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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo PUC SP Rafaela Cordeiro Gama Escola e Atividade Criadora: As significações do professor Mestrado Em Educação: Psicologia Da Educação São Paulo 2016

Pontifícia Universidade Católica De São Paulo PUC SP · 2017-02-22 · 5.1.2 Núcleo 2 – Concepção de ensino, de infância e o papel da educação e a relação com a prática

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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo

PUC – SP

Rafaela Cordeiro Gama

Escola e Atividade Criadora: As significações do professor

Mestrado Em Educação: Psicologia Da Educação

São Paulo

2016

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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo

PUC – SP

Rafaela Cordeiro Gama

Escola e atividade criadora: As significações do professor

Mestrado em Educação: Psicologia Da Educação

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em Educação: Psicologia da

Educação, sob a orientação da Prof.ª, Dr.ª Wanda Maria Junqueira

de Aguiar.

São Paulo

2016

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Banca Examinadora:

__________________________________

__________________________________

__________________________________

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Essa pesquisa teve financiamento de CAPES/CNPq sob o registro 161224/2014-8.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu pai, à minha mãe e à minha irmã, pelo amor incondicional e que, mesmo

distantes, sempre apoiaram a realização desse mestrado;

À Ia, orientadora dessa dissertação, pelo apoio, pela confiança e por compartilhar seus

conhecimentos;

Aos professores e funcionários da PUC que estiveram presentes contribuindo direta ou

indiretamente para realização dessa pesquisa;

Ao meu companheiro, namorado, marido e cúmplice, Toni, pela paciência (e que

paciência!) e compreensão durante esses dois anos;

Aos colegas que convivi nas disciplinas durante esse um ano e meio e que me ensinaram

muitas coisas sobre a vida;

À Agda pela inesperada amizade, pelo carinho e pelo apoio, tão importante e fortalecedor,

principalmente na reta final do mestrado;

À Cíntia, à Karin e à Denise pelo companheirismo, pelas conversas e pela amizade

construída durante esses dois anos na PUC;

Às minhas amigas e irmãs de vida, Carla e Marina, por sempre estarem comigo

independente da distância e ouvirem/lerem meus desabafos e angústias durante esses dois

anos;

Às professoras da banca examinadora, Mitsuko (Mimi) e Lindabel pelas importantes

contribuições para a realização desse trabalho;

À professora entrevistada, por aceitar contribuir com essa pesquisa;

Ao povo brasileiro e ao CNPq pelo apoio financeiro para realização desse trabalho.

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“Eu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Sobre o que é o amor

Sobre o que eu nem sei quem sou

Se hoje eu sou estrela

Amanhã já se apagou

Se hoje eu te odeio

Amanhã lhe tenho amor

Lhe tenho amor

Lhe tenho horror

Lhe faço amor

Eu sou um ator

É chato chegar

A um objetivo num instante

Eu quero viver

Nessa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”

Metamorfose Ambulante – Raul Seixas

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RESUMO

GAMA, R. C. Escola e Atividade Criadora: As significações do professor. 2016. 118 f.

Dissertação (Mestrado em Educação: Psicologia da Educação) – Faculdade de Educação da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

Na graduação em Pedagogia realizada na Universidade do Estado do Pará/UEPA, durante

o exercício de estágio em instituições privadas e públicas, observei em diversas situações

a pouca valorização da criação e da produção dos discentes no cotidiano de sala de aula.

Era frequente observar a professora realizando as atividades pedagógicas pelos alunos ou

planejando, na maioria das vezes, atividades de apropriação e reprodução de

conhecimento. Indo de encontro a isso, existe um crescente discurso de valorização da

criatividade na educação, a qual é geralmente relacionada apenas a novos métodos

pedagógicos e a elaboração de produtos novos, priorizando o seu valor prático. Ao

questionar essa concepção, compreendemos que a atividade criadora está relacionada

especialmente ao processo de criação, e tal processo como parte fundamental no

desenvolvimento integral do gênero humano. Diante dessas reflexões, várias questões

ficaram sem respostas e se articulavam em uma só pergunta: Como o professor está

significando a questão da criação e o seu desenvolvimento no contexto escolar? Assim,

buscamos os fundamentos da psicologia sócio-histórica para fundamentação dessa

pesquisa e como objetivo geral temos: analisar, compreender e explicitar as significações

do professor do Ensino Fundamental I sobre atividade criadora e o desenvolvimento desta

na escola. Essa pesquisa foi realizada com um professor de Ensino Fundamental I,

embasados pela proposta metodológica denominada Epistemologia Qualitativa. A

obtenção das informações inspirou-se na dinâmica conversacional e a análise e

interpretação dos dados produzidos realizou-se por meio dos Núcleos de Significação. A

professora participante dessa pesquisa expressa em sua fala uma prática pedagógica que

se apropria de elementos relacionados a atividade criadora e compreende a importância

da escola e das relações sociais no desenvolvimento dessa atividade. Entretanto, as suas

significações sobre atividade criadora ainda estão relacionadas com concepções de senso

comum, além de reproduzir uma visão naturalizante e contraditória sobre o indivíduo e

consequentemente sobre o desenvolvimento dessa atividade.

Palavras-chave: Atividade Criadora, Educação, Psicologia Sócio-histórica,

Significações.

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ABSTRACT

GAMA, R. C. School and Creation Activity: Teacher’s meanings. 2016. 118 f. Dissertation

(Masters in Education: Educational Psychology) – Faculdade de Educação da Pontifícia

Universidade Católica of São Paulo, São Paulo (BR), 2016.

On the graduation in pedagogy, held at Universidade do Estado do Pará/UEPA, during

the internship in private and public institutions, I noticed in various situations the little

appreciation of creation and production of the students at the classroom. It was frequent

to observe the teacher doing the pedagogic activities instead of students or planning,

mostly, appropriation activities and reproduction of knowledge. Going against it, there is

a rising discourse of creativity enhancement in education, which is generally related only

to new education methods and the creation of new products, prioritizing its practical

values. Questioning this idea, we understand that the creative activity is related specially

to the creation process, and such a process as a fundamental part in the integral

development of the human gender. Given these considerations, several questions

remained unanswered and were articulated in a single question: How is the teacher

meaning the creation question and its development in the school context? Thus, we seek

the fundaments of socio-historical psychology to substantiate this research and as a

general purpose, we have: to analyze, understand and explain the elementary school

teacher meanings of creative activity and its development in the school. This research was

conducted with an elementary school teacher, grounded by the methodological proposal

called Qualitative Epistemology. Obtaining the information was inspired by the

conversational dynamics and the analysis and interpretation of the data produced was held

through the Nuclei of Meanings. The participant teacher of this research express in her

speech a pedagogical practice that appropriates elements related to the creative activity

and understand the importance of the school and the social relations in the development

of this activity. However, her meanings about the creative activity are still related to

common sense, besides playing a naturalizing and contradictory vision of the individual

and consequently on the development of this activity.

Keywords: Creation Activity, Education, Socio-historical Psychology, Meanings.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8

2 A ATIVIDADE CRIADORA NA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA ........ 14

3 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS .......................................... 29

4 A PESQUISA ............................................................................................................ 36

5 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS..................................... 43

5.1 Os Núcleos de Significação. .................................................................................. 43

5.1.1 Núcleo 1 – O percurso profissional: A constituição do ser professora. ................ 43

5.1.2 Núcleo 2 – Concepção de ensino, de infância e o papel da educação e a relação

com a prática educacional............................................................................................... 48

5.1.3 Núcleo 3 – A postura profissional de Carla e a busca pela práxis no processo de

ensino aprendizagem ...................................................................................................... 54

5.1.4 Núcleo 4 – As Significações sobre Atividade Criadora: senso comum, dicotomias

e contradições. ................................................................................................................ 58

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 66

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 71

APÊNDICES ................................................................................................................. 74

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1 INTRODUÇÃO

Na graduação em Pedagogia realizada na Universidade do Estado do Pará/UEPA,

durante o exercício de estágio em instituições privadas e públicas, observei em diversas

situações a pouca valorização da criação e da produção dos discentes no cotidiano de sala de

aula. Até mesmo nas aulas de Educação Artística, onde, segundo o senso comum, seria o

momento em que os alunos poderiam exercer sua criatividade, as atividades pedagógicas eram

sempre direcionadas pela professora, a escolher o que seria produzido, o material a ser utilizado

e, ainda, frequentemente realizava as ações que deveriam ser inerentes aos alunos. Para

justificar essa sua atitude em sala, a docente afirmava que pretendia tornar as produções

artísticas dos alunos mais bonitas para apresentar para os pais.

Presenciei também a mesma situação durante minha graduação, pois foram poucos os

momentos ou disciplinas que davam condições objetivas para uma reflexão crítica sobre como

realizar uma educação que visasse a criação, tanto do professor em formação quanto do aluno.

A maioria dessas aulas era expositiva, e grande parte dos professores se preocupavam tão

somente com a transmissão do conhecimento. Por outro lado, outros professores associavam a

atividade criadora apenas a métodos de ensino supostamente inovadores.

Para Mitjáns Martínez (2006) há um discurso crescente de valorização da criatividade

na educação. A autora destaca que tal criatividade deve estar presente em todos os componentes

do trabalho pedagógico, desde a formulação do planejamento das aulas, na avaliação, e até

mesmo na maneira de se relacionar com o aluno. Em todo esse processo deve existir o intuito

de alcançar a aprendizagem e o desenvolvimento real do discente. Isso pode favorecer a

formação de alunos criativos, que ultrapassam a reprodução de conhecimento, o que é uma

realidade comum nas escolas brasileiras.

Apesar dessa crescente valorização da criatividade na educação, concordamos com

Zorzal (1999) quando critica o fato da criatividade ser relacionada apenas a novos métodos

pedagógicos e a elaboração de produtos novos, priorizando o seu valor prático. Assim como

este autor, compreendemos também que a atividade criadora está relacionada especialmente ao

processo de criação, e tal processo como parte fundamental no desenvolvimento integral do

gênero humano.

O ser humano está em constante mudança, bem como a realidade social que o constitui,

e por ele é constituída. Encontramos na sociedade invenções das mais espetaculares até as mais

simples, conhecimentos sistematizados, obras artísticas em geral, e diferentes maneiras de

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produzir a riqueza. A produção humana se revela na medida em que o ser humano coloca o

novo no social, sendo que praticamente tudo o que nos rodeia são objetivações construídas

historicamente pelo gênero humano. Não seria o homem, então, um ser historicamente,

socialmente e culturalmente criador?

A apropriação do conhecimento produzido historicamente pela humanidade,

oportunizada principalmente pelo ensino formal, é de fundamental importância para o indivíduo

se constituir como gênero humano e poder transformar a realidade em que vive (ZORZAL,

1999). Nesse sentido, Freire (2011) explica:

Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se

fez velho e se ‘dispõe’ a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão

fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos

abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. (p. 30).

É essencial para o indivíduo, durante sua história evolutiva, a apropriação do

conhecimento acumulado pela humanidade para, deste modo, superar este conhecimento e

produzir novas formas de entendimento, garantindo seu desenvolvimento integral. Assim,

acreditamos na necessidade da existência de uma relação dialética entre a atividade de

apropriação de conhecimento e aquela que favoreça a expressão criativa no contexto escolar.

Segundo Gomes (2014), com a evolução histórica da escola, instituiu-se que sua

função social é a democratização do conhecimento acumulado pela humanidade. Entretanto,

como também destacam Aguiar e Davis (2011), a escola como parte da totalidade social, é

também um espaço de reprodução das relações de poder da sociedade capitalista e das

contradições sociais existentes nessa realidade. Assim, a escola pode ser um espaço de

reprodução ou um espaço de transformação dessa realidade.

Nesse sentido, entendemos que existe a possibilidade da mudança da instituição

escolar, para que esta seja responsável pela formação de um sujeito conhecedor de sua realidade

e capaz de transformá-la, tendo como princípio o questionamento e fundamentado por valores

importantes no processo de transformação da mesma. Portanto, a escola torna-se um espaço de

apropriação crítica da realidade escolar e da própria sociedade, gestando novas formas de pensar

e agir, mais críticas, criativas e que contemplem as necessidades da formação do humano.

Da mesma maneira, Saviani (2004) defende que, para realizar uma educação que vise

à prática transformadora do sujeito, é necessário elevar a prática educativa do professor para

além do senso comum, entendido como concepções fragmentadas, passivas, mecânicas e

simplistas. Deste modo, torna-se possível a consciência filosófica, relacionada às concepções

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unitárias, ativas, intencionais e cultivadas. Portanto, deve-se reconhecer a importância de

realizar, por meio dessa educação, a promoção do homem, o que significa “torná-lo cada vez

mais capaz de conhecer os elementos de sua situação a fim de poder intervir nela,

transformando-a no sentido de ampliação da liberdade, comunicação e colaboração entre os

homens.” (SAVIANI, 2004, p. 49).

De acordo com Freire (2011), o professor deve respeitar o senso comum, mas ao

mesmo tempo criar condições para que ocorra um processo de superação desse saber ao

estimular a capacidade criadora do seu aluno. Nesse sentido, Mitjáns Martínez (2009) afirma

que é preciso reavaliar o papel social da escola no desenvolvimento da criatividade. Ideia

também defendida por Vigotski, quando se refere à escola como “um importante espaço social

de apropriação de sistemas simbólicos e de desenvolvimento dos processos psicológicos,

necessários para a criatividade.” (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2009, p. 25-26). Dessa maneira,

entende-se o desenvolvimento da atividade criadora como um processo histórico, dialético e

determinado socialmente. Por isso, a escola é um espaço essencial para oferecer as condições

objetivas que favoreçam esse desenvolvimento, pois criança necessita se apropriar dos

conhecimentos socialmente e historicamente produzidos, ou seja, constituir suas experiências

que darão suporte para a sua criação.

Uma das hipóteses destacadas por Mitjáns Martínez (2006) sobre a dificuldade do

professor em realizar um trabalho pedagógico mais criativo, está relacionada com a função

social designada à escola citada anteriormente, de reprodução das relações de poder e das

contradições sociais da sociedade capitalista. Dessa maneira, concordamos que a passividade

do aluno frente à transmissão do conhecimento está intimamente relacionada à forma como se

desenvolve o trabalho pedagógico, no caso, desconsiderando as situações de criatividade. Outra

hipótese esclarecedora diz respeito à reprodução do professor daquilo que vivenciou na sua

formação escolar e acadêmica. A autora destaca que nos currículos dos cursos de formação de

professores é quase inexistente as atividades que promovam a criação e a inovação no trabalho

pedagógico. Fato também vivenciado em minha formação como pedagoga.

Zorzal (1999) ao discutir a relação entre a criatividade, o desenvolvimento humano e

o ensino, considera a criatividade como sendo a capacidade humana de elaborar e de reelaborar

a realidade objetiva e subjetiva, a partir da confrontação e da reunião de conhecimentos já

adquiridos. Entretanto, este autor constatou que a definição de criatividade pelo professor estava

relacionada “ao oferecimento de produtos inovadores ou originais, em geral atribuídos a

indivíduos que se destacam dos demais ou são, simplesmente, considerados pouco comuns.”

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(p. 06). Em outras palavras, concluiu que o entendimento do professor reflete uma maneira

parcializada de conceituação, a considerar apenas o aspecto empírico, ou seja, o produto da

atividade criadora e sua importância social.

Em concordância com Zorzal, acreditamos que a atividade criadora vai além do que é

imediatamente observado, ou seja, do produto da atividade. Entendemos essa atividade como

um processo complexo e essencialmente humano. Assim como o autor, acreditamos que todos

os sujeitos têm a possibilidade de criar e de transformar, mas tal capacidade precisa ter condição

objetiva para se desenvolver, sendo a educação formal um importante mediador a ser

considerado nesse processo. Assim, afirma Zorzal (1999):

Quanto mais o indivíduo torne seus os elementos que medeiam sua

compreensão e integração com o mundo humano e natural (linguagem, signos

diversos, utensílios, criações artísticas, literárias, filosóficas e científicas),

maiores e melhores serão as suas possibilidades de interferir consciente e

concretamente no processo de desenvolvimento de si próprio e do mundo à

sua volta. (p. 127).

Da mesma maneira, Vigotski (2009a) destaca a importância das condições objetivas

para a atividade criadora, intimamente ligada à imaginação. O autor afirma que a imaginação

tem uma importante atividade combinatória, pois nosso cérebro é capaz de transformar e de

recombinar os elementos objetivos das experiências anteriores, a elaborar novas imagens, ideias

ou mesmo objetos. Ele exemplifica seu pensamento referindo-se as brincadeiras entre crianças

de até 3 anos de idade:

A brincadeira das crianças não é uma simples recordação do que vivenciou,

mas uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas. É uma combinação

dessas impressões e, baseadas nelas, a construção de uma realidade nova que

responde às aspirações e aos anseios da criança. (VIGOTSKI, 2009, p. 17).

Mourão (2004) afirma que a linha de pesquisa sobre o professor em relação à

criatividade do aluno tem indicado que o professor é o principal responsável pela construção de

contextos estimuladores do desenvolvimento da atividade de criação dos estudantes. Assim,

como figura fundamental nesse processo, torna-se essencial conhecer qual o entendimento

sobre atividade criadora do profissional docente para possibilitar uma reflexão sobre como esse

processo é pensado e tratado no contexto escolar e quais as mediações sociais constituinte desse

entendimento.

Diante dessas reflexões, várias questões pretendem ser apresentadas, tais como: Qual

a concepção do professor sobre a atividade criadora na sala de aula? Ainda são consideradas,

na escola, concepções de senso comum em relação a esse tipo de atividade? O professor

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continua reforçando a concepção inatista sobre a criação? O professor valoriza a atividade

criadora tanto quanto outra atividade do cotidiano escolar no desenvolvimento e no aprendizado

do aluno? O professor reconhece a escola como um espaço importante para o desenvolvimento

da criação? Em outras palavras, tais questionamentos se articulam em uma só pergunta: Como

o professor está significando a questão da criação e o seu desenvolvimento no contexto escolar?

Concordamos com Aguiar e Davis (2011) quando nos elucidam que por meio do

conhecimento da figura do professor, podemos apreender elementos da totalidade e da

complexa realidade educacional. Na psicologia sócio-histórica, realizamos a apreensão dessa

importante figura por meio da análise da sua subjetividade, entendida como “[...] uma dimensão

da realidade social ou, mais precisamente, como a articulação dos sentidos e significados que o

sujeito atribui aos fenômenos escolares.” (AGUIAR; DAVIS, 2011, p. 223). Portanto, a análise

das significações do professor sobre a atividade criadora vem a ser um importante instrumento

para apreender como o docente compreende o processo de criação e como ele entende a função

da escola no desenvolvimento dessa atividade.

Assim, o objetivo geral desta investigação é de analisar, compreender e explicitar as

significações do professor de Ensino Fundamental I sobre atividade criadora e o

desenvolvimento desta na escola. E como objetivos específicos relacionamos: 1) analisar e

explicitar os sentidos e significados do professor sobre a atividade criadora; 2) analisar e

explicitar os sentidos e significados do professor sobre o desenvolvimento da atividade criadora

na escola.

A escolha pelo professor de ensino fundamental I especificamente se deu por conta da

intensificação da discussão de diversos aspectos relacionados ao ensino fundamental, a partir

da ampliação dessa etapa para nove anos. Segundo Nogueira (2011), mesmo com a ampliação,

que traria a possiblidade de repensar a desarticulação existente entre as duas primeiras etapas

da educação básica (educação infantil e ensino fundamental), ainda existem grandes diferenças

entre as características dessas etapas. Segundo a autora, a rotina estabelecida no ensino

fundamental de nove anos, principalmente na rotina do 1º ano, ainda apresenta características

de transmissão de conteúdo específicos de forma mecânica e descontextualizada, centrada no

trabalho docente individual. Acreditamos que essa característica ainda presente no ensino

fundamental de nove anos acaba privilegiando a reprodução mecânica de conteúdo por parte

dos educandos e não favorece situações onde a atividade criadora possa se relacionar

dialeticamente com a apropriação do conhecimento socialmente e historicamente produzido.

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Para atingir os objetivos desta pesquisa, estruturamos o trabalho de investigação em 5

capítulos a seguir identificados. No primeiro capítulo realizamos uma revisão da literatura sobre

atividade criadora na perspectiva sócio-histórica. No segundo capítulo, abordamos o referencial

teórico-metodológico que norteou a investigação, ou seja, a psicologia sócio-histórica. No

terceiro capítulo abordamos questões relacionadas à pesquisa, ou seja, o tipo de pesquisa, os

procedimentos, o sujeito escolhido, a proposta de análise, entre outros aspectos. Por fim, no

capítulo quatro, apresentamos a análise e interpretação das entrevistas e no quinto as

considerações finais do trabalho.

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2 A ATIVIDADE CRIADORA NA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA

Este capítulo tem como objetivo discorrer sobre atividade criadora na perspectiva

sócio-histórica. Utilizaremos principalmente o livro de Vigotski intitulado Imaginação e

Criação na Infância (2009a), entre outras publicações do autor, bem como outros teóricos que

promovem investigações nessa perspectiva.

Encontramos na literatura disponível uma grande diversidade de conceitos sobre

criatividade. Por ser um processo extremamente complexo, que depende de diversos aspectos

para sua compreensão, como a abordagem utilizada, a visão de homem e de mundo, dentre

outros, o conceito de criatividade está em constante transformação desde quando foi proposto,

na década de 30 do século XX.

A ideia de criação no senso comum, encontrada principalmente na escola, está

relacionada em grande parte à produção de um produto extraordinário, inovador ou com alguma

descoberta notável. Além disso, é comum relacioná-la a certos indivíduos, que possivelmente

são possuidores do talento e do dom à criação. Porém, é comum não se considerar que em nosso

cotidiano estamos sempre criando e imaginando coisas novas, por mais simples que sejam.

Mitjáns Martínez (2009) critica o fato de que, nas produções científicas

contemporâneas a respeito da definição de criatividade, também são identificadas concepções

reducionistas como as de senso comum. Nessas concepções, junto com o critério de novidade,

a criatividade deve ser caracterizada principalmente pelo critério do valor social. Essa forma de

entender a atividade criadora do ser humano ser restringe apenas ao produto resultante da

criação, ou seja, reduz todo o processo de criação ao produto e nem considera a importância da

atividade criadora para o desenvolvimento do indivíduo.

Vigotski, conforme se referiu Mitjáns Martínez (2009), também considera importante

o critério do valor social de uma produção nova e historicamente determinada. Porém, realiza

uma discussão mais ampla sobre a atividade criadora, a qual ultrapassa essas concepções

contemporâneas reducionistas. A autora também evidencia que no campo da psicologia da

criatividade, durante muito tempo, foi relegado à segundo plano a importância das emoções

para a atividade criadora, e consequentemente, predominou uma visão mais cognitivista sobre

o assunto. Assim, Vigotski foi um dos primeiros autores a reconhecer a multiplicidade de

elementos envolvidos no ato de criar.

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Vigotski está compromissado com uma perspectiva centrada no processo de criação

que, conforme a autora, constitui-se num processo que envolve formas mais complexas de

funcionamento da subjetividade. A mesma também identifica a heterogeneidade da atividade

criadora por conta do seu tratamento em diversos temas na produção de Vigotski. E assim se

expressa:

Na obra de Vygotsky, ideias referentes à criatividade aparecem associadas a

seus principais focos de produção teórica: a dimensão psicológica da arte, o

papel da cultura na constituição psicológica do homem, a compreensão do

desenvolvimento cultural na ontogênese, entre outros. (MITJÁNS

MARTÍNEZ, 2009, p. 11).

Mitjáns Martínez (2009) afirma que somente a partir da análise da proposta de

atividade criadora desenvolvida por Vigotski poderemos ter importantes contribuições para o

entendimento do tema criatividade, principalmente pela novidade em relação a concepção

dominante na psicologia da criatividade. E assim afirma que a criatividade para Vigotski é:

Processo de constituição e de reconstituição de configurações subjetivas

implicadas no desenvolvimento do sujeito e como forma de funcionamento

do sujeito psicológico, caracterizada pela autonomia e pela singularidade no

enfrentamento das exigências pessoais e sociais perante as quais está

colocado. (MITJANS MARTINEZ, 2009, p. 33).

Vigotski (2009a, p. 16) afirmou que “[...] na vida cotidiana que nos cerca, a criação é

condição necessária da existência, e tudo que ultrapassa os limites da rotina, mesmo que

contenha um iota1do novo, deve sua origem ao processo de criação do homem.”. A criação,

portanto, está mais para regra do que para exceção, pois todo o ser humano é capaz de imaginar,

combinar, modificar e criar algo novo em todos os âmbitos, tal como: na arte, na ciência, dentre

outras áreas humanas.

Observamos dois tipos principais de atividade humana, segundo Vigotski (2009a): a

reprodutiva e a criadora. A primeira está relacionada com a capacidade do homem de reproduzir

ou repetir o que já foi previamente criado ou quando se lembra de situações passadas. Tem

como base a repetição da realidade, do que já existe e está diretamente ligada com a memória,

portanto nada cria-se de novo.

Neste sentido, a base biológica, ou como afirma Vigotski a “base material”, dessa

atividade é a plasticidade do cérebro, ou seja, é a capacidade do sistema nervoso humano de

1 Iota [aiou’ta], s, Iota, quantidade ínfima, jota, til. - VALLANDRO, L.; VALLANDRO, L. Dicionário Inglês-

Português. 2 ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1970.

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memorizar as experiência vividas de maior importância. Sendo assim, o estímulo vivido deve

ser suficientemente forte ou repetitivo para o cérebro conservá-lo em sua estrutura. O autor

assim afirma:

No cérebro, ocorre algo semelhante ao que acontece a uma folha de papel

quando a dobramos ao meio. No local da dobra, fica a marca resultante da

modificação feita, bem como a predisposição para repetir essa modificação no

futuro. (VIGOTSKI, 2009a, p.12).

Esse tipo de atividade reprodutiva do homem tem grande importância na sua adaptação

no espaço em que vive, no sentido de ser capaz de construir e elaborar hábitos permanentes, os

quais podem ser reproduzidos dentro das mesmas condições. Entretanto, o autor destaca que se

essa fosse a única maneira de atividade do nosso cérebro, o ser humano seria adaptado às

condições naturais e estáveis da natureza, habituando-se ao futuro na medida em que repetisse

o passado, portanto, não criaria o meio social como conhecemos.

Então, como o sujeito consegue produzir novas e inesperadas modificações ao meio,

ainda não vivenciadas por ele? Esse comportamento essencialmente humano está relacionado

com a segunda forma de atividade humana destacada por Vigotski, o qual a definiu como

criadora ou combinatória.

Para Vigotski (2009a), atividade criadora é toda atividade humana onde se cria algo

novo, independente se o resultado dessa atividade será um objeto qualquer da realidade, ou uma

construção interna do sujeito, da mente ou do sentimento, conhecida apenas por ele mesmo.

Portanto, a atividade criadora está relacionada com a capacidade do cérebro humano de

combinar e reelaborar os diversos elementos das experiências anteriores, resultando na criação

de imagens ou ações novas. É esse tipo de atividade que “[...] faz do homem um ser que se volta

para o futuro, erigindo-o e modificando o seu presente.” (VIGOTSKI, 2009a, p. 14).

Nesse sentido, a imaginação é o processo psicológico básico de toda a atividade

criativa do homem, pois antes de algo se tornar realidade objetiva, ou seja, constituir-se em um

produto cristalizado, primeiramente deve existir como uma construção da mente humana

através da imaginação. No senso comum, imaginação ou fantasia designa tudo o que não

corresponde à realidade, ou seja, não tem nenhum significado prático. Já para Vigotski, a

imaginação manifesta-se em todos os campos da nossa cultura, principalmente na educação.

Neste sentido, o autor afirma:

Necessariamente, tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo

o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto

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da imaginação e da criação humana que nela se baseia. (VIGOTSKI, 2009a,

p. 14).

Ou seja, tudo o que nos rodeia no meio físico, desde os objetos materiais mais simples

até as criações humanas mais elaboradas, significa imaginação cristalizada, a qual tem uma

imensa importância na atividade criadora do sujeito. Ele também ressalta que, a capacidade de

combinar os elementos extraídos da realidade por meio da imaginação é um processo complexo,

e depende principalmente da experiência social, cultural e histórica. Em outras palavras, a

atividade criadora se constitui de maneira gradativa e lenta, a partir de diferentes formas

inovadoras, daquela mais simples até a mais complexa.

Para explicitar a complexidade do processo criador, Vigotski (2009a) pontua e discute

quatro formas de relação entre a imaginação e a realidade, as quais ele define como as leis que

regem a imaginação. Apresentaremos as leis a seguir e, após isso, faremos algumas reflexões,

pautados pelo referencial teórico-metodológico da sócio-histórica.

A primeira lei explica que toda imagem construída na mente é constituída por

elementos da realidade, e fizeram parte da experiência anterior do sujeito. Esses elementos

podem ser modificados, reelaborados e combinados em vários níveis de complexidade. Para o

autor essa primeira lei é a mais importante e a ela refere-se da seguinte maneira:

A atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da

diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência

constitui o material com que se criam as construções da fantasia. (VIGOTSKI,

2009a, p. 22).

Constata-se, nessa afirmação, a importância da realidade objetiva para a atividade

criadora do sujeito. É no processo de apropriação da realidade, mediada principalmente pela

linguagem, que o sujeito significa e reelabora a sua subjetividade. Sendo assim, a experiência

social e histórica é condição fundamental para o desenvolvimento da imaginação.

Nessa primeira lei também destaca-se a importância da atividade de conservação e,

consequentemente, da memória no processo da imaginação. Nesse sentido, o autor realiza a

seguinte afirmação:

A atividade combinatória do nosso cérebro não é algo completamente novo

em relação à atividade de conservação, porém torna-a mais complexa. A

fantasia não se opõe à memória, mas apoia-se nela e dispõe de seus dados em

combinações cada vez mais novas. A atividade combinatória do cérebro

baseia-se, em última instância, no mesmo processo pelo qual os traços de

excitações anteriores são nele conservados. A novidade dessa função

encontra-se no fato de que, dispondo dos traços das excitações anteriores, o

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cérebro combina-os de um modo não encontrado na experiência real.

(VIGOTSKI, 2009a, p. 23).

Assim, conforme essa primeira lei, a criança teria uma imaginação menos fértil do que

o adulto, pois, apesar de extrair da realidade os elementos que constroem a sua imaginação

assim como o adulto, sua experiência da realidade é mais limitada que a do adulto; tais

experiências vão sendo gradativamente construídas e enriquecidas durante o seu processo de

socialização. Além disso, os interesses da criança são distintos dos vivenciados na fase adulta,

sendo mais simples e primários; por isso, a criança tem uma relação com o meio diferenciada e

a maioria das suas experiências estão sendo vivenciadas pela primeira vez. Também existe uma

falta de exigência e pretensão na infância que oferece maior liberdade de elaboração dos

produtos da imaginação, onde observa-se alterações imprecisas da realidade e os exagero, além

do interesse por histórias fantasiosas. Dessa maneira, fatores como experiência, interesses e

relação com o meio mostram-se, segundo Vigotski, importantes para a imaginação e como se

constituem de maneira diferenciada no período da infância, consequentemente torna a atividade

da imaginação distinta da fase adulta.

Portanto, Vigotski (2009a) afirmou que a imaginação torna-se mais complexa de

maneira lenta e gradual, sendo a fase da adolescência um momento de transição, pois os

interesses do sujeito começam a mudar e sua relação com as suas criações tornam-se mais

críticas. Isso acontece por ser nesse período que o desenvolvimento da imaginação, algo mais

subjetivo, e o da razão, mais objetivo, coincidem e passam a se constituir como forças

competitivas. Apesar do autor utilizar o termo “amadurecimento”, entendemos que a

imaginação, durante o processo de desenvolvimento da criança, se torna mais complexa a partir

da ampliação das experiências e relações da criança com o social.

Dessa maneira, concordamos com Smolka (2009), quando destaca que o principal

fator que faz diferença no desenvolvimento da imaginação é a incorporação da cultura durante

o desenvolvimento da criança e afirma: “[...] o desenvolvimento da criança é desenvolvimento

cultural por excelência, isto é, de que a criança se desenvolve apropriando-se da experiência

social e histórica construída anteriormente.” (p. 44). Essa incorporação da cultura pode ser tanto

positiva quanto negativa para o desenvolvimento da imaginação, pois pode abrir ou restringir

as possibilidades humanas. Assim como é comum a atividade da imaginação ter uma queda ou

um retraimento na idade adulta, por conta da vida prática e do cotidiano (VIGOTSKI, 2009a).

A segunda lei que trata da relação entre a imaginação e a realidade remete-se à uma

situação mais complexa. Se na primeira lei a experiência é importante para tornar a imaginação

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mais complexa, nessa segunda lei a imaginação adquire a importância de ampliar a experiência

do sujeito por meio da socialização da experiência histórica ou social de outro indivíduo. Ao

mesmo tempo, pelo entendimento dialético da realidade, a imaginação, cada vez mais complexa

a partir da socialização, também constitui a realidade com a cristalização do produto dessa

imaginação.

Assim, observam-se duas diferenças fundamentais entre essas duas leis: 1) na primeira

lei, o sujeito depende apenas da sua própria experiência para criar, enquanto na segunda lei a

criação do sujeito depende da experiência alheia; 2) conforme a primeira lei, o produto da

imaginação do sujeito não corresponde à realidade, ou seja, é uma produção fictícia, enquanto

na segunda o produto final da fantasia do sujeito corresponde a um fenômeno complexo da

realidade.

É fundamental destacar que, nessa segunda lei, a experiência anterior do sujeito é

importante, assim como também o é para a primeira lei. Em outras palavras, a segunda lei está

intimamente subordinada à primeira, pois para um sujeito imaginar um fenômeno específico da

realidade, socializado por outra pessoa, se faz necessário que ele (o sujeito) tenha uma ideia de

certos elementos para a construção da imagem do fenômeno. Dessa maneira, para ampliar o

leque de experiências de seu educando, a escola deve oferecer relações que propiciam o seu

desenvolvimento, ou seja, criar condições da criança vivenciar diretamente certa experiência

direta de algum fenômeno, como nos laboratórios de química, de biologia, passeios dentro e

fora da escola e se apropriar do conhecimento acumulado também a partir de livros, de filmes,

de uma música, enfim, dos elementos culturais produzidos pelo homem.

A terceira lei manifesta-se de dois modos distintos, relacionados intimamente com a

emoção. No primeiro modo, intitulado “lei do signo emocional comum”, a emoção leva o

sujeito a selecionar imagens da sua experiência que coincidem com o sentimento vivenciado

em determinado momento. Vigotski (2009a) explica esse fenômeno com o fato que nossos

sentimentos, como o medo, a raiva, ou a alegria, além de terem uma expressão externa e física

no sujeito, possuem também uma expressão interna (lei da dupla expressão dos sentimentos).

Portanto, essas imagens selecionadas pelo sujeito não necessariamente tem outro tipo de relação

de semelhança ou de proximidade entre elas, a não ser o sentimento que as selecionam e as

combina. Assim, conforme Vigotski, essa lei “[...] resulta uma obra combinada da imaginação

em cuja base está o sentimento ou o signo emocional comum que une os elementos diversos

que entraram em relação.” (VIGOTSKI, 2009a, p. 27).

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No segundo modo, intitulado “lei da realidade emocional da imaginação”, a

imaginação influi na emoção, ou seja, a fantasia criada pelo sujeito, mesmo que não

corresponda à realidade vivida naquele momento, causa um sentimento e uma sensação real.

Vigotski (2009a, p. 28) buscou os ensinamentos de Ribot2 para melhor se fazer entender sobre

a essência dessa terceira lei, o qual afirmou que todas as criações contêm elementos afetivos.

Assim, esses elementos afetivos, apesar de surgirem de uma situação irreal, são reais para o

sujeito que os vivencia. Ou seja, os elementos afetivos, que foram constituído a partir das

relações com a objetividade a partir de uma situação irreal, fazem parte da subjetividade do

sujeito, mas o sujeito ao expressar de alguma maneira esse sentimento está objetivando a sua

experiência constituindo a realidade.

A quarta e última lei que trata da relação entre imaginação e realidade vai além da

imagem construída na mente, constituída de elementos da realidade, mas não corresponde e

nem existe nessa realidade; não se concretizou. Assim, nessa lei, a imaginação se "cristaliza",

ou seja, torna-se real, começa a fazer parte da realidade objetiva e a influir sobre outras coisas.

Portanto, tudo o que observamos na realidade, todos os objetos, tecnologias, prédios, casas,

enfim, tudo o que resulta da criação humana é imaginação cristalizada ou encarnada. Smolka

(2009) afirma que Vigotski enfatiza a cristalização do produto da imaginação, pois a

imaginação, como uma forma mais complexa de atividade psíquica, está “[...] intrinsecamente

vinculada às capacidades de planejamento e realização humanas.” (SMOLKA, 2009, p. 30).

Dessa maneira, existe um extenso e complexo processo por trás da cristalização da

imaginação do sujeito, o qual Vigotski (2009a) chamou de círculo completo da atividade

criativa da imaginação. Primeiro, o sujeito extrai da realidade os inúmeros elementos

necessários para sua atividade criadora. Tais elementos passam por complexa transformação no

pensar do sujeito, e assim esses elementos se transformam em um produto da imaginação. A

partir daí, o produto dessa imaginação se cristaliza e retorna à realidade, agora como uma nova

força ativa, que modifica essa própria realidade. Esse círculo não acontece apenas no campo da

ação prática sobre a natureza, mas também observamos na lei da realidade emocional, o qual

está contido na terceira lei da relação entre a imaginação e a realidade.

A princípio, a maneira linear como Vigotski apresenta o círculo completo da atividade

criativa da imaginação causa um certo impacto no leitor. Entretanto, acreditamos que a intensão

desse autor é de apenas facilitar o entendimento desta concepção definida por ele. No entanto,

2 RIBOT, T. A. Essai sur l’imagination créatrice. Paris: Félix Alcan, 1908.

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fica evidente que existe uma relação dialética da atividade criativa da imaginação e a própria

realidade objetiva. Esta realidade constitui a imaginação do sujeito, a qual é reelaborada com o

resultado de um produto e sua futura cristalização, o qual passa a fazer parte dessa realidade

objetiva.

Nesse círculo definido por Vigotski, ele afirma que são necessários dois elementos

imprescindíveis e de igual importância para a criação do sujeito: o intelectual e o emocional.

Nesse aspecto, Vigotski (2009a) cita o pensar de Ribot:

Qualquer sentimento (ou emoção) preponderante deve concentrar-se

numa ideia ou numa imagem que o encarne, sistematize-o, sem o que

ele permanecerá num estado vago. [..] Dessa forma, podemos ver que

esses dois termos – pensamento preponderante e emoção preponderante

– são quase equivalentes porque tanto um quanto o outro envolvem os

dois elementos inseparáveis e indicam apenas a preponderância de um

ou de outro. (p. 30).

Ou seja, não existe uma criação sustentada apenas por um pensamento puramente

intelectual, pois toda a criação humana contém elementos afetivos, tal como as necessidades,

os desejos e/ou os ímpetos. Assim, as emoções são extremamente importantes para o processo

de criação.

Como percebemos pelas afirmações de Vigotski, a atividade criadora da imaginação é

um processo extremamente complexo, e esse autor acredita que a criação, por conta disso, é

entendida pelas pessoas como algo extraordinário e excepcional. Nesse sentido, o produto

encarnado que passa a fazer parte da realidade objetiva é apenas o resultado de uma história

extensa e complexa. Vigotski (2009a), portanto, afirmou metaforicamente: “O que

denominamos de criação costuma ser apenas o ato catastrófico do parto que ocorre como

resultado de um longo período de gestação e desenvolvimento do feto.” (p. 35).

Porém, pergunta-se: quais são os momentos envolvidos no processo de imaginação?

Para responder a essa questão, Vigotski formulou algumas suposições que fazem parte desse

processo, e que a seguir serão apresentadas.

O processo de criação tem como sustentação inicial um tanto de material disponível

que servirá de base para a futura construção da imaginação. Assim, quanto mais rica for a

experiência do sujeito, mais desse material estará disponível para a construção da imaginação.

A partir desse momento, as impressões percebidas pelo sujeito estarão submetidas a um

processo complexo de reelaboração, no qual a dissociação e a associação tem funções

importantes.

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A dissociação, como um momento do processo, consiste na fragmentação da

impressão em elementos, dos quais alguns se conservam e outros se descartam. Isso é

necessário, pois qualquer impressão é composta por diversos elementos a formar um todo

complexo. Assim, a dissociação está na base do pensamento abstrato, segundo Vigotski

(2009a).

A partir dessa dissociação dos elementos, se faz necessário que haja o rompimento da

relação natural a qual os elementos foram percebidos. Assim, segue-se a modificação ou a

distorção dos elementos, que se apoia, segundo Vigotski (2009a), na natureza dinâmica dos

estímulos nervosos internos do sujeito, bem como as imagens correspondentes a esses

elementos. Essa modificação é garantida, pois as impressões externas, ou experiências de vida,

estão sempre em movimento, construído pelo cérebro do sujeito, o que também tem a influência

de fatores internos, tais como as emoções. Assim como, Vigotski (2009a) afirmou abaixo:

As impressões supridas pela realidade modificam-se, aumentando ou

diminuído suas dimensões naturais. A paixão das crianças pelo exagero, do

mesmo modo que a dos adultos, tem fundamentos internos muito profundos,

que, em grande parte, consistem na influência que o nosso sentimento interno

tem sobre impressões externas. Exageramos porque queremos ver as coisas de

forma exacerbada, porque isso corresponde à nossa necessidade, ao nosso

estado interno. (p. 37).

O autor destaca o exemplo da importância do exagero na criação das ciências naturais,

tais como: a astronomia, a física, a química ou a geologia. Pois, essas ciências tratam de

assuntos bastante complexos, usando valores numéricos gigantescos, e que inferem o futuro do

planeta Terra. Portanto, demonstra a importância que as emoções possuem para

desenvolvimento humano e a construção do conhecimento.

Em seguida, acontece a associação dos elementos das experiências vividas, já

dissociados e modificados pelas impressões internas do sujeito. Nesse último momento do

processo da imaginação, ocorre a combinação de imagens individuais. Ou seja, a organização

desses elementos em um sistema complexo, que podem assumir uma configuração subjetiva,

como uma obra de arte, até uma configuração cientificamente objetiva, como os conceitos.

Segundo Vigotski (2009a), esses processos envolvidos durante a imaginação

dependem de certos fatores psicológicos, tais como: 1) a necessidade, anseio e desejo que

surgem a partir da inadaptação ao meio, pois ao criar novas condições de existência, o sujeito

cria novas possibilidades de transformação do mundo; 2) a capacidade cerebral de guardar

imagens, as quais são selecionadas a partir do pensamento por analogia e pelo estado afetivo

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do sujeito; 3) a experiência do sujeito e a capacidade combinatória dos elementos dessa

experiência vivida; 4) o exercício de cristalização do produto da imaginação, que depende

diretamente do conhecimento técnico e dos modelos de criação que influenciam o sujeito; e, 5)

a dependência das condições objetivas que o sujeito encontra para criar.

Sobre a importância das condições objetivas para a atividade criadora do sujeito,

Vigotski (2009a) destacou:

Qualquer inventor, mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de

seu meio. Sua criação surge de necessidades que foram criadas antes dele e,

igualmente, apoia-se em possibilidade que existem além dele. Eis porque

percebemos uma coerência rigorosa no desenvolvimento histórico da técnica

e da ciência. Nenhuma invenção ou descoberta científica pode emergir antes

que aconteçam as condições materiais e psicológicas necessárias para seu

surgimento. A criação é um processo de herança histórica em que cada forma

que sucede é determinada pelas anteriores. (p. 42).

Assim, o processo educativo é uma importante condição para o desenvolvimento da

atividade criadora do sujeito, pois a partir dele o sujeito pode apreender e apropriar-se da

realidade socialmente e historicamente construída, e nesse processo humanizar-se. Desse modo,

a escola torna-se um espaço onde o sujeito pode encontrar as condições objetivas necessárias

para desenvolver a sua criação. Pois trata-se de um espaço de reprodução da realidade na sua

totalidade e, em suas contradições e nas suas possíveis transformações.

Até aqui foi tratado o aspecto interno da atividade criadora, a qual está sempre em

movimento dialético com a realidade objetiva do sujeito. No entanto, a imaginação desse

sujeito, construída a partir dessa realidade objetiva, possui um ímpeto de retornar à essa

realidade, o qual irá se cristalizar em um objeto. Esse ímpeto é o último e mais importante traço

dessa atividade criadora, que se configura como a base e o início motriz dessa atividade. Assim,

Vigotski (2009a) afirmou:

Ao surgir em resposta à nossa aspiração e ao estímulo, a construção da

imaginação tem a tendência de encarnar-se na vida. Por força dos impulsos

contidos nela, tende a tornar-se criativa, ou seja, ativa, transformadora daquilo

em direção ao que a sua atividade se orienta. (p. 58).

Nesse direção, Smolka (2009, p. 58) afirma que este autor destaca o aspecto construtor,

produtor e criador da imaginação. Dessa maneira, a educação da criança no sentido de

desenvolvimento dessa imaginação criadora se torna importante não só na esfera particular do

desenvolvimento e do exercício de uma função independente. Mas, também possui um

significado social, o qual tem papel fundamental no comportamento humano como um todo.

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Ou seja, criar é importante, desejável e necessário para o desenvolvimento individual do sujeito,

bem como de toda a sociedade na qual ele se faz inserido.

Na infância, segundo Vigotski (2009a), estão presentes diferentes tipos de atividades

criadoras, tais como: a musical, a escultural, a verbal, dentre outras. Porém, as principais e mais

comuns formas de atividade criadora na infância são a literária, a teatral e o desenho. Em seu

livro “Imaginação e Criação na Infância”, o autor destacou as características gerais e específicas

de cada um desses tipos de criação principais, bem como o papel da educação e do professor na

valorização e no desenvolvimento da atividade criadora.

De acordo com Vigotski (2009a), a raiz comum de toda a criação infantil é a

brincadeira. É nela que se encontram os mais diferentes tipos de criação infantil, o quais

coexistem de maneira sincrética, ou seja, durante uma brincadeira os vários tipos de criação

artística ainda não estão diferenciados e especializados. Desse modo, a brincadeira prepara a

criança para a criação artística. Com respeito a isto, Vigotski (2009a) destacou a citação de

Petrova3 com respeito a importância da brincadeira:

Seu significado é enorme para a formação do caráter e da visão de mundo do

futuro homem. [...] Na brincadeira, a criação da criança tem o caráter de

síntese; suas esferas intelectuais, emocionais e volitivas estão excitadas pela

força direta da vida, sem tensionar, ao mesmo tempo e excessivamente, o seu

psiquismo. (PETROVA apud VIGOTSKI, 2009a, p. 100).

Ao argumentar sobre a existência dessa raiz comum da criação infantil, Vigotski

destacou que, tanto a brincadeira quanto a criação infantil se originam de forma rápida, por

conta de uma forte necessidade. O que permite, na maioria das vezes, a expressão rápida e

completa dos sentimentos da criança. Além disso, nesses dois tipos de atividade infantil, a

criança busca sempre uma ligação com a sua vivência, e com o seu interesse pessoal.

Desse modo, Vigotski destacou que, o ato de criar na infância consiste, principalmente,

na possibilidade da criança de expressar aquilo que pensa e que sente com mais facilidade. Ou

seja, suprir as suas necessidades em um determinado momento vivido. Assim, com o

desenvolvimento gradativo da criança ocorre uma transformação de suas necessidades e de seus

desejos, da sua relação com o meio, ou seja, com as suas experiências. Logo, em cada momento

do desenvolvimento da criança se destaca uma forma de expressão de sua criação.

Inicialmente, o desenho se apresenta como uma expressão da criação mais comum.

Segundo Vigotski (2009a), o desenho possui algumas características peculiares em cada

3Petrova, A.E. (1888-?).

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período do desenvolvimento infantil. Primeiramente, a criança desenvolve seus desenhos a

partir da memória, ou seja, representa aquilo que sabe sobre o objeto, e não o que observa. Em

seguida, a criança se preocupa em desenhar intencionalmente para transmitir a relação formal

das partes constituintes do objeto. Nesse momento, surgem os primeiros traços de semelhança

do desenho infantil com a realidade, até chegar numa representação mais próxima da aparência

do objeto desenhado.

Os desenhos mais fidedignos da realidade do objeto, onde existe uma representação

plástica mais complexa, na qual observa-se a presença da perspectiva, de luz e sombra, entre

outras características, necessitam de recursos e técnicas apresentados por meio das relações do

ensino e da aprendizagem da criança. Porém, Smolka (2009, p. 117) destaca que o ensino desses

recursos e técnicas de desenho, os quais abrem possibilidades de criação e de transformação da

atividade criadora, podem ser considerados em toda a idade infantil, dependendo do

desenvolvimento da criança, como uma maneira de estimular o interesse da mesma pelo

desenho. Sobre isso, Vigotski (2009a) afirmou:

Qualquer arte, ao cultivar métodos especiais de encarnação das imagens,

dispõe de uma técnica peculiar, e essa união da disciplina técnica com os

exercícios de criação é, provavelmente, o que de mais precioso o pedagogo

tem nessa idade. (p. 118-119).

O ensino das técnicas e dos recursos envolvidos nas artes plásticas, bem como a

apresentação das obras e dos autores relacionados a esse tipo de linguagem, de acordo com o

desenvolvimento da criança, possibilita à ela novas experiências, o que irá ampliar sua visão de

mundo. Isto enriquece o seu conhecimento e também contribui para o domínio das

especificidades dessa forma de linguagem. Portanto, a educação deve viabilizar, por meio do

ensino das especificidades técnicas de cada tipo de criação, a cristalização dos produtos dessa

imaginação. Além disso, pode transformar a relação da criança com sua criação, que assume

uma postura mais responsável e crítica, e pode tornar o seu trabalho criativo mais consciente e

agradável.

Outro tipo de expressão criativa infantil mais conhecida é a criação teatral ou

dramática. Nesse tipo de criação, nota-se claramente o círculo completo da imaginação, onde

os elementos que compõem o produto da criação teatral são parte da realidade objetiva, os quais

retornam à essa realidade após a sua complexa transformação. Além disso, é a forma mais

difundida, pois se configura como a mais próxima da criança, por dois motivos: 1) oferece uma

relação mais ativa, íntima e direta entre a vivência pessoal e a criação artística; 2) por estar mais

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próximo à brincadeira, configurando-se como a forma mais sincrética de criação, ou seja,

contém elementos dos diferentes tipos de criação, como por exemplo, o técnico, o plástico, o

oral e o literário (VIGOTSKI, 2009a).

Desta maneira, a imitação concretizada pela criança das impressões exteriores é uma

outra forma de criação dramática, assim como é a representação teatral. Assim, Smolka (2009,

p. 99) ressalta que todos os tipos de criação que proporcionam à criança a possibilidade da

apropriação dos diversos papéis sociais, viabilizam a ela uma participação destacada na cultura,

constituindo então a sua subjetividade. Sendo assim, a criação teatral infantil possibilita à

criança experimentar situações diversas e interagir com determinados ambientes, os quais não

lhes são comuns no cotidiano. Sobre isso, Vigotski (2009a), afirmou que:

As crianças criam, improvisam ou preparam a peça: improvisam os papéis e,

às vezes, encenam um material literário pronto. Essa criação verbal é

necessária e compreensível para elas próprias porque adquire sentido como

parte de um todo; é a preparação ou a parte natural de toda uma brincadeira

divertida. (p. 99).

Assim, a criança deve estar envolvida em todos os momentos de montagem de uma

peça teatral, desde a confecção dos figurinos, até a encenação final, tudo feito pelas imaginação

e pelas mãos da criança. Além disso, ela precisa entender o motivo pelo qual está realizando a

montagem do espetáculo, e dessa maneira terá consciência do objetivo daquilo que está

realizando e participando. Portanto, o autor destaca novamente a importância da valorização

não apenas do produto final da criação teatral, ou de qualquer outra criação, mas principalmente

do processo de criação.

Já a criação literária se destaca na adolescência em especial. Isso não quer dizer que a

criação verbal, constitutiva da criação literária, não seja também importante nos outros tipos de

criação, bem como nos outros períodos do desenvolvimento infantil. Mas ela tornar-se-á

predominante na adolescência. Esse destaque da criação literária na adolescência só ocorre por

conta do aumento da experiência da criança no seu desenvolvimento infantil, nesse sentido, a

escola tem um papel importante de oferecer condições objetivas para que aconteça essas novas

experiências.

Vigotski (2009a) afirmou que, por ser a escrita algo mais complexo que a oralidade,

além de ser mais condicional e também mais abstrata, a criança não entende facilmente a

necessidade do ato de escrever. Desse modo, o professor durante o processo de ensino

aprendizagem deve oferecer as condições educativas para que a criança entenda a importância

da escrita, levando em consideração as experiências de vida anteriores da mesma.

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Assim, o professor assumirá um papel de orientador do processo de aprendizagem,

bem como deve se posicionar como um ouvinte das necessidades da criação da criança. Ou

seja, ele não deverá apenas mostrar ou dizer o que fazer, mas sim oferecer condições objetivas

para que aconteça a escrita e, além do mais, apresentar e estimular as diversas possibilidades

da criação literária. Para destacar essa forma de educar, Vigotski (2009a) afirmou que: “A tarefa

consiste em criar na criança a necessidade de escrever e ajudá-la a dominar os meios da escrita.”

(p. 67).

Assim, o professor deve fazer com que a criança se sinta importante e, ao mesmo

tempo, que se veja como protagonista do processo da escrita. Dessa maneira, o professor pode

deixar a criança a vontade para escrever sobre algum assunto que conhece, ou seja, que lhe seja

familiar, bem como apresentar as possibilidades, as técnicas e os modos de escrever. Essas

atitudes do professor são maneiras de aguçar o interesse da criança pela criação literária,

mostrando que esse tipo de criação se constitui como uma possibilidade de expressar

objetivamente a sua experiência de vida e a sua relação com o mundo.

Vigotski (2009a) destacou, então, qual seria o sentido e o significado dessa criação

literária para a formação e para o desenvolvimento da criança:

O sentido e o significado dessa criação é que ela permite à criança fazer uma

brusca transposição no desenvolvimento da imaginação criadora, que fornece

uma nova direção para a sua fantasia e permanece por toda sua vida. O sentido

é que ela aprofunda, amplia e purifica a vida emocional da criança, que, pela

primeira vez, é despertada e afinada num tom sério. Por fim, seu significado

é que ela permite à criança, ao exercitar seus ímpetos e capacidades criadoras,

dominar a fala humana – esse instrumento delicado e complexo de formação

e transmissão do pensamento, do sentimento e do mundo interior humano. (p.

96).

Smolka (2009, p. 109) comentou que a linguagem verbal é imprescindível para a

realização da atividade criadora infantil em todas as suas formas de expressão, mas com

diferente função e complexidade. No desenho a palavra é utilizada como guia para a atividade,

já na criação teatral a palavra faz parte da montagem da peça. Mas ela ainda está também

relacionada com outros tipos de criação. Já na criação literária, a palavra se torna predominante,

e possui uma função muito mais complexa para a expressão. Com respeito a essa complexidade

da palavra, Vigotski (2009a) afirmou que “[...] (a palavra) corresponde de modo mais profundo

e complicado a uma relação interna com a vida, consigo mesma e com o mundo circundante.”

(VIGOTSKI, 2009a, p. 77).

Além disso, as possibilidades criadoras não se limitam à criação artística. O que levou

Vigotski (2009a) a criticar a educação tradicional, pois ela afasta a criança do trabalho e limita

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a criação infantil à artísticas. Por isso, o autor destacou que no desenvolvimento e no ensino do

campo da técnica, ou seja, nos modos de produção constituídos culturalmente e historicamente,

a criança também pode desenvolver sua atividade criadora. Assim, o campo da ciência tem um

papel importante no desenvolvimento da criação infantil, como afirmou Vigotski (2009a):

“Assim como no campo da criação artística, as crianças que tentam dominar os processos de

criação científica e técnica também apoiam-se na imaginação criadora.” (p. 121).

Conforme Vigotski (2009a), para estimular a criação infantil é necessário realizar uma

organização da vida e do ambiente da criança. De tal modo que, gere a necessidade e a

possibilidade à criação infantil, ou seja, oferecer a condição objetiva para a criança realizar a

sua criação. Nesse caminho, se faz necessário valorizar a atividade educativa que estimule na

criança a criação, consequentemente a sua participação em todos os momentos da mesma. Ou

seja, desde o processo imaginativo dessa criação, até a sua cristalização. Também se faz

necessário apresentar e discutir o modo e a técnica específica da realização da criação.

A partir de toda essa reflexão acima, percebe-se que o processo de criação infantil

possui uma imensa importância para o desenvolvimento da criança. Dessa maneira, Vigotski

(2009a) afirmou que o desenvolvimento da atividade criadora na educação não deve ser

realizado de maneira mecânica. Dessa maneira, é importante o professor deve ter consciência

do desenvolvimento e no exercício de todas as possibilidades da criança. Assim, a atividade

criadora pode ser direcionada e estimulada pelo educador, bem como pode ser avaliada por ele

levando-se em conta esse sentido objetivo da criação.

Essa conclusão do autor nos faz pensar e refletir qual o objetivo da educação como um

todo. Se queremos apenas instruir o indivíduo para assumir um determinado papel social e,

dessa maneira, prepará-lo para o mercado de trabalho condicionado pelo modelo capitalista.

Ou, como outra possibilidade, se queremos que esse indivíduo se desenvolva integralmente

como gênero humano, podendo assumir todas as possibilidades de cidadania, e, dessa maneira,

se reconhecer como um sujeito importante, ativo e capaz de transformar a realidade objetiva.

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3 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Esta pesquisa está pautada no referencial teórico-metodológico da Psicologia Sócio-

Histórica, que tem como fundamento o Materialismo Histórico e Dialético. Ao adotarmos este

referencial teórico-metodológico adotamos uma concepção de mundo e de homem específica e

também uma forma complexa e desafiadora, porém esclarecedora, de apreender a realidade.

Tudo isso fundamenta o processo de investigação. Como um elemento essencial à análise e à

interpretação da realidade, pautados no Materialismo Histórico e Dialético, trazemos a noção

de categoria.

Categoria é aqui entendida como uma construção ideal, que ocorre no plano das ideias,

que deve explicitar, descrever e explicar a complexa realidade objetiva em sua totalidade. Ou

seja, ela representa o real, e por conta disso, contém o movimento desse real, suas contradições

e sua historicidade. As categorias expressam processos e permite pensar as multideterminações

que constituem os fenômenos da realidade, assim, como Bock e Gonçalves (2009) esclarecem:

“Não se buscam causas, mas os elementos e aspectos que constituem os objetos como se

apresentam a nós, em seu movimento de transformação constante.” (p. 140). Dessa maneira, a

categoria é constituída no movimento de abstração do sujeito pesquisador, pois oferece a

possibilidade de se falar nos múltiplos elementos constituintes do fenômeno, mas que só são

captados pelo pensamento. Portanto, a categoria permite que o pesquisador, ao buscar conhecer

a realidade concreta do fenômeno pesquisado, vá além da aparência dos fenômenos, e

compreenda a sua gênese e o seu movimento. (AGUIAR, 2011; BOCK; GONÇALVES, 2009).

No início do século XX, Vigotski afirmava que a psicologia moderna encontrava-se

em um momento de crise, acarretada pelas limitações metodológicas das diversas escolas

psicológicas que surgiram nesse período. O autor propôs a superação dessa crise através da

elaboração de um método geral para a psicologia (IAROCHEVSKI; GURGUENIDZE, 1996;

GONÇALVES, 2011a). Assim, Vigotski desenvolve sua teoria, buscando os princípios do

Materialismo Histórico Dialético desenvolvido por Karl Marx e Friedrich Engels para aplicação

à psicologia. Isso é destacado no epílogo do livro de Vigotski “Teoria e Método em Psicologia”:

A psicologia - sublinha – requer seu O capital. Seu objetivo não consiste em

acumular ilustrações psicológicas em torno de conhecidos princípios da

dialética materialista, mas em aplicar esses princípios como instrumentos que

permitem transformar a partir de dentro o processo de investigação, descobrir

na realidade psíquica certas facetas diante da quais são impotentes outros

procedimentos de obtenção e organização dos conhecimentos.

(IAROCHEVSKI; GURGUENIDZE, 1996, p. 471-472).

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Como podemos perceber pela citação acima, Vigotski entendia que, baseado no

Materialismo Histórico Dialético, o pesquisador poderia alcançar zonas do real que qualquer

outro método da psicologia não alcançaria. Assim, destaca a complexidade do método em

questão, que busca ir além da aparência para apreender a essência da realidade concreta.

Vigotski (2007) cita Engels para destacar que:

A abordagem dialética, admitindo a influência da natureza sobre o homem,

afirma que o homem, por sua vez, age sobre a natureza e cria, através das

mudanças nela provocadas, novas condições naturais para a sua existência. (p.

62).

Estamos, então, diante de uma visão psicológica não dicotômica, que compreende a

existência de uma relação dialética entre o ser humano e a natureza, rompendo com dicotomias

como objetividade-subjetividade, afetivo-cognitivo e individual-social. Busca, portanto,

alcançar a unidade dos fenômenos contraditórios da realidade (AGUIAR; SOARES;

MACHADO, 2015).

Sendo assim, a psicologia sócio-histórica compreende o homem como um ser ativo,

social e histórico, indo de encontro a concepções que consideram a existência de uma natureza

humana imutável. Na realidade, existe uma condição humana, como explica Bock (1999):

Na ideia de condição humana, nada no homem está aprioristicamente

concebido. Não há nada em termos de habilidade, faculdade, valores, aptidões

ou tendências que nasçam com o ser humano. As condições biológicas

hereditárias do homem são a sustentação de um desenvolvimento sócio-

histórico, que lhe imprimirá possibilidades, habilidades, aptidões, valores e

tendências historicamente conquistados pela humanidade e que se encontram

condensados nas formas culturais desenvolvidas pelos homens em sociedade.

(p. 28).

Em outras palavras, o homem, a partir de suas necessidades e por meio da atividade,

principalmente a atividade criadora, transforma ativamente a realidade objetiva, criando suas

próprias condições de existência e meios de sobrevivência. Nesse processo de produção do

homem, se incluem também, além dos objetos materiais, as ideias e o conhecimento humano.

Ao mesmo tempo, o homem é transformado por essa realidade, criando novas necessidades e

assim por diante. Gonçalves (2011b) afirma que existe uma relação de unidade contraditória

entre o real e o racional, e por isso o movimento das ideias deve ser sempre situado em relação

ao movimento da base material do momento histórico em que são produzidas. Portanto, como

Vigotski (2007) afirma, o pesquisador deve estudar o fenômeno historicamente, ou seja, a partir

do seu processo de mudança.

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Assim, para estudar algo historicamente é necessário considerar as duas maneiras de

entender história apropriadas por Vigotski do Materialismo Histórico Dialético (PINO, 2000):

como uma abordagem dialética geral das coisas e, de forma restrita, como a história humana.

Ao falar sobre dialética geral das coisas o autor destaca a importância de considerar o processo

de mudança e de transformação do homem e do espaço em que vive, ou seja, é uma visão

dialética da natureza. Tal transformação ocorre em um processo constante de apropriação,

negação e de superação da realidade por meio da atividade do sujeito. Ou seja, o homem, ao

mesmo tempo que transforma o social, também se transforma, em um movimento pautado na

contradição e na superação. Já na forma restrita de se entender o termo história, Pino (2000)

afirma que Vigotski está se referindo a história do homem como gênero, ou seja, como um ente

coletivo, o qual se tornou capaz de produzir suas próprias condições de existência por meio do

trabalho. Assim o autor afirma:

[...] na medida em que cada ser humano existe e se constitui em e por esse

coletivo, a história pessoal e a história coletiva estão profundamente

imbricadas, de forma que aquela está condicionada pelo curso que toma esta.”

(PINO, 2000, p. 40).

Desse modo, consideramos a categoria da historicidade fundamental para o

entendimento dessa constituição dialética do sujeito, pois a relação de determinação não pode

ser vista como linear e direta, mas sim uma relação mediada pela linguagem, por instrumentos,

entre outros elementos. Dessa maneira, trazemos a categoria da mediação para nos ajudar a

apreender e entender o movimento de constituição dos fenômenos de uma forma dialética, a

romper, assim, com dicotomias e com concepções naturalizantes. A mediação é entendida como

o centro organizador da relação dialética entre dois elementos diferentes. Ou seja, esses

elementos, apesar de diferentes, se constituem mutuamente. Como afirmam Aguiar e Ozella

(2013):

Ao utilizarmos a categoria mediação possibilitamos a utilização, a intervenção

de um elemento/processo em uma relação que antes era vista como direta,

permitindo-nos pensar em objetos/processos ausentes até então. Logo, como

já colocamos acima, subjetividade e objetividade, externo e interno, nessa

perspectiva, não podem ser vistos numa relação dicotômica e imediata, mas

como elementos que, apesar de diferentes, se constituem mutuamente,

possibilitando a existência do outro numa relação de mediação. (p. 302).

Sendo assim, homem e sociedade não podem ser compreendidos como reflexo um do

outro. Essa relação deve ser apreendida como uma unidade de contrários. De modo que homem

e sociedade constituem-se mutuamente, um não é sem o outro, no entanto, cada um dos polos

mantém sua identidade. Isto nos permite afirmar que subjetividade e objetividade compõem um

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par dialético e, como tal constituem a possibilidade de sínteses superadoras. (CURY,1985 apud

AGUIAR et al, 2009). Portanto, antes de pensar o sujeito como absoluto e de forma isolada,

devemos apreender processos que estão escondidos por trás da aparência do mesmo.

Assim, nessa investigação proposta, é necessário apreender as mediações sociais

(particularidades) que constituem as significações do professor sobre atividade criadora e o

desenvolvimento desta na escola, para conhecermos quais os elementos da totalidade

constituem essas significações, ou seja, como o universal constituí a subjetividade (singular) do

sujeito no que se refere a atividade criadora.

Assim, para realizar uma análise que efetivamente apreenda em profundidade o

humano, Vigotski (2007) estabelece três princípios metodológicos básicos. O primeiro destaca

a fundamental importância de analisar os processos, e não objetos. A realidade está sempre em

constante movimento, por isso a análise de processos vai além da simples divisão do objeto em

suas partes componentes. Isto quer dizer que o pesquisador deve ultrapassar a aparência daquele

objeto ou fenômeno e preocupar-se em apreender as principais determinações que o constituem.

Portanto, é analisar o movimento histórico de constituição desse fenômeno, indo além da visão

estática, fixa e imutável sobre o mesmo.

A análise de processos está intimamente relacionada com o segundo princípio básico

do método. Para analisar o processo de constituição do fenômeno precisamos ultrapassar a sua

simples descrição, sendo necessário explicar como ele se constitui. Por isso, o autor diferencia

a análise fenotípica, realizada a partir da descrição do fenômeno, da análise genotípica, ou seja,

a explicação da gênese e das relações dinâmico-causais do fenômeno em questão. Essa

explicação detalhada do fenômeno é necessária, pois, como diz o ditado popular, as aparências

enganam. Vigotski justifica esse princípio destacando que é comum dois processos terem a

mesma manifestação externa, mas com gêneses totalmente diferentes, e vice versa. O autor

afirma:

Na realidade, a psicologia nos ensina a cada instante que, embora dois tipos

de atividades possam ter a mesma manifestação externa, a sua natureza pode

diferir profundamente, seja quanto à sua origem ou à sua essência. Nesses

casos são necessários meios especiais de análise científica para pôr a nu as

diferenças internas escondidas pelas similaridades externas. A tarefa da

análise é revelar essas relações. (VIGOTSKI, 2007, p. 66).

Entretanto, destaca que não podemos ignorar e excluir da investigação as

manifestações externas dos fenômenos, e sim partir dessa análise fenotípica para a descoberta

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da sua gênese. A realidade objetiva é, portanto, o ponto de partida para a análise e também o

ponto de chegada.

Por último, o autor destaca o problema do comportamento fossilizado. Este está

relacionado com comportamentos que se mantiveram durante um desenvolvimento histórico

longo e tornaram-se mecanizados, automáticos. Ou seja, o indivíduo continua a repetir aquele

comportamento de forma mecanizada e não reflete criticamente sobre ele. Devemos tentar,

então, ultrapassar a aparência do comportamento fossilizado e buscar apreender a sua gênese,

o seu movimento de constituição.

Portanto, para analisar as significações do professor sobre atividade criadora, proposta

nessa investigação, é necessário que o pesquisador tenha clareza desses princípios

metodológicos e também tenha clareza da concepção de homem e de mundo adotados na

psicologia sócio-histórica. Mas por que analisar as significações do professor? Porque, segundo

Aguiar et al. (2009), as duas categorias que compõem as significações, ou seja, sentido e

significado, possibilitam acesso a elementos da subjetividade do sujeito, no caso da

investigação proposta, sobre atividade criadora.

Segundo Luria (1979), a linguagem, junto com o trabalho social e o emprego de

instrumentos, é uma das principais condições que levam à formação da atividade consciente

complexa do homem. Sendo assim, se configura como um dos principais instrumentos no

processo de mediação da relação dialética entre externo e interno, pois é por ela, em conjunto

com a atividade, que o homem pode se apropriar da realidade, a constituir sua subjetividade.

Dessa maneira, Aguiar et al. (2009, p. 60) nos elucida que “[...] para avançarmos na

compreensão do sujeito, precisamos buscar apreender as formas como o pensamento se realiza

na palavra constituída de significações [...]”, ou seja, buscar apreender o que mais revela

subjetividade desse sujeito.

A linguagem, afirma Vigotski (2009b), não é um simples reflexo do pensamento.

Quando este se realiza naquele, existe um processo de reestruturação e de modificação, que

percorre os processos de significação, ou seja, a criação e o uso de signos artificiais (AGUIAR

et. al., 2009). Nesse sentido, Vigotski (2009b) estabelece que a unidade entre pensamento e

linguagem é o significado, pois o mesmo se apresenta como fenômeno dos dois processos. É

um fenômeno do pensamento na medida em que é uma generalização ou conceito, no ponto de

vista psicológico, ato específico do pensamento. E é um fenômeno da palavra, na medida em

que a palavra é um som qualquer quando desprovida do significado. Portanto, a relação entre

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pensamento e linguagem é um produto da formação do homem, ou seja, surge e se constitui no

processo de desenvolvimento histórico e social da consciência humana.

Como sinônimo de generalização e sendo a linguagem o principal instrumento que

possibilita a comunição entre os indivíduos, o significado da palavra se constitui como elemento

de produção social e histórica, que adquire um caráter mais estável em relação ao seu par

dialético, o sentido. Isso se dá por conta do significado ser produto da atividade criadora da

humanidade e ser a principal forma de assimilação da experiência humana pelos sujeitos.

(AGUIAR et. al., 2009). Apesar dessa estabilidade, o significado está em constante movimento

e desenvolvimento, como nos esclarece Vigotski (2009b):

[...] o pensamento linguístico passa das formas inferiores e primitivas de

generalização a formas superiores e mais complexas, que encontram

expressão nos conceitos abstratos, e, finalmente, que no curso do

desenvolvimento histórico da palavra modificam-se tanto o conteúdo concreto

da palavra quanto o próprio caráter da representação e da generalização da

realidade na palavra. (p. 400-401).

Esse desenvolvimento do significado também está relacionado à assimilação da

experiência humana, que ocorre por meio da atividade do sujeito. Essa assimilação, como já

discutido, não ocorre de forma passiva, como se a subjetividade do sujeito fosse constituída

apenas como um mero reflexo da objetividade. Na verdade, ela acontece de forma ativa, ou

seja, o sujeito constitui a sua consciência social (LEONTIEV, 1992 apud AGUIAR et. al.,

2009). Assim, estamos falando do sentido pessoal constituído pelo sujeito a partir do processo

de subjetivação da realidade por meio da atividade e mediado pela linguagem.

Aguiar et. al. (2009) afirma que, para Vigotski, o aspecto semântico da palavra é

extrapolado por conta da diversidade de registros a serem constituídos pelo sujeito. Ou seja,

como a consciência humana é extremamente complexa, composta por processos diversificados,

o sentido de uma palavra é definido “[...] pela soma de todos os fatos psicológicos que ela

desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida,

complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada.” (VIGOTSKI, 2009b, p. 465). Assim,

o significado da palavra é apenas uma dessas zonas de estabilidade.

A categoria do sentido nos permite apreender como a subjetividade do sujeito se

constitui a partir da sua relação com a objetividade. No movimento de apreensão do discurso

do sujeito, no caso o professor, é essencial irmos para além da aparência dos significados, ponto

de partida para a análise e para a interpretação. Busca-se, então, chegar à essência desse

discurso, ou seja, a análise deve ir em direção às zonas de sentido. Assim, trata-se de uma

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categoria bastante complexa, pois os sentidos envolvem além dos conteúdos intelectuais, os

conteúdos afetivos. Esses conteúdo afetivos, ou seja, a emoção, é a unidade fundamental dos

sentidos (AGUIAR; DAVIS, 2011).

Portanto, no processo de significação, ou seja, de constituição de significados e

sentidos, o sujeito está criando o novo, pois esse processo de significação não é apenas mera

reprodução da realidade objetiva. Ele está constituindo a sua subjetividade, que é aqui entendida

como uma dimensão da realidade social, ou seja, a articulação do sentidos e significados do

sujeito (AGUIAR; DAVIS, 2011). Portanto, percebemos que o homem é um ser essencialmente

criador, pois além de criar a realidade objetiva e suas condições de existência, ao mesmo tempo

o sujeito cria a sua realidade subjetiva, num processo dialético e contraditório.

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4 A PESQUISA

Neste capítulo abordaremos as questões referentes aos procedimentos de pesquisa

escolhidos para análise e interpretação das informações obtidas e, assim, o alcance dos nossos

objetivos. Primeiramente, retomaremos os objetivos proposto nessa pesquisa e justificaremos

porque a escolha do tema. Após isso, apresentaremos qual o tipo de pesquisa e a caracterização

do sujeito escolhido. Por fim, indicaremos os procedimentos de produção de informação e os

procedimentos de análise.

Temos como objetivo principal nessa investigação analisar, compreender e explicitar

as significações do professor de Ensino Fundamental I sobre a atividade criadora e o

desenvolvimento da mesma na escola. Para atingirmos esse objetivo foi necessário analisar e

explicitar os sentidos e os significados do professor sobre a atividade criadora, bem como

analisar e explicitar os sentidos e os significados do professor sobre o desenvolvimento da

atividade criadora na escola.

Conhecer e explicar as significações do professor sobre atividade criadora e sobre o

desenvolvimento da mesma na escola nos permitiu refletir de maneira mais contundente sobre

quais mediações são constitutivas dessas significações. Ou seja, apreender as múltiplas

determinações que constituem o sujeito e suas significações sobre atividade criadora, portanto,

permitindo a análise da relação dialética entre o singular e o universal.

Embasamos essa pesquisa na proposta metodológica de González Rey (2012)

denominada Epistemologia Qualitativa, a qual situa a análise do qualitativo em uma perspectiva

epistemológica. Esse autor, na busca da emancipação do positivismo a-teórico que tomou vida

nas ciências sociais e representou a recusa de qualquer produção teórica, reflexões e ideias,

defendeu a importância de um modelo teórico para a pesquisa qualitativa. Assim, afirmou:

[...] algo essencial na produção de significado do material empírico que

aparece mediante os diferentes instrumentos e caminhos da pesquisa é o

modelo teórico em desenvolvimento que acompanha a produção da

informação empírica.” (GONZÁLEZ REY, 2012, p. 103).

Em outras palavras, o autor enfatizou que o problema da quantificação no processo de

produção do conhecimento está relacionado com o que é quantificado e dentro de qual sistema

teórico o aspecto quantificado vai adquirir significado. Também critica a emancipação dos

instrumentos e das técnicas em relação as representações teóricas, o que levou a um

instrumentalismo das pesquisas científicas em detrimento dos processos de construção teórica

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acerca da informação. Portanto, González Rey (2012) afirma que a superação desse

instrumentalismo só pode ser realizada por meio de um debate teórico-epistemológico,

envolvido no processo da pesquisa qualitativa.

Assim, o autor destaca alguns princípios gerais da produção de conhecimento que

apoiam essa proposta metodológica: 1) o caráter construtivo interpretativo do conhecimento;

2) a legitimação do singular como instância de produção do conhecimento científico; e 3) o ato

de compreender a pesquisa, nas ciências antropossociais, como um processo de comunicação

dialógico. Esses princípios estão intrinsecamente associados.

Defender o caráter construtivo interpretativo do conhecimento implica em

compreender o conhecimento não como apropriação linear de uma realidade, mas sim como

produção e construção humana. A partir daí surge o conceito de “zonas de sentido” que são

“[...] espaços de inteligibilidade que se produzem na pesquisa científica e não esgotam a questão

que significam, senão que pelo contrário, abrem a possibilidade de seguir aprofundando um

campos de construção teórica.” (GONZÁLEZ REY, 2012, p. 6). Ou seja, o conhecimento

produzido por um pesquisador se legitima a partir da possibilidade de novas construções e novas

articulações entre elas, a avançar assim na criação de novas zonas de sentido. Dessa maneira,

González Rey (2012) afirmou que a significação dos registro empíricos da pesquisa também se

configura como produção teórica, por compreender que a pesquisa não se separa do sistema

teórico em que está pautada. Portanto, considerou a relação dialética entre o empírico e o teórico

no processo de produção teórica.

A questão da legitimação do singular como instância de produção do conhecimento

científico, segundo princípio da produção de conhecimento, tem estreita relação com a

representação do conhecimento como um processo construtivo interpretativo. Segundo

González Rey (2012), para reconhecer o singular na pesquisa é preciso superar a legitimação

do resultado em nível empírico. Assim, o autor afirma que a legitimação do singular como fonte

de conhecimento implica:

[...] considerar a pesquisa como produção teórica, entendendo por teórico a

construção permanente de modelos de inteligibilidade que lhe deem

consistência a um campo ou um problema na construção do conhecimento, ou

seja, o teórico não se reduz a teorias que constituem fontes de saber

preexistentes em relação ao processo de pesquisa, mas concerne, muito

particularmente, aos processos de construção intelectual que acompanham a

pesquisa. O teórico expressa-se em um caminho que tem, em seu centro, a

atividade pensante e construtiva do pesquisador. (GONZÁLEZ REY, 2012, p.

11).

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Portanto, as informações ou ideias que surgem por meio do singular se tornam

legítimas devido a sua importância para o sistema teórico que está sendo produzido na pesquisa.

Diferente da legitimidade pelo empírico ou acumulativo, que acontece por meio do processo de

significação estatístico ou pela observação e verificação de fatos repetitivos em situações

similares (GONZÁLEZ REY, 2012).

O terceiro princípio da Epistemologia Qualitativa compreende a pesquisa como um

processo de comunicação, característica particular das ciências antropossociais. González Rey

(2012) considera que é pela comunicação das pessoas, direta e indiretamente, que grande parte

dos problemas sociais são expressados. Torna-se, assim, um espaço privilegiado para conhecer

os sentidos subjetivos do indivíduo, e o modo como as condições objetivas diversas da vida

social constituem esses sentidos, ou seja, sua subjetividade. González Rey (2012) afirma:

A pessoa que participa da pesquisa não se expressará por causa da pressão de

uma exigência instrumental externa a ela, mas por causa de uma necessidade

pessoal que se desenvolverá, crescentemente, no próprio espaço da pesquisa,

por meio dos diferentes sistemas de relação constituídos nesse processo. (p.

15).

É por meio da comunicação que o participante de uma pesquisa manifesta-se como

sujeito crítico e criativo, e torna-se, assim, um espaço autêntico e permanente de produção de

informação. Desta maneira, os instrumentos que são utilizados na pesquisa são influenciados

diretamente por esse status epistemológico atribuído à comunicação. Sobre os instrumento,

González Rey (2012) afirma:

Pensamos que os instrumentos, sempre que sejam compreendidos como

formas diferenciadas de expressão das pessoas e que adquirem sentido

subjetivo no contexto social da pesquisa, representam uma via legítima para

estimular a reflexão e a construção do sujeito a partir de perspectivas diversas

que podem facilitar uma informação mais complexa e comprometida com o

que estudamos. (p. 42).

Dessa maneira, o instrumento se configura como toda situação ou recurso que permite

o sujeito, no contexto de relação da pesquisa, expressar-se, à estimular a produção de tecidos

de informação. Nesse processo também é necessário envolver o sujeito emocionalmente, para

romper a tensão e facilitar a expressão de sentidos subjetivos. Assim, o uso de instrumentos

“[...] representa um momento de uma dinâmica, na qual, para o grupo ou para as pessoas

pesquisadas, o espaço social da pesquisa se converteu em um espaço portador de sentido

subjetivo.” (GONZÁLEZ REY, 2012, p. 45).

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Por conta do vínculo com o grupo de investigação “Atividade Docente e

Subjetividade”, esta dissertação está inserida em um projeto de colaboração acadêmica

intitulado “Tecendo Redes de Colaboração no Ensino e na Pesquisa em Educação: Um estudo

sobre a dimensão subjetiva da realidade escolar”. Esse projeto conta com a participação de

pesquisadores e estudantes de programas de pós-graduação de quatro universidades brasileiras.

Além da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, na qual se desenvolveu este

projeto de investigação de mestrado, mais três universidades brasileiras estão envolvidas nesta

cooperação científica, são elas: Universidade Federal do Piauí, Universidade do Estado do Rio

Grande do Norte, Universidade Federal de Alagoas.

A escolha do sujeito aconteceu a partir do contato com a equipe pedagógica da escola

vinculada a esse grupo de pesquisa. Em seguida, solicitamos a indicação de um professor do

Ensino Fundamental I considerado por essa equipe como um professor(a) criativo(a). Após a

indicação, entramos em contato diretamente com a professora e marcamos os encontros

descritos posteriormente.

Escolhemos utilizar a dinâmica conversacional ou conversação na produção de

informação, que na proposta de González Rey (2012) configura-se como:

[...] um processo cujo objetivo é conduzir a pessoa estudada a campos

significativos de sua experiência pessoal, os quais são capazes de envolve-la

no sentido subjetivo dos diferentes espaços delimitadores de sua subjetividade

individual. (p. 126).

Dessa maneira, o sujeito de uma pesquisa pode assumir uma postura ativa e reflexiva,

num processo de expressão de suas necessidades, durante a qual as emoções estão sempre

envolvidas.

Assim, construiu-se um roteiro semiestruturado para realização da primeira dinâmica

conversacional com o sujeito escolhido (Apêndice 1). Esse roteiro constou com questões

abertas dividas em dois grupos: 1) Formação do professor e as suas significações de atividade

criadora, o qual buscou apreender além dos caminhos percorridos por esse profissional da

educação, também quais as suas significações sobre a atividade criadora; 2) Escola e atividade

criadora, cujo objetivo foi apreender como a professora compreende a relação da escola e o

desenvolvimento da atividade criadora. Esse roteiro foi utilizado na primeira conversação, e

não se configurou como instrumento engessado e limitador. Ou seja, durante a conversa com a

professora selecionada diferentes perguntas foram feitas a partir da necessidade tanto da

investigação como das informações que afloravam na fala do sujeito.

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Após a leitura detalhada da transcrição dessa primeira conversação surgiu a

necessidade de realizar mais uma conversação com a professora para esclarecimento de certa

dúvidas levantas a partir dessa leitura. Todas as conversações foram realizadas no local de

trabalho do sujeito da pesquisa e também gravadas com a devida autorização (Apêndice 2).

Com relação ao procedimento de análise das informações produzidas, utilizamos a

proposta metodológica denominada de Núcleos de Significação. (AGUIAR; OZELLA, 2006,

2013; AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015). Essa proposta foi elaborada para

instrumentalizar o pesquisador no processo de apreensão das significações a partir da fala do

sujeito, diante da realidade com a qual se relaciona. Assim, ultrapassando a aparência das

palavras (significado), em busca da realidade concreta (sentidos). Dessa maneira, Aguiar,

Soares e Machado (2015) explicam:

Para que possamos, portanto, nos apropriar das significações, necessário se

faz apreender não sua unilateralidade, mas suas relações, qualidades,

contradições, isto é, as mediações sociais e históricas que as configuram como

unidades dialéticas da fala e do pensamento. (p. 61).

Portanto, para a análise e interpretação das informações produzidas necessita-se a

realização de uma leitura mais aprofundada das mesmas, e é a partir dessa leitura que são

levantados os pré-indicadores e indicadores, e assim, são constituídos os núcleos de

significação. Esse processo não é realizado de maneira linear e direta, mas sim dialeticamente,

onde o pesquisador deve ter clareza da noção de totalidade e de contradição como constituidoras

das significações do sujeito e das transformações que acontecem a partir da atividade que o

sujeito participa. Assim, após a transcrição das dinâmicas conversacionais realizadas com o

sujeito da pesquisa, realizamos diversas leituras do material para uma melhor apropriação das

informações.

Dessa maneira, nas primeiras leituras levantou-se as falas do sujeito que se

configuravam como pré-indicadores, ou seja, palavras ou expressões importantes para o alcance

do objetivo da pesquisa. Assim, destacamos aspectos particulares da fala do sujeito que foram

frequentes, enfáticos, ou por possuírem uma carga emocional maior ou por indicar contradições

na fala. Ou seja, é a partir do empírico, o qual se configura como a palavra com significado,

que se inicia a análise em busca dos sentidos do sujeito acerca do objetivo da pesquisa. Esse é

um momento da pesquisa que visa “[...] apreender não simplesmente as afirmações verbais do

sujeito, as também as significações da realidade que se revelam por meio das expressões

verbais, que são sempre carregadas de afeto.” (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015, p. 64).

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Os pré-indicadores se configuram como produções subjetivas mediadas por elementos

objetivos históricos, os quais o sujeito apropriou-se na sua constituição. Sendo assim, são vistos

e determinados nessa proposta como teses na tríade dialética tese-antítese-síntese. Entretanto,

apesar do pesquisador estar voltado para análise das informações, o movimento de síntese

acontece simultaneamente a ela, pois “[...] o pensamento é mediado o tempo todo pelo

movimento dialético de análise e síntese.” (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015, p. 66).

A partir de múltiplas leituras do material já produzido e descrito anteriormente, os pré-

indicadores passaram por um processo de aglutinação, pautado por semelhança,

complementariedade ou contraposição. Cada grupo de pré-indicadores aglutinados formaram

os indicadores, com o objetivo de nos aproximarmos ainda mais dos sentidos atribuídos pelo

sujeito à atividade criadora e ao desenvolvimento desta na escola. É nesse movimento que a

dimensão empírica do conhecimento das significações vai sendo superada pela dimensão

concreta. Aguiar, Soares e Machado (2015) afirmam que a sistematização de indicadores:

[...] tem como finalidade a negação do discurso tal como se apresenta, isto é,

a negação do dito. Para que isso seja possível, é preciso explicitar, por meio

do processo de análise e síntese, as contraditórias relações existentes entre os

pré-indicadores, relações estas que, inclusive, nos levam a articulá-los para

compor os indicadores. (p. 68).

Após isso, foram constituídos os núcleos de significação. O levantamento dos pré-

indicadores e a sistematização dos indicadores foram, portanto, o primeiro momento da

proposta metodológica, que vai do empírico, ou seja, do “todo caótico” à análise, as abstrações

mais simples (SAVIANI, 2004 apud AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015). O segundo

momento esteve relacionado com a constituição dos núcleos de significação, que vai das

abstrações mais simples à realidade concreta, ou seja, à palavra como síntese de múltiplas

determinações. É nessa articulação dialética das partes, dependente da teoria, é que chegamos

às zonas de sentido.

Essa etapa foi dividida em duas fases: 1) inferência e organização dos núcleos, a partir

da aglutinação dos indicadores tendo em mente os critérios de semelhança,

complementariedade e/ou contradição (AGUIAR; OZELLA, 2013); 2) discussão teórica dos

conteúdos que constituem cada núcleo, momento em que se torna possível a interpretação dos

sentidos. Assim, a intencionalidade do pesquisador consiste em:

[...] superar as teses e antíteses que vieram à tona nas duas etapas anteriores

do tratamento dos dados, almejando mais propriamente a síntese. Desse modo,

as duas fases que envolvem a constituição dos núcleos de significação

acontecem pela articulação dos “momentos” diferentes e mesmo

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contraditórios apreendidos nos indicadores, que se dá pela relação entre as

partes e o todo, isto é, os indicadores – que trazem a articulação de um

conjunto de pré-indicadores – e a totalidade histórico-social, destacando-se

nesse processo a importância da teoria como produção histórica e social.

(AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015, p. 71).

Com o intuito de constituir uma análise mais completa e sistematizadora, realizamos,

já nas considerações finais do trabalho, uma análise integrada dos núcleos de significação à luz

do contexto social e histórico, à luz do discurso do sujeito e à luz da teoria. Em concordância

com Aguiar, Soares e Machado (2015), o pesquisador, nesse momento, esforça-se para criar

zonas de inteligibilidade a contribuir com a construção de um conhecimento cientifico, teórico

e metodologicamente orientado, com a intenção de criticidade.

É importante destacar que, no movimento dialético de constituição dos núcleos de

significação, conforme os autores acima citados, o pesquisador não pode ser guiado apenas pelo

domínio da técnica. Assim, é necessário também alicerçar-se nos pressupostos teóricos-

metodológicos discutidos no segundo capítulo dessa dissertação, os quais orientaram o processo

de análise e interpretação das informações produzidas.

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5 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS

Neste capítulo será apresentado a análise e a interpretação das informações produzidas

por meio das dinâmicas conversacionais realizadas com o sujeito da pesquisa. E a partir disso,

percebemos que todas as mediações discutidas nos núcleos de significação contribuíram para

nossa compreensão das significações, constituídas pela professora entrevistada com relação à

atividade criadora e o desenvolvimento dessa atividade pela e na escola.

Antes de iniciarmos a discussão a seguir, gostaríamos de destacar que utilizaremos o

nome fictício Carla para preservar o anonimato do sujeito investigado.

5.1 Os Núcleos de Significação.

5.1.1 Núcleo 1 – O percurso profissional: A constituição do ser professora.

Este núcleo tem como objetivo apresentar e analisar o processo de formação de Carla

como professora, ou seja, os caminhos trilhados na sua formação acadêmica e profissional. Será

discutido também como esse processo de formação constituiu e constitui o seu compromisso

com a educação e com o desenvolvimento das crianças. Bem como qual a relação dessa

professora com a sua profissão. Apesar de tratarmos especialmente a constituição acadêmica e

profissional da entrevistada, entendemos que esta formação está em um constante movimento

dialético com o percurso pessoal da professora, pois falamos do processo de constituição de um

indivíduo singular por meio das suas mediações históricas, ou seja, as suas particularidades.

A professora Carla foi a primeira das suas três irmãs a cursar uma universidade. As

outras duas estudaram até o ensino médio, em seguida começaram a trabalhar e logo casaram-

se. A entrevistada revelou que, desde criança, queria ser professora por ser a profissão que mais

admirava. Importante considerar que Carla possuía um acesso à informação limitado e mal

conhecia outras profissões, bem como as possibilidades para continuar a estudar após a

conclusão do ensino médio. Isso é destacado nos trechos a seguir por ela revelado:

Na minha época, eu nem conhecia ETEC, nunca tinha ouvido falar. Eu só

conhecia a USP, mas pra mim era uma coisa, conhecia de ouvir falar, que

era uma coisa muito longe.

[...] era a única profissão que eu me identificava porque não conhecia

outras profissões também. Então eu achava bonito ser professora, aí eu

falei “então vou ser professora.”.

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Seguindo esse raciocínio, Bock (2008) destaca em sua pesquisa sobre a escolha da

profissão por jovens de baixa renda que, mesmo nos tempos atuais, esses jovens ainda escolhem

profissões dentro do seu universo vivencial. Essa situação é também identificada na vida de

Carla quando afirma:

[...] o curso que eu mais conhecia era professor, porque a minha mãe não

me levava muito ao dentista, não tinha tanto acesso aos médicos, então eu

não conhecia outras profissões.

Ou seja, percebemos que as suas condições de vida não possibilitaram o conhecimento

de outras profissões, principalmente na sua formação escolar. Assim, concordamos com

Vigotski (2009a) quando destaca que a escola pode e deve ser responsável também por

aumentar a experiência social da criança, para que ela possa se apropriar dos conhecimentos

socialmente produzidos e ter melhores condições de desenvolvimento como ser humano. No

caso em questão, entendemos que o conhecimento das diversas profissões seria algo importante

para Carla.

Sobre a questão da escolha da profissão, Bock (2008) afirma que o sujeito realiza sim

essa escolha, mas para compreender esse processo “[...] é preciso estudar seu movimento

pessoal (seus sentidos) e o conjunto de significações e condições objetivas e sociais onde está

inserido.” (BOCK, 2008, p. 145). Como Carla tinha necessidade de trabalhar para bancar os

custos da faculdade, optou por fazer o curso de Pedagogia, uma vez que a sua carga horaria

possibilitava conciliar o trabalho com a realização da graduação. Embora ela afirme que a

escolha desse curso foi por gostar da profissão, percebemos que essa escolha teve como

prevalência a determinação das condições objetivas e sociais específicas. Afirmamos isso

porque sua família era de uma classe social de baixa renda, já que sua mãe era dona de casa e

seu pai um metalúrgico. Essa situação é destacada por Carla na fala a seguir:

A gente também não tinha um poder aquisitivo muito alto, a gente não

viajava muito, ficava em casa. Não ganhava muito presente [...].

Corroborando essa ideia, a entrevistada afirma que a sua primeira opção era o curso

de Educação Física, entretanto, como a carga horária deste curso era em tempo integral, Carla

não podia realizá-lo. Portanto, precisou abrir mão dessa sua opção devido não ter condições

objetivas de somente estudar.

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Por tudo o que foi dito acima, percebemos que Carla ainda não tem uma visão crítica

com relação as determinações sociais que lhe levaram a escolher o curso de Pedagogia, como

analisamos da sua seguinte fala:

E acho que foi até por destino e por uma sorte porque eu gostei muito do

curso, eu me envolvi bastante com o curso.

Após o término da faculdade, Carla realizou duas especializações: uma em Educação

Especial e a outra em Psicopedagogia. Atualmente, ainda continua se aperfeiçoando como

professora por meio dos cursos que a secretaria de educação oferece aos professores da rede

municipal. Esses cursos constituem sua prática pedagógica, tal como o curso de flauta doce que

possibilitou à professora o oferecimento do ensino desse instrumento para os seus alunos em

sala, diversificando dessa maneira o currículo e as possibilidades de aprendizagem e

desenvolvimento das crianças.

Essa busca por formação continuada, segundo Carla, a mesma está relacionada com a

necessidade de conhecimento e de não ser uma professora retrógrada. Além disso, a professora

se aperfeiçoa para ter possibilidade de atender as diversas demandas da escola pública, como a

diversidade social, a cultural e a econômica que se faz presente nas salas de aula. Assim, a busca

por conhecimento e capacitação surge a partir da prática diária de Carla na escola, como

destacado na seguinte fala:

A gente tem uma diversidade de crianças, de todo tipo, principalmente na

rede pública. Então, a gente precisa de formação, a gente precisa de

capacitação, a gente precisa ler, a gente precisa se integrar.

Percebemos que esse movimento em busca de melhor formação pode ser

compreendido ao considerarmos o inevitável movimento dialético entre a subjetividade dessa

professora e a realidade objetiva. Ou seja, a partir das transformações que ocorrem na realidade

objetiva, surgem novas relações do sujeito com o mundo social, assim, surgindo novas

necessidades nesse sujeito. Essas necessidades se referem a um estado de mobilização do

sujeito, um estado dinâmico, muitas vezes sem uma clara intenção, onde a emoção é um aspecto

preponderante sobre a razão. A necessidade, como destaca Aguiar et al. (2009), não dá uma

direção clara à atividade do sujeito, pois, como já dito, ela apenas nos mobiliza. A direção da

atividade do sujeito, no sentido de atender as suas necessidades, ocorre no momento em que o

sujeito significa algo do mundo social como o motivo da sua ação. Os autores esclarecem

também que “[...] os motivos, sejam eles fatos sociais, situações ou objetos, de algum modo são

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depositários e contêm/condensam afetos, crenças, valores do sujeito, que assim os vê e assim

os sente.” (AGUIAR et al., 2009, p. 67).

Portanto, podemos dizer que os motivos que direcionam as ações de Carla estão

relacionados com as demandas da escola pública, os desafios deparados no trabalho pedagógico

e na diversidade de cada criança encontrada na sala de aula. É nesse movimento dialético que

Carla vai se constituindo como professora. Como observamos na fala:

[...] quando eu iniciei a minha carreira, eu achava que era uma mera

transmissora de conhecimento, que eu tinha que saber tudo e que eu tinha

que transmitir tudo aquilo para os meus alunos, [...] O tempo foi passando

e eu vi que não era isso. Eu fui aprendendo muito com eles e eu vi que não

era isso.

E também na fala:

[...] pra mim hoje, ser professora, ser uma educadora, é compartilhar

conhecimento. Claro que eu trago muita coisa que eles não sabem, mas

eles também ajudam a formar muitas vezes o meu caráter, ajuda a

formar a aula que eu vou dar no dia seguinte.

O compromisso, destacado por Carla, com a profissão e a educação das crianças como

cidadãos, vai além do ensino dos conteúdos do currículo. Revela uma concepção de educação

que busca o desenvolvimento do sujeito como totalidade afetiva, cognitiva e ética. Recorrendo

aos conceitos de motivos e necessidades, podemos supor que Carla sente-se mobilizada por tal

concepção de educação, geradora de experiências afetivas e cognitivas. Assim, a professora

significa como motivadoras as práticas pautadas pela crítica, pelo compromisso com o

desenvolvimento da criança e com a ética.

As seguintes falas nos exemplificam essas questões:

Eu acho que as crianças são cidadãos, eles tem sentimento. Eu jamais

passaria na vida de uma criança sem deixar uma marca.

Eu sempre gosto de plantar uma sementinha, eu sempre gosto de deixar

ali alguma marca na vida deles. Por isso que eu falo muito sobre valores,

por isso que eu falo muito sobre ética. A gente tem que passar na vida de

uma pessoa de uma maneira positiva, principalmente deles, que são

pequenos.

Esse reconhecimento de si mesma, não apenas como “aulista e conteudista”, mas como

educadora de crianças e jovens a partir da demanda dos mesmos, constitui a prática pedagógica

da professora no sentido de oferecer a melhor educação possível para seus alunos.

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A escola, afirma Saviani (2008), é determinada socialmente. Vivemos numa sociedade

capitalista marcada pela luta de classes com interesses opostos, sendo assim, a escola é também

um lugar de contradições e de disputas. Em outras palavras, essa realidade social, cheia de

contradições, constitui o cotidiano escolar por meio das pessoas que ali estão e de suas

condições objetivas de vida. Isso é identificado na seguinte fala da professora entrevistada:

Eu trabalhava no estado e eu trabalhava numa periferia lá na Francisco

Morato, num lugar assim, muito ruim. Não tinha nem asfalto na rua. E o

meu aluno falava todo dia pra mim que ele ia ser ladrão, que ele ia ser

assaltante, porque o tio dele era assaltante e ganhava muito dinheiro com

isso. E depois passaram acho que uns cinco, seis anos, eu descobri que ele

morreu, que ele foi morto por policiais. Então, eu acho que a gente não

pode passar na vida deles sem que eles percebam algo.

Percebemos que o professor se depara com realidades dos seus alunos que não podem

ser ignoradas na sua formação. E, a partir do que foi dito por Carla acima, percebemos que ela

foi afetada pela realidade de vida do seu aluno. Entretanto, surge um questionamento: O que é

esse algo que deve ser percebido pelo aluno que Carla fala? Acreditamos que existem duas

formas possíveis de pensar esse algo, segundo Saviani (2008): 1) a educação deve ser

responsável em salvar a criança de baixa renda da marginalidade, considerada um desvio de

caráter individual e que deve ser corrigido pela educação, assim, possibilitando um futuro

melhor para essa criança e encaixando-a nos moldes do sistema de produção capitalista; ou 2)

a escola deve ser responsável por oferecer condições objetivas para todas as crianças se

desenvolverem e aprenderem, por democratizar o acesso a informação e ao conhecimento, por

reconhecer e defender o direito de todo o ser humano, principalmente o de classe trabalhadora,

a ter uma educação de melhor qualidade possível, a qual busca superar a discriminação e a

seletividade.

Acreditamos, a partir da análise da entrevista como um todo, e isso fica ainda mais

claro na análise de outros núcleos, que Carla busca sempre oferecer a melhor educação possível

para seus alunos. Talvez ela não se dê conta da condição da escola como reprodutora das

contradições da sociedade, mas compreende que cada criança tem uma história particular e que

se desenvolve e aprende de maneira diferente. Assim, Carla percebe que ela, como educadora,

e também a própria escola, podem e devem dar conta dessas demandas. Esse conhecimento foi

construído durante sua formação e seu percurso profissional e continuará em movimento,

sofrendo transformações por toda sua vida.

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É importante também destacar a relação afetiva que Carla possui com sua profissão.

Ela afirma nas entrevistas o quanto gosta de ser professora, o quanto gosta de ver seus alunos

se desenvolverem, o quanto o cotidiano escolar é prazeroso para si e como é compromissada

com os seus alunos. As falas a seguir ilustram isso:

Eu acho isso prazeroso, eu gosto de ver que as crianças estão se

desenvolvendo, eu acho que pra mim isso é educação. Eu gosto de

trabalhar com as crianças, eu não tô aqui porque eu sou concursada,

porque a prefeitura não vai me mandar embora. Eu gosto de trabalhar.

Eu gosto muito dessa profissão. [...] Eu gosto muito de lecionar, eu gosto

muito de vir pra escola, eu não me sinto cansada, enfadada. Eu gosto

dessa dinâmica.

Castro (2012) destaca que, para Vigotski, a emoção atravessa cada dimensão da vida

do sujeito e que desenvolve-se na mediação entre o indivíduo e a sociedade. Assim, Vigotski

estabelece uma unidade afetivo-cognitivo na constituição do indivíduo. Nesse sentido, Carla

assume na sua fala a admiração pela profissão de professora desde a infância e durante sua

história pessoal e profissional estabeleceu e continua a estabelecer uma relação afetiva com o

seu trabalho. Essa relação é essencial na sua prática pedagógica, e pode ser uma mediação

responsável por torná-la mais ativa e na busca de ultrapassar uma visão de educação mais

tradicional. Além disso, pode constituir uma postura profissional da professora mais

compromissada com o ensino aprendizagem e o desenvolvimento das crianças.

Em suma, concluímos que o percurso profissional de Carla foi e continua sendo

constituído por importantes mediações que favorecem sua postura ativa e compromissada com

a educação da criança e com sua própria prática. Apesar das contradições expressas, a

professora assume uma postura que, vai além da socialização do conhecimento socialmente

produzido, preocupada também com a formação de cidadãos, considerando a necessidade dessa

criança no processo de ensino aprendizagem.

5.1.2 Núcleo 2 – Concepção de ensino, de infância e o papel da educação e a relação

com a prática educacional.

Neste núcleo destacaremos algumas concepções de Carla expressas durante as

dinâmicas conversacionais e como essas concepções constituem sua prática como professora.

As suas concepções sobre ensino, infância e o papel da educação talvez se configurem como

importantes mediações para sua prática mais ativa e compromissada com a aprendizagem e o

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desenvolvimento da criança. Essa sua prática está em constante movimento de transformação

por conta das contradições sociais.

Carla possui concepções de infância e de ensino aprendizagem que vão, de certa

maneira, ao encontro das concepções da psicologia sócio-histórica. Ela expressa em sua fala

que considera a criança um ser ativo e histórico:

As crianças hoje são mais vivas, e não adianta a gente querer aquele perfil

do passado pro presente. E nem adianta ficar idealizando aquela criança,

aquele aluno quietinho, que ficava sentado quatro horas. Isso não existe

mais, isso é morto, ponto. A gente tem que viver com a realidade de hoje.

As crianças são vivas, elas são espertas, elas querem contar, elas querem

participar, elas trazem notícias, elas trazem novidade.

Porque o mundo também mudou, as pessoas mudaram. E se a gente

entender isso, a aula da gente fica melhor.

Na visão de Carla, a criança é ativa, pois tem a necessidade de participar do processo

de ensino aprendizagem, e não ser apenas um indivíduo passivo frente ao professor e a sua

própria educação. Ela também considera o aspecto histórico em relação a formação da criança,

pois destaca a transformação da realidade do mundo e dos indivíduos. Percebemos, então, que

a professora revela uma visão que talvez supere as contradições sociais que assumem uma

posição de que o homem é visto como aquele ser individual, o qual é naturalizado e a-histórico,

negando, deste modo, sua condição de sujeito histórico.

Entretanto, observamos uma forma de pensar o aspecto histórico talvez de uma

maneira linear e direta, ao afirmar que, aquele aluno do passado, quieto e obediente, deixou de

existir. Segundo a visão sócio-histórica, a constituição do indivíduo está em contínuo

movimento dialético com a realidade objetiva, portanto, há sempre um movimento contraditório

a resultar em transformações. Dessa maneira, a escola, como uma instituição social, faz parte

da realidade objetiva e reproduz tal realidade no seu cotidiano. Assim, está também em

constante transformação por meio da superação das contradições.

Ao destacarmos a contradição como constituinte das transformações, afirmamos o

movimento de superação, no qual o novo surge, mas sempre contendo elementos do velho.

Dessa maneira, as experiências antigas não são aniquiladas mas, sim, superadas. Ou seja, no

movimento de transformação do mundo, o indivíduo também se transforma. Dessa maneira, as

relações entre os indivíduos que constituem o espaço escolar se modificam, constituindo novos

modos de agir e de pensar o processo de ensino aprendizagem.

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A professora também expressa em sua fala uma tendência contraditória na sua

concepção de infância:

Ser criança eu acho que é um ciclo da vida maravilhoso. É aquele nascer,

aquele despertar, aquele conhecer, conhecer o mundo. Então eu acho que

a criança tem essa vivacidade dentro dela, de querer se expandir, de

acreditar, porque ela confia.

Para a psicologia sócio-histórica não existe natureza humana e sim condição humana

(BOCK, 1999). Ou seja, o indivíduo não nasce com tendências, aptidões, habilidades ou

valores. Dessa maneira, o que a condição biológica hereditária oferece é a sustentação para um

desenvolvimento sócio-histórico. Assim, a professora, ao afirmar que a criança possui uma

vivacidade dentro dela, como se fosse uma tendência a se expandir e a acreditar, demonstra

uma visão naturalizante do indivíduo, ou seja, uma visão que dicotomiza o homem e a

sociedade. Apesar disso, ela não nega a importância do oferecimento de condições objetivas à

criança, para que aprenda e se desenvolva:

[...] acho que a gente como educador a gente tem esse dever de mostrar as

oportunidades para eles, mesmo que eles não forem, que os pais não

levem, mas a gente tem essa oportunidade de mostrar que tem outros

caminhos e mostrar [...]

A professora destaca que a educação e, principalmente, os educadores são

responsáveis por oferecer e apresentar as diversas possibilidades disponíveis à criança, ou seja,

oferecer as condições objetivas para que a mesma aprenda e se desenvolva. Isso pode se

configurar como uma oportunidade à ela se reconhecer como um sujeito ativo, a qual pode

transformar sua realidade a partir das condições objetivas.

Conhecer e valorizar a história de vida particular de cada criança também é importante

para o processo de ensino aprendizagem, como destaca Carla:

Você tem que valorizar a história de vida (da criança), você tem que

respeitar a história de vida. [...] Eu acho que hoje a criança tá ali na sala

de aula e a gente tem que ver ele como ser humano, tem que respeitar se

a gente quiser o respeito.

Isso pode estar relacionado também com a identificação e valorização da diversidade

na escola, pois ela afirma:

Porque essa escola ela não fica num bairro assim... É um bairro de

periferia, algumas crianças moram em abrigo, outras crianças tem pai e

mãe, então acho que é por isso essa diferença na sala de aula.

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Eu penso mais na diversidade e penso mais deles se desenvolverem.

Então a professora falava e eu achava que aquilo dava certo, mas a gente

só sabe o que vai dar certo e o que vai dar errado quando você tá com a

sua turma.

Podemos inferir que a professora considera em sua prática a história particular de cada

criança, e isto é favorecido por conhecer a realidade do bairro em que a escola está inserida. Ou

seja, percebe nesse espaço a diversidade social, cultural e econômica, e talvez por isso, busque

conhecer as necessidades particulares de cada criança, com o objetivo de não generalizar o

processo de ensino aprendizagem. Essa postura da professora também está expressa nas

seguintes falas:

[...] cada criança tem uma maneira de aprender, cada criança tem um

jeito de aprender, um tempo de aprender. E o que funciona pra um não

funciona pra todos.

Você pode planejar um monte de coisas, mas se você não conhece a turma,

se você não conhece o aluno, aquilo lá cai por terra.

Podemos dizer, assim, que a professora está preocupada em alcançar a todos os seus

alunos no processo de ensino aprendizagem. Ela busca oferecer a melhor educação possível

para cada criança e respeita as necessidades e demandas de cada uma delas. Entretanto, segundo

Arroyo (2013), esse reconhecimento da singularidade no processo de ensino aprendizagem não

garante a superação de visões dicotômicas, naturalizantes, negativas e lineares do

desenvolvimento humano. Para superar esses tipos de visões é necessário romper com discursos

preconceituosos, reconhecer as determinações sociais da criança, bem como reconhecê-la como

sujeito ativo, histórico, afirmativo e de direitos. Nessa direção, acreditamos que Carla busca

superar os discursos preconceituosos quando critica, por exemplo, a atribuição de rótulos às

crianças formuladas pelos professores:

Hoje eu vejo muitos professores fazendo isso, rotulam o aluno já no

segundo ou no terceiro ano e quando vai chegar no sexto todo mundo já

conhece só pela fama. [...] cria um rótulo e a gente tem que tomar muito

cuidado com os rótulos.

Segundo Arroyo (2013), esse reconhecimento negativo da criança, principalmente

oriunda de uma classe social de baixa renda, serve apenas para inferiorizá-la. Se faz urgente

práticas que afirmem a autoria positiva dessas crianças, para fortalecê-las como sujeitos e

reconhece-las como cidadãs ativas na sociedade. Isso contribui para o respeito e a valorização

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da diversidade, não só entre educador e educandos, mas também em relação a todos os

indivíduos da sociedade.

A professora também critica o ensino tradicional e autoritário, principalmente o que

recebeu quando criança, ao contar uma experiência pessoal nas falas abaixo:

[...] quando eu estava na escola eu tive uma professora que até hoje eu

não esqueço dela. Ela me chacoalhou tanto na carteira, porque eu não

sabia uma bendita de uma tabuada, que eu fiz xixi na calça. E aquilo me

travou de uma tal maneira que eu falei que eu nunca vou ser igual a ela.

Nunca vou fazer isso que ela fez comigo.

[...] eu falo como que podia na época a gente, com tão pouco, e a

professora se sente tão autoritária, ao ponto de você não saber o conteúdo,

ela te chacoalhar na carteira e fazer você passar toda aquela humilhação,

aquele vexame.

Ao contar essa história, Carla se emociona. Assim, percebemos como essa situação

vivida na sua formação escolar a marcou negativamente, embora evite usar esse tipo de atitude

no processo de ensino aprendizagem. Talvez possamos afirmar que tal fato tenha sido um

elemento constituinte importante dessa postura crítica ao ensino tradicional, levando Carla a

assumir uma postura contrária a essa atitude, na tentativa de não reproduzi-la com os seus

alunos, o que se observa na seguinte declaração:

A escola continua lá com a sua lousa, com seu apagador, com uma criança

sentada atrás da outra. E na minha classe não tem isso, um dia eles tão de

círculo, um dia eles tão de um, um dia eles tão de quatro.

Em sua fala, ela também critica a posição passiva que os educandos tem que assumir

no ensino tradicional e, afirma que isso traz consequências para o desenvolvimento da criança:

[...] não adianta a gente querer aquela criança, sentada um atrás do outro,

aquele silêncio na classe e a professora passa lição, todo mundo quieto...

Eu acho que isso não é conhecimento, isso não leva a nada. As crianças

ficam introspectivas, elas não podem se expressar, elas não se deixam ser

aquilo que elas são. Eu já vi que esse conceito de aula não dá certo, pelo

menos pra mim não dá certo.

Apesar de demonstrar uma fala naturalizante, Carla expressa uma grande preocupação

com a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças. E essa preocupação vai além dos

conteúdos do currículo, no sentido de desenvolver as crianças como cidadãos éticos e com

valores, como observamos na fala a seguir:

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(Eu espero) Que eles aprendam, que eles se desenvolvam, que eles

cresçam como pessoa, que eles aprendam valores, que eles sejam cidadãos

éticos, sabe?

Porque se eu for só chegar na sala e der uma aula normal, possivelmente

ela vai aprender. [...] ela vai saber o que é adjetivo, ela vai saber essa

matéria. Mas eu quero além disso, eu quero que ela tenha esses valores,

eu quero que ela saiba trabalhar em grupo, eu quero que ela saiba

valores, eu quero que ela aprenda isso também.

Assim, Carla assume sua responsabilidade como educadora e seu compromisso de

educar as crianças. Isso constitui a sua prática, no sentido de ser mais ativa, crítica e em alguns

momentos, considera a totalidade do processo de ensino aprendizagem. Achamos que isso

também contribui à crítica de Carla em relação a transição da educação infantil para o ensino

fundamental:

Eu acho péssimo (a transição da educação infantil para o ensino

fundamental). Eu acho que existe um rompimento ainda. Apesar deles

falarem que não, mas eu acho que existe um rompimento. [...] A gestão

pública. Fala que não, que a gente vai continuar esse movimento de lúdico

até o terceiro ano, mas as cobranças são diferentes, os espaços são

diferentes. Eu acho que até poderia acontecer essa transição de uma

maneira mais tranquila se talvez o primeiro ano tivesse ficado na EMEI.

Esse fala de Carla se relaciona com a discussão sobre o estabelecimento do ensino

fundamental de nove anos, bem como o acesso de crianças a partir do seis anos de idade no

primeiro ano desse ensino. O que nos faz questionar sobre em que condições (ou a falta delas)

ocorreu essa mudança. Muito antes da implantação do ensino fundamental de nove anos, a

discussão sobre a descontinuidade da educação infantil para esse nível de ensino já era

realizada, a qual foi acirrada novamente com essa implantação (NOGUEIRA, 2011).

Nogueira (2011) afirma que a ruptura entre a educação infantil e o ensino fundamental

ainda se mantém de forma acentuada, mesmo com a ampliação do ensino fundamental, a qual

implicaria na reestruturação dessas duas primeiras etapas da educação básica. Apesar das

exigências, das demandas e das condições objetivas da escola serem diferentes no ensino

fundamental, percebe-se pelas discussões realizadas nesse núcleo, que Carla preocupa-se em

ultrapassar os desafios dessa etapa da educação básica (ensino fundamental I). E tenta manter

uma postura coerente na sua prática profissional, apesar de contraditória em alguns momentos.

Dessa maneira, a professora assume uma postura de superação das exigências desse período da

educação básica, pois se preocupa em ir além do ensino dos conteúdos programáticos. Portanto,

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está comprometida com uma educação mais totalizante da criança, a qual não é apenas um

depósito de conteúdo, mas sim um cidadão de direitos em formação.

Concluímos que, apesar de Carla expressar em sua fala algumas contradições, as quais

são constituídas socialmente e reproduzidas pelos indivíduos, a professora busca sempre

considerar o papel ativo e histórico da criança no processo de ensino aprendizagem, indo de

encontro a uma educação mais tradicional e rígida. Acreditamos que isso é resultado da sua

constituição como indivíduo e como professora, onde as diversas mediações discutidas no

primeiro e no segundo núcleo foram determinantes da sua realidade subjetiva.

5.1.3 Núcleo 3 – A postura profissional de Carla e a busca pela práxis no processo de

ensino aprendizagem

Neste núcleo temos como objetivo entender de que forma Carla constitui sua postura

profissional, pois consideramos uma importante mediação para a apreensão da constituição das

suas significações sobre atividade criadora. A partir da psicologia sócio-histórica, a constituição

da professora como indivíduo singular se realiza a partir da sua relação com o social. Ou seja,

é na prática do seu trabalho que ela constitui, de forma ativa e reflexiva, seus modos de pensar,

de sentir e de agir, num movimento constante de transformação.

Percebemos que Carla mantém uma postura questionadora e reflexiva, principalmente

frente as dificuldades que surgem durante sua prática:

E aí eu começo a investigar, eu vou um pouco contra o natural que é de

ficar “ah senta, para”. E eu começo a refletir por que ele tá fazendo

aquilo? Será que não tá muito ansioso? Por que ele tá fazendo? Será que

ele também não tem vontade de fazer, ele não consegue por isso que ele

rasga?

Entendemos que, a partir do empírico, ou seja, a partir dos fenômenos observados em

sala de aula e ao refletir sobre os mesmos, Carla busca investigar como pode entender um

fenômeno e de que maneira pode resolvê-lo:

A gente tem que trabalhar muito no concreto e aí eu comecei a procurar

isso. O que é trabalhar no concreto? Como prender atenção? Será que a

criança não aprende ou professor que não ensina? Como ensinar uma

criança que tem maior dificuldade?

Para Vázquez (1977), a práxis está intimamente relacionada com a atividade prática

objetiva e transformadora da realidade natural e social, e também com a subjetiva e

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transformadora do próprio homem. Ou seja, a práxis se configura como uma atividade que

estabelece uma unidade indissolúvel entre teoria e prática, e onde o sujeito possui a consciência

da sua finalidade. Assim, num movimento dialético, a prática constitui a teoria e a teoria

constitui a prática. Nessa fala, percebemos que Carla realiza uma reflexão a partir do fenômeno

constatado na prática pedagógica, e busca alternativas para suprir suas necessidades por meio

da teoria, a qual poderá constituir sua prática. De certa maneira, Carla tende a realizar uma

práxis em sua atividade profissional mesmo não sendo consciente disso. Assim, assume uma

postura ativa, no sentido de superar algumas práticas cotidianas que possam naturalizar o

processo de ensino aprendizagem.

Essa práxis estabelecida pela professora é corroborada ao observarmos como se dá o

seu dia a dia em sala de aula:

Como eu dou aula no primeiro ano as crianças nunca fazem a mesma

coisa ao mesmo tempo. Então, são os grupos. [...] Então, dentro da minha

sala eu tenho quatro aulas, ou cinco aulas as vezes. E cada grupo de

quatro crianças fazendo alguma coisa. E depois, quando dá um

determinado momento, a gente troca[...] Quando eles acabam de fazer a

atividade a gente faz o rodízio, até que quando chega o final do dia, todos

os grupos passaram por todas as ilhas.

Nós fizemos um tear, um tear de papel. [...] Acaba a lição eles pegavam o

tear e faziam. [...]

[...] passei alguns vídeos que falam sobre as crianças que não tem

condições financeiras, passei alguns vídeos sobre a realidade do Brasil.

E eu já dei aula em outra escola também que eles adoravam flauta, aí eu

falei então esse ano eu vou trabalhar com flauta com eles.

Eu prefiro sempre trabalhar com concreto pra depois passar pro

caderno, porque eu acho que eles acabam assimilando melhor esse

conhecimento.

Existe uma diversidade de atividades e de procedimentos pedagógicos que Carla

utiliza em seu dia a dia na sala de aula. Acreditamos que essa diversidade é resultado da possível

práxis da professora, pois quando busca conhecimento para explicar determinado fenômeno e

suprir uma necessidade, também está constituindo sua prática a partir da teoria, tornando seu

dia a dia em sala de aula mais rico e diversificado.

Carla também não dicotomiza o processo de ensino aprendizagem no que diz respeito

aos sujeitos envolvidos, como observado na fala seguinte:

[...] se os alunos estão com tanta indisciplina, se os alunos estão tão

terríveis assim, vamos questionar um pouco o professor também?

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Ao considerar importante o questionamento do professor, ou seja, a reflexão sobre a

prática pedagógica e sobre sua postura, percebemos que Carla atribui uma responsabilidade do

professor no processo de ensino aprendizagem que vai além da responsabilidade de transmitir

conhecimentos. Assim, ela busca considerar a totalidade desse processo. Isso é corroborado

pela importância que Carla atribui as relações entre os professores da escola, a equipe gestora

e os pais:

Eu tento falar isso com os pais pra eles conversarem em casa, deles me

apoiarem nas minhas decisões. Quando os pais apoiam a coisa flui um

pouco melhor.

Esse apoio (do coletivo de professores na escola) é super importante. [...]

um fala e mesmo que o outro não concorde 100%, mas se foi a opinião do

coletivo todo mundo faz. Isso que é legal.

[...] não adianta você ter ideias e a sua coordenadora, a sua diretora não

te apoiar! E aqui não acontece isso.

O processo de ensino aprendizagem não depende apenas das partes, ou seja, não

depende apenas do aluno, do professor, ou da família. É na relação social e histórica que esse

processo acontece, portanto, todos são responsáveis e devem estar envolvidos coletivamente.

Assim, Carla não dicotomiza esse processo e considera importante ter condições objetivas que

favoreçam a realização da sua prática, como, por exemplo, o apoio da equipe pedagógica e dos

pais.

Essa não dicotomização do processo de ensino aprendizagem também favorece a

relação de Carla com as crianças. A professora expressa na sua fala como estabelece essa

relação com os alunos:

E quando eles tão quieto eu ainda chego fazendo bagunça, eu começo a

mexer. Vou, mexo com um, mexo com outro, quando eu vejo eles estão

que nem pipoquinha na classe.

Que nem o dia que a gente foi na biblioteca ouvir contação de história.

Eles falaram “prô, a gente podia passar no Mc Donald’s pra tomar um

sorvete.”. Verdade né? A gente podia passar no Mc Donald’s pra tomar

um sorvete.

Nós decidimos então, começamos a conversar o que a gente ia fazer [...]

Uma vez eles escolhem o filme, outra vez eu trago o filme.

Percebemos que Carla tem uma relação bem próxima com as crianças, a qual é mais

democrática, respeitadora e que considera as necessidades das mesmas. Dessa maneira, ela

reconhece que a criança é um sujeito ativo no processo de ensino aprendizagem, e acredita ser

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importante levar em consideração suas necessidades, oferecer espaços para a reflexão para além

dos conteúdos curriculares e valorizar a importância da história de vida da criança, como

observamos nas falas a seguir:

Esse ano fui eu que propus o projeto que se chama Amigo de Coração.

Esse projeto a gente trabalha o compartilhar, o conviver e o acolher.

Porque eu acho que hoje, num mundo que tem tanta tecnologia, que as

crianças veem tanta coisa, que a televisão é tão colorida, não adianta ficar

lá com o quadro negro em frente de uma lousa, com giz branco e

querendo que as crianças prendam atenção cinco horas, é impossível.

Então se você não tiver outra metodologia você não consegue atingir a

criança hoje.

[...] se a gente tá trabalhando geografia, se a gente tá trabalhando bairro,

então a gente vai conversar um pouco sobre a história do bairro, peço pra

eles trazerem alguma história da vida deles, se tá trabalhando um pouco

mais sobre as profissões, eu peço pra eles trazerem as profissões dos pais,

a gente conversa, depois a gente descreve as profissões, pra ver se tem

algum erro pra trabalhar alguma coisa de gramática, e a gente leva mais

ou menos assim nas nossas aulas.

Ao mesmo tempo, Carla considera a importância do currículo e a função do professor

de oferecer condições objetivas para a apropriação, pela criança, do conhecimento

historicamente acumulado:

[...] eu também não posso fugir do currículo, eu também não posso fugir

do conteúdo, tem coisas que são importantes, que eles tem que aprender.

Porque se eu for só chegar na sala e der uma aula normal, possivelmente

ela vai aprender. [...] ela vai saber o que é adjetivo, ela vai saber essa

matéria. Mas eu quero além disso, eu quero que ela tenha esses valores,

eu quero que ela saiba trabalhar em grupo, eu quero que ela saiba

valores, eu quero que ela aprenda isso também.

Segundo Meira (2000), a educação, por meio de diferentes mediações importantes,

torna-se um instrumento de luta, conscientização e de transformação da realidade. Para isso, é

preciso estabelecer uma educação crítica dos sujeitos, sendo necessário, principalmente, a

apropriação do conhecimento acumulado historicamente. Assim, Carla valoriza a apropriação

de conhecimento, mas também valoriza a condição de sujeito da criança, possuidor de

necessidades que, apesar de parecerem estranhas ao processo de apropriação do conhecimento,

são essenciais para o desenvolvimento de sua humanização. Isso é corroborado quando Carla

assume a importância da flexibilidade do planejamento de acordo com o andamento da sua aula

e também de acordo com as necessidades das crianças:

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Então a gente para, a gente conversa, às vezes eu deixo um pouco aquele

conteúdo de lado pra pegar alguma coisa que é mais importante no

momento.

[...] quando eu pego uma turma, e eu planejo e acho que vai dar e não vai

dando, eu vou mudando esse planejamento, eu vou adequando esse

planejamento. E quando chega no final do ano, também deu certo.

Eu sempre privilegio o currículo, porque eu sei que eles precisam desse

currículo. Até porque a gente tem muita avaliação externa, então as

avaliações externas chegam e se você não deu a criança não vai saber

fazer. Mas é claro que não é uma coisa engessada. Se eu tiver que parar

pra conversar, se eu tiver que parar uma ou duas aulas, três aulas, não

vai fazer tanta diferença.

A apropriação do conhecimento produzido socialmente e historicamente é muito

importante para o desenvolvimento da atividade criadora. Por isso, se torna também importante

a apropriação pela sujeito desse conhecimento, mas não de forma passiva e reprodutora, e sim

de maneira crítica e reflexiva. Assim, cria-se as condições da criança se constituir como um

sujeito ativo desse processo de apropriação e também de construção de conhecimento.

Percebemos, a partir das discussões feitas, que Carla constitui uma prática ativa em

relação ao processo de ensino aprendizagem, estabelecendo uma práxis a partir das suas

necessidades e das crianças. Percebe-se que por estabelecer essa práxis, Carla busca ultrapassar

práticas cotidianas da escola, no sentido de não reproduzir formas de agir e de pensar o

processos de ensino aprendizagem que possam compromete-lo. Dessa forma, a professora

estabelece uma relação mais consciente com sua prática, e, em alguns momentos, considera a

totalidade do processo.

5.1.4 Núcleo 4 – As Significações sobre Atividade Criadora: senso comum, dicotomias

e contradições.

Neste núcleo abordaremos as significações constituídas pela professora Carla sobre

atividade criadora e seu desenvolvimento na escola. Houve preferência pelo uso da palavra

criatividade durante as conversações por ser o termo mais utilizado no senso comum para

referir-se ao ato de criar e também por conta da expressão atividade criadora ser específica da

teoria vigotskiana. Assim, a intenção foi de evitar dúvidas que poderiam surgir em relação ao

foco da entrevista e que poderiam comprometer a produção de informação.

As significações constituídas por Carla sobre atividade criadora (agora já utilizando o

termo que para nós pareceu mais adequado) são acentuadamente dicotômicas, próprias do senso

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comum e contraditórias. Para Carla, atividade criadora está relacionada com a criação de algo

totalmente original, ou seja, está relacionado a não reprodução e apropriação do que já está

posto. Isso fica claro quando Carla fala sobre sua prática como professora e em como prepara

suas aulas e atividades pedagógicas:

[...] eu não me acho criativa, porque eu não crio nada. Eu transformo

muitas coisas, eu transformo as ideias que muitas vezes não são minhas.

A ideia original não foi minha. Até porque eu sei de onde ela partiu. [...]

Ou eu li isso num livro, ou eu pesquisei, eu li isso num trabalho, ou eu fui

a uma escola visitar, eu vi eles trabalhando dessa maneira e tive vontade

também de fazer. Eu sei de onde partiu, por isso que eu falo que eu não

crio nada.

Como percebemos por essas falas, a professora não considera a prática de pesquisar

novas possibilidades de trabalho e de materiais e também a apropriação do conhecimento

socialmente produzido como parte do processo de criação. É como se dependesse apenas do

indivíduo, que num momento de insight, dá forma a algo completamente novo e sem nenhuma

ligação com algo produzido anteriormente. Ou seja, o indivíduo cria algo do nada.

De encontro a essa concepção de Carla, Vigotski (2009a) afirma que a atividade

criadora está intimamente relacionada com a atividade reprodutiva, que entendemos mais

exatamente como a apropriação do conhecimento. Ou seja, esta está contida naquela.

Encontramos na realidade objetiva a base material necessária para a nossa imaginação criadora

operar, sem a qual não teríamos condições de criar algo. Essa base material vai sendo apropriada

pelo indivíduo a partir das suas experiências, e a apropriação do conhecimento historicamente

produzido se configura como uma maneira de enriquecer e, mesmo constituir, essa experiência

do sujeito.

Provavelmente, Carla constitui esses sentidos sobre a atividade criadora por considerar

que o ensino tradicional está intimamente relacionado com a reprodução de conteúdo. E ela,

frequentemente, critica esse tipo de ensino, e tenta evitar ao máximo elaborar suas aulas indo

ao encontro dele. Outra crítica posta pela professora, que provavelmente está relacionada com

o ensino tradicional, é a utilização de atividades pedagógicas que apenas envolvem o quadro

negro e o caderno, e destaca que sempre prioriza o uso de material concreto para auxiliar na

aprendizagem da criança. Sendo assim, ao considerar apenas parte e/ou elementos do processo

de criação, sem apresentar uma compreensão mais totalizante do processo, Carla constitui

sentidos dicotômicos sobre a atividade criadora.

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A ideia de que algo só é considerado como criativo quando é totalmente original, ou

seja, está focado no produto e não no processo, está bastante enraizada, não só nas concepções

de senso comum da nossa sociedade, como também em muitos estudos e conceitos

contemporâneos. Sobre isso, Zorzal (1999) nos esclarece que essa maneira parcial de entender

a atividade criadora acaba por restringir a capacidade criativa à determinadas criações e

determinados indivíduos. Sendo assim, a concepção de Vigotski sobre a atividade criadora nos

fornece uma maneira diferente de entender essa atividade das concepções contemporâneas da

psicologia da criatividade, avançando para uma visão mais totalizante e histórica do processo

de criação.

A professora ao falar sobre o que é ser criativo não considera a contradição existente

na sua fala, pois ela afirma que a criança é criativa, no sentido de ser uma característica natural

da mesma. Entretanto, considera também que o professor e a educação devem orientar essa

criatividade da criança para algum lugar. Isso é constatado nas seguintes falas:

[...] eu acho que a criatividade é uma coisa natural e que não pode ser

forçada. Ele é criativo.

Então eu deixo as crianças serem criativas, mas é claro que a gente

vai cercando essa criatividade e levando pra algum lado.

Observamos que duas visões contraditórias sobre a atividade criadora estão presentes

na fala de Carla: 1) a que considera a atividade criadora como algo natural do indivíduo, o qual

é ou não criativo, portanto, o indivíduo que possui criatividade dedica-se e responsabiliza-se

pelo desenvolvimento desse potencial; e 2) a que considera a atividade criadora como

ontologicamente inerente a todos os indivíduos do gênero humano, constituída e determinada

historicamente e socialmente. Esse fato fica ainda mais evidente nas falas a seguir:

Eu acho que depende dela (da pessoa criativa), mas também depende da

circunstancia que ela tá. Porque não adianta eu querer fazer uma coisa e

a minha escola me podar o tempo todo. Precisa do entorno também, que

te favoreça.

Essas contradições são produzidas socialmente e historicamente, e Carla se apropria

desta realidade, não tendo elementos para negar a dicotomia entre homem e sociedade. Portanto,

ela a reproduz em sua fala, sem uma crítica efetiva capaz de gerar um movimento de superação

da visão dicotômica entre sua concepção de atividade criadora e a sua prática.

Carla também atribui características específicas às pessoas com e sem criatividade.

Sobre as pessoas criativas ela afirma:

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Eu acho que quando uma pessoa é criativa ela consegue sair um pouco

dessa rotina, ela consegue mudar um pouco, e ela consegue fazer com

que a vida se torne com um brilho a mais, ela gosta, então ela vai atrás,

ela tenta fazer coisas novas, inovar.

Já as pessoas não criativas, Carla atribui as seguintes características:

Eu acho que uma pessoa sem criatividade, geralmente, é uma pessoa

muito apática, sem brilho, que faz coisas por fazer. Ela não arrisca, ela

não se arrisca, ela vai naquele negócio linear, “eu aprendi assim, eu sou

assim, e vou ser sempre assim, assim que eu sou.”.

Mais uma vez encontra-se o discurso liberal de que só depende do indivíduo e do seu

esforço, buscar o que deseja. No entanto, não podemos deixar de destacar que Carla expressa

em sua fala as contradições sociais, o que nos permite apontar, por um lado, como o liberalismo

ainda é a ideologia dominante na sociedade. Mas, por outro lado, percebemos como a realidade

se dá de maneira contraditória, a qual está em constante movimento dialético e sempre em

transformação. Vejamos como Carla nos revela tal contradição:

[...] eu acho que ela vai se descobrindo também, ela também vai te dando

uns indícios que não é por aqui, é por ali, ela gosta mais disso, ela gosta

menos daquilo. Essas crianças mesmo que eu ensino flauta que não vão

de jeito nenhum com certeza elas devem ter outras habilidades que ainda

não foram descobertas.

Ah eu não sei, o aluno mais criativo. Porque eu acho que tem várias áreas

do desenvolvimento, mas tem aquela criança que ela não é criativa num

texto, mas ela é super criativa numa partida de futebol, ela consegue

pensar rápido. Ela não é criativa por exemplo na educação física, mas ela

escreve um texto que você fala “nossa, olha que bacana”.

Ao falar em habilidades que poderão ser descobertas durante o desenvolvimento da

criança, a professora revela uma explicação naturalizante de desenvolvimento do sujeito. Ou

seja, ela considera que o desenvolvimento da criança ocorre de maneira linear e que ao descobrir

a habilidade com que a criança nasce, ela passa, a partir daí, a ser criativa em alguma coisa.

Sabemos que desenvolvimento para Vigotski (2007) é um processo dialético complexo,

determinado historicamente e socialmente. Sendo assim, o indivíduo se desenvolve como

criativo a partir das relações e atividades sociais que o constitui. Ou seja, para ser criativo o

indivíduo precisa realizar atividades que possibilitem a criação e não só atividades para

apropriação do conhecimento. Além disso, existem outras mediações que constituem essa

atividade, como as emoções, a necessidade de adaptação, entre outros.

Entretanto, reconhecemos que é importante o professor estar atento a criança e ao seu

desenvolvimento. Carla também tem clareza disto e considera essa possibilidade na sua prática.

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Esse olhar mais atento se faz necessário para o professor ter uma noção do estado dinâmico

desse desenvolvimento, quais as necessidade da criança, seus motivos e suas dificuldades.

A professora também relaciona a atividade criadora com a imaginação, no sentido de

que quanto mais a criança tem uma imaginação fértil, mais ela é criativa. Encontramos isso na

seguinte fala:

Mas quando eles contam uma coisa que é pra criar, “imagine você em tal

situação.”, você dá o espaço, aí eles imaginam tanto que às vezes eu falo

“nossa, não é possível. Onde você foi achar isso?”. É até engraçado.

A imaginação como sonho e devaneio está presente nas concepções do senso comum.

É corriqueiro acharmos que pessoas que “viajam” e imaginam o irreal, tem mais imaginação

que outras e, por isso, são mais criativas. Carla deixa claro que acredita que imaginação são

sonhos irrealizáveis, reproduzindo essa concepção, como observamos nas seguintes falas:

[...] eu acho que imaginação geralmente são sonhos...

Geralmente as minhas imaginações são sonhos, as minhas

imaginações se tornam sonhos. Às vezes tão abstratos que não

chegam a acontecer.

A imaginação é, segundo Vigotski (2009a), o processo psicológico base para a

atividade criadora. Assim, a imaginação vai além dos sonhos e devaneios, e possui uma grande

importância para o processo de criação, pois ela é responsável por transformar as impressões

das experiência vividas que podem constituir futuros produtos da criação. Entretanto, Carla

assume essa relação da imaginação com a criação a partir dos sentidos constituídos sobre os

dois aqui já explicitados, naturalizando os processos envolvidos, como na fala a seguir:

E eu acho que toda a criança é muito criativa, toda criança tem muita

imaginação, eles estão começando a vida, eles tem muito sonhos, eles tem

muita imaginação. Eles acreditam muito, eles acreditam que eles são

capazes, e a gente tem que dar asa pra isso, a gente não pode cortar isso,

a gente não pode cortar isso deles. A gente tem que deixar isso fluir.

Percebemos que Carla fala de uma característica da infância muito difundida no senso

comum, a qual afirma que a imaginação da criança é mais rica que a do adulto. Vigotski (2009a)

vai de encontro a essa concepção, afirmando que a criança apenas parece ser mais imaginativa

em relação ao adulto por conta de uma ausência de exigência e pretensão ao imaginar. É a partir

da puberdade que a imaginação se transforma, onde as experiências do sujeito se diversificam

e as suas necessidades são diferentes das necessidades da criança. Já o adulto possui uma

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imaginação mais rica por conta das suas experiências serem mais ricas, complexas e

diversificadas.

Talvez, o fato de Carla ter sempre trabalhado com crianças do ensino fundamental I,

que estão em um momento do desenvolvimento anterior a puberdade, possa ter contribuído para

a reprodução da concepção de senso comum de que a criança tem uma imaginação mais rica

que a do adulto. Apesar disso, há um certo reconhecimento por parte da professora de que a

imaginação é um processo importante para o desenvolvimento da criança, tendo a valoriza-la

no processo de ensino aprendizagem.

A professora também valoriza a produção infantil. Ao falar sobre a questão da

atividade criadora na escola pública e na particular, deixa claro que considera importante a

criança reconhecer-se na sua produção:

Na escola particular a gente já tem essa política, o pai não vem aqui pra

ficar vendo coisa feia, então a gente tem que dar uma “encrementadinha”.

Deixa ali, mas dá uma modificada pra ficar bonito. Eu acho que isso

também perde um pouco porque as crianças não se reconhecem.

Aqui não, na pública não. Saiu, é daquele jeito? Então é daquele jeito que

vai. Quando a gente faz painel eles fazem e a gente pendura, a gente coloca

pro pai ver aquela produção do aluno.

Essa valorização da produção infantil, segundo Vigotski (2009a), é importante para

dar sentido à aprendizagem e ao desenvolvimento da atividade criadora. Outra maneira de dar

sentido à atividade criadora da criança, à sua aprendizagem e ao seu desenvolvimento, é

valorizar a experiência da criança. Percebemos abaixo que Carla também considera essa

diversificação da experiência:

(A riqueza de experiências é) muito importante. Porque ela tá

aprendendo, ela tá aprendendo ser curiosa, ela tá aprendendo a

realidade da vida, ela tá vendo, ela tá conhecendo. Ela tá se

descobrindo e é na infância que ela vai ver tudo isso, ela vai se

descobrir.

Vigotski (2009a) destaca que o desenvolvimento, por exemplo, da criação literária,

torna-se bem mais fácil e bem sucedido se a criança escreve sobre a sua experiência, ou seja,

sobre algo que é familiar e compreensível, a qual incentiva a criança a expressar seu mundo

interior, sua subjetividade. Assim, a professora Carla oferece condições para seus alunos

aprenderem e se desenvolverem na sua totalidade. Percebemos isso no caso de um aluno

relatado pela professora em uma das conversações, que não conseguia aprender a escrever:

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[...] todo mundo queria ensinar o nome dele. J. [...] Ensinava e o menino

não aprendia escrever J. Teve um dia que eu cheguei e perguntei pra ele

o que ele queria aprender escrever. Aí ele falou esmalte. Aí eu falei

“esmalte? Mas por que?” aí ele “minha irmã todo dia fala, pega o

esmalte!”. Eu escrevi pra ele bem grande, esmalte, e colei uma fotografia

do esmalte. E falei “vamos tentar”?

Observamos que a professora busca considerar as necessidades, as experiências e as

vontades do seu aluno, claro, sempre com um objetivo a ser alcançado. Preza pelo

desenvolvimento e pela aprendizagem da criança e busca outras alternativas quando algo não

funciona, a não sustentar uma postura engessada e passiva frente aos desafios. Além disso,

busca sempre oferecer diversas oportunidades para as crianças, e defende que o dever da

educação e, principalmente do educador, é mostrar as oportunidades:

[...] acho que a gente como educador a gente tem esse dever de mostrar as

oportunidades pra eles, mesmo que eles não forem, que os pais não levem,

mas a gente tem essa oportunidade de mostrar que tem outros caminhos

e mostrar [...] mostrar mesmo, acho que essa é a função da escola também.

Ao mesmo tempo, Carla acredita que a escola colabora com o desenvolvimento da

atividade criadora da criança, mas com o discurso naturalizante do indivíduo:

Aqui (na escola) eles se sentem mais livres, aqui eles são eles também.

Pesquisadora: Como tu achas que a escola pode desenvolver a

criatividade do aluno?

Sujeito: Eu acho que a escola pode... É o olhar. É ter esse olhar, porque

deixando a criança ser o que ela é e ao mesmo tempo encaminhando,

oferecendo as oportunidades.

Ao mesmo tempo, para Carla, o desenvolvimento da atividade criadora na escola está

intimamente relacionado com as relações sociais que se travam no espaço escolar:

Pesquisadora: Tu achas que o ambiente escolar favorece ou ajuda a

desenvolver a criatividade dos alunos? Sujeito: A escola em si não. A

escola prédio, não. A estrutura da escola, não. Porque isso aqui não tem

vida. Quem dá vida pra escola são os professores, são os alunos, o corpo

docente, a diretora, a gestão que apoia.

Para a psicologia sócio-histórica o indivíduo se constitui e se humaniza a partir do

processo educativo, ou seja, na relação com o outro ele se apropria das objetivações humanas

que configuram o contexto da atualidade, as quais são históricas (SAVIANI, 2015). Dessa

maneira, o fato de Carla valorizar as relações sociais no processo de desenvolvimento da

atividade criadora destaca mais uma vez como a professora constitui sentidos contraditórios em

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relação a essa atividade, pois ao mesmo tempo que naturaliza o processo de desenvolvimento

do indivíduo, também considera alguns aspectos sócio-históricos desse processo.

Percebemos que nas conversações, Carla expressa suas significações sobre atividade

criadora de forma contraditória, reproduzindo as contradições socialmente produzidas, e

também o discurso de senso comum. Indo de encontro a isso, ao falar sobre a sua prática

pedagógica, percebe-se que a professora realiza boas práticas que se afinam com uma atividade

criadora.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo construtivo interpretativo alcançado por meio da proposta metodológica

dos núcleos de significação nos proporciona uma visão da totalidade das significações

constituídas pelo sujeito pesquisado sobre atividade criadora e o desenvolvimento desta na

escola. Apesar de primeiramente realizarmos uma análise sistematizada da constituição de cada

um dos núcleos de significação, o pesquisador deve ter claro o quanto é essencial a visão de

totalidade, o que promove o importante movimento de articulação das análises e das

interpretações dos núcleos entre si. Sabemos também que essa pesquisa representa um momento

do processo de construção de conhecimento, que está em constante movimento e transformação.

A professora, ao contar sobre como realiza sua prática pedagógica, demonstra-se

compromissada, atenta e que, provavelmente, se apropria de elementos do processo de criação

que Vigotski nos fala. A professora está frequentemente pesquisando novos conhecimentos

sobre o processo de ensino aprendizagem, com o intuito de atender necessidades que surgem

no cotidiano de sua sala de aula, sendo esse processo contínuo e dialético. Pela análise e

interpretação das conversações, percebemos que a formação de Carla e os caminhos percorridos

na sua vida, principalmente na vida profissional, foram e são importantes mediações para a sua

prática e para a constituição de concepções mais coerentes com a mesma.

Por meio dos estudos e na relação com a sua profissão, ou seja, na realização da sua

prática, Carla ensaia movimentos de superação de preconceitos e visões parciais sobre a

educação do indivíduo, e começa a perceber a importância de considerar as particularidades no

desenvolvimento e aprendizagem da criança e da sua necessária educação e não instrução.

Assim, é nesse sentido que Carla tende a constituir uma práxis, o que pode ser um importante

fator para realização de atividade pedagógicas tão diversificadas no dia a dia escolar.

Concordamos com Smolka (2009) quando afirma que o próprio processo pedagógico

é uma atividade criadora. Segundo a autora, na prática pedagógica deve existir a preocupação

de possibilitar as melhores condições para viabilizar o acesso da criança ao conhecimento

produzido e sua participação na produção histórico-cultural. A criação ancora-se nessas

experiências, onde cada uma delas oferece uma riqueza de possibilidades e formas de

realização. Portanto, no momento em que Carla se preocupa com as particularidades de cada

criança no processo de ensino aprendizagem, e busca conhecimentos para atender essas

necessidades, ou seja, busca novas experiências para sua prática, também realiza uma atividade

criadora.

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Entretanto, apesar de ter avançado durante sua formação e constituição como

professora a uma visão da criança como sujeito ativo e histórico, percebemos que Carla, ao falar

sobre atividade criadora, ainda expressa em seu discurso uma tensão, ao se aproximar em alguns

momentos de visões próprias da ideologia liberal, fortemente arraigada em nossa sociedade.

Isso é evidenciado quando focalizamos os núcleos de significação “Concepção de ensino,

concepção de infância e o papel da educação: as relações entre as concepções e a prática

educacional de Carla”, onde ela assume concepções mais próximas a uma visão sócio-histórica

do sujeito, e o núcleo de significação “As Significações sobre atividade criadora: senso comum,

dicotomias e contradições”, onde essas concepções são negadas ao naturalizar o indivíduo e o

processo da atividade criadora, a expressar diversas dicotomias em relação a sociedade e o

indivíduo.

Mesmo afirmando o desenvolvimento sócio-histórico da criança em alguns momentos

das conversações, Carla nega essa concepção ao falar que a criança é ou não é criativa. Ao

mesmo tempo, ela afirma que uma criança pode ser criativa em uma coisa e em outra não, mas

não tem consciência que o desenvolvimento da criação é determinado historicamente e

socialmente. Ao contrário, ela naturaliza esse processo, alegando que a habilidade que aquela

criança possui ainda não foi descoberta. Essa visão nos faz pensar que a professora realiza uma

prática possivelmente contraditória. Tal prática, apesar de parecer comum, não pode ser vista

como eterna. Patto (1996) nos ajuda a pensar sobre tal situação, principalmente, das professoras

de ensino básico:

Orientadas por uma visão contraditória de mundo e das questões relativas à

escola, são promissores enquanto sujeitos de um processo no qual suas

contradições sejam explicitadas e no qual sejam convidados a novas sínteses,

rumo à superação da maneira cotidiana de pensar e de atuar na realidade social

da qual participam. (p. 349).

Portanto, a superação dessa visão naturalizante do indivíduo e, consequentemente, da

atividade criadora e seu desenvolvimento, precisa ser entendida como um trabalho permanente

do coletivo escolar, no sentido de superar as formas engessadas, dicotômicas e restritas de

pensar, sentir e realizar o processo de ensino aprendizagem.

A professora entrevistada reconhece a importância da escola, da educação e das

relações sociais da escola no desenvolvimento da criança e consequentemente no

desenvolvimento da atividade criadora. Ela afirma que esse desenvolvimento está relacionado

com as relações que se acontecem dentro da escola e que todos devem estar envolvidos no

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processo de ensino aprendizagem da criança. Assim, ela reconhece a importância do social,

tendendo a pensar na totalidade desse processo.

A atividade criadora é desenvolvida a partir das relações sociais que constituem o

indivíduo. Ou seja, é através da mediação do adulto, no caso o professor, que a criança irá

aprender e desenvolver uma atividade criadora. Ao mesmo tempo, o professor se depara com

uma criança síntese de outras inúmeras relações sociais e que é ativa, viva, inteira, concreta

(SAVIANI, 2015). Portanto, é de fundamental importância que o professor leve em

consideração esse indivíduo concreto no desenvolvimento da sua humanidade. Dessa maneira,

pensamos ser importante constituir situações que propiciem a criação, e que garantam as

diversas mediações, tanto cognitivas quanto afetivas, que podem favorecer o desenvolvimento

da criação.

Outra demanda que nos suscita questionamentos, a qual não foi possível alcançar

respostas esclarecedoras por conta dos objetivos dessa pesquisa e que achamos um importante

debate para próximas investigações, diz respeito ao fato de que, para Carla, pelo menos em

vários momentos de sua fala, a criação surge do nada, ou seja, é completamente nova e sem

nenhuma ligação com algo produzido anteriormente. De que modo essa significação constitui

seus sentidos, suas formas de ser, de agir, de sentir e de pensar como docente? Pelas análise dos

dados produzidos podemos pensar que o ser docente de Carla se constitui de maneira

contraditória. Como qualquer outro ser humano determinado sócio historicamente, a professora

constitui sua subjetividade a partir da complexidade e das determinações do social. Dessa

maneira, Carla é constituída pelas contradições sociais, sendo que aí também se coloca a

possibilidade para a superação dessa realidade.

Carla, revela um conhecimento da realidade das crianças que educa, do bairro em que

sua escola está inserida e das condições de vida daquelas crianças, expressando um interessante

movimento de consideração das particularidades de cada criança e das suas necessidades. Este

modo de agir revela uma tentativa de não reproduzir preconceitos e rótulos que são situações

comuns entre os professores, principalmente do ensino básico, como discute Patto (1996). Isso,

no entanto, contraditoriamente, não a isenta de reproduzir formas naturalizantes de pensar o

indivíduo, mesmo com o firme propósito, por nós analisado, de proporcionar uma educação que

desenvolva o sujeito como totalidade.

Assim, essas discussões nos fazem questionar para que serve e para quem serve o uso

dos termos criatividade e criativo(a). Acreditamos ser necessária uma desmistificação no uso

desses termos, já que podem ser geradores e reprodutores de preconceito e ideologias enraizadas

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em nossa sociedade. Portanto, a questão da atividade criadora deve ultrapassar essas discussões

naturalizantes e reducionistas, as quais consideram a criação como dom ou como habilidade

inata do indivíduo, para uma visão mais totalizante e histórica do processo, no sentido de pensar

quais as implicações desta atividade para o desenvolvimento humano.

Dessa maneira, é uma visão que vai além do destaque reduzido ao produto resultante

da atividade criadora e sua relevância social, mas passa a considerar o processo da criação,

tendo em vista como esse processo pode favorecer a aprendizagem e o desenvolvimento que

pode originar. Isso também pode favorecer a formação de um indivíduo crítico, consciente,

compromissado, ativo e transformador. Por isso, é importante ressaltar a questão do processo

da atividade criadora para evidenciar o papel único e ativo do sujeito, o qual, a partir do

movimento de apropriação, de constituição de sentidos, da ressignificação, que caracterizam os

processos da imaginação humana, é capaz de colocar o novo no social. Dessa maneira, o

desenvolvimento da atividade criadora depende das condições objetivas e das determinações

sociais e históricas do indivíduo, sendo assim, a educação, e principalmente a escola, tem um

papel importante nesse desenvolvimento. Esse papel está relacionado com o oferecimento de

condições para o desenvolvimento da atividade criadora, visando o desenvolvimento da criança

em sua totalidade.

Por isso, é importante que a escola busque, no processo de ensino aprendizagem,

estabelecer relações democráticas de colaboração, para que se avance no desenvolvimento da

criança. Esta relação, denominada por Vigotski (2007) de zona do desenvolvimento proximal,

é um momento da aprendizagem e do desenvolvimento em que a criança em colaboração com

outras crianças e também com professores, consegue realizar aquilo que não sabe. Por isso, é

tão importante o oferecimento pela escola de espaços em que as trocas de conhecimento, a

valorização das diferenças e das necessidades sejam consideradas, enriquecendo o processo de

ensino aprendizagem e o desenvolvimento.

A educação não se estabelece apenas por um ou outro indivíduo. Na verdade, ela

acontece na relação com o outro, com o coletivo, com as diferenças e com a multiplicidade de

experiências. É na superação de visões cotidianas, dicotômicas e fossilizadas, ou seja, é no

movimento de consciência e superação das contradições sociais, no processo de ressignificação

do processo educativo, que as transformações podem ocorrer dentro da instituição escola e na

sociedade. É por meio do trabalho coletivo, crítico, ético e compromissado, realizado entre

sujeitos concretos com suas histórias e múltiplas determinações, que essas superações

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encontram terreno. E é nesse espaço que a atividade criadora pode ser desenvolvida e se fazer

uma realidade para todos os indivíduos.

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APÊNDICES

APÊNDICE I - Roteiro Para Dinâmica Conversacional

1) TEMA: Formação do professor e Significações de atividade criadora

-Primeiramente, você pode se apresentar e me contar sua trajetória de formação como

professor(a)? (Incluindo como decidiu ser, quais situações que considera marcantes ou

decisivas para a isto ter acontecido).

- O que é ser criativo para você?

- O que você entende por criatividade? ou O que é criatividade para você? ou O que criatividade

quer dizer para você?

- Você estudou especificamente sobre criatividade na sua formação?

-Você se considera criativo(a)? Se sim: Por quê? Se não: Por quê? Você acha que isso pode

mudar, que você pode desenvolver sua criatividade?

- Você acredita que a escola que você estudou contribuiu no desenvolvimento de sua

criatividade? Se sim: Por quê? Se não: Por quê?

- E a universidade? Se sim: Por quê? Se não: Por quê?

- E sua família? Se sim: Por quê? Se não: Por quê?

2) TEMA: Escola e atividade criadora

- Hoje, como professor, trabalhando em uma instituição de ensino, acha que a escola colabora

(ou pode colaborar) no desenvolvimento da criatividade dos alunos? Se sim: Como? Se não:

Por quê?

- Para você, o que está relacionado à questão da criatividade da pessoa (dos alunos) (no sentido

de o que faz a pessoa ser mais ou menos criativa)?

- Caso o professor(a) não relacionar com a questão da idade: Para você a criatividade está

relacionada à idade da criança? Se sim: Como você pode me explicar essa relação? Se não: Por

quê?

- Quais atividades você realiza no cotidiano de sala de aula que você considera que possam

desenvolver a criatividade de seus alunos?

- Você pode me descrever como planeja e realiza algumas dessas atividades?

- Por que você acha que essas atividades poderão desenvolver a criatividade dos alunos?

- Como você se sente ao desenvolver essas atividades com seus alunos?

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APÊNDICE 2 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TERMO DE LIVRE CONSENTIMENTO

Eu, ____________________________________________________, portador do RG

n° _____________ tendo conhecimento dos objetivos da pesquisa de mestrado da Sra. Rafaela

Cordeiro Gama autorizo a participação voluntária de ceder entrevista, bem como a divulgação

das informações obtidas por meio de sua participação, desde que esteja garantido o sigilo da

fonte. Tenho conhecimento, também, de que será assegurado o direito de interromper a

participação, em qualquer momento, sem que isto represente, para ele, qualquer prejuízo.

São Paulo, ___ de_______________ de 2015.

____________________________________________________

Participante da Pesquisa

____________________________________________________

Pesquisador (a) – Rafaela Cordeiro Gama

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APÊNDICE 3 – Transcrição da Primeira Conversação com a professora de Ensino

Fundamental I

Pesquisadora: Professora, você pode se apresentar e contar um pouquinho da sua trajetória, conte como

você decidiu ser professora, o que foi determinante pra isso acontecer. Fala um pouquinho de você.

Sujeito: Bom, eu sou A., eu trabalho como professora na rede municipal há 15 anos, eu já fiz vários

cursos, trabalhei 5 anos no CEFAI. Sou formada em pedagogia, fiz pós-graduação em Educação especial

pela UNESP, fiz também psicopedagogia e faço todos os cursos que aparecem na rede que são

interessantes. Desde pequena eu queria ser professora. Meus pais não tiveram muito estudo, só

estudaram até o ensino fundamental. Na minha casa nós somos em três meninas, e as minhas outras duas

irmãs que são mais velhas também não estudaram, fizeram até o ensino médio e depois foram trabalhar

e casaram-se. Eu fui a primeira da minha família a me formar, então eu fiz pedagogia. Até porque na

época a gente não tinha muito o que fazer assim, o que fazer, o que estudar, a gente não tinha todo esse

conhecimento que as pessoas tem hoje. Hoje é muito mais divulgado outros cursos. Então acho que pra

mim, o curso que eu mais conhecia era professor, porque a minha mãe não me levava muito ao dentista,

não tinha tanto acesso aos médicos, então eu não conhecia outras profissões. Conhecia a profissão de

professora, me encantei por causa das minhas professoras, e aí então eu fiz pedagogia porque eu gostava

mesmo. Então quis ser professora.

Pesquisadora: Então não tinha ninguém na família professor, no caso.

Sujeito: Não. Não tinha ninguém professor. Mas era a única profissão que eu me identificava porque

não conhecia outras profissões também. Então eu achava bonito ser professora, aí eu falei então vou ser

professora. E na minha família eu fui a primeira a me formar.

Pesquisadora: Como foi pra tua família tu seres a primeira filha a entrar na faculdade?

Sujeito: Nossa, minha mãe ficou super encantada, porque foi a primeira filha que fez faculdade. Então

quando eu entrei na faculdade meu pai também ficou super contente. A princípio eu queria muito fazer

Educação Física, mas que acontecia... A educação física na época era integral, e eu não tinha como pagar

a faculdade, então minha mãe falou “não, você tem que trabalhar pra poder pagar a faculdade”, então eu

falei “então, vou fazer pedagogia”. E acho que foi até por destino e por uma sorte porque eu gostei muito

do curso, eu me envolvi bastante com o curso. Depois eu comecei a trabalhar na rede e comecei a exercer

a profissão. Mas trabalhei no estado antes de trabalhar na prefeitura, trabalhei em escola particular. Aí

depois prestei concurso e passei na prefeitura.

Pesquisadora: Você é de São Paulo mesmo?

Sujeito: Eu sou de São Paulo mesmo.

Pesquisadora: E você fazia faculdade a noite?

Sujeito: Eu fazia faculdade no vespertino. Eu trabalhava num banco e depois saia do banco quatro horas

e entrava na faculdade cinco e meia.

Pesquisadora: E como foi pra você fazer Pedagogia?

Sujeito: Então, eu me encantei com o curso. Eu queria muito me formar e eu entrei na faculdade com

aquele propósito. Então foi muito difícil, o último ano eu lembro que a minha mãe ficou muito doente,

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veio até falecer um pouquinho depois que eu tirei meu diploma. Então no último ano eu lembro que em

dezembro eu estava na colação de grau, e a minha mãe faleceu logo depois. Foi muito difícil, porque a

gente acabou gastando muito com a doença dela e eu não tinha dinheiro pra pagar a faculdade, mas

depois eu acabei acertando e deu tudo certo.

Pesquisadora: E na escola particular você trabalhou com criança também?

Sujeito: Isso, com ensino fundamental.

Pesquisadora: Trabalhou com educação infantil também?

Sujeito: Não, educação infantil eu nunca acabei indo pra essa área. Eu sempre fiquei no fundamental

mesmo.

Pesquisadora: Quando tu pensas na tua formação, em toda tua trajetória, como tu reflete sobre a questão

de ser criativo? O que é ser criativo pra ti?

Sujeito: Então, eu acho que a criatividade é uma coisa natural e que não pode ser forçada. Ele é criativo.

Então eu sempre tive essa preocupação com as crianças que não conseguem aprender, com as crianças

que são deficientes que estão na minha sala, e a minha preocupação é sempre que elas saiam com

conhecimento a mais. Eu procuro fazer o máximo que eu consigo pra que aquela criança se desenvolva.

Muitas vezes a gente não usa caderno. E eu tenho um aluno com deficiência que é meu desde o ano

passado. Quando eu cheguei aqui em julho, porque eu trabalhava em outro órgão da secretaria da

educação, ele só rasgava e a professora falou pra mim “ah, eu não aguento mais esse aluno, ele rasga

todo o caderno, ele rasga tudo. Ele acaba com as atividade dos alunos, quando eu dou folhinha ele passa

nas carteiras e rasga tudo.” E aquilo me incomoda, entendeu? Eu falo “mas por que essa criança tá

fazendo isso? Em algumas coisa ela não tá sendo atingida pra ela tá fazendo isso.”. E aí eu começo a

investigar, eu vou um pouco contra o natural que é de ficar “ah senta, para”. E eu começo a refletir

porque ele tá fazendo aquilo? Será que não tá muito ansioso? Por que ele tá fazendo? Será que ele

também não tem vontade de fazer, ele não consegue por isso que ele rasga? E eu vou mais pra esse

campo. Hoje, até estava conversando com a L., “nossa L. ele tá super bem. Ele quer fazer a lição.” Então

ele fala pra mim “ pro, o que a gente vai fazer hoje?”, quando eu chego. Faz um ano que ele tá comigo,

e ele já tá quase silábico alfabético. Ele que fazer lição, mas no começo eu fugi muito dessas folhinhas,

mimeografadas ou xerocadas, eu trabalho muito material concreto com ele. Ele já sabe contar, ele já

reconhece os números, ele já sabe algumas letras. Eu acho que é isso, eu acho que você olhar o outro e

tentar entender, e deixar que a criança também se desenvolva. Então é mais ou menos praí que eu

caminho.

Pesquisadora: Então ser criativo pra ti é natural da criança? Tem que deixar ela solta..

Sujeito: Então, deixar ela solta, mas não sem ter nenhum propósito. Ah, vamos deixar a criança solta e

aí... Quando eu cheguei, se a gente olhar por esse lado ele era super criativo, porque ele ficava solto o

tempo todo. Mas eu comecei observar ele e perceber o que faltava nele. Primeiro eu percebi que faltava

um pouco mais de afeto, porque você falar com ele gritando não adiantava nada. Então eu puxei ele pro

meu lado. Depois eu comecei a fazer atividades com ele. Então, eu fiz a mão dele, falei que ele tinha

cinco dedos, e a gente começou a contar os dedos. Até hoje atrás da minha porta eu tenho as mãozinhas

pra ele contar. E ele ficou encantado quando ele viu a mão dele. Eu trouxe um espelho, apresentei ele,

falei que ele era o A., que ele tinha muitas possibilidades, que ele era inteligente. Sempre elogiei muito

quando ele acerta as atividades, e ele adora que eu elogio. Então, foi por aí que eu fui ganhando ele. Não

é deixar ele solto, da maneira que ele quer. É de uma forma que ele também tenha um certo

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conhecimento, porque até então ele só rasgava tudo. Ele era o aluno problema da sala, que batia e

rasgava. Hoje ele nem bate e ele nem rasga. Hoje ele faz as atividades, ele tem o maior orgulho. Ele

terminou o primeiro caderno dele agora, que encheu o caderno. E ele ficou todo orgulhoso porque ele

tem o caderno, e ele falou “nossa eu vou levar o meu caderno pra minha casa e vou guardar o meu

caderno.” Porque foi o primeiro caderno e ele já tem dez anos, foi o primeiro caderno que ele conseguiu

fazer as atividades. Então eu deixo as crianças serem criativas, mas é claro que a gente vai cercando essa

criatividade e levando pra algum lado. Então, se a gente vai fazer um texto, uma produção, eles vão

dando as ideias, eu vou colocando na lousa quais são as ideias, depois a gente discute, “ah o que fica

melhor nessa frase? Olha e se eu colocar isso vai ficar bom assim?”. Eles mesmos chegam a conclusão

que não fica bom. Eles mesmo chegam a essa conclusão “não pro, não ficou bom assim não! E se a

gente colocasse a que tá embaixo?” Porque eu deixo... Vamos escrever um texto, aí vamos falar, sei lá,

se a gente tá falando alguma coisa de São Paulo, ou do nosso bairro e eles vão colocando as ideias deles.

E eu falo “pode colocar o que vem na cabeça de vocês”. E ás vezes a frase nem é tão legal, “a minha rua

é suja, tem traficante”, eu vou colocando, tudo o que eles vão falando eu vou colocando. E depois quando

a gente vai escrever o texto a gente vai encaixando as frases que eles vão falando. Aí eu “ e aí, ficou

bom? Ah ficou, não ficou.”. No ano passado nós fizemos um projeto que eu tirei da classe mesmo, do

que a gente ia conversar, o que a gente ia estudar. E aí eles falaram pra mim “ah, a gente quer estudar o

formigueiro.”. Mas o formigueiro? Meu Deus do céu, nem eu sei tanto assim sobre formiga. Aí a gente

foi caçar na escola as formigas. Então, no ano passado eu deixei o projeto mais solto. Só que eu percebi

que as crianças elas são muito agressivas, uma batia na outra, uma perturbava a outra, era característica

dessa sala. Esse ano fui eu que propus o projeto que se chama Amigo de Coração. Esse projeto a gente

trabalha o compartilhar, o conviver e o acolher. Uma vez por mês, na última sexta feira, a gente assiste

um filme. Uma vez eles escolhem o filme, outra vez eu trago o filme. E a gente vai fazendo várias

atividades sobre isso. Então, nós fizemos a páscoa compartilhada, onde eu pedi pra que cada aluno

trouxesse o seu lanche. Porque eles trazem lanche, a maioria traz, outros não. Aí eles “mas é pra trazer

um bolo? é pra trazer um prato de salgado?” Aí eu “não, não é pra trazer prato de salgado, não é pra

trazer um prato de bolo. Eu quero que vocês tragam o lanche que vocês estão acostumados.”. Porque

geralmente na páscoa a escola faz um lanche diversificado, mas eu queria que eles trouxessem o lanche

deles. E eles trouxeram, um trouxe pão com presunto, outro trouxe bolo, mas uma fatia de bolo. E eu

falei pra eles que mesmo com pouco a gente podia compartilhar. Nós fomos no parque, nós sentamos, e

eles dividiram os lanches. E tem uma menina que tinha acabado de chegar na sala e ela tinha trazido pão

com presunto. Todo mundo quis o pão com presunto da menina, mas era um pãozinho. E eu falei pra

eles que a gente pode dividir e eu fui tirando os pedacinhos de pão e cada um pegou um pedacinho.

Mesmo com pouco que a gente consegue dividir, a gente consegue compartilhar pra trabalhar esse lado

deles. Nós fizemos um tear, um tear de papel. Cada um fez um pedacinho de lã. Então quando eles

acabavam a lição, eles ficaram encantados com o tear, pra saber o que ia sair desse tear. E aí eles fizeram

o tear, cada um fez um pedacinho, que era de papel e eles guardavam embaixo da carteira. Acaba a lição

eles pegavam o tear e fazia. E estava frio, então foi bem certinho, foi bem na época do inverno. E eu

falei que eles tinham que acabar o tear até as férias. Eles acabaram o tear e nas férias eu juntei todos os

pedacinhos e fiz uma colcha desse tear, fiz uma manta, juntei a lã e fiz uma manta. E quando nós

chegamos das férias, eu mostrei pra eles o tear, e aí eles “ah mas pra quem vai ficar? Vai ficar pra mim?

Vai ficar pra quem?”, aí falei “não, então esse tear agora a gente vai fazer o seguinte: que tal a gente

ajudar alguém que esteja precisando?”. Eles ficaram meio assim, e foi todo um trabalhar também, passei

alguns vídeos que falam sobre as crianças que não tem condições financeiras, passei alguns vídeos sobre

a realidade do Brasil. Porque essa escola ela não fica num bairro assim... É um bairro de periferia,

algumas crianças moram em abrigo, outras crianças tem pai e mãe, então acho que é por isso essa

diferença na sala de aula. Nós decidimos então, começamos a conversar o que a gente ia fazer, bom. A

gente tá trabalhando cartas agora, tanto de e-mail quanto de correspondência normal. E eu achei que a

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gente ia dar essa manta pra algum morador de rua, mas eles não concordaram muito não. Porque eles

disseram “mas não tem criança que mora na rua aqui né pro? Não vejo criança aqui.”. E eles não queria

dar pra um pessoa também, um morador de rua, uma pessoa adulta. Então a gente decidiu que a gente

vai rifar essa manta e nós vamos responder uma carta do correios. Porque o correios sempre no final do

ano eles tem aquele programa, de papai noel. Aí a gente estava conversando sobre carta, de fazer isso,

aí eu comentei com eles que todo ano eu vou no correios, eu busco uma carta, porque eu acho legal a

gente ajudar as pessoas. E eles disseram “ah, então a gente podia fazer isso com a manta. A gente não

precisa dar pro morador de rua.”. Porque eu acho que eles pensaram que vão dar pro morador de rua e

toda vez que eu passar eu vou ver a manta lá. Então, a gente em assembleia... Mas eu falei “mas a gente

ainda vai ter que decidir com os pais, porque já não é mais uma coisa só de vocês, porque envolve vender

a rifa”. Aí chegou na reunião do segundo bimestre com os pais que foi agora nas férias, e os pais

concordaram, falaram que acharam a iniciativa legal, e os pais concordaram. Então eu vou mandar a rifa

pra casa, cada número é um real, cada criança tem dez reais, vai dar trezentos reais pra gente ajudar uma

criança. Eu achei legal porque também a gente vai poder escrever a carta. A gente vai responder a carta

dessa criança e vai mandar o brinquedo.

Pesquisadora: Vocês fazem todos juntos?

Sujeito: Todos juntos. Vai ser o mesmo esquema que a gente faz as redações. Vou buscar essa carta no

correios no final do ano, vou ver a que dá o valor, e vamos responder a carta juntos. Estou até pensando

em colocar uma foto da turma, pra mandar, porque foi a turma toda que ajudou. Mas essa sala eles são

bem participativos.

Pesquisadora: Qual o ano?

Sujeito: Quarto ano.

Pesquisadora: Tem alunos de que faixa etária?

Sujeito: Eu tenho aluno de dez, tenho aluno de onze, nessa faixa.

Pesquisadora: Mas você já deu aula pra todas as faixas etárias do ensino fundamental I?

Sujeito: Já trabalhei. No ano passado essa turma estava no terceiro, e eu já peguei primeiro. Eu amo

pegar primeiro ano, mas essa escola os primeiros estão de manhã e meu horário de preferência é a tarde.

Mas eu amo dar aula pro primeiro ano. Eu gosto muito dessa parte, deles entrarem, não saber nada, e

depois eles descobrirem as letras, eles descobrem os números. Aí eles começam a ler tudo o que vem

pela frente, eu acho muito legal.

Pesquisadora: A gente vai falar mais tarde sobre isso. Tu estudaste especificamente, durante tua

formação, sobre criatividade?

Sujeito: Sobre criatividade em si, não. É assim, o que é uma aula criativa, o professor tem que ser

criativo, não? O que eu vejo, assim, como eu fiz psicopedagogia e fiz educação especial, em educação

especial a gente estuda que cada criança tem uma maneira de aprender, cada criança tem um jeito de

aprender, um tempo de aprender. E o que funciona pra um não funciona pra todos. A gente tem que

trabalhar muito no concreto e aí eu comecei a procurar isso. O que é trabalhar no concreto? Como

aprender atenção? Será que a criança não aprende ou professor que não ensina? Como ensinar uma

criança que tem maior dificuldade? Porque aquela criança que vai, aquela criança que é esperta, qualquer

um pode dar aula pra ela, mas aquela criança que tem uma dificuldade, que fica ali, que embate ali e não

vai é essa criança que a gente precisa desenvolver. Então sobre criatividade em si eu nunca aprendi nada

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e nunca tive aula disso. Mas isso sempre me questionou. Então, se não é por aqui, é por ali. Alguma

saída eu tenho que chegar. Se essa criança não tá conseguindo aprender, por que ela não tá conseguindo

aprender, por que ela erra tanto, por que ela não consegue escrever. E então eu vou procurando outras

maneiras de prender atenção. Porque eu acho que hoje, num mundo que tem tanta tecnologia, que as

crianças veem tanta coisa, que a televisão é tão colorida, não adianta ficar lá com o quadro negro em

frente de uma lousa, com giz branco e querendo que as crianças prendam atenção cinco horas, é

impossível. Então se a gente não utilizar de outras técnicas você vai ficar cinco horas, as crianças vão

ficar enfadadas, acho que é por isso que a gente tem tanta indisciplina na escola, e você não consegue

reverter isso, porque as crianças acham as aulas chatas, as crianças não querem vir. Elas querem vir pra

escola, mas elas não pra ter aula, elas querem vir pra conversar, elas querem vir pra bagunçar, elas

querem vir pra outras coisas. Então se você não tiver outra metodologia você não consegue atingir a

criança hoje.

Pesquisadora: Tu te consideras criativa no dia a dia?

Sujeito: Eu não sei se eu sou criativa, mas eu tento fazer o máximo pra que eles aprendam. Às vezes eu

até brinco, eu tenho uma aluna que ri muito, e eu falo pra ela “eu tô com o meu nariz vermelho hoje?

Porque não é possível. O meu nariz é de palhaço? Porque vocês dão muita risada.”, aí eles “não pro, é

porque você é engraçada.”. Então eu levo mais pra esse lado. Não sei se eu sou criativa, mas eu tento

dar uma aula mais lúdica, eu tento ser um pouco mais engraçada na sala de aula, eu converso muito

também sobre o dia a dia da gente, eu tento tirar muito deles, o que fazer em uma situação... Ah sumiu

alguma coisa, “ah você quer olhar na bolsa?” eu digo “não, não vou olhar sua bolsa, quem olha é você.”

Então eu tento colocar uma responsabilidade neles, mas ao mesmo tempo que a aula não fique tão

pesada, de giz o tempo todo, de lousa o tempo todo. Então a gente para, a gente conversa, as vezes eu

deixo um pouco aquele conteúdo de lado pra pegar alguma coisa que é mais importante no momento,

eu acho que é mais ou menos por aí. Tanto que quando a C. falou “ ah, você é criativa”, aí eu falei

“nossa, eu criativa? Nunca tinha pegado muito pra esse lado.”. Mas quando eu comentei sobre o projeto

com a diretora ela achou super legal, porque eu tive que pedir pra ela, falando do projeto. Eu também

ensino flauta pra eles, eles adoram! Eles adoram uma aula de flauta. Eu fiz um curso na prefeitura de 30

horas de flauta, e aí eu aprendi. Aprendi as notas, aprendi a tocar algumas músicas, eu toco um pouco

de piano. E eu já dei aula em outra escola também que eles adoravam flauta, aí eu falei então esse ano

eu vou trabalhar com flauta com eles. Hoje eu já tenho aluno que toca melhor do que eu, que estudaram

nas férias. A escola também abraçou a ideia, comprou as flautas, porque essa flauta de 1,99 ninguém

merece, não sai som. Eu falei com a diretora, eu falei “olha não dá, porque não sai o som, as notas não

saem, então precisava de uma flauta, Yamaha, doce.”. E a escola comprou as flautas. Então toda a quarta-

feira a gente tem a primeira aula de flauta e eles gostam de tocar, eles tocam super bonitinho, já tocam

algumas músicas tipo Asa Branca, Nona sinfonia. Aí eles ficam todo assim “ah vamos tocar a nona

sinfonia?”. Acho que é por aí. A gente tem que atingir acho que todos. Eu já falei pra eles, quem não

sabe tocar, porque tem aluno que não vai, não vai. Só soube as notas, mas não consegue nem o ritmo

pra tocar a música. Eu falei “então quem não toca, canta, quem não canta, dança.”, então a aula fica,

imagina né? Porque quem não toca, canta, quem não canta dança. Então, tem uns que tão tocando, tem

outros que tão cantando e outros que tão dançando.

Pesquisadora: Deve ser divertido pra eles.

Sujeito: É, eles gostam bastante, mas é só uma vez por semana, só as quartas feiras e uma aula só. Mas

mesmo assim, a maioria da sala, eu tenho 30 alunos, eu acho que 25 tocam, 24 tocam.

Pesquisadora: Você estudou em escola pública?

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Sujeito: Eu sempre estudei em escola pública, menos na faculdade.

Pesquisadora: E você acredita que a escola contribuiu no desenvolvimento da tua criatividade?

Sujeito: Com certeza. Porque quando eu estava na escola eu tive uma professora que até hoje eu não

esqueço dela. Ela me chacoalhou tanto na carteira, porque eu não sabia uma bendita de uma tabuada,

que eu fiz xixi na calça. E aquilo me travou de uma tal maneira que eu falei que eu nunca vou ser igual

a ela. Nunca vou fazer isso que ela fez comigo. E eu lembro que estava sol na escola e eu ia de saia

(nesse momento a professora se emociona e começa a chorar) e eu fiquei no sol pra secar pra que

ninguém percebesse que eu tinha feito xixi, mas o chão molhou. E ela tinha o apelido de crista de galo

na escola, então imagina porque ela tinha esse apelido. E eu falei que eu nunca ia fazer isso com aluno,

eu nunca vou dar uma aula assim. E até hoje eu me recordo dela e eu falo como que podia na época a

gente, com tão pouco, e a professora se sente tão autoritária, ao ponto de você não saber o conteúdo, ela

te chacoalhar na carteira e fazer você passar toda aquela humilhação, aquele vexame. Ela me chacoalhou

na carteira porque ela queria que eu fizesse a tabuada 4x1 4x2 e assim. E ela passou na minha carteira e

eu tinha feito quatro quatro quatro, vezes vezes vezes, um dois três quatro cinco seis sete... Quando ela

viu aquilo, ela me pegou assim e me chacoalhou na carteira “eu falei que não era assim!”. E nossa,

aquilo pra mim foi o fim. Eu lembro que eu fiz xixi na calça e era quarto ano, eu já era grande.

Pesquisadora: Ela percebeu que você tinha feito xixi?

Sujeito: Ela fazia isso direto com os alunos, tanto que ela tinha esse apelido porque todo mundo achava

ela muito brava, ela era muito brava, muito autoritária na sala de aula. E ao mesmo tempo os alunos

tinham medo dela, mas não tinham respeito. Então aquilo me marcou de uma maneira negativa, pra que

nunca, né? Então eu acho que você tem que ter respeito pelo aluno que tá na sala de aula, levar em

consideração o que ele tá trazendo. Esse menino que eu te contei ele nasceu prematuro, passou por um

monte de cirurgia, porque nasceu fora de peso, nasceu com 400g. Então você tem que valorizar a história

de vida, você tem que respeitar a história de vida. A mãe também, o sofrimento da mãe. Eu acho que

hoje a criança tá ali na sala de aula e a gente tem que ver ele como ser humano, tem que respeitar se a

gente quiser o respeito. Acho que por isso também a escola tá essa falta de respeito. Outro dia eu vi a

professora batendo porque pegou celular e eu falei “como assim gente?” na televisão. Tem gente que tá

no lugar errado.

Pesquisadora: Então essa experiência negativa que tu tiveste com a tua professora foi fator decisivo pra

tu teres essa postura mais criativa e preocupada com os alunos?

Sujeito: Eu sempre falei, nunca vou ser assim. Até hoje quando eu vejo alguma coisa discrepante, eu

tento até não comentar muito nas reuniões pedagógicas, eu vejo tantas professoras reclamando dos

alunos, “não porque nossa, aquele aluno, aquele aluno”, e reclamando tanto, mas eu falo “será que aquele

professor já se questionou da posição dele?”. Na última eu acho até que eu fui mal interpretada, porque,

se os alunos estão com tanta indisciplina, se os alunos estão tão terríveis assim, vamos questionar um

pouco o professor também? Como aquele professor tá dando aula, como será que aquele professor tá

preparando a aula dele, o que será que aquele aluno tá querendo buscar na escola, por que tá chamando

tanta atenção? Vamos parar, vamos conversar, vamos falar com a sala. Eu acho que tem momento que

você tem que parar mesmo, que você tem que ouvir o aluno, eles são crianças ainda, eles estão em

formação. Se você ficar só colocando que não sabe, que não sabe, que não para, que é isso, que é aquilo,

você fica rotulando. É a mesma coisa, eu conheço uma coca cola de longe, não preciso nem chegar perto.

Hoje eu vejo muitos professores fazendo isso, rotulam o aluno já no segundo ou no terceiro ano e quando

vai chegar no sexto todo mundo já conhece só pela fama. Não precisa nem ver o aluno. “Ah já sei quem

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é, é aquele aluno que no segundo ano fez isso, fez aquilo”. Então eu acho que cria um rotulo e a gente

tem que tomar muito cuidado com os rótulos.

Pesquisadora: Tu achas que isso eles levam pra vida, se perpetua?

Sujeito: Com certeza. Porque as coisas boas muitas vezes não ficam tão marcadas quanto as ruins. Então

se você fala uma palavra praquela criança, aquilo fica nela. E aí ela começa a incorporar aquilo, que ela

já é aquilo mesmo, que todo mundo já fala que é. E mesmo ela querendo mudar, se ela não tiver um

estímulo muito grande, se ela não tiver alguém que faça alguma coisa pela autoestima dela, ela incorpora

aquilo e dali pra frente... No terceiro ela foi ruim, no quarto ela vai ser pior, no quinto ela vai ser pior

ainda, quando ela chegar no oitavo ninguém aguenta mais. Tá sendo já se encaminhando pra outras

escolas.

Pesquisadora: E a universidade? Você acha que ela contribuiu pra tua criatividade?

Sujeito: Esse curso que eu fiz de educação especial muito. Foi um curso muito bom de educação especial,

a gente via muito essa parte. O curso de pedagogia a gente tinha um pouco de aula de didática, porque

eu fiz ensino médio e depois fiz pedagogia. Então a gente tinha algumas aulas de didática, mas eu ainda

não tinha esse conhecimento do outro lado, eu só conhecia como aluno, eu não conhecia ainda como

professor. Então, eu não sabia quais eram os desafios que eu ia ter na sala de aula. Então a professora

falava e eu achava que aquilo dava certo, mas a gente só sabe o que vai dar certo e o que vai dar errado

quando você tá com a sua turma. Você pode planejar um monte de coisas, mas se você não conhece a

turma, se você não conhece o aluno, aquilo lá cai por terra. Então na faculdade eu não tinha essa vivencia.

Eu fiz estágio no terceiro, porque muito antigamente a gente só fazia estágio no terceiro ano. Eu aprendei

a fazer aquelas pastas de desenho e só conheci o estágio nessa época. Agora quando eu fiz a pós

graduação eu já atuava, eu já estava na sala de aula, então eu podia aplicar com os alunos. Então eu via

na teoria e fazia a prática. Então eu aplicava e via “ah isso deu certo, isso não deu tão certo, se eu

modificar isso”. Então eu achei que foi muito mais rico por conta disso, porque eu já atuava e eu já podia

tá ali com os alunos.

Pesquisadora: E a tua família? Me fala um pouquinho dela e me conta se tua achas que ela contribuiu

pra desenvolver tua criatividade.

Sujeito: A minha família, eu tenho três filhas, eu sou casada, tenho um neto, e as minhas filhas desde

pequenas eu sempre contava histórias pra elas, eu gosto muito de contar histórias. Então eu sempre li

livros pra ela a noite, porque daí eu já era professora quando as tive. A gente nunca teve muita

oportunidade de viajar, mas eu gosto de fazer cabana pra gente dormir na sala como se a gente tivesse

acampando. Eu lembro que quando elas eram menores, porque hoje a minha filha já tem 23 anos, a outra

já tem 20, a outra já tem 18, elas já são maiores, mas quando elas eram pequenas e a gente então tinha

dinheiro eu fiz vários jantares foras, eu colocava um tapete lá fora e a gente jantava. Eu fazia cabana na

sala e a gente ia dormir nas cabanas como se a gente tivesse acampando, não podia ligar a televisão. Eu

sempre tentei ser uma mãe bem presente pra elas.

Pesquisadora: E com relação aos teus pais, o que tu lembra na tua infância, na tua adolescência?

Sujeito: Meus pais sempre foram muito presentes. Meu pai era metalúrgico, minha mãe ficava em casa

com a gente, também tenho três irmãs, e a minha infância foi uma infância normal. Minha mãe sempre

muito presente em casa com a gente e brincava. A gente também não tinha um poder aquisitivo muito

alto, a gente não viajava muito, ficava em casa. Não ganhava muito presente, então foi isso.

Pesquisadora: Hoje, como professora... Há quantos anos você trabalha?

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Sujeito: Na prefeitura 15 anos.

Pesquisadora: No geral?

Sujeito: 25 anos.

Pesquisadora: Então hoje como professora, trabalhando numa instituição de ensino, e já viu a realidade

da pública e a realidade da particular, tu achas que a escola colabora ou pode colaborar no

desenvolvimento da criatividade do aluno?

Sujeito: Com certeza. Eu acho que aqui que eles são mais soltos, eles tão longe um pouco da família,

então aqui eles se soltam, aqui a gente conhece a criança mesmo. Muitas vezes a gente até chama na

reunião de pais e falam “ah mas meu filho não é assim em casa”, porque aqui ele se solta. Aqui eles se

sentem mais livres, aqui eles são eles também.

Pesquisadora: Por que você acha que aqui eles se soltam, tem essa possibilidade de ser eles?

Sujeito: Muitas vezes em casa, ou os pais estão ausentes, porque trabalham, que é a maioria da realidade

aqui. Os pais ficam fora o dia inteiro. Mãe e pai trabalham, então só ficam com os filhos nos finais de

semana, e aí tem casa pra limpar, roupa pra lavar, não prestam muita atenção neles. Então eles acabam

ficando em casa sozinhos ou com os irmãos, aí quando chega na escola a gente tem esse olhar mais

aguçado. Então quando eles chegam na escola que a gente consegue perceber isso. Porque a maioria dos

nossos alunos ou eles são de abrigos ou os pais trabalham e eles ficam em casa, ou ficam no CJ também.

Pesquisadora: O que é o CJ?

Sujeito: É um local onde as crianças ficam meio período e brincam pra não ficar sozinha em casa. Então

são ONGS que reúnem esses alunos e eles ficam lá. Eles fazem atividade, eles brincam lá, ficam até a

hora do almoço, almoçam e vem pra escola. E aí a mãe acaba não conhecendo tanto o filho, então aqui

a gente fala “olha o seu filho faz isso, o seu filho faz aquilo”, até essa parte de música mesmo, muitos

se descobriram. Eu tenho umas duas ou três crianças que já falaram pra mim “ah pro, queria muito fazer

música”. Aí eu falo pra ir no clube escola que é aqui perto, a gente tem, eu estudei no clube escola. “Vai

no clube escola, lá tem piano, tem violão, tem flauta.”. E a gente acaba descobrindo eles também. Aí

chega nas reuniões e a gente fala... Teve até um aluno que o professor de educação física levou pra fazer

um teste no Bradesco, e a menina ótima, passou, de esporte, de basquete no Bradesco. A mãe falou “ah

não, muito longe, não vou levar não”. Então a gente ainda tem esses pormenores.

Pesquisadora: Como tu achas que a escola pode desenvolver a criatividade do aluno?

Sujeito: Eu acho que a escola pode... É o olhar. É ter esse olhar, porque deixando a criança ser o que ela

é e ao mesmo tempo encaminhando, oferecendo as oportunidades. Na minha época, eu nem conhecia

ETEC, nunca tinha ouvido falar. Eu só conhecia a USP mas pra mim era uma coisa, conhecia de ouvir

falar, que era uma coisa muito longe. Hoje não, acho que a gente como educador a gente tem esse dever

de mostrar as oportunidades pra eles, mesmo que eles não forem, que os pais não levem, mas a gente

tem essa oportunidade de mostrar que tem outros caminhos e mostrar “olha tem isso, olha tem a flauta

lá no clube escola, tem no projeto guri, vai no CEU”, e mostrar mesmo, acho que essa é a função da

escola também.

Pesquisadora: E o que tu achas que tá relacionado a questão da criatividade do aluno? O que faz ele ser

menos ou mais criativo?

Sujeito: Dele ser mais ou menos criativo? Um aluno mais ou menos criativo?

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Pesquisadora: É, o que tá relacionado com a criatividade do aluno?

(silencio de 7 segundos)

Sujeito: Ah eu não sei, o aluno mais criativo. Porque eu acho que tem várias áreas do desenvolvimento,

mas tem aquela criança que ela não é criativa num texto, mas ela é super criativa numa partida de futebol,

ela consegue pensar rápido. Ela não é criativa por exemplo na educação física, mas ela escreve um texto

que você fala “nossa, olha que bacana”. Então eu acho que ela vai se descobrindo também, ela também

vai te dando uns indícios que não é por aqui, é por ali, ela gosta mais disso, ela gosta menos daquilo.

Essas crianças mesmo que eu ensino flauta que não vão de jeito nenhum com certeza elas devem ter

outras habilidades que ainda não forma descobertas.

Pesquisadora: Tu achas que a idade da criança tá relacionada com a criatividade dela?

Sujeito: Eu acho que não. Porque assim, eu vejo cada criança do primeiro ano que é tão criativa, que

consegue te falar e te contar tantas coisas, e vem e te conta uma história e você fica “ah é? Verdade? Foi

mesmo?” e ai você percebe que foi tudo criativo, que foi ele fez, que contou. Então eu acho que não

depende da idade, eu acho que tem crianças criativas com 7 anos, eu acho que tem criança criativa com

13, e tem aquelas crianças que são mais apáticas, que só ouvem e reproduzem, não exercem esse poder

ainda. Ou porque são mais recatadas, eu não sei.

Pesquisadora: Então você não acha que tem a ver com a idade?

Sujeito: Não, acho que não tem relação com a idade.

Pesquisadora: Então você acha que tem mais relação com a imaginação da criança?

Sujeito: Eu acho que tem mais a ver com a imaginação mesmo. Eu tinha um menino aqui que eu dou

reforço de matemática. Ele estava no terceiro ano e ele mora num abrigo e agora ele saiu da escola

porque mudou de abrigo. E ele é péssimo de matemática, péssimo. E eu na matemática eu trabalho com

ele jogos, no reforço eu só dou jogos. E o menino péssimo. A professora reclamava dele, que ele não

aprendia, mas eu comecei dar jogos pro menino, e o menino tem uma estratégia... Ai eu fiquei assim

“nossa!”, aí ele começa assim “não pro, mas se a gente juntar esses dois dados daqui, aí eu posso pegar

e trocar por aquele ali, não posso?”, aí eu “mas não é assim o jogo, você tá fazendo outra regra do jogo”,

e ele “mas dá não dá?”, aí eu pior que dá né? “dá né, mas não é assim que a gente tá jogando”. Mas ele

consegue outras estratégias, e eu comentei isso com a professora e ela falou pra mim “ah A., mas não é

assim né, porque no fundo não é isso que eu tô pedindo”. Então, “se eu tô dando arte, e o menino não

sabe desenhar, mas ele sabe tocar tá bom?” E eu fiquei pensando, mas arte é tudo, é o desenhar, o pintar,

a música, é tudo. A professora disse “mas ele não consegue...”, e eu respondi “mas o que ele não

consegue?” e ela “ele não consegue fazer a lição” e eu falei “mas olha eu dei os dados grandes pra ele,

ele jogou, ele foi, ele fez, o menino tem ‘mó’ estratégia, ele é ‘mó’ criativo” eu falei pra ela. Então às

vezes ainda te pega nessa... Você ainda fica pensando, você ainda tem muito o que parar e pensar e

descobrir como ele consegue ser tão criativo numa área e não consegue registrar no papel. Criatividade

não tem a ver com papel.

Pesquisadora: Me diz assim, um aluno que tu olhas e diz “esse é criativo” quais são as características,

como é a postura dele, o que tu achas que aquele aluno faz que tu chamas ele de criativo?

Sujeito: Eu acho que de olhar eu não consigo descobrir. Olhando pra você assim eu não consigo

descobrir. Eu tenho que conviver com esse aluno, eu tenho que apresentar algumas possibilidades pra

ele, eu percebo o que ele está me respondendo, pra saber se é por esse caminho, se ele é ou se ele não é

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[criativo]. Se ele se desenvolve mais, se ele se desenvolve menos, em qual área ele é mais criativo, qual

área ele não vai, o que tá acontecendo. Então, acho que é da convivência, é do olhar. Eu acho que é isso

que a gente precisa, esse olhar aguçado pro aluno. Não é só ver o aluno, é você parar e olhar, prestar

atenção nele pra ver o que ele vai te respondendo com aquilo.

Pesquisadora: Quais atividade tu realizas no cotidiano que são mais frequentes, que tu achas que podem

desenvolver a criatividade dos teus alunos?

Sujeito: Esse ano a gente tá trabalhando bastante produção de texto, então já tentei de tudo. Já tentei dar

o começo e eles fazerem o meio e o fim, não deu certo. Já tentei colocar imagem, não deu certo. Então

agora, a gente foi um pouco a campo. Então a gente sai, fica prestando atenção, por exemplo, a gente

tem uma vez por semana que é a nossa aula de produção de texto, que é o que a gente tá trabalhando

esse bimestre. A gente sai pela escola e cada um pode andar por onde quiser. E a gente vai observar uma

cena e depois a gente escreve aquela cena. É o que tá dando mais certo. As vezes eles ficam na janela

olhando, aí eles veem uma pessoa passar, aí depois eles descem, ficam aqui na quadra. Aí eles relatam

pra mim, o que aconteceu, o que estava na aula de educação física, que aconteceu isso, e eles conseguem

uma produção muito melhor do que eu trazer uma imagem e falar “conte sobre essa história”. Você põe

a imagem lá e “vamos fazer uma história sobre essa foto”. Ou “como foi suas férias? Como foi sua

vida?”, isso não deu certo. Eu já tentei isso esse ano e não deu certo. Eu acho que no que eles tão mais

usando a criatividade é isso. Então a gente desce, cada um pode ir de dupla, a gente tem um tempo, e

depois eu passo recolhendo eles pela escola. Então eles descem, eles prestam atenção, se eles quiserem

levar caderno eles levam, se eles não quiserem eles não levam, e aí eles observam alguma coisa que tá

acontecendo na escola, com a árvore, cada um observa o que quiser. E depois eles sobem e relatam essas

histórias. É o que tá dando mais certo agora, então eu acho que ao mesmo tempo que ele veem a cena,

depois eles já colocam um pouco do imaginário, um pouco de criatividade e a história sai, muito mais

do que se você ficar mostrando alguma imagem pra eles que não tem a ver com o cotidiano deles, que

não tem a ver com a realidade deles.

Pesquisadora: Isso é mais especificamente em português?

Sujeito: Isso que eu tô fazendo a gente tá trabalhando em português, porque a gente tá trabalhando em

produção de texto agora. Mas nas outras matérias eu sempre busco mais o interdisciplinar mesmo. Então

se a gente tá trabalhando geografia, se a gente tá trabalhando bairro, então a gente vai conversar um

pouco sobre a história do bairro, peço pra eles trazerem alguma história da vida deles, se tá trabalhando

um pouco mais sobre as profissões, eu peço pra eles trazerem as profissões dos pais, a gente conversa,

depois a gente descreve as profissões, pra ver se tem algum erro pra trabalhar alguma coisa de gramática,

e a gente leva mais ou menos assim nas nossas aulas.

Pesquisadora: E por que tu achas que essas atividades que tu promoves com teus alunos, por que elas

poderão desenvolver a criatividade?

Sujeito: Porque eu acho que é o que dá mais certo, é o que tá mais presente na realidade deles, eu acho

que é por ai o caminho.

Pesquisadora: Você pensa na diversidade?

Sujeito: Eu penso. Eu penso mais na diversidade e penso mais deles se desenvolverem. Porque as vezes

você traz alguma coisa que não dá certo e você fica insistindo naquilo, você insiste tanto naquilo... Eu

tinha um aluno que ele tem deficiência e todo mundo queria ensinar o nome dele. J.

Pesquisadora: Pra ele?

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Sujeito: Pra ele. J. Ensinava e o menino não aprendia escrever J. Teve um dia que eu cheguei e perguntei

pra ele o que ele queria aprender escrever. Aí ele falou esmalte. Aí eu falei “esmalte? Mas por que?” aí

ele “minha irmã todo dia fala, pega o esmalte!”. Eu escrevi pra ele bem grande, esmalte, e colei uma

fotografia do esmalte. E falei vamos tentar? E o menino foi com toda a dificuldade, passou em cima do

meu... Então não adianta você ficar insistindo naquilo que o menino não quer, naquilo que não dá certo.

Se eu já vi que trazer uma produção de texto na folhinha não dá certo, por que eu vou ficar insistindo

naquilo? Vou insistir até quando naquilo? O ano inteiro eu vou insistir naquilo? Então não deu certo,

não deu certo por que? Por que não era uma imagem legal? Não, porque eu já trouxe imagem no

computador, já passei colorido, não dá certo, então vamos pra outra! Então eu acho que é isso que falta,

falta esse olhar. No que deu certo a gente continua, o dia que a gente saiu eu vi que deu certo, aí a gente

pega a produção, depois a gente trabalha, a gente vê, a gente escreve na lousa, a gente coloca os

parágrafos, a gente faz a revisão, faz todo um trabalho com ela. Eles gostaram, porque até o outro que

tinha visto a mesma cena por ângulo diferente fizeram contato também, então forma aquela coisa. Mas

é o que dá certo, é onde eles podem se expressar também. Porque a aula é ali no professor, professor, é

aluno, não é só professor. Porque se for só professor a gente dava vídeo conferencia, eles ficavam na

casa deles e a gente enchia eles de informação. Mas não é isso né, eles também tem que trazer. Eles

trazem, a gente dá, e é essa troca que constrói aprendizado. Se não tiver essa troca não tem necessidade

de professor, a gente dá vídeo conferencia, eles ficam na casa deles e a gente fica enchendo de

informação. E não é esse o intuito da escola.

Pesquisadora: E como tu enxerga o desenvolvimento da criatividade na escola pública e na escola

particular?

Sujeito: Na escola particular eu tive mais dificuldade, porque na escola particular, pelo menos na que

eu trabalhei, era apostilado e então eu era obrigada a dar aquela apostila objetiva e correr, então não

tinha muito tempo pros meus alunos falarem, não. Às vezes a gente até queria fazer uma aula diferente,

quando a gente estava falando de ciências... A gente tinha uma feira muito perto, eu levava eles na feira

pra gente comprar uns legumes... E não foi possível porque a gente estava atrasado com a apostila, e o

não. Tudo é não, na escola particular. Então, não adianta você querer alguma coisa a mais. Na pública a

gente já tem essa maior possibilidade. Semana que vem a gente vai numa contação de história na

biblioteca. Não é só sair da escola e ir na contação de história. Então a gente vai, a gente observa a rua,

a gente vai passar no Mc Donald’s, a gente vai tomar sorvete, todos vão levar o dinheiro, vamos ver o

troco, depois a gente vai conseguir trabalhar isso em matemática, depois a gente vai conseguir trabalhar

em português... Olha como fica rico esse teu currículo. Então não é só uma... Ah, vai sair daqui e vai

assistir uma contação de história, a gente vai conhecer um pouco da biblioteca, então tem todo um

trabalho. Eu acho que por isso que as crianças... elas ficam muito mais ricas no conteúdo, atravessando

a rua sem a mãe, diferente... E na escola particular a gente não tem muitas oportunidades. Os alunos

estão lá e a gente tem que jogar todo aquele conteúdo neles, sabendo ou não sabendo, a gente tem que

fazer com que eles aprendam, parece que a gente tem que abrir o crânio e jogar... Tem que aprender,

porque chegando na prova a mãe quer resultado. O bom da escola particular é o material que você tem,

então se você pede eles te dão. Ao mesmo tempo, numa feira cultural tudo que eles fazem a gente tem

que refazer, porque tem que tá bonito, pro pai que quer ver. Aqui não, na pública não. Saiu, é daquele

jeito? Então é daquele jeito que vai. Quando a gente faz painel eles fazem e a gente pendura, a gente

coloca pro pai ver aquela produção do aluno. Na escola particular a gente já tem essa política, o pai não

vem aqui pra ficar vendo coisa feia, então a gente tem que dar uma encrementadinha. Deixa ali, mas dá

uma modificada pra ficar bonito. Eu acho que isso também perde um pouco porque as crianças não se

reconhecem. Elas falam “mas não foi assim que eu fiz, não tá muito com a minha cara.”, mas a gente

fala “não, mas só melhorou aqui, só aqui que a pro melhorou.”.

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Pesquisadora: E essa riqueza de experiências, o fato de ir na contação de história, de ver a cidade, de

fazer outras coisas, essa riqueza de experiências pra criança é importante?

Sujeito: Muito importante. Porque ela tá aprendendo, ela tá aprendendo ser curiosa, ela tá aprendendo a

realidade da vida, ela tá vendo, ela tá conhecendo. Ela tá se descobrindo e é na infância que ela vai ver

tudo isso, ela vai se descobrir.

Pesquisadora: E qual a relação disso com a criatividade?

Sujeito: Eu acho que tudo isso, porque pra mim é isso mesmo. Ela tá se descobrindo, ela tá sendo curiosa,

ao mesmo tempo ela tá despertando interesse, ela tá se reconhecendo, algumas coisas ela vai achar legal,

outras coisas ela vai achar que não é muito por ali, que ela não gosta daquilo... Eu acho que é isso aí.

Pesquisadora: Agora é a última pergunta e eu acho que é uma da mais importantes. Como tu te sentes

fazendo atividades assim tão diversas, tão criativas?

Sujeito: Olha, eu amo fazer isso. Eu gosto muito e as meninas até comentam comigo “ah você não cansa?

Deus me livre! Ah você vai lá na contação de história?”, “ah eu vou né, mas é legal”, “ah Deus me livre

levar, você não cansa?”. Eu acho isso muito prazeroso, pra mim isso que é escola. Eu acho isso

prazeroso, eu gosto de ver que as crianças estão se desenvolvendo, eu acho que pra mim isso é educação.

Eu gosto de trabalhar com as crianças, eu não tô aqui porque eu sou concursada, porque a prefeitura não

vai me mandar embora. Eu gosto de trabalhar. Na quarta feira eu estava passando muito mal na sala e

eles falando “´shhh, a pro tá passando mal.”. Aquela preocupação comigo, e a gente até ouve pra tirar 5

dias de licença, mas não é isso. Eu falo “não, eu tenho um compromisso com eles”, eu gosto da escola,

eu não tô aqui só porque eu sou concursada, eu levo meu trabalho muito a sério. Eu gosto de trabalhar,

eu gosto de fazer minha aula, eu gosto de apresentar pros alunos, eu gosto que eles aprendam. Eu tenho

um aluno que chegou na festa junina esse ano e falou pra mim “ah pro, você me deu aula”, “ah dei?”,

“deu pro, eu já tô terminando agora a faculdade”. O outro falou “nossa pro, eu já tô entrando na faculdade

de medicina”, eu falei “você vai ser médico, então você vai me atender”. Então eu acho que é isso que

é legal, esse retorno. Mas também já tive aluno que foi preso, tive um aluno que aconteceu tantas coisas...

Mas eu acho que você deixar um marco na vida da criança e um marco positivo, isso que é o mais

importante. É deixar esse marco positivo pra criança.

Pesquisadora: E como tu achas que teus alunos se sentem na aula?

Sujeito: A maioria deles gosta, que eu ouço falar que eles gostam, que não gostam de faltar, gosta de vir

pra escola. Ontem mesmo eu peguei uma agenda de um aluno que entrou agora faz pouco tempo, tem

Síndrome de Down, a mãe escreveu “nossa, ele tá adorando ir pra escola, não tô tendo dificuldade de

quando chega a hora de ir pra escola dele tomar banho e ir pra escola, porque ele gosta da escola.”. Aí

eu vi que bom, porque eu acho que é isso mesmo, que a criança goste de vir, que a criança queira estar

aqui, que a criança queira vir pra escola, queira tá na sala de aula. Eu acho que é isso.

Pesquisadora: É isso A., obrigada!

Sujeito: Imagina!

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APÊNDICE 4 – Transcrição da Segunda Conversação com a professora de Ensino

Fundamental I

Pesquisadora: Pronto, estou gravando.

Sujeito: Tá bom.

Pesquisadora: A., eu li a entrevista, reli, espero que tu saibas que o objetivo não é te avaliar, não é avaliar

teu trabalho, é uma conversa. Hoje eu só vim tirar umas dúvidas, saber mais algumas coisas, o que você

acha, etc. E primeiro eu queria que tu começasses a falar sobre o que significa ser professora pra ti.

Sujeito: Então, quando eu iniciei a minha carreira, eu achava que era uma mera transmissora de

conhecimento, que eu tinha que saber tudo e que eu tinha que transmitir tudo aquilo para os meus alunos,

que eu tinha que transmitir conhecimento. O tempo foi passando e eu vi que não era isso. Eu fui

aprendendo muito com eles e eu vi que não era isso. Então, pra mim hoje, ser professora, ser uma

educadora, é compartilhar conhecimento. Claro que eu trago muita coisa que eles não sabem, mas eles

também ajudam a formar muitas vezes o meu caráter, ajudar a formar a aula que eu vou dar no dia

seguinte. Muitas vezes eu trago uma aula planejada e eu não consigo dar, porque acontece alguma coisa

na própria aula que faz com que a gente fale sobre valores, sobre ética..., então é muito gostoso. Eu

gosto muito dessa profissão. Eu queria fazer educação física, mas na minha época, educação física era

integral. Como eu tinha que pagar a faculdade, não deu pra fazer. E aí eu optei por pedagogia, mas eu

acho que foi uma ótima escolha, porque eu me dou muito bem com isso. Eu gosto muito de lecionar, eu

gosto muito de vir pra escola, eu não me sinto cansada, enfadada. Eu gosto dessa dinâmica. Então eu

acho que pra mim hoje ser professora é isso, compartilhar conhecimentos.

Pesquisadora: E quando acontece algo imprevisível na tua turma, por exemplo, planejou uma atividade

e não deu certo por certas condições, que eu imagino que sejam inúmeras. Como tu lidas com isso no

dia a dia?

Sujeito: Eu paro. Por exemplo, semana passada eu tinha planejado uma aula totalmente diferente. Era

uma aula de português, e a gente estava fazendo uma folha de um diário. A gente leu um texto do livro,

e a gente ia planejar uma folha de um diário. E um menino que foi escrever a folha de diário dele, ele

foi falar da mãe dele que tinha falecido uns dois anos atrás, que eu nem sabia que a mãe dele tinha

falecido. E ele começou a chorar. Então, naquele momento não adiantava eu querer prosseguir com a

aula. Então a gente teve que parar, a gente falou sobre morte, fugiu totalmente do que eu tinha planejado.

Então eu falei sobre morte, que morte é um ciclo da vida, eu fui pra uma aula de ciências. E eles ficaram

todos... Teve outras crianças que choraram, porque tinha morrido desde o gato até o avô. Eu acho que

não adianta você ficar “nossa, eu vou seguir o meu planejamento, vou ser fiel ao meu planejamento, não

vou fugir.” Hoje não dá mais pra fazer isso. A gente tem que ter essa movimentação. O menino tá

chorando lá, porque ele foi escrever que o pai dele era tudo na vida dele, porque a mãe dele tinha

falecido, começou a chorar... Ele chorava compulsivamente. Então eu vi que não era só uma questão de

morte, que tinha acontecido alguma coisa, já fazia dois anos que a mãe dele morreu. Então a gente parou,

a gente conversou um pouco sobre morte, depois eu chamei ele pra perguntar o que tinha acontecido e

a gente conversou. Então, eu acho que você tem que repensar na sua didática. Hoje as crianças são vivas.

Pesquisadora: Por que tu achas que é assim, agora, na sala de aula?

Sujeito: Porque antigamente, as crianças não falavam. Eu quando estava na escola só ouvia. Não tinha

oportunidade de falar. Professora falou e acabou. Quando eu levava um bilhete pra casa, minha mãe me

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batia e falava “porque você é bagunceira, você falou.”. E às vezes eu nem fazia tanta bagunça, mas o

sistema era muito rígido. Eu acho que a gente não colocava nossa opinião, a gente não tinha oportunidade

de falar, de se expressar. E hoje isso mudou. As crianças hoje são mais vivas, e não adianta a gente

querer aquele perfil do passado pro presente. E nem adianta ficar idealizando aquela criança, aquele

aluno quietinho, que ficava sentado quatro horas. Isso não existe mais, isso é morto, ponto. A gente tem

que viver com a realidade de hoje. As crianças são vivas, elas são espertas, elas querem contar, ela

querem participar, elas trazem notícias, elas trazem novidade. Porque o mundo também mudou, as

pessoas mudaram. E se a gente entender isso, a aula da gente fica melhor. Se você for ver no campo da

odontologia, no campo da medicina, todos os recursos mudaram. A escola continua lá com a sua lousa,

com seu apagador, com uma criança sentada atrás da outra. E na minha classe não tem isso, um dia eles

tão de círculo, um dia eles tão de um, um dia eles tão de quatro. A moça que arruma a sala fala “eu nem

mais arrumar sua sala, porque todo dia a sala tá de um jeito.”. Aí eu falei “graças a Deus eu não tenho

nenhuma criança autista na classe.”, porque o autista se desestrutura. Mas enquanto eu não tenho, tem

dia que a gente faz grupos de quatro, tem dia que a gente senta de um. Porque não adianta a gente querer

aquela criança, sentada um atrás do outro, aquele silencio na classe e a professora passa lição, todo

mundo quieto... Eu acho que isso não é conhecimento, isso não leva a nada. As crianças ficam

introspectivas, elas não podem se expressar, elas não se deixam ser aquilo que ela são. Eu já vi que esse

conceito de aula não dá certo, pelo menos pra mim não dá certo. Admiro a professora que consegue

levar uma turma assim, cada um tem a sua didática, mas eu não consigo. Eu sinceramente não consigo.

E quando eles tão quieto eu ainda chego fazendo bagunça, eu começo a mexer. Vou, mexo com um,

mexo com outro, quando eu vejo eles estão que nem pipoquinha na classe.

Pesquisadora: Tu me disseste que essa turma que estás é muito boa pra trabalhar.

Sujeito: É ótima! É a mesma turma que eu estava ano passado. Eu entrei em julho e peguei a mesma

turma. Eu quis pegar essa turma.

Pesquisadora: E por que você gosta deles?

Sujeito: Porque eles são dinâmicos, eles aceitam todas as propostas. É uma turma que se eu falar assim

“vamos fazer tal coisa?” eles aceitam, eles pesquisam, falam “prô eu também achei isso, o que você

acha?”, aí eu “ah legal!”. Então eles agregam também. Não é só eu trazer alguma coisa e eles dizem “ah

tá bom, vamos fazer.”, não. Geralmente é assim, eu digo “o que vocês acham da gente fazer isso aqui?”

... Que nem o dia que a gente foi na biblioteca ouvir contação de história. Eles falaram “prô, a gente

podia passar no Mc Donald’s pra tomar um sorvete.”. Verdade né? A gente podia passar no Mc Donald’s

pra tomar um sorvete. Então, é uma turma que é muito viva e eles são ótimos, eles estudam, eles tiram

boas notas. Os pais também colaboram, participam. Isso é legal também. Quando eu tenho algum

problema com o aluno eu chamo a mãe, ela vem na escola, eu falo e ela procura entender e a gente

procura mediar alguns conflitos. Então, eu gosto muito dessa turma. Eu acho que esse ano eu fui

privilegiada com a minha turma, é uma turma muito boa.

Pesquisadora: E quando tu pegas uma turma de perfil diferente, que não é tão participativa?

Sujeito: Que não corresponde muito? A gente tenta ir levando da melhor forma possível. A gente faz as

propostas, às vezes eles não aceitam. E eu percebo que eles não aceitam porque não adianta falar pra

pesquisar alguma coisa se eles já começarem “ah não, não quero.”. Não adianta eu querer forçar, porque

o trabalho não flui, eles não fazem. Então é melhor você tentar levar pra um outro lado. Tentar fazer as

atividades na sala de aula. Eu já trouxe, quando eu quero pesquisa, quando eu quero outras coisas que

estão no currículo, que eu tenho que dá e eles não correspondem, procuro levar eles na sala de leitura

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pra eles pesquisarem aqui, pra eles fazerem aqui. E é claro que muitas vezes eu imponho a minha

vontade. “Não, a gente vai ter que fazer e ponto. Eu quero e ponto.”.

Pesquisadora: Tu achas importante isso?

Sujeito: É mais legal quando não é assim, que é como a turma de hoje. Mas, eu também não posso fugir

do currículo, eu também não posso fugir do conteúdo, tem coisas que são importantes, que eles tem que

aprender. Aí eu tento conversar nas reuniões de pais, chamar os pais pro meu lado. Porque tem classe

que não gosta muito do meu perfil, de ser tão agitada, tem classes mais tranquilas. Eu tento conversar

com os pais, falar da importância do trabalho em grupo, que hoje a sociedade precisa disso. Hoje não

adianta a criança ser só individualista. Eu tento falar isso com os pais pra eles conversarem em casa,

deles me apoiarem nas minhas decisões. Quando os pais apoiam a coisa flui um pouco melhor. Agora

quando os pais falam que não, que eles são pequenos, que é melhor assim mesmo, então eu vou tentando

fazer um trabalho paralelo, um trabalho alternativo e levar até o final do ano.

Pesquisadora: Tu consegues conquistar eles durante o ano?

Sujeito: Consigo. Geralmente eu consigo conquistar eles durante o ano. Nos primeiros meses,

principalmente quando eu pego primeira série, eles ficam meio arredios. Eles tentam me analisar. Mas

lá pra abril, maio, eu já consigo ter um bom relacionamento com eles.

Pesquisadora: Por que tu achas que no primeiro ano eles entram assim, arredios?

Sujeito: Primeiro porque eles vem da EMEI, um outro espaço, um espaço totalmente lúdico que eles

tem na EMEI, um parque enorme. Então, quando eles chegam aqui, é muito limitado. Eu tento fazer os

cantos, colocar umas coisas dentro da sala de aula, mas é diferente mesmo assim. Eles precisam desse

período pra extravasar, de ir pra fora, de ir brincar e a gente não tem os mesmo recursos. Eles ainda são

pequenos, não tem essa experiência, não tem maturidade. Então, fica um pouco mais difícil. Você leva

até maio, às vezes junho, metade do ano, pra que a turma se adapte à escola, pra que a turma goste da

escola, do espaço que eles tem. Porque é totalmente diferente.

Pesquisadora: É que é um período de transição né? Da educação infantil para o ensino fundamental.

Sujeito: Eu acho que agora até piorou, porque eles colocando as crianças de seis anos, eles tem que fazer

seis anos até 30 de março. Eles são muito imaturos. Então eu tento fazer mascote da sala, a gente sempre

tem um boneco que cada um, um dia, leva. Porque eles sentem falta desse brincar, desse cuidar. Eles

trazem o boneco, a gente brinca. Mas mesmo assim o espaço é muito pequeno pra tanta criatividade

deles, pra tanta energia que eles tem. Eles tem muito energia e tem a sala de aula, que a gente não pode

sair porque tem as outras salas, que é misturado fundamental 1 com fundamental 2. Então, se é recreio

do fundamental 2 eles não podem sair, depois é educação física do fundamental 2 e eles não podem sair.

Ou seja, a gente fica mais dentro da sala mesmo, mais presos. E quando são maiores que nem quarto

ano, eu consigo sair mais com eles. Porque eles não saem aqui, mas eu saio com eles pra biblioteca, eu

vou pro clube escola, eu faço aula de circo lá. Então, a turma maior dá pra você sair. Agora com eles

com seis anos, a escola não disponibiliza gente pra acompanhar, e eu não vou levar trinta alunos...

Porque tudo isso é muito próximo, mas tem um deslocamento, você já fica preocupada, eles são muito

pequenos, então não dá pra sair muito. É o espaço da escola mesmo que a gente usa.

Pesquisadora: Qual a tua opinião sobre essa transição de educação infantil pro fundamental e esse

modelo mais lúdico no infantil e quando passa pro fundamental é mais rígido?

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Sujeito: Eu acho péssimo. Eu acho que existe um rompimento ainda. Apesar deles falarem que não, mas

eu acho que existe um rompimento.

Pesquisadora: Eles quem?

Sujeito: A gestão pública. Fala que não, que a gente vai continuar esse movimento de lúdico até o

terceiro ano, mas as cobranças são diferentes, os espaços são diferentes. Eu acho que até poderia

acontecer essa transição de uma maneira mais tranquila se talvez o primeiro ano tivesse ficado na EMEI.

Porque aí é o primeiro ano, as crianças vão amadurecendo um pouco mais, você conseguiria fazer essa

transição. Agora, com eles com seis anos, vindo pra outro prédio, um prédio com muito mais concreto,

que não tem nada de terra, não tem nada de areia, não tem nada de parque... Então, eles sofrem muito

no primeiro ano. Eles sofrem demais no primeiro ano. E tem professor que acha que não, que é sala de

aula e coloca lá e eles vão ficar lá. Mesmo a gente fazendo os cantos... Como eu dou aula no primeiro

ano as crianças nunca fazem a mesma coisa ao mesmo tempo. Então, são os grupos. Eu tenho o grupo

que tá, por exemplo, escrevendo, tem um grupo que tá brincando... Então, dentro da minha sala eu tenho

quatro aulas, ou cinco aulas as vezes. E cada grupo de quatro crianças fazendo alguma coisa. E depois,

quando dá um determinado momento, a gente troca. Quando eles acabam de fazer a atividade a gente

faz o rodízio, até que quando chega o final do dia, todos os grupos passaram por todas as ilhas.

Pesquisadora: Todos os primeiros anos tu fazes isso?

Sujeito: Todos os meus primeiros anos eu faço isso. Por isso que eu falo, até maio é uma... Mas depois

eles acostumam. Quando você monta o grupo e você manda “vocês cinco vão começar escrevendo”, aí

eles não querem. Eles querem começar na massinha, eles querem começar na construção, eles querem

começar em outras coisas. Mas, até eles entenderem, que depois eles vão passar por todos os grupos,

eles vão se acalmando. Então, no primeiro dia é um zoar, na primeira semana é um fuzuê, parece que

não vai dar nada certo. Entra na minha sala e tem criança até no teto. Mas depois eles acalmam. Eles

sabem que depois dali eles vão pra outra ilha, até terminar o dia. E quando chega em agosto, setembro,

eu já estou super tranquila. Eu só ponho as atividades, sento e eles ficam e eles me chamam. Você só dá

os comandos, fica muito mais tranquilo do que você querer que todas as crianças façam tudo igual ao

mesmo tempo. Eu acho muito difícil, porque se você precisa de uma intervenção na escrita, é um que te

chama aqui, é outro que te chama ali... Eu não consigo. Quando você trabalha com ilhas é muito mais

fácil, porque só aquelas cinco crianças estão escrevendo. Então, você pode se dedicar aquelas cinco. Aí

uns tão construindo, o outro tá brincando de massinha... Então é muito mais tranquilo. Você faz a

sondagem daqueles cinco, depois trocou as mesas, trocou o horário, aí são mais cinco que tão ali e você

vai fazer a intervenção dos outros cinco, porque o outro já tá numa ilha que já tá mais tranquila. No

começo é bem difícil, não vou te falar que é fácil. Até eles entenderem essa dinâmica, é bem difícil. Mas

depois, quando chega em agosto, eu fico só desfrutando.

Pesquisadora: Agora A., tu tens uma diversidade de atividades que acho incrível. De onde vem isso, de

onde vem essa diversidade (de atividades)?

Sujeito: Olha, eu não crio nada. Até quando você me perguntou sobre criatividade eu fui pesquisar o

que era criatividade. Porque eu não sou criativa. Aí eu fui pesquisar e fui olhar o que é. Eu gosto muito

de internet, eu pesquiso muito o que as outras professoras fazem. Eu leio muito trabalho científico das

professoras, eu acho muito interessante. Então eu tô sempre olhando o que aquela professora tá

pesquisando, e dali, quando eu leio, vão me surgindo ideias. Às vezes eu vejo até trabalho pronto. Às

vezes, não é totalmente igual, mas eu pego 30% daquela ideia, levo pra minha sala de aula, transformo

aquilo e dá certo. Então, eu leio muito de outras professoras, eu vejo muita coisa na internet. Aí eu pego

e transformo. Nunca um trabalho é igual ao outro. Igual nesse ano que a gente fez a manta... Eu já

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trabalhei aqui um ano e a gente também fez um tear. E não saiu uma manta, saiu outra coisa. E esse ano,

que a gente fez o tear de novo, porque eu achei que a turma era boa, estava frio, e eu achei que eles

tinham interesse, que a gente fez o tear, saiu a manta, que saiu a rifa, que vamos comprar o presente...

Mesmo eu dando aparentemente a mesma coisa, o produto final é outro. O produto final é totalmente

outro. Com uma turma foi uma coisa, com outra turma é outra coisa, mas o meio que eu usei pra chegar

na conclusão do trabalho, às vezes, já foi alguma atividade que eu já dei em algum momento.

Pesquisadora: E no início do ano tu tens alguma expectativa sobre a turma, não é?

Sujeito: Tenho.

Pesquisadora: E como tu lida quando isso não dá certo, ou quando dá certo, mas não foi exatamente o

esperado?

Sujeito: Eu acho que sempre dá certo se eu partir do ponto de vista que eu quero que eles aprendam

alguma coisa, que não necessariamente seja aquilo esperado. Que nem esse ano, eu já sabia que a minha

turma era ótima, que eu ia poder fazer um monte de coisas com eles. Então, pra mim esse ano tá sendo

super tranquilo. Agora, quando eu pego uma turma, e eu planejo e acho que vai dar e não vai dando, eu

vou mudando esse planejamento, eu vou adequando esse planejamento. E quando chega no final do ano,

também deu certo. Não talvez daquela maneira que eu esperava, mas acabou dando certo porque eles

acabaram aprendendo, a gente acabou fazendo aí alguns vieses, e eles acabaram chegando no produto

final também.

Pesquisadora: Então no fim do ano tu sempre esperas que eles aprendam e se desenvolvam?

Sujeito: Que eles aprendam, que eles se desenvolvam, que eles cresçam como pessoa, que eles aprendam

valores, que eles sejam cidadãos éticos, sabe? Eu acho que isso é o mais importante, porque eu acho que

esse conhecimento, em algum momento eles vão adquirir. Por exemplo, esse ano, eu queria muito dar

português, eu tinha uma expectativa. Aí a sala de leitura fechou, nós íamos ler quatro livros, aí não deu

pra pegar livro na sala de leitura e eles leram só dois. E no segundo semestre eu tive que mudar o

planejamento, porque não ia ter livro. Aí a gente começou a escrever, e agora da escrita a gente tá indo

pra outro viés. Então, eu acho que em algum momento, a leitura de livro eles vão ter, eles vão ter no

quarto, mas o que esse conhecimento, o que essas histórias trouxeram pra eles? O que eles aprenderam

com essas histórias? Então, quando a gente leu a vida de Bach, que a gente leu sobre crianças famosas,

até hoje eles me falam “nossa, mas ele também teve uma vida difícil, né professora? E ele também

conseguiu.”. E eu falo “então, ele conseguiu. A sua vida, não é porque tá difícil hoje que vai ser sempre

difícil.”. Então a gente sempre tenta levar pra algum paralelo. Eu gosto muito de transmitir valores

éticos, valores morais, e eu falo muito isso na reunião também pros pais. Quando a gente fez a primeira

festa aqui na escola, eu acho que foi em abril. Nós fizemos um lanche comunitário. De 30 crianças, 5

trouxeram prato. Quando desceu todas as salas pra comer, você imagina.

Pesquisadora: Quantas salas são?

Sujeito: São sete, a tarde. Só que cada sala trouxe cinco pratos. E são 30 crianças. Quando desceu, já

não tinha mais comida. E eu tinha um aluno que tem deficiência, e ele queria uma coxinha, porque ele

tinha visto chegar a coxinha. Só que até a fila andar, a coxinha já tinha acabado. E eu tive que pedir pra

uma menina dar um pedaço da coxinha pra ele. Foi uma catástrofe. Eu falei que não queria mais fazer

lanche comunitário assim, preferia fazer só com a minha turma. Mas é importante eles compartilharem

com as outras turmas, e ia ter lanche comunitário no segundo semestre, na semana das crianças e falei

“vou fazer ou não vou fazer com a turma?”. Aí, tinha uma reunião de pais e eu conversei com os pais, e

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falei “olha como vocês querem... Essas crianças vão ser os políticos de amanhã, não tem como. Se não

for seu filho, vai ser o amigo dele, vão ser os políticos. Se a gente não compartilhar... Será que vocês

realmente não tem condições de mandar um bolo, de mandar um prato? Porque de 30, cinco trouxeram.

Vocês vão ficar esperando tudo do outro, vai esperar que o outro leve pro meu filho comer...”. Então eu

fiz uma sensibilização com os pais, e chegou no dia, 30 trouxeram. Foi a melhor festa. Quando a gente

desceu a gente disse “olha, vocês também podem participar! Os professores podem pegar”. Porque da

última, a gente nem comeu nada, porque não tinha. Surtiu efeito, acho que tem que ser assim, tem que

conversar com os pais. A gente tem que chamar eles pro nosso lado. Aí eles trouxeram e depois a gente

fez avaliação com a turma, foi tudo mais legal, a gente pode se servir, não uma vez só, mas duas vezes.

Comer coisas diferente, porque não foi você quem trouxe, de repente foi seu amigo que trouxe. E eles

“é verdade né prô?”. Então eu mandei bilhete pros pais, agradecendo que eles colaboraram, porque eu

acho que também tem que ter esse retorno. Porque quando não dá certo, a gente já chama os pais na

reunião. Então eu fiz um bilhetinho pros pais, “agradeço a participação, foi ótimo nosso lanche

comunitário. Todos trouxeram, puderam se servir.”. Então acho que é isso, essa troca, esses valores. Eu

acho que hoje em dia ninguém tá se importando mais um com o outro. É assim “quer fazer faz, faz do

jeito que quiser, não quer fazer não faz. Quer tirar zero? Eu não reprovo. Quer fazer, faz.”. Então, eu

acho que isso que a gente não pode deixar acontecer. A gente tem que resgatar esses valores, se a gente

quiser lá na frente tiver alguma colheita.

Pesquisadora: E dentro do coletivo dos professores, na escola, esse apoio é importante?

Sujeito: Esse apoio é super importante. A gente acabou conversando sobre isso, a gente acabou

conversando um pouquinho porque né, só cinco trouxeram. E a gente começou a conversar e então

decidimos “vamos começar a fazer esse movimento, vamos falar na reunião de pais.”. Então, não foi só

a minha sala que trouxe os pratos, as outras sala também trouxeram. A gente só não conversou como foi

o retorno, se elas mandaram o bilhete. Cada um fez do jeito que quis. Mas eu acho isso importante, a

gente trabalhar em uma engrenagem mesmo. Os professores daqui são muito legais, eles já trabalham

aqui há muito tempo, a maioria deles já são da casa há algum tempo. Então a gente tem bastante amizade,

a gente tem bastante interação. E um fala e mesmo que o outro não concorde 100%, mas se foi a opinião

do coletivo todo mundo faz. Isso que é legal.

Pesquisadora: E tu achas que isso favorece a aprendizagem e o desenvolvimento dos teus alunos?

Sujeito: Com certeza! As crianças percebem quando tem essa coisa dos professores de um falar mal do

outro “Aquela professora não sei o que, porque aquela professora do ano passado que não cumpriu.

Você não sabe porque ela não ensinou.”. Então elas acabam percebendo. E quando elas veem também

o contrário, elas também percebem. Eu falo pra eles “esse é o último ano que eu vou ficar com vocês, o

ano que vem vocês vão ser de outra prô.”, aí eles “prô, a gente sempre vai lembrar, a gente sempre vai

tá na escola, a gente sempre vai se ver.”. Então, eles também percebem que a gente fala a mesma língua.

Se não eles iam sair da aula e a outra professora “ah, a professora mandou vocês trazerem o prato? Mas

quem quiser trazer traz, quem não quiser...”. Então fica um trabalho fragmentado. Mas eles saem da aula

“ah a minha prô mandou trazer. A minha também mandou.”. Todos trouxeram e a festa foi muito boa.

Pesquisadora: Tu pesquisaste sobre o que é criatividade?

Sujeito: Isso, eu dei uma olhada! Fui lá no google, fui lá no dicionário ver o que era criatividade.

Pesquisadora: Então, tu achas que o ambiente escolar favorece ou ajuda a desenvolver a criatividade dos

alunos?

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Sujeito: O ambiente escolar? A escola em si não. A escola prédio, não. A estrutura da escola, não. Porque

isso aqui não tem vida. Quem dá vida pra escola são os professores, são os alunos, o corpo docente, a

diretora, a gestão que apoia. Porque também não adianta eu querer fazer alguma coisa, querer ir na

biblioteca, se a diretora ou a gestora falar “não, não vai sair daqui.”. Não adianta eu querer fazer uma

aula de circo e os outros questionarem “nossa, vai dar aula de circo por que?”. Por que? “Porque eu

estou trabalhando com eles coordenação motora, porque eu quero que eles conheçam outras profissões,

eu quero que eles conheçam outras coisas.”, “ah então pode, então pode levar.”. Então, não adianta você

ter ideias e a sua coordenadora, a sua diretora não te apoiar! E aqui não acontece isso. Quando eu falei

que eu queria dar a flauta pra eles, a diretora comprou todas as flautas. Ela se prontificou, comprou todas

as flautas Yamaha. Então, a estrutura escola, a construção, a parte física, não. Mas as pessoas, sim. As

que te apoiam, as que dão ideia. Teve uma professora que eu estava comentando e ela falou “olha, vai

na Fritz Dobbert, que é aqui em P. Uma fábrica de piano! Já levei os alunos lá.”. Uma vai agregando,

vai trazendo alguma coisa que possa te ajudar. Isso que é importante.

Pesquisadora: Tu imaginas uma escola que possa ajudar o desenvolvimento da criatividade dos alunos?

Sujeito: Sim. Eu acho que muito menos parede, eu acho que as crianças teriam que ser muito mais soltas.

Teria que ter parque. Às vezes eu passo nessas escolas que só estudam lá pessoas que tem poder

aquisitivo muito bom, e eu olho a estrutura da escola e fico pensando... O parque é enorme, cheio de

árvore, que dá pra você fazer desde piquenique até pesquisa de formiga, pesquisa de minhoca. Tem um

parque, tem um jardim muito grande. Eu acho as salas pequenas, abafadas. Claro, se as salas fossem

maiores. Se eu pudesse trabalhar dessa forma no quarto ano, que as crianças pudessem trocar de ilha,

mas a sala é pequena, eles são grandes. Não dá nem pra organizar as carteiras, porque nos primeiros

anos as crianças são menores, então você consegue colocar numa forma que elas conseguem andar na

sala. Agora, no quarto ano, eles tão crescendo, eu tenho criança que já é do meu tamanho. Fica muito

pequeno o espaço, não dá pra organizar as carteiras. O máximo que você consegue fazer são uns

grupinhos de quatro, mas muito apertado. Então é claro que se fossem maiores as salas, ou até mesmo

não ter sala, que eles pudessem chegar, já procurar a sua turma, sentar e lá se organizar, eu acho que

seria muito melhor.

Pesquisadora: E como é a relação entre essa diversidade do teu planejamento e o currículo?

Sujeito: Eu sempre privilegio o currículo, porque eu sei que eles precisam desse currículo. Até porque

a gente tem muita avaliação externa, então as avaliações externas chegam e se você não deu a criança

não vai saber fazer. Mas é claro que não é uma coisa engessada. Se eu tiver que parar pra conversar, se

eu tiver que parar uma ou duas aulas, três aulas, não vai fazer tanta diferença. Principalmente na semana.

Às vezes, na semana, eu paro três aulas, mas eu dou 25 por semana. Então as vezes eu paro cinco aulas,

mas eu ainda tenho 20 pra gente desenvolver. Eu sempre privilegio o currículo, eu sempre tô ali. Até

porque eles vão precisar desse conteúdo no próximo ano. Não dá pra você também não dar história, vou

falar só sobre história de vida, não. Não é assim. Eu vou privilegiar o currículo, eu vou dar o que tá no

currículo, mas de uma forma talvez um pouco mais lúdica, de uma forma que eles entendam muito,

porque eu prefiro trabalhar no concreto. Eu prefiro sempre trabalhar com concreto pra depois passar pro

caderno, porque eu acho que eles acabam assimilando melhor esse conhecimento.

Pesquisadora: Tu me dissestes que tu sempre estás fazendo curso na prefeitura, tu fizeste duas pós-

graduações. Por que tu buscas essa formação continuada?

Sujeito: Porque eu sinto necessidade de conhecimento. Porque eu também não quero ficar uma

professora retrograda, que as coisas tão acontecendo... Então, quando as crianças com deficiência

entraram, tem professor até hoje que não aceita. E isso já é uma coisa pra mim que é tão comum, tão

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normal. Eu acho que a gente tem que buscar esse conhecimento. Se eu dobrar meu braço e falar “ah, eu

não fui formada pra dar aula disso. Ah, eu não fui formada pra receber criança desse tipo.”, então você

não foi formada pra nada, porque as crianças mudam todos os dias. A gente tem uma diversidade de

crianças, de todo tipo, principalmente na rede pública. Então, a gente precisa de formação, a gente

precisa de capacitação, a gente precisa ler, a gente precisa se integrar. E isso tudo junto e misturado,

porque você também tem sua vida pessoal, você vai ter suas filhas. Mas quando você gosta você acaba

agregando isso de uma maneira tranquila na sua vida, no seu dia a dia.

Pesquisadora: E como foi pra tu construíres esse teu compromisso com a educação e com as crianças?

O que contribuiu pra essa tua postura (de compromisso com a educação)?

Sujeito: Eu acho que as crianças são cidadãos, eles tem sentimento. Eu jamais passaria na vida de uma

criança sem deixar uma marca. Eu lembro que na primeira escola que eu trabalhei, lá atrás, eu tive um

aluno... Eu trabalhava no estado e eu trabalhava numa periferia lá na Francisco Morato, num lugar assim,

muito ruim. Não tinha nem asfalto na rua. E o meu aluno falava todo dia pra mim que ele ia ser ladrão,

que ele ia ser assaltante, porque o tio dele era assaltante e ganhava muito dinheiro com isso. E depois

passaram acho que uns cinco, seis anos, eu descobri que ele morreu, que ele foi morto por policiais.

Então, eu acho que a gente não pode passar na vida deles sem que eles percebam algo. Eu sempre gosto

de plantar uma sementinha, eu sempre gosto de deixar ali alguma marca na vida deles. Por isso que eu

falo muito sobre valores, por isso que eu falo muito sobre ética. A gente tem que passar na vida de uma

pessoa de uma maneira positiva, principalmente deles, que são pequenos. Até hoje eu lembro da minha

professora. E hoje em dia a gente não vê mais isso, as crianças não conseguem mais identificar a

professora. O meu aluno falou “ah professora, eu queria ser cientista, mas agora eu quero ser professor,

que nem você, porque eu achei muito legal ser professor. Agora eu quero ser professor, que nem você.”.

Aí a minha amiga falou “nossa que horror! Por que você não falou pra ele? Deus me livre! Coitado do

menino.”. Aí eu falei “porque a gente também precisa de bons profissionais na área!”. Quem vão ser os

professores dos meus netos? A gente precisa de boas pessoas, a gente precisa de bons profissionais na

área da educação também. Não que eles só façam as coisas por dinheiro, porque não é uma profissão

valorizada, porque não dá status. Então falei “que bom!”, tomara que quando chegar lá na frente eu

acabe encontrando com ele e ele diga “olha professora, me tornei professor.”. Porque eu acho que isso

é importante, a gente deixar uma sementinha.

Pesquisadora: O que te leva a fazer tantas atividades diferentes, diversificadas?

Sujeito: O compromisso da criança aprender. Eu quero que ela aprenda.

Pesquisadora: Aprenda o que?

Sujeito: Ela aprenda desde o conteúdo, a matéria do currículo, até os valores, ética. Porque se eu for só

chegar na sala e der uma aula normal, possivelmente ela vai aprender. Se eu chegar lá, todo mundo

sentar, põe o cabeçalho na lousa, escrevo, ela possivelmente vai aprender, ela vai saber o que é adjetivo,

ela vai saber essa matéria. Mas eu quero além disso, eu quero que ela tenha esses valores, eu quero que

ela saiba trabalhar em grupo, eu quero que ela saiba valores, eu quero que ela aprenda isso também.

Então, não é só o conteúdo curricular, eu quero que ela aprenda isso também. E se não for na casa dela,

porque a mãe dela tá trabalhando, o pai dela não tá na casa, tá preso, sei lá... Com alguém ela tem que

aprender. Então, que seja comigo.

Pesquisadora: E de onde vem isso? Foi a tua formação na escola, na universidade? Foi tua família?

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Sujeito: Eu acho que um pouco da minha família, eu acho que também um pouco talvez da minha

religião, querer formar pessoas bem, querer o bem das pessoas. Eu acho que vem daí, acho que vem do

meu caráter, da minha família, que levou a gente pra esse caminho, de querer o bem das pessoas. Então,

não quero só que as minhas filhas se deem bem, eu quero que meus alunos também se deem bem na

vida, eu quero que eles cresçam, que eles casem futuramente, que eles tenham profissões. Então é por

aí que tento levar.

Pesquisadora: Na entrevista passada tu me contaste aquele episódio da professora...

Sujeito: Ah, da que me chacoalhou?

Pesquisadora: Isso. Isso foi uma experiência negativa pra ti dentro da sala e tu disseste que nunca ia

repetir aquilo. E quais foram os bons exemplos que tu tiveste na tua escola?

Sujeito: Eu também tive professora, principalmente no fundamental I, que foram carinhosas. Minha

primeira professora, do meu primeiro ano também era carinhosa... Diferente, até porque o tempo era

outro, a cultura era outra. Mas até hoje, a gente às vezes se encontra, porque pelo facebook a gente

localizou a turma, e um dia a gente marcou um encontro e ela foi, foi legal. Então, as professoras do

meu fundamental também foram...

Pesquisadora: Mas, o mais marcante ainda foi esse episódio, não é?

Sujeito: O mais marcante foi esse porque eu achei que aquilo lá foi demais. E eu fiquei com muita

vergonha, eu não usava calça comprida na época, eu só usava saia. Minha saia ficou toda molhada, eu

fiquei com muita vergonha. Eu já era um pouco tímida, pra mim foi péssimo aquilo, dos meus amigos

verem, poderia surgir algum comentário.

Pesquisadora: E como foi depois na escola?

Sujeito: Olha, se alguém percebeu, graças a Deus ninguém falou nada. Passou um episódio em branco,

só que eu fiquei marcada com aquilo. Só que eu também não poderia chegar em casa e falar, porque a

minha mãe era muito brava, ela ia falar “bem feito! Quem mandou? A professora não falou que era pra

você fazer desse jeito? Da próxima vez você tem que fazer do jeito que a professora mandou.”. Eu ainda

corria o risco de apanhar dela. Então, eu não podia falar nada e eu fiquei quieta. Eu pus a saia pra lavar

e me fingi de morta na escola e em casa também.

Pesquisadora: Agora vamos falar mais especificamente sobre imaginação. O que tu achas que é

imaginação?

Sujeito: Imaginação? Sei lá! Geralmente as minhas imaginações são sonhos, as minhas imaginações se

tornam sonhos. Às vezes tão abstratos que não chegam a acontecer. Por exemplo, dessa de escola, de

ser um espaço bem aberto, imagino assim. Então eu sonho um pouco com essa escola, mas eu sei que

isso, pelo menos no Brasil, não vai ter futuro essa imaginação. Mas eu acho que imaginação geralmente

são sonhos...

Pesquisadora: Coisas que podem ser realizáveis, ou não?

Sujeito: Nem sempre. Até porque já imaginei, já sonhei muita coisa e não aconteceu. Conforme vai

passando o tempo, eu vou deixando um pouco isso de lado.

Pesquisadora: As suas crianças são imaginativas?

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Sujeito: Sim, quando você pede pra elas escreverem alguma coisa eu dou muita risada, porque elas

viajam. Eu falo “Meu Deus, onde você foi achar uma coisa dessa?”. Geralmente as crianças são

engraçadas, elas levam muito pra esse lado. Ou às vezes, como desse menino que acabou chorando,

porque ele contou uma coisa que era muito real. Mas quando eles contam uma coisa que é pra criar,

“imagine você em tal situação.”, você dá o espaço, aí eles imaginam tanto que Às vezes eu falo “nossa,

não é possível. Onde você foi achar isso?”. É até engraçado.

Pesquisadora: Você acha que tem a ver com a criatividade?

Sujeito: Eu acho que tem um pouco a ver sim. Eu acho que a criança quando ela não tem criatividade,

ela não consegue sair desse mundo real, desse mundo palpável. Ela só consegue enxergar isso. E eu

acho que toda a criança é muito criativa, toda criança tem muita imaginação, eles estão começando a

vida, eles tem muito sonhos, eles tem muita imaginação. Eles acreditam muito, eles acreditam que eles

são capazes, e a gente tem que dar asa pra isso, a gente não pode cortar isso, a gente não pode cortar isso

deles. A gente tem que deixar isso fluir.

Pesquisadora: Tu me disseste numa parte da entrevista que criatividade não tem a ver com papel. Tu

falas papel mesmo, o objeto?

Sujeito: Eu acho que criatividade não tem a ver com papel físico, quanto o papel que você exerce na

sociedade. Porque eu vejo, por exemplo, professores que não são criativos, eu vejo pessoas que não são

criativas, em qualquer trabalho, qualquer papel que ele exerça na sociedade.

Pesquisadora: E como é a postura dela?

Sujeito: Eu acho que uma pessoa sem criatividade, geralmente, é uma pessoa muito apática, sem brilho,

que faz coisas por fazer. Como uma fila, ela só caminha naquela direção, porque ela tem que caminhar.

E se ela sair dali, ela se perde. Ela não arrisca, ela não se arrisca, ela vai naquele negócio linear, “eu

aprendi assim, eu sou assim, e vou ser sempre assim, assim que eu sou.”. Eu acho que quando uma

pessoa é criativa ela consegue sair um pouco dessa rotina, ela consegue mudar um pouco, e ela consegue

fazer com que a vida se torne com um brilho a mais, ela gosta, então ela vai atrás, ela tenta fazer coisas

novas, inovar, eu acho que é por aí.

Pesquisadora: Tu achas que depende só dela ou tem alguma coisa a mais que contribua pra isso?

Sujeito: Eu acho que depende dela, mas também depende da circunstancia que ela tá. Porque não adianta

eu querer fazer uma coisa e a minha escola me podar o tempo todo. Precisa do entorno também, que te

favoreça.

Pesquisadora: O que tu entendes por infância, por criança? O que é ser criança pra ti?

Sujeito: Ser criança eu acho que é um ciclo da vida maravilhoso. É aquele nascer, aquele despertar,

aquele conhecer, conhecer o mundo. Então eu acho que a criança tem essa vivacidade dentro dela, de

querer se expandir, de acreditar, porque ela confia. A criança confia tanto em você, que se você falar

“olha, pisa ali que você não vai cair.”, ela vai pisar. Ela exprime isso. É uma parte da vida muito bonita,

que ela ainda tá sonhando com o futuro dela, ela tá sonhando com as coisas que vão acontecer na vida

dela. É um período de descoberta, ela tá se descobrindo, ela tá descobrindo as coisas ao redor. Por isso

eu acho que ela é tão inquieta, por isso que ela é tão investigativa, e a gente tem que aguçar isso. E não

podar. “Senta, para, não mexe.”. Eu acho que ela tem esse direito de descobrir. Isso não significa

bagunçar o ambiente, isso não significa destruir. Mas ela tem que ter essa possibilidade de conhecer, de

pegar, de apalpar, de ver, de ver se vai dar certo. Porque eu acho que ela vai se tornar um cidadão mais

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seguro. Eu acho que é por isso que essa geração tá tão perdida. Principalmente a gente vê os jovens hoje

de 16, 17 anos, eles não sabem o que eles querem da vida. A gente vê jovens, principalmente na escola,

se drogando, porque eles não tiveram essa noção, eles não tiveram esse período de descoberta, tudo foi

podado, é tudo não. Mas ninguém fala o porquê dos nãos. É não. Não, por quê? “Por que eu não posso

nem pegar?”, “Você pode pegar, você só não pode fumar. Você quer conhecer? Toma, é isso.”. Eles tem

tanta curiosidade, que ele não sabem lidar com essas emoções, por isso que eles acabam fazendo tanta

coisa errada. Tem um aluno aqui que roubou o carro da L., da coordenadora. Ela tinha acabado de

comprar um HB20 e ela chegou na escola...

Pesquisadora: O que é um HB20?

Sujeito: É uma carro. Aí dois alunos assaltaram ela na porta da escola, porque eles tinham muita vontade

de dirigir o HB20. Bom, acabaram roubando o carro dela e batendo na esquina. Imagina, era novo o

carro dela, carro zero, que ela tinha acabado de comprar. Hoje, esses adolescentes, é só não. Talvez se

ele tivesse chegado pra ela e ter falado “olha, puxa, que carro lindo! Você comprou um carro

maravilhoso, posso conhecer?”. Porque até eu falei pra ela “Nossa, você comprou um HB20? Quero

conhecer, deixa eu entrar?”. Mas eu acho que falta isso, eles são tão podados, que no fundo não tem

coragem nem de falar. Aí eles já vão pra esse viés.

Pesquisadora: E qual o papel da educação nisso tudo?

Sujeito: O papel da educação é exatamente o que eu faço. “Não é que não, não é que você não possa.

Você pode ver, mas isso traz essas consequências. É isso que você quer?”. É ensinar, é falar, é parar, é

dar atenção, é ouvir. Você não é o detentor de saber, você não sabe tudo, eles são os protagonistas

naquele horário, eles tem que te falar, eles tem que colocar a vontade deles e você vai pontuando “isso

você pode, isso você não pode por causa disso, isso traz essas consequências.”. Eu acho que é esse o

nosso papel de hoje.

Pesquisadora: E depois dessas duas entrevistas, tu te consideras criativa?

Sujeito: Então, eu não me acho criativa, porque eu não crio nada. Eu transformo muitas coisas, eu

transformo as ideias que muitas vezes não são minhas. Quando a L. falou “você é criativa”, eu disse que

não sou, porque eu não tô criando nada, nada fui eu que criei. Eu não tive nenhuma ideia mirabolante,

não foi nada que surgiu da minha cabeça. É sempre através de outros, é sempre lendo, é sempre

renovando uma ideia, sempre pegando alguma coisa de alguém. Então eu não me acho criativa, porque

eu não peguei nada. Então eu olhos nos livros, eu leio. Quando eu falo de montar essas ilhas na educação

infantil, eu já fui numa EMEI que é assim. Então eu vi que deu certo lá, então eu falei “se deu certo aqui,

que é tão grande, vai dar certo também lá.”. Então não é assim, coisa que você fez, que foi ideia sua.

Não foi ideia minha, não criei isso. Eu já vi em algum lugar. Eu penso “se deu certo lá, será que não vai

dar certo aqui?”. Claro, não foi igual lá porque eles tinham um outro espaço, mas eu adaptei aquele

espaço. Aquela ideia que eu vi, eu adaptei pra minha realidade.

Pesquisadora: Tu achas que isso não é ser criativa?

Sujeito: Eu acho que eu faço adaptações, eu acho que eu faço modificações, mas eu acho que eu não sou

criativa porque eu não crio. A ideia não é minha, a ideia original não é minha.

Pesquisadora: O que tu achas da afirmação de que se tu teve uma ideia uma hora, alguém no mundo já

teve esse ideia antes?

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Sujeito: Eu acho que no meu caso é verídico, porque eu não tive a ideia, a ideia não foi minha. A ideia

original não foi minha. Até porque eu sei de onde ela partiu. Porque se fosse alguma coisa que surgisse

assim, sem eu ter visto nada, sem ter lido nada, eu ia falar “não, ela teve a mesma ideia que eu! Eu tive

a mesma ideia que ela.”. Mas não foi isso que aconteceu. Ou eu li isso num livro, ou eu pesquisei, eu li

isso num trabalho, ou eu fui a uma escola visitar, eu vi eles trabalhando dessa maneira e tive vontade

também de fazer. Eu sei de onde partiu, por isso que eu falo que eu não crio nada.

Pesquisadora: Tu teve um grande exemplo que te fez ser o que tu és, profissionalmente?

Sujeito: Não, um grande exemplo não. Os exemplos são esses, que eu vejo as professoras, o que eu vejo

as pessoas estudarem, elas eu tiro como meu exemplo. Porque se a pessoa tá lá, estudando, às vezes até

com mais idade do que eu, às vezes com menos. Então, eu falo “poxa, olha, ela tá pesquisando sobre

isso, que pesquisa legal.”. Eu trago essas pessoas pra mim. Eu tiro elas como exemplo. Vejo uma

atividade que uma professora deu, aí eu transformo aquela atividade pra adaptar na minha classe, eu

acabei utilizando ela como exemplo.

Pesquisadora: Então, esse compromisso tu foste construindo durante a tua carreira?

Sujeito: Sim, eu fui construindo durante a minha trajetória.

Pesquisadora: Ok então A., muito obrigada.

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APÊNDICE 5 – Quadro de pré-indicadores, indicadores e núcleos de significação

NÚCLEO 1: O Percurso Profissional: A constituição do ser professora

INDICADORES PRÉ-INDICADORES

A relação dialética entre

família e a escolha da

profissão: passado, presente e

futuro.

Meus pais sempre foram muito presentes. Meu pai era

metalúrgico, minha mãe ficava em casa com a gente [...]

Minha mãe sempre muito presente em casa com a gente e

brincava.

A gente também não tinha um poder aquisitivo muito alto, a

gente não viajava muito, ficava em casa. Não ganhava muito

presente [...].

Meus pais não tiveram muito estudo, só estudaram até o

ensino fundamental. Na minha casa nós somos em três

meninas, e as minhas outras duas irmãs que são mais velhas

também não estudaram, fizeram até o ensino médio e depois

foram trabalhar e casaram-se. Eu fui a primeira da minha

família a me formar [...]

[...] minha mãe ficou super encantada, porque foi a primeira

filha que fez faculdade. Então quando eu entrei na faculdade

meu pai também ficou super contente.

Quando eu levava um bilhete pra casa, minha mãe me batia e

falava “porque você é bagunceira, você falou.”. E às vezes eu

nem fazia tanta bagunça, mas o sistema era muito rígido.

Só que eu também não poderia chegar em casa e falar, porque

a minha mãe era muito brava, ela ia falar “bem feito! Quem

mandou? A professora não falou que era pra você fazer desse

jeito? Da próxima vez você tem que fazer do jeito que a

professora mandou.”. Eu ainda corria o risco de apanhar dela.

[...] eu tenho três filhas, eu sou casada, tenho um neto, as

minhas filhas desde pequenas eu sempre contava histórias pra

elas, eu gosto muito de contar histórias. Então eu sempre li

livros pra ela a noite, porque daí eu já era professora quando

as tive.

[...] quando elas (filhas) eram pequenas e a gente então tinha

dinheiro eu fiz vários jantares foras, eu colocava um tapete lá

fora e a gente jantava. Eu fazia cabana na sala e a gente ia

dormir nas cabanas como se a gente tivesse acampando.

Então, não quero só que as minhas filhas se deem bem, eu

quero que meus alunos também se deem bem na vida, eu

quero que eles cresçam, que eles casem futuramente, que eles

tenham profissões.

O processo de escolha da

profissão: as determinações

sociais

Desde pequena eu queria ser professora.

[...] o curso que eu mais conhecia era professor, porque a

minha mãe não me levava muito ao dentista, não tinha tanto

acesso aos médicos, então eu não conhecia outras profissões.

Na minha época, eu nem conhecia ETEC, nunca tinha ouvido

falar. Eu só conhecia a USP mas pra mim era uma coisa,

conhecia de ouvir falar, que era uma coisa muito longe.

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Conhecia a profissão de professora, me encantei por causa das

minhas professoras, e aí então eu fiz pedagogia porque eu

gostava mesmo.

[...] era a única profissão que eu me identificava porque não

conhecia outras profissões também. Então eu achava bonito

ser professora, aí eu falei “então vou ser professora.”.

A princípio eu queria muito fazer Educação Física, mas que

acontecia... A educação física na época era integral, e eu não

tinha como pagar a faculdade [...]

[...] minha mãe falou “não, você tem que trabalhar pra poder

pagar a faculdade”, então eu falei “então, vou fazer

pedagogia”.

E acho que foi até por destino e por uma sorte porque eu gostei

muito do curso, eu me envolvi bastante com o curso.

O Percurso Acadêmico e

Profissional: formação inicial

e continuada

[...] eu trabalho como professora na rede municipal há 15

anos, eu já fiz vários cursos, trabalhei 5 anos no CEFAI

(Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão). Sou

formada em pedagogia, fiz pós-graduação em Educação

Especial pela UNESP, fiz também Psicopedagogia [...]

Eu fazia faculdade no vespertino. Eu trabalhava num banco e

depois saia do banco quatro horas e entrava na faculdade cinco

e meia.

Eu queria muito me formar e eu entrei na faculdade com

aquele propósito.

Eu sempre estudei em escola pública, menos na faculdade.

Depois eu comecei a trabalhar na rede e comecei a exercer a

profissão. Mas trabalhei no estado antes de trabalhar na

prefeitura, trabalhei em escola particular. Aí depois prestei

concurso e passei na prefeitura.

Pesquisadora:

Há quantos anos você trabalha?

Sujeito: Na prefeitura 15 anos.

Pesquisadora: No geral?

Sujeito: 25 anos.

[...] faço todos os cursos que aparecem na rede que são

interessantes.

Eu fiz um curso na prefeitura de 30 horas de flauta, e aí eu

aprendi. Aprendi as notas, aprendi a tocar algumas músicas,

eu toco um pouco de piano.

[...] quando eu fiz a pós graduação eu já atuava, eu já estava

na sala de aula, então eu podia aplicar com os alunos. Então

eu via na teoria e fazia a prática. [...] Então eu achei que foi

muito mais rico por conta disso, porque eu já atuava e eu já

podia tá ali com os alunos.

Porque buscar a formação

continuada

Porque eu sinto necessidade de conhecimento. Porque eu

também não quero ficar uma professora retrograda [...].

Eu acho que a gente tem que buscar esse conhecimento.

A gente tem uma diversidade de crianças, de todo tipo,

principalmente na rede pública. Então, a gente precisa de

formação, a gente precisa de capacitação, a gente precisa ler,

a gente precisa se integrar.

Pesquisadora:

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A questão da atividade

criadora na sua formação

Tu estudaste especificamente, durante tua formação, sobre

criatividade?

Sujeito: Sobre criatividade em si, não. É assim, o que é uma

aula criativa, o professor tem que ser criativo, não.

Então, sobre criatividade em si eu nunca aprendi nada e nunca

tive aula disso.

Pesquisadora: E a universidade? Você acha que ela contribuiu

pra tua criatividade?

Sujeito: Esse curso que eu fiz de educação especial muito. Foi

um curso muito bom de educação especial, a gente via muito

essa parte.

A constituição do ser

educadora: um processo

dialético com o outro.

[...] quando eu iniciei a minha carreira, eu achava que era uma

mera transmissora de conhecimento, que eu tinha que saber

tudo e que eu tinha que transmitir tudo aquilo para os meus

alunos, [...] O tempo foi passando e eu vi que não era isso. Eu

fui aprendendo muito com eles e eu vi que não era isso.

[...] pra mim hoje, ser professora, ser uma educadora, é

compartilhar conhecimento. Claro que eu trago muita coisa

que eles não sabem, mas eles também ajudam a formar muitas

vezes o meu caráter, ajuda a formar a aula que eu vou dar no

dia seguinte.

A relação afetiva com a

profissão

Olha, eu amo fazer isso. Eu gosto muito [...].

Eu acho isso muito prazeroso, pra mim isso que é escola.

Eu acho isso prazeroso, eu gosto de ver que as crianças estão

se desenvolvendo, eu acho que pra mim isso é educação. Eu

gosto de trabalhar com as crianças, eu não tô aqui porque eu

sou concursada, porque a prefeitura não vai me mandar

embora. Eu gosto de trabalhar.

Eu gosto de trabalhar, eu gosto de fazer minha aula, eu gosto

de apresentar pros alunos, eu gosto que eles aprendam.

Eu falo “não, eu tenho um compromisso com eles”, eu gosto

da escola, eu não tô aqui só porque eu sou concursada, eu levo

meu trabalho muito a sério.

Eu gosto muito dessa profissão. [...] Eu gosto muito de

lecionar, eu gosto muito de vir pra escola, eu não me sinto

cansada, enfadada. Eu gosto dessa dinâmica.

O compromisso com a

profissão e com a educação

das crianças: ir além do

conteúdo.

Eu acho que as crianças são cidadãos, eles tem sentimento. Eu

jamais passaria na vida de uma criança sem deixar uma marca.

Eu sempre gosto de plantar uma sementinha, eu sempre gosto

de deixar ali alguma marca na vida deles. Por isso que eu falo

muito sobre valores, por isso que eu falo muito sobre ética. A

gente tem que passar na vida de uma pessoa de uma maneira

positiva, principalmente deles, que são pequenos.

Eu trabalhava no estado e eu trabalhava numa periferia lá na

Francisco Morato, num lugar assim, muito ruim. Não tinha

nem asfalto na rua. E o meu aluno falava todo dia pra mim

que ele ia ser ladrão, que ele ia ser assaltante, porque o tio dele

era assaltante e ganhava muito dinheiro com isso. E depois

passaram acho que uns cinco, seis anos, eu descobri que ele

morreu, que ele foi morto por policiais. Então, eu acho que a

gente não pode passar na vida deles sem que eles percebam

algo.

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O meu aluno falou “ah professora, eu queria ser cientista, mas

agora eu quero ser professor, que nem você, porque eu achei

muito legal ser professor. Agora eu quero ser professor, que

nem você.”. Aí a minha amiga falou “nossa que horror! Por

que você não falou pra ele? Deus me livre! Coitado do

menino.”. Aí eu falei “porque a gente também precisa de bons

profissionais na área!”. Quem vão ser os professores dos meus

netos? A gente precisa de boas pessoas, a gente precisa de

bons profissionais na área da educação também.

Pesquisadora: E de onde vem isso? Foi a tua formação na

escola, na universidade? Foi tua família?

Sujeito: Eu acho que um pouco da minha família, eu acho que

também um pouco talvez da minha religião, querer formar

pessoas bem, querer o bem das pessoas.

[...] acho que vem do meu caráter, da minha família, que levou

a gente pra esse caminho, de querer o bem das pessoas.

Eu falo “não, eu tenho um compromisso com eles”, eu gosto

da escola, eu não tô aqui só porque eu sou concursada, eu levo

meu trabalho muito a sério.

Mas eu acho que você deixar um marco na vida da criança e

um marco positivo, isso que é o mais importante. É deixar esse

marco positivo pra criança.

[...] (que) a criança goste de vir, que a criança queira estar

aqui, que a criança queira vir pra escola, queira tá na sala de

aula.

Eu acho que hoje em dia ninguém tá se importando mais um

com o outro. É assim “quer fazer faz, faz do jeito que quiser,

não quer fazer não faz. Quer tirar zero? Eu não reprovo. Quer

fazer, faz.”. Então, eu acho que isso que a gente não pode

deixar acontecer.

NÚCLEO 2: Concepção de ensino, de infância e o papel da educação e a relação com a

prática educacional

INDICADORES PRÉ-INDICADORES

Crítica ao ensino tradicional e

autoritário e às relações de

poder

[...] quando eu estava na escola eu tive uma professora que até

hoje eu não esqueço dela. Ela me chacoalhou tanto na carteira,

porque eu não sabia uma bendita de uma tabuada, que eu fiz

xixi na calça. E aquilo me travou de uma tal maneira que eu

falei que eu nunca vou ser igual a ela. Nunca vou fazer isso

que ela fez comigo.

[...] eu falo como que podia na época a gente, com tão pouco,

e a professora se sente tão autoritária, ao ponto de você não

saber o conteúdo, ela te chacoalhar na carteira e fazer você

passar toda aquela humilhação, aquele vexame.

Ela (sua professora) me chacoalhou na carteira porque ela

queria que eu fizesse a tabuada 4x1 4x2 e assim. E ela passou

na minha carteira e eu tinha feito quatro quatro quatro, vezes

vezes vezes, um dois três quatro cinco seis sete... Quando ela

viu aquilo, ela me pegou assim e me chacoalhou na carteira

“eu falei que não era assim!”. E nossa, aquilo pra mim foi o

fim.

Ela (a professora que a chacoalhou) fazia isso direto com os

alunos, tanto que ela tinha esse apelido porque todo mundo

achava ela muito brava, ela era muito brava, muito autoritária

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na sala de aula. E ao mesmo tempo os alunos tinham medo

dela, mas não tinham respeito.

Porque antigamente, as crianças não falavam. Eu quando

estava na escola só ouvia. Não tinha oportunidade de falar.

Professora falou e acabou.

[...] o sistema era muito rígido. Eu acho que a gente não

colocava nossa opinião, a gente não tinha oportunidade de

falar, de se expressar. E hoje isso mudou.

A escola continua lá com a sua lousa, com seu apagador, com

uma criança sentada atrás da outra. E na minha classe não tem

isso, um dia eles tão de círculo, um dia eles tão de um, um dia

eles tão de quatro.

[...] não adianta a gente querer aquela criança, sentada um

atrás do outro, aquele silêncio na classe e a professora passa

lição, todo mundo quieto... Eu acho que isso não é

conhecimento, isso não leva a nada. As crianças ficam

introspectivas, elas não podem se expressar, elas não se

deixam ser aquilo que elas são. Eu já vi que esse conceito de

aula não dá certo, pelo menos pra mim não dá certo.

Passou um episódio (que a professora à chacoalhou) em

branco, só que eu fiquei marcada com aquilo.

Porque eu acho que hoje, num mundo que tem tanta

tecnologia, que as crianças veem tanta coisa, que a televisão é

tão colorida, não adianta ficar lá com o quadro negro em frente

de uma lousa, com giz branco e querendo que as crianças

prendam atenção cinco horas, é impossível.

E nem adianta ficar idealizando aquela criança, aquele aluno

quietinho, que ficava sentado quatro horas. Isso não existe

mais, isso é morto, ponto. A gente tem que viver com a

realidade de hoje.

Porque a aula é ali no professor, professor, é aluno, não é só

professor.

[...] se a gente não utilizar de outras técnicas você vai ficar

cinco horas, as crianças vão ficar enfadadas, acho que é por

isso que a gente tem tanta indisciplina na escola, e você não

consegue reverter isso, porque as crianças acham as aulas

chatas, as crianças não querem vir. Elas querem vir pra escola,

mas elas não pra ter aula, elas querem vir pra conversar, elas

querem vir pra bagunçar, elas querem vir pra outras coisas.

Então se você não tiver outra metodologia você não consegue

atingir a criança hoje.

Crítica a transição da

educação infantil para o

ensino fundamental

Sujeito: Nos primeiros meses, principalmente quando eu pego

primeira série, eles ficam meio arredios.

Pesquisadora: Por que tu achas que no primeiro ano eles

entram assim, arredios?

Sujeito: Primeiro porque eles vem da EMEI, um outro espaço,

um espaço totalmente lúdico [...] quando eles chegam aqui, é

muito limitado. [...] Eles precisam desse período pra

extravasar, de ir pra fora, de ir brincar e a gente não tem os

mesmo recursos. Eles ainda são pequenos, não tem essa

experiência, não tem maturidade. Então, fica um pouco mais

difícil. [...]

Pesquisadora: É que é um período de transição né? Da

educação infantil para o ensino fundamental. Sujeito: Eu acho

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que agora até piorou, porque eles colocando as crianças de

seis anos, [...] Eles são muito imaturos. [...] eles sentem falta

desse brincar, desse cuidar. [...] mesmo assim o espaço é

muito pequeno pra tanta criatividade deles, pra tanta energia

que eles tem.

Eu acho péssimo (a transição da educação infantil para o

ensino fundamental). Eu acho que existe um rompimento

ainda. Apesar deles falarem que não, mas eu acho que existe

um rompimento. [...] A gestão pública. Fala que não, que a

gente vai continuar esse movimento de lúdico até o terceiro

ano, mas as cobranças são diferentes, os espaços são

diferentes. Eu acho que até poderia acontecer essa transição

de uma maneira mais tranquila se talvez o primeiro ano tivesse

ficado na EMEI.

[...] eles com seis anos, vindo pra outro prédio, um prédio com

muito mais concreto, que não tem nada de terra, não tem nada

de areia, não tem nada de parque... Então, eles sofrem muito

no primeiro ano. Eles sofrem demais no primeiro ano.

Preocupação com a

aprendizagem e o

desenvolvimento das crianças

Então eu sempre tive essa preocupação com as crianças que

não conseguem aprender, com as crianças que são deficientes

que estão na minha sala, e a minha preocupação é sempre que

elas saiam com conhecimento a mais. Eu procuro fazer o

máximo que eu consigo pra que aquela criança se desenvolva.

Se essa criança não tá conseguindo aprender, por que ela não

tá conseguindo aprender, por que ela erra tanto, por que ela

não consegue escrever.

Eu acho que por isso que as crianças... elas ficam muito mais

ricas no conteúdo, atravessando a rua sem a mãe, diferente...

Eu acho que sempre dá certo se eu partir do ponto de vista que

eu quero que eles aprendam alguma coisa, que não

necessariamente seja aquilo esperado.

[...] quando eu pego uma turma, e eu planejo e acho que vai

dar e não vai dando, eu vou mudando esse planejamento, eu

vou adequando esse planejamento. E quando chega no final

do ano, também deu certo. Não talvez daquela maneira que eu

esperava, mas acabou dando certo porque eles acabaram

aprendendo, [...]

(Eu espero) Que eles aprendam, que eles se desenvolvam, que

eles cresçam como pessoa, que eles aprendam valores, que

eles sejam cidadãos éticos, sabe?

Eu gosto muito de transmitir valores éticos, valores morais, e

eu falo muito isso na reunião também pros pais.

Pesquisadora: O que te leva a fazer tantas atividades

diferentes, diversificadas?

Sujeito: O compromisso da criança aprender. Eu quero que

ela aprenda.

Pesquisadora: Aprenda o que?

Sujeito: Ela aprenda desde o conteúdo, a matéria do currículo,

até os valores, ética.

Porque se eu for só chegar na sala e der uma aula normal,

possivelmente ela vai aprender. [...] ela vai saber o que é

adjetivo, ela vai saber essa matéria. Mas eu quero além disso,

eu quero que ela tenha esses valores, eu quero que ela saiba

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trabalhar em grupo, eu quero que ela saiba valores, eu quero

que ela aprenda isso também.

E se não for na casa dela, porque a mãe dela tá trabalhando, o

pai dela não tá na casa, tá preso, sei lá... Com alguém ela tem

que aprender. Então, que seja comigo.

[...] eu quero que meus alunos também se deem bem na vida,

eu quero que eles cresçam, que eles casem futuramente, que

eles tenham profissões.

A gente tem que atingir acho que todos [...]

Eu já falei pra eles, quem não sabe tocar, porque tem aluno

que não vai, não vai. Só soube as notas, mas não consegue

nem o ritmo pra tocar a música. Eu falei “então quem não toca,

canta, quem não canta, dança.” [...].

[...] ela (a criança) tá se descobrindo, ela tá descobrindo as

coisas ao redor. Por isso eu acho que ela é tão inquieta, por

isso que ela é tão investigativa, e a gente tem que aguçar isso.

E não podar.

Então, não quero só que as minhas filhas se deem bem, eu

quero que meus alunos também se deem bem na vida, eu

quero que eles cresçam, que eles casem futuramente, que eles

tenham profissões.

Eu acho que é isso, eu acho que você olhar o outro e tentar

entender, e deixar que a criança também se desenvolva.

Identificação e valorização da

diversidade

Porque essa escola ela não fica num bairro assim... É um

bairro de periferia, algumas crianças moram em abrigo, outras

crianças tem pai e mãe, então acho que é por isso essa

diferença na sala de aula.

Eu penso mais na diversidade e penso mais deles se

desenvolverem.

A gente tem uma diversidade de crianças, de todo tipo,

principalmente na rede pública. Então, a gente precisa de

formação, a gente precisa de capacitação, a gente precisa ler,

a gente precisa se integrar.

Então a professora falava e eu achava que aquilo dava certo,

mas a gente só sabe o que vai dar certo e o que vai dar errado

quando você tá com a sua turma.

Você pode planejar um monte de coisas, mas se você não

conhece a turma, se você não conhece o aluno, aquilo lá cai

por terra.

A atribuição de rótulos às

crianças pelos professores:

uma prática de inferiorização

Hoje eu vejo muitos professores fazendo isso, rotulam o aluno

já no segundo ou no terceiro ano e quando vai chegar no sexto

todo mundo já conhece só pela fama. [...] cria um rótulo e a

gente tem que tomar muito cuidado com os rótulos.

[...] as coisas boas muitas vezes não ficam tão marcadas

quanto as ruins. Então se você fala uma palavra praquela

criança, aquilo fica nela. E aí ela começa a incorporar aquilo,

que ela já é aquilo mesmo, que todo mundo já fala que é. E

mesmo ela querendo mudar, se ela não tiver um estímulo

muito grande, se ela não tiver alguém que faça alguma coisa

pela autoestima dela, ela incorpora aquilo e dali pra frente...

A concepção de infância e de

ensino aprendizagem

[...] cada criança tem uma maneira de aprender, cada criança

tem um jeito de aprender, um tempo de aprender. E o que

funciona pra um não funciona pra todos.

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Então a professora falava e eu achava que aquilo dava certo,

mas a gente só sabe o que vai dar certo e o que vai dar errado

quando você tá com a sua turma.

Porque aquela criança que vai, aquela criança que é esperta,

qualquer um pode dar aula pra ela, mas aquela criança que tem

uma dificuldade, que fica ali, que embate ali e não vai é essa

criança que a gente precisa desenvolver.

Então eu acho que você tem que ter respeito pelo aluno que tá

na sala de aula, levar em consideração o que ele tá trazendo.

Então você tem que valorizar a história de vida (da criança),

você tem que respeitar a história de vida. [...] Eu acho que hoje

a criança tá ali na sala de aula e a gente tem que ver ele como

ser humano, tem que respeitar se a gente quiser o respeito.

Hoje as crianças são vivas.

As crianças hoje são mais vivas, e não adianta a gente querer

aquele perfil do passado pro presente. E nem adianta ficar

idealizando aquela criança, aquele aluno quietinho, que ficava

sentado quatro horas. Isso não existe mais, isso é morto,

ponto. A gente tem que viver com a realidade de hoje.

As crianças são vivas, elas são espertas, elas querem contar,

elas querem participar, elas trazem notícias, elas trazem

novidade.

Porque o mundo também mudou, as pessoas mudaram. E se a

gente entender isso, a aula da gente fica melhor.

Ser criança eu acho que é um ciclo da vida maravilhoso. É

aquele nascer, aquele despertar, aquele conhecer, conhecer o

mundo. Então eu acho que a criança tem essa vivacidade

dentro dela, de querer se expandir, de acreditar, porque ela

confia.

É uma parte da vida muito bonita, que ela ainda tá sonhando

com o futuro dela, ela tá sonhando com as coisas que vão

acontecer na vida dela. É um período de descoberta, ela tá se

descobrindo, ela tá descobrindo as coisas ao redor. Por isso eu

acho que ela é tão inquieta, por isso que ela é tão investigativa,

e a gente tem que aguçar isso. E não podar.

Eu acho que ela tem esse direito de descobrir. Isso não

significa bagunçar o ambiente, isso não significa destruir. Mas

ela tem que ter essa possibilidade de conhecer, de pegar, de

apalpar, de ver, de ver se vai dar certo. Porque eu acho que ela

vai se tornar um cidadão mais seguro.

Eu amo pegar primeiro ano [...] Eu gosto muito dessa parte,

deles entrarem, não saber nada, e depois eles descobrirem as

letras, eles descobrem os números. Aí eles começam a ler tudo

o que vem pela frente, eu acho muito legal.

Porque se for só professor a gente dava vídeo conferencia, eles

ficavam na casa deles e a gente enchia eles de informação.

Mas não é isso né, eles também tem que trazer. Eles trazem, a

gente dá, e é essa troca que constrói aprendizado.

O papel da educação e do

professor

O papel da educação é exatamente o que eu faço. [...] É

ensinar, é falar, é parar, é dar atenção, é ouvir. Você não é o

detentor de saber, você não sabe tudo, eles são os

protagonistas naquele horário, eles tem que te falar, eles tem

que colocar a vontade deles e você vai pontuando “isso você

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pode, isso você não pode por causa disso, isso traz essas

consequências.”.

Mas ela (a criança) tem que ter essa possibilidade de conhecer,

de pegar, de apalpar, de ver, de ver se vai dar certo.

Por isso eu acho que ela (a criança) é tão inquieta, por isso que

ela é tão investigativa, e a gente tem que aguçar isso. E não

podar.

[...] acho que a gente como educador a gente tem esse dever

de mostrar as oportunidades pra eles, mesmo que eles não

forem, que os pais não levem, mas a gente tem essa

oportunidade de mostrar que tem outros caminhos e mostrar

[...]

[...] eu tenho que apresentar algumas possibilidades pra ele

[...]

[...] é onde eles podem se expressar também. Porque a aula é

ali no professor, professor... é aluno, não é só professor.

Porque se for só professor a gente dava vídeo conferencia, eles

ficavam na casa deles e a gente enchia eles de informação.

Mas não é isso né, eles também tem que trazer. Eles trazem, a

gente dá, e é essa troca que constrói aprendizado.

Eu acho que hoje em dia ninguém tá se importando mais um

com o outro. É assim “quer fazer faz, faz do jeito que quiser,

não quer fazer não faz. Quer tirar zero? Eu não reprovo. Quer

fazer, faz.”. Então, eu acho que isso que a gente não pode

deixar acontecer.

NÚCLEO 3: A postura profissional de Carla e a busca pela práxis no processo de ensino

aprendizagem

INDICADORES PRÉ-INDICADORES

Ir além da aparência: a práxis

necessária

Se essa criança não tá conseguindo aprender, por que ela não

tá conseguindo aprender, por que ela erra tanto, por que ela

não consegue escrever. E então eu vou procurando outras

maneiras de prender atenção.

[...]eu vejo tantas professoras reclamando dos alunos, [...] e

reclamando tanto, mas eu falo “será que aquele professor já se

questionou da posição dele?”.

[...] se os alunos estão com tanta indisciplina, se os alunos

estão tão terríveis assim, vamos questionar um pouco o

professor também?

E aí eu começo a investigar, eu vou um pouco contra o natural

que é de ficar “ah senta, para”. E eu começo a refletir por que

ele tá fazendo aquilo? Será que não tá muito ansioso? Por que

ele tá fazendo? Será que ele também não tem vontade de fazer,

ele não consegue por isso que ele rasga?

A gente tem que trabalhar muito no concreto e aí eu comecei

a procurar isso. O que é trabalhar no concreto? Como prender

atenção? Será que a criança não aprende ou professor que não

ensina? Como ensinar uma criança que tem maior

dificuldade?

Então não deu certo, não deu certo por que? Por que não era

uma imagem legal? Não, porque eu já trouxe imagem no

computador, já passei colorido, não dá certo, então vamos pra

outra! Então eu acho que é isso que falta, falta esse olhar. No

que deu certo a gente continua.

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E aí eu começo a investigar, eu vou um pouco contra o natural

que é de ficar “ah senta, para”. E eu começo a refletir porque

ele tá fazendo aquilo? Será que não tá muito ansioso? Por que

ele tá fazendo? Será que ele também não tem vontade de fazer,

ele não consegue por isso que ele rasga?

[...] quando eu estava na escola eu tive uma professora que até

hoje eu não esqueço dela. Ela me chacoalhou tanto na carteira,

porque eu não sabia uma bendita de uma tabuada, que eu fiz

xixi na calça. E aquilo me travou de uma tal maneira que eu

falei que eu nunca vou ser igual a ela. Nunca vou fazer isso

que ela fez comigo.

[...] quando eu quero pesquisa, quando eu quero outras coisas

que estão no currículo, que eu tenho que dá e eles (alunos) não

correspondem, procuro levar eles na sala de leitura pra eles

pesquisarem aqui, pra eles fazerem aqui.

E é claro que muitas vezes eu imponho a minha vontade.

“Não, a gente vai ter que fazer e ponto. Eu quero e ponto.”.

Mas quando você gosta (da profissão) você acaba agregando

isso de uma maneira tranquila na sua vida, no seu dia a dia.

[...] eles relatam pra mim, o que aconteceu, o que estava na

aula de educação física, que aconteceu isso, e eles conseguem

uma produção muito melhor do que eu trazer uma imagem e

falar “conte sobre essa história”. Você põe a imagem lá e

“vamos fazer uma história sobre essa foto”. Ou “como foi suas

férias? Como foi sua vida?”, isso não deu certo. Eu já tentei

isso esse ano e não deu certo.

Então não deu certo, não deu certo por que? Por que não era

uma imagem legal? Não, porque eu já trouxe imagem no

computador, já passei colorido, não dá certo, então vamos pra

outra! Então eu acho que é isso que falta, falta esse olhar. No

que deu certo a gente continua.

O dia a dia em sala de aula

Muitas vezes a gente não usa caderno.

[...] eu fugi muito dessas folhinhas, mimeografadas ou

xerocadas, eu trabalho muito material concreto [...]

[...] se a gente vai fazer um texto, uma produção, eles vão

dando as ideias, eu vou colocando na lousa quais são as ideias,

depois a gente discute [...]

No ano passado nós fizemos um projeto que eu tirei da classe

mesmo, do que a gente ia conversar, o que a gente ia estudar.

Esse ano fui eu que propus o projeto que se chama Amigo de

Coração. Esse projeto a gente trabalha o compartilhar, o

conviver e o acolher.

Uma vez eles escolhem o filme, outra vez eu trago o filme. E

a gente vai fazendo várias atividades sobre isso.

Nós fizemos um tear, um tear de papel. [...] Acaba a lição eles

pegavam o tear e faziam. [...] Eles acabaram o tear e nas férias

eu juntei todos os pedacinhos e fiz uma colcha desse tear, fiz

uma manta, juntei a lã e fiz uma manta. E quando nós

chegamos das férias, eu mostrei pra eles o tear, e aí eles “ah

mas pra quem vai ficar? Vai ficar pra mim? Vai ficar pra

quem?”, aí falei “não, então esse tear agora a gente vai fazer

o seguinte: que tal a gente ajudar alguém que esteja

precisando?”.

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[...] passei alguns vídeos que falam sobre as crianças que não

tem condições financeiras, passei alguns vídeos sobre a

realidade do Brasil.

Nós decidimos então, começamos a conversar o que a gente

ia fazer [...]

A gente tá trabalhando cartas agora, tanto de e-mail quanto de

correspondência normal. E eu achei que a gente ia dar essa

manta pra algum morador de rua, mas eles não concordaram

muito não. [...] Então a gente decidiu que a gente vai rifar essa

manta e nós vamos responder uma carta do correios. [...]

Então, a gente em assembleia... eu vou mandar a rifa pra casa,

cada número é um real, cada criança tem dez reais, vai dar

trezentos reais pra gente ajudar uma criança. Eu achei legal

porque também a gente vai poder escrever a carta. A gente vai

responder a carta dessa criança e vai mandar o brinquedo.

Pesquisadora: Vocês fazem todos juntos?

Sujeito: Todos juntos.

Porque eu acho que hoje, num mundo que tem tanta

tecnologia, que as crianças veem tanta coisa, que a televisão é

tão colorida, não adianta ficar lá com o quadro negro em frente

de uma lousa, com giz branco e querendo que as crianças

prendam atenção cinco horas, é impossível. Então se você não

tiver outra metodologia você não consegue atingir a criança

hoje.

E eu já dei aula em outra escola também que eles adoravam

flauta, aí eu falei então esse ano eu vou trabalhar com flauta

com eles.

Pesquisadora: Quais atividade tu realizas no cotidiano que são

mais frequentes, que tu achas que podem desenvolver a

criatividade dos teus alunos?

Sujeito: Esse ano a gente tá trabalhando bastante produção de

texto, [...] Eu acho que no que eles tão mais usando a

criatividade é isso.

[...] nas outras matérias eu sempre busco mais o

interdisciplinar mesmo.

No que deu certo a gente continua, [...]

Semana que vem a gente vai numa contação de história na

biblioteca. Não é só sair da escola e ir na contação de história.

Então a gente vai, a gente observa a rua, a gente vai passar no

Mc Donald’s, a gente vai tomar sorvete, todos vão levar o

dinheiro, vamos ver o troco, depois a gente vai conseguir

trabalhar isso em matemática, depois a gente vai conseguir

trabalhar em português... Olha como fica rico esse teu

currículo.

[...] tem dia que a gente faz grupos de quatro, tem dia que a

gente senta de um.

Como eu dou aula no primeiro ano as crianças nunca fazem a

mesma coisa ao mesmo tempo. Então, são os grupos. [...]

Então, dentro da minha sala eu tenho quatro aulas, ou cinco

aulas as vezes. E cada grupo de quatro crianças fazendo

alguma coisa. E depois, quando dá um determinado momento,

a gente troca[...] Quando eles acabam de fazer a atividade a

gente faz o rodízio, até que quando chega o final do dia, todos

os grupos passaram por todas as ilhas.

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Eu prefiro sempre trabalhar com concreto pra depois passar

pro caderno, porque eu acho que eles acabam assimilando

melhor esse conhecimento.

[...] se a gente tá trabalhando geografia, se a gente tá

trabalhando bairro, então a gente vai conversar um pouco

sobre a história do bairro, peço pra eles trazerem alguma

história da vida deles, se tá trabalhando um pouco mais sobre

as profissões, eu peço pra eles trazerem as profissões dos pais,

a gente conversa, depois a gente descreve as profissões, pra

ver se tem algum erro pra trabalhar alguma coisa de

gramática, e a gente leva mais ou menos assim nas nossas

aulas.

Relação entre o Ensino e o

Currículo

[...] eu também não posso fugir do currículo, eu também não

posso fugir do conteúdo, tem coisas que são importantes, que

eles tem que aprender.

Eu sempre privilegio o currículo, porque eu sei que eles

precisam desse currículo. Até porque a gente tem muita

avaliação externa, então as avaliações externas chegam e se

você não deu a criança não vai saber fazer. Mas é claro que

não é uma coisa engessada. Se eu tiver que parar pra

conversar, se eu tiver que parar uma ou duas aulas, três aulas,

não vai fazer tanta diferença.

Até porque eles vão precisar desse conteúdo no próximo ano.

Eu vou privilegiar o currículo, eu vou dar o que tá no

currículo, mas de uma forma talvez um pouco mais lúdica, de

uma forma que eles entendam muito, porque eu prefiro

trabalhar no concreto.

Porque se eu for só chegar na sala e der uma aula normal,

possivelmente ela vai aprender. [...] ela vai saber o que é

adjetivo, ela vai saber essa matéria. Mas eu quero além disso,

eu quero que ela tenha esses valores, eu quero que ela saiba

trabalhar em grupo, eu quero que ela saiba valores, eu quero

que ela aprenda isso também.

Não dá pra você também não dar história, vou falar só sobre

história de vida, não. Não é assim.

A importância da flexibilidade

no/do planejamento

[...] eu tento colocar uma responsabilidade neles, mas ao

mesmo tempo que a aula não fique tão pesada, de giz o tempo

todo, de lousa o tempo todo.

Então a gente para, a gente conversa, às vezes eu deixo um

pouco aquele conteúdo de lado pra pegar alguma coisa que é

mais importante no momento.

A gente tem que atingir acho que todos. Eu já falei pra eles,

quem não sabe tocar, porque tem aluno que não vai, não vai.

Só soube as notas, mas não consegue nem o ritmo pra tocar a

música. Eu falei “então quem não toca, canta, quem não canta,

dança.” [...].

Então se a gente não utilizar de outras técnicas você vai ficar

cinco horas, as crianças vão ficar enfadadas, acho que é por

isso que a gente tem tanta indisciplina na escola, e você não

consegue reverter isso, porque as crianças acham as aulas

chatas, as crianças não querem vir.

Vamos parar, vamos conversar, vamos falar com a sala. Eu

acho que tem momento que você tem que parar mesmo, que

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você tem que ouvir o aluno, eles são crianças ainda, eles estão

em formação.

Então a professora falava e eu achava que aquilo dava certo,

mas a gente só sabe o que vai dar certo e o que vai dar errado

quando você tá com a sua turma.

Você pode planejar um monte de coisas, mas se você não

conhece a turma, se você não conhece o aluno, aquilo lá cai

por terra. Então na faculdade eu não tinha essa vivencia.

Então não adianta você ficar insistindo naquilo que o menino

não quer, naquilo que não dá certo. Se eu já vi que trazer uma

produção de texto na folhinha não dá certo, por que eu vou

ficar insistindo naquilo?

Muitas vezes eu trago uma aula planejada e eu não consigo

dar, porque acontece alguma coisa na própria aula que faz

com que a gente fale sobre valores, sobre ética...

[...] semana passada eu tinha planejado uma aula totalmente

diferente. Era uma aula de português, e a gente estava fazendo

uma folha de um diário. [...] E um menino que foi escrever a

folha de diário dele, ele foi falar da mãe dele que tinha

falecido uns dois anos atrás, [...] E ele começou a chorar.

Então, naquele momento não adiantava eu querer prosseguir

com a aula. Então a gente teve que parar, a gente falou sobre

morte, fugiu totalmente do que eu tinha planejado. Então eu

falei sobre morte, que morte é um ciclo da vida, eu fui pra uma

aula de ciências. [...] A gente tem que ter essa movimentação.

[...] quando eu pego uma turma, e eu planejo e acho que vai

dar e não vai dando, eu vou mudando esse planejamento, eu

vou adequando esse planejamento. E quando chega no final

do ano, também deu certo.

A Relação com os pais das

crianças

Eu tento falar isso com os pais pra eles conversarem em casa,

deles me apoiarem nas minhas decisões. Quando os pais

apoiam a coisa flui um pouco melhor.

Agora quando os pais falam que não, que eles são pequenos,

que é melhor assim mesmo, então eu vou tentando fazer um

trabalho paralelo, um trabalho alternativo e levar até o final

do ano.

[...] eu mandei bilhete pros pais, agradecendo que eles

colaboraram, porque eu acho que também tem que ter esse

retorno. Porque quando não dá certo, a gente já chama os pais

na reunião.

Mas eu falei “mas a gente ainda vai ter que decidir com os

pais, porque já não é mais uma coisa só de vocês, porque

envolve vender a rifa”. Aí chegou na reunião do segundo

bimestre com os pais que foi agora nas férias, e os pais

concordaram, falaram que acharam a iniciativa legal, e os pais

concordaram.

[...] eu tento conversar nas reuniões de pais, chamar os pais

pro meu lado. [...] falar da importância do trabalho em grupo,

que hoje a sociedade precisa disso.

[...] acho que tem que ser assim, tem que conversar com os

pais. A gente tem que chamar eles pro nosso lado.

Relação com equipe de

professores e equipe gestora

Esse apoio (do coletivo de professores na escola) é super

importante. [...] um fala e mesmo que o outro não concorde

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100%, mas se foi a opinião do coletivo todo mundo faz. Isso

que é legal.

Pesquisadora: E tu achas que isso favorece a aprendizagem e

o desenvolvimento dos teus alunos?

Sujeito: Com certeza! As crianças percebem quando tem essa

coisa dos professores de um falar mal do outro [...] E quando

elas veem também o contrário, elas também percebem [...]

eles também percebem que a gente fala a mesma língua.

[...] não adianta você ter ideias e a sua coordenadora, a sua

diretora não te apoiar! E aqui não acontece isso.

Uma (professora) vai agregando, vai trazendo alguma coisa

que possa te ajudar. Isso que é importante.

Mas quando eu comentei sobre o projeto com a diretora ela

achou super legal, porque eu tive que pedir pra ela, falando do

projeto. [...] A escola também abraçou a ideia, comprou as

flautas, porque essa flauta de 1,99 ninguém merece, não sai

som. Eu falei com a diretora, [...] E a escola comprou as

flautas.

A relação com o aluno E quando eles tão quieto eu ainda chego fazendo bagunça, eu

começo a mexer. Vou, mexo com um, mexo com outro,

quando eu vejo eles estão que nem pipoquinha na classe.

É uma turma que se eu falar assim “vamos fazer tal coisa?”

eles aceitam, eles pesquisam, falam “prô eu também achei

isso, o que você acha?”, aí eu “ah legal!”. Então eles agregam

também.

Que nem o dia que a gente foi na biblioteca ouvir contação de

história. Eles falaram “prô, a gente podia passar no Mc

Donald’s pra tomar um sorvete.”. Verdade né? A gente podia

passar no Mc Donald’s pra tomar um sorvete.

Pesquisadora: E quando tu pegas uma turma de perfil

diferente, que não é tão participativa?

Sujeito: [...] A gente tenta ir levando da melhor forma

possível. A gente faz as propostas, às vezes eles não aceitam.E

eu percebo que eles não aceitam porque não adianta falar pra

pesquisar alguma coisa se eles já começarem “ah não, não

quero.”. Não adianta eu querer forçar, porque o trabalho não

flui, eles não fazem. Então é melhor você tentar levar pra um

outro lado.

Uma vez eles escolhem o filme, outra vez eu trago o filme.

Nós decidimos então, começamos a conversar o que a gente

ia fazer [...]

Pesquisadora: Vocês fazem todos juntos?

Sujeito: Todos juntos.

[...] e vamos responder a carta juntos. Estou até pensando em

colocar uma foto da turma, pra mandar, porque foi a turma

toda que ajudou.

NÚCLEO 4: As Significações sobre Atividade Criadora: senso comum, dicotomias e

contradições.

INDICADORES PRÉ-INDICADORES

Concepções sobre atividade

criadora

[...] eu acho que a criatividade é uma coisa natural e que não

pode ser forçada. Ele é criativo.

Pesquisadora: Então ser criativo pra ti é natural da criança?

Tem que deixar ela solta...

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Sujeito: Então, deixar ela solta, mas não sem ter nenhum

propósito. Ah, vamos deixar a criança solta e aí...

Não é deixar ele solto, da maneira que ele quer. É de uma

forma que ele também tenha um certo conhecimento [...]

Então eu deixo as crianças serem criativas, mas é claro que a

gente vai cercando essa criatividade e levando pra algum lado.

Pesquisadora: E o que tu achas que tá relacionado a questão

da criatividade do aluno? O que faz ele ser menos ou mais

criativo?

(Silêncio de 7 segundos)

Sujeito: Ah eu não sei, o aluno mais criativo. Porque eu acho

que tem várias áreas do desenvolvimento, mas tem aquela

criança que ela não é criativa num texto, mas ela é super

criativa numa partida de futebol, ela consegue pensar rápido.

Ela não é criativa por exemplo na educação física, mas ela

escreve um texto que você fala “nossa, olha que bacana”.

[...] eu acho que ela vai se descobrindo também, ela também

vai te dando uns indícios que não é por aqui, é por ali, ela

gosta mais disso, ela gosta menos daquilo. Essas crianças

mesmo que eu ensino flauta que não vão de jeito nenhum com

certeza elas devem ter outras habilidades que ainda não foram

descobertas.

[...] eu vejo cada criança do primeiro ano que é tão criativa,

que consegue te falar e te contar tantas coisas, e vem e te conta

uma história e você fica “ah é? Verdade? Foi mesmo?” e ai

você percebe que foi tudo criativo, que foi ele fez, que contou.

[...] tem aquelas crianças que são mais apáticas, que só ouvem

e reproduzem, não exercem esse poder ainda. Ou porque são

mais recatadas, eu não sei.

Eu acho que tem mais a ver com a imaginação mesmo.

[...] você ainda tem muito o que parar e pensar e descobrir

como ele consegue ser tão criativo numa área e não consegue

registrar no papel. Criatividade não tem a ver com papel.

[...] eu acho que ao mesmo tempo que ele veem a cena, depois

eles já colocam um pouco do imaginário, um pouco de

criatividade e a história sai [...].

Porque eu vejo, por exemplo, professores que não são

criativos, eu vejo pessoas que não são criativas, em qualquer

trabalho, qualquer papel que ele exerça na sociedade.

Eu acho que uma pessoa sem criatividade, geralmente, é uma

pessoa muito apática, sem brilho, que faz coisas por fazer. Ela

não arrisca, ela não se arrisca, ela vai naquele negócio linear,

“eu aprendi assim, eu sou assim, e vou ser sempre assim,

assim que eu sou”.

Eu acho que criatividade não tem a ver com papel físico,

quanto o papel que você exerce na sociedade. Porque eu vejo,

por exemplo, professores que não são criativos, eu vejo

pessoas que não são criativas, em qualquer trabalho, qualquer

papel que ele exerça na sociedade.

Eu acho que quando uma pessoa é criativa ela consegue sair

um pouco dessa rotina, ela consegue mudar um pouco, e ela

consegue fazer com que a vida se torne com um brilho a mais,

ela gosta, então ela vai atrás, ela tenta fazer coisas novas,

inovar.

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Eu acho que depende dela (da pessoa criativa), mas também

depende da circunstancia que ela tá. Porque não adianta eu

querer fazer uma coisa e a minha escola me podar o tempo

todo. Precisa do entorno também, que te favoreça.

Pesquisadora: Você acha que (imaginação) tem a ver com a

criatividade?

Sujeito: Eu acho que tem um pouco a ver sim. Eu acho que a

criança quando ela não tem criatividade, ela não consegue sair

desse mundo real, desse mundo palpável. Ela só consegue

enxergar isso.

E eu acho que toda a criança é muito criativa, toda criança tem

muita imaginação, eles estão começando a vida, eles tem

muito sonhos, eles tem muita imaginação. Eles acreditam

muito, eles acreditam que eles são capazes, e a gente tem que

dar asa pra isso, a gente não pode cortar isso, a gente não pode

cortar isso deles. A gente tem que deixar isso fluir.

Eu tenho que conviver com esse aluno, eu tenho que

apresentar algumas possibilidades pra ele, eu percebo o que

ele está me respondendo, pra saber se é por esse caminho, se

ele é ou se ele não é (criativo).

O fazer pedagógico: criativo

ou não?

Eu gosto muito de internet, eu pesquiso muito o que as outras

professoras fazem. Eu leio muito trabalho científico das

professoras, eu acho muito interessante. Então eu tô sempre

olhando o que aquela professora tá pesquisando, e dali,

quando eu leio, vão me surgindo ideias.

Às vezes eu vejo até trabalho pronto. Às vezes, não é

totalmente igual, mas eu pego 30% daquela ideia, levo pra

minha sala de aula, transformo aquilo e dá certo. Então, eu

leio muito de outras professoras, eu vejo muita coisa na

internet. Aí eu pego e transformo. Nunca um trabalho é igual

ao outro.

O produto final é totalmente outro. Com uma turma foi uma

coisa, com outra turma é outra coisa, mas o meio que eu usei

pra chegar na conclusão do trabalho, às vezes, já foi alguma

atividade que eu já dei em algum momento.

Eu não tive nenhuma ideia mirabolante, não foi nada que

surgiu da minha cabeça. É sempre através de outros, é sempre

lendo, é sempre renovando uma ideia, sempre pegando

alguma coisa de alguém.

Vejo uma atividade que uma professora deu, aí eu transformo

aquela atividade pra adaptar na minha classe, eu acabei

utilizando ela como exemplo.

O ser criativa: a opinião da

professora

Eu não sei se eu sou criativa, mas eu tento fazer o máximo pra

que eles aprendam.

Não sei se eu sou criativa, mas eu tento dar uma aula mais

lúdica, eu tento ser um pouco mais engraçada na sala de aula,

eu converso muito também sobre o dia a dia da gente, eu tento

tirar muito deles, o que fazer em uma situação...

[...] eu não me acho criativa, porque eu não crio nada. Eu

transformo muitas coisas, eu transformo as ideias que muitas

vezes não são minhas.

Então, não é assim, coisa que você fez, que foi ideia sua. Não

foi ideia minha, eu não criei isso. Eu já vi em algum lugar.

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Eu penso “se deu certo lá, será que não vai dar certo aqui?”.

Claro, não foi igual lá porque eles tinham um outro espaço,

mas eu adaptei àquele espaço. Aquela ideia que eu vi, eu

adaptei pra minha realidade.

Eu acho que eu faço adaptações, eu acho que eu faço

modificações, mas eu acho que eu não sou criativa porque eu

não crio. A ideia não é minha, a ideia original não é minha.

A ideia original não foi minha. Até porque eu sei de onde ela

partiu. [...] Ou eu li isso num livro, ou eu pesquisei, eu li isso

num trabalho, ou eu fui a uma escola visitar, eu vi eles

trabalhando dessa maneira e tive vontade também de fazer. Eu

sei de onde partiu, por isso que eu falo que eu não crio nada.

Oferecimento de

oportunidades: o dever dos

professores

[...] até essa parte de música mesmo, muitos se descobriram.

Eu tenho umas duas ou três crianças que já falaram pra mim

“ah pro, queria muito fazer música”. Aí eu falo pra ir no clube

escola que é aqui perto, a gente tem, eu estudei no clube

escola. “Vai no clube escola, lá tem piano, tem violão, tem

flauta.”.

[...] acho que a gente como educador a gente tem esse dever

de mostrar as oportunidades pra eles, mesmo que eles não

forem, que os pais não levem, mas a gente tem essa

oportunidade de mostrar que tem outros caminhos e mostrar

[...] mostrar mesmo, acho que essa é a função da escola

também.

Eu tenho que conviver com esse aluno, eu tenho que

apresentar algumas possibilidades pra ele [...].

Ela tá se descobrindo, ela tá sendo curiosa, ao mesmo tempo

ela tá despertando interesse, ela tá se reconhecendo, algumas

coisas ela vai achar legal, outras coisas ela vai achar que não

é muito por ali, que ela não gosta daquilo...

A importância da valorização

da experiência da criança

Pesquisadora: E por que tu achas que essas atividades que tu

promoves com teus alunos, por que elas poderão desenvolver

a criatividade?

Sujeito: Porque eu acho que é o que dá mais certo, é o que tá

mais presente na realidade deles, eu acho que é por ai o

caminho.

[...] eu acho que ao mesmo tempo que ele veem a cena, depois

eles já colocam um pouco do imaginário, um pouco de

criatividade e a história sai, muito mais do que se você ficar

mostrando alguma imagem pra eles que não tem a ver com o

cotidiano deles, que não tem a ver com a realidade deles.

Pesquisadora: [...] essa riqueza de experiências pra criança é

importante?

Sujeito: Muito importante. Porque ela tá aprendendo, ela tá

aprendendo ser curiosa, ela tá aprendendo a realidade da vida,

ela tá vendo, ela tá conhecendo. Ela tá se descobrindo e é na

infância que ela vai ver tudo isso, ela vai se descobrir.

[...] peço pra eles trazerem alguma história da vida deles, se tá

trabalhando um pouco mais sobre as profissões, eu peço pra

eles trazerem as profissões dos pais, a gente conversa, [...]

[...] todo mundo queria ensinar o nome dele. J. [...] Ensinava

e o menino não aprendia escrever J. Teve um dia que eu

cheguei e perguntei pra ele o que ele queria aprender escrever.

Aí ele falou esmalte. Aí eu falei “esmalte? Mas por que?” aí

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ele “minha irmã todo dia fala, pega o esmalte!”. Eu escrevi

pra ele bem grande, esmalte, e colei uma fotografia do

esmalte. E falei “vamos tentar”?

A gente vê jovens, principalmente na escola, se drogando,

porque eles não tiveram essa noção, eles não tiveram esse

período de descoberta, tudo foi podado, é tudo não. Mas

ninguém fala o porquê dos nãos. É não. Não, por quê? “Por

que eu não posso nem pegar?”, “Você pode pegar, você só não

pode fumar. Você quer conhecer? Toma, é isso.”.

Escola e desenvolvimento da

atividade criadora

Pesquisadora: [...] tu achas que a escola colabora ou pode

colaborar no desenvolvimento da criatividade do aluno?

Sujeito: Com certeza. Eu acho que aqui que eles são mais

soltos, eles tão longe um pouco da família, então aqui eles se

soltam, aqui a gente conhece a criança mesmo.

Aqui (na escola) eles se sentem mais livres, aqui eles são eles

também.

Pesquisadora: Como tu achas que a escola pode desenvolver

a criatividade do aluno?

Sujeito: Eu acho que a escola pode... É o olhar. É ter esse

olhar, porque deixando a criança ser o que ela é e ao mesmo

tempo encaminhando, oferecendo as oportunidades.

Pesquisadora: E como tu enxergas o desenvolvimento da

criatividade na escola pública e na escola particular?

Sujeito: Na escola particular eu tive mais dificuldade, porque

na escola particular, pelo menos na que eu trabalhei, era

apostilado e então eu era obrigada a dar aquela apostila

objetiva e correr, então não tinha muito tempo pros meus

alunos falarem, não. [...] Na pública a gente já tem essa maior

possibilidade.

Pesquisadora: Tu achas que o ambiente escolar favorece ou

ajuda a desenvolver a criatividade dos alunos?

Sujeito: A escola em si não. A escola prédio, não. A estrutura

da escola, não. Porque isso aqui não tem vida. Quem dá vida

pra escola são os professores, são os alunos, o corpo docente,

a diretora, a gestão que apoia.

[...] a estrutura escola, a construção, a parte física, não. Mas

as pessoas, sim.

A escola ideal para o

desenvolvimento da atividade

criadora

Pesquisadora: Tu imaginas uma escola que possa ajudar o

desenvolvimento da criatividade dos alunos?

Sujeito: Sim. Eu acho que muito menos parede, eu acho que

as crianças teriam que ser muito mais soltas. Teria que ter

parque.

[...]se fossem maiores as salas, ou até mesmo não ter sala, que

eles pudessem chegar, já procurar a sua turma, sentar e lá se

organizar, eu acho que seria muito melhor.

Por exemplo, dessa de escola, de ser um espaço bem aberto,

imagino assim. Então eu sonho um pouco com essa escola,

mas eu sei que isso, pelo menos no Brasil, não vai ter futuro

essa imaginação.

Valorização da produção

infantil

O bom da escola particular é o material que você tem, então

se você pede eles te dão. Ao mesmo tempo, numa feira

cultural tudo que eles fazem a gente tem que refazer, porque

tem que tá bonito, pro pai que quer ver.

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Na escola particular a gente já tem essa política, o pai não vem

aqui pra ficar vendo coisa feia, então a gente tem que dar uma

encrementadinha. Deixa ali, mas dá uma modificada pra ficar

bonito. Eu acho que isso também perde um pouco porque as

crianças não se reconhecem.

Aqui não, na pública não. Saiu, é daquele jeito? Então é

daquele jeito que vai. Quando a gente faz painel eles fazem e

a gente pendura, a gente coloca pro pai ver aquela produção

do aluno.

Opinião sobre a questão da

imaginação

Imaginação? Sei lá! Geralmente as minhas imaginações são

sonhos, as minhas imaginações se tornam sonhos. Às vezes

tão abstratos que não chegam a acontecer.

[...] eu acho que imaginação geralmente são sonhos...

Pesquisadora: As suas crianças são imaginativas?

Sujeito: Sim, quando você pede pra elas escreverem alguma

coisa eu dou muita risada, porque elas viajam.

Mas quando eles contam uma coisa que é pra criar, “imagine

você em tal situação.”, você dá o espaço, aí eles imaginam

tanto que às vezes eu falo “nossa, não é possível. Onde você

foi achar isso?”. É até engraçado.

Eu acho que (criatividade) tem mais a ver com a imaginação

mesmo.