de

1979), e especialmente nas regras do direito norte-americano (Federal Trade Comission Act,

Consumer Product Safety Act, Truth in Lending Act, Fair Credit Reporting Act e Fair Debt

Collection Practices Act)25.

O Código de Defesa do Consumidor inaugurou o microssistema jurídico de tutela

coletiva ao prever a perfeita interação entre as regras do Código de Defesa do Consumidor e da

Lei de Ação Civil Pública. Isso porque o artigo 90 do Código de Defesa do Consumidor prevê

a aplicação das regras contidas na Lei de Ação Civil Pública; e esta, por sua vez, em seu artigo

21, prevê que as regras do Código de Defesa do Consumidor se aplicam às ações civis públicas.

Em razão disso, fala-se em “jurisdição civil coletiva” ou microssistema das ações

coletivas. Cabe lembrar que referido microssistema se aplica a todas as ações coletivas,

independentemente do direito tutelado, e não apenas às demandas envolvendo direito do

consumidor26.

O Código de Defesa do Consumidor foi o primeiro diploma a definir esses novos

direitos supraindividuais.

A lei de ação popular, diploma inaugural do sistema processual coletivo, não definiu

e não empregou a nomenclatura de direitos difusos ou coletivos. Preocupou-se tão somente em

delimitar seu objeto ao afirmar que qualquer cidadão seria parte legítima para pleitear a

anulação ou declaração de nulidade de ato lesivo ao patrimônio público, entendendo-se como

tal “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico” (Lei n.

4.717/1965, art. 1º, § 1º).

25 ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos. 8. ed. São Paulo:

Método, 2018, p. 473. 26 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 156.

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25

A Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) foi a primeira a positivar as expressões

direito difuso e direito coletivo ao prever que poderia ser manejada ação civil pública para a

tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” sem, no entanto, conceituá-los, mas,

desde logo prevendo esta especial categoria de direito material, nascida da superação entre

interesse público e interesse privado.

Foi apenas com o Código de Defesa do Consumidor que se estabeleceu um conceito

legal de direitos supraindividuais.

O artigo 81 do Código previu que a defesa dos interesses e direitos dos consumidores

e das vítimas poderá ser exercida em juízo individual ou coletivo. Há defesa coletiva quando se

tratar de direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.

Segundo a lei, são difusos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza

indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.

Por sua vez, são coletivos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza

indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a

parte contrária por uma relação jurídica base”.

Inovou ao tratar dos direitos individuais homogêneos, categoria até então inexistente

na legislação, e os definiu como aqueles decorrentes de origem comum, ou seja, aqueles que

derivam de uma situação e que justificam o tratamento uniforme, prevendo inclusive a

legitimidade do Ministério Público para a tutela destes direitos.

O Código de Defesa do Consumidor trouxe ainda como importantes novidades: (i)

ampliou o rol dos bens tuteláveis por meio da ação civil pública, com a inserção do inciso IV

no artigo 1º da Lei de Ação Civil Pública (art. 110 do Código de Defesa do Consumidor); (ii)

os artigos 83 e 84 do Código de Defesa do Consumidor ampliaram o objeto da ação civil pública

(Lei de Ação Civil Pública, art. 3º), permitindo a propositura de qualquer ação coletiva, com

qualquer tipo de pedido, inclusive obrigação de dar; (iii) isenção do adiantamento de custas e

condenação nos ônus da sucumbência, salvo em caso de má-fé (arts. 87 do Código de Defesa

do Consumidor e 18 da Lei de Ação Civil Pública); (iv) possibilidade de dispensa do requisito

da pré-constituição da associação civil, na hipótese de manifesto interesse social evidenciado

pela dimensão ou característica do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido (art.

113 do Código de Defesa do Consumidor que modificou o artigo 5º, § 4º, da Lei de Ação Civil

Pública); (v) possibilidade de formação de consórcio entre ramos do Ministério Público e entre

Ministério Público e Ministério Público Federal; (vi) assunção da ação pelo Ministério Público

em caso de desistência infundada por outro legitimado (art. 112 do Código de Defesa do

Consumidor que alterou a Lei de Ação Civil Pública em seu art. 5º, § 3º); (vii) possibilidade de

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26

celebração de compromisso de ajustamento de conduta com eficácia de título extrajudicial;

(viii) execução de sentença condenatória realizada pelo Ministério Público caso o legitimado

não a promova no prazo de 60 dias; (ix) possibilidade de condenação dos diretores das

associações, responsáveis pela propositura das ações civis públicas em casos de litigância de

má-fé, ao pagamento de honorários advocatícios e décuplo das custas, sem prejuízo de

responsabilidade por perdas e danos (art. 115 do Código de Defesa do Consumidor); (x) regime

próprio e inédito de formação da coisa julgada27.

2.5 Mandado de segurança coletivo

Mandado de segurança, na clássica definição doutrinária, é o meio constitucional posto

à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou

universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e

certo, lesado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade, não amparado por habeas corpus ou

habeas data, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções exercidas28.

Foi apenas com a edição da Constituição Federal de 1988 que passou-se a falar de

mandado de segurança coletivo, eis que prevista no texto a legitimidade do partido político com

representação no Congresso Nacional ou à organização sindical, entidade de classe ou

associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos

interesses de seus membros ou associados, visando à tutela de direito metaindividuais.

Os requisitos para a impetração (ato de autoridade, ilegalidade ou abuso de poder,

lesão ou ameaça de lesão, direito líquido e certo e não cabimento de habeas corpus ou habeas

data) continuam os mesmos, adicionando-se tão somente o requisito específico do direito

tutelado ser obrigatoriamente de natureza transindividual.

A doutrina de longa data diverge quanto aos direitos transindividuais que podem ser

tutelados por meio de mandado de segurança coletivo. Considerando a ausência de

regulamentação legal, duas correntes se formaram: uma no sentido da impossibilidade de tutela

de direitos difusos, limitando-se o mandado de segurança coletivo aos direitos coletivos e

individuais homogêneos, e outra, mais ampliativa, permitindo também a tutela de direitos

difusos.

27 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, pp. 156-166. 28 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações

constitucionais. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 25-26.

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27

A interpretação restritiva fundava-se na distinção existente (e bastante debatida na

doutrina da época) entre direitos subjetivos e interesses supraindividuais, entendendo-se, assim,

que o legislador constitucional, ao empregar a expressão “direito”, afastou a possibilidade de

manejo para direitos difusos, eis que estes seriam meros interesses e não direitos subjetivos

titularizados por seus impetrantes29.

Por outro lado, parcela da doutrina conferia uma interpretação ampliativa ao

dispositivo constitucional, considerando que a menção feita pelo legislador constituinte ao

empregar a expressão “coletivo” referia-se à legitimidade e não à pretensão deduzida, que

deveria ser interpretada de forma ampla, notadamente por se tratar de norma veiculadora de

garantia constitucional30.

No mesmo sentido, antes da edição da nova Lei do Mandado de Segurança, Antonio

Carlos Garcias Martins sustentou:

Somos inclinados a reconhecer que a ação de mandado de segurança coletivo,

efetivamente, não deve restringir-se aos interesses coletivos estrito senso e individuais

homogêneos. Sua atuação é ampla, inclusive, no tocante aos interesses difusos, até

porque estes interesses, que nada mais são que fatos valorados e tuteláveis pelo direito

posto, de certo modo são fluídicos até um dado momento, pois podem ser afetados

por circunstâncias que os levam a receber a qualificação de coletivo, por afetar uma

coletividade31.

A Lei n. 12.016/2009 disciplinou o cabimento não apenas do mandado de segurança

individual, compilando a legislação até então existente e incorporando as súmulas dos tribunais

superiores a respeito da matéria, mas também inovou ao tratar do mandado de segurança

coletivo.

No que diz respeito aos direitos tuteláveis por meio do mandado de segurança coletivo

elencou os direitos coletivos, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de

que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma

relação jurídica básica32, e os individuais homogêneos, os decorrentes de origem comum e da

atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do

impetrante33.

29 No mesmo sentido, José Miguel Garcia Media e Fábio Caldas de Araújo afirmam: “a vedação da utilização do mandado de

segurança para a tutela de interesses difusos parte do pressuposto de que é incabível assegurar um direito subjetivo líquido e

certo para um grupo indeterminado de pessoas”. MEDIAN, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas. Mandado de

segurança individual e coletivo: comentários à Lei 12.016/2009. São Paulo: RT, 2009, p. 208. 30 FERRARESI, Eurico. Ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo. Rio de Janeiro: Forense,

2009, pp. 242-243. 31 MARTINS, Antonio Carlos Garcias. Mandado de segurança coletivo. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 70. 32 Lei n. 12.016/2009, art. 21, I. 33 Lei n. 12.016/2009, art. 21, II.

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28

A previsão expressa da lei ao disciplinar o cabimento apenas para essas duas categorias

de direitos transindividuais, silenciando quanto aos direitos difusos, no entanto, não foi

suficiente para afastar a dúvida doutrinária sobre o tema.

Em que pese a opção legislativa, parte da doutrina continua sustentando a possibilidade

de impetração de mandado de segurança coletivo para a tutela de direitos difusos, pois pensar

o contrário seria diminuir a importância conferida pelo legislador constituinte à impetração

coletiva. Não há justificativa, por exemplo, para negar a possibilidade de utilização de mandado

de segurança coletivo para combater ato administrativo que provoque danos ambientais34.

Isso porque, conforme afirmado quanto à corrente ampliativa, a legislação

infraconstitucional não pode limitar a garantia constitucional; a expressão “coletivo”

empregada no artigo 5º, LXX, da Constituição Federal de 1988 foi utilizada em sentido amplo,

como sinônimo de direitos transindividuais.

Segundo Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery,

caso haja ameaça ou lesão a direito líquido e certo, individual, difuso ou coletivo, por

ato ilegal ou abusivo de autoridade, cabe MS para a proteção dos direitos previstos na

LACP, pois o MS, no caso, é espécie de ACP. Obra localizada perto de zona de

proteção ambiental, iniciada sem a prévia e necessária realização do estudo de impacto

ambiental exigido pela CF 225 § 1º, IV, pode ser paralisada por meio de MS ou outra

ACO, ainda que autorizada pelo poder público35.

No que diz respeito à coisa julgada, o artigo 22 da Lei do Mandado de Segurança

regulamentou a eficácia subjetiva da mesma forma que o artigo 103 do Código de Defesa do

Consumidor. Todavia, a lei é omissa quanto ao modelo de produção da coisa julgada material.

Segundo a doutrina dominante, deve ser aplicado o regime condicionado, ou seja, conforme o

direito transindividual tutelado.

A repercussão da decisão judicial coletiva na esfera individual será sempre in utilibus

para a doutrina majoritária. Assim, no prazo decadencial, pode o indivíduo ajuizar seu mandado

de segurança individual. Há, porém, posição no sentido da vinculação pro et contra da decisão

coletiva sobre a esfera jurídica individual.

34 ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de segurança. 2. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2010, pp. 380-381. 35 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal comentada e legislação

constitucional. São Paulo: RT, 2017. Comentário 10 ao art. 1º da Lei de Ação Civil Pública.

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29

3 PRINCIPAIS ASPECTOS DO MODELO BRASILEIRO DE PROCESSO

COLETIVO

Conforme afirmamos na Introdução, buscamos nesta pesquisa analisar o sistema

processual de tutela coletiva, o sistema de enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva

trazida pelo Código de Processo Civil/2015, apontando as falhas em cada um dos sistemas,

para, então, concluir pela necessidade de aperfeiçoar os sistemas, a fim de se oferecer uma tutela

ampla e efetiva deste tipo de demanda.

Para tanto, estabelecido o histórico da evolução legislativa da tutela processual

coletiva, necessário analisar os principais aspectos processuais do tema, justamente sobre os

quais recairão posteriormente, em capítulo próprio, nossas principais críticas.

Assim, optou-se por um recorte dos temas processuais atinentes ao processo coletivo

(legitimidade e coisa julgada), não apenas por se tratar dos temas de maior interesse da doutrina

nas últimas décadas, mas principalmente para o objetivo desta pesquisa e considerando a

extensão dos demais temas processuais (especialmente liquidação e coisa julgada).

3.1 Microssistema

Entende-se por microssistema de tutela coletiva o conjunto formado pelas diversas

normas jurídicas, previstas em leis esparsas, de cunho processual ou material, formadores de

um arcabouço de proteção e tutela dos direitos transindividuais.

Referidos diplomas legais se comunicam, permitindo que em caso de lacuna haja

colmatação por meio de regra prevista em outro diploma legal protetivo dos direitos coletivos

lato sensu, operando-se o que se convencionou chamar de “diálogo das fontes”.

A Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor são os dois diplomas

legais fundantes do modelo brasileiro de microssistema legislativo de tutela coletiva, pois há

previsão expressa de intercomunicação entre os referidos diplomas, conforme regem o artigo

90 (Código de Defesa do Consumidor) e o artigo 21 (Lei de Ação Civil Pública). O

microssistema, no entanto, não se exaure nos mencionados diplomas; é integrado pelas demais

leis de tutela de direitos transindividuais, como a Lei da Ação Popular, a Lei do Mandado de

Segurança e a Lei de Improbidade Administrativa, dentre outras.

Assim, em caso de lacuna, ou se houver norma, e sendo mais estrita a norma na sua

aplicação, o aplicador deve buscar no conjunto normativo do microssistema decorrente das

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30

regras do Código de Defesa do Consumidor e da Lei de Ação Civil Pública a norma que

privilegie a interpretação sistemática da tutela coletiva36.

Todavia, a doutrina tradicionalmente tem feito uma distinção entre, de um lado, os

direitos difusos e coletivos e, de outro, os direitos individuais homogêneos.

Isso porque tratar-se-iam de duas categorias distintas. Os direitos difusos e coletivos

seriam os naturalmente coletivos37 (lato sensu), por se tratar de direitos transindividuais, que

não podem ser tutelados de forma individual, e os individuais homogêneos seriam os

acidentalmente coletivos, ou seja, aqueles marcadamente individuais, mas que podem ser

tutelados coletivamente.

Em razão disso, haveria dois regimes, dois microssistemas diferentes a depender do

direito transindividual tutelado: um regime em caso de tutela de direito difuso ou coletivo e

outro para a tutela de direitos individuais homogêneos.

É justamente o que ocorreu no Superior Tribunal de Justiça quando da análise da

aplicação, por meio do diálogo das fontes entre as normas do microssistema coletivo, da

remessa necessária prevista no artigo 19 da Lei da Ação Popular para as ações coletivas

fundadas na Lei de Ação Civil Pública.

No REsp 1.374.23238, constou do voto da Ministra Nancy Andrighi que as “ações

coletivas que versam direitos individuais homogêneos integram subsistema processual com um

conjunto de regras, modos e instrumento próprios, por tutelarem situação jurídica heterogênea

em relação aos direitos transindividuais”.

Assim, segundo a Ministra, “a coletivização dos direitos individuais homogêneos tem

um sentido meramente instrumental, com a finalidade de permitir uma tutela mais efetiva em

36 DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes. Curso de direito processual civil – processo coletivo. v. IV. 12.

ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 125. 37 Denominam-se direitos coletivos lato sensu os direitos coletivos entendidos como gênero, dos quais são espécies: os

direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos. “Em conhecida sistematização doutrinária, haveria direitos/interesses essencialmente coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito) e os direitos

acidentalmente coletivos (individuais homogêneos)”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Tutela jurisdicional dos interesses

coletivos ou difusos”. Temas de Direito Processual Civil, 1984. In: DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes.

Curso de direito processual civil – processo coletivo. v. IV. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 68. 38 PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. PLANOS DE SAÚDE. REAJUSTES DO

“PROGRAMA DE READEQUAÇÃO”. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA. REMESSA

NECESSÁRIA. AÇÃO COLETIVA. DIREITO INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. NÃO CABIMENTO. 1. Ação ajuizada

em 16-07-2007. Recurso especial interposto em 27-03-2012 e atribuído a este gabinete em 25-08-2016. 2. O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica obscuridade, contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão

conforme o que ele entender relevante à lide. 3. O fundamento da remessa ou reexame necessário consiste em uma precaução

com litígios que envolvam bens jurídicos relevantes, de forma a impor o duplo grau de jurisdição independentemente da

vontade das partes. 4. Ações coletivas que versam direitos individuais homogêneos integram subsistema processual com um

conjunto de regras, modos e instrumento próprios, por tutelarem situação jurídica heterogênea em relação aos direitos

transindividuais. 5. Limites à aplicação analógica do instituto da remessa necessária, pois a coletivização dos direitos

individuais homogêneos tem um sentido meramente instrumental, com a finalidade de permitir uma tutela mais efetiva em

juízo, não se deve admitir, portanto, o cabimento da remessa necessária, tal como prevista no art. 19 da Lei n. 4.717/1965. 6. Recurso especial conhecido e provido. REsp 1374232/ES, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 26-09-2017, DJe

02-10-2017.

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31

juízo, não se deve admitir, portanto, o cabimento da remessa necessária, tal como prevista no

art. 19 da Lei n. 4.717/65”.

Por isso, no caso concreto, por se tratar de direitos individuais homogêneos, afastou-

se a aplicação analógica da remessa necessária prevista no artigo 19 da Lei da Ação Popular.

Por sua vez, confirmando o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,

no AgInt no REsp 1690987/MG39, por se tratar de direitos difusos, reafirmou-se a aplicação da

remessa necessária.

A conclusão do colegiado, nos dois casos, foi, portanto, no sentido de limitar a

aplicação do instituto da remessa necessária, previsto na Lei de Ação Popular (art. 19), às

demandas coletivas que versem sobre direitos difusos e coletivos, o que desde logo causa

espécie ao se considerar que a Lei de Ação Popular, a Lei de Ação Civil Pública e o Código de

Defesa do Consumidor formam um microssistema legislativo de proteção aos direitos coletivos

lato sensu.

Ademais, a caracterização como interesses individuais homogêneos pressupõe

interesses coordenados na obtenção do mesmo bem, que geralmente envolve elevado número

de titulares, e que muitas vezes possuem relevância tão elevada que justifica inclusive o manejo

da ação por parte do Ministério Público, tudo a sugerir que a tutela de direitos individuais

homogêneos é, por sua própria natureza, de interesse da coletividade.

Nesse sentido, Fernando da Fonseca Gajardoni sustenta:

[...] Ora, a tutela dos direitos e interesses individuais homogêneos não se restringe à

tutela de direitos, apenas, das vítimas/indivíduos, como quer fazer acreditar essa visão

individualista do fenômeno40.

As ações com esse objeto, diante da pluralidade de pessoas interessadas no seu

deslinde, servem para o próprio controle e aplicação do direito objetivo. O

restabelecimento da ordem jurídica, diante da violação dos direitos/interesses de uma

gama de indivíduos (violação homogênea), tanto quanto do interesse desses próprios

indivíduos ou sucessores, é de interesse de toda a coletividade, frustrada (ainda que

do ponto de vista moral) pelo desrespeito indiscriminado da lei e da ordem jurídica

posta41.

39 AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. DIREITOS DIFUSOS DOS CONSUMIDORES. REMESSA NECESSÁRIA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 19 DA LEI N. 4.717/1965.

POSSIBILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, é aplicável o reexame

necessário nas hipóteses de ação civil pública, independentemente da presença de pessoa de direito público no polo passivo,

porém não se aplica aos litígios que versem exclusivamente sobre direitos individuais homogêneos. 1.1. Por conseguinte, levando-se em consideração que a hipótese dos autos cuida de direitos difusos de consumidores, torna-se imperioso o

reconhecimento da possibilidade de aplicação analógica do art. 19 da Lei n. 4.717/1965, devendo os autos retornarem à

origem para que se analisem as questões que foram julgadas improcedentes pelo Magistrado de primeiro grau e não foram

objeto de recurso voluntário pelas partes. 2. Agravo interno desprovido. AgInt no REsp 1690987/MG, Rel. Min. Marco

Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 21-08-2018, DJe 30-08-2018. 40 Interessante referência feita pelo autor a Antonio Gidi ao afirmar que parte da doutrina é incapaz de perceber que o titular

dos direitos individuais homogêneos, propriamente falando, não são as vítimas, mas sim o conjunto delas indivisivelmente

considerado. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 43. 41 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O processo coletivo refém do individualismo. In: (coord.) DIDIER, Fredie. Processo

coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 138-139.

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32

No mesmo sentido, Alcides Munhoz da Cunha, citado por Eduardo Talamini,

argumenta:

os interesses individuais homogêneos não se situam propriamente como um tertium

genus de interesses meta-individuais, a par dos interesses difusos e coletivos. Parecem

se situar isto sim como uma peculiar modalidade de interesses difusos ou coletivos,

como se procurará demonstrar. [...] Todavia, a despeito deste nomen in iuris, pode-se

afirmar que são interesses meta-individuais, enquanto pressupõe interesses

coordenados e justapostos que sigam a obtenção de um mesmo bem, de uma mesma

utilidade indivisível. [...] A divisibilidade se opera apenas no momento da liquidação

(quantificação) dos danos pessoalmente sofridos e da execução. [...] Enquanto se

buscar condenação genérica, entretanto, estar-se-á buscando um bem indivisível para

uma multiplicidade de vítimas com interesses convergentes na obtenção desta

condenação. Se forem indeterminados os sujeitos, poder-se-á dizer que se está diante

de interesses difusos sob a modalidade de interesses individuais homogêneos42.

Assim, ao contrário do que se costuma afirmar, a individualidade neste tipo de tutela

é meramente acidental e se revela tão somente na fase de execução (ou liquidação) do julgado,

o que pode sequer existir caso se reconheça a possibilidade de condenação específica com

determinação da forma de cumprimento, ainda que em sede de direitos individuais homogêneos

e a despeito do previsto no artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor.

Portanto, não se pode admitir que existam duas categorias de regras distintas para a

tutela de direitos coletivos, colocando os direitos individuais homogêneos como “subcategoria”

na tutela coletiva e com regras processuais não taxativas tão diversas e importantes como é o

caso da remessa necessária que, se não aplicada quando obrigatória, implicará a ausência de

trânsito em julgado da decisão.

3.2 Conceito e definição dos direitos transindividuais

Conforme já afirmamos nesta pesquisa, foi o Código de Defesa do Consumidor o

primeiro diploma legal a pretender definir o conceito de direitos difusos e coletivos, inovando

ainda ao definir uma terceira categoria até então não tratada em lei: os direitos individuais

homogêneos.

Segundo a lei, são difusos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza

indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.

Por sua vez, são coletivos os interesses ou direitos “transindividuais, de natureza

indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a

parte contrária por uma relação jurídica base”.

42 TALAMINI, Eduardo. In: (coord.). DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016 apud CUNHA, Alcides

Munhoz da. A evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, v. 77, 1995, n. 9, pp. 233-234.

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33

Por fim, são individuais homogêneos os “decorrentes de origem comum”.

Relevante questão debatida na doutrina foi o emprego da expressão interesses.

Conforme vimos ao tratar da possibilidade de impetração de mandado de segurança

coletivo para a tutela de direitos difusos, não é por acaso a opção feita pelo legislador ao

empregar as expressões interesses ou direitos.

A opção se deu por influência doutrinária e por receio de limitação do espectro da

tutela coletiva em razão de interpretação ligada a uma visão individualista do processo.

Isso porque um direito pressupõe uma relação entre duas pessoas acerca de

determinado objeto (bem) ou prestação, formando-se, assim, uma relação jurídica. Não há

direito que vincule uma pessoa a um objeto ou que não possua sujeito.

Assim, para afastar a possibilidade de interpretação restritiva, exigindo-se, para a tutela

de determinada lesão coletiva, a prévia identificação do indivíduo lesado, preferiu-se uma

conceituação ampla, tratando aqueles valiosos direitos, até então não amparados por legislação

protetiva, como interesses ou direitos.

Conforme pontua Kazuo Watanabe:

a necessidade de estar o direito subjetivo sempre referido a um titular determinado ou

ao menos determinável impediu por muito tempo que os ‘interesses’ pertinentes, a um

tempo, a toda uma coletividade e a cada um dos membros dessa mesma coletividade

[...] pudessem ser havidos como juridicamente passíveis de proteção. Era a estreiteza

da concepção tradicional do direito subjetivo, marcada profundamente pelo

liberalismo individualista, que obstava essa tutela jurídica. Com o tempo, a distinção

doutrinária entre interesses simples e interesses legítimos permitiu um pequeno

avanço, com a outorga de proteção da tutela jurídica a estes últimos. Hoje, com a

concepção mais larga do direito subjetivo, abrangente também do que outrora se tinha

como mero interesse na ótica individualista então predominante, ampliou-se o

espectro da tutela jurídica e jurisdicional43.

Analisando o conceito legal, a doutrina tradicionalmente tem feito uma distinção entre,

de um lado, os direitos difusos e coletivos e, de outro, os direitos individuais homogêneos,

separando-os em naturalmente coletivos e acidentalmente coletivos, respectivamente.

É com fundamento nesta distinção que foi cunhada, segundo Teori Albino Zavascki, a

célebre expressão de que em se tratando de direitos coletivos haveria tutela de direitos coletivos

e tratando-se de direitos individuais homogêneos haveria tutela coletiva de direitos, tudo a

indicar a natureza diversa dos direitos tutelados.

A origem comum, porém, não é suficiente para caracterizar o direito como individual

homogêneo para fins de tutela coletiva.

43 WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pellegrini; NERY JUNIOR, Nelson et al. Código brasileiro de Defesa do

Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 882-883.

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34

Com efeito, há situações em que, embora oriundos do mesmo fato, os danos causados

aos grupos de indivíduos possuem natureza diversa, ensejando pretensões não homogêneas

entre seus titulares.

O interessante exemplo trazido pela doutrina44 envolve um avião que transporta mais

de 100 pessoas e causa um acidente ao aterrissar, destruindo diversas casas existentes no local,

causando a morte de 50 moradores e de 50 passageiros. Nesse caso, não se verifica a necessária

homogeneidade entre os lesados (grupo que apenas teve prejuízos materiais em suas casas,

grupo de moradores e passageiros que perderam a vida).

Em razão disso, melhor considerar necessária a: (a) prevalência das questões comuns

sobres as questões individuais (prevalência); e (b) a superioridade da tutela coletiva sobre a

individual em termos de justiça e eficácia da decisão (superioridade); assim como previsto na

Rule 23 (b) (3) das Federal Rules do direito norte-americano quanto às class actions for

damages45.

É certo que, no plano abstrato, não é fácil distinguir entre direitos difusos, coletivos e

individuais homogêneos.

Nelson Nery Junior, percebendo a dificuldade de identificação in abstracto apresentou

interessante consideração — hoje largamente acolhida na doutrina e na jurisprudência — no

sentido de que somente seria possível a identificação segundo a pretensão formulada em juízo46.

Ou seja, é a partir do pedido formulado pelo legitimado que se pode identificar, com segurança,

se o direito tutelado é individual homogêneo, coletivo ou difuso.

Nesta ordem de ideias, somente se poderá verificar qual direito está efetivamente

sendo tutelado no momento da formulação da pretensão em juízo. O critério estático do conceito

legal acaba sendo insuficiente, reclamando a adoção de um conceito “dinâmico”.

E, conforme afirmamos, a distinção tem importantes reflexos processuais.

No aspecto da legitimidade, definir se o direito tutelado é difuso/coletivo ou individual

homogêneo importa em grande reflexo, pois no caso do Ministério Público ou da Defensoria,

por exemplo, podem não estar preenchidas as situações que justificam a atuação, o que

acarretaria a carência da ação proposta.

44 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016 apud

ARARUNA, Eduardo Varandas; PINHO, Eduardo Kelson Fernandes de. A conceituação dos interesses individuais

homogêneos à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Anteprojeto do Código de Processo Coletivo. In: Revista do

Ministério Público do Trabalho. v. 15, n. 32. Brasília: LTr., out. 2006, p. 95. 45 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016 apud

ARARUNA, Eduardo Varandas; PINHO, Eduardo Kelson Fernandes de. A conceituação dos interesses individuais

homogêneos à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Anteprojeto do Código de Processo Coletivo. In: Revista do

Ministério Público do Trabalho. v. 15, n. 32. Brasília: LTr., out. 2006, p. 188. 46 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. Coleção Estudos de Direito de

Processo Enrico Tullio Liebman, v. 21. São Paulo: RT, 2004, p. 159.

Page 35: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

35

No que tange à coisa julgada, há também importante distinção, pois, segundo os artigos

103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor, em se tratando de direito coletivo lato sensu a

coisa julgada será formada secundum eventum probationis, ou seja, não se formando coisa

julgada se o pedido for julgado improcedente por ausência de provas, diferenciando-se ainda

os limites subjetivos em se tratando de direito difuso (efeitos erga omnes) ou coletivo (efeito

ultra partes).

Em se tratando de direitos individuais homogêneos haverá formação da coisa julgada

somente em benefício das vítimas e seus sucessores, ou seja, em caso de procedência do pedido.

A extensão subjetiva, por consequência, será erga omnes.

Outro reflexo processual importante advém da previsão do artigo 95 do Código de

Defesa do Consumidor segundo o qual, em se tratando de direitos individuais homogêneos, “em

caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu

pelos danos causados”.

Considerando a relevância da distinção, parece-nos, no atual estágio do processo

coletivo, desaconselhável a manutenção dos conceitos trazidos pelo Código de Defesa do

Consumidor, pois somente se poderá verificar qual direito está efetivamente sendo tutelado no

momento da formulação da pretensão em juízo. O critério estático do conceito legal acaba sendo

insuficiente, reclamando a adoção de um conceito “dinâmico”.

E ao se considerar que nem sempre a pretensão pode ser de imediato formulada, sendo

normalmente necessária a adoção de expedientes preliminares para confirmar os danos e o ato

ilícito praticado, o que em geral se dá no bojo de um inquérito civil, verifica-se que a correta

identificação do direito tutelado pode, por vezes, demorar anos para ocorrer.

É justamente em razão disso que a doutrina tem buscado uma nova distinção da

clássica definição trazida pelo Código de Defesa do Consumidor. Diante disso, tem sido

bastante mencionada e difundida a classificação cunhada por Edilson Vitorelli, que classificou

os direitos transindividuais segundo a extensão ou o impacto do dano causado.

O autor pretende reformular os conceitos de direitos coletivos, propondo três

categorias: danos de difusão global, irradiada e local. Para isso, propõe duas premissas teóricas:

a primeira relacionada ao objeto conceituado; a segunda, relativa aos conceitos de

conflituosidade e complexidade47, tão importantes na conceituação.

O primeiro aspecto de atenção do autor refere-se ao equívoco de se considerar o direito

coletivo lato sensu como necessariamente indivisível. A doutrina tradicional adotou um

47 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 73.

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36

conceito sociológico de sociedade como estrutura, “que existe independentemente dos

indivíduos que a compõe e, por isso, com um interesse que poderia ser investigado não com

base nos fatos, mas com base em abstrações”48. Criticando tal opção, o autor considera

irrelevante saber a quem pertence determinado bem ou direito no plano abstrato, sem que ocorra

qualquer violação a este bem ou direito.

Assim, discutir a titularidade dos direitos enquanto permanecem íntegros é desprovido

de utilidade, pois a titularidade dos direitos transindividuais somente pode ser definida a partir

da sua violação ou ameaça de violação, ou seja, do litígio coletivo49.

Para o autor, o “dogma da indivisibilidade visualizou os direitos transindividuais em

situação de integridade, o que inviabilizou a percepção de que a intensidade com a qual os

indivíduos são atingidos por sua lesão é empiricamente variável”50.

A segunda premissa teórica diz respeito aos conceitos de complexidade e

conflituosidade, essenciais para a definição do tipo de dano. A complexidade diz respeito às

diversas formas de tutela de um direito lesado ou ameaçado de lesão. Isso decorre da conclusão

de que determinada lesão pode ser tutelada de diversas formas, as quais não são

necessariamente equivalentes em termos fáticos, mas o são em termos jurídicos. O autor

menciona o exemplo da despoluição de um rio, concluindo ser elevada a complexidade, pois há

diversas formas de realizar a despoluição, sem que possa desde logo apontar a mais correta.

Dessa forma, quanto “mais variados forem os aspectos da lesão e as possibilidades de

tutela, maior será o grau de complexidade do litígio”51.

O segundo elemento essencial para a classificação do dano de difusão global, irradiada

ou local é a conflituosidade, que consiste na uniformidade entre as posições dos atingidos pelo

dano. Quanto mais variada for a forma pela qual os indivíduos foram atingidos pela lesão ou

quanto maior for o impacto sofrido, maior será a conflituosidade entre eles52, ou seja, maior

será a divergência entre eles com relação ao dano e a forma de sua reparação.

O autor, ressalta, entretanto, que os dois elementos não são codependentes, podendo

existir conflitos ambientais complexos, mas com baixa conflituosidade.

Com base nestas premissas, o autor define os direitos ou litígios transindividuais em

globais, locais e irradiados. Os litígios transindividuais globais ocorrem quando a lesão ou

48 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 72. 49 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 73. 50 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 74. 51 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 74. 52 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 75.

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37

ameaça de lesão não atinge de modo particular a qualquer indivíduo; é baixo o grau de

conflituosidade, eis que é baixo o interesse pessoal no conflito.

São características deste tipo de direito ou litígio: (i) não há titularidade abstratamente

definida, pois não atinge diretamente qualquer interesse individual; (ii) os atingidos não

possuem interesse pessoal no conflito; (iii) os membros do grupo são atingidos de forma

uniforme; (iv) baixo grau de conflituosidade; (v) o litígio é menos complexo53.

Os direitos ou litígios transindividuais locais ocorrem no contexto de violações que

atinjam, de modo específico, pessoas que integram uma sociedade altamente coesa, unida por

laços identitários de solidariedade social, de modo que este grupo é o titular do direito coletivo

lesado54. As características são: (i) lesão que atinge determinado grupo que compartilha mesma

pespectiva social ou identidade própria; (ii) titularidade de direito material bem definida; (iii)

conflituosidade de grau médio; (iv) o litígio não é abstratamente complexo55.

Por fim, os direitos ou litígios transindividuais irradiados se configuram quando lesão

ou ameaça de lesão atinge diversas pessoas que não compõem uma comunidade, não

compartilham a mesma perspectiva social, de modo que a lesão os atinge de maneira desigual

e variável, elevando o grau de conflituosidade.

Tem, assim, por características: (i) atinge pessoas de diversos segmentos que não

possuem identidade própria comum; (ii) titularidade do direito material não é bem definida; (iii)

alto grau de conflituosidade e de complexidade56.

Com esta nova definição, perde relevância a distinção entre direitos difusos e coletivos,

pois qualquer deles poderá ser enquadrado nas novas categorias, a depender do perfil da lesão

e do tipo de sociedade à qual o direito lesado puder ser atribuído57.

Do mesmo modo, o autor sustenta a necessidade de uma nova interpretação quanto à

categoria dos direitos individuais homogêneos, notadamente por não vislumbrar diferença

sensível entre estes e os direitos transindividuais:

A linha de pensamento aqui exposta, embora não se filie rigorosamente ao

pensamento minoritário, comunga de sua visão no sentido de que as diferenças entre

os direitos transindividuais e individuais homogêneos não são tão marcantes quanto

parecem. É certo que, no fundo, os direitos individuas homogêneos pertencem a

pessoas identificáveis, com maior ou menor dificuldade. Todavia, isso é insuficiente

para diferenciá-los dos direitos transindividuais, eis que a sociedade que titulariza essa

modalidade de direitos, em qualquer das três acepções aqui propostas, também é

composta de pessoas, mais ou menos individualizáveis. Logo, quando se reconceitua

53 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 101. 54 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 95. 55 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 102. 56 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 103. 57 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 95.

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38

a titularidade dos direitos transindividuais, deixa de existir essa característica

diferenciadora58.

O autor sustenta, então, eliminar a categoria dos direitos individuais homogêneos59,

devendo tais direitos também seguirem as mesmas categorias propostas para os direitos

transindividuais, quais sejam litígios de difusão global, local ou irradiada60.

3.3 Legitimidade

Em sede de tutela coletiva, adotou-se, a partir do final do século XX, com a edição da

Lei de Ação Popular, da Lei de Ação Civil Pública e, mais recentemente, com o Código de

Defesa do Consumidor, formadores do microssistema de tutela coletiva, um modelo inédito,

misto de sistemas europeu e americano, pois, dentre as principais diferenças entre os modelos

mencionados verifica-se a existência de um rol de legitimados, diferenciação entre direitos

individuais homogêneos, coletivos e difusos, além das disposições específicas quanto aos

efeitos da coisa julgada a depender do direito tutelado.

A Constituição Federal de 1988 também foi importante marco ao prever, dentre outras

inovações, a possibilidade de tutela de direitos difusos e coletivos em sede de ação civil pública,

trazendo ampla legitimidade ao Ministério Público na tutela do extenso rol de direitos sociais

previstos no novo texto constitucional (artigo 129 da Carta).

O Ministério Público possui, em razão disso, papel central na tutela dos direitos

coletivos, ostentando uma ampla legitimidade e participando de todos os processos coletivos

na condição de fiscal da lei.

As associações civis, cuja legitimidade constou desde a edição da Lei de Ação Civil

Pública, tiveram igual papel de destaque na tutela coletiva, promovendo demandas importantes

como a destinada a ressarcir os consumidores dos prejuízos causados pelos planos econômicos

do final da década de 1980 e início da década de 1990.

Não obstante, há outros órgãos legitimados à propositura de processos coletivos que

passaram, ao longo dos anos, a assumir importante papel na tutela coletiva, como as pessoas

jurídicas de direito público interno (União, Estados e Municípios) e a Defensoria Pública.

Inicialmente, na lição de Teori Albino Zavascki, não se deve confundir defesa de

direitos coletivos com defesa coletiva de direitos. Isso porque

direitos coletivos são direitos subjetivamente transindividuais (= sem titular

individualmente determinado) e materialmente indivisíveis. Os direitos coletivos

58 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 96. 59 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 101. 60 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo. Dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p. 104.

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39

comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela jurisdicional. Ou

seja: embora indivisível, é possível conceber-se uma única unidade da espécie de

direito coletivo. O que é múltipla (e indeterminada) é a sua titularidade, e daí sua

transindividualidade. ‘Direito coletivo’ é designação genérica para as duas

modalidades de direitos transindividuais: o difuso e o coletivo stricto sensu 61.

Por sua vez, os direitos individuais homogêneos são

simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não

altera nem pode desvirtuar essa sua natureza. É qualificativo utilizado para identificar

um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de

afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos

eles62.

Diante do crescente incremento das situações geradoras de lesões transindividuais e

da evolução da legislação (ou dos precedentes, no caso de países eminentemente de common

law), que passou a prever cada vez mais direitos de terceira geração, os países passaram a adotar

modelos diferenciados de tutela jurisdicional para enfrentar esta nova categoria de demanda.

Basicamente, existem três modelos de legitimidade para a tutela coletiva: o modelo

privado ou particular, o modelo público e o modelo misto. É comum também a existência de

mais de um modelo no mesmo sistema.

No caso do modelo privado, confere-se aos particulares ou às associações civis a

legitimidade para o manejo de ações coletivas, sem qualquer participação de órgão público. É

o adotado nos Estados Unidos para as class actions que tutela os casos de massa (mass tort

cases), que mais se assemelha aos direitos individuais homogêneos do direito brasileiro.

Neste tipo de modelo, a exemplo do ocorrido no direito americano, há geralmente uma

fase específica de certification, ou seja, uma fase para se apurar se aquele autor possui

representatividade adequada e pode tutelar o direito vindicado.

No modelo público, atribui-se a órgãos públicos (como o Ministério Público) a

legitimidade para manejar ações coletivas. Neste modelo, há geralmente uma legitimidade

presumida, decorrente da natureza pública e da legitimação conferida por lei.

Já o modelo misto é uma combinação dos dois modelos anteriores, conferindo-se

legitimidade ao particular e a entidades públicas que atuam de forma concorrente na proteção

dos direitos transindividuais.

A Lei de Ação Civil Pública, em seu projeto inicial, pretendia adotar um modelo

público e concentrado no Ministério Público, mas o projeto aprovado e convertido em lei adotou

61 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 39. 62 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 40.

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40

um modelo misto, conferindo legitimidade a entes públicos (e não apenas ao Ministério

Público) e a associações civis.

3.3.1 Natureza jurídica

A doutrina há muito discute a natureza jurídica da legitimidade conferida pela lei aos

órgãos públicos ou privados, legitimados ao manejo da ação coletiva em prol da defesa dos

direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Embora pareça questão desprovida de interesse prático, há sensíveis diferenças

processuais no enquadramento da legitimidade enquanto ordinária, extraordinária, sui generis

ou legitimação especial para a condução do processo.

Defendendo a natureza ordinária da legitimação, Kazuo Watanabe, em artigo

publicado em 1984, ou seja, antes da Lei de Ação Civil Pública, criticava o sistema jurídico ao

afirmar que ele estava

preso ao princípio tradicional da obrigatória coincidência entre os sujeitos da relação

jurídico-material controvertida e os sujeitos do processo, e por isso somente admite,

em princípio, o ingresso em Juízo de pessoas jurídicas quando se trate de direitos ou

obrigações de que eles mesmos sejam titulares, mostrando escassa inclinação a abrir-

lhes tal possibilidade na defesa dos interesses dos respectivos participantes63.

Em seguida, conclui: “é possível interpretar-se o art. 6º do Código de Processo Civil

com maior abertura e largueza, extraindo de seu texto a legitimação ordinária das associações

e outros corpos intermediários, que sejam criados para a defesa de interesses difusos”.

Por sua vez, defendendo a legitimação extraordinária, José Carlos Barbosa Moreira:

particularmente interessante é a possibilidade que se abre às entidades associativas de

agir em juízo, em nome próprio, embora na defesa de direitos e de interesses que não

pertençam a elas, às próprias entidades, e sim aos filiados. Ao dizer isso, estou

tomando posição sobre a natureza dessa figura jurídica: a mim parece que não se trata

de uma hipótese de representação, ao contrário do que sugere o teor literal do

dispositivo, logo adiante, quando usa o verbo “representar”. Penso que aqui houve um

cochilo técnico; o legislador constituinte não é especialista em direito processual de

sorte que não é de espantar que, aqui e acolá, nos defrontemos com alguma

imperfeição, com alguma impropriedade desse ponto de vista. Mas o meu pensamento

é do que se trata, na verdade, de legitimação extraordinária, que poderá dar lugar, isto

sim, a um fenômeno de substituição processual, e não a um fenômeno de

representação; porque, se se tratasse de um fenômeno de representação, quem estaria,

na verdade, agindo em juízo seriam os filiados individualmente considerados, embora

63 WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do

surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 65.

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41

por meio de representante, e o fenômeno nada teria de curioso, ou de merecedor de

maior atenção64.

Assim, para estes autores, o legitimado previsto na Lei de Ação Civil Pública, ao

ajuizar ação coletiva, estaria tutelando em nome próprio direito alheio, direito que não

pertenceria àquele que ajuizou a demanda. A crítica reside no fato de que a associação, ao

ajuizar determinada demanda, defende direito que também lhe é próprio (dos seus membros).

A terceira corrente vê na legitimidade para a tutela coletiva uma espécie sui generis de

legitimidade ou, na expressão de Nelson Nery Junior, legitimidade autônoma para conduzir o

processo, ou seja, legitimação decorrente de lei para a tutela de direitos supraindividuais,

própria do sistema processual coletivo em razão da relevância do direito tutelado, conferindo

autonomia ao processo coletivo, de modo a desvinculá-lo da visão privatista e individualista do

processo civil tradicional.

Contudo, alguns autores adeptos da terceira corrente excluem o conceito de

legitimação autônoma para a condução do processo quando se trata de tutela de direitos

individuais homogêneos. Nesse caso, pretendem a legitimação extraordinária.

Por fim, e neste aspecto há maior consenso na doutrina, a legitimidade é do tipo

concorrente e disjuntiva, vale dizer: qualquer um dos legitimados pode manejar a ação

individualmente, independentemente da participação e concordância dos demais.

Embora a discussão possua certa relevância prática em termos processuais, verifica-se

que é na jurisprudência que se travam os maiores embates no aspecto da legitimidade; é

constante que tal aspecto da tutela coletiva seja objeto de análise pelos tribunais superiores.

3.3.2 Legitimados

3.3.2.1 Legitimidade segundo a jurisprudência

É inegável que a legitimidade para a ação coletiva é tema recorrente nos tribunais, nos

quais destacam-se duas grandes discussões: a (i)legitimidade do Ministério Público para a tutela

de direitos individuais homogêneos e a legitimidade da Defensoria Pública para a ação coletiva

e especialmente para a tutela de direitos individuais homogêneos.

3.3.3 Legitimidade do Ministério Público

64 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. RePro 61/190. São Paulo: RT., jan.-

mar. 1991.

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42

A Constituição Federal de 1988 reservou importante papel ao Ministério Público,

concedendo-lhe garantias institucionais — equiparadas às da magistratura (art. 128, 5º §, I) —

a fim de poder exercer as funções conferidas em prol da tutela do patrimônio público, social,

meio ambiente e segurança, dentre outros.

No que diz respeito à tutela coletiva, previu a Constituição Federal de 1988 que são

funções institucionais do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública,

para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos

e coletivos” (art. 129, III), ressaltando que “a legitimação do Ministério Público para as ações

civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto

nesta Constituição e na lei” (art. 129, §1º).

Deflui do texto constitucional, portanto, a ampla legitimidade do Ministério Público

para a tutela de direitos difusos e coletivos. De fato, o legislador constitucional cuidou de

enunciar expressamente tão somente dois direitos difusos (patrimônio público e social e meio

ambiente), preferindo adotar verdadeira cláusula aberta no que diz respeito à legitimidade

ministerial ao estabelecer a competência para tutelar qualquer outro interesse difuso e coletivo.

Não bastasse, a fim de afastar qualquer dúvida sobre a natureza concorrente e

disjuntiva da legitimidade — que deflui da relevância do direito tutelado e da própria

inafastabilidade do acesso à justiça, direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXV, da

Constituição Federal de 1988 — o § 1º do art. 129 cuidou de deixar expressa e aberta a

legitimação para outras pessoas, segundo previsão da própria Constituição e da legislação

extravagante.

Todavia, questão tormentosa é a legitimidade do Ministério Público para a tutela de

direitos individuais homogêneos. Uma interpretação literal do art. 129, III conduziria à rápida

conclusão de que não haveria legitimidade, pois o texto constitucional tratou tão somente de

outros direitos difusos e coletivos, a indicar que pretendeu afastar a legitimação para os casos

de direitos individuais homogêneos, notadamente porque a lei não contém palavras inúteis.

E nesse sentido foram proferidas decisões reconhecendo a ilegitimidade do órgão

ministerial para defender direitos individuais homogêneos65.

65 Por todos: “Ação civil pública. Ilegitimidade ativa do Ministério Público. Direitos individuais homogêneos. 1. A ação civil

pública, pela sua própria natureza, não se presta a proteger direitos individuais disponíveis. 2. Direitos individuais afetados a

determinados estamentos sociais não estão elencados como alcançados pelos efeitos da ação civil pública. 3. A homenagem

que o Ministério Público sempre presta à Carta Magna não lhe autoriza a exceder as suas atribuições no tocante ao seu direito

de provocar, como sujeito ativo ou substituto processual, a atividade jurisdicional. 4. É parte ilegítima o Ministério Público

para a propositura de ação civil pública quando não se visa proteger interesses difusos ou coletivos. Com estes não devem ser confundidos os que, tipicamente, possuem características individuais de um grupo de determinado setor social. 4. Apelação

improvida. Sentença mantida”. BRASIL. Tribunal Regional Federal 5, 2ª Turma, j. 23-05-1995, Ap. Civ. 05076860-5.

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43

Contudo, doutrina e jurisprudência passaram a perceber que nem todos os direitos

individuais homogêneos eram iguais, pois embora restritos a determinado grupo perfeitamente

identificado do esteio social, alguns possuíam características que o superavam e passavam a

ostentar dimensão social.

Outrossim, o art. 129, IX da Constituição Federal de 1988 dispõe que é função

institucional do Ministério Público “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que

compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria

jurídica de entidades públicas”; o caput do art. 127 dispõe: “o Ministério Público é instituição

permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem

jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

A conjugação e interpretação sistemática dos artigos 129, III e IX, e 127 — que prevê

a competência do Ministério Público na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis

— passou a fundamentar uma nova visão sobre a legitimidade do Parquet, reconhecendo a

possibilidade de tutela dos direitos individuais homogêneos quando houvesse interesse social

no direito invocado ou se se tratasse de direito indisponível.

Assim, pouco a pouco, a evolução dos estudos conduziu a um novo entendimento

jurisprudencial sobre o tema, abrindo-se ainda mais a via da tutela coletiva, tendo os Tribunais

Superiores, já em 1996, reconhecido, e.g., a legitimidade do Ministério Público na defesa de

trabalhadores sujeitos a condições insalubres66, ou ainda, no tocante ao reajuste de mensalidades

escolares67.

Esta poderia ser considerada a primeira “onda” jurisprudencial, que passou a abrir a

porta para a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos pelo Ministério Público, mas a

jurisprudência seguiu evoluindo na interpretação do sistema processual coletivo enquanto

relevante instrumento de efetivação dos direitos fundamentais de terceira geração.

Com efeito, a jurisprudência passou, em um segundo momento, a autorizar o

ajuizamento de ação coletiva por parte do Ministério Público, em se tratando de direito

individual indisponível ou com interesse social (tais como aqueles relativos à infância,

adolescência e aos idosos, à saúde e à vida), ainda que em benefício de uma única pessoa68.

66 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 58.682, j. 08-10-1996, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 16-12-

1996. 67 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 163.231/SP, Pleno, j. 26-02-1997, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 29-06-2001. 68 AgRg no REsp 1368769/SP, Rel. Min. Humberto Martins. Segunda Turma, j. 06-08-2013, DJE 14-08-2013; EREsp 488427/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Seção, j. 10-09-2008, DJE 29-09-2008; EREsp 695665/RS, Rel. Min.

Eliana Calmon, Primeira Seção, j. 23-04-2008, DJE 12-05-2008.

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44

Assim, conferiu-se legitimidade ao Ministério Público para o ajuizamento de demanda

visando, e.g., a concessão de vaga em creche ou escola ou ainda o fornecimento de determinado

medicamento69, mesmo que em favor de uma única criança70.

Estas situações, porém, ante a evolução dos estudos doutrinários e jurisprudenciais,

parecem inseridas em uma zona de certeza positiva, ou seja, atualmente é questão bastante

sedimentada a possibilidade de manejo de ação coletiva para a tutela de direitos indisponíveis

ligados à saúde e à educação de crianças e idosos, por exemplo.

Todavia, há na jurisprudência recente dos Tribunais superiores casos situados em zona

cinzenta. Dois deles, por exemplo, são recentes cujos entendimentos foram objeto de súmulas

do Superior Tribunal de Justiça: o seguro obrigatório e a tutela dos consumidores.

Caberia ao Ministério Público promover ação coletiva para pleitear indenização

decorrente dos Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestres

(DPVAT) em benefício do segurado?

O DPVAT é um seguro obrigatório contra danos pessoais causados por veículos

automotores de via terrestre, ou por sua carga, a pessoas, transportadas ou não. Em caso de

acidente, discutiu-se se o Ministério Público poderia pleitear a indenização em favor do

segurado (obrigatório).

O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o tema em 2008, em julgamento proferido

pela Segunda Seção, assim entendeu:

há de se considerar que, não obstante a Carta Magna estabelecer que ao Ministério

Público compete a defesa dos direitos individuais indisponíveis, essa regra tem

ganhado contornos mais brandos na interpretação doutrinária e jurisprudencial,

principalmente após o advento do Código de Defesa do Consumidor. Isso se verifica

nas hipóteses em que os interesses lesados tenham natureza divisível e individual, mas

caráter de indivisibilidade e indisponibilidade, por tocarem a relevantes interesses

sociais, de forma que, se lesados, repercutam negativamente na ordem social. [...] O

fato de a contratação do seguro ser obrigatória e atingir a população de modo geral

não lhe confere tal relevância social a ponto de torná-la defensável via ação coletiva

proposta pelo Ministério Público. Do contrário, poder-se-ia absurdamente considerar

que todo interesse que diga respeito à uma parcela da sociedade possa ser classificado

como basilar; isso nivelaria tais valores numa superfície indesejável, banalizando os

que são radicados como força informadora social. [...] O seguro em questão, embora

tenha como obrigatória sua contratação, formaliza acordo que vincula apenas a

empresa de seguro e o contratado, concebendo uma relação de natureza

eminentemente particular, tanto que, na ocorrência de sinistro, o beneficiário pode

deixar de requerer a cobertura ou dela dispor como bem entender. [...] inexiste

legitimidade ativa ad causam do Ministério Público em razão de que estavam sendo

defendidos interesses individuais homogêneos disponíveis71.

69 AgRg no REsp 1443783/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j.18-06-2014, DJE 06-08-2014. 70 O que, de início, foi rechaçado pelo Superior Tribunal de Justiça: “[...] Não tem o Ministério Público legitimidade para

propor ação civil pública, objetivando resguardar interesses individuais, no caso de um menor carente. Precedentes. [...]”.

REsp 610.438/SP, Rel. Min. Franciulli Netto, Rel. p/ Acórdão Min. Castro Meira, Segunda Turma, j. 15-12-2005, DJ 30-03-2006, p. 195. 71 REsp 858056 GO, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Seção, j. 11-06-2008, DJe 04-08-2008.

Page 45: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

45

Em razão da reiteração do entendimento firmado no precedente, que não vislumbrava

na questão relevância social ou indisponibilidade do direito tutelado, o Superior Tribunal de

Justiça, em 2010, editou a Súmula 470 com a seguinte redação: “O Ministério Público não tem

legitimidade para pleitear, em ação civil pública, a indenização decorrente do DPVAT em

benefício do segurado” (Súmula 470, Segunda Seção, j. 24-11-2010, DJe 06-12-2010).

Porém, a súmula foi cancelada em 2015 em razão de ter sido superada pelo

entendimento do Supremo Tribunal Federal firmado em 2014 em julgamento com repercussão

geral72.

72 CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL COLETIVA. DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

(DIFUSOS E COLETIVOS) E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISTINÇÕES. LEGITIMAÇÃO DO

MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS DE DIMENSÃO

AMPLIADA. COMPROMETIMENTO DE INTERESSES SOCIAIS QUALIFICADOS. SEGURO DPVAT. AFIRMAÇÃO DA LEGITIMIDADE ATIVA. 1. Os direitos difusos e coletivos são transindividuais, indivisíveis e sem titular determinado,

sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por iniciativa dos órgãos e

entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de

suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III). 2. Já os direitos individuais homogêneos pertencem à categoria dos direitos subjetivos, são divisíveis, tem titular determinado ou determinável e em geral são de natureza disponível. Sua tutela

jurisdicional pode se dar (a) por iniciativa do próprio titular, em regime processual comum, ou (b) pelo procedimento especial

da ação civil coletiva, em regime de substituição processual, por iniciativa de qualquer dos órgãos ou entidades para tanto

legitimados pelo sistema normativo. 3. Segundo o procedimento estabelecido nos artigos 91 a 100 da Lei n. 8.078/1990, aplicável subsidiariamente aos direitos individuais homogêneos de um modo geral, a tutela coletiva desses direitos se dá em

duas distintas fases: uma, a da ação coletiva propriamente dita, destinada a obter sentença genérica a respeito dos elementos

que compõem o núcleo de homogeneidade dos direitos tutelados (an debeatur, quid debeatur e quis debeat); e outra, caso

procedente o pedido na primeira fase, a da ação de cumprimento da sentença genérica, destinada (a) a complementar a atividade cognitiva mediante juízo específico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= a margem de

heterogeneidade dos direitos homogêneos, que compreende o cui debeatur e o quantum debeatur), bem como (b) a efetivar

os correspondentes atos executórios. 4. O art. 127 da Constituição Federal atribui ao Ministério Público, entre outras, a

incumbência de defender “interesses sociais”. Não se pode estabelecer sinonímia entre interesses sociais e interesses de entidades públicas, já que em relação a estes há vedação expressa de patrocínio pelos agentes ministeriais (CF, art. 129, IX).

Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes

de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio,

excluídos do âmbito da tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). 5. No entanto, há certos interesses individuais que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses

puramente particulares, passando a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses

da comunidade. Nessa perspectiva, a lesão desses interesses individuais acaba não apenas atingindo a esfera jurídica dos

titulares do direito individualmente considerados, mas também comprometendo bens, institutos ou valores jurídicos superiores, cuja preservação é cara a uma comunidade maior de pessoas. Em casos tais, a tutela jurisdicional desses direitos

se reveste de interesse social qualificado, o que legitima a propositura da ação pelo Ministério Público com base no art. 127

da Constituição Federal. Mesmo nessa hipótese, todavia, a legitimação ativa do Ministério Público se limita à ação civil

coletiva destinada a obter sentença genérica sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos individuais homogêneos. 6. Cumpre ao Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos

individuais homogêneos compromete também interesses sociais qualificados, sem prejuízo do posterior controle jurisdicional

a respeito. Cabe ao Poder Judiciário, com efeito, a palavra final sobre a adequada legitimação para a causa, sendo que, por se

tratar de matéria de ordem pública, dela pode o juiz conhecer até mesmo de ofício (CPC, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e § 4º). 7. Considerada a natureza e a finalidade do seguro obrigatório DPVAT – Danos Pessoais Causados por Veículos

Automotores de Via Terrestre (Lei n. 6.194/74, alterada pela Lei n. 8.441/92, Lei n. 11.482/07 e Lei n. 11.945/09) – há

interesse social qualificado na tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos dos seus titulares, alegadamente lesados de

forma semelhante pela Seguradora no pagamento das correspondentes indenizações. A hipótese guarda semelhança com

outros direitos individuais homogêneos em relação aos quais – e não obstante sua natureza de direitos divisíveis, disponíveis

e com titular determinado ou determinável – o Supremo Tribunal Federal considerou que sua tutela se revestia de interesse

social qualificado, autorizando, por isso mesmo, a iniciativa do Ministério Público de, com base no art. 127 da Constituição,

defendê-los em juízo mediante ação coletiva. RE 163.231/S P, AI 637.853 AgR/SP, AI 606.235 AgR/DF, RE 475.010 AgR/RS, RE 328.910 AgR/S P e RE 514.023 AgR/RJ. 8. Recurso extraordinário a que se dá provimento. RE 631.111/GO,

Rel. Min. Teori Zavascki, j. 07-08-2014. Repercussão Geral.

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46

O Ministro relator sustentou, em seu voto vencedor, que o seguro, ante a sua

obrigatoriedade e relevância na proteção às vítimas de acidentes automobilísticos — risco

aceito na sociedade moderna — tinha interesse social e, portanto, justificaria a tutela pelo

Ministério Público.

Conforme observado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki,

o seguro DPVAT não é um seguro qualquer. É seguro obrigatório por força de lei e

sua finalidade é proteger as vítimas de um recorrente e nefasto evento da nossa

realidade moderna, os acidentes automobilísticos, que tantos males, sociais e

econômicos, trazem às pessoas envolvidas, à sociedade e ao Estado, especialmente

aos órgãos de seguridade social. Por isso mesmo, a própria lei impõe como obrigatório

[...].

Outro entendimento jurisprudencial recente e polêmico envolvendo a legitimidade do

Ministério Público para a tutela de direitos individuais homogêneos revela-se no enunciado

sumular 610 do Superior Tribunal de Justiça: “o Ministério Público tem legitimidade ativa para

atuar na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores, ainda

que decorrentes da prestação de serviço público”73.

Tratamos o tema como polêmico, pois, à primeira vista, direitos do consumidor

sugerem um caráter disponível. E de fato o são.

Não obstante, a disponibilidade do direito individual homogêneo não é o único critério

a justificar a legitimidade do Ministério, pois também haverá o preenchimento da referida

condição da ação quando o direito veiculado revelar relevância social, ainda que disponível.

É este o entendimento jurisprudencial em relação à tutela dos direitos individuais

homogêneos relacionados aos direitos do consumidor. Segundo o Ministro Teori Zavascki,

então Ministro do Superior Tribunal de Justiça,

a proteção coletiva dos consumidores constitui não apenas interesse individual do

próprio lesado, mas interesse da sociedade como um todo. Realmente, é a própria

Constituição que estabelece que a defesa dos consumidores é princípio fundamental

da atividade econômica (CF, art. 170, V), razão pela qual deve ser promovida,

inclusive pelo Estado, em forma obrigatória (CF, art. 5º, XXXII). Não se trata,

obviamente, da proteção individual, pessoal, particular, deste ou daquele consumidor

lesado, mas da proteção coletiva, considerada em sua dimensão comunitária e

impessoal. Compreendida a cláusula constitucional dos interesses sociais (art. 127)

nessa dimensão, não será difícil concluir que nela pode ser inserida a legitimação do

Ministério Público para a defesa de ‘direitos individuais homogêneos’ dos

consumidores, o que dá base de legitimidade ao art. 82, I da Lei n. 8.078/90 [...]74.

73 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Aprovada em: 07-02-2018, DJe 14-02-2018. 74 REsp 417.804/PR, DJ 16-05-2005.

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47

Dessa forma, segundo o entendimento firmado, os direitos do consumidor possuem

relevância social presumida que deflui do texto constitucional (art. 170, V, e art. 5º XXXII), de

maneira que o Ministério Público será parte legítima ainda que se trate de direito disponível75.

Da análise dos precedentes que ensejaram a aprovação da súmula, verifica-se que se

tratam de processos que objetivaram a condenação de concessionária de serviço de telefonia a

reparar todos os telefones de uso público, além de inserir informações claras e precisas sobre

como utilizá-los e os códigos de seleção das prestadoras76; ação ajuizada com o objetivo de

limitar os descontos de mútuo em conta corrente, aplicando, analogicamente, o entendimento

para empréstimos consignados em folha de pagamento77; proibição de concessionária

interromper o serviço de fornecimento de energia elétrica por dívida pretérita, a título de

recuperação de consumo78; demanda relacionada à fiscalização de comercialização de

combustível automotor fora dos padrões da ANP, isto é, adulterado79, dentre outras.

A defesa dos direitos supraindividuais relacionados ao direito do consumidor é tema

bastante caro ao Superior Tribunal de Justiça, pois, consolidada a legitimidade do Ministério

Público, em recente julgamento80, passou a admitir a tutela destes relevantes direitos em sede

de ação coletiva ajuizada por pessoa jurídica de direito público interno (Município).

No julgamento do REsp 1.509.586/SC, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu

provimento ao recurso especial para afastar a conclusão do tribunal de origem — que havia

reconhecido a ilegitimidade do Município de Brusque/SC — de que não poderia o Município

ajuizar ação coletiva para buscar impedir a instituição financeira de cobrar tarifas pela

renovação de cadastro dos servidores municipais.

Segundo o voto da Ministra Nancy Andrighi,

[...] embora tenha sido mencionada como causa de pedir e pedido a cobrança da tarifa

de “renovação de cadastro” de servidores municipais, é certo que o direito vindicado

possui dimensão que extrapola a esfera de interesses puramente particulares dos

citados servidores, o que é suficiente para o reconhecimento da legitimidade do ente

político para essa primeira fase da tutela coletiva de interesses individuais

homogêneos [...].

Percebe-se, portanto, que a interpretação do Superior Tribunal de Justiça no tema da

legitimidade do Ministério Público — e de outros legitimados — tem sido bastante ampliativa,

reconhecendo interesse social ou indisponibilidade do direito em uma ampla gama de

75 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 1254428/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 02-06-2016. 76 AgRg nos EDcl no REsp 1508524/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 10-03-2016, DJe 16-03-

2016. 77 EDcl no AgRg no AREsp 34.403/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, j. 06-06-2013, DJe 17-09-2013. 78 AgRg no AREsp 300.270/MG, Rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, j.17-09-2015, DJe 24-09-2015. 79 AgRg no REsp 1518698/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 25-08-2015, DJe 16-11-2015. 80 REsp 1509586/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 15-05-2018, DJe 18-05-2018.

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48

demandas. Resta perquirir se tal interpretação é – ou deve ser – a mesma no que diz respeito à

legitimidade da Defensoria Pública.

3.3.4 Legitimidade da Defensoria Pública

A Defensoria Pública, no modelo e importância atual, nasceu com a Constituição

Federal de 1988. Até então, a defesa dos necessitados era feita por subdivisões dos órgãos de

Defesa do Executivo (no Estado de São Paulo, pela Procuradoria de Assistência Judiciária,

composta por Procuradores do Estado dedicados a tal função).

Em seu artigo 134, a Constituição Federal de 1988 dispôs:

a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do

Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático,

fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa,

em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de

forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta

Constituição Federal.

Por sua vez, a legitimidade para o manejo de ação coletiva só veio formalmente com

a Lei n. 11.448/2007 que inseriu a Defensoria Pública no rol de legitimados da Lei de Ação

Civil Pública.

Não obstante, antes mesmo da edição da lei, já havia entendimento no âmbito do

Superior Tribunal de Justiça reconhecendo legitimidade ao considerar a Defensoria como órgão

estatal81.

Após sua edição, a Lei n. 11.448/2007, que conferiu expressa legitimidade à

Defensoria Pública, foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade por associação do

Ministério Público, sob a alegação de que haveria sobreposição de atuação com o Ministério

Público. No entanto, o Supremo Tribunal Federal assim entendeu:

é constitucional a Lei n. 11.448/2007, que alterou a Lei n. 7.347/85, prevendo a

Defensoria Pública como um dos legitimados para propor ação civil pública. A

Defensoria Pública tem legitimidade para a propositura de ação civil pública em

ordem a promover a tutela judicial de direitos difusos e coletivos de que sejam

titulares, em tese, as pessoas necessitadas82.

81 AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. DEFENSORIA PÚBLICA. INTERESSE. CONSUMIDORES. A Turma, por maioria, entendeu que a Defensoria Pública tem legitimidade para propor ação civil pública na defesa do interesse de

consumidores. Na espécie, o Nudecon, órgão vinculado à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por ser órgão

especializado que compõe a administração pública direta do Estado, perfaz a condição expressa no art. 82, III, do Código de

Defesa do Consumidor. [...] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma, REsp 555.111-RJ, Rel. Min. Castro

Filho, j. 5-9-2006. E ainda: “É imperioso reiterar, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que a legitimatio ad

causam da Defensoria Pública para intentar ação civil pública na defesa de interesses transindividuais de hipossuficientes é

reconhecida antes mesmo do advento da Lei n. 11.448/2007, dada a relevância social (e jurídica) do direito que se pretende

tutelar e do próprio fim do ordenamento jurídico brasileiro: assegurar a dignidade da pessoa humana, entendida como núcleo central dos direitos fundamentais”. REsp 1.106.515/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 2-2-2011. 82 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI 3943/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 7-5-2015 (Info 784).

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49

Prevaleceu, portanto, a interpretação mais ampla do rol de legitimados, o que garante

maior participação social no processo, conferindo uma realidade mais pluralista e aberta ao

acesso à justiça, no que tange aos direitos difusos.

Quanto aos direitos coletivos e individuais homogêneos, porém, a legitimação é mais

restrita, pois exige-se que no grupo tutelado haja algum “necessitado”, o que seria

imprescindível para justificar a intervenção segundo a Constituição Federal de 1988.

Logo, discute-se qual sentido deve ser dado à expressão “necessitados” prevista no

texto constitucional, se deve ser limitada aos hipossuficientes econômicos ou se bastaria a

hipossuficiência jurídica a justificar a intervenção da Defensoria.

Para parte da doutrina83 e da jurisprudência, o artigo 134 da Constituição Federal de

1988, ao mencionar a defesa dos “necessitados”, faz referência expressa ao art. 5 º, LXXIV: “o

Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de

recursos”, de modo que o conceito de necessitados estaria restrito àqueles que comprovarem

insuficiência econômica.

Este entendimento embasou o voto do Ministro Luis Felipe Salomão ao reconhecer a

ilegitimidade da Defensoria Pública para a tutela de determinado grupo contratante de plano de

saúde de razoável custo mensal, por entender que não haveria benefício, ainda que indireto, a

pessoas economicamente necessitadas84.

Posteriormente, no âmbito do mesmo recurso especial, a Defensoria Pública interpôs

embargos de divergência em razão de acórdãos oriundos da primeira seção (1ª e 2ª Turmas)85,

que concluíram pela interpretação mais ampla do conceito de necessitados.

Ao apreciar os embargos de divergência, a Corte Especial do Superior Tribunal de

Justiça, em acórdão da lavra da Ministra Laurita Vaz, entendeu que a Defensoria Pública tem

legitimidade para propor ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos de

consumidores idosos que tiveram plano de saúde reajustado em razão da mudança de faixa

etária, ainda que os titulares não sejam carentes de recursos econômicos.

Prevaleceu, portanto, o entendimento de que a expressão ‘necessitados’ prevista no

art. 134 da Constituição Federal de 1988, que qualifica e orienta a atuação da Defensoria

83 WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALVIM, Teresa Arruda; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova

sistemática processual civil. São Paulo: RT, 2007, pp. 312-313; MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos

em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 334; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p.

69. 84 REsp 1192577/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 15-05-2014, DJe 15-08-2014. 85 REsp 1.264.116/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 18-10-2011, DJe 13-04-2012 e REsp 912.849/RS,

Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, j. 26-02-2008, DJe 28-04-2008.

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50

Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em sentido amplo. Assim, a

Defensoria pode atuar tanto em favor dos carentes de recursos financeiros como também em

prol do necessitado organizacional (que são os ‘hipervulneráveis’)86.

Importante notar que entre o julgamento na 4ª Turma e o julgamento na Corte Especial

ocorreu o julgamento da ADI 3.943/DF, em 07/05/2015, dando ensejo a que o Ministro Luis

Felipe Salomão, relator do acórdão embargado, mudasse seu entendimento e votasse com a

Ministra relatora pela reforma do acórdão.

Isso porque, conforme ressaltou o Ministro, o Supremo Tribunal Federal apenas

postergou a limitação da legitimidade adequada das pessoas ‘necessitadas’ para momento

futuro, qual seja, o da liquidação ou execução da sentença.

Assim, entendeu o Ministro Luis Felipe Salomão:

o que se depreende dessa decisão, realmente deve ser conferida à expressão

‘necessitados’ (CF, art. 134) uma interpretação ampla no campo da ação civil pública

para fins de atuação inicial da Defensoria Pública, de modo a incluir, para além do

necessitado econômico (em sentido estrito), o necessitado organizacional, o indivíduo

ou grupo em situação especial de vulnerabilidade existencial, isto é, os

‘hipervulneráveis’, tal como denomina o Min. Herman Benjamin, até porque é função

institucional da Defensoria Pública ‘exercer a defesa dos interesses individuais e

coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades

especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos

sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado’ (LC n. 80/1994, art. 4°,

XI), ampliando ao máximo o campo da dignidade humana87.

Portanto, para a atuação inicial, ou seja, na fase de conhecimento, basta vislumbrar a

possibilidade de que a atuação da Defensoria Pública possa beneficiar indivíduos pertencentes

à classe dos hipossuficientes, ainda que com isso sejam beneficiados pessoas abastadas. No

entanto, no momento da liquidação ou execução do julgado, quando se individualizam os

pedidos, somente haverá legitimidade da Defensoria Pública em favor daqueles que não

possuírem recursos financeiros88.

A conclusão adotada parece consentânea com o mais amplo acesso à justiça, de modo

a efetivar as três ondas de acesso à justiça. Vislumbrando-se a possibilidade de benefício a

grupo necessitado, seria possível reconhecer a legitimidade da Defensoria Pública para o

manejo da ação coletiva visando tutelar direitos coletivos ou individuais homogêneos,

relegando para a fase executiva a comprovação dos beneficiários hipossuficientes e

86 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. EREsp 1.192.577-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 21-10-2015. 87 Voto vista do Min. Luis Felipe Salomão no EREsp 1.192.577/RS. Grifo nosso. 88 No mesmo sentido: REsp 1449416/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 15-03-2016, DJe 29-03-

2016.

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51

prestigiando a efetiva cessação da conduta lesiva ou reparação do dano em detrimento do óbice

processual.

3.3.5 Legitimidade dos entes de direito público interno

O artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor contempla também como ente

legitimado à propositura de ação civil pública a União, os Estados e os Municípios. Embora a

legitimidade da União e dos Estados não tenha causado grande divergência, a possibilidade de

o Município ser autor de ação coletiva tem gerado certa divergência.

Justamente por isso, o tema foi objeto de análise no Superior Tribunal de Justiça, em

recente julgamento89, no qual passou-se a admitir a tutela de direitos do consumidor em sede

de ação coletiva ajuizada por pessoa jurídica de direito público interno (Município).

No julgamento do REsp 1.509.586/SC, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu

provimento ao recurso especial para afastar a conclusão do tribunal de origem — que havia

reconhecido a ilegitimidade do Município de Brusque/SC — de que não poderia o Município

ajuizar ação coletiva para buscar impedir a instituição financeira de cobrar tarifas pela

renovação de cadastro dos servidores municipais.

Segundo o voto da Ministra Nancy Andrighi, embora

[...] tenha sido mencionada como causa de pedir e pedido a cobrança da tarifa de

“renovação de cadastro” de servidores municipais, é certo que o direito vindicado

possui dimensão que extrapola a esfera de interesses puramente particulares dos

citados servidores, o que é suficiente para o reconhecimento da legitimidade do ente

político para essa primeira fase da tutela coletiva de interesses individuais

homogêneos [...].

3.4 Coisa julgada no processo coletivo

Coisa julgada é a qualidade de indiscutibilidade, imutabilidade, do conteúdo de uma

determinada decisão judicial. Recai sobre o dispositivo da decisão, tornando indiscutível a

norma jurídica individualizada e estável a norma jurídica individualizada. A coisa julgada é

fenômeno associado à atividade jurisdicional e é tão importante para o sistema que é um direito

fundamental90; a lei deve observar a coisa julgada.

89 REsp 1509586/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 15-05-2018, DJe 18-05-2018. 90 BRASIL. Constituição Federal (1988), Art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e

a coisa julgada.

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52

Na clássica lição de Enrico Tullio Liebman, a coisa julgada não é um efeito da sentença

ou a sua eficácia, mas uma qualidade que se agrega à parte dispositiva da sentença.

A imutabilidade pode se restringir ao processo em que foi proferido ou estender seus

efeitos para além dele. Daí a distinção entre coisa julgada material e formal. Esta ocorre quando

a decisão é imutável dentro do processo no qual foi proferida, eis que não suscetível de nova

análise em recurso próprio; é um fenômeno endoprocessual. A coisa julgada material, por sua

vez, estende seus efeitos para qualquer outro processo, além do qual foi produzida; é, portanto,

um fenômeno extraprocessual.

É lugar comum na tradicional doutrina de direito processual civil afirmar que a

sentença faz coisa julgada entre as partes às quais é dada, ou seja, somente beneficiaria ou

prejudicaria aqueles que ingressaram no processo como partes, não podendo atingir a esfera

jurídica de terceira pessoa que não participou da relação processual.

Nesse sentido, o Código de Processo Civil de 1973 previa, em seu artigo 472:

a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem

prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido

citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença

produz coisa julgada em relação a terceiros.

O fundamento desta limitação consistia na teoria italiana de Enrico Tullio Liebman,

forte influenciadora do processo civil brasileiro nas décadas de 1970 a 1990:

Liebman, na famosa teoria que distingue eficácia natural da sentença e autoridade da

coisa julgada, sustentou que a eficácia natural da sentença, como ato de potestade do

Estado, atinge a todos; mas que a autoridade da coisa julgada só alcança as partes. Os

terceiros juridicamente prejudicados poderão opor-se à autoridade da coisa julgada. A

teoria exerceu ampla acolhida no Brasil e vem hoje consagrada, embora numa dicção

imperfeita, no Código de Processo Civil vigente. [...] A imperfeição, salientada por

Barbosa Moreira, consiste na circunstância de que os efeitos da sentença são

reconhecidamente capazes de atingir a esfera jurídica dos terceiros. Mas o que o

Código quer dizer é que a coisa julgada (e não a sentença) fica restrita às partes, não

beneficiando nem prejudicando terceiros, e assim tem sido interpretada a norma

legal91.

Todavia, o dispositivo não estava inteiramente consonante com parte da doutrina.

Entendia-se que o princípio da limitação da sentença às partes significa que os terceiros não

podem ser por ela prejudicados, mas que podem, sim, ser beneficiados por ela.

91 GRINOVER, Ada Pellegrini. Eficácia e autoridade da sentença. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade.

São Paulo: RT, 2014, p. 436.

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53

É por isso que o Código de Processo Civil/2015, em seu artigo 506, ajustou a redação

para excluir a proibição de beneficiar terceiros não participantes da relação processual,

passando a prever: “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não

prejudicando terceiros”.

Contudo, a previsão do processo civil tradicional não se adequava às necessidades do

processo coletivo porque destoava de toda a lógica do sistema previsto para a tutela coletiva.

Inviável um sistema de tutela coletiva no qual a sentença não pudesse beneficiar

terceiros, não partes do processo, mas lesados pelo direito reconhecidamente violado. A

previsão de formação de coisa julgada exigia, portanto, novos contornos para a tutela processual

coletiva.

Assim, foi preciso conciliar a limitação subjetiva da coisa julgada do processo civil

individual tradicional com a necessária máxima efetividade do processo coletivo,

racionalização da prestação jurisdicional, tendo em vista a indivisibilidade do objeto e dos

direitos coletivos à luz da isonomia no tratamento.

Esse processo, capitaneado pela doutrina, conduziu à previsão constante do artigo 103

do Código de Defesa do Consumidor 92.

3.4.1 Limites objetivos, subjetivos, modo de produção e extensão da coisa julgada no

processo coletivo

A coisa julgada está sujeita a limites objetivos e subjetivos. Entende-se por limite

objetivo o que pode ser considerado como abrangido pelo manto da coisa julgada. Limite

subjetivo, por sua vez, refere-se às pessoas afetadas ou sujeitas ao decidido com efeito

definitivo.

Os limites objetivos da coisa julgada coletiva são iguais aos do processo individual,

previstos nos arts. 502 a 508 do Código de Processo Civil/2015. Ou seja, em regra, somente a

92 Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se o pedido for

julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com

idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II – ultra partes, mas

limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III – erga omnes, apenas no caso de

procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art.

81. § 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos

integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. § 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência

do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a

título individual. § 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n. 7.347, de 24 de

julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na

forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99. § 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal

condenatória.

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parte dispositiva da decisão é atingida pela imutabilidade da coisa julgada, afastando-se a coisa

julgada sobre os motivos, ainda que importantes para fundamentar a decisão.

O legislador inovou no Código de Processo Civil/2015 ao prever a possibilidade de

formação de coisa julgada para a questão prejudicial, desde que preenchidos determinados

requisitos93.

O dispositivo pode ser aplicado ao processo coletivo. Um exemplo interessante é o da

demanda ajuizada buscando restituir valores cobrados indevidamente de diversos

consumidores, cuja questão prejudicial é a nulidade de determinada cláusula contratual. É

perfeitamente possível que a questão seja alcançada pela proteção da coisa julgada94.

Por outro lado, quanto aos limites subjetivos, o tratamento é diverso. A inovação

trazida pelo artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor foi bastante substancial ao afastar

o tradicional efeito inter partes previsto no artigo 506 do Código de Processo Civil/2015 para,

agora, trazer previsões distintas de extensão subjetiva ultra partes ou erga omnes, a depender

do direito tutelado na ação coletiva.

Há autores, porém, que não diferenciam esse fenômeno dos efeitos erga omnes. Para

Antonio Gidi, não deveria haver distinção entre erga omnes e ultra partes, mas existir uma

expressão que dissesse valer a decisão para todos os interessados – seria a expressão ultra partes

e não erga omnes, pois não atingiria todos os seres humanos, apenas aqueles enquadrados

naquela situação jurídica, naquela categoria.

A extensão subjetiva erga omnes e ultra partes tem como fundamento a

indivisibilidade do objeto, na medida em que ele não pode ser fracionado em relação aos

interessados, indeterminados no caso dos interesses difusos e limitados ao grupo, categoria ou

classe em se tratando de direitos coletivos, não se limitando aos associados ou filiados.

Quando envolver a tutela de direitos difusos, conforme previsto no artigo 103, I, do

Código de Defesa do Consumidor, a coisa julgada formada no processo movido por um dos

legitimados se estenderá a todos, salvo quando julgada improcedente por falta de provas.

Em se tratando de direito coletivo em sentido estrito (artigo 81, parágrafo único, II, do

Código de Defesa do Consumidor), a sentença do processo coletivo se estenderá de maneira

ultra partes, ou seja, superando o legitimado que ajuizou a demanda e atingindo todo o grupo,

93 § 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:

I – dessa resolução depender o julgamento do mérito; II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se

aplicando no caso de revelia; III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão

principal. 94 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, pp. 412-413.

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categoria ou classe de pessoas que estejam ligadas entre si ou à parte contrária por uma relação

jurídica base.

Por fim, tratando-se de direitos individuais homogêneos, a coisa julgada também será

erga omnes, ou seja, as pessoas lesadas pelo evento reconhecidamente danoso por sentença

transitada em julgado em processo coletivo poderão promover liquidação ou execução do

julgado diretamente, sem necessidade de ajuizar nova demanda.

A diferença para o regime de extensão subjetiva envolvendo direitos difusos reside na

previsão do art. 103, § 2º, que prevê a não formação de coisa julgada (e consequentemente não

extensão subjetiva do julgado desfavorável) em caso de improcedência da demanda, permitindo

que a parte lesada possa manejar seu processo individual, salvo se houver se habilitado como

litisconsorte ou assistente litisconsorcial, possibilidade em que a sentença desfavorável lhe

atingirá.

O regime diferenciado se justifica pelo fato de os direitos coletivos lato sensu somente

poderem ser tutelados por meio de ação coletiva, ao passo que os direitos individuais

homogêneos, apenas acidentalmente coletivos, podem ser tutelados por meio de ações

individuais, de modo que a tutela coletiva não poderia ser prejudicial.

Quanto ao modo de produção da coisa julgada, no processo coletivo também há

peculiaridades. Enquanto no processo individual a coisa julgada é pro et contra, no processo

coletivo há quem diga que existem hipóteses onde a coisa julgada é formada secundum eventum

litis (segundo o resultado da lide), ou seja, a coisa julgada somente se formaria no caso de

procedência do pedido.

De fato, em se tratando de direitos propriamente coletivos (direitos difusos e coletivos

stricto sensu), a coisa julgada somente se formará secundum eventum probationis, ou seja, só

há coisa julgada quando ocorre o esgotamento das provas, tendo em vista que a insuficiência

de provas permite o ajuizamento de nova ação coletiva.

Na realidade, o que é secundum eventum litis não é a formação da coisa julgada, mas

sua extensão para a esfera jurídica individual dos interessados. Vale dizer, somente no caso de

procedência a coisa julgada atinge os direitos individuais dos sujeitos.

Discute-se a necessidade de indicação, por parte do magistrado sentenciante, de que a

demanda está sendo julgada improcedente por ausência de provas.

Para parcela relevante da doutrina95, a nova propositura da ação coletiva por falta de

provas não depende de expressa manifestação judicial neste sentido na primitiva ação, eis que

95 Em sentido contrário: NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor apud PIZZOL, Patrícia Miranda.

Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 418.

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bastaria verificar do conteúdo da decisão que a improcedência decorreu da ausência de lastro

probatório. Ou seja, não há necessidade (embora seja o mais conveniente) que o juiz assim

sentencie na primeira demanda: “julgo improcedente por falta de provas”.

Para Antonio Gidi, “sempre que qualquer legitimado propuser a mesma ação coletiva

com novo material probatório, demonstrará, ipso facto que a ação coletiva anterior havia sido

julgada por instrução insuficiente”96. Importante ainda conceituar o que seriam provas novas a

justificar a propositura de outra ação coletiva.

Diversamente do conceito empregado para ajuizar ação rescisória, para a doutrina

basta que as provas, ainda que já existentes, não tenham sido consideradas na formação do

convencimento do magistrado97. Assim, é considerada nova a prova, mesmo que preexistente

ou contemporânea à ação coletiva, desde que não tenha sido nesta considerada. O que importa

é se foi ou não apresentada durante o trâmite procedimental da ação coletiva. Será considerada

nova para a pretensão formulada, ainda que temporalmente não seja recente98.

Em se tratando de direitos individuais homogêneos, porém, se o pedido for julgado

improcedente, com fundamento em ausência de provas ou não, haverá coisa julgada. Não se

permitirá nova ação coletiva, apenas ação individual99, desde que não tenham se habilitado

como litisconsortes ou assistentes litisconsorciais100.

Cabe ressaltar que nesta hipótese (direitos individuais homogêneos), não será possível

ajuizar nova ação coletiva, ainda que por outro legitimado em outro Estado da Federação101.

96 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas apud PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva:

processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 419. 97 Segundo Fabrício Bastos, “o conceito de novas provas, portanto, deve ser aquela que, ainda que já existente, não foi

considerada para fins de formação do convencimento, bem como aquela que não existia à época”. BASTOS, Fabrício. Curso

de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 379. 98 Daniel Amorim: “Parcela majoritária da doutrina entende que não se deve confundir nova prova com prova superveniente, surgida após o término da ação coletiva. Por este entendimento, seria nova a prova, mesmo que preexistente ou

contemporânea à ação coletiva, desde que não tenha sido nesta considerada. Assim, o que interessa não é se a prova existia

ou não à época da demanda coletiva, mas se foi ou não apresentada durante o seu trâmite procedimental; será nova porque,

no tocante à pretensão do autor, é uma novidade, mesmo que, em termos temporais, não seja algo recente”. Fabrício Bastos também defende a possibilidade de ajuizamento de nova ação, ainda que a anterior tenha sido improcedente (inclusive com

produção de prova pericial) se houver uma nova tecnologia, nova perícia, novo convênio internacional, que permita a

produção, o acesso a conhecimento que até então era impossível, com base na teoria do risco do desenvolvimento

tecnológico. No mesmo sentido parece a previsão do Projeto de Código Modelo para Ibero-América que prevê, em seu artigo 33 §1º, a possibilidade de ajuizamento de nova ação, com base em provas novas, no prazo de dois anos a partir da descoberta

de prova nova, superveniente ao processo coletivo e capaz, por si só, de alterar o resultado do julgamento. 99 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, pp. 419-420. 100 Código de Defesa do Consumidor. “Art. 94. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os

interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de

comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor. Art. 103, § 2° Na hipótese prevista no inciso III

(individuais homogêneos), em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo

como litisconsortes (nos individuais homogêneos, se intervir como litisconsorte perde a tutela individual) poderão propor

ação de indenização a título individual”. 101 DIREITO PROCESSUAL CIVIL. IMPROCEDÊNCIA DE DEMANDA COLETIVA PROPOSTA EM DEFESA DE

DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E IMPOSSIBILIDADE DE NOVO AJUIZAMENTO DE AÇÃO COLETIVA POR OUTRO LEGITIMADO. Após o trânsito em julgado de decisão que julga improcedente ação coletiva proposta em

defesa de direitos individuais homogêneos, independentemente do motivo que tenha fundamentado a rejeição do pedido, não

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Porém, na doutrina, há posicionamento em sentido contrário. Para Fredie Didier Junior

e Hermes Zaneti Junior, diante da redação lacunosa do artigo 103, III, do Código de Defesa do

Consumidor, o resultado ‘improcedência por insuficiência de provas’ não poderá acarretar coisa

julgada material, mas somente formal, com base nos seguintes argumentos: a) o Código de

Defesa do Consumidor não regulamento a coisa julgada material nas hipóteses de tutela de

direitos individuais homogêneos, pois somente refere-se à extensão subjetiva do resultado

positivo da demanda coletiva; b) em virtude desta omissão, dever-se-á aplicar o microssistema

da tutela coletiva e, portanto, usar o regime jurídico da imutabilidade no plano objetivo dos

direitos difusos e coletivos em sentido estrito; c) a interpretação literal do dispositivo em

comento não pode gerar a conclusão de que somente nas demandas essencialmente coletivas

aplicar-se-á o regime secundum eventum probationis.

Segundo o Projeto de Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-America, em

seu artigo 33, mesmo para os direitos individuais homogêneos, a coisa julgada opera erga

omnes, no plano coletivo, em caso de acolhimento ou rejeição da demanda, de modo que

nenhum outro legitimado poderá repetir a demanda coletiva. Não prejudica, porém, as

demandas individuais (art. 33, § 2º).

3.4.2 Transporte in utilibus

Conforme afirmado no tópico anterior, só haverá formação de coisa julgada em se

tratando de ação coletiva que tutela direitos difusos e coletivos, extensível aos indivíduos

lesados, quando a sentença lhes for favorável. Nesta situação, estes particulares farão o

transporte in utilibus da sentença coletiva favorável para o processo individual (liquidação ou

execução).

Em outras palavras, a coisa julgada coletiva, em todos os interesses transindividuais,

nunca prejudica as pretensões individuais, só beneficia. Desse modo, sempre restará ao

indivíduo ingressar com ação individual (princípio da máxima eficácia: a coisa julgada só é

transportada se for in utilibus, ou seja, se for útil). A repercussão da coisa julgada no plano

individual ocorre secudum eventum litis, ou seja, somente quando a ação for procedente

(Código de Defesa do Consumidor, art. 103, §§ 3º e 4º).

é possível a propositura de nova demanda com o mesmo objeto por outro legitimado coletivo, ainda que em outro Estado da

federação. [...] REsp 1.302.596-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 9-12-2015, DJe 1-2-2016. Informativo 575.

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O fenômeno se explica pela ampliação ope legis do objeto do processo, para incluir na

coisa julgada a decisão sobre a causa de pedir, reafirmando o princípio do máximo benefício da

tutela coletiva.

A extensão dos limites da coisa julgada faculta a outrem utilizar (in utilibus) da

condenação genérica oriunda da demanda coletiva para pugnar a satisfação ou

reparação de seu direito individual, evitando a proliferação de ações condenatórias

individuais e homenageando o princípio da economia processual e da efetividade do

processo. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 648.054/RS, Rel. Min. Luiz

Fux, Primeira Turma, DJU 14-11-2005.

Assim, mesmo não tendo havido discussão ou formulação de pedido individual

homogêneo, os indivíduos lesados podem se beneficiar da sentença coletiva que tenha

reconhecido a existência de determinado dano ou lesão. Basta ao indivíduo manejar a

competente ação de liquidação, na qual deverão comprovar o dano, o nexo de causalidade e o

montante do prejuízo102.

Não se discute mais o an debeatur, ou seja, a existência da dívida e da

responsabilidade, mas tão somente o quantum debeatur, a quantificação do prejuízo.

Abaixo, transcrevemos exemplo trazido por Ada Pellegrini Grinover de aplicação do

instituto do transporte in utilibus:

Se, por exemplo, a ação civil pública que tenda à obrigação de retirar do mercado um

produto nocivo à saúde pública for julgada procedente, reconhecendo a sentença os

danos, reais ou potenciais, pelo fato do produto, poderão as vítimas, sem necessidade

de novo processo de conhecimento, alcançar a reparação dos prejuízos pessoalmente

sofridos, mediante liquidação e execução da sentença coletiva103.

Há, por fim, a previsão de transporte in utilibus do quanto decidido na sentença penal

condenatória, conforme previsto no art. 103, § 4º do Código de Defesa do Consumidor. A

previsão é relevante, pois em se tratando de processo penal, a condenação só tem efeitos sobre

o condenado. No entanto, pelo transporte in utilibus pode atingir terceiros, como, por exemplo,

no caso de condenação por crime ambiental ou contra o sistema financeiro nacional.

Ainda que não previsto expressamente, a execução civil de sentença penal

condenatória também poderia ter por fundamento o artigo 63 do Código de Processo Penal104 e

o artigo 515, VI, do Código de Processo Civil /2015105 que permitem o ajuizamento de ação de

102 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 433. 103 WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pellegrini; NERY JUNIOR, Nelson et al. Código brasileiro de Defesa do

Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1021. 104 Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. 105 Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: [...]

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liquidação e execução de sentença penal condenatória, eliminando a discussão sobre a

existência do fato ou sobre a autoria, conforme previsto no artigo 935 do Código Civil106.

3.4.3 Suspensão da ação individual

De acordo com o artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor 107, para o autor da

ação individual já proposta aproveitar o transporte in utilibus da coisa julgada coletiva deverá

requerer a suspensão da sua ação individual em 30 dias a contar da ciência do ajuizamento da

ação coletiva. Se não pedir a suspensão, segundo o dispositivo legal, não será beneficiado pela

decisão coletiva.

Compete ao réu108 informar a existência da ação coletiva no processo individual, pois

caso não o faça, ainda que o autor perca a demanda individual poderá se beneficiar da

procedência da coletiva.

Requerida a suspensão, o processo individual deve ficar suspenso até julgamento da

ação coletiva. Discute-se na jurisprudência se o pedido de suspensão da ação individual é

faculdade da parte ou se o magistrado pode determiná-la de ofício.

Embora o dispositivo pareça claro em definir como uma faculdade da parte, o Superior

Tribunal de Justiça decidiu, sob o regime dos recursos repetitivos, que “ajuizada ação coletiva

atinente à macro lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais,

no aguardo do julgamento da ação coletiva”109.

O fundamento utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça é o regime dos recursos

repetitivos, que se aplicaria analogicamente ao regime de suspensão da lide individual ante o

ajuizamento da ação coletiva.

Portanto, embora não requerida a suspensão pelo particular, o juiz poderá de ofício

determiná-la. Uma vez julgada improcedente a coletiva, a ação individual suspensa retoma seu

curso. Procedente a coletiva, a individual pode ser extinta (por falta de interesse) ou ainda ser

VI – a sentença penal condenatória transitada em julgado; 106 Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. 107 Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para

as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo

anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar

da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. 108 Presume-se que tenha ciência dos processos ajuizados contra si. No entanto, considerando finalmente a implantação de um

banco de ações coletivas no Estado de São Paulo (Comunicado Conjunto n. 528/2019 da Presidência e Corregedoria Geral de

Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), parece-nos que, com implantação e regular funcionamento do mencionado banco, competirá ao autor indicar ter realizado a pesquisa, apontando os resultados obtidos. 109 REsp 1110549/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, Segunda Seção, j. 28-10-2009.

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convertida em liquidação, passando-se tão somente à discussão sobre o nexo de causalidade e

quantificação do dano.

Outra questão debatida na doutrina e na jurisprudência envolvendo o tema diz respeito

à situação em que a ação individual, na qual não foi noticiada a existência de processo coletivo,

foi julgada improcedente com trânsito em julgado; todavia, posteriormente, prolatou-se

sentença em processo coletivo favorável ao indivíduo lesado, que se encaixa na situação

tutelada pela sentença coletiva.

Há na doutrina duas posições sobre a possibilidade de aproveitamento dessa segunda

sentença coletiva procedente. Para Ada Pellegrini Grinover, não seria possível aproveitá-la,

pois a coisa julgada individual é específica e, por isso, deve prevalecer sobre a decisão coletiva,

que é genérica.

Por outro lado, para Hugo Nigro Mazzilli, seria possível aproveitar a segunda sentença,

coletiva, relativizando-se a anterior proferida no processo individual, sob o fundamento do

princípio da isonomia e por ser a segunda sentença mais abrangente que a outra; além disso,

não é possível admitir coisa julgada em detrimento de direitos fundamentais110:

Cabe lembrar a advertência de Mauro Cappelletti, no sentido de que, em matéria de

conflitos transindividuais, os tradicionais limites subjetivos e objetivos da coisa

julgada ‘caem como um castelo de cartas’. Não que devam ser simplesmente

desconsideradas todas as leis processuais em vigor; não é disso que se trata. Mas sim,

é necessário aplicar, com cuidados redobrados, normas que foram concebidas antes

para solucionar meros conflitos individuais que lides coletivas, em épocas nas quais

até então ainda não se tinha sequer cogitado de processos coletivos, de suas

peculiaridades e implicações111.

Há ainda na doutrina quem diferencie o momento de ajuizamento da ação coletiva em

relação ao processo individual. Para Patrícia Miranda Pizzol, se a ação coletiva foi ajuizada

após o processo individual sem que tal fato tenha sido informado na demanda individual, poderá

o indivíduo ajuizar – ainda que seu processo seja julgado improcedente com trânsito em julgado

– diretamente ação de liquidação/execução com base na ação coletiva favorável112.

Todavia, ressalva a autora que se a ação individual tiver sido julgada improcedente

antes da propositura da ação coletiva, então não será possível ao indivíduo se aproveitar da

coisa julgada do processo coletivo113.

3.4.4 Limitação territorial

110 MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 646-647. 111 MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 648. 112 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, pp. 424-425. 111 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 425.

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61

Conforme já apontamos, o processo coletivo sempre foi motivo de preocupação para

os detentores do poder (não apenas político, mas também econômico), que viam nele uma

poderosa ferramenta de ingerência nas decisões governamentais, de tutela do meio ambiente,

do consumidor, conferindo poderes relevantes aos agentes públicos (notadamente juízes e

membros do Ministério Público).

Em razão disso, foi editada a Lei n. 9.494/1997 que, dentre inúmeros dispositivos

limitativos da atuação judicial em face da Fazenda Pública, alterou a redação conferida ao artigo

16 da Lei de Ação Civil Pública, que passou a ter o seguinte texto:

Art. 16 – A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência

territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por

insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra

ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Discute-se, há muito, na doutrina a constitucionalidade do dispositivo. Para uma

primeira corrente, o dispositivo é constitucional e adequado, pois a jurisdição se limita ao

território em que é exercida, não podendo a decisão de um juiz estadual valer em outro114.

Segundo Hely Lopes Meirelles,

não apenas a regra do art. 16 da Lei n. 7.347/1985 está correta de um ponto de vista

sistêmico, de harmonia do sistema processual como um todo, e das distribuições

constitucionais de competência entre os vários magistrados do país, como não cabe

ao intérprete buscar uma justificativa elaborada para concluir que o legislador editou

norma inútil115.

No mesmo sentido, Eduardo Arruda Alvim sustenta a constitucionalidade do

dispositivo e a plena eficácia da limitação para todos os tipos de ação civil pública,

independentemente do direito tutelado116.

No Supremo Tribunal Federal, em decisão de 17-7-1997 (DJ 07-08-1997), o Ministro

Marco Aurélio julgou prejudicada a ADIn n. 1.576, que questionava a constitucionalidade da

Medida Provisória n. 1.570/97, cujo art. 3º alterou o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, sob

o argumento de que, de fato, a eficácia erga omnes estaria adstrita à competência territorial do

juiz prolator.

114 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 217. 115 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 217, nota 63. 116 ALVIM, Eduardo Arruda. Apontamentos sobre o processo das ações coletivas. In: (coord.) MAZZEI, Rodrigo;

NOLASCO, Rita Dias. Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, pp. 56-58.

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62

Por outro lado, parte da doutrina entende ser aplicável apenas a depender do direito

tutelado. Segundo Teori Zavascki, a interpretação literal do artigo 16 da Lei de Ação Civil

Pública leva à conclusão incompatível com o instituto da coisa julgada, pois não seria possível

cindir territorialmente a qualidade da sentença ou da relação jurídica nela certificada117.

Todavia, o objetivo da alteração legislativa veiculada pela Lei n. 9.494/1997, segundo

o autor, era limitar a eficácia subjetiva da sentença e, consequentemente, limitar o rol dos

substituídos no processo, o que somente seria possível no caso de direitos individuais

homogêneos, eis que, neste caso, tratam-se de direitos individuais e divisíveis. É possível a

cisão da tutela jurisdicional em função do domicílio dos respectivos titulares, por serem

individualizados118.

Portanto, para o autor, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, ao mencionar a eficácia

territorial da coisa julgada, aplica-se somente às sentenças proferidas em ações coletivas para

tutela de direitos individuais homogêneos, mas não às sentenças que tratam dos direitos difusos

e coletivos stricto sensu, eis que, neste caso, os titulares não estão individualizados.

Por fim, para uma terceira corrente doutrinária, o artigo 16 da Lei de Ação Civil

Pública é manifestamente ineficaz e inconstitucional.

Nelson Nery Junior assim sustenta a inconstitucionalidade:

A norma, na redação dada pela Lei n. 9.494/97, é inconstitucional e ineficaz.

Inconstitucional por ferir os princípios do direito de ação (CF, 5º, XXXV), da

razoabilidade e da proporcionalidade e porque o Presidente da República a editou, por

meio de medida provisória, sem que houvesse autorização constitucional para tanto,

pois não havia urgência [...], nem relevância, requisitos exigidos pela CF, 62, caput119.

Os autores prosseguem apontando a confusão do legislador entre coisa julgada e

competência, o que resultou na inutilidade da alteração do artigo 16 da Lei de Ação Civil

Pública. Nesse sentido, conforme exemplos amplamente conhecidos trazidos pelos autores,

quem é divorciado em São Paulo também é divorciado em Manaus; se um produto vendido em

todo território nacional é lesivo à saúde ou à segurança do consumidor em São Paulo, também

é lesivo a um consumidor em Manaus120, de modo que é inaplicável o dispositivo.

Sobre o tema, Hugo Nigro Mazzilli afirma:

sobre estar tecnicamente incorreta, a alteração legislativa trazida ao art. 16 da LACP

pela Lei n. 9.494/97 é ainda inócua, pois o Código de Defesa do Consumidor não foi

117 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 73. 118 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017, p. 73. 119 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal comentada e legislação

constitucional. São Paulo: RT, 2006, p. 515. 120 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal comentada e legislação

constitucional. São Paulo: RT, 2006, p. 515.

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63

modificado nesse particular, e a disciplina dos arts. 93 e 103 é de aplicação integrada

e subsidiária nas ações civis públicas de que cuida a Lei n. 7.347/1985 (art. 21

desta)121.

A divisão doutrinária se refletiu na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Inicialmente, a Corte Especial adotou o entendimento de dar eficácia ao art. 16 da Lei de Ação

Civil Pública, sendo o EREsp n. 293.407/SP (Rel. Min. João Otávio de Noronha, Corte

Especial, DJ 01-08-2006) o primeiro a versar especificamente sobre a questão. Conforme a

ementa do julgamento:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA DE DISSENSO ENTRE OS

ARESTOS CONFRONTADOS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SENTENÇA. EFEITOS

ERGA OMNES. ABRANGÊNCIA RESTRITA AOS LIMITES DA COMPETÊNCIA

TERRITORIAL DO ÓRGÃO PROLATOR. 1. Não há falar em dissídio

jurisprudencial quando os arestos em confronto, na questão em foco, decidem na

mesma linha de entendimento. 2. Nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/85, alterado

pela Lei n. 9.494/97, a sentença civil fará coisa julgada erga omnes nos limites da

competência territorial do órgão prolator. 3. Embargos de divergência não-

conhecidos.

O entendimento foi perfilhado ao longo dos anos seguintes: REsp 399.357/SP, Rel.

Min. Fernando Gonçalves, 2ª Seção, j. 5-10-2009; AgRg no REsp 573.868/RS, Rel. Min. João

Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. 15-10-2009, DJe 26-10-2009.

O entendimento da Corte Especial foi revisto no julgamento do recurso especial

repetitivo (representativo de controvérsia) 1.24.887/PR, Corte Especial, Rel. Min. Luis Felipe

Salomão, j. 19-10-2011, com expressa menção à mudança de entendimento no âmbito do

Tribunal Superior:

[...] A antiga jurisprudência do STJ, segundo a qual “a eficácia erga omnes

circunscreve-se aos limites da jurisdição do tribunal competente para julgar o recurso

ordinário” (REsp 293.407⁄SP, Quarta Turma, confirmado nos EREsp. n. 293.407⁄SP,

Corte Especial), em hora mais que ansiada pela sociedade e pela comunidade jurídica,

deve ser revista para atender ao real e legítimo propósito das ações coletivas, que é

viabilizar um comando judicial célere e uniforme em atenção à extensão do interesse

metaindividual objetivado na lide [...] Nessa linha, o alcance da sentença proferida em

ação civil pública deve levar em consideração o que dispõe o Código de Defesa do

Consumidor acerca da extensão do dano e da qualidade dos interesses metaindividuais

postos em juízo. O norte, portanto, deve ser o que dispõem os arts. 93 e 103 do Código

de Defesa do Consumidor. [...] Portanto, se o dano é de escala local, regional ou

nacional, o juízo competente para proferir sentença, certamente, sob pena de ser

inócuo o provimento, lançará mão de comando capaz de recompor ou indenizar os

danos local, regional ou nacionalmente, levados em consideração, para tanto, os

beneficiários do comando, independentemente de limitação territorial.

121 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 307.

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64

Após o julgamento do aludido EREsp, o entendimento foi sendo mantido e se

consolidou, como se infere dos seguintes arestos: EDcl no AgInt no AREsp 965.951/PR, Rel.

Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 25-04-2017, DJe 08-05-2017; AgInt no REsp

1586486/MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 27-06-2017.

Portanto, atualmente, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado no

sentido de negar eficácia ao art. 16 da Lei de Ação Civil Pública e afastar a limitação territorial

nele prevista, prevalecendo o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor quanto ao regime

jurídico da coisa julgada coletiva. O precedente paradigmático é o recurso especial repetitivo

(representativo de controvérsia) n. 1.243.887/PR, rel. Min. Luís Felipe Salomão,

posteriormente ratificado no julgamento do EREsp n. 1134957/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte

Especial, j. 24-10-2016.

No julgamento dos Embargos de Divergência no REsp n. 1.134.957/SP, realizado em

24-10-2016 e publicado em 30-11-2016, decidiu-se que é indevido limitar a eficácia das

decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão

judicante. A Ministra relatora afirmou (fl. 20 do acórdão) que “o entendimento firmado pela

Corte Especial contempla todos os gêneros das ações coletivas”, ou seja, a vedação dessa

limitação estende-se aos direitos coletivos indistintamente (direito coletivo em sentido estrito,

difuso ou individual homogêneo).

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65

4 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015 E SEUS INSTRUMENTOS DE

ENFRENTAMENTO À LITIGIOSIDADE DE MASSA E REPETITIVA

4.1 Os precedentes vinculantes no Código de Processo Civil /2015

Conforme já abordamos, a evolução dos direitos supraindividuais conduziu a um

processo de massificação das relações sociais e, consequentemente, dos processos judiciais.

Aliado a isso, o modelo jurídico pós-positivista, no qual a norma jurídica passou a

ser integrada por valores morais e cláusulas abertas, confere maior abertura ao intérprete e

aplicador, gerando mais dispersão jurisprudencial, eis que a abertura semântica permitiu que

diversas interpretações fossem retiradas do mesmo texto legal.

Preocupado com tal dispersão jurisprudencial, supostas violadoras da segurança

jurídica e igualdade, e visando ainda enfrentar a litigiosidade repetitiva e de massa, o legislador

brasileiro pretendeu criar um regime inédito de precedentes no sistema civil law ao criar

instrumentos como o incidente de demanda repetitiva e o incidente de assunção de competência,

cujos entendimentos devem ser aplicados pelos demais órgãos do Poder Judiciário, conforme

rege o artigo 927 do Código de Processo Civil.

4. 1.1 Legislação brasileira e inovação do Código de Processo Civil /2015

Embora pareça à primeira vista, a preocupação em relação à dispersão jurisprudencial

e aos precedentes não é tema inédito no direito brasileiro, mas objeto de preocupação desde

meados do século XIX122.

A Constituição Federal de 1891, que por influência de Rui Barbosa adotou o judicial

review, previu em seu artigo 59, § 2º: “nos casos em que houver de aplicar leis dos Estados, a

Justiça Federal consultará a jurisprudência dos Tribunais locais, e vice-versa, as Justiças dos

Estados consultarão a jurisprudência dos Tribunais Federais, quando houverem de interpretar

leis da União”123.

122 “Quando com as mesmas leis variam as decisões e casos idênticos, aggrava-se o mal a ponto de ser melhor viver sem lei

alguma. Estamos nestas circumstancias desanimadoras. Interpreta-se a lei como cada um quer; não há limite para a liberdade

de julgar, e desta liberdade, tão ampla póde abusar, sem receio algum, desde o juiz de paz até o ministro da justiça, e este,

talvez, com mais algum receio” (sic). CASTRO, José Antônio de Magalhães. Decadência da magistratura brasileira; suas

causas e meios de restabelecê-la. Rio de Janeiro: Typographia de N.L. Vianna e filhos, 1862 apud VIANA, Aurelio; NUNES,

Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 182. 123 Redação original, posteriormente alterada pela Emenda Constitucional n. 3 de 1926. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.

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66

No mesmo sentido, o Decreto n. 23.055/1933 determinou a obrigação de os órgãos

judiciais inferiores interpretarem as leis de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal124.

Posteriormente, criou-se o instituto da súmula da jurisprudência dominante no âmbito

do Supremo Tribunal Federal, por meio de emenda ao regimento interno datada de 1963125.

Além destes, há inúmeros outros exemplos mais recentes nas ondas de reformas do

Código de Processo Civil/1973, além da própria Emenda Constitucional n. 45/2004 que criou

a súmula vinculante.

De fato, o processo civil brasileiro, desde o Código de 1973, passou por alterações

visando tutelar com efetividade a referida modificação na sociedade e nas relações comerciais.

Passou-se de uma visão exclusivamente voltada ao litígio individual para uma visão

cada vez mais preocupada com a tutela coletiva, revelada por meio de alterações legislativas

que parte da doutrina tratou como “ondas”126 de reformas. No entanto, a despeito destas

reformas, a dispersão jurisprudencial continuava e o volume de recursos aos tribunais

superiores crescia continuamente.

Foi neste cenário e visando garantir maior segurança jurídica, isonomia, razoável

duração do processo127 e desestímulo à litigância que o legislador brasileiro buscou implantar

um sistema de precedentes no Código de Processo Civil/2015.

A pretensão, parece-nos, foi realmente implantar um sistema, ou seja, verdadeiramente

um conjunto de elementos e ideias entre as quais se pode encontrar uma relação, eis que o

Código é todo permeado pela influência dos precedentes nos diversos momentos do iter

processual128.

Essa inovação decorre de um fenômeno já analisado pela doutrina no sentido de uma

aproximação, de uma convergência, entre os sistemas de civil law e common law.

124 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 184. 125 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro da súmula do STF. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro.

Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43387/42051. Acesso em: 26 mar. 2020. 126 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2017. 127 “A importância dada pelo CPC às técnicas de uniformização da jurisprudência (recursos repetitivos, incidente de

resolução de demandas repetitivas, assunção de competência) também encontra fundamento na Constituição Federal,

especialmente nos princípios da duração razoável do processo e da isonomia, tendo em vista seus objetivos: promover a segurança jurídica e isonomia, agilizar a prestação jurisdicional e racionalizar o trabalho do Judiciário”. PIZZOL, Patrícia

Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 534. 128 Exemplos: o artigo 311, II, permite a concessão de tutela provisória de evidência, se as alegações de fato puderem ser

comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos ou repetitivos ou em súmula

vinculante; o artigo 332 possibilita o julgamento liminar de improcedência; pela possibilidade de obstar o processamento de

recurso caso a tese seja contrária ao precedente (art. 1.030, I, CPC); em caso de admissibilidade, pode o relator decidir

monocraticamente (art. 1.011, I c/c art. 932, IV e V); dispensa-se a remessa necessária (art. 496, § 4º); dispensa-se a caução

para levantamento de dinheiro e valores e a prática de atos que importem transferência de posse ou propriedade no cumprimento provisório de sentença (art. 520, IV c/c art. 521, IV); permite-se o manejo de ação rescisória se a decisão

contrariar súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos.

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67

Apesar disso, Ronaldo Cramer conclui: “nosso sistema jamais deixará de ser de direito

legislado, mas será conjugado com um sistema de precedentes, que, por sua vez, criará as

normas tão somente a partir das leis”129.

O passo dado pelo Código de Processo Civil/2015 é, sem dúvida, muito maior.

Pretendeu-se, dada a redação do artigo 927 do diploma, atribuir-se eficácia vinculante

a um extenso rol de decisões tomadas pelos tribunais130.

Há, na doutrina, cinco correntes sobre a eficácia vinculante do rol de precedentes

trazido pelo artigo 927 do Código de Processo Civil, variando cada uma delas quanto à extensão

da eficácia vinculante. Há os que consideram a vinculação por meio de lei ordinária

inconstitucional, como Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery131, até aqueles que estendem o

efeito vinculante a toda e qualquer decisão emanada das Cortes Supremas (Supremo Tribunal

Federal e Superior Tribunal de Justiça), como Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Arenhart e

Daniel Mitidiero132.

Para o fim pretendido nesse trabalho, admitiremos como premissa a (pretensa)

existência de um regime de vinculação que vai além do já previsto para as súmulas vinculantes

(art. 103-A da Constituição Federal de 1988) e para as decisões proferidas pelo Supremo

Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, §2º, da Constituição

Federal de 1988).

Em razão disso, o modelo de precedentes traçado pelo Código de Processo Civil/2015

demanda uma correta interpretação sob pena de revelar indevida afronta ao modelo

constitucional de processo previsto na Constituição Federal.

4.1.2 Crítica e adequação ao sistema brasileiro

O pós-positivismo caracterizou-se pelo abandono do modelo que desenhava as

regras como obrigatórias e os princípios como meras diretrizes informativas e integrativas. Com

isso, os princípios, sobretudo aqueles previstos no texto constitucional, passam a ser alçados ao

129 CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais. Teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 33. 130 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de

constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou

de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados

das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria

infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. 131 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT,

2015, pp. 1835-1846. 132 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, pp.

214-216.

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68

topo do ordenamento, passando a orientar a elaboração, interpretação e aplicação de todo o

direito.

Assim, deixou-se de reconhecer a lei escrita e rígida como única solução para os

conflitos, para conceber-se um modelo integrado por valores morais e cláusulas abertas, que

permitiriam uma interpretação mais ampla e que não conduzisse à aplicação de leis desprovidas

de qualquer fundamento humano ou moral, como ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial.

Conforme previsto, a evolução causou grandes reflexos na teoria do direito e da

hermenêutica, mas também no papel do Poder Judiciário. Em um modelo positivista clássico,

como o francês, a atividade interpretativa dos juízes era arduamente combatida, e isso já antes

da Revolução Francesa. Nesse modelo, os “julgamentos devem ser sempre silogísticos e

mecânicos, dando lugar a simples declarações fiéis dos textos precisos das leis que lhes servem

de base”133.

Esta forma de controle da interpretação judicial tempos depois deu origem à

conhecida Escola da Exegese, que preconiza justamente ser o juiz tão somente a boca da lei,

não lhe cabendo interpretá-la. No entanto, com a evolução da ciência do direito e diante das

barbáries ocorridas na Segunda Guerra Mundial, a norma jurídica passou a encampar valores

morais e a conter cláusulas abertas, fenômeno que teve importantes reflexos não apenas na

Constituição Federal de 1988, mas também na legislação ordinária.

O Código Civil de 2002 parece-nos relevante exemplo ao positivar, por exemplo, a

função social da propriedade e a boa-fé objetiva, cláusulas abertas que conferem ao aplicador

uma margem de interpretação bastante ampla.

Não bastasse, é inerente ao uso da linguagem, ante o seu caráter equívoco e

plurívoco, a impossibilidade de “fechamento” do sistema com base apenas no texto legal.

Assim, é clara a constatação de que

os textos são equívocos porque ambíguos, complexos, implicativos, defectivos e por

vezes se apresentam em termos exemplificativos ou taxativos. As normas são vagas

porque não é possível antever exatamente quais são os fatos que recaem nos seus

respectivos âmbitos de incidência134.

A introdução de conceitos vagos e indeterminados135, a integração de princípios

com alta carga de abstração e o caráter equívoco da linguagem são os ingredientes perfeitos

133 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3.ed. São Paulo: RT, 2018, p. 49. 134 MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3.ed. São Paulo: RT, 2018, p. 61. 135 Ronaldo Cramer, após mencionar o fenômeno da perda da centralidade dos Códigos nos países de tradição de civil law,

citando Marinoni, conclui: “com os conceitos indeterminados, o Judiciário passou a desempenhar uma função efetivamente

criativa do direito, sendo certo que as decisões judiciais se tornaram relevantes para identificar a norma jurídica derivada desse tipo de texto legal”. CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais. Teoria e dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p.

31.

Page 69: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

69

para uma maior indeterminação do direito e consequente maior liberdade para o intérprete,

desenvolvendo-se, assim, diversas teorias ligadas à argumentação jurídica e à interpretação das

normas jurídicas, destinadas a verificar a adequação e a correção da interpretação levada a efeito

pelo aplicador.

O positivismo jurídico buscava sua cientificidade no direito e no ordenamento

jurídico, acreditando em sua completude e capacidade de resolver todos os problemas de

aplicação e interpretação.

O pós-positivismo, por sua vez, busca sua cientificidade nas técnicas de

interpretação, argumentação e aplicação do direito, visando conferir certo grau de racionalidade

e de previsibilidade na atividade interpretativa dos aplicadores do direito.

Apesar disso, segundo o modelo preconizado no Brasil, as decisões tomadas no rol

previsto no artigo 927 do Código de Processo Civil devem ser aplicadas de forma obrigatória

pelos juízes e demais tribunais, como se fossem normas jurídicas prontas e acabadas.

Primeiro porque não se pode importar modelos estrangeiros para um país sem qualquer

tradição jurídica, econômica e social de common law como se por meio de um direito mágico

se pudesse alterar a tradição jurídica construída ao longo dos anos. Mudança como essa deve

ser gradual. O Código de Processo Civil, legislação ordinária, não tem a vocação ou capacidade

para promover uma ruptura sistêmica tão importante no ordenamento136.

Ademais, o modelo é sui generis, pois está dissociado do modelo adotado no próprio

common law, eis que lá a formação do precedente se dá a posteriori. É o juiz do caso concreto

em julgamento que, analisando casos anteriores, vai extrair a ratio decidendi137 e estabelecer

ou não a formação do precedente. É, assim, no “diálogo comparatístico entre os casos

(precedente e sucessivo) que se pode falar, verdadeiramente, em precedente”138.

No modelo de precedentes brasileiro é o contrário. Buscam-se estabelecer normas para

decidir, de forma vinculante e obrigatória, os casos futuros, com a nítida pretensão de “impedir

a ulterior interpretação de um texto por advogados, juízes e tribunais sucessivos, algo que

despreza as indicações alcançadas no âmbito da filosofia da linguagem e especialmente da

hermenêutica”139.

136 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 219,

nota 124. 137 “Aliás, o problema da elaboração ou descoberta da ratio decidendi ganha contornos ainda mais complexos ao se recordar

que no direito estrangeiro existem inúmeras técnicas apresentadas como idôneas para extraí-la. Isso significa, de modo muito

singelo, que a própria definição da ratio decidendi faz parte de um processo bastante complexo e, portanto, não é nenhum

exagero pensar em consideráveis divergências entre tribunais e Cortes Supremas sobre aquilo que se possa considerar a ratio

do caso”. VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018,

p. 258. 138 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 257. 139 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 259.

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70

A tentativa tem a mesma pretensão do positivismo: aplicação obrigatória de um texto,

sem margem para qualquer interpretação.

Na verdade, pretende-se equiparar a tese julgada no precedente, identificável

geralmente entre aspas ou sob algum número, à norma jurídica, ou seja, ao texto normativo já

objeto de interpretação pelo intérprete. Todavia, é bastante claro que para “identificação,

compreensão e aplicação do precedente é indispensável levar em consideração as razões fático-

jurídicas que presidiram a sua formação”140.

A pretensão de equiparar a decisão com efeito vinculante à norma jurídica é dissociada

das teorias de interpretação jurídica, pois norma é a interpretação conferida a um texto. Não há

norma antes da interpretação ou independentemente dela, pois interpretar é produzir uma norma

e ela é produto do intérprete141.

Segundo Georges Abboud, “a atribuição de efeito vinculante a determinados

pronunciamentos (decisões/súmulas) não retira a obrigatoriedade de se interpretar esses textos

na ocasião da incidência do efeito vinculante que eles possuem”142.

Ademais, conforme pontuou Alexandre Bahia:

Hoje, em pleno século XXI, no âmbito teórico, querem instituir não mais um juiz

‘boca da lei’, mas um juiz boca da jurisprudência, na medida em que deveria obedecer

teologicamente aos conteúdos de decisões ou súmulas dos tribunais superiores. Em

plano técnico, a instituição de mecanismo de vinculação decisória (súmula e decisões

vinculantes) tende à centralização da Jurisdição nos tribunais superiores, mediante a

imposição vertical de dado entendimento judicial, de sorte que ‘nenhum outro juízo

poderá mais ser rebelde’143.

A concentração de poder nas Cortes Supremas é outra consequência da aplicação

indiscriminada do modelo de vinculação decisória pretendida pelo legislador, pois confere aos

tribunais superiores a prerrogativa de selecionar os casos que querem julgar, de modo que

passam a escolher as matérias e casos que consideram efetivamente importantes144.

Assim, é grande o risco de se conferir um poder exacerbado às Cortes Supremas,

dotando-as do poder de criar normas jurídicas abstratas, de evidente caráter legiferante145, com

aplicação vinculante e obrigatória aos demais órgãos do Poder Judiciário.

140 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 85. 141 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 65. 142 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 679. 143 BAHIA, Alexandre apud PINHEIRO, Guilherme César. A vinculação decisória no Estado Democrático de Direito. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 53. 144 VIANA, Aurelio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 233. 145 Interessante observar a profusão dos precedentes: apenas no Superior Tribunal de Justiça há 1.036 temas de recursos

repetitivos cadastrados. Disponível em: http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?&l=10&i=1031. Acesso em: 29 mar. 2020. Além disso, há centenas de IRDRs nas cortes locais, recursos extraordinários julgados com

repercussão geral, as mais de mil súmulas dos Tribunais Superiores e outras centenas dos tribunais estaduais.

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71

Sob o argumento de evitar a dispersão jurisprudencial e racionalizar a atividade

jurisdicional, criou-se o instrumento de fechamento do sistema aberto trazido pelo pós-

positivismo, mas fechamento ocorrido não por meio da lei, que sempre pode ser sindicada pelo

Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV, Constituição Federal de 1988), mas por meio de precedente

vinculante formado por Cortes Superiores, insuscetível de interpretação e de automática e

obrigatória aplicação146.

Portanto, os precedentes vinculantes preconizados pelo Código de Processo Civil

devem ser tidos como texto, exigindo sempre a devida interpretação pelo aplicador, verificando

se a ratio decidendi que orientou a prolação do precedente se encontra presente no caso em

julgamento.

4.2 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR)

A explosão da litigiosidade, causada, como vimos, não só pela evolução das relações

comerciais e sociais, mas também pela concessão benevolente e pouco criteriosa de assistência

judiciária gratuita culminou em situação de verdadeiro caos processual: a explosão no número

de processos e o aumento na taxa de congestionamento no Poder Judiciário.

Percebeu-se também, em paralelo, que era relevante o número de demandas idênticas,

ajuizadas individualmente por cada lesado, em detrimento do manejo processo coletivo.

Contudo, verificou-se também que, embora idênticas, as demandas acabavam por

receber decisões diversas, a depender do Tribunal, Câmara, Comarca ou Vara na qual fora

ajuizada.

Soma-se a tudo isso a timidez e pouca efetividade da tutela processual coletiva e a

insuficiente visão privatista e individualista do processo civil tradicional e obtém-se terreno

fértil para alterações legislativas.

No mesmo sentido, a constatação da doutrina:

146 Sobre o tema, Ricardo Dip arremata: “[...] a intensa polarização de julgados levou, no Brasil, à instituição de mecanismos

aptos a ‘regular os princípios’ – ou seja, a, de fato, converter judicialmente a indeterminação dos princípios em textos

regulatórios. Isso se opera, segundo a Constituição brasileira, mediante o efeito vinculativo e contra todos das decisões definitivas de mérito, proferidas pela Suprema Corte Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de

constitucionalidade, como também por meio da edição de súmulas dessa Corte com eficácia vinculante. O resultado prático

parecerá – por seu suposto geral e abstrato – a implantação de um plenário reino de regras, apenas que, em vez de vindas do

Parlamento, ditadas, para empregar a expressão de Édouard Lambert, por um gouvernement de juges. De fato, se a palavra

judicial de co-determinação do direito não se limita à situação do caso singular, mas tem uma inevitável vocação genérica,

está-se diante de um governo de juízes: emerge aí o que Gérard Timsit designou ‘poder ventríloquo’, um poder que tende a

falar por sua boca em lugar da lei... um poder vencido pela “tentação de ser ele próprio a lei, em vez de dizê-la”. DIP,

Ricardo. Os direitos humanos do neoconstitucionalismo: direito natural da pós-modernidade? Revista Aquinate, n. 17 (2012), pp. 13-27. Disponível em: http://www.aquinate.com.br/wp-content/uploads/2016/11/C.Aq.17.Art.Dip.pp.13-27.pdf.

Acesso em: 26 mar. 2020.

Page 72: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

72

o processo civil clássico, de bases essencialmente individuais, demonstrou-se incapaz

de contingenciar essa explosão de demandas isomórficas. Por outro lado, as ações

coletivas, embora constituam importante evolução para a tutela de direitos coletivos,

não se mostraram, por si só, ainda, na prática e dentro da realidade brasileira,

suficientes em conferir à litigiosidade repetitiva exaustiva tutela, especialmente em

razão do sistema brasileiro de extensão dos efeitos da coisa julgada secundum eventum

litis, da possibilidade de ajuizamento concomitante de ações individuais e da restrita

legitimação ativa147.

Não é nova, porém, a constatação da insuficiência do sistema processual para o

enfrentamento da litigiosidade de massa; há inúmeros outros exemplos para a coletivização dos

litígios individuais massificados:

(a) Improcedência liminar (art. 285-A do CPC/73);

(b) Súmula impeditiva de recursos (art. 518, §1º, do CPC/73);

(c) Súmula vinculante (art. 103-A da CF/1988 e Lei n. 11.417/2006);

(d) A repercussão geral no recurso extraordinário (art. 102, §3º da CF/1988 e art.

543-B do CPC/73);

(e) Os recursos repetitivos no âmbito do STJ (art. 543-C do CPC/73);

(f) O pedido de uniformização da interpretação da lei federal no âmbito dos

Juizados Especiais Cíveis federais (art. 14 da Lei n. 10.259/2001);

(g) O pedido de uniformização da interpretação de lei nos Juizados Especiais da

Fazenda Pública no âmbito dos Estado, do Distrito Federal, dos Territórios e dos

Municípios (arts. 18 e 19 da Lei n. 12.153/2009); e

(h) A suspensão de liminares para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança

e à economia públicas (art. 15, §5º, da Lei n. 12.016/2009)148.

Não obstante todos os esforços e alguns resultados positivos, sobretudo com os

recursos repetitivos, estas alterações não foram suficientes para estancar a sangria provocada

pela massa de processos individuais e repetidos ajuizados ano a ano.

É diante desse cenário que o Código de Processo Civil pretendeu avançar e inovar

ainda mais ao criar um regime inédito de precedentes e dois incidentes até então inexistentes:

o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, apontado como a verdadeira ‘coqueluche’

do novo Código, e o Incidente de Assunção de Competência.

O objetivo desta pesquisa não é detalhar o estudo das origens, do procedimento e as

minúcias do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e do Incidente de Assunção de

Competência, mas apenas traçar suas linhas gerais, a fim de identificar sua finalidade, de que

forma se inserem no ordenamento processual, suas principais deficiências e, principalmente,

verificar como se encaixam no sistema de enfrentamento da litigiosidade de massa.

4.2.1 Origem e conceito

147 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 582. 148 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016.

Page 73: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

73

Notadamente após a Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário brasileiro passou

a sofrer com a multiplicação em escala geométrica dos processos ajuizados, causados, dentre

outros fatores: (i) pelo aumento da consciência jurídica dos cidadãos; (ii) pela ampliação dos

meios de comunicação de massa, estimulando a reivindicação de direitos; (iii) o

desenvolvimento desenfreado de novas tecnologias e da oferta de novos produtos; (iv) a crise

do Estado social e o consequente aumento da ingerência do Poder Judiciário em políticas

públicas149.

Contudo, as ações coletivas não foram suficientes para resolver com eficiência o

elevado volume de demandas de maneira que os conflitos de massa acabaram sendo resolvidos

individualmente, nos autos das milhares de demandas propostas. Isso ocorreu em parte em razão

de deficiências existentes no sistema de processo coletivo, como quantidade insuficiente de

entidades associativas, restrição temática prevista no parágrafo único do artigo 1º da Lei de

Ação Civil Pública, regime da coisa julgada secundum eventum litis e tentativa de limitação

territorial, dentre outros150.

É nesse contexto que o legislador brasileiro buscou uma nova forma de tutelar as

demandas de massa.

Segundo a exposição de motivos do Código de Processo Civil/2015, o IRDR tem por

finalidade evitar a dispersão excessiva da jurisprudência, atenuar o assoberbamento de trabalho

no Poder Judiciário e promover o andamento mais célere dos processos. Em outras palavras,

promover segurança, confiança legítima, igualdade, coerência na ordem jurídica, garantindo a

duração razoável do processo151.

Embora a exposição de motivos do Código de Processo Civil 152 tenha mencionado

somente a inspiração alemã do incidente, o IRDR é instituto com inspiração no procedimento-

modelo alemão (musterverfahren) e no Group litigation order (GLO) do direito inglês. Em

comum a ambos os institutos é a convivência com outros instrumentos de tutela coletiva.

149 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 117. 150 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no

Projeto de novo Código de Processo Civil. Repro, n. 193, p. 256. RT, 2011 apud CAVALCANTI, Marcos de Araújo.

Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 115-116. 151 Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em: 19 nov. 2018. 152 “[...] Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de

Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta”. Disponível em:

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em: 19 nov. 2018.

Page 74: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

74

No direito alemão, o musterverfahren, a despeito da tradição pouco coletivista do

processo civil alemão, mais voltado à resolução de processos individuais e bilaterais153, há a

figura das ações de associações (verbandsklage) que permitem às associações, previamente

certificadas pela administração pública, defenderem direitos coletivos de determinada categoria

ou grupo homogêneo de pessoas identificáveis, sobretudo para a tutela de direitos da

concorrência, do consumidor e do meio ambiente154.

Da mesma forma, no direito inglês, o GLO convive, no enfrentamento dos litígios

coletivos, com as representative actions (processos por representação), previstas na Rule 19:6

do Código de Processo Civil inglês, verdadeira ação coletiva, com forte influência das class

actions do direito norte-americano155.

Outro ponto em comum entre ambos, em síntese e desconsideradas certas

peculiaridades de cada instituto estrangeiro156, é a previsão de instauração de um incidente de

julgamento perante um Tribunal ou Corte que analisará a questão comum a processos

individuais de natureza repetitiva, aplicando-se o resultado do julgamento (ou do entendimento

firmado) aos demais processos.

O IRDR é suscitado perante o tribunal onde se encontra o processo paradigma

pendente e tem por objetivo fixar uma tese jurídica a ser aplicada aos casos concretos a serem

abrangidos pela eficácia vinculante da decisão tomada157.

Segundo Marcos de Araújo Cavalcanti, o IRDR não tem natureza jurídica de ação ou

recurso, mas de incidente processual coletivo, eis que preenchidas as principais características

de um incidente processual: (i) acessoriedade (depende da existência de processos em

andamento); (ii) acidentalidade (representa um desvio no curso dos processos repetitivos, pois

serão suspensos até decisão final no IRDR); (iii) incidentalidade (incide sobre os processos em

andamentos e sobre os futuros); (iv) procedimento incidental e especial158.

Em razão disso, o autor conclui como principais características e consequências da

natureza jurídica de incidente processual: que a decisão tomada tem natureza de decisão

interlocutória (sujeita à preclusão e não coisa julgada); a instauração do IRDR não interrompe

153 “[...] A cultura jurídica alemã dificilmente simpatiza com a ideia de progresso social via ações coletivas e de massa. O

direito processual civil alemão tem preferência natural pela resolução de processos bilaterais, que digam respeito somente a duas partes”. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p.

49. 154 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 50. 155 CONSOLO, Claudio; RIZZARDO, Dora. Due modio di mettere le azioni colettive alla prova: Inghilterra e Germani. In:

Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. v. 60, n. 3. Milano: Giuffrè, set. 2006 apud CAVALCANTI, Marcos de

Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 86. 156 Sobre o tema: CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT,

2016, capítulo 1. 157 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 179. 158 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 180.

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75

a prescrição das pretensões individuais; o requerimento não demanda observância dos

requisitos próprios de uma petição inicial; não há citação, mas intimação; não haverá

condenação em honorários e não é cabível ação rescisória159.

4.2.2 Requisitos de admissibilidade

Optamos neste tópico por abordar os principais requisitos de admissibilidade do

instituto, guardando, todavia, para o capítulo próprio temas que poderiam ser aqui estudados,

notadamente no que diz respeito ao caráter repressivo do instituto, cabimento apenas para

questões de direito, ausência de suspensão do prazo prescricional da pretensão individual, etc.

Quanto aos requisitos estabelecidos para a instauração do incidente, o Código de

Processo Civil/2015, em seu artigo 976, estabeleceu dois deles para autorizar a instauração do

incidente: (a) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão

unicamente de direito e (b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

Há ainda um requisito negativo de admissibilidade, previsto no artigo 976, § 4º do

Código de Processo Civil, consistente na inexistência de recurso afetado, no âmbito dos

tribunais superiores, para definição da tese objeto do IRDR pretendido160.

Abordaremos especificamente o caráter repressivo do IRDR em capítulo próprio. No

entanto, importante estatuir desde logo que o artigo 976 do Código de Processo Civil não exige

efetiva ofensa à isonomia e à segurança jurídica, ou seja, não é requisito a prévia existência de

decisões conflitantes em processos repetitivos que versem sobre questões unicamente de

direito161. Basta o risco aos referidos valores sem a exigência de efetiva violação162.

Em sentido contrário, sustentam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery,

citados por Marcos de Araújo Cavalcanti:

ao mencionar, como requisito para a instauração do incidente, risco de ofensa à

isonomia e à segurança jurídica, já pressupõe a existência de controvérsia; do

contrário, se a questão é sempre decidida de modo uniforme, ainda que tenha potencial

para a multiplicação de ações, não há razão para a instauração do incidente, pois não

há o que prevenir. Haveria inútil movimentação do aparelho judiciário, apenas. Por

isso o dispositivo comentado tenha exigido que os requisitos para a instauração do

incidente estivessem simultaneamente presentes163.

159 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016. 160 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 209. 161 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 213. 162 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 564. 163 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 214.

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76

Segundo esse entendimento, sem divergência decisória não há risco aos princípios da

isonomia e da segurança jurídica, de modo que faltaria interesse no manejo do incidente

processual coletivo164.

Discute-se na doutrina se é necessário existir processos pendentes de julgamento no

âmbito do Tribunal competente para apreciação do IRDR ou se, ao contrário, basta que a

repetição dos processos se dê em primeiro grau.

O projeto de novo Código de Processo Civil aprovado pela Câmara, em seu art. 988,

§ 2º, continha previsão expressa no sentido de exigir a pendência de causa no Tribunal como

pressuposto para a instauração do IRDR. Contudo, o dispositivo foi retirado no Senado e não

constou do texto aprovado, a sugerir a desnecessidade da existência de processos pendentes no

tribunal, embora se alegue que a exigência decorreria da necessidade de maior amadurecimento

e debate da questão para se estabelecer o precedente vinculante.

A questão é bastante dividida na doutrina165. Parece-nos, todavia, que uma

interpretação do instituto em cotejo com os objetivos de promover segurança, confiança

legítima, igualdade, coerência na ordem jurídica, garantindo a duração razoável do processo,

revela-se incompatível com a exigência de se aguardar que as causas cheguem ao tribunal

respectivo.

Isso porque, por vezes, a questão em debate pode levar longos anos em primeiro grau

em razão da complexidade fática ou probatória, a exigir a produção de perícias, oitiva de

testemunhas, etc. Embora o IRDR não se destine a resolver questões fáticas (em tópico próprio

esta limitação será analisada), a resolução da questão de direito envolvida pode significar a

desnecessidade de toda a longa produção probatória.

Tomemos como exemplos os casos notórios de desastre ambiental envolvendo as

barragens de Mariana e Brumadinho. Exigir que os processos (individuais ou coletivos)

cheguem ao tribunal significa que o IRDR somente poderá ser manejado após anos e após o

ajuizamento de diversas demandas com custosa produção probatória.

Contudo, seria possível vislumbrar o manejo de IRDR logo após a ocorrência da

catástrofe ambiental a fim de se definir, por exemplo, a espécie de responsabilidade civil a ser

aplicada. A depender da definição jurídica tomada pelo tribunal competente, o longo trâmite

164 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 215. 165 Patrícia Miranda Pizzol aponta que Antonio do Passo Cabral, Alexandre Freitas Câmara e Marcos Araújo Cavalcanti

entendem ser indispensável a exigência de processo em trâmite no tribunal. Por outro lado, Cassio Scarpinella Bueno, Luiz

Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero, Aluisio Gonçalves e Sofia Temer sustentam ser dispensável.

PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019,

p. 565. O Fórum permanente de processualistas civis emitiu o enunciado 344: “a instauração do incidente pressupõe a existência de

processo pendente no respectivo tribunal”.

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processual pode ser abreviado. Se o tribunal decidir que a responsabilidade é do tipo integral,

ou seja, independe da prova de culpa e situações de caso fortuito e força maior não excluírem

a responsabilidade, pouca ou quase nenhuma instrução probatória será necessária para fixar a

responsabilidade civil, abreviando o iter processual.

O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.631.846/DF166, por sua terceira

Turma, embora tenha prevalecido para a solução do recurso apreciado o voto da Ministra Nancy

Andrighi que não conhecia do Recurso Especial por estar ausente hipótese de cabimento,

discutiu a necessidade de recurso em trâmite no tribunal como requisito de admissibilidade do

IRDR.

O voto da Ministra Nancy Andrighi, relatora do acórdão, limitou-se a analisar o não

conhecimento do recurso especial em razão de o acórdão do tribunal local que rejeita a

instauração de IRDR não se tratar de causa decidida apta a ensejar o cabimento de Recurso

especial, conforme exigência constitucional que deflui do artigo 105, III, da Constituição

federal de 1988.

Os votos dos demais integrantes da Terceira turma, porém, também analisaram os

requisitos de cabimento do incidente. E quanto à imprescindibilidade de recurso em trâmite no

tribunal (de Justiça ou Regional federal) a questão terminou empatada. Para os Ministros Moura

Ribeiro e Marco Aurélio Belizze, não é requisito a existência de recurso pendente no tribunal

para instauração do IRDR. Por outro lado, para os Ministros Villas Boas Cueva e Paulo de

166 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - IRDR.

ACÓRDÃO DE TRIBUNAL DE 2º GRAU QUE INADMITE A INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE. RECORRIBILIDADE AO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DESCABIMENTO. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL.

POSSIBILIDADE DE NOVO REQUERIMENTO DE INSTAURAÇÃO DO IRDR QUANDO SATISFEITO O

REQUISITO AUSENTE POR OCASIÃO DO PRIMEIRO PEDIDO, SEM PRECLUSÃO.

RECORRIBILIDADE AO STJ OU AO STF PREVISTA, ADEMAIS, SOMENTE PARA O ACÓRDÃO QUE JULGAR O MÉRITO DO INCIDENTE, MAS NÃO PARA O ACÓRDÃO QUE INADMITE O INCIDENTE. DE CAUSA DECIDIDA.

REQUISITO CONSTITUCIONAL DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS EXCEPCIONAIS. AUSÊNCIA.

QUESTÃO LITIGIOSA DECIDIDA EM CARÁTER NÃO DEFINITIVO.

1- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) preliminarmente, se é cabível recurso especial do acórdão que inadmite a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas - IRDR; (ii) se porventura superada a preliminar, se a

instauração do IRDR tem como pressuposto obrigatório a existência de um processo ou de um recurso no Tribunal.

2- Não é cabível recurso especial em face do acórdão que inadmite a instauração do IRDR por falta de interesse recursal do

requerente, pois, apontada a ausência de determinado pressuposto, será possível a instauração de um novo IRDR após o preenchimento do requisito inicialmente faltante, sem que tenha ocorrido preclusão, conforme expressamente autoriza o art.

976, §3º, do CPC/15.

3- De outro lado, o descabimento do recurso especial na hipótese decorre ainda do fato de que o novo CPC previu a

recorribilidade excepcional ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal apenas contra o acórdão que resolver o mérito do Incidente, conforme se depreende do art. 987, caput, do CPC/15, mas não do acórdão que admite ou que

inadmite a instauração do IRDR.

4- O acórdão que inadmite a instauração do IRDR não preenche o pressuposto constitucional da causa decidida apto a

viabilizar o conhecimento de quaisquer recursos excepcionais, uma vez que ausente, na hipótese, o caráter de definitividade

no exame da questão litigiosa, especialmente quando o próprio legislador previu expressamente a inexistência de preclusão e

a possibilidade de o requerimento de instauração do IRDR ser novamente realizado quando satisfeitos os pressupostos

inexistentes ao tempo do primeiro pedido.

5- Recurso especial não conhecido. (REsp 1631846/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI,

TERCEIRA TURMA, julgado em 05/11/2019, DJe 22/11/2019)

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Tarso Sanseverino a existência de recurso em trâmite no tribunal local é requisito

indispensável167.

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça também analisou, ainda que em obter

dictum a questão da necessidade de processo pendente no tribunal. No agravo interno na petição

11.838/MS168, a Corte Especial definiu questão que era bastante discutida na doutrina e

assentou, por maioria, a possibilidade de instauração de IRDR no Superior Tribunal de Justiça

nos casos de competência recursal ordinária e competência originária.

No voto do Ministro João Otávio de Noronha169, relator do acórdão e cujo voto foi

acompanhado pela maioria, constou a necessidade de demanda em curso no tribunal para

instauração do IRDR. E embora tal conclusão não tenha constado expressamente da ementa do

acórdão, foi fundamental para a conclusão do julgado, pois no caso em concreto entendeu-se

pela inviabilidade da instauração do IRDR no Superior Tribunal de Justiça em razão da

reclamação, que preencheria o requisito do processo em curso no tribunal, não ter superado o

juízo de admissibilidade.

Em que pesem os mencionados precedentes jurisprudenciais, a interpretação segundo

a qual não é requisito para instauração do incidente que as causas estejam em trâmite no tribunal

parece-nos mais consentânea com a adequada tutela das causas repetitivas, garantindo-se

celeridade e efetividade à reparação das lesões causadas.

Ademais, atenua-se o caráter apenas repressivo do IRDR, que será tratado em tópico

específico, evitando-se, ao menos, interpretação mais restritiva da pronta aplicabilidade do

incidente.

167 Íntegra do acórdão disponível em:

https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1811010&num_registro=201602633544&data=20191122&formato=PDF Acesso em: 20 jun. 2020. 168 AGRAVO INTERNO EM PETIÇÃO. RECLAMAÇÃO. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS

REPETITIVAS (IRDR). INSTITUTO AFETO À COMPETÊNCIA JURISDICIONAL DE TRIBUNAIS DE SEGUNDA

INSTÂNCIA (ESTADUAIS OU REGIONAIS FEDERAIS). INSTAURAÇÃO DIRETA NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. POSSIBILIDADE RESTRITA. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS (ART. 976 DO

CPC). JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE NÃO ULTRAPASSADO. NÃO CABIMENTO DA INSTAURAÇÃO DO

INSTITUTO.

1. O novo Código de Processo Civil instituiu microssistema para o julgamento de demandas repetitivas - nele incluído o IRDR, instituto, em regra, afeto à competência dos tribunais estaduais ou regionais federal -, a fim de assegurar o tratamento

isonômico das questões comuns e, assim, conferir maior estabilidade à jurisprudência e efetividade e celeridade à prestação

jurisdicional.

2. A instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas diretamente no Superior Tribunal de Justiça é cabível apenas nos casos de competência recursal ordinária e de competência originária e desde que preenchidos os requisitos do art.

976 do CPC.

3. Quando a reclamação não ultrapassa o juízo de admissibilidade, não cabe a instauração do incidente de demandas

repetitivas no Superior Tribunal de Justiça.

4. Agravo interno desprovido

(AgInt na Pet 11.838/MS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA,

CORTE ESPECIAL, julgado em 07/08/2019, DJe 10/09/2019) 169 Íntegra disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1604133&num_registro=201603

303056&data=20190910&formato=PDF Acesso em: 21 jun. 2020.

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79

Outro requisito de destaque é a exigência de que a questão seja unicamente de direito,

o que também será objeto de crítica em tópico próprio no próximo capítulo, eis que a opção

legislativa dissociou-se do modelo do musterverfahren.

Para a instauração e julgamento do incidente os tribunais readequaram seus regimentos

internos a fim de prever o órgão competente para o processamento do incidente. No Tribunal

de Justiça de São Paulo, atribuiu-se a competência às Turmas Especiais de cada Seção do

Tribunal (Direito Privado, Público e Criminal) a competência para julgamento, conforme inciso

I do artigo 32, ou ao Órgão Especial em matérias de sua competência, conforme artigo 13, I, m,

conforme regime interno do Tribunal170.

Até junho de 2020 já haviam sido julgados trinta e sete IRDR no âmbito do Tribunal

paulista. O site do Tribunal informa ainda se houve determinação de suspensão de processos e

quantos foram atingidos pela determinação, bem como informa os incidentes que foram

considerados inadmitidos e incabíveis e aqueles que se encontram pendentes de julgamento171.

4.2.3 Principais efeitos

4.2.3.1 Suspensão dos processos

Distribuído o incidente, o órgão competente do tribunal fará o juízo de admissibilidade

e, em caso de admissão, o relator adotará as medidas elencadas no artigo 982 do Código de

Processo Civil: (i) suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam

no Estado ou na região, conforme o caso; (ii) poderá requisitar informações a órgãos em cujo

juízo tramita processo no qual se discute o objeto do incidente, que as prestarão no prazo de 15

(quinze) dias; (iii) intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de 15

(quinze) dias.

A suspensão dos processos implica uma correta e adequada questão posta em

julgamento, permitindo-se a aplicação por analogia da regra prevista no artigo 1.036 do Código

de Processo Civil relativa aos recursos repetitivos no sentido de exigir a indicação precisa da

questão a ser apreciada no incidente172.

170 Disponível em:

http://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Biblioteca/Biblioteca/Legislacao/RegimentoInternoTJSP.pdf?d=1594164756315

Acesso em: 21 jun 2020. 171 Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Nugep/Irdr/IrdrsInadmitidos.pdf?d=1594165618117 Acesso em:

21 jun 2020. 172 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 571.

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80

O artigo 980 prevê o prazo de um ano para o julgamento do incidente, findo o qual

cessa a suspensão dos processos, salvo específica decisão contrária do relator.

No projeto do Código de Processo Civil/2015 havia expressa previsão, no artigo 990,

§ 4º, da possibilidade de o interessado requerer o prosseguimento do seu processo

demonstrando a distinção do seu caso ou, ao revés, requerer a suspensão/afetação se entendesse

que a situação de seu processo é a mesma posta em análise no IRDR.

O dispositivo, porém, não constou do projeto aprovado e foi retirado ao longo da

tramitação legislativa.

No entanto, é possível sustentar tal possibilidade por aplicação analógica da regra

contida no artigo 1.037, § 8º do Código de Processo Civil, segundo o qual as partes afetadas

pela suspensão de seus processos devem ser intimadas para terem a possibilidade de requerer o

prosseguimento do seu processo apontando a distinção do seu caso (§ 9º do artigo

mencionado)173.

No mesmo sentido o Enunciado 348 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:

os interessados serão intimados da suspensão de seus processos individuais, podendo

requerer o prosseguimento ao juiz ou tribunal onde tramitarem, demonstrando a

distinção entre a questão a ser decidida e aquela a ser julgada no incidente de resolução

de demandas repetitivas, ou nos recursos repetitivos.

Da decisão que apreciar o requerimento de distinção formulado pela parte afetada pela

suspensão ocasionada pela instauração do IRDR caberá agravo de instrumento ou agravo

interno (artigo 1.037, §13, I e II do Código de Processo Civil/2015), a depender do órgão

jurisdicional no qual estiver tramitando o processo.

O artigo 982 do Código de Processo Civil parece bastante claro ao prever que o relator

suspenderá os processos com a mesma questão jurídica do incidente admitido, sugerindo que a

suspensão é obrigatória174 e inarredável, sobretudo se não for acolhido o pedido de distinção

formulado pela parte interessada.

Todavia, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery sustentam que não se

pode opor as vantagens do incidente sobre o particular de forma obrigatória, pois é característica

dos direitos fundamentais a oponibilidade ao Estado, como forma de limitá-lo.

Nesse sentido, afirmam:

173 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 285-

287. 174 No mesmo sentido o enunciado 23 da ENFAM: “É obrigatória a determinação de suspensão dos processos pendentes individuais e coletivos, em trâmite nos Estados ou regiões, nos termos do §1º do art. 1.036 do CPC/2015, bem como nos

termos do art. 1.037 do mesmo Código”.

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Evidentemente que se a parte quiser que seu processo prossiga, tem o direito de assim

o exigir, de acordo com a CF, 5º, XXXV, porquanto fere a garantia constitucional do

direito de ação a determinação compulsória da paralisação do processo, em virtude da

instauração do IRDR. As garantias fundamentais da CF, 5º têm, ontologicamente e

em sua essência, a oponibilidade contra o Estado e o direito da coletividade175.

O regime de suspensão obrigatória preconizado pelo Código de Processo Civil/2015 é

diverso do previsto no artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor, no qual a parte poderá

requerer a suspensão de seu processo individual caso pretenda se valer da decisão proferida na

ação coletiva. A suspensão, porém, não é obrigatória (o que será alvo de críticas em capítulo

próprio).

O regime do IRDR não prevê qualquer forma de exclusão do litigante individual que

não queira ver seu processo suspenso em razão da instauração do incidente; não há qualquer

forma de opt out.

Sobre este aspecto, oportuna a crítica de Marcos de Araújo Cavalcanti:

Essa forma de vinculação absoluta fere o direito fundamental de ação (art. 5º, XXXV,

da CF/1988). Não há como o NCPC impedir o direito de a parte prosseguir com sua

demanda isoladamente, ou seja, fora do regime jurídico do IRDR. O sistema

processual deve sempre assegurar ao litigante o direito de opção. Essa possibilidade

de escolha decorre do direito fundamental de ação, de sorte que o legislador não pode

criar uma forma de vinculação absoluta pro et contra sem estabelecer mecanismos

processuais que assegurem seu pleno exercício 176.

Em razão do Código de Processo Civil não ter previsto a possibilidade de exclusão do

litigante individual do julgamento do IRDR (opt out), o autor propõe utilizar a regra do

microssistema processual coletivo (art. 104 do Código de Defesa do Consumidor) para suprir a

lacuna do Código de Processo Civil, permitindo que, em 30 dias, a parte interessada formule

requerimento para exclusão do julgamento do IRDR177.

Por fim, também é possível vislumbrar a suspensão apenas parcial em caso de

cumulação de pedidos. Desse modo, se houver independência entre os pedidos ou causa de

pedir e desde que eles não interfiram na produção de outras provas, é possível que a suspensão

atinja somente parte do objeto do processo do litigante individual e de eventuais atos

conexos178.

175 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT,

2015, p. 1968. 176 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 388-

389. 177 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 390. 178 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e

interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 186.

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4.2.3.2 Efeitos nos demais processos

O IRDR é, como visto, incidente voltado à fixação de determinada tese jurídica para

aplicação em todos os outros processos repetitivos que tratem da mesma questão de direito no

âmbito do respectivo tribunal, o que inclui as causas processadas perante os Juizados Especiais.

Em razão disso, o Código estabeleceu procedimento específico para o julgamento do

incidente, tendo em vista a importância e a repercussão do julgamento em inúmeros outros

processos. Previu-se, no artigo 983 do Código de Processo Civil, a possibilidade de oitiva de

pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, os amicii curiae, permitindo-se a

juntada de documentos ou realização de diligências, inclusive a designação, a critério do relator,

de audiência pública para debater a questão controvertida.

Trata-se de uma previsão salutar que permite maior participação da sociedade no

processo, eis que o requerente nem sempre possui representatividade adequada suficiente para

representar sozinho todos os possíveis afetados pela decisão do tribunal, o que poderia

configurar, se não prevista a possibilidade de participação de outros interessados,

inconstitucionalidade.

A respeito do tema, pontua Aluisio Gonçalves de Castro Mendes:

Por certo, no sistema brasileiro de precedentes, maiores garantias, pelo menos em tese,

foram introduzidas no ordenamento processual, como visto em capítulos anteriores.

Em especial, no que diz respeito ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas,

podem ser ressaltadas as seguintes: a) há a necessidade de ampla comunicação, para

que se permita, de maneira geral, pela sociedade e pelos interessados, a fiscalização,

o acompanhamento e a participação no IRDR; b) as partes dos processos suspensos

devem ser intimadas, em razão da necessária aplicação do art. 1.037, § 8º, para que

possam acompanhar, intervir e recorrer no procedimento do IRDR; c) a presença

necessária do Ministério Público, que possui a função institucional de proteção do

patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e

coletivos; d) a competência do colegiado do tribunal para a apreciação da

admissibilidade e do mérito do incidente; e) o procedimento especial estabelecido,

com o contraditório alargado, nos termos do art. 984 do CPC; f) a possibilidade de

participação e de interposição de recursos no Incidente de Resolução de Demandas

Repetitivas, por parte do amicus curiae179.

Segundo Marcos de Araújo Cavalcanti,

Na linha da atual tendência legislativa, o art. 983, do NCPC presume a relevância da

matéria e a repercussão social das questões deduzidas no IRDR, permitindo a

intervenção de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com

representatividade adequada, na qualidade de amicus curiae. [...] O objetivo é que o

amicus curiae contribua com a decisão a ser proferida pelo tribunal, mediante ampla

179 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e

interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 241.

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participação democrática no incidente processual. O relator pode, inclusive, designar

data para, em audiência pública, ouvir a palavra do amicus curie (sic)180.

Considerando a natureza jurídica de incidente processual, a doutrina sustenta que a

decisão proferida no julgamento do IRDR possui natureza de decisão interlocutória, sujeita à

preclusão, mas não ao regime da coisa julgada181, muito embora possua efeitos erga omnes em

razão do efeito vinculante a todos os demais processos que tratam da mesma questão, em razão

do regime previsto no artigo 927 do Código de Processo Civil.

Conforme expressa previsão do artigo 985, I, do Código de Processo Civil, a decisão

do IRDR será aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica

questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles

que tramitem nos juizados especiais.

Embora o tema seja objeto de capítulo próprio do presente trabalho, importante desde

logo notar a referência feita no dispositivo aos processos coletivos, também sujeitos ao quanto

decidido no IRDR, permitindo-se perquirir se em caráter de complementaridade ou de

subserviência e inferioridade.

Segundo o dispositivo mencionado, a decisão fica restrita ao âmbito territorial do

tribunal prolator da decisão (Estado ou Região federal). Todavia, como a decisão tomada está

sujeita à interposição de recurso especial e/ou extraordinário (artigo 987 do Código de Processo

Civil), nestes casos, a decisão tomada pelo Tribunal Superior terá eficácia e validade em todo

o território nacional (Código de Processo Civil, art. 987, § 2º).

Segundo a literalidade do sistema de precedentes do Código de Processo Civil, a

decisão tomada no IRDR é vinculante e, caso não seja observada, a parte poderá manejar

reclamação perante o Tribunal que apreciou o incidente e teve sua decisão descumprida (Código

de Processo Civil, art. 988, IV). A questão, porém, não está isenta de críticas por parte da

doutrina, conforme já abordamos.

Segundo o disposto no art. 985, II, do Código de Processo Civil, a decisão tomada no

IRDR se aplica também aos casos futuros, o que difere do modelo alemão do musterverfahren,

no qual a decisão somente afeta os processos ajuizados até o julgamento do incidente182.Outro

importante dispositivo é o artigo 984, § 2º, segundo o qual no julgamento do IRDR deverão ser

analisados todos os fundamentos concernentes à tese jurídica discutida, favoráveis ou

contrários. Isso porque o objetivo é fixar a tese, ressaltando a função nomofilática do incidente,

180 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 257. 181 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 197-198. 182 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 77.

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de proteção do sistema judicial e normativo. Há, assim, uma segmentação do julgamento, pois

primeiro ocorre um julgamento objetivo, uma decisão abstrata, que fixa a tese do IRDR; depois

um julgamento subjetivo, da lide posta no processo pendente no tribunal183.

4.2.3.3 Prazo prescricional

Conforme veremos em capítulo próprio, em qualquer sistema de enfrentamento da

litigiosidade de massa e repetitiva defende-se a existência de um regime de suspensão ou

interrupção do prazo prescricional; do contrário, os indivíduos deverão promover suas ações

individuais a fim de evitar a prescrição, o que iria de encontro à missão de racionalizar o

trabalho do Poder Judiciário e reduzir os processos.

No que diz respeito ao IRDR, o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados previa

expressamente: “admitido o incidente, suspender-se-á a prescrição das pretensões nos casos em

que se repete a questão de direito”.

Todavia, o dispositivo foi retirado durante a tramitação no Senado Federal, sem constar

do texto aprovado e promulgado; assim, não é possível cogitar atualmente de suspensão ou

interrupção do prazo prescricional.

Conforme sustentado por Marcos de Araújo Cavalcanti, sequer é possível recorrer aos

artigos 240, §1º, do Código de Processo Civil e 202, I, do Código Civil, os quais entende

aplicáveis ao regime do processo coletivo, eis que dizem respeito à interrupção prescricional

decorrente de despacho que determina a citação em ação processual, ao passo que o IRDR não

possui natureza jurídica de ação, mas de incidente processual184.

Por isso, segundo o autor, “com relação ao IRDR, não há como se sustentar a

interrupção ou a suspensão do prazo prescricional das pretensões individuais não ajuizadas sem

lei expressa que a determine”185.

4.4 (In) constitucionalidade

A doutrina aponta uma série de vícios de constitucionalidade no instituto que, se não

invalidam completamente o seu emprego, demandam no mínimo uma correta interpretação

conforme a Constituição. As principais inconstitucionalidades mencionadas pela doutrina

repousam na violação à independência funcional; violação ao contraditório em razão da falta

de controle da representatividade; violação ao direito de ação em razão da inexistência de direito

183 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 228. 184 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 284. 185 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016.

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de autoexclusão; violação à competência dos juizados especiais; impossibilidade de

interposição de recursos excepcionais (extraordinário e/ou especial) em face de julgamento de

fixação de tese jurídica.

Conforme já exposto, os precedentes formados, inclusive a questão decidida no IRDR,

deve ser tida como qualquer outro texto normativo, sujeito à interpretação. O tribunal, ao julgar

o incidente, está editando um texto normativo de caráter geral e abstrato186. No entanto, tal

atividade tipicamente legislativa, ainda que de forma excepcional, somente pode se realizar com

autorização constitucional. Foi o que ocorreu com as súmulas vinculantes, objeto da Emenda

Constitucional n. 45/2004, o que não se concretizou para o IRDR e demais precedentes

vinculantes trazidos pelo Código de Processo Civil no rol do artigo 927.

Do mesmo modo, é inconstitucional a inexistência de verificação da representatividade

adequada do litigante do processo do qual instaurou-se o IRDR. Isto porque tal verificação é

obrigatória e deflui do devido processo legal, de modo a minimizar a possibilidade de conluio

entre as partes, assegurar uma adequada defesa dos direitos coletivos envolvidos, garantindo

que todos os argumentos em defesa dos membros do grupo sejam expostos na Corte187.

A verificação da representatividade adequada do autor principal do incidente é também

prevista no ordenamento alemão no âmbito do musterverfahren, que inspirou o legislador

brasileiro para criar o IRDR188. Esse controle no sistema brasileiro é especialmente importante

em razão da formação de coisa julgada para os processos suspensos vinculados ao tema julgado,

cuja incidência vinculante ocorre independentemente do resultado do julgamento do IRDR.

É justamente em razão da inexistência de controle de representatividade adequada

associada à formação de coisa julgada a todos que tenham processos suspensos que a doutrina

sustenta a inconstitucionalidade do incidente, em razão de violação à cláusula do devido

processo legal e do princípio do contraditório189; é insuficiente a figura do amicus curiae.

É também em razão da inexistência de controle da representatividade do autor

principal que a doutrina sustenta a inconstitucionalidade do incidente ao não prever, ao menos,

a possibilidade de exclusão (opt out) da parte interessada, prosseguindo em sua demanda

individual.

Sobre o tema, Marcos de Araújo Cavalcanti observa:

A forma de opção pela participação no julgamento coletivo pode ser presumida

(sistema de opt out: como acontece com a class action for damages e com o

Musterverfahren) ou expressa (sistema de opt-in: como ocorre com as GLO do direito

186 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 366. 187 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 373. 188 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 379. 189 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 382.

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inglês). O que não se pode aceitar é simplesmente o NCPC não adotar qualquer desses

sistemas, silenciando a respeito do assunto e impedindo, de forma absoluta, a

possibilidade de os litigantes prosseguirem com suas demandas isoladamente190.

Por fim, outro aspecto diz respeito à possibilidade de interposição de recurso especial

ou extraordinário da decisão do IRDR, ou seja, do julgamento abstrato da tese, o que seria

inconstitucional. Isto porque os artigos da Constituição Federal que tratam das hipóteses de

interposição (artigos 102, III, e 105, III) exigem a existência de causa decidida em única ou

última instância pelos tribunais de segundo grau, o que não ocorreria no IRDR, no qual não há

julgamento de lide. Não há causa decidida, pois há apenas fixação de tese abstrata a ser aplicada

em casos concretos futuros191.

190 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 389. 191 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 396.

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5 APROXIMAÇÃO ENTRE CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E TUTELA

COLETIVA: DIFICULDADES E DESAFIOS

5.1 Entraves legais do processo coletivo brasileiro

Conforme expusemos na introdução ao presente trabalho, a evolução da sociedade e

das relações sociais, sobretudo em razão do processo de urbanização, industrialização e

globalização, culminou em importantes alterações também nas relações jurídicas. O fenômeno

conduziu também à uma ampliação das categorias de direitos, cada vez mais marcados pela

supraindividualidade. Todavia, percebe-se, por isso, que em termos de história da humanidade

e do direito, a concepção de direitos sob o ponto de vista supraindividual e o tema da

litigiosidade de massa são bastante recentes, ou seja, estão em pleno desenvolvimento.

Com efeito, a doutrina tem recentemente apontado três tipos de litigiosidade:

a) a individual ou de “varejo”: sobre a qual o estudo e a dogmática foram

tradicionalmente desenvolvidos, envolvendo alegações de lesões e ameaças a direitos isoladas;

b) a litigiosidade coletiva: envolvendo direitos coletivos, difusos e individuais

homogêneos, nos quais se utilizam procedimentos coletivos representativos, normalmente

patrocinados por legitimados extraordinários;

c) em massa ou de alta intensidade: embasadas prioritariamente em direitos individuais

homogêneos que dão margem à propositura de ações individuais repetitivas ou seriais, que

possuem como base pretensões isomórficas, com especificidades, mas que apresentam questões

(jurídicas e/ou fáticas) comuns para a resolução da causa192.

O Código de Processo Civil/2015 pretendeu enfrentar, além da tradicional litigiosidade

individual ou de varejo, o problema da litigiosidade em massa ou de alta intensidade,

aproximando-se do regime do processo coletivo e formando um microssistema de litigiosidade

coletiva193.

Ao fazê-lo, passou a tutelar direitos individuais homogêneos e direitos coletivos,

costumeiramente discutidos nas lides de massa, que só eram tutelados de forma coletiva no

âmbito do processo coletivo.

É certo, porém, que permanece fora do escopo do Código de Processo Civil a tutela

dos direitos difusos, eis que, por sua natureza, é incompatível com a demanda individual.

192 ALMEIDA, Gustavo Milaré. O incidente de resolução de demandas repetitivas e o trato da litigiosidade coletiva apud

BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flavio Quinaud; THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle. Novo

CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pp. 283-284. 193 Enunciado n. 346 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “A lei 13.015, de 21 de julho de 2014, compõe

o microssistema de solução de casos repetitivos”.

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Percebe-se desde logo, portanto, uma sobreposição entre o sistema processual coletivo

e o regime de precedentes do Código de Processo Civil no que diz respeito, em especial, aos

direitos individuais homogêneos.

No que diz respeito ao microssistema processual coletivo clássico, o Brasil adotou um

modelo próprio no qual coube à lei definir três categorias de direitos (difusos, coletivos e

individuais homogêneos) e o rol de legitimados, estabelecendo consequências processuais

próprias para cada direito tutelado (coisa julgada, litispendência, liquidação e execução).

No entanto, algumas décadas após a edição destes importantes marcos legais (Lei de

Ação Popular, Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor, dentre outros),

verificou-se a insuficiência da tutela coletiva no enfrentamento da litigiosidade de massa, eis

que os processos com causas homogêneas continuavam a crescer194.

A situação não é exclusiva do Brasil. Há outros países, como Inglaterra e Alemanha,

em que as ações coletivas não vêm diminuindo ou desmotivando o ajuizamento de ações

repetitivas195. Pelo contrário, a complexidade das relações modernas fez aumentar o número de

demandas repetitivas.

É nesse contexto que nasceram as ondas de reforma do processo civil, iniciadas na

década de 1990, e que culminaram com a implantação, pelo Código de Processo Civil/2015, de

um regime inédito de precedentes e de enfrentamento da litigiosidade repetitiva, em especial de

dois instrumentos de destaque: o Incidente de Demandas Repetitivas (“IRDR”) e o Incidente

de Assunção de Competência (“IAC”).

O que se pretende neste capítulo é verificar os entraves do sistema processual coletivo

que culminaram na sua insuficiência para tutelar os litígios de massa e repetitivos.

Para tanto, centraremos a análise em três aspectos que parecem demandar urgente

revisão no âmbito do processo coletivo brasileiro: (i) o regime de coisa julgada em processos

envolvendo tutela de direitos individuais homogêneos; (ii) a relação entre demanda individual

e processo coletivo, em especial o artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor e (iii) o

modelo de legitimidade adotado no Brasil para a tutela coletiva.

194 Segundo Ada Pellegrini Grinover, “as estatísticas mostram que, apesar da plena operatividade do minissistema das ações

coletivas e dos esforços dos que a elas são legitimados (principalmente Ministério e Defensoria Pública e, em menor medida,

as associações), os processos coletivos ainda são subutilizados no Brasil, havendo grande preponderância de ações

individuais em relação às ações coletivas”. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Projeto de novo CPC e sua influência no

minissistema de processos coletivos: a coletivização dos processos individuais. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini;

BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento

à atualidade. São Paulo: RT, 2014, pp. 1431-1432. 195 CUNHA, Leonardo Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. In: Revista de Processo n. 179, São Paulo:

RT, jan. 2010, p. 142.

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5.1.1 Coisa julgada na tutela de direito individuais homogêneos

Do ponto de vista do aspecto formal de acesso à justiça, as ações coletivas são

instrumento mais poderoso que o IRDR, pois permitem que as lesões de pequeno valor, que

não despertam o interesse do particular lesado a ponto de procurar o Poder Judiciário, sejam

tuteladas, contribuindo para uma tutela mais justa e efetiva dos direitos transindividuais.

Do ponto de vista material, as ações coletivas visam atender, assim como o IRDR, à

necessária certeza, previsibilidade, confiabilidade e coerência nas decisões, privilegiando os

princípios da segurança jurídica e da isonomia.

No entanto, se, de um lado, o caráter apenas repressivo e a ausência de coisa julgada

erga omnes e pro futuro enfraquecem o IRDR, de outro, nas ações coletivas para a tutela de

direito individuais homogêneos, a regra prevista no artigo 103, III e § 2º do Código de Defesa

do Consumidor também impõe importante entrave ao seu manejo.

Segundo esta previsão, “[...] em caso de improcedência do pedido, os interessados que

não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a

título individual” (art. 103, § 2º, Código de Defesa do Consumidor). Desse modo, salvo na rara

hipótese em que o interessado tenha se habilitado como litisconsorte na ação coletiva, a

improcedência do pedido na ação coletiva não impede o posterior ajuizamento de seu processo

individual.

Nesse contexto, a ação coletiva acaba frustrando seu propósito de criar um ambiente

de segurança jurídica e isonomia, permitindo que ocorram, como reiteradamente tem

acontecido, situações em que o mesmo direito foi negado a um e concedido ao outro. Ou ainda:

na demanda individual o pedido foi julgado improcedente, mas o particular vale-se da decisão

concessiva da ação coletiva para fundamentar seu pedido executório, ou vice-versa, situação

que fomenta o ambiente de insegurança jurídica e desigualdade.

Tal situação, porém, não escapa às críticas da doutrina.

Segundo Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, ao estabelecer, de modo limitado,

como legitimados apenas os órgãos públicos e as associações, a representatividade adequada

foi presumida.

Por conseguinte, torna-se desproporcional e despropositada a diferenciação dos efeitos

secundum eventum litis, pois não considera, tal qual nos incisos I e II do art. 103, motivo

significativo, como a falta ou insuficiência de provas, para afastar a extensão.

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90

O processo coletivo torna-se, assim, instrumento unilateral, na medida em que só

encontrará utilidade em benefício de uma das partes196.

No mesmo sentido, Eduardo Talamini:

no modelo brasileiro, a absoluta ausência de repercussão negativa do resultado do

processo coletivo sobre as pretensões e ações individuais, se por um lado preserva as

garantias de acesso à justiça, contraditório e devido processo legal em favor de cada

legitimado individual, por outro, pouco contribui para a economia processual e a

estabilização de uma resposta jurisdicional uniforme para casos iguais. Essa segunda

função, nomofilática, é crucial para a isonomia, a segurança jurídica e a certeza do

direito. Além disso, o processo coletivo acaba produzindo proteção jurisdicional

pouco estável — de menor qualidade, portanto — para o réu vitorioso. A ausência de

coisa julgada ultra partes faz com que, mesmo tendo sua razão reconhecida em um

primeiro processo coletivo, ele não esteja livre de sucessivas e reiteradas novas

demandas coletivas. A garantia de tutela jurisdicional não lhe é plenamente

outorgada197.

No mesmo sentido, ressaltando a quebra da isonomia e igualdade, José Ignácio Botelho

de Mesquita, citado por Rodolfo de Camargo Mancuso:

supondo consiga o réu superar as desvantagens que lhe são impostas no processo,

logre o réu obter um julgamento de improcedência da ação, de nada lhe valerá a

sentença, ainda que confirmada pelas mais altas Cortes de Justiça do País. Pelo que

dispõe o Código (do Consumidor), qualquer um que se apresente como vítima poderá

submetê-lo a discutir novamente toda a questão, impondo-lhe novamente o mesmo

dispêndio de recursos e atividades já gastos no processo anterior, e tendo que repetir

tudo isto em quantos processos lhe sejam movidos. Ou seja, a sentença que o condenar

tornar-se-á imutável e indiscutível, em benefício de todos os que se pretenderam

vítimas; mas a sentença que o absolver não lhe servirá para nada, podendo voltar a ser

discutido por quem quer que seja198.

Outro aspecto do processo coletivo que merece, após a edição do novo sistema de

enfrentamento dos processos repetitivos trazido pelo Código de Processo Civil, atenção e

eventual alteração é a previsão do Código de Defesa do Consumidor no que diz respeito à

relação entre demanda individual e demanda coletiva.

196 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. A coisa julgada e os processos coletivos no direito vigente e no projeto da nova lei

da ação civil pública (PL n. 5.139/2009). In: Em defesa de um novo sistema de processos coletivos. Estudos em

homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 72-73. 197 TALAMINI, Eduardo. A dimensão coletiva dos direitos individuais homogêneos: ações coletivas e os mecanismos

previstos no Código de Processo Civil. In: (coord.). DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 129. 198 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Na ação do consumidor, pode ser inútil a defesa do fornecedor. Revista da

Associação dos Advogados de São Paulo, n. 33, p. 81, 1990 apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A concomitância de ações coletivas, entre si, e em face das ações individuais. In: Processo coletivo: do surgimento à atualidade. São Paulo: RT,

2014, p. 154.

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91

5.1.2 Litispendência entre demanda individual e processo coletivo

De acordo com o art. 104 do Código de Defesa do Consumidor 199, para o autor da

ação individual já proposta aproveitar o transporte in utilibus da coisa julgada coletiva deverá

requerer a suspensão da sua ação individual em trinta dias a contar da ciência do ajuizamento

da ação coletiva.

Segundo o dispositivo legal, se não pedir a suspensão, não será beneficiado pela

decisão coletiva.

Embora a redação do dispositivo sugira que a suspensão dos processos é facultativa, o

Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de recurso repetitivo, decidiu que “ajuizada a ação

coletiva atinente à macro lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se,

obrigatoriamente, as ações individuais, no aguardo do julgamento das ações coletivas, o que

não impede o ajuizamento de outras individuais”200.

Todavia, em que pese a decisão do Superior Tribunal de Justiça, a opção do legislador

brasileiro, ao disciplinar a relação entre processos coletivos e individuais da forma como

previsto no artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor, foi no sentido de inexistir

suspensão e litispendência. Opção, por assim dizer, sui generis.

Isso porque a experiência do direito comparado revela a utilização de dois sistemas de

vinculação dos indivíduos ao processo coletivo: o de inclusão (opt-in), no qual os interessados

deverão requerer o seu ingresso até determinado momento; e o de exclusão (opt-out), mediante

o qual devem os membros ausentes solicitar o desacoplamento do litígio coletivo, dentro do

prazo fixado pelo juiz201.

Como se vê, o art. 104 não adotou nenhum dos dois métodos.

Defendendo a opção feita pelo legislador no artigo 104 do Código de Defesa do

Consumidor, Ada Pellegrini Grinover sustenta:

no juízo de valor que antecedeu à escolha do legislador brasileiro, verificou-se que a

extensão da coisa julgada a terceiros, que não foram pessoalmente parte do

contraditório, ofereceria riscos demasiados, não arredados pela técnica do opt out,

calando fundo nas relações intersubjetivas, quando se tratasse de prejudicar direitos

individuais; e suscitando, ainda, problemas de inconstitucionalidade, por infringência

ao contraditório efetivo e real202.

199 Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para

as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo

anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar

da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. 200 BRASIL. REsp 1687847/RJ. Min. Moura Ribeiro, DJ 01-09-2017. 201 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de demandas no direito

comparado e nacional [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: RT, 2019, pp. 273-274. 202 GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação popular portuguesa: uma análise comparativa. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do

surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 376.

Page 92: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

92

A técnica do opt out e de extensão da coisa julgada, segundo a autora,

certamente não se adaptaria à realidade existente no Brasil, país de dimensões

continentais, deparando com enormes problemas de informação completa e correta,

de falta de conscientização de parcela ingente da população, de desconhecimento

sobre os canais de acesso à Justiça, de grande distanciamento entre o povo e os

Tribunais, tudo a desaconselhar a extensão da coisa julgada, quando desfavorável a

sentença, a quem não integrou a relação processual e só foi artificialmente

‘representado’ pelo portador em juízo dos interesses coletivos203.

Parece-nos, todavia, passadas quase três décadas da edição do Código e ante os

resultados alcançados pela tutela coletiva, que o sistema de exclusão parece mais eficiente, no

sentido de garantir o tratamento coletivo para as questões comuns, produzindo, assim, efetiva

economia processual, acesso à Justiça e fortalecimento das ações coletivas204.

É certo, contudo, que é preciso estabelecer parâmetros seguros para a aplicação do

regime de opt out, com a fixação de prazos para o exercício da opção e desde que seja garantida

ampla e efetiva divulgação do ajuizamento da ação coletiva.

Caso contrário, continuaremos contemplando a realidade dos últimos anos,

que fala por si só: embora tenham sido ajuizadas ações coletivas, nenhuma delas foi

capaz de conter a verdadeira sangria de ações individuais que foram ajuizadas diante

de questões como a dos expurgos inflacionários relacionados com cadernetas de

poupança e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS); dos inúmeros

conflitos envolvendo aposentados. [...] O correto equacionamento da questão da

litispendência e da coisa julgada, com o estabelecimento de um efetivo sistema de

exclusão, acompanhado do controle da representatividade adequada, parece ser

medida essencial para que a tutela coletiva alcance os seus objetivos205.

Nesse sentido, o projeto de Lei n. 5.139/2009, nova Lei de Ação Civil Pública, previa,

em seu artigo 13:

estando em termos a petição inicial, o juiz ordenará a citação do réu e, em se tratando

de interesses ou direitos individuais homogêneos, a intimação do Ministério Público

e da Defensoria Pública, bem como a comunicação dos interessados, titulares dos

respectivos interesses ou direitos objeto da ação coletiva, para que possam exercer,

até a publicação da sentença, o seu direito de exclusão em relação ao processo

coletivo, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social.

Parágrafo único. A comunicação dos membros do grupo, prevista no caput, poderá

ser feita pelo correio, inclusive eletrônico, por oficial de justiça ou por inserção em

outro meio de comunicação ou informação, como contracheque, conta, fatura, extrato

bancário e outros, sem obrigatoriedade de identificação nominal dos destinatários, que

poderão ser caracterizados enquanto titulares dos mencionados interesses ou direitos,

203 GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação popular portuguesa: uma análise comparativa. In: (org.) GRINOVER, Ada

Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do

surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 375. 204 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de demandas no direito

comparado e nacional [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 274. 205 MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de demandas no direito

comparado e nacional [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: RT, 2019, pp. 274-275.

Page 93: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

93

fazendo-se referência à ação, às partes, ao pedido e à causa de pedir, observado o

critério da modicidade do custo.

Previa ainda o projeto, em seu artigo 37, § 2º: “cabe ao réu, na ação individual,

informar sobre a existência de demanda coletiva que verse sobre idêntico bem jurídico, sob

pena de, não o fazendo, o autor individual beneficiar-se da coisa julgada coletiva mesmo no

caso de o pedido da ação individual ser improcedente”.

Impõe-se, portanto, ao réu das demandas individuais informar nos autos, permitindo-

se o exercício do opt out.

A doutrina menciona também outras opções intermediárias de aplicação do regime de

opt out utilizadas por Dinamarca, Israel, Noruega e Suécia206. Elas visam contemplar as

situações em que a tutela coletiva se revelaria necessária em razão do ínfimo valor econômico,

nas quais praticamente inexistiria interesse dos membros do grupo em ingressar no processo e,

menos, ainda de propor ações individuais.

Nesses casos, vale a regra de inclusão automática de todos os lesados, sem necessidade

de opt in ou de opt out, aplicáveis para estas pretensões “não ajuizáveis” na prática, como o

pedido de condenação de um banco a restituir uma módica tarifa cobrada de forma abusiva207.

Há também países que utilizam o regime do opt in, como Alemanha, França Itália,

Suécia e Colômbia. Segundo este regime, devidamente notificados, devem os membros da

coletividade decidir sobre seu ingresso voluntário na demanda coletiva.

Em caso de manifestação de interesse, passam a assumir a condição de membros da

classe, sendo, assim, colhidos pela coisa julgada, favorável ou desfavorável ao grupo. O

membro que não manifestar sua vontade de inclusão no processo coletivo no prazo

determinado, ao contrário, será excluído do âmbito de abrangência daquela coisa julgada, não

podendo ser prejudicado ou beneficiado por ela208.

Em suma, há ao menos três modelos previstos em outros ordenamentos no que diz

respeito à relação entre demanda coletiva e demanda individual: (i) o regime de opt out, em que

todos estão abrangidos pelo processo coletivo e sujeitos à coisa julgada, salvo se, notificados,

fizerem opção de exclusão; (ii) o regime de opt in, em que o processo coletivo, em regra, não

abrange e não beneficia os particulares com interesses individuais, salvo se manifestarem o

206 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law

e common law: uma análise de direito comparado. São Paulo: RT, 2011, p. 240. 207 RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeirão. Notas sobre a coisa julgada nas ações coletivas. In: (org.) GRINOVER, Ada

Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do

surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 982. 208 RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeirão. Notas sobre a coisa julgada nas ações coletivas. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do

surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, pp. 982-983.

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desejo de serem incluídos e de participarem da demanda coletiva; e (iii) o regime intermediário,

no qual para lesões de baixo valor econômico não haveria necessidade de se proceder à inclusão

ou exclusão, considerando o pouco interesse dos lesados. No entanto, é necessária a demanda

coletiva a fim de tutelar o direito de todos, que não o fariam individualmente.

Não obstante, o legislador optou pelo regime sui generis descrito no artigo 104 do

Código de Defesa do Consumidor, sem se alinhar aos modelos tradicionais previstos em outros

países.

Outro tema que tem sido objeto de atenção da doutrina e da jurisprudência no que diz

respeito à tutela coletiva é a legitimidade ativa.

5.1.3 Legitimidade ativa

Embora seja lugar comum tratar do tema da legitimidade para a ação coletiva, poucos

autores se interessaram por discorrer sobre o tema da legitimidade individual, pois, em geral,

defende-se o acerto do legislador ao estabelecer um regime limitado de legitimados.

Embora a doutrina tenha buscado inspiração no modelo americano de tutela coletiva,

no que diz respeito ao modelo de legitimidade afastou-se daquele modelo, em vigor desde 1938,

e que prevê a legitimidade individual, em determinados casos, com bons resultados práticos.

A class action, embora estabelecida em país com tradição de common law, tem

previsão em lei nas Federal Rules of Civil Procedure, de 1938, posteriormente reformadas em

1966. Como qualquer demanda judicial, sujeita-se ao preenchimento do requisito da

justiciability, que se assemelha às condições da ação no sistema brasileiro, bem como outros

específicos a depender do tipo de ação coletiva a ser manejada, considerando a existência de

três categorias de class actions, duas obrigatórias (mandatory) e uma não obrigatória (not

mandatory)209.

Ada Pellegrini Grinover prossegue associando as ações do tipo obrigatória

(mandatory) às ações coletivas em defesa de interesses difusos ou coletivos.

Já a class action for damages que visa tutelar os mass tort cases, que é do tipo não

obrigatória (not mandatory), se assemelha à nossa ação coletiva em defesa de direitos

individuais homogêneos.

Para o manejo de qualquer delas, porém, um ou mais membros de uma classe podem

processar ou ser processados como partes, representando todos, somente se reunidos certos pré-

209 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento

à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p.173.

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95

requisitos denominados threshold requirements: (i) a classe é tão numerosa que a reunião de

todos os membros é impraticável; (ii) há questões de direito ou de fato comuns à classe; (iii) as

demandas ou exceções das partes representativas são típicas das demandas ou exceções da

classe e (iv) as partes representativas protegerão justa e adequadamente os interesses da classe.

Para o manejo deste tipo de ação exige-se ainda o preenchimento de outros dois

importantes requisitos: (i) a prevalência das questões de direito e de fato comuns sobre as

questões de direito ou de fato individuais; (ii) a superioridade da tutela coletiva sobre a

individual, em termos de justiça e eficácia da sentença210.

Preenchidos os requisitos, o que se verifica em uma fase específica do procedimento

denominada certification211, qualquer pessoa lesada pode manejar a ação coletiva a fim de

tutelar o direito (que no Brasil classificaríamos, segundo a definição legal, como individual

homogêneo).

Outrossim, interessante a conclusão de Ada Pellegrini Grinover no sentido de que os

requisitos da prevalência das questões de direito e de fato comuns e a superioridade da tutela

coletiva sobre a individual são requisitos que, ainda que implicitamente, também estão

presentes no sistema processual brasileiro, associando-os à necessária homogeneidade dos

direitos individuais e à falta de interesse de agir para o manejo da ação coletiva212,

respectivamente.

A class action for damages não é, porém, o único instrumento processual do direito

norte-americano que confere legitimidade ao particular para a tutela coletiva. Há outro

importante instrumento denominado citizen suit, uma modalidade de ação com previsão

normalmente associada a questões ambientais e administrativas, na qual se confere legitimidade

210 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini;

BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento

à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 174. 211 Na sequência há uma fase para acordos, seguida de uma fase de júri para colheita das provas. Em seguida, o juiz de primeira instância confirma ou rejeita a decisão do júri. Confirmada a decisão do júri, o processo segue para sentença final do

mérito e, posteriormente, passa-se à liquidação dos danos, culminando em uma sentença final de liquidação. GRINOVER,

Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio

Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 175. 212 “[...] Parece possível estabelecer uma correlação entre o requisito da prevalência dos aspectos comuns e o da

superioridade (ou eficácia) da tutela por ações de classe. Quanto mais os aspectos individuais prevalecerem sobre os comuns,

tanto mais a tutela coletiva será inferior à individual, em termos de eficácia da decisão. Na linguagem do Código de Defesa

do Consumidor, quanto mais heterogêneos os direitos individuais, tanto menos útil a sentença genérica do art. 95 e

inadequada a via da ação civil pública reparatória de danos individuais. Assim, no nosso sistema jurídico, à impossibilidade

jurídica do pedido (supra, n. 6) acrescentar-se-á frequentemente a falta de interesse de agir (interesse-utilidade e interesse-

adequação)”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do

surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 183.

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96

ao cidadão para exigir em juízo o cumprimento de determinadas disposições legais previstas no

statute213, figura bastante similar à ação popular brasileira.

No direito brasileiro há ainda as ações pseudoindividuais, assim nominadas por Kazuo

Watanabe; são ações individuais, mas de alcance coletivo. Ou seja, embora movidas por um

único indivíduo, no exercício de um direito do qual também é titular, o acolhimento da

pretensão acaba beneficiando e atingindo a coletividade.

O exemplo clássico trazido pela doutrina é o da ação individual de um morador de

determinado bairro que tem por objetivo fazer cessar a poluição (ambiental ou sonora) de usina

ali instalada214. O exemplo pode ser estendido para outras situações envolvendo direito de

vizinhança, nas quais o acolhimento da pretensão individual atinge os demais moradores

(direito coletivo), sem a participação e o consentimento destes outros titulares do direito

lesado215.

Colhe-se, portanto, tanto na legislação brasileira como na legislação americana

situações em que se confere legitimidade ao particular para a tutela de direitos supraindividuais,

ampliando-se assim a legitimidade. Tal interpretação e previsão, porém, deve vir acompanhada

do preenchimento da representatividade adequada, a fim de permitir o controle por parte do

magistrado, passando-se, então, de um modelo de legitimidade ope legis para um modelo ope

judicis.

Conforme ressaltado, a legitimação individual para a tutela de ação coletiva na defesa

de interesses supraindividuais é tendência nas legislações estrangeiras e nos códigos modelos e

anteprojetos legislativos, tal como o projeto de Código de Processos Coletivos para Ibero-

América, elaborado pelo instituto Ibero-Americano de Direito Processual.

O artigo 3º, I e § 4º do Código em questão prevê a legitimidade ativa de qualquer

pessoa física para a defesa dos interesses metaindividuais, desde que cumpra o requisito da

representatividade adequada.

Não é por outro motivo que se entende:

restrições à legitimidade para propositura de certas ações, como as coletivas, devem

ser evitadas e no caso de serem imprescindíveis postas com cautela, por serem, a

213 SALLES, Carlos Alberto. Class actions: algumas premissas para comparação. In: (org.) GRINOVER, Ada Pellegrini;

BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI, Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento

à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 250. 214 WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. Revista de Processo, n. 139/28, pp. 28-

29. 215 No caso de poluição ambiental produzida por uma usina, parece de certo modo fácil concluir que os interesses dos demais

moradores são convergentes, mas no caso de interdição de um estabelecimento (bar, casa noturna, restaurante) poderão existir situações nas quais os interesses dos demais moradores, também titulares do direito, sejam divergentes, ensejando uma

maior complexidade no acolhimento da pretensão formulada na ação pseudoindividual.

Page 97: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

97

princípio, incompatíveis com a Constituição e os instrumentos internacionais

protetores de direitos humanos. O Estado, as pessoas jurídicas, órgãos e instituições

públicas, bem como entidades associativas devem abster-se de criar obstáculos à

autonomia das pessoas216.

E concluem os autores:

um sistema jurídico misto, admissível da legitimidade ativa de entes coletivos,

privados e públicos, e de indivíduos parece mais adequado e congruente com a

Constituição e os instrumentos internacionais asseguradores do acesso à Justiça. A

concorrência de partes legítimas é salutar e supre deficiência de todos os legitimados

decorrentes de excesso de atribuição, ineficiência técnica e de pessoal, negligência,

fraude e desinteresse217.

Admitir a legitimidade individual para a tutela coletiva implica, porém, a necessidade

de se estabelecer outro pressuposto processual específico para o processo coletivo: a

representatividade adequada.

Inicialmente, parece-nos mais adequada a menção à representatividade em detrimento

da expressão “representação” que, segundo pensamos, é mais ligada à ideia de representação

processual, de verificação de requisitos formais como instrumento de mandato. A expressão

“representatividade”, por sua vez, melhor indica o instituto ao qual pretendemos fazer

referência: verificar se determinado legitimado representa adequadamente, no aspecto técnico,

econômico, de credibilidade, entre outros, os demais lesados.

Para isso, haveria uma fase específica no processo coletivo, algo bastante semelhante

ao ocorrido nas class action for damages do direito norte-americano, que possui uma fase

específica de certification a fim de se verificar a representatividade adequada da parte autora,

que inclui a capacidade e a credibilidade do advogado.

Segundo Leonardo Gonçalves Juzinskas, abordando o projeto de processo coletivo de

Antonio Gidi,

a chamada certificação é decisão derivada da atribuição de poderes para que o juiz se

pronuncie, vinculando as partes e o processo, sobre a existência dos requisitos

exigidos para a ação coletiva, dentre elas a subsunção da situação fática narrada a uma

das hipóteses de cabimento previstas na lei para a ação coletiva. É versada no artigo

9 do projeto “Gidi”. Através dessa decisão, o juiz assegura a natureza coletiva à ação

proposta, possuindo ela índole constitutiva, à semelhança do direito americano.

Também nessa decisão são definidos os contornos do grupo representado218.

216 FONSECA, Bruno Gomes Borges da; LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Acesso à justiça e ações pseudoindividuais. In:

(org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI,

Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 788. 217 FONSECA, Bruno Gomes Borges da; LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Acesso à justiça e ações pseudoindividuais. In:

(org.) GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antonio Herman; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; VIGORITI,

Vincenzo. Processo coletivo. Do surgimento à atualidade. São Paulo: RT, 2014, p. 789. 218 JUZINSKAS, Leonardo Gonçalves. Poderes do juiz no processo coletivo: diálogos entre o CPC e o Projeto “Gidi”. In:

(coord.) ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 380.

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Essa decisão abrangeria inclusive a verificação da representatividade adequada do

autor da ação, ainda que particular individualmente lesado, para defender o interesse de toda a

categoria ou coletividade lesada.

Passar-se-ia, portanto, de um modelo de legitimidade ope legis para um modelo de

legitimidade ope judicis, no qual caberia ao magistrado verificar em cada caso concreto.

Essa decisão e verificação não seria algo inédito no processo coletivo. Essa

verificação, ainda que sob outro aspecto, já ocorre no caso das associações, quando há

necessidade de se comprovar a denominada “pertinência temática” para o manejo da ação

coletiva.

Embora não se deva confundir a pertinência temática, a ser demonstrada pela

associação civil, com a representatividade adequada, a ser demonstrada por qualquer pessoa —

física ou não — que pretenda manejar a ação coletiva, é certo que um controle ope judicis de

legitimidade já existe no ordenamento brasileiro, conforme a Lei n. 7.347/1985, art. 5º, V, b.

Interessante notar que a lei confere poder ainda mais amplo ao magistrado, dentro

desse controle ope judicis da legitimidade, ao permitir que o requisito do tempo mínimo de

constituição da associação seja relevado “quando haja manifesto interesse social evidenciado

pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido”

(art. 5º, § 4º).

A jurisprudência também caminha no sentido de admitir a legitimidade ope judicis,

conforme se extrai do julgamento do RE 631.111/GO219, no qual se analisou a legitimidade do

219 CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL COLETIVA. DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

(DIFUSOS E COLETIVOS) E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISTINÇÕES. LEGITIMAÇÃO DO

MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS DE DIMENSÃO

AMPLIADA. COMPROMETIMENTO DE INTERESSES SOCIAIS QUALIFICADOS. SEGURO DPVAT. AFIRMAÇÃO DA LEGITIMIDADE ATIVA. 1. Os direitos difusos e coletivos são transindividuais, indivisíveis e sem titular determinado,

sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por iniciativa dos órgãos e

entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de

suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III). 2. Já os direitos individuais homogêneos pertencem à categoria dos direitos subjetivos, são divisíveis, tem titular determinado ou determinável e em geral são de natureza disponível. Sua tutela

jurisdicional pode se dar (a) por iniciativa do próprio titular, em regime processual comum, ou (b) pelo procedimento especial

da ação civil coletiva, em regime de substituição processual, por iniciativa de qualquer dos órgãos ou entidades para tanto

legitimados pelo sistema normativo. 3. Segundo o procedimento estabelecido nos artigos 91 a 100 da Lei n. 8.078/1990, aplicável subsidiariamente aos direitos individuais homogêneos de um modo geral, a tutela coletiva desses direitos se dá em

duas distintas fases: uma, a da ação coletiva propriamente dita, destinada a obter sentença genérica a respeito dos elementos

que compõem o núcleo de homogeneidade dos direitos tutelados (an debeatur, quid debeatur e quis debeatur); e outra, caso

procedente o pedido na primeira fase, a da ação de cumprimento da sentença genérica, destinada (a) a complementar a atividade cognitiva mediante juízo específico sobre as situações individuais de cada um dos lesados (= a margem de

heterogeneidade dos direitos homogêneos, que compreende o cui debeatur e o quantum debeatur), bem como (b) a efetivar

os correspondentes atos executórios. 4. O art. 127 da Constituição Federal atribui ao Ministério Público, entre outras, a

incumbência de defender “interesses sociais”. Não se pode estabelecer sinonímia entre interesses sociais e interesses de

entidades públicas, já que em relação a estes há vedação expressa de patrocínio pelos agentes ministeriais (CF, art. 129, IX).

Também não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse coletivo de particulares, ainda que decorrentes

de lesão coletiva de direitos homogêneos. Direitos individuais disponíveis, ainda que homogêneos, estão, em princípio,

excluídos do âmbito da tutela pelo Ministério Público (CF, art. 127). 5. No entanto, há certos interesses individuais que, quando visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, têm a força de transcender a esfera de interesses

puramente particulares, passando a representar, mais que a soma de interesses dos respectivos titulares, verdadeiros interesses

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Ministério Público para o manejo de ação na qual se discute a indenização decorrente do

DPVAT, ao afirmar o relator: “cabe ao Judiciário, com efeito, a palavra final sobre a adequada

legitimação para a causa, sendo que, por se tratar de matéria de ordem pública, dela pode o juiz

conhecer até mesmo de ofício (Código de Processo Civil, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e

§ 4º)”.

Embora a legislação infraconstitucional brasileira tenha optado por um modelo misto

(entes privados e públicos) e cuja legitimidade decorre da lei (legitimidade ope legis), a moldura

posta pela Constituição autoriza uma nova visão sobre o tema, permitindo-se que o particular

individualmente lesado possa manejar ação coletiva para a tutela de todo o grupo ou

coletividade, sem agir por intermédio de uma associação civil, liberando o processo coletivo de

entraves inexistentes no sistema de precedentes posto pelo Código de Processo Civil/2015.

Dessa forma, o sistema evoluiria para um modelo de legitimidade ope judicis, no qual

a legitimidade seria avaliada em cada caso concreto, permitindo-se ao particular demonstrar

que pode ser o representante adequado daquele grupo, segundo aspectos técnicos, de capacidade

financeira (para suportar as custas do processo e perícias), de credibilidade (da parte e de seu

advogado), entre outros aspectos pertinentes ao caso concreto.

5.2 Deficiências dos instrumentos de enfrentamento à litigiosidade de massa e

repetitiva trazidos pelo Código de Processo Civil

5.2.1 Formação de coisa julgada

Conforme afirmado, o IRDR tem por inspiração o modelo alemão de julgamento de

casos repetitivos, denominado musterverfahren, cuja aplicação na legislação alemã se dá de

da comunidade. Nessa perspectiva, a lesão desses interesses individuais acaba não apenas atingindo a esfera jurídica dos

titulares do direito individualmente considerados, mas também comprometendo bens, institutos ou valores jurídicos

superiores, cuja preservação é cara a uma comunidade maior de pessoas. Em casos tais, a tutela jurisdicional desses direitos se reveste de interesse social qualificado, o que legitima a propositura da ação pelo Ministério Público com base no art. 127

da Constituição Federal. Mesmo nessa hipótese, todavia, a legitimação ativa do Ministério Público se limita à ação civil

coletiva destinada a obter sentença genérica sobre o núcleo de homogeneidade dos direitos individuais homogêneos. 6.

Cumpre ao Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, identificar situações em que a ofensa a direitos individuais homogêneos compromete também interesses sociais qualificados, sem prejuízo do posterior controle jurisdicional

a respeito. Cabe ao Poder Judiciário, com efeito, a palavra final sobre a adequada legitimação para a causa, sendo que, por se

tratar de matéria de ordem pública, dela pode o juiz conhecer até mesmo de ofício (CPC, art. 267, VI e § 3º, e art. 301, VIII e

§ 4º). 7. Considerada a natureza e a finalidade do seguro obrigatório DPVAT – Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (Lei n. 6.194/74, alterada pelas Leis n. 8.441/92, Lei n. 11.482/07 e Lei n. 11.945/09) –, há

interesse social qualificado na tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos dos seus titulares, alegadamente lesados de

forma semelhante pela Seguradora no pagamento das correspondentes indenizações. A hipótese guarda semelhança com

outros direitos individuais homogêneos em relação aos quais – e não obstante sua natureza de direitos divisíveis, disponíveis

e com titular determinado ou determinável –, o Supremo Tribunal Federal considerou que sua tutela se revestia de interesse

social qualificado, autorizando, por isso mesmo, a iniciativa do Ministério Público de, com base no art. 127 da Constituição,

defendê-los em juízo mediante ação coletiva. RE 163.231/SP, AI 637.853 AgR/SP, AI 606.235 AgR/DF, RE 475.010

AgR/RS, RE 328.910, AgR/SP e RE 514.023 AgR/RJ). 8. Recurso extraordinário a que se dá provimento. RE 631.111/GO, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 07-08-2014. Repercussão Geral.

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100

maneira diversa e segundo regramentos próprios para três tipos de litígios: (i) para julgamento

de questões administrativas, no âmbito da Justiça administrativa; (ii) nos conflitos envolvendo

o mercado de capitais (Kap Mug); (iii) nas causas envolvendo previdência e assistencial220.

Tomando-se como exemplo o musterverfahren existente para julgamento de demandas

envolvendo o mercado de capitais, espécie de procedimento-modelo mais citado pela doutrina,

percebem-se algumas diferenças entre o modelo adotado pelo legislador brasileiro e o modelo

existente na Alemanha.

Uma diferença fundamental entre os institutos, bastante relevante para o propósito do

presente trabalho, diz respeito ao regime da coisa julgada.

No procedimento-modelo alemão relacionado às controvérsias no mercado de capitais

(KapMug) a coisa julgada será formada pro et contra em relação às partes-principais do

incidente coletivo e também aos litigantes individuais, intervenientes ou não, que tiveram suas

demandas repetitivas suspensas no juízo de origem221.

A coisa julgada, todavia, só atinge os processos que tenham sido suspensos durante a

tramitação do incidente, não projetando efeitos sobre os processos individuais futuros, ou seja,

aqueles propostos após o julgamento do incidente coletivo222.

A única forma de não ser alcançado pela decisão de mérito proferida nos autos do

procedimento coletivo é por meio do pedido de desistência do processo individual ajuizado223.

Outra possibilidade é se as partes interessadas formularem objeção à formação da coisa julgada

sob alegação de que o autor principal conduziu o incidente coletivo de forma deficiente,

impedindo-as de utilizarem todos os meios para defesa de seus interesses ou quando as

alegações não forem, intencionalmente ou por negligência grave, utilizadas pelo autor

principal224.

Por sua vez, no regime inglês da GLO, adotou-se o sistema do opt in, ou seja, haverá

formação de coisa julgada pro et contra, mas somente para os interessados que expressamente

aderiram ao GLO. Um cadastro coletivo reúne todas as informações dos casos objeto de

220 Ao contrário do que afirma parte dos trabalhos doutrinários, o procedimento-modelo alemão não se limita aos investidores em mercado de capitais, mas é também adotado no âmbito da justiça administrativa e da Justiça Previdenciária e Social.

Confira-se a respeito: CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT,

2016, pp. 61-63; MENDES, Aluisio Gonçalves Castro. Incidente de Resolução de Demandas repetitivas. Rio de Janeiro:

Forense, 2017, pp. 35-36. 221 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 78. 222 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 77. 223 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 69. 224 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 79. Trata-se de regramento também utilizado pelas class actions for damages a fim de permitir afastar a formação de coisa julgada sob

alegação de que não houve representatividade adequada da parte que substituiu as demais em juízo.

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101

procedimento coletivo225. Se ultrapassado o prazo para adesão (cut-off date), não haverá

prejuízo ao indivíduo, que poderá ajuizar seu processo individual.

Percebe-se, portanto, que o IRDR aproximou-se do modelo alemão, ao sujeitar todos

os processos individuais suspensos ao julgamento da tese fixada no incidente,

independentemente de qualquer formalização.

Todavia, não há previsão de que se possa afastar a aplicação do entendimento firmado,

sob alegação de deficiência na condução e representação do incidente instaurado.

Ademais, se por um lado o IRDR apresentar como vantagem em relação à tutela

coletiva a formação de coisa julgada pro et contra sobre todas as causas repetitivas226, a

ausência de coisa julgada erga omnes e pro futuro é um dos problemas centrais do novo instituto

do Código de Processo Civil.

Isso porque o julgamento do IRDR tão somente fixará a tese jurídica a ser aplicada aos

processos suspensos e futuros, mas não há formação de coisa julgada erga omnes e pro futuro,

exigindo-se sempre ajuizamento ou prosseguimento dos processos individuais, ainda que com

aplicação de todas as consequências processuais do julgamento vinculante227.

Esta situação, de forma reflexa, incentiva o ajuizamento de demandas individuais,

sobretudo porque não há previsão legal de suspensão do prazo prescricional das pretensões

individuais enquanto pendente de análise o incidente.

O IRDR, assim, desconsidera os custos sociais e econômicos envolvidos. Pretender

que a solução para a litigância repetitiva passe tão somente pelo estabelecimento de uma tese

jurídica a ser obrigatoriamente aplicada aos inúmeros processos futuros – que deverão ser

ajuizados para verem o direito reconhecido – sucumbe a qualquer análise econômica do direito

que se faça.

Nessa linha, afirma Erik Navarro Wolkart, ao tratar do número de demandas no Poder

Judiciário brasileiro, custos sociais, econômicos e externalidades positivas e negativas de cada

processo judicial:

Uma alternativa seria buscar alguma forma de molecularização desses conflitos,

agregando-os em ações civis públicas, ao menos quando se tratar de direitos coletivos

ou individuais homogêneos, como costuma ser o caso de demandas consumeristas.

Nesses casos, proposta a tutela coletiva, ou molecularizadas as demandas individuais

por outro mecanismo, não há mais qualquer razão ou interesse de agir que justifique

225 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 91. 226 De fato, em se tratando de direitos individuais homogêneos, no âmbito do processo coletivo, a sentença de improcedência

não produz coisa julgada, permitindo-se que os lesados promovam suas ações individuais, o que fomenta a situação de

insegurança jurídica e desigualdade, conforme será melhor analisado no próximo tópico. 227 Possibilidade de improcedência liminar (art. 332, III); tutela provisória de evidência (art. 311, II); inexistência de reexame necessário (art. 496, § 4º); possibilidade de apreciação monocrática pelo Relator nos Tribunais; possibilidade de interposição

de Reclamação; impossibilidade de subida de recursos excepcionais.

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102

os custos sociais de uma nova demanda individual com tramitação autônoma. [...] Os

ganhos econômicos de escala são evidentes, reforçados ainda pela segurança jurídica

e pela promoção da igualdade, externalidades positivas que decorrem de uma decisão

homogênea para situações idênticas, evitando inclusive rediscussões futuras228.

Não há, portanto, como escapar da conclusão de que é indiscutível a superioridade, em

termos de efetividade, da ação coletiva e da coisa julgada erga omnes formada no processo

coletivo229.

5.2.2 Caráter meramente repressivo

O anteprojeto do Código de Processo Civil/2015, de autoria do Senador José Sarney,

previa em seu artigo 895:

é admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia

com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica

questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de

coexistência de decisões conflitantes230.

Destaca-se o mencionado artigo em razão da presença do vocábulo potencial, que

permitiria a instauração do incidente desde logo ao se verificar que determinada controvérsia

jurídica tinha potencial de causar grave insegurança jurídica. Seria permitido, assim, a pronta

solução da questão, antes mesmo que o Poder Judiciário recebesse milhares de processos sobre

o tema, revelando uma função preventiva da litigiosidade de massa e repetitiva.

O texto aprovado, porém, exige que a repetição de processos seja efetiva. Assim, não

basta verificar desde logo a potencialidade de determinada demanda causar insegurança

jurídica, exige-se que de fato cause, revelando o caráter repressivo do instituto.

Parte da doutrina defende a opção legislativa em razão do necessário amadurecimento

e discussão da controvérsia para robustecer e qualificar a decisão tomada no incidente, evitando

que questões não consideradas no incidente causem a sua modificação ou superação, o que

operaria em prejuízo à própria efetividade e objetivo do instituto de trazer segurança jurídica231.

228 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 321-322. 229 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 615. 230Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4550297&ts=1567530892297&disposition=inline.

Acesso em: 29 mar. 2020. 231 CAMBI, Eduardo; FOGAÇA, Mateus Vargas. Incidente de resolução de demandas repetitivas no Novo Código de

Processo Civil. Revista de Processo, v. 243, 2015. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boleti

m/bibli_bol_2006/RPro_n.243.13.PDF. Acesso em: 26 mar. 2020.

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103

Em sentido contrário, em defesa do caráter preventivo do IRDR se manifestaram

Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues ao analisarem o

projeto em trâmite no parlamento:

Outra constatação acerca deste primeiro artigo que disciplina o incidente refere-se ao

seu caráter preventivo. Com efeito, a expressão ‘controvérsia com potencial de gerar

relevante multiplicação de processos’ deixa evidente tal característica. E é altamente

desejável que assim o seja, tendo em vista que um dos seus objetivos é justamente o

de evitar a coexistência de decisões conflitantes, provocadora da insegurança jurídica

que tanto descontenta nossa sociedade. No que diz respeito ao momento de sua

instauração, há quem sustente que o ideal seria que o incidente fosse suscitado

somente quando já houvesse algumas sentenças antagônicas a respeito do assunto.

Para esta parcela da doutrina, o incidente deveria ter apenas caráter repressivo e

respeitar um maior amadurecimento da questão no âmbito do processamento das

demandas repetitivas no primeiro grau. Com efeito, uma vez acolhida tal proposta,

restaria comprometido o caráter nitidamente preventivo que a comissão de juristas

designada para elaborá-la procurou atribuir ao procedimento modelo232.

Retomemos o exemplo utilizado ao tratar dos requisitos para instauração do IRDR,

mas que aqui também se encaixa à crítica ao modelo repressivo adotado pelo legislador. Nos

casos notórios de desastre ambiental envolvendo as barragens de Mariana e Brumadinho,

exigir-se-ia o ajuizamento de milhares de processos para somente depois cogitar-se a

possibilidade de instauração do incidente.

Admitindo-se o caráter preventivo, seria possível vislumbrar o manejo de IRDR logo

após a ocorrência da catástrofe ambiental a fim de se definir, por exemplo, a espécie de

responsabilidade civil a ser aplicada ao caso além da extensão da indenização devida (danos

morais, lucros cessantes, danos morais coletivos, etc.). A depender da definição jurídica tomada

pelo tribunal competente, o longo trâmite processual pode ser abreviado. Se o Tribunal decidir

que a responsabilidade é do tipo integral – ou seja, independe da prova de culpa e situações de

caso fortuito e força maior não excluem a responsabilidade – parece-nos que pouca ou quase

nenhuma instrução probatória será necessária para fixar a responsabilidade civil, abreviando o

iter processual.

5.2.3 IRDR somente para questões de direito

Uma vez mais verifica-se importante alteração ocorrida no curso do trâmite legislativo

do projeto de Código de Processo Civil/2015. Seu anteprojeto, de autoria do Senador José

Sarney, previa, tal como a lei promulgada, o IRDR tão somente para questões unicamente de

direito.

232 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Reflexões sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, n. 211, pp.

195-196.

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104

Todavia, conforme apontado por Marcos de Araújo Cavalcanti, durante a tramitação

legislativa chegou-se a prever o cabimento do IRDR também para a resolução de questão fática

controvertida, o que aproximaria o novo instituto do musterverfahren do direito alemão e da

GLO (Group litigation order) do direito inglês233.

Em que pese a opção legislativa, o autor prossegue defendendo a vantagem da

utilização do IRDR para dirimir questões predominantemente fáticas, desde que decorram de

origem comum e sejam homogêneas, ou seja, prevaleçam os aspectos comuns sobre os

individuais.

Nesses casos, a decisão proferida no IRDR seria, a exemplo do ocorrido nas ações

coletivas que tutelam direitos individuais homogêneos, genérica, reconhecendo apenas o dever

de indenizar os prejuízos causados, permitido que as vítimas demonstrem, nos autos de seus

processos individuais repetitivos, o dano e sua quantificação234.

Assim, a vinculação da decisão tomada no IRDR instaurado sobre determinada questão

fática, comum e homogênea, não seria ampla e absoluta, mas restrita aos processos que

discutam a mesma questão235.

Para comprovar a eficácia desta opção, Marcos de Araújo Cavalcanti valeu-se também

de exemplo de dano ambiental, mencionando a hipótese de dano em rio ocasionado por empresa

multinacional, o que teria causado prejuízos às famílias ribeirinhas. Nessa situação, seria viável

e recomendável instaurar-se IRDR para definir a questão fática comum e homogênea referente

à existência do dever de o autor da conduta lesiva indenizar as vítimas pelos prejuízos causados.

Fixada a obrigação, as vítimas demonstrariam apenas a existência do dano individual, o nexo

de causalidade e a quantificação do dano236.

Defendendo a vantagem do modelo que permite apreciar a questão de fato por meio

de IRDR, assim se manifestaram Graziela Argenta e Marcelo da Rocha Rosado:

a limitação do objeto do IRDR às questões ‘unicamente de direito’ foi infeliz,

sobretudo pela dificuldade, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, na definição

de questão de fato ou questão de direito. Aqui deveria o código ter optado pela

admissão das pretensões isomórficas (questões de direito que possuem elementos de

fato ou de direito comuns), tal como comumente adotado no direito comparado. Isso

porque o texto não se confunde com a norma, e esta é o resultado da interpretação (os

fatos contribuem para a reconstrução do ordenamento jurídico, quando da

interpretação operativa)237.

233 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 220. 234 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 220. 235 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 221. 236 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 221. 237 ARGENTA, Graziela; ROSADO, Marcelo da Rocha. Do processo coletivo das ações coletivas ao processo coletivo dos casos repetitivos: modelos de tutela coletiva no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Processual.

Rio de Janeiro, ano 11, v. 18, n. 1 apud BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 32.

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105

5.2.4 Ausência de suspensão do prazo prescricional das pretensões individuais

Conforme abordado no presente trabalho, o projeto aprovado pela Câmara dos

Deputados previa: “admitido o incidente, suspender-se-á a prescrição das pretensões nos casos

em que se repete a questão de direito”.

Todavia, o dispositivo foi retirado durante a tramitação no Senado Federal; não

constou do texto aprovado e promulgado, por isso, não é possível cogitar atualmente a

suspensão ou interrupção do prazo prescricional no âmbito de instauração de IRDR.

A situação acaba, de forma reflexa, incentivando o ajuizamento de demandas

individuais, sobretudo porque não há previsão legal de suspensão do prazo prescricional das

pretensões individuais enquanto pendente de análise o incidente.

Ou seja, imaginemos determinada lesão de massa cujo prazo prescricional para reparar

o dano ou afastar a conduta ilícita esteja próximo de se esgotar.

Considerando que a admissão do IRDR gera a necessidade de se proceder à “mais

ampla e específica divulgação e publicidade” (art. 979 do Código de Processo Civil), aqueles

atingidos, e eventualmente (em caso de procedência) beneficiados pelo acolhimento do pedido,

que sequer tinham conhecimento do direito violado deverão, se quiserem evitar ver sua

pretensão fulminada pela prescrição, ajuizar sua demanda individual, estimulando a

litigiosidade.

Isso ocorre porque a previsão de suspensão do prazo prescricional das pretensões

individuais enquanto pendente o IRDR, prevista no art. 900, § 5º do substitutivo da Câmara dos

Deputados, foi retirada do texto final, sob a alegação de que seria relativa a direito material e

de que o Código de Processo Civil não seria o diploma adequado para esta previsão.

A previsão permitiria aos interessados aguardar o julgamento final do IRDR e somente

ajuizar sua demanda individual se a tese fixada lhe fosse favorável, evitando-se gastos inúteis

e a utilização desnecessária da máquina judiciária238.

Como foi retirada, embora a ampla publicidade do processamento do IRDR seja

bastante salutar para garantir o acesso ao Poder Judiciário e a tutela efetiva dos direitos lesados,

verifica-se que, como atualmente positivado, a ausência de coisa julgada pro futuro e erga

omnes e a ausência de causa suspensiva da prescrição poderá incentivar o ajuizamento de ações

individuais.

Por outro lado, no regime das ações coletivas, entende-se que, com fundamento nos

artigos 240, § 1º, do Código de Processo Civil e 202, I, do Código Civil, ocorre a interrupção

238 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 170.

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106

da prescrição para as demandas individuais relativas ao evento que ensejou a propositura da

ação coletiva. Revela-se, portanto, mais uma vantagem da ação coletiva em relação aos

mecanismos de padronização das decisões judiciais previstos no Código de Processo Civil 239.

5.2.5 Precedentes vinculantes: meio constitucional para a efetiva e qualitativa redução

de processos?

Embora já tenhamos tratado do modelo de precedentes previsto pelo Código de

Processo Civil, além da necessária adequação e interpretação do instituto segundo a tradição

jurídica brasileira, outro aspecto do tema merece ser abordado: a redução dos processos.

A implantação do inédito modelo de precedentes pelo legislador brasileiro teve como

origem a explosão da litigiosidade de massa e repetitiva, além da ineficiência do atual modelo

de processo coletivo para fazer frente a este novo tipo de demanda processual.

Diante desse cenário, implantou-se um sistema conferindo eficácia vinculante às

decisões tomadas em determinados instrumentos, notadamente o IRDR, dentre outros previstos

no rol trazido pelo artigo 927 do Código de Processo Civil.

Interessante, porém, o estudo elaborado por Georges Abboud no sentido de inexistir

relação entre quantidade de processos e efeito vinculante das decisões. Para tanto, o autor parte

de duas constatações: a primeira, no sentido de que a simples qualidade de eficácia vinculante

não retira a necessidade de interpretação; e a segunda, baseada na análise de dados oriundos da

Alemanha, de Portugal e do Brasil240, que indicaram não ter havido redução do número de

processos após a implementação de regimes de vinculação decisória.

Em primeiro lugar, na mesma linha do que já sustentamos, Georges Abboud afirma

ser equivocada a pretensão de que a simples edição de decisões com efeito vinculante permitiria

a resolução de diversos casos idênticos procedendo-se a um simples raciocínio dedutivo,

desprovido de qualquer atividade interpretativa241.

Embora se acredite que a ampliação do rol de decisões com efeito vinculante redunde

na diminuição de processos e na valorização da segurança jurídica, eis que permitiria que se

decidisse de maneira automática e isonômica diversos outros processos242, não se pode abrir

mão da atividade interpretativa, sob pena da aplicação de decisões com efeito vinculante pelos

239 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 617. 240 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, pp. 691-698. 241 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 678. 242 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 681.

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107

juízos inferiores ocorrer de forma mecânica e silogística, como se fosse possível ao Poder

Judiciário decidir por atacado243.

A segunda constatação trazida pelo autor, e que confirma a primeira, é no sentido da

inexistência de redução do número de processos em países que adotam a técnica de eficácia

vinculante a um rol de decisões tomadas pelos tribunais.

Ao analisar o número de processos ajuizados em curso no âmbito das Cortes

constitucionais da Alemanha, de Portugal e do Brasil, o autor conclui que não houve diminuição

em razão da adoção do modelo de eficácia vinculante:

Isso porque o efeito vinculante, enquanto medida isolada, não é capaz de alterar todo

o sistema judicial brasileiro, reduzindo drasticamente o número de processos que nele

ingressam a cada ano, até porque, com o aumento da população e da conscientização

sobre seus direitos e deveres, o número de controvérsias judiciais tende a aumentar

anualmente. O efeito vinculante, portanto, teria que vencer esse aumento natural e

ainda contribuir eficazmente para a redução gradativa dos demais processos. Sem

dizer que, com base em Dworkin, desde já concluímos pela impossibilidade de se

encontrar uma fórmula apriorística que garanta aos juízes alcançarem a mesma

solução jurídica diante de diferentes e complexos processos. [...] Na realidade, muito

pouco contribuirá, para nossa democracia, a redução de processos sem que

concomitantemente também ocorra gradativa melhoria qualitativa nas decisões

judiciais a ser refletida em motivações judiciais mais alentadas, que examinem o

contexto fático-jurídico da lide, e não se limitem a fundamentar com base em súmulas

ou decisões dos Tribunais Superiores – como se esses precedentes já trouxessem a

norma pronta e acabada a ser aplicada no caso concreto244.

Portanto, ao menos por ora, não há sequer comprovação de que a adoção de um amplo

regime de vinculação decisória gere a pretendida redução do número de processos, embora

possa redundar em um maior controle da atividade interpretativa dos juízes e um menor grau

qualitativo das decisões judiciais; seu resultado é negativo à justa e efetiva reparação do direito

lesado.

5.3 Complementaridade e interdependência entre os modelos de tutela

5. 3.1 Regime amplo de tutela de direitos coletivos e de tutela coletiva de direitos

Com a edição do Código de Processo Civil/2015, o enfrentamento da litigiosidade de

massa e repetitiva passou a ser composto por dois modelos diversos: (i) o modelo das ações

coletivas; e (ii) o modelo de julgamento/resolução das questões repetitivas245.

No mesmo sentido, dispõe o Enunciado 345 do Fórum Permanente de Processualistas

Civis:

243 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 680. 244 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, pp. 699-700. 245 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 31.

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o incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos

extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos

repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser

interpretadas conjuntamente.

No mesmo sentido o Enunciado n. 346: “A Lei n. 13.015, de 21 de julho de 2014,

compõe o microssistema de solução de casos repetitivos”.

O IRDR surgiu da necessidade de fazer frente à preocupante multiplicação de

demandas seriadas ou repetitivas, que passavam a ser julgadas artesanalmente, de forma

pulverizada pelo Poder Judiciário.

Foi nesse quadro, e considerando a ineficiência revelada pelo modelo brasileiro de

tutela coletiva, que o legislador previu um sistema, um modelo de julgamento de questões

repetitivas, tendo como coqueluche o IRDR.

O incidente é voltado à resolução dos direitos individuais homogêneos246, aqueles que

mais geram demandas em série e justamente no qual os maiores entraves da tutela processual

coletiva se revelam: (i) regime de coisa julgada secundum eventum litis que não impede

ajuizamento de novas ações por parte do particular lesado; (ii) inexistência de obrigação legal

de suspensão dos processos individuais e informação deficitária sobre a existência de ação

coletiva em andamento; (iii) rol restrito de legitimados, de modo que o indivíduo lesado, para

acessar o processo coletivo, requer a colaboração e participação de um ente público ou privado,

preferindo, por isso, o ajuizamento da ação individual.

No mesmo sentido, afirma Bruno Dantas:

O escopo do IRDR é a tutela isonômica e efetiva dos direitos individuais homogêneos

e seu advento traduz o reconhecimento do legislador de que a chamada ‘litigiosidade

de massa’ atingiu patamares insuportáveis em razão da insuficiência do modelo até

então adotado, centrado basicamente na dicotomia tutela individual x tutela coletiva.

Essa realidade fez com que surgisse um movimento de formulação de técnicas de

tutela pluri-individual, para auxiliar na proteção dos direitos individuais

homogêneos247.

246 Marcos de Araújo Cavalcanti, porém, não exclui a possibilidade, em tese, de configuração de IRDR em determinado caso

envolvendo direito coletivo: “Todavia, não é qualquer repetitividade de demandas coletivas que enseja a instauração do

IRDR. Em regra, a repetição de processos coletivos que versem sobre direitos difusos ou coletivos stricto sensu não

autorizará a instauração do IRDR. Nesses casos, não haverá, em tese, risco à isonomia e à segurança jurídica. Na verdade, ocorrerá litispendência ou conexão entre essas demandas coletivas, de modo que os processos coletivos devem ser reunidos

para julgamento simultâneo. [...] Portanto, sendo hipótese de demanda coletiva que versa sobre direitos difusos ou coletivos

stricto sensu, a natureza do direito material envolvido faz com que o ajuizamento repetitivo de processos configure,

normalmente, litispendência ou conexão entre demandas. Não se exclui, entretanto, a possibilidade desses processos

formarem com outras demandas (coletivas e/ou individuais) uma repetitividade de questões unicamente de direito. [...]

Contudo, a repetição de processos coletivos que, com mais facilidade, fará ensejo à suscitação do IRDR será aquela

relacionada aos direitos individuais homogêneos”. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de

demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, pp. 218-219. 247 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais

superiores no direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2017, pp. 539-540.

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109

Ressaltando a complementaridade dos instrumentos, Karol Araújo Durço afirma:

Resta evidente, portanto, que os mecanismos de julgamento coletivo não representam

obstáculos nem mesmo concorrência ao processo coletivo. Na verdade, cuidam-se de

instrumentos complementares dentro da nova sistemática processual brasileira, sendo

todos mecanismos voltados para a melhor forma de proteção dos direitos materiais

envolvidos. Ademais, a mencionada complementaridade resta evidenciada em

especial quando se tratam de direitos individuais homogêneos ou mesmo direitos de

classe, em relação aos quais a experiência prática do processo brasileiro tem

demonstrado forte tendência de pulverização de demandas e, muitas vezes, a

discussão de casos eminentemente de direito248.

Percebe-se, assim, que a tutela dos direitos individuais homogêneos é o ponto de

contato entre o regime da tutela processual coletiva, das ações coletivas, e do modelo de

resolução de questões repetitivas, capitaneado pelo IRDR.

Nessa ordem de ideias, o incidente afasta a análise de sua constitucionalidade e

admitindo-se uma correta aplicação e interpretação por parte dos Tribunais superiores, pode se

revelar um importante instrumento no enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva,

complementando e valorizando o modelo de ações coletivas, que passariam a poder centrar seus

esforços na tutela dos direitos naturalmente coletivos.

Não se quer com isso retirar do escopo da ação coletiva a tutela de direitos individuais

homogêneos, mas fazer a grande massa destes direitos, se repetitivos, sejam tutelados pelo

IRDR, deixando para a ação coletiva aqueles que tenham especial relevância social e os direitos

difusos e coletivos, tão importantes no atual modelo constitucional.

Esta interpretação conciliatória e de viés complementar dos institutos, porém,

pressupõe uma nova visão sobre a relação entre os mencionados modelos, afastando-se a

prevalência do IRDR e resgatando-se o caráter preferencial da ação coletiva, notadamente ante

suas vantagens.

5.3.2 Subsidiariedade do regime de tutela do Código de Processo Civil frente à ação

coletiva

Como visto, os institutos inspiradores do IRDR convivem, cada qual em seu regime

jurídico, com outros instrumentos de tutela coletiva.

No caso da GLO do direito inglês, há um aspecto bastante relevante para análise e

aplicação do IRDR no Brasil: o seu caráter subsidiário frente ao processo coletivo.

248 DURÇO, Karol Araújo. As soluções para demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil e suas implicações para

o processo coletivo. In: (coord.) DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 533.

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110

Com efeito, ao apreciar o pedido de instauração da GLO, a Corte inglesa deve, de

acordo com o caso concreto, verificar se não é mais eficiente determinar que os processos sejam

reunidos em litisconsórcio (consolidated litigation ou ordinary joinder of co-claimants) ou

aplicar as regras das ações coletivas (representativa actions), revelando, portanto, a

subsidiariedade do instituto e a preferência pela utilização das regras da ação coletiva249.

Todavia, no atual modelo brasileiro parece-nos que, embora de maneira não expressa

e/ou pretendida pelo legislador, o regime de julgamento de processos repetitivos trazido pelo

Código de Processo Civil tem potencial para colocar o processo coletivo em segundo plano.

Basta verificar que o IRDR tem o condão de suspender o andamento dos processos

coletivos que tratem da questão repetitiva admitida para julgamento, conforme previsto

expressamente no artigo 982, I, do Código de Processo Civil.

Em complemento, o artigo 985, I, do mesmo diploma, determina a aplicação da tese

jurídica decidida no IRDR a todos os processos, inclusive os coletivos, que, aliás, já estariam

suspensos desde a admissão do incidente.

No mesmo sentido, Marcos de Araújo Cavalcanti conclui que as ações coletivas

também ficam sujeitas ao regime jurídico do IRDR, de forma que: (a) as questões de direito

discutidas podem ser, igualmente, examinadas coletivamente no âmbito do IRDR; (b) os

processos coletivos repetitivos serão sobrestados até a fixação da tese jurídica pelo tribunal; (c)

a tese jurídica será aplicada vinculativamente às ações coletivas futuras250.

Esta lógica de supremacia do IRDR sobre as ações coletivas precisa ser invertida, pois

a tutela processual coletiva se revela uma técnica processual superior, de modo que deve ser

preferida em relação aos incidentes processuais coletivos no enfrentamento dos litígios de

massa251.

De fato, são inúmeras as vantagens da tutela processual coletiva em relação ao regime

de julgamento de processos repetitivos trazido pelo Código de Processo Civil, notadamente nos

seguintes aspectos: legitimidade, competência, coisa julgada, liquidação/execução da sentença

proferida no processo coletivo, fluid recovery e possibilidade de solução consensual do conflito.

Veremos cada um dos pontos com mais detalhes, valendo-nos da análise feita por

Patrícia Miranda Pizzol.

Quanto à legitimidade, a ação coletiva seria mais democrática, pois os legitimados para

a ação coletiva são entes públicos e privados destinados à defesa dos direitos transindividuais,

249 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 89. 250 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 217. 251 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 399.

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111

melhor representando a sociedade e muitas vezes com mais condições materiais de fazer frente

aos grandes litigantes252.

Quanto à competência, as ações coletivas são julgadas em primeiro grau, pelo juízo do

local do dano ou na capital do Estado, o que garante um debate mais abrangente das questões

envolvendo a coletividade. A regra própria de competência das ações coletivas, prevista no

Código de Defesa do Consumidor, permite que uma única demanda coletiva tenha alcance

nacional, ao passo que a decisão do IRDR, em regra, não terá eficácia nacional, salvo se

interposto recurso extraordinário ou especial253.

No que diz respeito à coisa julgada, mais uma vantagem das ações coletivas frente ao

regime de enfrentamento da litigiosidade repetitiva previsto pelo Código de Processo Civil,

pois, em caso de julgamento favorável no IRDR, os interessados deverão ajuizar processo de

conhecimento para ver reconhecido seu direito, o que gera, por via reflexa, aumento da

litigiosidade, embora o rito processual seja facilitado pela vinculação pretendida pelo

legislador.

Segundo Patrícia Miranda Pizzol, mesmo abreviando o rito processual,

há a possibilidade de que a tese não seja aplicada pelo julgador (principalmente se

levarmos em consideração a inconstitucionalidade da vinculação), ou de que não seja

aplicada liminarmente, ou que seja aplicada de modo errado; há também a

possibilidade de interposição de recurso contra a sentença, que, no processo individual

tem, em regra, efeito suspensivo (na ação coletiva, a regra é a ausência de efeito

suspensivo)254.

No caso da ação coletiva, porém, a procedência opera coisa julgada erga omnes,

bastando que os beneficiados pela decisão ajuízem ação de liquidação e/ou execução, até

mesmo em cumprimento provisório.

A liquidação/execução pode ser dispensada, caso se entenda possível flexibilizar a

regra prevista no artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor255, fixando-se desde logo

condenação específica e forma de reparação do dano causado.

252 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, pp. 608-610. 253 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT, 2019, p. 613. 254 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: RT,

2019, p. 614. 255 “A regra – inspirada na visão privatista de que os direitos e interesses individuais homogêneos são estritamente

individuais – considera que a situação pessoal de cada vítima e sucessor não pode ser individualizada no processo coletivo,

onde, apenas, se discute a tese jurídica comum (direitos e interesses de origem comum. [...] A disposição, de todo lógica em

uma primeira análise, não resiste a uma visão coletiva do fenômeno. A pulverização das demandas na fase executiva ‘é

desvantajosa para o exercício jurisdicional, obstando a maximização de uma série de aspectos inerentes à eficiência e à efetividade do processo)’”. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O processo coletivo refém do individualismo. In: (coord.)

DIDIER, Fredie. Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 142.

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112

Fernando da Fonseca Gajardoni entende possível que, por exemplo, em ação civil

pública visando cobrar e restituir tarifa de energia elétrica ilegal, o magistrado preveja na

sentença que a restituição poderá ser feita diretamente nas faturas subsequentes, evitando a

execução individual da sentença e eventual desinteresse em razão do pequeno valor. O autor

sustenta, igualmente, a possibilidade de execução invertida (em que o condenado se

responsabiliza para calcular o valor devido e satisfazê-lo, com pagamento individualizado ou

depósito nos autos da ação coletiva), com fundamento no art. 536, § 1º do Código de Processo

Civil 256, que permite a tutela específica da obrigação257.

Nesta situação, sequer seria necessário ajuizar liquidação/execução do julgado

coletivo. É uma vantagem do processo coletivo, eis que no regime de julgamento repetitivo do

Código de Processo Civil será sempre necessário ajuizar ação individual para se obter o

reconhecimento do direito lesado, sem possibilidade de reparação direta por meio do IRDR ou

de outro instrumento previsto no rol do artigo 927 do Código de Processo Civil.

A vantagem do processo coletivo se revela ainda mais evidente no caso das lesões de

pequena monta (small claims), ante o desinteresse da parte lesada em percorrer o longo caminho

do processo de conhecimento caso o direito tenha sido reconhecido na forma de um dos

instrumentos de enfrentamento da litigância repetitiva previsto no Código de Processo Civil.

Segundo Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Larissa Claire Pochmann da Silva:

Os danos resultantes de lesões de massa são, frequentemente, de pequena monta se

considerados separadamente, o que torna o ajuizamento de ações individuais

desestimulante e, na prática, quase inexistente, demonstrando, assim, a fragilidade do

acesso à justiça [...]. As ações coletivas, se bem estruturadas, são, portanto, um efeito

instrumento para o acesso à justiça, permitindo a busca de reparação de danos de

pequenas montas. Por outro lado, o incidente de resolução de demandas repetitivas

teve seu advento na perspectiva de trazer racionalização e eficiência diante dos

conflitos de massa, evitando que haja ofensa à isonomia, à prestação jurisdicional em

um tempo razoável e à segurança jurídica nos julgamentos de questões comuns de

direito, material ou processual, só funcionando quando as demandas já estão em

tramitação no Poder Judiciário. Se a lesão for ínfima, não haverá incentivo, ao autor

da ação para buscar sua reparação no Poder Judiciário258.

Esta vantagem se confirma ainda com a possibilidade de realização do fluid recovery,

previsto no artigo 100 do Código de Defesa do Consumidor, quando, havendo sentença

256 Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá,

de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente,

determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente. § 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá

determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento

de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial. 257 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O processo coletivo refém do individualismo. In: (coord.) DIDIER, Fredie.

Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 143-144. 258 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann da. Ações coletivas e incidente de resolução de demandas repetitivas: algumas considerações sobre a solução coletiva de conflitos. In: ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo

coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 545-546.

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113

favorável e não se habilitando um número de interessados compatível com a gravidade do dano,

qualquer dos legitimados poderá promover a execução/liquidação em favor do fundo de direitos

difusos.

Enfim, há inúmeras vantagens na utilização do modelo de processo coletivo frente ao

regime proposto pelo Código de Processo Civil (em especial o IRDR). Assim, embora se

reconheça a complementaridade e interdependência entre ambos os modelos para um adequado

enfrentamento dessa nova forma de litigiosidade, é de se reconhecer também a superioridade

da ação coletiva.

E este é um ponto fundamental na apreciação em conjunto do IRDR com o processo

coletivo no Brasil. Assim, parece possível sustentar, inspirando-se no modelo inglês e

considerando as vantagens próprias da tutela processual coletiva, que, para a instauração de

qualquer IRDR, é requisito implícito do ordenamento brasileiro o seu caráter subsidiário; ele

somente poderá ser manejado quando inviável ou injustificável, no caso concreto, a ação

coletiva.

Nesse sentido, defende Marcos de Araújo Cavalcanti:

Por todas as razões antes expostas, o presente trabalho defende a aplicação subsidiária

do IRDR. O magistrado, ao verificar que as ações coletivas podem adequadamente

resolver os litígios de massa, deve dar prioridade a essa técnica processual. Sugere-

se, então, na linha das GLO do direito inglês, que o IRDR somente seja aplicado,

subsidiariamente, quando restar demonstrado que técnica processual das ações

coletivas não é a mais apropriada para a resolução dos conflitos. Verificada, na

hipótese levada ao tribunal, essa aptidão das ações coletivas, o processamento do

IRDR deve ser indeferido, por falta de interesse de agir. Contudo, como dito alhures,

é preciso reconhecer a necessidade de aperfeiçoamento do sistema processual coletivo

brasileiro. A partir daí a tutela coletiva dos direitos de massa por meio das ações

coletivas poderá ser realmente mais bem utilizada, colocando a técnica do IRDR em

plano secundário259.

Assim, segundo tal interpretação, não comprovada a impossibilidade ou

inconveniência do processo coletivo no caso concreto, faltaria interesse de agir para o

processamento do incidente, na modalidade adequação, eis que haveria outra forma mais

efetiva de tutela do direito lesado.

5.3.3 O veto ao artigo 333 do Código de Processo Civil

Embora a doutrina venha há muitos anos defendendo a edição de um Código de

Processo Coletivo, o legislador brasileiro pouca atenção deu ao tema. O Código Brasileiro de

Processo Coletivo não avançou, sequer a nova Lei de Ação Civil Pública (Projeto de Lei n.

259 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas. São Paulo: RT, 2016, p. 410.

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114

5.139/2009), referendada pela doutrina, teve melhor sorte; foi arquivada ainda na Comissão de

Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Por outro lado, o Projeto de Lei do Senado n. 66/2010, de autoria do Senador José

Sarney, gerou grande interesse e preocupação nos parlamentares, o que culminou na edição do

Código de Processo Civil/2015.

A despeito das críticas postas pela doutrina, o novo Código não destinou sequer um

capítulo sobre o processo coletivo, pretendendo resolver o problema da litigiosidade de massa

e repetitiva tão somente pelo emprego de seus novos instrumentos, em especial o IRDR.

O projeto do Código de Processo Civil/2015 aprovado, contudo, previu duas formas

de contato e interação com a tutela processual coletiva: (i) o artigo 333, que prevê a conversão

da ação individual em ação coletiva; (ii) o artigo 139, X, que prevê a intimação dos legitimados

coletivos para o ajuizamento de demanda coletiva.

O artigo 333 do Código de Processo Civil contava com a seguinte redação:

Art. 333. Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação

do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria

Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule

pedido que:

I – tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim

entendidos aqueles definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei n.

8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e cuja ofensa

afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade;

II – tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação

jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou disposição de lei, deva ser

necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os

membros do grupo.

§1º Além do Ministério Público e da Defensoria Pública, podem requerer a conversão

os legitimados referidos no art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, e no art. 82

da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).

§2º A conversão não pode implicar a formação de processo coletivo para a tutela de

direitos individuais homogêneos.

§3º Não se admite a conversão, ainda, se:

I – já iniciada, no processo individual, a audiência de instrução e julgamento; ou

II – houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto; ou

III – o juízo não tiver competência para o processo coletivo que seria formado.

§4º Determinada a conversão, o juiz intimará o autor do requerimento para que, no

prazo fixado, adite ou emende a petição inicial, para adaptá-la à tutela coletiva.

§5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação

do réu para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias.

§6º O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário

do legitimado para condução do processo coletivo.

§7º O autor originário não é responsável por nenhuma despesa processual decorrente

da conversão do processo individual em coletivo.

§8º Após a conversão, observar-se-ão as regras do processo coletivo.

§9º A conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de

natureza estritamente individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-

se-á em autos apartados.

§10. O Ministério Público deverá ser ouvido sobre o requerimento previsto no caput,

salvo quando ele próprio o houver formulado.

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115

O dispositivo remete às ações que possuem eficácia que superam o direito da parte

autora, notadamente ante a dificuldade de se verificar de imediato a diferenciação do direito

envolvido, se exclusivamente individual, se individual homogêneo, ou ainda se coletivo (lato

sensu), bem como a extensão do provimento jurisdicional a ser obtido.

O inciso I do artigo corresponde às ações individuais com efeitos coletivos, ou seja,

aquelas ações ajuizadas como individuais, mas cuja decisão atingirá a todos, toda a coletividade,

ainda que indiretamente260. Exemplo recorrente da doutrina é o relacionado ao direito de

vizinhança, como na situação em que determinado indivíduo é vizinho de um estabelecimento

comercial do tipo bar que causa intensa poluição sonora naquela localidade261.

O indivíduo lesado em seu direito de vizinhança move ação inibitória em face do local

com fundamento no Código Civil (artigos 1.277 a 1.281), buscando fazer cessar a poluição

sonora advinda do uso nocivo da propriedade. Neste caso, embora individual o direito

envolvido e o processo manejado, a decisão tomada terá efeitos coletivos, pois a cessação dos

ruídos também beneficiará os demais vizinhos do estabelecimento. Portanto, é possível, e

eventualmente recomendável, a conversão em ação coletiva.

O inciso II, por sua vez, corresponde às ações pseudoindividuais, ou seja, ações

embasadas em relação, de fato ou de direito, que é indivisível, de modo que deva receber uma

tutela jurisdicional unitária. Isso porque o pedido, embora baseado em interesse subjetivo,

deveria ter sido formulado coletivamente262. A doutrina traz como exemplo a ação de anulação

de assembleia movida por um acionista. Como a assembleia somente pode ser válida ou inválida

para todos, não cabe cisão do direito material envolvido263.

A técnica da conversão prevista no artigo analisado é reservada aos direitos difusos e

coletivos e não se aplica aos direitos individuais homogêneos (§ 2º); além disso, tem aplicação,

neste caso, o segundo instrumento (artigo 139, X, do Código de Processo Civil).

Parte da doutrina entende ser inconstitucional o artigo 333, pois concederia poder

autoritário ao juiz para realizar a conversão de uma ação individual em coletiva, violando o

260 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 121. 261 “Os exemplos são variados: Um cadeirante que ingressa com ação judicial para obrigar a Municipalidade a oferecer, num

determinado trajeto, veículo com as especificidades necessárias ao seu transporte; um morador que, incomodado com o transtorno que uma feira livre lhe causa, ingressa com ação judicial para proibir sua realização; um sujeito que, inconformado

com uma propaganda enganosa, que fere sua inteligência e boa-fé, ingressa com ação judicial para retirá-la dos meios de

comunicação; um sujeito que, entendendo que determinada intervenção em monumentos mantidos em praças públicas viola o

seu direito a apreciar o patrimônio histórico e cultural, ingressa com ação para proibir tal conduta; um ouvinte de rádio que

ingressa com ação para tirar a ‘Voz do Brasil’ da programação com o argumento de que tem o direito de ouvir músicas e

informações no tempo em que dura o programa oficial”. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual do processo coletivo.

3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016 apud BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 44. 262 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual do processo coletivo. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016 apud BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018. 263 BASTOS, Fabrício. Curso de processo coletivo. São Paulo: Foco, 2018, p. 49.

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116

princípio da inércia jurisdicional, além de gerar obstáculo indevido ao prosseguimento da

demanda individual264.

No mesmo sentido, afirmam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:

Seria necessária a expressa concordância do autor individual, pois a ação – o direito

de ação – é dele. Caso o autor discordasse, não haveria conversão. O autor não poderia

ser obrigado a litigar da forma como querem MP ou Defensoria Pública, se o direito

de ação é dele. A natureza potestativa do direito de ação (CF, 5º, XXXV) dá a ele,

autor, o direito de obter a providência jurisdicional adequada, razão pela qual poderia

discordar do direito de conversão. Feita à força, contra a vontade do autor, terá sido

ferida a garantia constitucional do direito de ação265.

Por outro lado, há quem entenda que o dispositivo seria benéfico e constitucional, pois

não haveria qualquer frustação de acesso ao Poder Judiciário, eis que o autor da demanda

individual poderia continuar na ação coletiva na condição de litisconsorte unitário do autor da

ação coletiva. Eventual pedido individual prosseguiria em autos apartados, na forma descrita

pelo § 9º266.

Segundo Dalton Santos Morais, também não haveria violação à regra do opt out, pois

após a conversão da ação individual em coletiva bastaria o autor, que não é responsável por

qualquer despesa processual em razão da conversão (§ 7º), desistir de continuar na ação coletiva

como litisconsorte unitário, podendo, assim, ajuizar nova ação individual para ver garantido seu

direito de ter definida sua situação em ação individual independentemente da ação coletiva267.

O autor prossegue rebatendo as críticas trazidas por José Rogério Cruz e Tucci:

A argumentação de que o incidente de conversão da ação individual em coletiva

violaria o princípio da inércia da jurisdição, concederia ao juiz poder discricionário e

autoritário, bem como traria transtorno ao autor individual devido à possível

suspensão de sua demanda individual, é, com todo o respeito, desconectada das bases

do nosso direito, do próprio texto do art. 333 do NCPC projetado e até mesmo do

incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no NCPC sancionado pela

Presidente da República. Ora, qual seria a violação ao princípio da inércia

jurisdicional e qual o poder autoritário concedido ao juiz pelo art. 333 do NCPC

projetado, se o então dispositivo determinava como requisitos para a instauração do

incidente que deveria ocorrer (i) o atendimento do pressuposto da relevância social,

(ii) a existência de requerimento expresso do MP ou da DP e (iii) a oitiva prévia do

autor da ação individual?268

264 TUCCI, José Rogério Cruz e. Um veto providencial ao novo Código de Processo Civil. Disponível em:

https://www.conjur.com.br/2015-mar-17/paradoxo-corte-veto-providencial-cpc. Acesso em: 26 mar. 2020. 265 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT,

2015, p. 189. 266 MORAIS, Dalton Santos. A perda da oportunidade de coletivização do processo contra o poder público no novo Código

de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 418. 267 MORAIS, Dalton Santos. A perda da oportunidade de coletivização do processo contra o poder público no novo Código

de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 418-419. 268 MORAIS, Dalton Santos. A perda da oportunidade de coletivização do processo contra o poder público no novo Código

de Processo Civil. In: ZANETI JUNIOR, Hermes (coord.). Processo coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 419.

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O dispositivo, no entanto, foi objeto de veto presidencial sob a fundamentação abaixo:

da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação individual

em ação coletiva de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse

das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena eficácia do instituto.

Além disso, o novo Código já contempla mecanismos para tratar demandas

repetitivas. No sentido do veto manifestou-se também a Ordem dos Advogados do

Brasil – OAB269.

O veto, portanto, sustentou, na linha das críticas de parte da doutrina, que o dispositivo

poderia representar ofensa ao direito das partes de demandar. Outro argumento foi o

entendimento de que não haveria necessidade de coletivização da lide, pois o Código de

Processo Civil já disporia de mecanismos suficientes para enfrentar demandas repetitivas.

Também não é de se descartar, considerando que as próprias razões de veto

mencionam a intervenção da OAB, os interesses dos advogados na manutenção do sistema com

maior número possível de processos individuais em detrimento dos coletivos, em razão dos

honorários advocatícios.

Sobre o tema, Ada Pellegrini Grinover afirma:

Entendem-se as razões, exclusivamente corporativas, da OAB. As ações coletivas

beneficiam a justiça e a coletividade, como foi visto acima, mas não aos advogados.

Como poderiam eles ajuizar milhares ou milhões de demandas individuais – como

acontece na judicialização da saúde, por exemplo – visando a um objetivo comum,

qual seja o pedido de aprovação de um medicamento mais benéfico pela Anvisa e sua

distribuição pelo SUS? Uma única ação coletiva resolveria o problema, privando os

advogados de seus honorários por milhares de causas esfaceladas. Mas pode-se

admitir que é possível o interesse público com o interesse dos advogados. Talvez tenha

faltado, no dispositivo, ressalvar a recompensa monetária para o advogado que moveu

a ação individual convertida em coletiva270.

Outro dispositivo de interação entre o processo coletivo e o Código de Processo Civil

é o artigo 139, X:

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,

incumbindo-lhe: [...] X – quando se deparar com diversas demandas individuais

repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do

possível, outros legitimados a que se referem o art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho

de 1985, e o art. 82 da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso,

promover a propositura da ação coletiva respectiva.

O dispositivo prevê que o magistrado, ao se deparar com demandas repetitivas que

possam ser objeto de ação coletiva, deve oficiar aos legitimados para a propositura de Ação

269 Diário Oficial da União. 17 mar. 2015, p. 52. Disponível em:

http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=17/03/2015&jornal=1&pagina=52&totalArquivos=128.

Acesso em: 11 abr. 2020. 270 GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. In: CIANCI, Mirna et al. (coord.) Novo

Código de Processo Civil – impactos na legislação extravagante e interdisciplinar. v.1. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 15-23.

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118

Civil Pública, a fim de se obter um julgamento uniforme com eficácia erga omnes, efeito

inexistente no IRDR.

A técnica prevista no dispositivo legal é destinada aos direitos individuais

homogêneos, ao passo que o trazido pelo artigo 333 estava destinado aos direitos difusos e

coletivos; são, portanto, instrumentos distintos e complementares271.

5.4 Outras formas de enfrentamento da litigiosidade repetitiva

Ao longo deste trabalho defendemos a necessidade de aperfeiçoamento da tutela

processual coletiva para que, superadas suas deficiências e entraves, possa, junto com o regime

de enfrentamento da tutela repetitiva previsto no Código de Processo Civil, formar um

macrossistema de enfrentamento deste tipo de litigiosidade.

Conforme abordamos no capítulo anterior, os regimes seriam complementares, embora

se reconheça a superioridade da tutela processual coletiva, que se revela instrumento mais

adequado para a resolução das demandas em série, por envolver formação de coisa julgada, por

permitir a imediata liquidação/execução, possibilidade de tutela das small claims, possibilidade

de solução consensual, inclusive extrajudicial, entre outras vantagens enumeradas no capítulo

anterior.

No entanto, esta conclusão não escapa de outra ainda mais certa: tal conjugação de

esforços entre os dois diferentes meios de tutela não é suficiente para resolver de forma

definitiva, duradora e eficaz a excessiva litigiosidade em voga no Brasil. É preciso muito mais.

Para tanto, pensamos ser indispensável uma reformulação de importantes aspectos do

processo civil, notadamente a gratuidade de justiça, a litigância de má-fé e predatória, além da

urgente introdução das novas ferramentas tecnológicas disponíveis.

Não será suficiente contratar milhares de servidores públicos, centenas de magistrados,

criar varas e tribunais se o problema não for enfrentado na causa e não apenas na consequência.

As reformas mencionadas pecaram justamente neste aspecto. Não têm a pretensão de

fazer cessar ou controlar a litigiosidade repetitiva, ou ao menos fazer com que não chegue com

tanta incidência ao Poder Judiciário, mas apenas de reduzir e racionalizar o enfrentamento e

reduzir o estoque de processos.

Para compreendermos melhor, pensemos na seguinte metáfora: o Poder Judiciário

atualmente é um quarto cheio de papéis, constantemente alimentado por mais e mais papéis. Os

processos são retirados manualmente por vários trabalhadores incumbidos desta tarefa. Há uma

271 GRINOVER, Ada Pellegrini. A coletivização de ações individuais após o veto. In: CIANCI, Mirna et al. (coord.) Novo

Código de Processo Civil – impactos na legislação extravagante e interdisciplinar. v.1. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 23.

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119

antiga máquina, razoavelmente eficiente, capaz de retirar a maior parte dos processos de uma

única vez. No entanto, é uma máquina antiga, pesada, difícil de locomover, que está vazando

óleo e clamando por manutenção. Em razão disso, dificilmente é utilizada, embora, quando

funcione adequadamente, seja bastante eficaz na retirada de um grande volume de papéis. Esta

máquina é a ação coletiva.

Em razão dessa pouca ou insuficiente utilização, uma nova máquina foi comprada,

mais leve, ágil e eficiente em “moer” os papéis existentes na sala. Apesar disso, só pode ser

utilizada quando a sala já estiver muito cheia; parte dos papéis picados é jogada de volta para

dentro da sala, reduzindo sua eficácia. Esta máquina é o IRDR.

Não se discute, porém, a razão da sala estar cada vez mais cheia de papéis. Pretende-

se tão só combater a situação atacando a consequência, sem buscar formas de resolver a causa

dessa entrada massiva de papéis na sala. Pretendemos, então, apontar algumas importantes

causas que geram essa situação.

Embora não seja da tradição do estudo do direito no Brasil, é urgente recorrer aos

dados para que se possa ter uma dimensão da gravidade da situação brasileira quanto à

excessiva litigiosidade aqui existente, pois a situação é caótica, levando alguns autores a

denominá-la tragédia da justiça272.

Em 2019, segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça,

estavam em tramitação, no final de 2018, 78,7 milhões de processos nas diversas instâncias do

Poder Judiciário aguardando solução definitiva. O número era de 74 milhões ao final de 2015.

No entanto, no relatório de 2019 registrou-se que os anos de 2017 e 2018 foram os primeiros a

interromper uma série histórica de constante crescimento no número de processos, que vinha

desde 2009. Houve redução no estoque de processos neste biênio em -1,4%273.

A redução, todavia, pode ter como causa não a melhor efetividade no enfrentamento

da litigiosidade coletiva e nas soluções extrajudiciais dos conflitos, mas a entrada em vigor da

reforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017), que reduziu 656 mil processos, considerando a

manutenção da produtividade e a diminuição na entrada de processos.

A reforma trabalhista como causa de redução do estoque geral de processos no Poder

Judiciário se confirma ao verificarmos que o estoque nas Justiças Estadual e Federal se manteve

constante no biênio mencionado, ainda que no geral do Poder Judiciário o saldo tenha sido

positivo, pois ingressaram 28,1 milhões de processos e foram baixados 31,9 milhões.

272 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019. 273 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020.

Page 120: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

120

O relatório também indica uma redução dos casos novos em -1,9% e um aumento dos

casos solucionados em 3,8%, revelando o aumento da produtividade dos juízes, o que também

foi percebido no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo – houve um aumento de mais de

20% na produtividade dos magistrados de primeiro grau274 e um aumento geral acumulado de

produtividade do Poder Judiciário de 36,8% em 10 anos275.

O relatório destaca ainda que o “tempo de giro do acervo”, ou seja, a quantidade de

tempo necessária para zerar o estoque atual de processo é de 3,2 vezes na Justiça Estadual e 2,4

vezes na Justiça Federal. Isso significa que mesmo sem o ingresso de novas demandas, seriam

necessários 2 anos e 6 meses de trabalho para zerar o estoque de processos atuais.

Outro índice bastante utilizado é a taxa de congestionamento, que indicou leve

melhora no comparativo entre 2015 (relatório CNJ de 2016) e o ano de 2018 (relatório 2019),

implicando uma redução da taxa bruta de congestionamento de 72,2% para 71,2% em 2019.

A figura 47 do relatório também parece confirmar uma tendência verificada nos anos

anteriores de leve redução de novos casos e aumento dos processos baixados. Na esfera

estadual, desde 2015, as curvas se inverteram, passando o número de processos baixados a ser

superior ao número de processos novos, o que se confirmou nos anos seguintes, chegando, ao

final de 2018, com 22,3 milhões processos baixados e 19,6 milhões de processos novos276, o

que representa 69,8% dos casos novos ingressados no Poder Judiciário277.

Apesar disso, o número de feitos em tramitação permanece elevado, em 63 milhões,

embora tenha se mantido estável nos últimos três anos, representando 80% dos casos pendentes

da justiça brasileira278.

Outro aspecto sempre abordado pelo relatório produzido pelo CNJ é o gargalo da

execução, pois constitui grande parte dos casos em trâmite e é a etapa de maior morosidade.

Dos 79 milhões de processos pendentes de baixa no final de 2018, mais da metade (54,2%)

eram processos em fase de execução, em uma tendência de alta. Dos processos de execução em

trâmite, aproximadamente 73% são de execução fiscal279; o executivo fiscal possui taxa de

274 Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/02/03/ae35bb62-curtas.ghtml. Acesso em: 29 mar. 2020. 275 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 80. 276 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 82. 277 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 84. 278 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020. 279 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 126.

Page 121: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

121

congestionamento de 90%, ou seja, a cada 100 execuções fiscais distribuídas em 2018, apenas

10 foram baixadas280.

O gargalo da execução é tão importante que em muitos tribunais supera 60% do acervo

de processos, chegando a 71,2% do estoque total no Tribunal de Justiça de São Paulo281, o

número mais elevado dentre todos os tribunais.

O tempo de tramitação dos processos também é objeto de análise do relatório do

Conselho Nacional de Justiça. No relatório de 2019 verificou-se a confirmação da tendência de

alta do tempo médio de duração dos processos entre a distribuição até a sentença. Em 2015, na

média geral do Poder Judiciário, o processo demandava 1 ano e 6 meses até ser sentenciado.

Em 2018, o número subiu para 2 anos e 2 meses. Por outro lado, o relatório aponta como aspecto

positivo a redução no tempo do processo pendente, que diminuiu de 5 anos e 6 meses, em 2015,

para 4 anos e 10 meses, em 2018282.

Outro dado importante que ilustra a grande demanda processual existente no Brasil é

trazido por Erik Navarro Wolkart ao comparar o número de processos por habitante no Brasil

e em países da Europa:

País Casos novos Casos

resolvidos

Casos

pendentes

Duração em

dias no 1º

grau

Processos por

habitante

Alemanha 241.000 1.400.000 744.500 192 1/109

Espanha 2.150.000 2.180.000 1.140.000 242 1/41

França 2.280.000 2.260.000 1.800.000 304 1/37

Itália 4.000.000 4.370.000 4.500.000 376 1/13,5

Brasil 28.900.000 28.500.000 72.000.000 - 1/2,8

Fonte: WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a

psicologia podem vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 90.

O autor, após se debruçar sobre este e outros números do Poder Judiciário brasileiro,

concluiu pela existência de uma situação grave a qual denominou tragédia da justiça. Em sua

obra, pretendeu apontar os diversos problemas causadores desta situação e as soluções para

enfrentá-los, com base na criação de regras que internalizem as consequências negativas do uso

da atividade jurisdicional, diminuindo o ajuizamento de novas ações e estimulando resoluções

280 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 131. 281 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 129. 282 CNJ. Justiça em números – 2019. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 151.

Page 122: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

122

alternativas do conflito para, então, ser possível resolver os processos pendentes mais

rapidamente.

A criação dessas regras passa pelo enfrentamento do alto volume de litigância

concentrado em litigantes habituais, custo do processo (gratuidade processual), punição da má

conduta processual e emprego da tecnologia ao processo.

5.4.1 Custo da litigância

Para uma análise ampla das causas da litigância de massa é preciso abordar o custo da

litigância. Não haverá efetiva redução de processos enquanto for tão fácil e barato litigar.

A existência do Poder Judiciário somente se justifica se os custos sociais da atividade

jurisdicional superarem os custos da inexistência de um regime estatal para a solução dos

conflitos. É assim que deve ser encarado o princípio da inafastabilidade da jurisdição283.

Quando o sistema não funciona adequadamente, como sugere o quadro atual brasileiro,

os custos sociais se revelam excessivos e fazem com que (i) o sistema se torne lento e

ineficiente, como uma avenida congestionada por veículos que não saem do lugar; (ii) como o

sistema é subsidiado por tributos, é a sociedade quem suporta os custos, tanto os financeiros

como os decorrentes da percepção de que a “justiça não funciona”, fazendo com que as leis

sejam descumpridas e aumentando os danos e os custos sociais284.

Erik Navarro Wolkart, valendo-se dos conceitos econômicos de externalidades

positivas e negativas, defende que a justiça, enquanto bem comum, gera custos para a sociedade,

sendo esta a principal externalidade negativa. Por outro lado, a existência e utilização da justiça

tem como externalidade positiva diminuir a prática de atos ilícitos, em razão de seu efeito

dissuasório, além da possibilidade de formar precedentes obrigatórios ou vinculantes285 – são

estas as duas principais externalidades positivas286.

A existência e a prevalência das externalidades negativas sobre as positivas levam à

distinção entre processos socialmente desejáveis e indesejáveis e decorre da constatação de que

os benefícios individuais daquele que ajuíza ação e busca o Poder Judiciário não possui relação

283 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 308. 284 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 311. 285 Segundo o autor, “os precedentes, após formados, aumentam a produtividade do Poder Judiciário. Com o tempo, eles têm

de ser atualizados pelo distinguishing para que possam continuar gerando frutos. Eles são, para a justiça, aquilo que máquinas

são para a indústria, ou seja, bens de capital”. 286 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 318.

Page 123: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

123

direta com os benefícios sociais (externalidades positivas) advindos de sua utilização. Assim,

apenas por coincidência ocorre de um processo ser social e individualmente desejável. É

possível, portanto, que milhares de ações socialmente indesejáveis sejam propostas por serem

individualmente benéficas para seus autores, ao passo que ações socialmente desejáveis deixam

de ser propostas, pois seus legitimados não encontram incentivos suficientes287.

A utilização exagerada da máquina judiciária, porém, potencializa as externalidades

negativas, gerando a coletivização exagerada dos custos sociais288, afastando os processos

socialmente desejáveis e atraindo as ações indesejáveis289.

A solução, no caso de processos socialmente indesejados, são (i) elevar as custas

judiciais, para incentivar as partes a buscarem um acordo extrajudicial; (ii) disponibilizar a

tecnologia que favoreça e barateie os custos da transação desse tipo de acordo290.

Para os processos socialmente desejáveis que não são ajuizados, a solução é criar

algum subsídio estatal, capaz de gerar os incentivos individuais necessários ao ajuizamento da

ação291.

A legislação brasileira, porém, não faz qualquer distinção. A justiça é gratuita ou quase

gratuita para todos, de modo que as custas não exercem papel fundamental de evitar o

ajuizamento de ações socialmente indesejáveis292.

Portanto, por qualquer ângulo, o custo para o acesso ao Poder Judiciário é fundamental

para se estabelecer um adequado modelo para enfrentar a litigiosidade de massa. Hoje, no

Brasil, o acesso ao Poder Judiciário é praticamente gratuito. Há ainda a extrema benevolência

do acesso à assistência judiciária. Mesmo quando há recolhimento de custas, o valor suporta

somente 11,61% de todas as despesas judiciais293, de maneira que as externalidades negativas

são coletivizadas e as externalidade positivas, em grande parte, usufruídas tão somente pelo

autor da demanda.

287 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 315. 288 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 311. 289 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 318. 290 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 319. 291 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 319. 292 “É importante repisar nosso parâmetro de análise normativa: o bem-estar social. Como vimos, existem demandas

socialmente desejadas e demandas socialmente indesejadas. Para as primeiras, o subsídio estatal é mais do que justificado.

Para as segundas, tal subsídio significa apenas malversação de recursos que poderiam gerar frutos socialmente preciosos se

investidos em outras prementes necessidades sociais, como saúde e educação.” WOLKART, Erik Navarro. Análise

econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT,

2019, p. 337. 293 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 318.

Page 124: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

124

Erik Navarro Wolkart pretende o estabelecimento de um modelo cooperativo, fundado

no artigo 6º do Código de Processo Civil, no qual partes, advogados e juízes busquem a

resolução do conflito de maneira prioritariamente consensual e extrajudicial, deixando o Poder

Judiciário como verdadeira ultima ratio.

O autor, no entanto, aponta diversos empecilhos e desincentivos à prática cooperativa.

No que diz respeito às custas, um dos entraves é a existência de um teto de custas, que traz

como consequência o fato de que uma mínima chance de vitória faz a demanda valer a pena,

pois a partir de determinado valor o processo judicial para o autor é praticamente gratuito,

transferindo todas as externalidades negativas oriundas do ajuizamento da demanda para a

coletividade294, o que realmente não mais se justifica ante a possibilidade de concessão de

justiça gratuita parcial (artigo 98, § 5º, Código de Processo Civil), permitindo que sejam pagas

custas até a capacidade econômica da parte, sem fixar um limite (em geral baixo) de presunção

absoluta.

Esta previsão incentiva o ajuizamento de demandas, na medida em que reduz o risco

do autor da ação, fazendo com que a análise de custo versus benefício da demanda penda de

forma determinante para o ajuizamento do processo em detrimento de qualquer outra solução

extraprocessual ou consensual.

Outro aspecto relevante que contribui para reduzir a intenção cooperativa do advogado

se revela na existência de um sistema de dupla remuneração, composto por honorários

contratuais e sucumbenciais. Isso permite que o advogado cobre honorários contratuais que

cubram seus custos administrativos, de modo a retirar os riscos de sua atividade e fazer com

que existam incentivos para aconselhar o ajuizamento de ações ainda que a chance de vitória

seja muito reduzida295.

Outrossim, a existência de isenções em favor de todos os entes públicos litigantes

aumenta excessivamente a externalidade negativa decorrente do ajuizamento de demandas

desnecessárias, o que é confirmado ao se verificar que o poder público é o grande litigante do

Poder Judiciário, conforme veremos em tópico próprio.

Ademais, é preciso enfrentar o problema gerado pelo conceito de gratuidade de justiça

e acesso ao Poder Judiciário. A pretexto de gerar um amplo acesso à justiça, criou-se um regime

de farto incentivo ao demandismo, amparado por um processo sem custo e sem risco, no qual

294 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 328. 295 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 332.

Page 125: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

125

a parte só tem a ganhar, guardando para si todos os eventuais bônus do processo e transferindo

para a sociedade todos os ônus.

Nesse sentido a preocupação Andre Vasconcelos Roque, Luiz Dellore, Zulmar Duarte

de Oliveira Jr. e Marcelo Pacheco Machado:

O problema é que a solução adotada pelo legislador ao longo do tempo se mostrou

propensa a estimular o demandismo – ou seja, o ingresso de ações judiciais em que o

autor tem ciência de que não tem razão ou de que poderia resolver o problema em

sede extrajudicial, mas prefere se dirigir ao Poder Judiciário simplesmente porque não

custa nada e tem a possibilidade de até mesmo receber alguma compensação por isso

(por exemplo, indenizações por danos morais, que também estão presentes na maior

parte das demandas perante os Juizados em que se pleiteia dano material). Ainda que

faltem estatísticas para aferir exatamente quais casos poderiam se enquadrar nesta

categoria, trata-se de realidade que não pode ser ignorada, já que estimulada por uma

posição processual sem maiores riscos ou responsabilidades.

Além disso, sob a perspectiva financeiro-orçamentária do Estado, esse sistema de

custeio tende a ser injusto com quem nunca faz uso ou faz pouquíssimo uso da Justiça,

na medida em que obriga todos os cidadãos a, indiretamente, custearem as despesas

com a manutenção dos serviços judiciários296.

O avanço da litigância levou tribunais a criarem centros de inteligência, destinados a

estudar formas de enfrentar a crescente litigiosidade. O Centro Nacional de Inteligência da

Justiça federal é referência no estudo do tema, com relevantes notas técnicas sobre o tema. Em

maio de 2019, por meio da Nota técnica 22/2019297, o tema passou a ser objeto de análise do

mencionado centro nacional.

A justificativa apresentada pelo Centro de inteligência considerou que

Para além da garantia do direito de acesso ao Poder Judiciário, a concessão em grande

quantidade do benefício da gratuidade da justiça produz importantes efeitos sobre a

litigiosidade de massa, e vem configurando, em muitos casos, espécie de convite ao

ajuizamento de demandas sem qualquer necessidade de análise de custo-benefício ao

requerente, que percebe, assim como os advogados, que tentar a sorte na Justiça, ainda

que com demandas temerárias, pode ser um bom negócio, já que os riscos da eventual

litigância infundada são baixos.

Trata-se de riscos cujos ônus são transferidos ao Poder Judiciário e, em última análise,

à própria sociedade, seja em razão dos custos que decorrem da dispensa de pagamento

de despesas processuais, seja em razão da proliferação de ações judiciais, sendo

importante identificar possíveis efeitos concretos que vêm decorrendo da aplicação da

norma, muitas vezes imperceptíveis e não desejados pela lei garantidora do direito à

gratuidade298.

296 ROQUE, Andre Vasconcelos; DELLORE, Luiz; ZULMAR, Duarte de Oliveira Jr.; MACHADO, Marcelo Pacheco.

Acesso à Justiça x demandismo: Repensando a gratuidade nos Juizados. Disponível em: Especiaishttps://www.migalhas.com.br/coluna/tendencias-do-processo-civil/305449/acesso-a-justica-x-demandismo-

repensando-a-gratuidade-nos-juizados-especiais Acesso em: 22 jun. 2020. 297 Ementa: “Gratuidade Judiciária. Critérios de concessão no âmbito da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Impactos orçamentários e sobre a prestação dos serviços judiciários. Proposição de medidas para o aperfeiçoamento da

gestão do instituto. Alternativas de interpretação. Possível afetação do tema para formação de precedente. Custas judiciais. Criação do Fundo Especial da Justiça Federal.” Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/06-junho/cin-avalia-

os-impactos-da-concessao-da-gratuidade-judiciaria-no-ambito-da-justica-federal Acesso em 20 jun. 2020. 298 Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2019/06-junho/cin-avalia-os-impactos-da-concessao-da-gratuidade-

judiciaria-no-ambito-da-justica-federal Acesso em 20 jun. 2020, pp. 2-3.

Page 126: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

126

No mesmo sentido a constatação de Luiz Fux e Bruno Bodart,

A par da sistemática padrão, existe ainda a possibilidade de concessão da gratuidade

de justiça, caso em que fica suspensa a exigibilidade das despesas processuais e dos

honorários sucumbenciais da parte vencida que for beneficiária da justiça gratuita (art.

98, §3º, CPC/2015). Quando as partes são agraciadas a gratuidade de justiça, que, em

alguns Tribunais no Brasil, ocorre em 87% (oitenta e sete por cento) dos casos

(segundo o relatório Justiça em Número 2018 do CNJ), o modelo de custos de

litigância segue basicamente a regra americana, com cada parte arcando com suas

próprias despesas (como os honorários contratuais do advogado, se a parte não for

representada pela Defensoria Pública, e os custos extrapatrimoniais, v.g. a ansiedade

e a angústia) e o Estado custeando o restante. A peculiaridade, no caso da gratuidade,

é que a maior parcela dos custos de litigância é transferida para o Estado, de modo

que as partes assumem despesas individuais reduzidas em caso de uma ação judicial.

No âmbito dos Juizados Especiais cíveis e fazendários, há isenção de custas para as

partes em primeiro grau de jurisdição, hipótese em que também se aplica a regra

americana. Gico Jr. e Arake, fazendo menção a estudo empírico segundo o qual as

ações em que a gratuidade de justiça não foi concedida tiveram sucesso com

frequência 116% maior que aquelas em que ocorreu a concessão do benefício,

concluem: a gratuidade de justiça não tem apenas viabilizado casos em que as

condições financeiras do litigante tornariam proibitivas o ajuizamento de uma ação,

mas também funcionado como fator de estímulo a ações frívolas299.

É preciso estabelecer restrições à gratuidade da Justiça, o que passa pela percepção de

que o Poder Judiciário não é a única e mais adequada porta de acesso à justiça, já que atualmente

o conceito de jurisdição é cada vez mais desatrelado do aparelho estatal300.

O demandismo e comportamento não cooperativo das partes advém do elevado

número de bacharéis (são 100 mil novos por ano) e advogados (mais de um milhão, maior

relação por habitante do mundo)301 e encontra terreno fértil no atual estágio da legislação

brasileira do entendimento dos tribunais superiores. No que diz respeito à gratuidade da justiça,

pode assim ser resumido: (i) a mera declaração de insuficiência de recursos, sem qualquer tipo

de prova, é suficiente para requerer o benefício; (ii) a declaração pode ser feita pelo advogado;

(iii) o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que a declaração falsa de pobreza não

configura crime; (iv) o juiz não tem incentivos para procurar nos autos elementos que infirmem

a declaração; (v) a aplicação da multa prevista no artigo 100 do Código de Processo Civil

depende de má-fé; (vi) a imprecisão do conceito de insuficiência de recursos dificulta a prova

de má-fé302.

Diante disso, o autor propõe: (i) a multa prevista no artigo 100, parágrafo único, do

Código de Processo Civil deve ser direcionada à parte contrária e não ao Estado, de modo a

299 FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil & análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 45 (e-book). 300 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 446-447. 301 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 463. 302 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 459.

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127

gerar incentivos à demonstração da má-fé do requerente; (ii) como qualquer outro caso de

falsidade ideológica a declaração falsa de pobreza deve ser considerada crime; (iii) deve ser

invertida a presunção de pobreza do artigo 99, § 3º, Código de Processo Civil, exigindo-se a

necessidade de prova da insuficiência de recursos, mantendo-se a presunção apenas quando as

circunstâncias da causa indicarem claramente a carência financeira303.

5.4.2 Maiores litigantes

A demanda processual do Poder Judiciário é oriunda, em larga maioria, de processos

ajuizados pelo Poder Público, bancos e instituições financeiras, empresas de telefonia ou

concessionárias de serviço público, número que chegou a representar 90% dos processos no

relatório do Conselho Nacional de Justiça do ano de 2013304.

No âmbito da justiça estadual, a situação não é diferente. Em estudo realizado pelo

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo referente aos 200 maiores litigantes, verificou-se

que na lista havia 156 Municípios, ou seja, 78% dos 200 maiores demandantes de janeiro de

2016 a junho de 2018. Estes Municípios foram responsáveis por 63% do total de processos.

Os bancos e instituições financeiras somaram 22 aparições no rol dos 200 maiores

litigantes, ou seja, representam 11% dos maiores demandantes e 21% do total de processos.

O levantamento feito pela Associação dos Magistrados Brasileiros apontou que 14,8%

do volume total de processos em trâmite no Poder Judiciário de São Paulo foram ajuizados

pelos 100 maiores litigantes305.

Apesar da constatação recorrente em diversos levantamentos realizados no sentido de

que a presença destes litigantes habituais dificulta a prestação jurisdicional, elevando

consideravelmente a coletivização das externalidades negativas da função jurisdicional, nada

foi feito pelo legislador. Pretendeu-se criar novas formas de resolver os processos, em especial

com a implementação do IRDR e um sistema de precedentes vinculantes, mas nenhuma medida

foi tomada para enfrentar os litigantes habituais.

A situação cria a figura dos free riders, ou seja, pessoas ou entidades que passam a

utilizar o bem comum de modo excessivo, levando a um esgotamento dos recursos306.

303 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 464. 304 ABELHA, Marcelo. Manual de direito processual civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016 apud WOLKART, Erik

Navarro. Análise econômica do processo civil: Como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da

justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 40, nota 7. 305 Disponível em: https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2018/05/Pesquisa-AMB-10.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020. 306 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 524.

Page 128: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

128

Considerando que quase 90% do custo da justiça é subsidiado, entes cuja atividade econômica

envolve extensa base de clientes elegem o Poder Judiciário como via prioritária para a

resoluções dos conflitos, em prejuízo a toda população, eis que não pagam nem um centavo a

mais do que o litigante eventual307.

Como solução, bastaria estabelecer um patamar de ações ajuizadas. Superado este

número, a parte passa a ser considerada litigante habitual, adentrando um regime diferenciado

de custas processuais, pagando um valor superior aos demais, que pode variar em função de

faixas de litigância, com custas percentualmente maiores em caso de níveis mais elevados308.

Este seria o primeiro passo para combater o proveito obtido pelos grandes litigantes

na insistente judicialização de todos os problemas e percalços envolvendo a relação negocial,

ainda que se trate de questões simples. É o que se convencionou denominar ilícito lucrativo.

Nesse sentido, de se destacar o projeto de lei de autoria do Deputado Elias Vaz309,

atualmente ainda não numerado, que altera o Código de Processo Civil para estabelecer critérios

para que se considere uma pessoa jurídica ou um grupo econômico como grande litigante

quando a quantidade de processos em que estiver envolvido superar o percentual fixado pelo

Conselho Nacional de Justiça.

Neste caso, enquadrado como grande litigante, a pessoa jurídica ficará sujeita, em caso

de sentença condenatória desfavorável, à aplicação de uma penalidade de 20% sobre o montante

líquido da condenação, valor que reverterá ao Tribunal de Justiça que processou a demanda e

será destinado ao aperfeiçoamento da estrutura e do quadro funcional.

O projeto prevê também, visando privilegiar a cooperação e a solução consensual, a

isenção da penalidade em caso de acordo proposto na audiência de conciliação ou até o final do

prazo para contestação.

Outrossim, prevê a incidência de penalidade também em caso de rejeição do recurso

interposto em segunda instância e/ou em tribunal superior.

Por fim, fica expressa a natureza cumulativa da penalidade com o valor indenizatório

devido à parte lesada e com os honorários sucumbenciais.

Além do mencionado projeto de lei, que sequer está oficialmente em tramitação,

nenhuma medida concreta vem sendo tomada. O Código de Processo Civil/2015 não trouxe

nenhum dispositivo específico destinado aos litigantes habituais da Justiça brasileira. O único

307 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 525. 308 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 526. 309 Disponível em: https://www.rotajuridica.com.br/projeto-estabelece-multa-para-grandes-empresas-que-sobrecarregam-o-

judiciario/. Acesso em: 29 mar. 2020.

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129

remédio proposto é o sistema de precedentes, que não diferencia aquele que reiteradamente tira

proveito econômico da discussão e postergação da solução da controvérsia, daqueles que apenas

de forma eventual tiveram um problema jurídico submetido ao Poder Judiciário.

As execuções fiscais que assolam o Poder Judiciário até hoje continuam submetidas

ao regime de execução fiscal previsto na Lei n. 6.830/1980. Vale lembrar que o relatório Justiça

em Números, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018, aponta que existiam em

2017 cerca de 80 milhões de processos de execução fiscal pendentes de baixa no país –

representavam 74% desse estoque, correspondendo a aproximadamente 31,4 milhões de

processos, ou 39% dos casos pendentes. Vale lembrar que o executivo fiscal possui taxa de

congestionamento de 90%, ou seja, a cada 100 execuções fiscais distribuídas em 2018, apenas

10 foram baixadas310.

Há propostas legislativas em trâmite no sentido de desjudicializar a cobrança do

crédito tributário, ou seja, prever que a execução fiscal tramite prioritariamente em âmbito

extrajudicial. Somente de forma excepcional, caso alguma relevante questão não seja resolvida

nesta seara, então o Poder Judiciário será acionado.

Nesse sentido, o Projeto de Lei n. 4.257/2019 do Senador Antônio Anastasia altera a

Lei das Execuções Fiscais (Lei n. 6.830/1980) para possibilitar o uso da negociação fora do

campo judicial como alternativa para solucionar conflitos sobre débitos inscritos em dívida

ativa, prevendo o uso da arbitragem, caso a execução esteja garantida por depósito em dinheiro,

fiança bancária ou seguro garantia.

O projeto também regulamenta a execução fiscal administrativa para cobrança de

dívidas relacionadas a impostos como IPTU e IPVA, contribuições de melhoria e taxas,

permitindo que a Fazenda Pública formalize administrativamente a execução da dívida

mediante notificação do executado e, não satisfeito o crédito tributário, possa requerer

diretamente ao Cartório de Registro de Imóveis ou ao Departamento de Trânsito a averbação

da penhora.

Outro incentivo à litigância do Poder Público é o atual modelo de dupla remuneração

sem risco dos advogados públicos, que consiste na percepção de alto salário fixo associado a

um regime de remuneração variável oriunda de honorários sucumbenciais. No âmbito federal,

a situação adveio da edição da Lei n. 13.327/2016. No Estado de São Paulo, a verba está prevista

310 CNJ. Justiça em números – 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-

content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 29 mar. 2020, p. 131.

Page 130: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

130

na Lei Complementar n. 93/1974, o que gerou o pagamento de 1,7 bilhão de reais aos

Procuradores do Estado entre os anos de 2011 e 2016311.

O advogado público, portanto, valendo-se de toda a estrutura estatal, sem ter nenhum

custo, possui todos os benefícios da litigância, sem qualquer risco em caso de derrota. Assim,

a remuneração variável se revela uma externalidade positiva da litigância que será inteiramente

absorvida pelo advogado público, ao passo que eventual externalidade negativa oriunda de

derrota na demanda ajuizada é internalizada integralmente pelo ente público312. Dessa forma, o

valor esperado pelo ajuizamento de uma ação temerária ou na defesa intransigente de direito

improvável será sempre positivo, ainda que mínima a chance de vitória313, incentivando assim

a litigância e o demandismo no âmbito dos entes públicos.

A solução proposta por Erik Navarro Wolkart é bastante simples: alterar o § 19 do

artigo 85 do Código de Processo Civil para que a remuneração variável incida sobre a diferença

entre honorários recebidos e honorários pagos pelo ente público representado em determinado

período314, o que traria maior equilíbrio e facilitaria o comportamento cooperativo.

5.4.3 Litigância de má-fé e fraudulenta

Outro aspecto do processo civil que precisa ser repensado visando a obtenção de um

verdadeiro comportamento cooperativo dos atores processuais, ou seja, comportamento apto a

proporcionar o proferimento de decisões justas, efetivas e em tempo razoável315, passa pela

efetiva e adequada punição da litigância de má-fé e do abuso do direito de litigar, condutas que

aumentam os custos sociais do processo.

Atualmente, os benefícios gerados pela litigância de má-fé são superiores à punição

esperada para essas condutas316, pois a parte e seu advogado podem, por exemplo, contraditar

fatos que sabem serem verdadeiros gerando ao autor um ônus probatório, dilatando o tempo do

processo e aumentando a chance de erro judicial317. É o que costumeiramente ocorre com as

311 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-22/fux-nega-honorarios-acima-teto-procuradores-sp. Acesso em: 29

mar. 2020. 312 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 475. 313 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 475. 314 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 483. 315 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 544-545. 316 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 552. 317 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 549.

Page 131: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

131

centenas de milhares de demandas alegando inexistência de relação jurídica e cobrança

indevida.

Em grande parte, estas alegações se revelam falsas, mas geram ao réu um ônus

probatório do qual nem sempre consegue se desvencilhar adequadamente, gerando inúmeros

erros judiciais, potencializando o demandismo em razão da internalização, pelo autor e seu

advogado, das externalidades positivas do processo e coletivizando as externalidades negativas,

eis que quase sempre litigam amparados pela justiça gratuita.

Outrossim, a multa por ato atentatório à Justiça, prevista nos artigos 77, § 2º, e 774,

parágrafo único, do Código de Processo Civil, se revela ineficaz, pois é destinada ao Estado, de

modo que sua cobrança é feita por execução fiscal. Todavia, lei federal e leis estaduais

estipulam patamar mínimo em que se permite o não ajuizamento da execução fiscal.

No Estado de São Paulo, por exemplo, conforme a Lei n. 16.498/2017, dispensa-se o

ajuizamento de execuções fiscais que não superem o valor de 1.200 Unidades Fiscais do Estado

de São Paulo (UFESPs). Em 2020, o valor representa R$ 33.132,00318.

Isso significa que grande parte das multas por ato atentatório à dignidade da justiça

simplesmente sequer serão cobradas judicialmente, o que reduz sensivelmente o caráter

dissuasório da reprimenda.

Não bastasse, a penalidade é imposta à parte e não ao advogado, tendo em vista a

existência de regra protetiva no § 6º do mesmo artigo 77 do Código de Processo Civil: “Aos

advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público

não se aplica o disposto nos §§ 2º a 5º, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser

apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará”.

Isso representa um grande desincentivo ao comportamento cooperativo do advogado,

eis que ao litigar de má-fé o causídico aumenta suas chances de obter êxito na demanda sem

correr qualquer risco, pois eventuais punições não serão suportadas por ele319.

No mesmo sentido, apontando as diferenças entre o modelo brasileiro e o americano

de sanção processual, pontuam Luiz Fux e Bruno Bodart que

Uma diferença essencial entre os sistemas brasileiro e dos Estados Unidos é que o

primeiro não admite a imposição da sanção por ato atentatório à dignidade da justiça

diretamente, pelo juiz ou tribunal, aos “advogados públicos ou privados e aos

membros da Defensoria Pública e do Ministério Público”, cuja responsabilidade

disciplinar deve ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria (art. 77,

§6º, do CPC/2015). Em acréscimo, a multa por litigância de má-fé somente pode ser

imposta ao “autor, réu ou interveniente”, mas não aos respectivos advogados (artigos

318 Cada UFESP corresponde a R$ 27,61. Em 2020, ver: https://portal.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Indices.aspx. Acesso em: 29

mar. 2020. 319 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 565.

Page 132: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

132

79 a 81 do CPC/2015). Ao contrário, nos EUA, a Corte pode impor uma sanção

apropriada a qualquer advogado, escritório de advocacia ou parte que violar a regra

[de boa-fé e diligência] ou for responsável pela sua violação. A limitação do sistema

brasileiro manieta a eficácia do sistema sancionatório, pois geralmente a parte apenas

segue a recomendação de seu advogado no que diz respeito às decisões relativas ao

processo320.

Há, contudo, movimento jurisprudencial no sentido de permitir a condenação do

advogado em situações de manifesta advocacia predatória:

“No que tange a condenação do patrono do autor à pena de litigância de má-fé, em

consulta ao site deste Tribunal de Justiça, verifico que há mais de mil ações ajuizadas

pelo Dr. Cyrilo Luciano Gomes, sempre com o mesmo objeto de ver declarada a

inexigibilidade do débito de dívida oriunda de negativação indevida cumulada com

pedido de indenização por danos morais. É função do Magistrado fiscalizar os atos

praticados por todos aqueles que integram a relação processual, notadamente o

advogado, personagem essencial à justiça, nos termos do art. 77 do Código de

Processo Civil. No caso concreto há severos indícios de que o patrono do autor usa a

máquina judiciária para a prática de advocacia predatória e uso abusivo do Poder

Judiciário, com a distribuição de várias ações com idêntico teor, tais condutas devem

ser combatidas. Por isso, a manutenção da condenação do patrono do autor ao

pagamento de multa pela litigância de má-fé arbitrada em 1% do valor da causa é a

medida que se impõe, bem como a expedição de ofício ao Tribunal de Ética da Ordem

dos Advogados do Brasil Seção São Paulo. Pelo meu voto, nego provimento ao

recurso” (TJSP; Rel. Des. LUCILA TOLEDO; j.30/05/2019; apelação nº 1084039-

45.2016.8.26.0100).

“Com relação à extensão da reprimenda para o advogado, é verdade que, em tese, a

conduta processual do patrono da parte é regulada pelos artigos 77 e 32 do Estatuto

da Advocacia (Lei 8.906/94), de maneira que, numa primeira análise, os danos

causados pelo advogado, por dolo ou culpa grave, haveriam de ser apurados apenas

em ação própria”. Entretanto, “(...) a singela condenação da parte, no caso, não se

mostra suficiente. A conduta irregular imputada ao patrono igualmente se torna

manifesta, certo que a expedição de ofício para órgão de classe não impede imposição

de sanção processual. (...) Não há necessidade de prova do prejuízo para estabelecer

a sanção vide, a propósito, o que dispõe o artigo 81, § 3º, do CPC" (TJSP; Rel. Des.

VICENTINI BARROSO; j.16/08/2018; apelação nº 1004687-10.2017.8.26.0292)321.

É, portanto, imprescindível uma efetiva e severa punição para os casos de uso abusivo

da máquina judiciária decorrente de demandas frívolas e atuação predatória por parte de

advogados que buscam se locupletar indevidamente com demandas infundadas, prejudicando a

análise de demandas socialmente desejáveis.

5.4.4 Inteligência artificial

A tecnologia, em constante evolução, tem trazido importantes avanços para a

humanidade em diversas áreas. No direito já há notícia de seu uso, com ferramentas que

320 FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil & análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 96 (e-book). 321 Ainda no mesmo sentido: TJSP; Rel. Des. SOARES LEVADA; j.26/08/2019; apelação 1000312-32.2019.8.26.0506; TJSP; Rel. Des. SÁ DUARTE; j.26/09/2019; apelação 1074271-27.2018.8.26.0100; TJSP; Rel. Des. KIOITSI CHICUTA;

j.15/08/2017; apelação 1015078-18.2014.8.26.0037.

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133

permitem a elaboração de contratos, sistemas e aplicativos destinados a gerenciar processos,

dentre outros.

Erik Navarro Wolkart, citando Richard Susskind, enumera treze tecnologias

disponíveis para aplicação no direito: automação documental, conexão constante via internet,

mercados legais eletrônicos (medidores online de reputação, comparativos de preços e leilões

de serviços), ensino online, consultoria legal online, plataformas jurídicas abertas, comunidades

online colaborativas fechadas, automatização de trabalhos repetitivos e de projetos, embedded

legal knowledge, resolução online de conflitos (Online Dispute Resolutions – ODR), análise

automatizada de documentos, previsão de resultados de processos e respostas automáticas a

dúvidas em linguagem natural322.

No Poder Judiciário, porém, ainda é tímida a utilização da inteligência artificial. Os

avanços tecnológicos empregados, notadamente o processo eletrônico, permitem apenas que se

façam digitalmente as mesmas tarefas que antes eram feitas fisicamente. Importante perceber

que isto tem um efeito inicial negativo, pois, ao facilitar o ajuizamento de processos e a prática

de atos processuais, há um natural incentivo à litigância advinda da facilidade do amplo acesso

ao Poder Judiciário323.

Em um segundo momento, porém, o desenvolvimento de instrumentos de inteligência

artificial proporcionará sensível contribuição para o enfrentamento da litigiosidade de massa e

repetitiva, notadamente porque a marcha processual é dividida em diversas atividades menores,

facilmente automatizáveis.

Ainda que de forma incipiente, já há notícia da utilização de inteligência artificial na

prática de atos processuais nas Varas de Execução Fiscal da Comarca de Guarulhos em São

Paulo, permitindo-se a realização de diversos atos processuais de forma automatizada, como

cadastro e digitalização de documentos, de petições intermediárias, alocação de processos,

carregamento de processos na fila do fluxo de trabalho, análise de pedido de citação por edital

e conferência de texto324. No caso da Comarca de Guarulhos, a medida resultou na redução de

200 mil execuções fiscais, o que motivou a ampliação do projeto para outras unidades do

Tribunal de Justiça de São Paulo.

322 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 723. 323 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 725. 324 Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=58232. Acesso em: 29 mar. 2020; Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/307184/agora-e-que-sao-eles-robos-automatizam-movimentacoes-processuais-em-sp.

Acesso em: 29 mar. 2020.

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134

O Tribunal de Justiça de São Paulo segue avançando na implantação de ferramentas

de inteligência artificial e recentemente lançou o sistema “LEIA – precedentes” que consiste no

emprego de inteligência artificial para a seleção automática de processos que podem estar

sujeito à precedentes de tribunais superiores, o que permite a rápida identificação do processo

e do tema a ele vinculado, acelerando a tramitação processual e a prestação jurisdicional325.

Outro importante instrumento advindo da tecnologia e da inteligência artificial são as

plataformas digitais de autocomposição ou online alternative dispute resolution – OADR, que

permitem a resolução automática e extrajudicial do conflito, sem intervenção humana.

O exemplo de sucesso mencionado pela doutrina é o sistema de resolução de conflitos

do ebay, desenvolvido por Colin Rule, e que permite resolver mais de 60 milhões de conflitos

por ano com uma taxa de acordo de 90%, sem qualquer intervenção humana326.

O sistema funciona sugerindo às partes envolvidas formas de resolução do conflito.

Por gerir milhões de conflitos, o sistema passa a absorver todos os dados das disputas (big

data327), a perceber e, consequentemente, aprender (machine learning) as formas como os

conflitos foram solucionados.

Outro aspecto essencial para o sucesso do modelo de resolução de disputa do ebay é a

efetividade advinda da utilização do desconto diretamente no cartão de crédito do usuário328.

Com base no sistema idealizado para o ebay, Colin Rule desenvolveu um sistema

denominado Modria (modular online dispute resolution implementation assistance), que pode

ser alugado por qualquer empresa ou corte judicial329.

A adoção deste sistema por cortes judiciais ou a implementação obrigatória no âmbito

das grandes empresas litigantes implicaria sensível redução no número de demandas,

permitindo que o Poder Judiciário seja reservado para conflitos que realmente demandem sua

intervenção, o que implicaria em maior celeridade e efetividade da atividade jurisdicional e

racionalização dos recursos públicos. Neste modelo, o Poder Judiciário seria a ultima ratio para

a resolução do conflito.

325 Disponível em: https://www.sajdigital.com/lab-da-justica/leia-precedentes-inteligencia-artificial/ Acesso em 21 jun. 2020. 326 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 728. 327 “Note-se que, quando a tecnologia entra no cenário, o alto volume de disputas deixa de ser uma tragédia e passa a ser um

ativo do sistema. É que o subproduto dessas disputas é a imensa quantidade de informação que treinará o algoritmo para

buscar os melhores padrões de solução para o problema”. WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil:

como a economia, o direito e a psicologia podem vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 730. 328 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 729. 329 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 730.

Page 135: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

135

A imposição obrigatória da ODR como condição para acesso ao Poder Judiciário

poderia inclusive redundar na alteração da estrutura das condições da ação ou dos pressupostos

processuais330.

Outrossim, a tecnologia também pode ser empregada não apenas do ponto de vista

prático para reduzir o estoque de processos e reduzir a litigância, mas também para ampliar o

acesso à justiça (e não ao Poder Judiciário) sob dois enfoques distintos: ao permitir um melhor

esclarecimento ao cidadão e ao proporcionar uma melhor aplicação da lei.

A tecnologia pode proporcionar melhor esclarecimento ao cidadão na medida em que

serviços eletrônicos, fundados em algoritmos sofisticados, podem fornecer consultoria legal

online com base em um questionário simples, orientando o cidadão sobre seu direito e como

resolver o seu problema, evitando que o conflito se transforme em processo e ao mesmo tempo

educando o cidadão sobre seus direitos. Alguns sites permitem inclusive a elaboração de

contratos ou oferecem a solução de problemas sucessórios mais simples331.

Além disso, outro enfoque bastante interessante do uso da tecnologia é proporcionar

melhor aplicação da lei, prevenindo o surgimento do conflito ou da lesão332, o que ocorre com

uso dos denominados embedded legal knowledge, associado aos smart contracts e à internet

das coisas.

Com a utilização do embedded legal knowledge pretende-se que os produtos sejam

fabricados e utilizados visando evitar o descumprimento da lei. O exemplo dado por Richard

Susskind, citado por Erik Navarro Wolkart, é o do automóvel que, ao detectar que o condutor

ingeriu bebida alcoólica, não dá partida, evitando a lesão e o descumprimento da lei333.

O embedded legal knowledge pode ainda ser potencializado quando conjugado à

internet das coisas e aos smart contracts. A internet das coisas nada mais é do que a premissa

de que todos os nossos equipamentos e ferramentas do dia a dia estejam permanentemente

conectados à internet334. Os smart contracts, por sua vez, adotando como ponto de partida a

internet das coisas, é um meio alternativo para formar relações jurídicas. O contrato em papel

é substituído por um acordo formalizado em código computacional gravado em tecnologia

330 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 739. 331 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 742-744. 332 SUSSKIND, Richard. Tomorrow lawyers: an introduction to your future. London: Oxford University, 2017, p. 93 –

posição 1245-3257 (e-book). 333 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 745. 334 GREENGARD, Samuel. The internet of things. Cambridge, London: The MIT Press essential Knowledge Series, 2015,

posição 64-130 (e-book).

Page 136: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

136

blockchain. Tem por características principais a impossibilidade de fraude em razão do uso do

blockchain e, principalmente, a capacidade de autoexecução do algoritmo e do acordo335.

Assim, formalizado o smart contract permite-se programar o algoritmo para que,

verificada determinada condição, como o pagamento em data específica, o contrato seja

automaticamente executado, impedindo, por exemplo, a parte em mora de usufruir do bem,

como no caso do veículo adquirido por financiamento, que simplesmente não ligará enquanto

não purgada a mora ou ainda do apartamento locado que não destravará a fechadura eletrônica

caso o locatário esteja em mora no pagamento do aluguel. Evita-se, assim, o descumprimento

da lei e a necessidade de tutela executiva prestada pelo Poder Judiciário336.

Por fim, outras interações entre a inteligência artificial e o direito podem impactar

positivamente o Poder Judiciário, o enfrentamento da litigiosidade de massa e o combate à

litigância de má-fé.

Atualmente existem sistemas que recolhem informações (big data) e as processam

através de machine learning, ou seja, classificando-as e agrupando-as de modo a permitir

conclusões como, por exemplo, antecipar a possibilidade de sucesso de determinado processo,

ensejando que o processo sequer seja ajuizado ou aumentando as chances de acordo. No Brasil,

esta análise é denominada jurimetria337.

A mesma técnica pode ser utilizada para identificar a litigância predatória ou de má-

fé de advogados e grandes litigantes, permitindo-se inclusive o cruzamento de informações e a

elaboração de relatórios sobre o comportamento desviado e contrário ao comportamento

cooperativo exigido no processo338. Esta pode ser uma importante ferramenta para o

enfrentamento dos grandes litigantes e da litigância fraudulenta.

Há ainda uma outra aplicação da inteligência artificial no direito, mencionada por

Richard Susskind, decorrente da affective computing, ou seja, a capacidade de sistemas de

inteligência artificial identificarem emoções a partir de expressões faciais dos usuários339.,

funcionando quase como detectores de mentiras e permitindo coibir condutas de má-fé no

processo

335 FINCH, Victor. Smart contracts: the essentual quick & easy blueprint to understand smart contracts and be ahead

of competition. Get your smart edge now! Auva Press, 2017, pp. 3-7 (e-book).. 336 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, pp. 746-747. 337 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 749. 338 WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil: como a economia, o direito e a psicologia podem

vencer a tragédia da Justiça. São Paulo: RT, 2019, p. 750. 339 SUSSKIND, Richard. Tomorrow lawyers: an introduction to your future. London: Oxford University, 2017, p. 186,

posição 2324-3257 (e-book).

Page 137: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo OLIVIER

137

6 CONCLUSÃO

A evolução do direito, das relações sociais, econômicas e a globalização alterou a forma

de interação entre os seres humanos, trazendo não somente novas formas de contratos, mas

também novos direitos. Com isso, massificaram-se as interações entre as pessoas o que,

associado a um amplo e quase irrestrito acesso ao Poder Judiciário, culminou em um elevado

aumento da litigiosidade individual e coletiva.

O Código de Processo Civil de 1973 tinha por escopo a resolução do litígio individual,

particular. Ele não previa instrumentos para enfrentar relações massificadas e repetitivas ou

para tutelar direitos supraindividuais. Havia regra proibitiva da tutela de direito alheio (artigo

6º) e o regime limitado de extensão subjetiva da coisa julgada (artigo 472).

Em razão disso, a doutrina, influenciada pelos autores italianos e seus congressos,

clamava pela superação da visão privatista e individualista do Código de Processo Civil e a

elaboração de leis que visassem a tutela dos direitos supraindividuais, até então apenas previstos

na Lei de Ação Popular (Lei n. 4.717/1965) que conferia legitimidade a qualquer particular para

buscar a anulação de ato lesivo ao patrimônio público. Seu rol foi posteriormente alargado em

1977 para também abranger atos lesivos a bens e direitos de valor econômico, artístico, histórico

ou turístico e, em 1988, com a Constituição Federal que incluiu a moralidade administrativa e

o meio ambiente.

Posteriormente, em 1985, foi editada a Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985),

primeiro diploma legislativo a positivar as expressões direito difuso e direito coletivo, já

bastante mencionadas pela doutrina, prevendo ainda o manejo de uma ação civil pública para a

tutela de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Estes direitos não foram conceituados

no diploma legislativo, mas representaram o reconhecimento pelo legislador desta especial

categoria de direito material, nascida da superação entre interesse público e interesse privado.

Desde a edição deste diploma, porém, já era clara a preocupação dos governantes

com ação coletiva, reveladas pelo veto à expressão “qualquer outro interesse difuso” contida

no artigo 1º, IV, em sua redação original, e pela posterior edição de medidas provisórias com a

nítida pretensão de limitar o uso do novo instrumento processual como no caso da limitação

temática (artigo 1º, parágrafo único) ou a limitação territorial (Lei n. 9.494/1997, artigo 16).

Estas limitações, no entanto, foram posteriormente relativizadas pela jurisprudência

que passou a desconsiderar a pretendida limitação territorial do artigo 16 da Lei de Ação Civil

Pública e pelo recente entendimento do Supremo Tribunal Federal permitindo a tutela de direito

relativo ao FGTS por meio de ação civil pública (RE 643.978, Pleno, 09-10-2019).

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138

A Constituição Federal de 1988 também foi um importante marco para a tutela

processual coletiva ao alargar as hipóteses de cabimento da ação popular, além de conferir

status constitucional à ação civil pública e à legitimidade do Ministério Público, prever rol

aberto de direitos supraindividuais passíveis de tutela por meio de ação civil pública, permitir

a impetração de mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX) e elevar a defesa do

consumidor à fundamento e princípio geral da atividade econômica.

Em razão de determinação constitucional contida no artigo 48 do ADCT e de

orientações contidas na Resolução n. 39/248, de 1985 da ONU, editou-se um Código de Defesa

do Consumidor, em 1990, com forte influência do Código de Defesa do Consumidor francês.

O Código de Defesa do Consumidor inaugurou o conceito de microssistema

jurídico ao prever a perfeita interação entre as regras do Código de Defesa do Consumidor e da

Lei de Ação Civil Pública, considerando a remissão recíproca contida nos artigos 90 do Código

de Defesa do Consumidor e 21 da Lei. Definiu, ainda, cada categoria de direito supraindividual,

inclusive os direitos individuais homogêneos, além de diversas inovações para a tutela coletiva,

como a isenção do pagamento de custas e honorários sucumbenciais, salvo em caso de má-fé,

possibilidade de celebração de compromisso de ajustamento de conduta com eficácia de título

extrajudicial, legitimidade do Ministério Público para executar sentença condenatória em caso

de inércia de outros legitimados e regime especial de formação de coisa julgada, dentre outras.

Assim, o microssistema de tutela coletiva é resultado da evolução dos trabalhos

doutrinários que conduziram à superação até então existente entre direito individual e direito

coletivo, permitindo que a categoria também fosse tutelada por um amplo rol de diplomas legais

como a Lei de Ação Civil Pública, a Lei da Ação Popular, o Código de Defesa do Consumidor,

a Constituição Federal de 1988 e a Lei do Mandado de Segurança Coletivo.

Do microssistema de tutela coletiva defluem três características essenciais do

processo coletivo que permitiram superar a visão privatista do processo: o conceito e a definição

de novas categorias de direitos, um rol de legitimados restrito e diferenciado e um regime

especial de coisa julgada.

Quanto à definição destas novas categorias de direitos, coube ao Código de Defesa

do Consumidor definir cada um deles (artigo 81). Visando afastar qualquer interpretação ligada

à uma visão privatista do direito, optou-se pela inclusão da expressão “interesses”, de modo a

restringir a possibilidade de interpretação restritiva em razão da necessidade de um direito estar

sempre vinculado a titular determinado ou determinável.

Com a nova categoria dos direitos individuais homogêneos trazida pelo Código de

Defesa do Consumidor, a doutrina passou a separar os direitos supraindividuais em duas

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139

categorias: de um lado, os direitos difusos e coletivos, naturalmente coletivos, cujas regras

visam à tutela de direitos coletivos; e, de outro, os direitos individuais homogêneos, direitos

acidentalmente coletivos, cujas regras, processuais e materiais, visam à tutela coletiva de

direitos.

Essa diferenciação tem importantes reflexos processuais. Quanto à legitimidade, a

definição da categoria de direito supraindividual poderá afastar a legitimidade para atuação da

Defensoria Pública ou do Ministério Público. Quanto à coisa julgada, a formação e a extensão

subjetiva se dá de maneira distinta a depender da categoria de direito envolvido. A distinção

também afeta a fase de liquidação e execução do julgado, pois, segundo o artigo 95 do Código

de Defesa do Consumidor, em se tratando de direitos individuais homogêneos, a condenação

será genérica, tão somente fixando a responsabilidade pela reparação dos danos. É também com

fundamento na distinção entre mencionadas categorias de direitos que o atual entendimento do

Superior Tribunal de Justiça é no sentido de limitar a aplicação analógica do artigo 19 da Lei

da Ação Popular às ações coletivas ajuizadas em defesa de direitos individuais homogêneos.

Todavia, somente será possível verificar o direito efetivamente tutelado no momento

da formulação da pretensão em juízo, de maneira que é inviável a adoção de um critério

“estático” previsto em lei dissociado dos danos causados, das pessoas envolvidas e da pretensão

reparatória que destas situações pode ser formulada. Isto ocorre, especialmente, porque

normalmente é necessário adotar expedientes preliminares para confirmar os danos do ato ilícito

praticado, o que em geral ocorre no âmbito de um inquérito civil.

Em razão desta dificuldade e dos distintos efeitos das normas materiais e processuais

a depender da categoria de direito supraindividual envolvido, a doutrina tem sustentado uma

nova classificação para os direitos coletivos lato sensu. Neste trabalho trouxemos a doutrina de

Edilson Vitorelli, que classificou os direitos transindividuais segundo a extensão ou impacto do

dano causado, em razão do equívoco de se considerar o direito coletivo lato sensu como

necessariamente indivisível; além disso, entende que não há utilidade em discutir a titularidade

destes direitos enquanto não houver violação.

O autor, portanto, adota como critério para definir e distinguir estes direitos a

conflituosidade e a complexidade envolvidas quando verificada sua violação. A complexidade

diz respeito às diversas formas de tutela de um direito lesado ou ameaçado de lesão. Já a

conflituosidade consiste na uniformidade entre as posições dos atingidos pelo dano. Quanto

mais variada for a forma como os indivíduos foram atingidos pela lesão ou quanto maior for o

impacto sofrido, maior será a conflituosidade entre eles.

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Com base nestas premissas, o autor define os direitos ou litígios transindividuais em

globais, locais e irradiados. Os litígios transindividuais globais ocorrem quando a lesão ou

ameaça de lesão não atinge particularmente a um indivíduo. É baixo o grau de conflituosidade,

eis que é baixo o interesse pessoal no conflito. Os direitos ou litígios transindividuais locais

ocorrem no contexto de violações que atinjam, especificamente, pessoas que integram uma

sociedade altamente coesa, unida por laços identitários de solidariedade social. Por fim, os

direitos ou litígios de transindividuais irradiados se configuram quando lesão ou ameaça de

lesão atinge diversas pessoas que não compõem uma comunidade, não compartilham a mesma

perspectiva social, de modo que a lesão os atinge de maneira desigual e variável, elevando o

grau de conflituosidade.

O segundo elemento diferenciador do processo coletivo é a legitimidade restrita e

especial prevista em rol taxativo na lei. O legislador brasileiro optou por um modelo inédito,

misto de sistemas europeu e americano, composto por entes públicos e associações civis,

resguardando papel de destaque ao Ministério Público, que participa obrigatoriamente de todos

os processos, ainda que na condição de fiscal da ordem jurídica.

A legitimidade foi tema de bastante destaque nos trabalhos doutrinários nas últimas

décadas. Da mesma forma, é grande a incidência do tema nos tribunais, em especial no que diz

respeito à extensão da legitimidade conferida ao Ministério Público e à Defensoria na tutela de

direitos individuais homogêneos. Atualmente, prevalece a orientação no sentido de se conferir

legitimidade ao Ministério Público sempre que houver interesse social no direito invocado (o

que se verifica até mesmo em se tratando de direitos do consumidor, conforme Súmula 610 do

Superior Tribunal de Justiça) ou quando se tratar de direito indisponível, ainda que em benefício

de uma única pessoa. Já a Defensoria Pública, segundo entendimento do Supremo Tribunal

Federal, tem legitimidade para agir em favor de direitos individuais homogêneos mesmo que

os titulares não sejam carentes de recursos financeiros, interpretando-se a expressão

“necessitados” constante do texto constitucional em sentido amplo, de modo a abranger os

carentes de recursos financeiros e os necessitados do ponto de vista organizacional ou

“hipervulneráveis”, como em certos casos envolvendo lides de consumo.

Também no sentido ampliativo da legitimidade, o Superior Tribunal de Justiça admitiu

a legitimidade de um Munícipio para manejar ação coletiva para buscar impedir instituição

financeira de cobrar tarifas pela renovação do cadastro de servidores municipais (REsp

1.509.586/SC).

Verifica-se, portanto, que a tendência da jurisprudência é ampliar as hipóteses de

legitimidade, conferindo interpretação ampliativa às situações que justificam a atuação de cada

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legitimado, o que garante maior participação social no processo, oferecendo uma realidade mais

pluralista e aberta ao acesso à justiça. Diante disso, há na doutrina propostas no sentido de

alargar ainda mais o rol de legitimados, permitindo que qualquer pessoa interessada possa

manejar a ação coletiva, como ocorreu nas class actions for damages do direito norte-

americano.

Nesse caso, haveria uma fase específica ao longo do iter processual denominada

certificação, ou seja, de verificação de que o autor da demanda possui representatividade

adequada para agir em nome dos demais lesados. Passar-se-ia, portanto, de um modelo de

legitimidade ope legis para um modelo de legitimidade ope judicis, no qual caberia ao

magistrado verificar em cada caso concreto a legitimidade do autor da ação, permitindo a

superação de um dos temas que mais impedem a expansão da efetividade da tutela coletiva.

O terceiro aspecto diferenciador do processo coletivo é a coisa julgada, que também

demandou revisão ante a limitação do processo individual, exigindo-se a superação da extensão

subjetiva limitada às partes do processo. O Código de Defesa do Consumidor passou a prever

a extensão ultra partes, para os direitos coletivos, e erga omnes, para os direitos individuais

homogêneos e difusos. O processo coletivo também demandou a evolução do modo de

produção da coisa julgada, passando de um modelo pro et contra do processo individual, para

um modelo secundum eventum litis, no qual só ocorre a formação de coisa julgada se procedente

o pedido, e secundum eventum probationis, no qual só há coisa julgada quando houver

esgotamento das provas, permitindo-se nova demanda caso a improcedência decorra de

insuficiência probatória.

Para parcela da doutrina, porém, um dos entraves do processo coletivo é justamente o

modelo adotado para formar a coisa julgada no que diz respeito aos direitos individuais

homogêneos. Segundo o Código de Defesa do Consumidor, a improcedência de ação civil

coletiva que vise tutelar direitos individuais homogêneos não faz coisa julgada, permitindo que

milhares de processos individuais rediscutam o tema.

Assim, a ação coletiva acaba frustrando seu propósito de criar um ambiente de

segurança jurídica e isonomia, permitindo que ocorram decisões contraditórias, além de não

evitar a propagação de demandas.

Outro aspecto do processo coletivo que também pode justificar a subutilização dos

instrumentos de tutela coletiva é a relação entre as demandas coletivas e as individuais

decorrente da regra do artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor segundo a qual o

aproveitamento in utilibus da coisa julgada depende da suspensão da ação individual no prazo

de 30 dias a contar da ciência do ajuizamento da ação coletiva. No sistema brasileiro, portanto,

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não há suspensão automática (embora haja precedente do Superior Tribunal de Justiça neste

sentido) ou litispendência entre as demandas.

A opção, porém, está dissociada de outros sistemas. Isso porque nos demais países há

dois modelos distintos: o de inclusão (opt-in), no qual os interessados deverão requerer o seu

ingresso até determinado momento; e o de exclusão (opt-out), mediante o qual devem os

membros ausentes solicitar o desacoplamento do litígio coletivo, no prazo fixado pelo juiz. Ao

não optar por nenhum deles o legislador acabou por desprestigiar a tutela coletiva, pois

novamente não tem o condão de garantir uma solução justa, isonômica e que reduza a

multiplicação de processos, eis que permite a convivência da tutela individual com a coletiva.

E foi justamente em razão da baixa efetividade e subutilização da tutela coletiva que o

legislador brasileiro, no Código de Processo Civil/2015, trouxe como grande novidade um

sistema de precedentes vinculantes destinado a permitir o tratamento em massa das demandas

repetitivas. O regime pretendido pelo legislador, porém, demanda interpretação conforme a

Constituição sob pena de ser tido por inconstitucional, pois a interpretação segundo a qual os

precedentes devem ser seguidos e aplicados de maneira silogística é evidentemente

inconstitucional. Não apenas por ferir a independência funcional da magistratura, mas também

por desvirtuar as mais comezinhas regras da atual hermenêutica, no sentido de que só existe

norma após a interpretação realizada pelo intérprete de determinado texto legislativo.

Essa intepretação levaria aos mesmos resultados do positivismo, eis que reduziria a

atividade jurisdicional a um mero aplicador de precedentes. No entanto, neste caso, a situação

seria ainda mais grave, pois o precedente, ao contrário da lei, já foi objeto de apreciação pelo

Poder Judiciário.

Dos novos instrumentos trazidos pelo Código de Processo Civil, o IRDR é, sem

dúvida, o de maior atenção da doutrina e de utilização nos primeiros anos após a edição do

Código. O IRDR, instituto com inspiração no procedimento-modelo alemão (musterverfahren)

e no Group litigation order (GLO) do direito inglês, tem por finalidade evitar a dispersão

excessiva da jurisprudência, atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, e

promover o andamento mais célere dos processos. Para atingir esse objetivo, instaura-se o

IRDR perante o tribunal onde se encontra o processo paradigma pendente e, julgado o incidente

pelo órgão do Tribunal, fixa-se a tese jurídica a ser aplicada aos casos concretos pendentes de

julgamento.

São requisitos para a instauração do incidente, previstos no artigo 976 do Código de

Processo Civil: (a) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma

questão unicamente de direito e (b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Com a

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143

instauração do incidente, suspende-se o andamento dos processos abrangidos pela tese jurídica

a ser firmada.

O IRDR, todavia, possui características que o impedem de ser a única solução para

enfrentar a litigância de massa e repetitiva. Isso porque o julgamento do IRDR tão somente

fixará a tese jurídica a ser aplicada aos processos suspensos e futuros, mas não há formação de

coisa julgada erga omnes e pro futuro. Exige-se sempre o ajuizamento ou prosseguimento dos

processos individuais, ainda que com aplicação de todas as consequências processuais do

julgamento vinculante. Em outras palavras, não há solução definitiva da litigiosidade daquela

determinada tese jurídica.

Outro aspecto do modelo de IRDR que pode ser tido como negativo é seu caráter tão

somente repressivo e não preventivo, ao exigir a existência de efetiva repetição de processos,

afastando-se do projeto inicial que previa a utilização do incidente com a mera potencialidade

de causar relevante multiplicação de processos. No modelo atual, portanto, ainda que desde

logo se vislumbre a futura multiplicação de processos, como, por exemplo, em caso de desastre

ambiental, o incidente não poderá ser manejado, falhando no objetivo de reduzir o ajuizamento

de demandas.

O IRDR também não se revela o único instrumento adequado à tutela de demandas

repetitivas quando se verifica que o legislador limitou sua aplicação apenas às questões de

direito, não permitindo a resolução de questões fáticas. A opção é criticada pela doutrina, pois

inviabiliza que determinadas situações fáticas geradoras de diversos processos individuais

possam ser solucionadas de forma isonômica pelo tribunal, como, por exemplo, situações de

desastres aéreos.

Há ainda uma quarta característica que inviabiliza eleger o IRDR como solução única

para o aumento da litigiosidade. Consiste na ausência de previsão legal de suspensão do prazo

prescricional das demandas individuais enquanto pendente de julgamento o IRDR, conforme

previsto no projeto original. A opção legislativa poderá ensejar o aumento da litigiosidade, pois

os particulares lesados, informados do ajuizamento do IRDR em razão da obrigatória e salutar

publicidade de seu processamento, serão incentivados a ajuizar suas demandas individuais, sob

pena de, em caso de procedência da tese, verem sua pretensão fulminada pela prescrição.

Dessa forma, tanto o processo coletivo estabelecido pelo microssistema coletivo

formado pela Lei de Ação Civil Pública, Lei da Ação Popular e Código de Defesa do

Consumidor, como os novos instrumentos trazidos pelo Código de Processo Civil são

insuficientes por si sós, isoladamente, para enfrentar a crescente litigiosidade. Assim, melhor

considerar que o enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva passou a ser composto

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144

por dois modelos diversos, mas complementares: (i) o modelo das ações coletivas; e (ii) o

modelo de julgamento/resolução das questões repetitivas.

Os regimes são, portanto, complementares e interdependentes, sem perder de vista a

superioridade do processo coletivo, que deflui de algumas vantagens verificadas na

legitimidade (é mais democrática, pois há entes públicos representando a sociedade), na

competência (uma única ação coletiva pode ter efeito nacional, o que não ocorre no IRDR), na

coisa julgada (no processo coletivo o indivíduo lesado pode executar diretamente a sentença,

sem necessidade de novo processo), na liquidação/execução da sentença proferida no processo

coletivo, fluid recovery e na possibilidade de solução consensual do conflito.

Assim, embora se reconheça a complementaridade e interdependência entre ambos os

modelos para um adequado enfrentamento dessa nova forma de litigiosidade, é de se reconhecer

também a superioridade da ação coletiva. Assim, para a instauração de qualquer IRDR, passaria

a ser requisito implícito do ordenamento brasileiro o seu caráter subsidiário, somente podendo

ser manejado quando inviável ou injustificável, no caso concreto, o manejo da ação coletiva.

No entanto, a conjugação de esforços entre os dois diferentes meios de tutela não é

suficiente para resolver de forma definitiva, duradora e eficaz a excessiva litigiosidade em voga

no Brasil. A fim de enfrentar a litigiosidade, é preciso enfrentar suas causas, e não apenas suas

consequências, verificadas essencialmente pelo aumento de número de processos e aumento

das taxas de congestionamento, conforme indicam os últimos relatórios do Conselho Nacional

de Justiça já trazidos nessa pesquisa.

É necessário rever outras importantes causas do aumento da litigiosidade, notadamente

o custo da litigância no Brasil, pois não haverá efetiva redução de processos enquanto for tão

fácil e barato litigar. Além disso, há a extrema benevolência do acesso à assistência judiciária.

Mesmo quando há recolhimento de custas, o valor em questão suporta somente 11,61% de todas

as despesas judiciais, de maneira que há um subsídio estatal de quase 90% para os casos em

que há cobrança. Nesse cenário, as externalidades negativas advindas da judicialização são

coletivizadas e as externalidades positivas, em grande parte, usufruídas tão somente pelo autor

da demanda, que se beneficia da litigância a custo módico ou gratuito.

Da mesma forma, a existência de isenções em favor de todos os entes públicos

litigantes aumenta excessivamente os custos sociais decorrentes do ajuizamento de demandas

desnecessárias, o que é confirmado quando se verifica que o poder público é o grande litigante

do Poder Judiciário, em especial das execuções fiscais, cuja taxa de congestionamento chegou

a 90% em 2018.

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145

É preciso, então, adotar mudanças legislativas que visem aumentar sensivelmente o

valor das custas judiciais ou impor penalidades em caso de sucumbência, notadamente para os

litigantes habituais do Poder Judiciário, que tiram proveito econômico da elevada e recorrente

taxa de judicialização de suas relações negociais, os denominados free riders, levando a um

esgotamento dos recursos públicos e a uma prestação jurisdicional de menor qualidade para

todos, ante o assoberbamento dos tribunais.

É preciso ainda extinguir o teto de custas; elas devem incidir sobre o total do proveito

econômico pretendido, sem prejuízo de eventual concessão de gratuidade de justiça para a

parcela que superar a capacidade econômica da parte.

As mudanças passam igualmente pela revisão da concessão da justiça gratuita, o que

demanda a inversão da presunção de pobreza constante do artigo 99, § 3º, Código de Processo

Civil, exigindo-se a necessidade de prova da insuficiência de recursos, mantendo-se a presunção

apenas quando as circunstâncias da causa indicarem claramente a carência financeira e

enquadrar a falsa declaração de pobreza como falsidade ideológica.

Da mesma forma, é preciso combater com rigor a litigância de má-fé e fraudulenta.

A atual punição é praticamente inexistente, pois por ser destinada ao Estado está sujeita ao

patamar mínimo para ajuizamento de execução fiscal. Na prática, ainda que haja imposição da

penalidade, ela provavelmente não será objeto de execução forçada. Não bastasse, a penalidade

é imposta à parte e não ao advogado causador do ato lesivo, o que acaba gerando um incentivo

às práticas fraudulentas por parte dos advogados, visto que, com isso, aumentam sensivelmente

as chances de êxito na demanda e, consequentemente, de percepção de honorários

sucumbenciais.

Por fim, outra medida essencial ao enfrentamento da litigiosidade de massa e repetitiva

é a tecnologia advinda de novas ferramentas de inteligência artificial. Um importante

instrumento são as plataformas digitais de autocomposição ou online alternative dispute

resolution (OADR), que permitem a resolução automática e extrajudicial do conflito, sem

intervenção humana, como no caso do sistema ebay, que permite a resolução de mais de 60

milhões de conflitos por ano com uma taxa de acordo de 90%, sem qualquer intervenção

humana.

A adoção deste sistema por cortes judiciais ou pelas empresas litigantes habituais

implicaria sensível redução no número de demandas, permitindo que o Poder Judiciário seja

reservado para conflitos que realmente demandem sua intervenção, passando a resolução online

da disputa ao patamar de condição da ação ou pressuposto processual de eventual posterior

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146

demanda processual caso o conflito se enquadre no pequeno percentual de não resolução

extrajudicial.

A tecnologia também pode auxiliar na prevenção de demandas e reduzir o

descumprimento das leis. Com a utilização do embedded legal knowledge pretende-se que os

produtos sejam fabricados e utilizados visando evitar o descumprimento da lei, como por

exemplo, o automóvel que detecta o fato de o condutor ter ingerido bebida alcoólica e não dar

partida. Ou, ainda, do veículo alienado fiduciariamente por meio de um smart contract não abrir

as portas em caso de inadimplência.

Há também sistemas avançados que recolhem informações (big data) e permitem

antecipar e identificar litigância predatória ou de má-fé de advogados e grandes litigantes,

podendo, no futuro, ser importante ferramenta no enfrentamento da litigância repetitiva e

fraudulenta.

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ABNT NBR 6022:2018 – Informação e documentação – Artigo em publicação periódica

técnica e/ou científica – Apresentação

ABNT NBR 6027: 2012 – Informação e documentação – Informação e documentação –

Sumário – Apresentação

ABNT NBR 14724: 2011 – Informação e documentação – Trabalhos acadêmicos –

Apresentação

ABNT NBR 15287: 2011 – Informação e documentação – Projetos de pesquisa –

Apresentação

ABNT NBR 6034: 2005 – Informação e documentação – Índice – Apresentação

ABNT NBR 12225: 2004 – Informação e documentação – Lombada – Apresentação

ABNT NBR 6024: 2003 – Informação e documentação – Numeração progressiva das seções

de um documento escrito – Apresentação

ABNT NBR 6028: 2003 – Informação e documentação – Resumo – Apresentação

ABNT NBR 10520: 2002 – Informação e documentação – Citações em documentos –

Apresentação