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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Eduardo Augusto Arteiro de Faria A licença urbanística como instrumento de política urbana Mestrado em Direito São Paulo 2019

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  • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    PUC-SP

    Eduardo Augusto Arteiro de Faria

    A licença urbanística como instrumento de política urbana

    Mestrado em Direito

    São Paulo

    2019

  • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    PUC-SP

    Eduardo Augusto Arteiro de Faria

    A licença urbanística como instrumento de política urbana

    Mestrado em Direito

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito, área de concentração Efetividade do Direito, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Daniela Campos Libório.

    São Paulo

    2019

  • Banca Examinadora

    _________________________

    _________________________

    _________________________

  • Agradeço aos meus pais.

    Agradeço em especial à minha mãe, pelo apoio sempre presente e exemplo de vida.

    Agradeço à Professora Daniela Libório, pelos ensinamentos e imensa generosidade

    demonstrada desde meu primeiro ano de graduação.

    Estendo também minha gratidão aos Professores Mariana Mencio e Nelson Saule,

    por suas críticas e franca avaliação na fase final deste trabalho.

    Agradeço, enfim, a todos os colegas, da prefeitura, da graduação e do mestrado,

    que compartilharam comigo alguns dos importantes passos dados nesta trajetória.

  • Resumo

    A presente dissertação aborda a licença urbanística sob a ótica da política urbana,

    tendo por objetivo verificar quais aspectos e caracteres se manifestam em seu

    regime jurídico a partir dessa perspectiva. Através de consulta à principal doutrina e

    legislação de referência, o estudo parte da identificação do surgimento do controle

    urbanístico nas cidades, traçando um breve panorama quanto às atividades

    urbanísticas de controle no Direito Brasileiro, destacando as competências definidas

    em nível constitucional e as diretrizes trazidas pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal

    nº 10.257/01). Diante da ausência de definição legal, desenvolve-se proposta de

    delimitação conceitual das licenças urbanísticas, evidenciando seu traço distintivo e

    verificando quais os princípios e valores incidentes, seus fundamentos, espécies, e

    as peculiaridades da disciplina. Será destacada a importância da figura como

    principal instrumento de controle das intervenções materiais na cidade, através do

    qual se efetivarão as limitações urbanísticas definidas nos planos locais para a

    transformação e qualificação dos cenários urbanos, sempre em adstrição aos

    objetivos da política urbana traçados em nível constitucional.

    Palavras-chave: Licença urbanística. Política urbana. Controle urbanístico.

  • Abstract

    The present work approaches the “urbanistic permits” (building permit), from the point

    of view of urban politics, aiming at verifying which aspects and characteristics are

    manifested in its legal regime. Researching the main doctrine and legislation, the

    study starts from the identification of the development of urban control in the cities,

    giving a brief overview of “urban control” activities in Brazilian Law, highlighting the

    competences defined at constitutional level and the guidelines brought by the

    Federal Law n. 10.257 / 01. Considering the absence of legal definition, it will be

    developed a proposal for conceptual delimitation of urbanistic permits, showing its

    distinctive trait and verifying the principles and values involved, its legal foundations,

    species, and the peculiarities of the discipline. It will be highlighted the importance of

    the figure as the main instrument of control of material interventions in the city,

    through which urban limitations defined in the local plans are concretized, for the

    transformation and qualification of urban settings, always in line with urban policy

    objectives drawn at constitutional level.

    Key-words: Urbanistic permit. Urban policy. Urban control.

  • Sumário

    Introdução ................................................................................................................ 8

    1 Noções iniciais sobre a evolução do controle urbanístico .............................. 11

    1.1 As cidades antigas e o controle construtivo .................................................... 11

    1.2 As cidades pós-industriais e a evolução do controle construtivo ..................... 13

    1.3 O controle urbanístico ..................................................................................... 18

    1.3.1 O controle do solo urbano e o zoneamento .............................................. 18

    1.3.2 A superação do Estado Liberal e a consolidação do controle urbanístico . 20

    2. Política urbana e atividade urbanística de controle do solo no Brasil ........... 25

    2.1 A política urbana ............................................................................................. 26

    2.1.1 Conceito ................................................................................................... 26

    2.1.2 Objetivos e princípios da política urbana .................................................. 30

    2.1.2.1 O planejamento e a política urbana .................................................... 34

    2.2 A atividade urbanística de controle do parcelamento, uso e ocupação do

    solo ....................................................................................................................... 36

    2.2.1 Competência para a atividade urbanística de controle .............................. 39

    2.3 As diretrizes do Estatuto da Cidade para as licenças urbanísticas .................. 42

    3 Regime jurídico das licenças ............................................................................. 47

    4 A licença urbanística .......................................................................................... 53

    4.1 Conceito ......................................................................................................... 53

    4.1.1 Traço distintivo ......................................................................................... 60

    4.2 O fundamento das licenças urbanísticas - as limitações urbanísticas à

    propriedade .......................................................................................................... 63

    4.2.1 Função social da propriedade ou Poder de Polícia? ................................. 65

    4.3 Caracteres e elementos da licença urbanística ............................................... 72

    4.4 Princípios ........................................................................................................ 78

  • 4.4.1 Planejamento ............................................................................................ 80

    4.4.2 Sustentabilidade urbana ........................................................................... 82

    4.4.3 Acessibilidade ........................................................................................... 84

    4.4.4 Gestão democrática das cidades .............................................................. 85

    4.5 Espécies ......................................................................................................... 87

    4.5.1 Licenças edilícias ...................................................................................... 89

    4.5.2 Licenças de localização, funcionamento e habitação ................................ 92

    4.5.3 Licença de parcelamento, remembramento ou desdobro ......................... 95

    5 A licença urbanística como instrumento de política urbana ........................... 98

    5.1 Os princípios e valores da política urbana como orientação à regulamentação

    e expedição da licença urbanística ...................................................................... 98

    5.2 Possibilidade de se estabelecer contrapartidas ou outros deveres voltados ao

    interesse urbanístico .......................................................................................... 103

    5.3 Amplo controle social e possibilidade de participação dos interessados nos

    processos de licenciamento ............................................................................... 106

    5.4 Atributos e características diferenciadas das licenças urbanísticas em relação

    às licenças administrativas em geral .................................................................. 107

    5.5 Vinculação da licença urbanística a outros instrumentos de política

    urbana ............................................................................................................... 108

    5.6 Controle externo da licença urbanística diante dos valores da política

    urbana ............................................................................................................... 109

    5.7 Comentários finais quanto à importância dos aspectos da licença urbanística

    como instrumento de política urbana ................................................................. 115

    Conclusão ............................................................................................................ 117

  • 8

    Introdução

    Partindo do reconhecimento da relevância da licença urbanística como o

    principal instrumento de controle das intervenções materiais nas cidades, o que se

    pretende ao longo das páginas seguintes é desenvolver uma análise jurídica dessa

    figura que ultrapasse a abordagem restrita ao Direito Administrativo, para analisá-la

    também sob a perspectiva da política urbana e do Direito Urbanístico Brasileiro e

    toda a carga axiológica decorrente.

    O objetivo é qualificar a análise das licenças urbanísticas, reforçando

    suas peculiaridades em relação às licenças administrativas em geral (que vão além

    da simples especificidades de seu objeto), verificando como a vinculação à política

    urbana reflete em seu próprio regime jurídico, incluindo os requisitos para a sua

    emissão, princípios incidentes e caracteres.

    Para isso, em um primeiro momento, será traçado um breve quadro do

    histórico do controle das intervenções urbanas, desde seus primeiros registros

    (ainda sem um controle prévio sistematizado), até a identificação de atos estatais

    próprios ligados à ordenação da cidade. Em seguida, a atenção será voltada ao

    ordenamento nacional, para trazer ao trabalho a uma breve noção da política urbana

    no Brasil, e verificar como o controle edilício é tratado pelas diretrizes gerais do

    Estatuto da Cidade. Após, passando brevemente sobre a visão tradicional do regime

    jurídico geral das licenças no Direito Brasileiro, serão esmiuçados os princípios,

    valores e caracteres próprios da licença urbanística, para ao fim traçar

    considerações sobre sua identificação como instituto próprio, e sua expressão como

    instrumento de política urbana.

    Ao final, espera-se que as contribuições e reflexões traçadas ressaltem a

    importância do controle urbanístico na gestão das cidades, provocando reflexões e

    maturando a análise jurídica da licença urbanística sob a ótica proposta, sempre na

    busca pelo incremento do quadro teórico e jurídico que permita a busca por cidades

    mais justas, acessíveis e sustentáveis.

  • 9

    Breves notas quanto ao corte temático adotado

    Para aclarar devidamente o objeto do trabalho que se inicia, cabe ainda

    tecer algumas observações quanto à abordagem adotada para seu

    desenvolvimento, por opção temática e metodológica.

    Por primeiro, há que se ressaltar que não se ignora que as cidades

    brasileiras apresentam elevado quadro de informalidade, construída a despeito de

    qualquer licenciamento ou através de licenças emitidas por meio de procedimentos

    irregulares. No entanto, sem prejuízo dessa realidade e de toda a problemática

    decorrente, o presente trabalho se restringirá à análise jurídica da licença

    urbanística, instrumento de controle formal das intervenções na urbe. Um estudo

    que pretendesse avançar sobre a produção informal das cidades (construções ou

    loteamentos irregulares ou clandestinos), além de exigir metodologia diversa,

    demandaria também por uma análise que ultrapassasse o estudo jurídico (ainda que

    no presente não nos furtemos a certas observações de caráter metajurídico).

    Ademais, entende-se que restringir o presente estudo ao instrumento de licença já

    será relevante para aprimorar as bases teóricas a respeito do controle da construção

    das cidades, eventualmente servindo de provocação a outras reflexões, na produção

    de uma cidade mais justa e sustentável.

    Por outro lado, também importante ressaltar que a dissertação deixará de

    despender demasiada atenção a questões ligadas ao direito subjetivo dos

    particulares, aí incluído o direito de construir, questões reiteradamente debatidas

    como o direito adquirido, direito de protocolo e responsabilidades dos particulares na

    atividade construtiva, valendo apenas a remissão a trabalhos que já se detiveram

    sobre tais temas, referenciados em nosso rol bibliográfico. A abordagem aqui

    desenvolvida tem por enfoque o caráter da licença urbanística como instrumento de

    controle, de política urbana, portanto, sob o prisma do Poder Público.

    Fechadas as observações quanto ao corte temático deste trabalho, vale

    uma última advertência. Ante a inexistência de uma delimitação doutrinária ou legal

    clara das licenças urbanísticas, utilizar-se-á como ponto de partida a acepção geral

    apresentada em seu emprego comum - ato prévio de controle ligado à ordenação da

    cidade (já empregada acima) -, até uma final abordagem de seu conceito.

  • 10

    Deixa-se a sua conceituação reservada a capítulo próprio deste trabalho,

    eis que sua adequada definição, especialmente sob a ótica proposta, dependerá de

    uma breve análise de sua evolução, o escopo de seu surgimento, e delimitação de

    seu objeto. Aproxima-se, então, mais dos resultados deste trabalho que de suas

    premissas.

  • 11

    1 Noções iniciais sobre a evolução do controle urbanístico

    Após os esclarecimentos introdutórios sobre a abordagem deste trabalho,

    mister trazer algumas noções iniciais à temática, apresentando brevemente o

    histórico do controle construtivo nas cidades, desde sua remota evolução até a

    instituição de atos de controle prévio ligados à ordenação do solo urbano1. O

    objetivo aqui será apresentar o escopo do surgimento - e a própria noção - daquilo

    que se entende por controle urbanístico.

    1.1 As cidades antigas e o controle construtivo

    A atividade construtiva (aqui tomada em seu mais amplo sentido) é

    intrínseca ao desenvolvimento humano e essencial à formação das cidades. A

    alteração de uma dada realidade, do status natural para as conveniências do

    homem, faz parte do desenvolvimento da sociedade. Seja como elemento religioso,

    cultural, para a habitação, ou proteção do ser humano e de seus bens das

    intempéries naturais, a história ensina que a atividade constritiva se manifesta em

    diferentes civilizações, ainda que com significativas variações em sua organização e

    estrutura2.

    Um dos primeiros compilados normativos escritos de que se tem notícia, o

    Código de Hamurabi (COSTA, 2004, p. 729-736), já previa sanções para aquele o

    construtor de casas que, por vício de construção, viessem a desabar, ferindo

    pessoas ou destruindo bens. Trata-se de preocupação com a solidez das

    edificações, registrado ainda de forma primária na antiga Babilônia, Mesopotâmia,

    por volta do ano 1.800 ac., seguindo aquilo que se designou por princípio de tailão3.

    1 Com maior dedicação ao histórico do controle edilício nas cidades europeias, em especial diante da

    influência do direito europeu-ocidental no sistema jurídico brasileiro, desde o próprio regime colonial. 2 Historicamente se entende que o surgimento das primeiras cidades se deu com o abandono do

    nomadismo e o sedentarismo do homem, mas sem precisão exata de tempo e local. Há registros de cidades já por volta de 6.000 a.c., com a realização de obras comunitárias, utilização de galerias de esgotos, sistema de água e drenagem e tubulações, reservatórios, aquedutos (DIAS, 2007, p. 74). Já aí a atividade construtiva, com distintas técnicas, se manifesta como pressuposto para o desenvolvimento dessas cidades. José Afonso da Silva (2008, p. 20) menciona também as cidades antigas do oriente médio, da Grécia e das Américas como registros históricos de organizações urbanas. Todavia, tais fenômenos não se confundem com a concepção pós-industrial de cidade, cuja referência inicial é a Europa do século XIX (v. SILVA, p. 20). 3 Citando Sonia Hirt, Marcelo Alexandre Juliano (2016, p. 19) anota que regulamentos edilícios

    estiveram presentes em diversas culturas desde as civilizações do Indo (Harappa, Mohenjo-Daro) e antigo Egito, passando pela China, Grécia (Porto de Pireu, cujo plano de autoria de Hippodamus, foi

  • 12

    Indo além da solidez das edificações, porém, cidades pré-históricas ou da

    antiguidade já apresentavam algum nível de planejamento e ordenação, com

    normas que de alguma maneira procuravam regular as edificações e seus usos -

    especialmente em relação a atividades consideradas de potencial nocivo (JULIANO,

    2016, p. 18). A regulação e promoção dos empreendimentos nas cidades antigas

    variam conforme as características de cada uma daquelas sociedades.

    José Afonso da Silva ensina, por exemplo, que o alinhamento de edifícios

    como exigência urbanística já era registrado na Antiguidade Clássica. Na Roma

    antiga, chegaram-se a prever regras de cunho urbanístico, limitando a altura de

    edifícios e impondo recuos entre as edificações (SILVA, p. 27). Algumas das

    premissas foram mantidas na Idade Média (apesar de sua tendência “antiurbana”) e,

    no período da Renascença, havia forte preocupação com o embelezamento das

    construções (SILVA, p. 28).

    José Roberto Castilho afirma que em Roma, na verdade, havia aquilo que

    se entende por “direito de vizinhança”, que também tratava da ocupação do solo,

    mas sob outra perspectiva (n.p., Cap. 3.2). É o que também ensina Sílvio Venosa

    (2018, p. 176):

    Arraiga-se no espírito romano a propriedade individual e perpétua. A Lei das XII Tábuas projeta, na verdade, a noção jurídica do ius utendi, fruendi et abutendi. Considerava-se o domínio sobre a terra de forma absoluta. (...). Apenas na época clássica o Direito Romano admite a existência de uso abusivo do direito de propriedade e sua reprimenda. O Digesto já reconhece direitos de vizinhança, mas o elemento individual

    ainda é preponderante4.

    Por direito de vizinhança, entende-se as limitações ao exercício de direito

    de propriedade voltadas ao interesse privado, entre os proprietários de lotes

    confrontantes. O fundamento é a contraprestação e o respeito mútuo entre os

    direitos de propriedade dos vizinhos, ou seja, a própria propriedade. Protege-se o

    imóvel contíguo não como decorrência de uma percepção de bem-estar coletivo,

    citado tanto por Platão como por Aristóteles, que considerava o autor como “inventor da arte de planejar cidades”. 4 “A noção de propriedade imobiliária individual, segundo algumas fontes, data da Lei das XII Tábuas.

    Nesse primeiro período do Direito Romano, o indivíduo recebia uma porção de terra que devia cultivar, mas, uma vez terminada a colheita, a terra voltava a ser coletiva. Paulatinamente, fixa-se o costume de conceder sempre a mesma porção de terra às mesmas pessoas ano após ano. Ali, o pater famílias instala-se, constrói sua moradia e vive com sua família e escravos” (VENOSA, 2018, p. 176).

  • 13

    mas em reconhecimento à necessidade de se preservar a propriedade em si

    mesma. Não há uma dimensão voltada ao social ou coletivo, portanto.

    Em todo caso, para além da vizinhança, esse percurso acelerado pela

    história mais remota revela que aquelas normas esparsas refletiam preocupações

    ainda limitadas ao arruamento ou alinhamento das construções, ou ainda voltadas a

    sua estética ou segurança5. Não se confundem, portanto, com a regulamentação

    das intervenções urbanas que seria desenvolvida a partir do fenômeno da

    urbanização visto no final do séc. XIX em diante, que atrai nova problemática pela

    própria realidade que se impõe, com um inédito crescimento populacional,

    surgimento do proletariado urbano, desigualdade socioespacial, poluição, gestão de

    resíduos, mobilidade, habitação, enfim, que se sucederiam ao processo de

    industrialização e adensamento nas cidades.

    Por tudo isso, José Afonso da Silva (2008, p. 28) ensina que até a

    ocorrência desse processo de urbanização, aquelas limitações construtivas refletiam

    ainda um urbanismo primitivo e empírico, desatreladas de uma técnica complexa e

    interdisciplinar, o que só veio a ocorrer no enfrentamento das questões trazidas pelo

    fenômeno urbano pós-industrial.

    1.2 As cidades pós-industriais e a evolução do controle construtivo

    Chama-se atenção para dois processos marcantes nessa fase: primeiro, o

    desenvolvimento do mercantilismo desde o séc. XV, com a concepção burguesa-

    liberal, que evocava os princípios romanos da propriedade privada, tendo a

    revolução francesa como marco histórico (1789); segundo, a revolução industrial e

    tecnológica, que permite a produção em massa, com o crescimento industrial e a

    consequente concentração de mão de obra nas linhas produtivas, além dos avanços

    das técnicas construtivas.

    Tais processos, não necessariamente independentes, correspondem aos

    prismas essenciais do desenvolvimento das cidades pós-industriais. De um lado, a

    propriedade privada (móvel ou imóvel) consagrada e sendo explorada, permitindo a

    produção desenfreada de indústrias no ambiente urbano, surgimento da sociedade

    5 Menciona-se, por exemplo, que, após o incêndio de Londres de 1666, passou-se a estabelecer

    regras mais rígidas quanto aos materiais utilizados nas edificações, bem como a proibição de vielas estreitas com edificações próximas (JULIANO, 2016, p. 19).

  • 14

    urbana (o proletariado urbano), acentuação das desigualdades sociais, construção

    de habitações, etc. De outro (resultado da revolução industrial e tecnológica), as

    cidades, que superam o perfil de simples centro comercial, com o rápido crescimento

    e adensamento..

    A explosão populacional nas cidades teve por consequência o surgimento

    de questões ligadas à ausência de saneamento básico, atendimento à saúde,

    abastecimento alimentar e habitação salubre aos trabalhadores urbanos (DIAS,

    2007, p. 76). Citando Jorge Wilheim, José Afonso da Silva ensina que a urbanização

    (concentração urbana) transformou os centros urbanos em “grandes aglomerados

    de fábricas e escritórios permeados de habitações espremidas e precárias” (2008, p.

    26). Dentre as consequências, menciona, por sua vez, a deterioração do ambiente

    urbano, a desorganização social, com carência de habitação, desemprego,

    problemas de higiene, modificação da utilização do solo e transformação da

    paisagem urbana (SILVA, 2008, p. 27).

    Em um primeiro momento, a resposta a tais questões não vão muito além

    do controle edilício já existente na antiguidade. Tratam-se de limitações pontuais à

    propriedade, de caráter excepcional e normalmente de cunho negativo (estabelecia-

    se um “não fazer” aos particulares). São características marcantes daquilo que

    posteriormente se designou por Poder de Polícia (que abordaremos mais

    vagarosamente em capítulo sequente)6. Tais limitações, todavia, tinham caráter

    excepcional, e se davam em um contexto jurídico em que valores máximos eram a

    propriedade e a segurança individual (v. Artigo 2º da Declaração de Direitos do

    Homem e do Cidadão, 1789). Com efeito, as conquistas das liberdades individuais

    frente ao Estado - o Estado de Direito - não poderiam ser ameaçadas.

    O Estado de Direito desenvolveu-se baseado nos princípios do liberalismo, em que a preocupação era a de assegurar ao indivíduo uma série de direitos subjetivos, dentre os quais a liberdade. Em consequência, tudo o que significasse uma interferência nessa liberdade deveria ter um caráter excepcional.

    A regra era o livre exercício dos direitos individuais amplamente assegurados nas Declarações Universais de Direitos, depois transpostos para as Constituições; a atuação estatal constituía exceção, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para assegurar a ordem

    6 A doutrina anota que o termo “policy power” foi primeiro utilizado em 1827, no caso “Brow versus

    Maryland”, por Marsall, em julgamento na Suprema Corte dos Estados Unidos, relativo à possibilidade do Estado impor limites às atividades dos cidadãos (CRETELLA JUNIOR, p. 263 e 284, 2000) .

  • 15

    pública. A polícia administrativa era essencialmente uma polícia de segurança (PIRES, 2006, p. 202).

    A França é um exemplo disso e da evolução pela qual o controle das

    edificações foi experimentando naquele período. O Código de Napoleão (1804), ao

    tratar da propriedade como direito absoluto (Art. 544), resgatava sua acepção

    romana (jus utendi, fruendi, abutendi e rei vindicatio), prevendo restrições voltadas à

    disciplina de eventuais interesses divergentes entre vizinhos. Em última instancia,

    tais limitações refletem a consagração da propriedade como valor máximo no Estado

    Liberal, eis que mesmo as suas excepcionais restrições estavam voltadas ao seu

    reconhecimento e proteção (ainda que em vista da propriedade alheia).

    Contudo, com o desenvolvimento da industrialização e a intensificação da

    urbanização, as restrições vão paulatinamente incorporando valores decorrentes de

    reflexões voltadas ao bem-estar na urbe, ainda que incipientes7.

    Já em 1810, a instalação de indústrias poluidoras em certos distritos

    daquele país passa a ser submetida a controle prévio do Estado Napoleônico

    (conforme determinado por Decreto Imperial), o que já se aproxima da ideia central

    de licença - controle prévio -, esboçada em nossas notas introdutórias. Na mesma

    época, o governo prussiano emitiu legislação semelhante (JULIANO, 2016, p. 21).

    A disciplina da intervenção no solo urbano, todavia, ainda estava

    desatrelada de um processo de ordenação e planejamento do desenvolvimento das

    cidades (não havia um urbanismo propriamente, ainda que a conjectura para seu

    surgimento já estivesse colocada).

    À medida em que o próprio cenário urbano ganha nova complexidades,

    as reflexões quanto aos problemas decorrentes da urbanização vão se

    desenvolvendo, assim como a necessidade de se aprimorar o controle do uso e

    ocupação do solo das cidades. A “explosão urbana” (SILVA, 2008, p. 28) agrava os

    desequilíbrios urbanos, demandando sua correção.

    O controle construtivo recebe então nova problematização trazida pelo

    desenvolvimento da ciência do urbanismo (aventada, em um primeiro momento,

    7 “Apenas, enquanto naquela época essas leis e regulamentos se limitavam, quase exclusivamente,

    aos direitos de vizinhança, aos poucos o seu campo foi se ampliando, com a tendência para condicionar, cada vez mais, o exercício do direito de propriedade ao bem-estar social” (DI PIETRO, 2018, p. 156).

  • 16

    pelos utopistas socialistas), como explica José Afonso da Silva (2008, p. 28). O

    autor destaca a contribuição de Charels Fourier, ligado aos utopistas, já trazendo

    ideias como a previsão de áreas verdes, taxas de ocupação, recuos, afastamentos e

    coeficientes de aproveitamento, tudo tomando a planificação como elemento central

    (conceitos que serão abordados adiante), que posteriormente seriam evocadas no

    urbanismo contemporâneo. Especialmente, adianta o plano de uma cidade

    organizada em diferentes “recintos”, em cada qual as construções adotariam

    dimensões diferentes - trazendo já a noção de zoneamento no controle construtivo -

    e só poderiam levantar-se mediante aprovação de uma comissão de edis - indicando

    o controle prévio, ainda que significativamente distinto da atual licença urbanística

    (cf. SILVA, 2008, p. 29).

    Em que pese certas experiências pontuais8, as reflexões sobre a cidade

    ainda seriam maturadas por diferentes pensadores (como bem sintetiza José Afonso

    da Silva na obra em comento, 2008, p. 27-31) até serem incorporadas à disciplina

    jurídica do solo urbano de forma consolidada.

    Citando as impressões de William Morris sobre as cidades britânicas em

    meados do século XIX, Deák exemplifica ainda a insuficiência de uma regulação

    espacial naquele contexto, bem como seus prejuízos no cenário urbano:

    Through a combination of rapid accumulation that brought with it demographic growth and the development of machinofacture that required spatial concentration, urban agglomerations were reaching unprecedented scales — accumulation, at this stage, was the growth of the proletariat—, while laissez faire and 'free trade' left regulation (spatial or other)

    unplanned. By the late 1860s, on the one hand, the 'spontaneous1 growth of urban agglomerations had resulted in unmanageable and inefficient spatial structures. Some twenty years later, William Morris would sum up "London and the other great commercial cities of Britain as 'mere masses of sordidness, filth and squalor, embroidered with patches of pompous and vulgar hideousness'". (20) On the other hand, the period of rapid accumulation itself was over, and gave place to the great depression. This marked the demise of free trade and laissez faire and gave rise instead to trusts, monopolies, finance capital, corporations, and ultimately, to increased and increasing state intervention -- 'planlessness' of capitalism disappeared with predominantly extensive accumulation (DEÁK, 1985, p. 217-218, grifo do autor)

    9.

    8 Ainda que seja possível identificar certas fases com tendências específicas, é evidente que a

    evolução do controle construtivo não segue um ritmo rigidamente uniforme. A exemplo, Rogério Gesta Leal menciona como exceção o adiantado urbanismo visto em Amsterdã já em 1565, com a ampliação planejada da cidade e a “Ordenação de Construções”, que já exigia a aprovação de construção por funcionários municipais (LEAL, p. 14). 9 “Através de uma combinação de rápida acumulação que trouxe consigo o crescimento demográfico

    e o desenvolvimento de indústrias que exigiam concentração espacial, os aglomerados urbanos

  • 17

    Naquele quadro, procurando enfrentar as questões ligadas à cólera e aos

    constantes incêndios que se alastravam pela cidade, a evolução do controle das

    construções se acelera. Em 1844, a cidade de Londres emite o “Metropolitan

    Building Act”, focando a solidez e segurança das edificações, ou a segregação de

    atividades altamente poluidoras (JULIANO, 2016, p. 21). Aquela regulação foi

    seguida pelo Public Health Act de 1848 e o Local Government Act de 1858, que

    ampliavam o objeto de regulação para os materiais utilizados e áreas construídas,

    por exemplo10.

    É difícil identificar um marco histórico ou legal em que a construção passa

    a exigir qualquer outorga específica por parte do Estado (através da licença,

    autorização ou outra figura - sem esmiuçar seus caracteres), o que se verifica é que

    a necessidade de um controle prévio vai sendo percebida paulatinamente em cada

    cidade, em aspectos distintos (necessidade de anuência do Estado para instalação

    de fábricas poluidoras, para a construção fossas privada), ampliando seu objeto e

    seu alcance de forma significativa na segunda metade do século XIX.

    Continuando o percurso histórico, o controle prévio das atividades

    construtivas se generaliza em Paris em 1852, com o Decreto de Napoleão III, sob

    proposta do Barão Haussmann, prefeito do Sena, forçando os construtores a

    apresentar seus planos à prefeitura - se, no prazo de vinte dias, o prefeito não se

    opusesse à segurança do projeto, o trabalho poderia começar (ver GÉRARD, 2007,

    p. 97).

    alcançavam escalas sem precedentes - o acúmulo, nesse estágio, era o crescimento do proletariado -, enquanto o laissez faire e o livre comércio deixou a regulação (espacial ou outra) sem planejamento. No final da década de 1860, por um lado, o crescimento espontâneo das aglomerações urbanas resultou em estruturas espaciais incontroláveis e ineficientes. Cerca de vinte anos depois, William Morris resumiria "Londres e as outras grandes cidades comerciais da Grã-Bretanha como 'meras massas de sordidez, imundície e miséria, bordadas com manchas de horror pomposo e vulgar'". (20) Por outro lado, o período de acumulação rápida acabou e deu lugar à grande depressão. Isso marcou o fim do livre comércio e do laissez-faire e deu lugar a trusts, monopólios, capital financeiro, corporações e, por fim, ao aumento e aumento da intervenção estatal - o “sem-plano” do capitalismo desapareceu com uma acumulação predominantemente extensiva” (tradução nossa). 10

    “Compared with the more limited provisions of the Public Health Act, with respect to building matters, that is to cellar levels, privies, cesspools, streets and courts, one can now see, just ten years later, a considerable broadening of building regulations, to include walls, fire, stability and space about building” (HARPER, 1978, p. 152). Anote-se que Royal Sanitary Commission Report em 1871 já levantara a pertinência do controle dos novos edifícios antes de sua ocupação, recomendando a aprovação de projetos em até um mês.

  • 18

    Veja-se, todavia, que apesar das contribuições teóricas e ainda que

    houvesse certa preocupação com o contexto urbano, o controle aqui ainda está mais

    voltado à edificação em si considerada que à ordenação e planejamento da cidade

    como um todo. Não é possível identificar ainda a licença urbanística propriamente

    (nos termos daquilo que será delimitado nos capítulos subsequentes).

    1.3 O controle urbanístico

    A fase final na evolução do controle construtivo nas cidades – resultando

    naquilo que se toma pelo controle urbanístico contemporâneo – pode ser descrita a

    partir de dois aspectos. Por um lado, do ponto de vista histórico, o contexto pós-

    industrial é agravado pelas crises econômicas e pela Primeira Grande Guerra no

    início do século XX, com fortes impactos sociais e urbanos. Aquela conjuntura

    escancara a insuficiência no enfrentamento das complexidades decorrentes da

    urbanização, através das pontuais limitações à propriedade, fomentando o criticismo

    a uma sociedade excessivamente liberal e provocando mudanças nas expectativas

    do papel do Estado, com maior intervenção na atividade econômica e na

    propriedade privada. Por outro lado, no âmbito da evolução do urbanismo e das

    técnicas de ordenação urbana, o estabelecimento do zoning (cuja origem se dá na

    Alemanha) se constitui também como marco importante, trazendo uma nova

    dinâmica de planejamento territorial e controle do solo.

    Tais elementos, quais sejam, (i) o incremento no controle do uso e

    ocupação do solo, com a ordenação racional dos espaços da cidade, e (ii) uma

    maior inflexão sobre propriedade liberal e o papel do Estado, somados ainda às

    limitações clássicas, dão a cara da disciplina urbanística que então passa a se

    desenvolver.

    1.3.1 O controle do solo urbano e o zoneamento11

    11

    Duas ressalvas devem ser feitas à tese que ora se expõe. Por primeiro, não se ignora o cabimento de uma análise critica à técnica do zoneamento e à maneira pela qual foi implementada. Para tanto, recomenda-se a leitura de ROLNIK (2003), para uma abordagem voltada à sua aplicação no Brasil (em especial na Cidade de São Paulo). Para uma crítica ao zoning estabelecido ainda em Frankfurt: cf. SALGADO, 2017. Por segundo, ao chamar a atenção para o zoning e sua influência sobre a disciplina urbana, não se está afirmando que a gestão e planificação urbanas (arruamentos, obras públicas, diretrizes e projetos desenhos de cidade, abertura de vias, instalação de infraestrutura) tenha se iniciado essa técnica. Apenas, toma-se sua consolidação como marco no urbanismo e, especialmente, no controle jurídico do solo, ao atrelar a disciplina construtiva ao planeamento territorial da cidade com um todo.

  • 19

    Abordando primeiramente o zoning, trata-se de inovação na técnica

    urbanística com reflexo direto em sua disciplina jurídica. Os urbanistas apontam sua

    origem no município de Frankfurt, em 1891, quando se estabelece regulamentação

    que alcança todo o território da cidade, dividindo-o em zonas com diferentes

    densidades de edificação e usos permitidos (JULIANO, 2016, p. 26)12. Ainda que já

    tenha havido instrumentos semelhantes predecessores (como já anotado acima), é

    aqui que se verifica a radicalização do controle do solo urbano13, cuja técnica passa

    a servir de inspiração ao urbanismo que se desenvolvia e à correspondente

    disciplina do solo urbano em diferentes cidades do mundo14.

    A urbanização decorrente da industrialização e seus fenômenos mais visíveis, a especulação imobiliária e a deterioração o ambiente urbano, ensejaram a adoção de regulamentos de controle dos volumes e da distribuição dos usos produtivos como a proibição de determinadas atividades em áreas específicas das cidades (JULIANO, 2016, p. 20).

    Como bem anota Salgado (2017), o zoning de Frankfurt corresponde ao

    primeiro plano de zoneamento completo e detalhado, organizando regulamentos

    construtivos diferenciados em relação ao local do imóvel na cidade, e com planos de

    alinhamento modificáveis no tempo (SALGADO, 2017, p. 234).

    Acrescente-se, então, que esse marco revela a guinada pela qual passa a

    regulamentação construtiva a partir do século XIX, quando a outorga da licença para

    edificar (ou realizar quaisquer outras intervenções no ambiente urbano), passa a ser

    12

    “O município de Frankfurt adota em 1891 um plano de zoneamento que abrange todo seu território, dividindo a cidade em zonas concêntricas e designando a cada uma delas, normas que definem densidade de edificação (mediante parâmetros de altura e taxa de ocupação) e a sua destinação de uso, dividindo o território em áreas residenciais, industriais e para usos mistos. Segundo Mancuso (1980) o primeiro documento onde aparece a aplicação do zoning é: ‘Polizeiverordnung vom 13 Oktober 1891, das Bauen in der Aussenstadt Frankfurt Am Main’ – Norma da polícia de 13 de outubro de 1891 sobre as construções na cidade exterior em Frankfurt. Este documento usa o termo Zone System, e seus instrumentos de aplicação são o ‘bauzonenplan’ (mapa que define as zonas) e a normativa de construção correspondente ou ‘zonenbauordnung” (JULIANO, 2016, p. 26). 13

    Trata-se do primeiro plano de zoneamento completo e detalhado, envolvendo todo o território municipal e abrangendo todos os setores da construção. Por este motivo entrou para a história. Ao organizar as duas principais linhas de instrumentalização da reforma urbana da época – regulamentos construtivos diferenciados em relação ao local e planos de alinhamentos modificáveis no tempo – o zoneamento de Adickes mitigou os impactos do processo de expulsão sistemática das fábricas do território urbano. Ao criar os bairros fabris, o novo modelo possibilitou uma maior adequação entre os interesses do capital imobiliário e do capital industrial, que ganhava força rapidamente no período (SALGADO, 2017). 14

    Além das cidades europeias, a influência do zoning desenvolvido em Frankfurt fica clara nas cidades americanas, ou mesmo no Brasil, como explica Raquel Rolnik (1997, p. 44 e 173). Note-se, aliás, que a primeira obra norte-americana dedicada exclusivamente ao Planejamento Urbano, “An Introduction to City Planning” (de Benjamin Marsh, 1909) já tratava da experiência Frankfurt (JULIANO, 2016, p. 39). Em 1916, Nova Iorque também adota o zoning.

  • 20

    atrelada não somente à edificação em si considerada, mas também levando em

    conta à zona da cidade em que o lote se encontra, incluindo os usos e as

    densidades construtivas permitidas15, a proximidade com outras atividades, entre

    outros índices que vão se desenvolvendo de acordo com a evolução da técnica de

    ordenação do solo baseada no “zone system”.

    A existência de um zoneamento pressupõe que a regulação e o controle

    do uso e ocupação do solo agora terão por critério não somente a edificação a ser

    erigida ou seus lotes vizinhos, mas também a classificação do solo determinada na

    planificação, pensando a cidade em sua integralidade.

    Procurando retomar aquilo que já se disse, é aqui que fica claro a

    evolução do controle do uso e ocupação do solo urbano partindo da disciplina

    meramente estrutural da construção (voltada às técnicas construtivas, sua solidez e

    prevenção de incêndios, e.g.), seguida de uma preocupação com a vizinhança

    (vedação a usos nocivos, garantia de insolação, etc), até o controle da edificação em

    sua dimensão urbanística propriamente (atentando-se aos seus impactos urbanos e

    racionalizando a intervenção permitida no território, em conformidade com

    planejamento da cidade).

    Essa evolução tem interferência direta na confecção do ato de controle

    prévio ao uso ou ocupação da cidade, pois modifica o objeto de análise (deixa de ser

    meramente a construção) sua fundamentação e valoração (que remeterá ao

    zoneamento e planejamento, e não somente a uma disciplina edilícia), com reflexos

    diretos nos requisitos que devem ser atendidos para sua emissão, bem como nos

    princípios incidentes. São esses aspectos que serão desenvolvidos no decorrer

    desse trabalho.

    1.3.2 A superação do Estado Liberal e a consolidação do controle urbanístico

    Historicamente, a Primeira Grande Guerra e o agravamento de questões

    sociais e crises econômicas na Europa e nos Estados Unidos acabam servindo de

    combustível para um inflexão geral sobre a atuação do Estado, não somente no

    ambiente urbano, mas em toda a ordem social e econômica.

    15

    “O controle de densidades permite manejar adequadamente a distribuição de habitação, adequando-as à infraestrutura de transportes que se formava então e mesclando-se a áreas verdes e equipamentos públicos, resultando em condições melhores de salubridade, além do ganho no valor estético urbano (JULIANO, 2016, p. 29)”.

  • 21

    Desde o início do século XX, então, passa a ser perceptível a modificação

    do papel do Estado, de mero árbitro das relações contratuais a interventor na

    economia, objetivando evitar a expansão das desigualdades e o atendimento de

    interesses básicos da população carente. Os segmentos desfavorecidos

    (desassistidos, subempregados, sem teto), formam um significativo contingente

    reivindicante (LEAL, p. 29) e os países europeus voltam sua atuação ao bem-estar-

    social - o Welfare State.

    Todo esse contexto se traduz também em significativas alterações

    legislativas voltadas à maior intervenção estatal na busca pelo bem-estar, aí

    incluindo a disciplina da organização urbana, eis que considerável parte das

    desigualdades e conflitos sociais se acentuam justamente nas cidades.

    Nesse sentido, aponta-se que é apenas nessa fase que um verdadeiro

    Direito Urbanístico surge naqueles países (CASTILHO, 2013, n.p.). As reflexões

    teóricas que se iniciam no séc. XIX passam então a ser refletidas em uma disciplina

    jurídica sistematizada no século XX, na qual o controle do uso e ocupação do solo

    surge como elemento central.

    Para garantir a observância das normas de ordenação do solo e avaliar

    cada empreendimento em sua dimensão urbanística – já considerando as técnicas

    de zoneamento e organização espacial -, vão se consolidando os instrumentos de

    controle prévio, que passam a ser estabelecidos de forma sistemática nessa época.

    Na França, é no século XX que se tem notícia de uma primeira lei

    estipulando de forma geral as “licenças de construção”, já próxima daquilo que hoje

    entendemos (i.e., uma outorga prévia do Estado, tendo por objeto o exercício de

    uma atividade construtiva), com a “Lei de institutos de higiene as licenças de

    construção e desenvolvimento”, de 1902. E apenas em 1945 é que se estabelece

    propriamente a licença de construção, emitida “em nome do Estado” (GÉRARD,

    2007). Trata-se de clara evolução, portanto, daquele cenário urbano do período

    napoleônico mencionado acima, quando apenas se controlava a instalação de

    fábricas poluentes, evitando o prejuízo à vizinhança.

    Em 1983, fica clara a vinculação da licença construtiva ao planejamento

    urbano: a lei de descentralização, de 7 de janeiro de 1983, condiciona a

  • 22

    competência dos prefeitos de emitir as licenças de construção à existência de um

    documento de planejamento aprovado (o “Plan Local d’Urbanisme”, “Plan

    d’Occupation des Sols” ou o “Carte Comunale”) – cf. GÉRARD, 2007, p. 9716.

    Na Itália, o Real Decreto Legislativo nº 640 de 1935, prevê a necessidade

    de solicitação de autorização prévia ao Estado para a construção de novos edifícios,

    ou modificação ou ampliação dos existentes, devendo o interessado cumprir as

    regras especiais dos regulamentos municipais de construção e higiene17. Citando

    Filippo Salvia e Francesco Teresi, Márcia Walquiria Batista dos Santos (2001, nota

    de rodapé n. 23, p. 25) esclarece que as administrações municipais italianas

    começaram a inserir nos próprios regulamentos edilícios algumas disposições que

    subordinavam expressamente a atividade construtiva à expedição de uma

    autorização prévia, mas que o primeiro reconhecimento legislativo generalizado

    entretanto viria com apenas com o referido RDL 640. Afirma, ao fim, que é apenas

    com a Lei 1.150 de 1942 (Lei Urbanística), que o instituto encontrou a sua

    verdadeira sistematização, em seu Art. 31. Nessa lei, além de estipular prazos de

    vigência e questões procedimentais para a outorga da licença, também passsa-se a

    atrelar de forma expressa a sua concessão ao planejamento urbano e à realização

    de obras de urbanização (v. Art. 4º e 31 da referida norma).

    Tais alterações estavam em compasso com a percepção dos urbanistas

    da época, como se denota da leitura da Carta de Atenas, elaborada no Congresso

    internacional de Arquitetura Moderna de 1933, que, dentre os diversos de seus

    postulados, destaca os prejuízos do crescimento e desenvolvimento incontrolado

    das cidades (item 44), a debilidade do controle administrativo (73 e 74), bem como a

    necessidade do crescimento planejado em programas técnicos e a promulgação de

    leis que permitam a sua observância (85).

    16

    Em 1902, a Lei de institutos de higiene as licenças de construção e desenvolvimento, ligeiramente modificada em 1911, antes de uma lei de 15 de Junho de 1943, confirmado pela ordem de 27 de Outubro de 1945, estabelece a licença de construção, emitida "em nome do Estado". Com a lei de descentralização, de 7 de janeiro de 1983, os prefeitos recebem competência para emitir, em nome de sua cidade, quase todas as licenças de construção em público com um documento de planejamento (POS, PLU ou mapa comunal) aprovado. (ver GÉRARD, 2007, p. 97). Também citado por BATISTA, 2001, p. 30. 17

    “Coloro che intendano fare nuove costruzioni, ovvero modificare od ampliare quelle esistenti debbono chiedere al Podestà apposita autorizzazione, obbligandosi ad osservare le norme particolari dei regolamenti di edilizia e d'igiene comunal” (Art. 4º).

  • 23

    Essencial ao incremento do controle urbanístico que se testemunha no

    século passado é a superação da propriedade privada como valor absoluto,

    conformando o seu exercício ao interesse público, e fomentando reflexões sobre sua

    finalidade, diante das necessidades coletivas e sociais que se agravavam.

    Com efeito, toda a inflexão em decorrência dos interesses sociais e a

    atuação do Estado não deixam incólume a configuração jurídica da propriedade,

    central ao liberalismo. Em 1911, refletindo sobre o papel do Direito como

    assecuratório da propriedade e sua relação com a problemática social, e

    influenciado pelo pensamento de Augusto Comte e Emile Durkhein, León Duguit

    levanta a noção da propriedade como função, baseado na solidariedade social e na

    importância da consciência social para a formação do Direito. Superando a ideia

    desse valor como elemento natural, entende que a propriedade privada, fruto do

    pacto social, somente se justifica se moldada às necessidades sociais, coletivas18.

    A noção de função social da propriedade que se desenvolve sob essa

    influência teórica irradia sobre diferentes ordenamentos (ainda que com certa

    variação), aí incluindo o brasileiro. A superação da concepção absolutista da

    propriedade, consagrada pela Revolução Francesa, é fundamental ao novo papel

    exercido pelo Estado e ao desenvolvimento de um controle mais incisivo no

    exercício daquele direito, sempre em atenção ao interesse social - in casu, vinculado

    à ordenação urbana. O desenvolvimento do urbanismo e do controle do solo tem

    uma correlação direta com o desenvolvimento desse instituto. Não por acaso, a

    função social da propriedade é tomada por parte da doutrina como o princípio central

    do Direito Urbanístico19.

    Para Álvaro Pessoa, nenhuma das teorias e pensadores foi tão influente

    para a renovação do clássico conceito de propriedade quanto as forças sociais

    desencadeadas pelo processo de urbanização e a necessidade de atendimento das

    demandas populares20.

    18

    Cf. Álvaro Pessoa (1981, p. 54). 19

    Lúcia Valle Figueiredo, como bom exemplo, ao tratar ainda sobre o regime constitucional brasileiro de 1969, já assinalava: “O direito urbanístico refere-se às normas disciplinadoras da propriedade com as limitações atinentes à sua função social. (...) as normas de direito urbanístico estão vocacionadas a dirigir a realização dessa função” (FIGUEIREDO, 1981, p.21-22). 20

    “Nenhum destes seguimentos é, porém, mais radicalmente renovador para o conceito de propriedade do que as forças sociais desencadeadas pelo processo de urbanização. Não é no

  • 24

    O controle prévio das construções, sob a disciplina geral da cidade,

    reconhecendo seu impacto e dimensões urbanísticas, se consolida no momento em

    o direito de propriedade passa por essa substancial transformação, submetendo-se

    às finalidades de um Direito comprometido com o bem-estar e a justiça social.

    conceituar a propriedade rural, mas ao forçar a redefinição da propriedade urbana, que o moderno Direito Urbano das sociedades avançadas tem promovido uma verdadeira revolução conceitual na ciência jurídica dos países desenvolvidos” (PESSOA, 1981, p. 55).

  • 25

    2. Política urbana e atividade urbanística de controle do solo no Brasil

    Essencial entender que toda aquela evolução no controle do uso e

    ocupação do solo está atrelada ao desenvolvimento histórico pelo qual passou o

    adensamento dos centos urbanos, à problemática daí decorrente, bem como ao

    contexto de transformação do Estado e do Direito, o que acaba sendo reproduzido,

    em considerável medida, também no contexto brasileiro.

    Ainda que a urbanização no Brasil tenha sido mais tardia que a europeia,

    ganhando força especialmente durante a Segunda Grande Guerra21, seu processo

    não foi menos intenso ou gravoso. Muito pelo contrário, o que se verifica é que a

    problemática intrínseca a um crescimento urbano desordenado (com o êxodo rural,

    adensamento populacional e surgimento do proletariado urbano) se soma a uma

    camada de problemas sociais ainda oriundos de desigualdades sociais extremas

    herdadas de um regime escravocrata e de fluxos migratórios externos.

    Apesar de o país apresentar importantes cidades durante os séculos XVIII e XIX, a sociedade brasileira se urbanizou praticamente no século XX. O Brasil começou o século com 10% da população nas cidades e terminou com 81%. E embora o processo de urbanização tenha ocorrido durante o regime republicano, o peso das heranças colonial e escravista é notável também na formação das cidades (MARICATO, 2006, p. 211).

    Em que pese o trato da questão urbana em regimes anteriores, é

    somente com a redemocratização em 1988 que se estabelece no país uma política

    urbana com princípios e diretrizes consolidados voltado ao cenário das cidades.

    A matriz estabelecida pela Constituição de 1988 tem como pano de fundo

    o reconhecimento das desigualdades socioespaciais presentes no contexto das

    cidades brasileiras (mormente aquelas de grande porte), e a necessidade de se

    promover uma reforma voltada aos interesses sociais e à racionalização da

    ordenação do solo através de seu adequado planejamento.

    Partindo da premissa inicial deste trabalho, que toma a licença urbanística

    como instrumento de política urbana (enquadramento que ficará mais claro no

    presente capítulo), cabe então verificar brevemente quais os princípios e diretrizes

    estabelecidos, aos quais a disciplina das licenças deverão se submeter.

    21

    A própria revolução industrial chega mais tarde. Cf. SOMEKH, 1997, passim, e ROLNIK, 2003, p. 152 e ss.

  • 26

    2.1 A política urbana

    2.1.1 Conceito

    Estabelecer um conceito de política urbana exige primeiro uma reflexão

    sobre aquilo que se entende por política pública, tarefa que não incumbe somente

    ao jurista. Veja-se que, conforme bem ensinam Reinaldo Dias e Fernanda Matos

    (2012), em trabalho dedicado à questão, a noção de politicas públicas tem origem na

    Ciência Política, e vai adquirindo autonomia e status científico a partir de meados do

    século XX na Europa e Estados Unidos (p. 10), justamente quando o Estado assume

    um papel mais ativo na ordem social e econômica, conforme acima abordado.

    Os autores definem a política pública como o “conjunto de princípios,

    critérios e linhas de ação” (p. 10) do Estado, afirmando que devem compreender

    todas as ações dos governos, eis que estas se legitimam através de um discurso (e

    alguma prática) que considera os fins do Estado (o bem comum sem discriminação

    de qualquer tipo), em oposição aos interesses particulares dos administradores

    (DIAS; MATOS, 2012, p. 12).

    Para Liberati (2013, p. 89), as políticas públicas “representam a

    coordenação dos meios colocados à disposição do Estado, de forma a harmonizar

    as atividades estatais e privadas para a realização de objetivos socialmente

    relevantes e politicamente determinados”.

    Veja-se que os autores em referência, e também a doutrina estrangeira22,

    vinculam a noção de política pública a determinado conjunto de metas, objetivos,

    voltados ao bem-comum, atrelados também a determinadas “ações” ou “meios”

    estatais para a sua consecução. Ademais, a Ciência Política aponta que ao definir

    prioridades específicas e organizar os meios para a sua realização, o

    estabelecimento de políticas públicas contribuirá para racionalizar os diversos

    objetivos do Estado (em vista do objetivo geral, o bem-comum).

    As funções estatais, para serem exercidas, necessitam de um mínimo de planejamento, com a adoção de critérios de racionalidade para que as metas e objetivos sejam alcançados de forma eficiente. Em outras

    22

    Dias e Matos fazem levantamento doutrinário a respeito de outras possíveis definições de políticas públicas: “’A combinação de decisões básicas, compromissos e ações feitas por aque- les que detêm ou influenciam cargos de autoridade do governo’ (Larry Gerston). (...) ‘É o que os governos decidem ou não fazer’ ([Thomas] Dye). “É a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou por meio de agentes, e que influenciam a vida dos cidadãos” ([B.G.] Peters)” (2012, p. 12 e 13).

  • 27

    palavras, observados os interesses e as demandas da sociedade, as ações devem ser planejadas e organizadas, avaliando as possibilidades existentes, estruturando sua implementação adequada, além de desenvolver mecanismos para reavaliar todo o processo. Isto é, fazendo escolhas sobre em que área atuar, onde atuar, por que atuar e quando atuar.

    De forma sucinta, é disto que tratam as políticas públicas, a gestão dos problemas e das demandas coletivas através da utilização de metodologias que identificam as prioridades, racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como forma de se atingir os objetivos e metas predefinidos. (DIAS; MATOS, 2012, p. 12).

    Procurando decantar o conceito sob a ótica jurídica, Maria Paula Bucci

    ensina que “as políticas públicas devem ser vistas também como processo ou

    conjunto de processos que culmina na escolha racional e coletiva de prioridades,

    para a definição dos interesses públicos reconhecidos pelo direito” (BUCCI, 2002, p.

    264).

    O adjetivo “pública”, justaposto ao substantivo “política”, deve indicar tanto os destinatários como os autores da política. Uma política é pública quando contempla os interesses públicos, isto é, da coletividade - não como fórmula justificadora do cuidado diferenciado com interesses particulares ou do descuido indiferenciado de interesses que merecem proteção - mas como realização desejada pela sociedade (BUCCI, 2002, p. 264).

    Em relevante contribuição, Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua vez,

    define política pública como um conjunto de atos unificados por um fio condutor que

    os une ao objetivo comum de empreender ou prosseguir um dado projeto

    governamental para o país (MELLO, 2010, p. 814).

    Embora não haja uma conceituação jurídica fechada a respeito23, vê-se

    que as leituras não se afastam muito da noção principal trazida pela ciência política,

    consistente no estabelecimento de certos objetivos a serem perseguidos pelo

    Estado (direta ou indiretamente) em dada matéria24.

    É o que se faz na Constituição de 1988 na questão urbana. Partindo do

    reconhecimento da realidade brasileira (com acentuadas desigualdades

    socioespaciais e a necessidade de promover uma verdadeira reforma urbana), o

    constituinte originário optou por avocar a nível constitucional a definição de objetivos

    23

    “Política pública é uma locução polissêmica cuja conceituação só pode ser estipulativa” (BUCCI, 2002, p. 251). 24

    De acordo com Odete Medauar: a política pública é formada pela definição legítima de determinados fins e objetivos como a finalidade de determinada atividade administrativa (MEDAUAR, 2014, p. 265).

  • 28

    e princípios da política urbana, vinculando todas as normas voltadas à urbe (em

    nível federal, estadual e municipal) a essa matriz25.

    De todo modo, ainda que fundada na Constituição, a política urbana nela

    não se esgota, sendo estruturada também por diretrizes gerais em nível

    infraconstitucional (Lei nº 10.257/01), além de outras normas que venham a dispor

    sobre a matéria em diferentes níveis - nacional, regional, estadual ou local (neste

    último, tendo o plano diretor como seu instrumento básico).

    Voltando às notas de DIAS e MATOS (2012):

    Ao determinar as competências do Estado, [a Constituição] é a primeira referência legal para a elaboração, execução e avaliação das políticas públicas. A partir dessa referência macro, as políticas públicas têm, cada uma, seu próprio marco legal (p. 134)

    As políticas públicas são também campos de conhecimento técnico específico. A gestão de cada uma das políticas demanda conhecimento de pressupostos teóricos, legislação específica, formas de organização, história e estágio de desenvolvimento em que se encontra o setor, enfim, demanda conhecimento, domínio sobre a área específica. (p. 135).

    Por outro lado, há que se separar - ao menos conceitualmente - o Direito

    Urbanístico objetivo da Política Urbana26. Com efeito, a vinculação da ordenação

    25

    Trata-se de opção ímpar do constituinte brasileiro, eis que nossa constituição “talvez seja a única a tratar da política urbana” (PINTO, 2005, p. 104). 26

    Ainda que a consecução de políticas públicas seja praticamente a razão de ser do direito urbanístico (VICHI, 2005, p. 97). Apesar de não coincidir os conceitos propriamente, Bruno de Souza Vichi aparentemente coincide o seu objeto: “Todas as normas que disserem respeito a estes assuntos que estruturam a noção de política urbana apresentada pela Lei Maior (‘o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos seus habitantes’) deverão integrar o regime jurídico urbanístico, de direito urbanístico” (2005, p. 103). Vichi traz a ideia de que política urbana é tudo aquilo voltado à consecução do Art. 182, abrangendo os seus mais diferentes aspectos. Fernando Bruno Filho (2015, passim), diferentemente, por sua vez, entende que o Direito Urbanístico possui seu “núcleo duro” nas normas ligadas ao território (parcelamento, uso e ocupação do solo), mas a política urbana possuiria espectro mais abrangente. Para esta, o autor propõe a seguinte conceituação: “conjunto de ações governamentais, planos e normas de regulação ou repercussão imediata no espaço territorial urbano, articulados entre si e vinculados a um objetivo de interesse público relacionado à transformação do ambiente urbano na busca da melhora da qualidade de vida dos habitantes da cidade e da concretização dos direitos fundamentais” (2015, p. 38). Explica que a noção defendida vai além da ordenação territorial (de caráter essencialmente físico-territorial), abrangendo os demais elementos setoriais (habitação, saneamento, mobilidade, etc). Já Carvalho Pinto (2005) desenvolve noção mais restrita, entendendo que a política urbana é apenas uma das diversas políticas desenvolvidas em resposta aos problemas urbanos, reforçando que não é sua função “definir os elementos de cada uma das políticas setoriais que farão uso dos equipamentos públicos” (2005, p. 44). Nesse sentido estrito, a política urbana seria o “setor da atuação do Estado que trata da ordenação do território das cidades” (2005, p. 45), ideia que se aproxima da conceituação de Direito Urbanístico de José Afonso da Silva. Todavia, como será visto adiante, PINTO atribui à política urbana a ideia de “conjunto de ações”, o que, a nosso entender, não se confunde com a acepção que apresenta do Direito Urbanístico.

  • 29

    dos espaços habitáveis a uma política específica com diretrizes e objetivos pré-

    definidos (para além daqueles advindos da própria técnica urbanística utilizada),

    corresponde a opção político-constitucional. Não são conceitos indissociáveis,

    todavia.

    Em interessante passagem, Victor Carvalho Pinto (2005) assim define a

    política urbana, na oportunidade também a distinguindo do urbanismo:

    A política urbana é o setor da atuação do Estado que trata da ordenação do território das cidades, mediante alocação do recurso “espaço” entre os diversos usos que o disputam. O urbanismo é uma técnica destinada a ordenar a ocupação do território das cidades, a fim de que elas possam abrigar todas as atividades necessárias à sociedade, mas sem que umas interfiram negativamente sobre outras. A política urbana constitui um conjunto de ações que pode ser descrito e compreendido, enquanto o urbanismo apresenta-se como um conjunto de técnicas, que podem ou não ser empregadas na prática. Não há, portanto, uma coincidência entre os conceitos (2005, p. 45)

    27.

    De todo modo, na Constituição Federal de 1988 é inequívoca a instituição

    de uma política pública, com objetivos e princípios que vincularão toda a disciplina

    urbanística que se constrói.

    Sob essa perspectiva, a política urbana corresponderá então ao

    estabelecimento de objetivos específicos traçados para a ordenação dos espaços

    habitáveis, vergando toda a noção de Direito Urbanístico aos princípios e valores

    avocados a nível constitucional, abrangendo inclusive as ações voltadas a sua

    consecução28.

    Falar em política pública urbana na Constituição é dar sentido ao

    conjunto de normas que visam à ordenação espacial, bem como sua execução, com

    estabelecimento de objetivos e princípios que serão desdobrados pela legislação e

    atos emitidos nesse ordenamento, aí incluindo as licenças urbanísticas e sua

    disciplina.

    27

    O autor continua: “A política urbana justifica-se enquanto instrumento do urbanismo, mas pode contrariar, na prática, seus mais elementares princípios A expressão ‘política urbana’ supõe, portanto, um conceito descritivo, enquanto o termo ‘urbanismo’ define um conceito normativo” (2005, p. 45). Nessa última parte, todavia, o texto ignora que a política urbana, além de conjunto de ações, também pressupõe o estabelecimento de objetivos, diretrizes e princípios. 28

    Em sentido semelhante, anota Carvalho Filho (2013, p. 17): “Podemos, assim, definir política urbana como o conjunto de estratégias e ações do Poder Público, isoladamente ou em cooperação com o setor privado, necessárias à constituição, preservação, melhoria e restauração da ordem urbanística em prol do bem-estar das comunidades”.

  • 30

    Justamente, ao atentar à licença urbanística como instrumento desta

    política, o presente trabalho dá destaque a esse mesmo prisma, ressaltando os

    caracteres da licença em vista dos objetivos traçados em nível constitucional, cuja

    abordagem ora se inicia.

    2.1.2 Objetivos e princípios da política urbana

    Os objetivos da política urbana estão explicitados no Artigo 182 da

    Constituição Federal, que acaba sendo retrato, no âmbito urbano, do perfil que se dá

    ao Estado Brasileiro29.

    Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes

    30.

    O estabelecimento do bem-estar social como objetivo último da política

    urbana está em coerência com o próprio regime democrático e social que se

    estabelece na Constituição de 1988 - Estado Social e Democrático de Direito31 -,

    ainda sob influência daquele movimento de um Estado mais ativo na sociedade,

    conforme abordado anteriormente32.

    Veja que, em seu Artigo 3º, a Carta estabelece como objetivos

    fundamentais do Estado a redução das desigualdades, erradicação da pobreza, o

    desenvolvimento e a promoção do bem-estar social, sendo vedada qualquer forma

    29

    Com efeito, os princípios de qualquer política pública, aí incluída a urbana, estarão atrelados ao perfil econômico do Estado: “para se fixarem políticas públicas – e principalmente verificar sua prioridade –, deve-se perscrutar, primeiro, a definição do modelo econômico (e de crescimento, que pode estar baseado na desigualdade, em ações igualitárias ou em algum grau de solidariedade) pretendido pelo Estado e pela população, gravado no catálogo constitucional” (LIBERATI, 2013, p. 89). 30

    Para Carlos Ari, o Art. 182 enuncia a função do próprio direito urbanístico (Estatuto, comentários, p. 48): “O direito urbanístico surge então como o direito da política de desenvolvimento urbano, em três sentidos: a) como conjunto das normas que disciplinam a fixação dos objetivos da política urbana (exemplo: normas constitucionais); b) como conjunto de textos normativos em que estão fixados os objetivos da política urbana (os planos diretores, por exemplo), c) como conjunto de normas em que estão previstos e regulados os instrumentos de implementação da política urbana (o próprio Estatuto de Cidade, entre outros)”(SUNDFELD, 2002, p. 49). 31

    José Afonso da Silva (2009) prefere se referir a “Estado Democrático”. Carlos Ari Sundfeld (2007) usa a expressão “Estado Social e Democrático de Direito”. Não cabe aqui, porém, desenvolver esse debate terminológico, sendo relevante apenas a noção de superação daquele Estado meramente garantidor das liberdades negativas dos indivíduos. 32

    Ainda que, no Brasil, tal movimento seja retardado em relação ao continente europeu. À época da constituinte, o Bem-Estar Social já enfrentava uma remodelação com o surgimento do neoliberalismo.

  • 31

    de discriminação (Art. 3º da Carta)33, ficando claro o papel mais atuante do Estado,

    na consecução desse escopo.

    A Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana (SILVA, 2009, p. 120).

    Além do respeito a certos limites negativos, o Estado se submete também

    a essa finalidade social, à erradicação marginalização social, redução das

    desigualdades e a promoção do desenvolvimento nacional, o que acaba também se

    refletindo nos objetivos do desenvolvimento urbano insculpido no Art. 182.

    Ressalte-se então que a política urbana deverá estar voltada à garantia

    do bem-estar de todos os habitantes da cidade, sem qualquer forma de

    discriminação (única interpretação possível à luz dos preceitos fundamentais do

    Estado Democrático). No âmbito urbano, aliás, a redução das desigualdades (Art. 3º,

    III) será enfrentada na dimensão socioespacial.

    A noção que se tem das funções sociais da cidade (caput do Art. 182), em

    última instância, também não deixa de traduzir tais valores. Invocando as funções da

    cidade elencadas na Carta de Atenas (1933) - habitação, trabalho, transporte e lazer

    - abarca também o caráter do Estado Brasileiro e da política urbana que se constitui.

    As funções da cidade devem ser pensadas tendo em vista todos os habitantes da

    cidade, sem qualquer discriminação, levando em conta o papel atuante do Poder

    Público em sua consecução, e em especial as desigualdades sociais presentes em

    nossas cidades.

    As funções sociais da cidade, como princípio constitucional dirigente da política urbana, foram introduzidas na Constituição Brasileira pelo caput do artigo 182 de forma vinculada com a garantia do bem-estar de seus habitantes. Com esta vinculação dos objetivos, o interesse em que as funções sociais da cidade sejam plenamente desenvolvidas é dos

    33

    Veja interessante observação de CANELA (2011) a respeito, que anota que “políticas públicas, no Brasil, são todas aquelas atividades desenvolvidas pelas formas de expressão do poder estatal tendentes à realização dos objetivos insculpidos no art. 3° da Constituição Federal” (p. 57). Entretanto, “os objetivos do Estado brasileiro não podem ser atingidos de forma aleatória. A própria Constituição cria, então, os núcleos constitucionais de irradiação dos direitos fundamentais sociais, que comandam a prática de todos os atos estatais [a exemplo do Art. 182, relativo à política urbana]”. As políticas públicas, então constituem o veículo material de realização dos direitos fundamentais sociais vislumbrados por esses núcleos constitucionais. “Por consequência, as políticas públicas estão vinculadas aos núcleos constitucionais de irradiação, de forma que, existindo desvio da matriz constitucional normativa, há necessidade de realinhamento das condutas” (2011, p. 58).

  • 32

    habitantes da cidade, o que abrange qualquer pessoa, qualquer grupo social. Com isso, não há o estabelecimento de categorias entre os cidadãos pelo fator econômico, abrangendo todos os habitantes como cidadãos, independente da origem social, condição econômica, raça, cor, sexo, ou idade (SAULE, 2007, p. 53).

    Para Daniela Campos Libório, a função social da cidade “traduz, em sua

    essência, a vocação do coletivo sobre o particular, dá respaldo e sustenta o princípio

    da função social da propriedade; por isso que, mais que a propriedade, a cidade

    deve existir e servir a seus habitantes” (2004, p. 47).

    É ao redor dessa valoração que gravita aquilo que se entende por “direito

    à cidade”, constituído direito de todos os habitantes da cidade à persecução desses

    objetivos (o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do

    bem-estar), em suas diversas dimensões. A noção de direito à cidade, ante a licença

    urbanística, será retomada no capítulo final deste trabalho.

    O artigo 182, em seu parágrafo 4º, ao tratar da função social da

    propriedade urbana, mais uma vez não deixa de traduzir a própria concepção social

    do Estado, que consagra a função social como princípio caracterizador da ordem

    econômica (v. Art. 170 da Constituição Federal)34.

    No Direito Brasileiro, não se adota integralmente aquela acepção de

    propriede-função trazida por Dugiut35. Todavia, ao elencar a função social da

    propriedade no rol dos direitos e garantias fundamentais (Art. 5º), e como princípio

    geral da ordem econômica (Art. 170), a Constituição atrela, de forma indissociável, a

    propriedade ao cumprimento de uma finalidade social.

    34

    A propriedade, como finalidade do Estado Liberal (Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão)., que visava proporcionar a estabilidade, previsibilidade e liberdade necessárias ao desenvolvimento das relações burguesas, passa agora a ser vista como meio à perseguição de objetivos sociais, do bem-estar social, da justiça social, enfim. Esses valores adquirem preponderância. 35

    “A funcionalização da propriedade é um processo longo. Por isso é que se diz que ela sempre teve uma função social. Quem mostrou isso expressamente foi Karl Renner, segundo o qual a função social da propriedade se modifica com as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorreu houve transformação na estrutura interna do conceito de “propriedade”, surgindo nova concepção sobre ela, de tal sorte que, ao estabelecer expressamente que “a propriedade atenderá a sua função social”, mas especialmente quando o reputou princípio da ordem econômica (art. 170, II e III), a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, mas adotando um princípio de transformação da propriedade capitalista, sem socializá-la; um princípio que condiciona a propriedade como um todo, não apenas seu exercício” (SILVA, 2008, p. 76).

  • 33

    Diga-se, então, não é princípio típico ou peculiar do regime urbanístico.

    Fala-se função social da propriedade móvel e imóvel, rural ou urbana, pública ou

    privada. Todavia, em se tratando da propriedade imóvel urbana, a função social se

    apresenta como elemento estruturante da ordenação das cidades, princípio central

    da política urbana, inclusive com a previsão constitucional de sanções voltadas ao

    seu descumprimento (Art. 182).

    E em relação à propriedade urbana que a função social, como preceito jurídico-constitucional plenamente eficaz, tem seu alcance mais intenso de atingir o regime de atribuição do direito e o regime de seu exercício. Pelo primeiro cumpre um objetivo de legitimação, enquanto determina uma causa justificadora da qualidade de proprietário. Pelo segundo realiza um objetivo de harmonização dos interesses sociais e dos privativos de seu titular, através da ordenação do conteúdo do direito. (SILVA, 2008, p. 78).

    Caberá ao plano diretor municipal indicar quando a propriedade urbana

    cumpre sua função social, sempre atentando-se aos objetivos gerais da política

    urbana (as funções sociais da cidade e o bem-estar dos habitantes, sem

    discriminação).

    Evocando os ensinamentos de Spantigatti (1969, p. 291-292, apud SILVA,

    2008, p. 79), tem-se que a estrutura interna do direito de propriedade é aspecto

    instrumental tocante ao complexo sistema da disciplina urbanística. Com efeito,

    considerando o regime econômico fundado na livre iniciativa, e que a propriedade

    privada imobiliária privada comporá o espaço das cidades, somente a noção de sua

    função social é que será apta a conformar significativamente os interesses do

    indivíduo ao interesse coletivo, para o estabelecimento da ordem urbana.

    Vale anotar que o princípio da função social da propriedade, e também

    das funções sociais da cidade (quando encaradas sob uma perspectiva

    deontológica), tendo sempre por fim último o bem-estar, sintetizam bem todo o

    espírito da política urbana que se estabelece em nível constitucional. Ainda que o

    Artigo 182 não trate com exclusividade da questão urbana na Constituição Federal,

    a verdade é que a valoração por ele trazida acaba se correspondendo com clareza

    aos demais princípios que orientarão o Direito Urbanístico, sejam aqueles veiculados

    pela própria Carta, sejam decorrentes de normas gerais.

    Para não desviar do foco central do presente trabalho, não vale aqui

    perscrutar cada um deles. De toda forma, aqueles que influenciam diretamente a

  • 34

    disciplina da licença urbanística serão abordados em tópico apartado. Mais um

    último princípio, entretanto, ainda vale ser destacado no momento, de especial

    relevo à presente abordagem. Trata-se do planejamento.

    2.1.2.1 O planejamento e a política urbana

    O planejamento é tomado como princípio-instrumental36 do Direito

    Urbanístico, eis que diz mais respeito à atividade urbanística, e seus meios de

    execução, que propriamente a uma matriz axiológica. Não é, todavia, menos

    relevante para o tema, revelando-se como central ao urbanismo e à política urbana.

    É certo que a figura do planejamento também não se limita ao Direito

    Urbanístico. A Constituição Federal, em seu Art. 174, o toma como elemento crucial

    na regulação na promoção do desenvolvimento socioeconômico, ou à organização

    orçamentária, por exemplo. Todavia, no Direito Urbanístico o planejamento recebe

    projeção diferenciada, eis que ínsito à lógica do urbanismo e da ordenação dos

    espaços da cidade37.

    Nas palavras de Carlos Miqueri da Costa (2009):

    O Direito Urbanístico despontou em vários países como fundamentalmente inerente à regulação da cidade e do solo urbano, que em parte se confunde com o objeto do planejamento urbano, a ser concretizado pelos planos.

    [...] Por meio do planejamento, as normas, mutatis mutandis, interferem no conteúdo do direito de propriedade do solo em função de sua classificação urbanística, ditam as técnicas de aproveitamento e estruturação física da urbe, preveem fórmulas para o desenvolvimento sustentável, reservam lugar à participação da comunidade na formulação e controle dos planos, estabelecem sistemas de justa distribuição de encargos e benefícios entre os atingidos pela execução da legislação urbanística.

    (...) O Direito Urbanístico começou a ser regido pelos interesses concernentes ao uso, ocupação e transformação do solo, onde a propriedade privada deixou de ser um direito absoluto, notadamente no que tange as limitações e densidades construtivas impostas pelas leis e planos, priorizadores do interesse comum e do atendimento à função social (COSTA, 2009, p. 52-53)

    38.

    36

    Nesses termos também entende Carlos Ari Sundfeld (2002, p. 56). 37

    Em tese que se dedica com atenção a esse tema, Julia Plenamente Silva conclui “ser o princípio do planejamento formador da estrutura do Direito Urbanístico seu núcleo essencial, do qual se extraem todos os demais princípios, inclusive o da função social da propriedade, por consequência, permite a aplicação dos instrumentos jurídicos de urbanização. Isto porque a atividade de planejar é necessariamente antecessora à função de ordenar o território, função esta que confere identidade ao Direito Urbanístico” (2016, p. 56). 38

    Em interessante passagem, o autor informa que o processo de planejamento urbano hoje já tem alcançado até mesmo níveis supranacionainais, como no caso da União Europeia (2009, p. 54).

  • 35

    Para Carlos Ari, “a Constituição Federal de 1988 faz do planejamento o

    grande instrumento do direito urbanístico, articulando competências federais,

    estaduais e municipais (SUNDFELD, 2002, p. 50)”. O dever de planejar se cumpre

    pelo atendimento das exigências no planejamento geral do Estado (planos setoriais

    e de desenvolvimento econômico e social, planejamento orçamentário, zoneamento

    ambiental), bem como na edição de planos urbanísticos, que seriam pressupostos

    da ação urbanística (p. 50).

    Se é verdade que a própria existência do direito urbanístico é uma reação ao crescimento urbano sem ordem e ao caos gerado pelas atuações individuais, ele não pode traduzir-se na substituição do caos privado pelo caos estatal. O urbanismo não é um projeto de estatização pura e simples, mas de racionalização urbana via atuação estatal. Assim, a ação urbanística do Estado só se legitima se estiver racionalmente orientada. Aí entram os planos urbanísticos (p. 56).

    Também na assertiva de Eros Roberto Grau, “o planejamento é princípio

    de toda atividade urbanística” (1983, p. 15, nota de rodapé n. 12); “planejar o futuro

    de uma região ou cidade significa controlar desenvolvimentos privados e programar

    ações de diferentes organismos públicos” (1983, loc. cit.).

    Há que se ressaltar a diferença entre planejamento e plano, bem

    ensinada por José Afonso da Silva: o