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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM FILOSOFIA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO A ÉTICA COMO ELEMENTO DE HARMONIA SOCIAL EM SANTO AGOSTINHO LEOMAR ANTONIO MONTAGNA CURITIBA FEVEREIRO - 2006

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ PÓS … · prÓ-reitoria de pesquisa e pÓs-graduaÇÃo a Ética como elemento de harmonia social em santo agostinho leomar antonio

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

MESTRADO EM FILOSOFIA

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

A ÉTICA COMO ELEMENTO DE HARMONIA SOCIAL EM SANTO

AGOSTINHO

LEOMAR ANTONIO MONTAGNA

CURITIBA

FEVEREIRO - 2006

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

LEOMAR ANTONIO MONTAGNA

A ÉTICA COMO ELEMENTO DE HARMONIA SOCIAL EM SANTO

AGOSTINHO

Dissertação de mestrado apresentada como

requisito parcial à obtenção do grau de Mestre

em Filosofia, pela Pontifícia Universidade

Católica do Paraná – Campus de Curitiba, sob

a orientação do prof. Dr. Jamil Ibrahim

Iskandar.

CURITIBA

FEVEREIRO – 2006

ii

DEDICATÓRIA

In memoriam

Valdir Montagna, meu pai, que sempre dizia: “A herança

maior que podemos deixar aos filhos é direcioná-los à verdadeira

sabedoria”.

iii

AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, que devido aos estudos, neste período,

tive que ficar ausente de uma maior e melhor convivência.

Aos estudantes e professores do Instituto Filosófico

Arquidiocesano de Maringá (IFAMA), que através das aulas de

filosofia e outras atividades, me sentia sempre mais desafiado para

este empreendimento proposto.

Aos paroquianos, funcionários(as) e lideranças, que

mereciam e tinham o direito de exigir um acompanhamento em suas

atividades, mas que compreenderam e se desdobraram em esforços e

competência para que tudo saísse da melhor forma.

Ao meu orientador professor Dr. Jamil Ibrahim Iskandar e

demais professores, funcionários(as) e colegas do curso que sempre

foram solidários e amigos em todas as ocasiões.

Aos colegas de ministério sacerdotal e a Dom Anuar, pelo

carinho e compreensão quanto aos compromissos e atividades da

Arquidiocese.

A Ordem dos Agostinianos Recoletos – OAR, pela ajuda,

incentivo e motivação quanto ao estudo do pensamento de Santo

Agostinho.

iv

RESUMO

O presente trabalho, A ética como elemento de harmonia social em Santo

Agostinho, procura demonstrar que o amor é o sinal distintivo dos cidadãos da Cidade Celeste e o fundamento da moral tanto individual como da sociedade humana e tem por meta a busca da felicidade do homem. O amor gera a concórdia que num plano social é a base de uma sociedade justa. Dessa forma, Agostinho faz da ordem social um prolongamento da ordem moral interior, sendo que a organização dos homens em sociedade, fundamentada no amor, não tem outra finalidade senão garantir a paz ou felicidade temporal dos homens, com vista à paz eterna ou verdadeira felicidade. Esta Dissertação é composta por três capítulos. No primeiro capítulo descreve-se os caminhos da vida de Santo Agostinho, e nele, o “Homem Agostinho”, identifica-se o homem enquanto humanidade em qualquer tempo e contexto. No segundo e terceiro capítulos aborda-se os princípios da ética agostiniana e a sua dimensão social que é o amor.

Estudar a ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho é estudar o problema do amor. Para ele, o amor está na própria natureza humana. Trata-se de um apetite natural, pressuposto pela vontade livre, que deve, iluminada pela luz natural da razão, orientá-lo para Deus. O amor é, pois, uma atividade decorrente do próprio ser humano. O amor, neste sentido, é uma espécie de desejo. O desejo é uma tendência que inquieta o homem, fazendo-o querer possuir tudo aquilo que é distinto dele mesmo, tendo como fim último torná-lo feliz. Mas, para que o homem seja realmente feliz, é necessário que, através da virtude, ele ordene o seu amor-desejo em relação a todas as coisas e o oriente para Deus, único capaz de satisfazê-lo plenamente. No pensamento de Agostinho o amor é intrínseco ao ser do homem do qual não podemos separá-lo. E, se há um problema, este não diz respeito ao amor como tal, nem à necessidade de amar, mas unicamente à escolha do objeto a ser amado, ao valor ou intensidade que se dá ao objeto amado, pois em si ele é um bem. Dentro do princípio da ordem dos seres, o amor é o parâmetro na hierarquia de valores das coisas a serem amadas. Nesta hierarquia das coisas a serem amadas, Deus aparece em primeiro lugar: a Ele deve-se amar com todo amor. Para Agostinho a força maior da moral interior é o amor, expresso no duplo preceito da caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. PALAVRAS-Chave: Santo Agostinho, ética, amor, patrologia, felicidade.

v

ABSTRACT The present work, the ethics as element of social harmony in Saint Augustine, tries to demonstrate that love is the distinctive sign of the citizens of the Celestial City and the foundation of the morals not only individual but also of the human society and it aims the search of men’s happiness. Love generates the concordance that is the basis of a fair society in a social plan. That way, Augustine makes the social order a prolongation of the interior moral order, and the organization of men in society, based on love, does not have any purpose other than guaranteeing peace or true happiness. This dissertation is formed by three chapters: in the first chapter the paths of Saint Augustine’s life are described, and in him the “man Augustine” identifies himself, identifies the man’s humanity at any time or context. In the second and third chapters the principles of the Augustinian ethics and its social dimension that is love are approached. Studying the ethics as element of social harmony in Saint Augustine is studying the problem of love. For him, love comes within the human nature. It is a natural appetite, presupposed by the free will, which must guide him to God, illuminated by the natural light of reason. Love is, therefore, an activity due to the own human being. Love is, in this sense, a kind of desire. The desire is a tendency that disturbs the man, making him wish to possess all those things that are different from himself, having as a final objective to make him happy. However, for the man to be truly happy it is necessary that, through virtue, he organize his love-desire in relation to all the things, and guide him to God, the only one capable of fully satisfying him. In Augustine’s thoughts, love is intrinsic to the human being from whom it cannot be split. And if there is a problem, it cannot be concerned to love itself, nor to the necessity of loving, but only to the chosen object to be loved, to the value or intensity that is given to the loved object, because it is a gift itself. Within the principle of the order of the beings, love is the parameter for the hierarchy of values of the things to be loved. In this hierarchy God comes in first place. He must be loved with all efforts. For Augustine, the strongest power of the interior moral is love expressed in the double precept of charity: “You shall love the Lord your God with your whole heart, and with your whole soul, and with your whole mind, and with your whole strength; you shall love your neighbor as yourself.”

Keywords: Saint Augustine, ethics, love, patrology, happiness.

vi

RIASSUNTO

Il presente lavoro, L’etica come elemento di armonia sociale in Sant’Agostino,

cerca di dimostrare che l’amore è il segnale distintivo tra i cittadini della Città Celeste e il fondamento della morale tanto individuale come della società umana e ha per scopo la ricerca della felicità dell’uomo. L’amore genera la concordia che ad un livello sociale è la base di una società giusta. Così, Sant’Agostino fa dell’ordine sociale un prolungamento dell’ordine morale interna, essendo che l’organizazzione degli uomini in società, fondamentata sull’amore, non ha altra finalità che non sia garantire la pace o la felicità temporale degli uomini, con l’intento della pace eterna e della vera felicità.

Questa tesi è composta da tre capitoli. Nel primo capitolo è descrito i tre cammini della vita di Sant’Agostino, e in lui, “l’uomo Agostino”, si identifica l’uomo come umanità in qualsiasi tempo e contesto. Nei secondo e terzo capitoli si affronta i principi dell’etica agostiniana e la sua dimensione sociale che è l’amore.

Studiare l’etica come elemento dell’armonia sociale in Agostino è studiare il problema dell’amore. Per lui, l’amore è nella propria natura umana. Si tratta di un appetito naturale, pressuposto della libera volontà che deve, illuminata dalla luce naturale della ragione, orientarlo a Dio. L’amore è, perciò, un’attività derivante dal proprio essere umano. L’amore, in questo senso, è una specie di desiderio. Il desiderio è una tendenza che inquieta l’uomo, e lo fa possedere tutto quello che è distinto da lui stesso, tenendo come scopo finale farlo felice. Ma, purché l’uomo sia veramente felice, bisogna che attraverso la virtù lui comandi il suo amore-desiderio per tutte le cose verso di Dio, l’unico capace di soddisfarlo pienamente.

Nel pensiero di Agostino, l’amore è intrinseco all’essere dell’uomo dal quale non possiamo separarci. E, se c’è un problema, ciò non rispetta all’amore come tale, nè al bisogno di amare, ma soltanto alla scelta dell’oggetto ad essere amato, al valore o all’intensità che si dà all’oggetto amato, visto che in sé esso è un bene.

Dentro il principio dell’ordine degli esseri, l’amore è il parametro nella gerarchia di valori delle cose ad essere amate. Nella gerarchia delle cose ad essere amate, Dio apparve per primo: a Egli si deve amare con tutto l’amore. Per Agostino la forza maggiore della morale interna è l’amore, espresso nel duplice precetto della carità: “Amare Dio soprattutto e amare il prossimo come a se stesso”.

PAROLE-chiave: Sant’Agostino, etica, amore, patrologia, felicita.

vii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 01

CAPÍTULO I

SANTO AGOSTINHO: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E OBRAS ................................. 08

1.1 Santo Agostinho: conhecer-se para conhecer a Deus ................................................ 10

1.2 Santo Agostinho: o filosofar na fé através de suas obras literárias ............................ 37

CAPÍTULO II

PRINCÍPIOS DA ÉTICA AGOSTINIANA............................................................................. 39

2.1 O primado do amor...................................................................................................... 39

2.2 O amor e a noção agostiniana de ordem...................................................................... 42

2.3 O amor e a felicidade................................................................................................... 47

2.4 A moral interior: princípio do agir humano................................................................. 50

2.5 O amor e a experiência de Deus .................................................................................. 53

2.6 O amor e a ética do dever: princípio da moralidade agostiniana................................. 56

CAPÍTULO III

A DIMENSÃO ÉTICA E SOCIAL DO AMOR ...................................................................... 63

3.1 Ética social, prolongamento da moral individual ....................................................... 67

3.2 O amor enquanto fundamento ético de socialização do homem ................................ 69

3.3 Amar o próximo: a plenitude e as expressões do amor-caridade ............................... 70

3.3.1 Amar o próximo – os parentes........................................................................ 74

3.3.2 Amar o próximo – os amigos.......................................................................... 75

3.3.3 Amar o próximo – os pobres .......................................................................... 76

3.3.4 Amar o próximo – os inimigos ....................................................................... 79

3.3.5 Amar o próximo – os frutos............................................................................ 81

3.4 Fundamento da verdadeira justiça no Estado: o amor ................................................ 83

3.5 Finalidade imediata do Estado terreno: a ordenada concórdia ou a paz temporal...... 90

3.6 Fundamentos da ordenada concórdia ou paz temporal no Estado: a verdadeira

justiça.......................................................................................................................... 92

viii

3.7 A paz e a “guerra justa” na história ............................................................................ 95

Complemento: A “Paz justa” e o caráter social do Estado. ....................................... 97

3.8 Instrumento garantidor da ordenada concórdia ou paz temporal no Estado:

o poder temporal ...................................................................................................... 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 109

ANEXO 1

RELAÇÃO DE OBRAS DE AGOSTINHO EM ORDEM CRONOLÓLIGA 115

Relação das obras...................................................................................... 116

REFERÊNCIAS

Primárias.................................................... ....................................................................120

Secundárias ................................................................................................................... 121

Comentários sobre Santo Agostinho.............................................. ........ .......................121

Outras obras de apoio.......................................................................... .................... ......122

INTRODUÇÃO

Vivemos atualmente numa sociedade carente de sentido e de horizontes, por isso

sofremos as conseqüências mais terríveis nas mais diversas dimensões da vida humana. A

partir do pensamento de Santo Agostinho, pode-se explicitar uma crítica à modernidade1,

pois essa falta de sentido, deduz-se que proceda de um tipo de sociedade que criamos, que

eliminou os princípios e os fins absolutos; tudo ficou reduzido ao conhecimento empírico,

testável, deixando de lado pontos referenciais necessários à conduta humana. Questões

1 Na Filosofia Antiga o centro das atenções era o cosmo, isto é a physis – natureza. Quando os gregos tentam explicar por que existem livres e escravos, eles vão dizer que é a natureza que decidiu isso: é por natureza que uns são livres e outros são escravos; é por natureza que o homem manda na mulher etc. Na Idade Média a preocupação central era Deus: desde a Patrística (período dos Padres da Igreja, que foram homens que através dos seus escritos constituíram-se em líderes e pais espirituais tanto na teologia como na filosofia – entre os séculos II e VII), até a Escolástica (período do surgimento das escolas e caracterizado pela subordinação da filosofia à teologia – entre os séculos XI e XIV), a relação entre fé e razão foi pensada em três formulações: “creio porque é absurdo”, “creio para entender” e “entendo para crer”. Longo foi o debate em torno dessas formulações. Santo Agostinho (354 – 430) muito escreveu sobre este tema, para ele é preciso crer, pois a fé é necessária para o conhecimento da verdade religiosa e moral. Mas é preciso também usar a razão para que a adesão à fé não seja cega e meramente passiva. Santo Tomás de Aquino (século XIII) entende que fé e razão são modos diferentes de conhecer, mas não podem contradizer-se porque Deus é seu autor comum. Quando aparece uma oposição, é sinal de que não se trata de verdade, mas de conclusões falsas ou não necessárias. Nas universidades, estas questões não só eram expostas (expositio) pelo mestre, mas também debatidas com os alunos (disputatio). Na Filosofia Moderna há um deslocamento da problemática cosmológica e teológica para a antropológica. Nela o homem é a principal questão. Na modernidade aparece com força e como ponto de partida de toda a Filosofia a descoberta da subjetividade – primeiro ato do conhecimento do qual dependerão todos os outros, é a Reflexão ou Consciência de si. A consciência é, para si mesma, o primeiro objeto de conhecimento ou o conhecimento de que é capacidade de e para conhecer. O pensamento consciente de si, de sua força, capaz de oferecer a si mesmo um método e de intervir na realidade natural e política para modificá-la. A modernidade se caracterizou pelo fato de a razão humana erigir-se como critério último da verdade e, portanto, também da eticidade. Mesmo quando Deus não é negado, ele é colocado entre parênteses ou só é aceito nos limites da racionalidade humana. Elimina-se qualquer referência ao transcendente e passa-se a viver uma fragmentação do saber, das doutrina e dos valores. A modernidade ofereceu quatro grandes revoluções: a econômica, a cultural, a política e a social; porém não conseguiu cumprir o prometido. Por isso a crítica que se faz, hoje, é que a profecia prometida de dar ao homem a felicidade, não só não se cumpriu, assim como ele mesmo se enganou com totalitarismos inumanos, guerras, bombas atômicas, holocaustos etc. Para Agostinho o ser humano para viver bem socialmente e em harmonia consigo mesmo, necessariamente precisa submeter-se há uma vontade superior, isto é Deus.

2

fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana foram deixadas de lado,

tais como: Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? Por que existe o mal? O que é

que existirá depois desta vida? Por falta de um referencial maior percebe-se, hoje, a

dissolução do indivíduo, da família e da sociedade.

Os contrastes agudos entre as idéias e promessas e a realidade efetiva são cada vez

mais facilmente percebidos, enquanto se sonhava com um mundo em paz, agrava-se o ódio

e a violência nos mais diversos níveis. Ocorre, não obstante todo o inédito avanço

científico, a crescente consciência de um incisivo desconforto, de proporções desmedidas,

latente que atinge toda civilização.

A filosofia, mãe de todas as ciências, chega ao século XXI em uma situação penosa de

insegurança com relação a seus próprios fundamentos, e mesmo no que diz respeito à

justificação de sua própria existência. Os imensos avanços das ciências, por um lado, e a

crescente consciência da desagregação das certezas da tradição, por outro, colocam o

pensamento filosófico em um impasse de grandes proporções.2

Como a ética trata do agir do ser humano e o tema desenvolvido nessa Dissertação de

Mestrado versa sobre “A ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho” e,

tendo em vista que hoje percebemos grandes conturbações sociais e uma solidão cada vez

mais profunda no ser humano, mesmo os que moram em “megalópoles”, então essa

dissertação, não é só um desafio, mas também uma oportunidade para compreender o

homem de hoje, para alguns, denominado “pós-moderno”3. Neste sentido, compreender o

2 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. 3 Alguns pensadores dizem que a modernidade está em crise, e falam da pós-modernidade. São aqueles que dizem que a modernidade não é simplesmente antropocentrismo, mas é um antropocentrismo em que se aposta que os seres humanos podem, por sua própria força, criar um mundo perfeito. Esta capacidade é posta em cheque, pois dizem: Como vamos criar um mundo perfeito se dominando a natureza, o homem, provoca uma crise ecológica e também a crise social de uns dominando os outros. Outros afirmam que a cultura pós-moderna nasceu no século XX, nos grandes centros urbanos dos países ricos e industrializados. É uma cultura do tédio, da depressão, do trabalho massacrante e da vida sem sentido. O ensino não oferece mais uma visão global do mundo, uma síntese, mas conhecimentos parciais,

3

pensamento ético de Santo Agostinho será muito válido para poder visualizar um caminho

possível para a recuperação de certos aspectos do ser humano, pois “o modo de agir segue

sempre o modo de ser” (Aristóteles).

Já no primeiro capítulo, abordar-se-á os caminhos da vida de Santo Agostinho, através

de suas obras, de maneira especial As Confissões4, e nele, o “Homem Agostinho”

identifica-se o gênero humano, isto é, o homem enquanto humanidade, em qualquer tempo

e contexto. Quando, neste capítulo, descreve-se a vida de Santo Agostinho, não se pensa

numa história singular de uma vida de inquietudes, angústias, dúvidas, erros e acertos, mas

sim de cada um de nós, de nossas ansiedades e inquietudes, de nossas lutas e contradições

interiores, de nossas dores e alegrias. Perceber-se-á que apesar das conquistas alcançadas

ao longo da história, com seus avanços nas mais variadas áreas do conhecimento, o homem

continua inquieto, angustiado e carente de felicidade. Agostinho não se contentou em levar

uma vida medíocre, não se conformou com os relativismos éticos que o dissolviam numa

vida sem sentido, buscou, acreditou e encontrou o horizonte, a paz a segurança, enfim o

Ser-Deus, que tanto procurava. Talvez seja esta a questão principal para se discutir hoje o

especializados e fragmentários. As pessoas se sentem como baratas tontas e sem perspectivas. É que a modernidade não trouxe a felicidade. A pobreza aumentou. Os banqueiros e os grandes empresários tomaram o poder dos políticos e o Estado deixou de ser o juiz dos conflitos entre capital e trabalho. Neste contexto só o capital tem a palavra e o dinheiro manda no mundo. Ultimamente, em meio a mudanças tão aceleradas, as teorias pós-modernas, em suas várias formas de manifestação, também buscam compreender este homem que, entre tantos seres, não tem conseguido realmente ser sua totalidade. A própria razão, que se tornou o mito da modernidade, e todas as verdades cultivadas e vivenciadas durante séculos, tem sido questionada. Tão perseguida, tornou-se hoje, em muitos casos, fonte de exclusão e banalização e ao mesmo tempo em que é usada para gerar vida, tem gerado a morte. Alimentos são produzidos em quantidades nunca vistas e milhares morrem de fome; inventam-se aparelhos e máquinas nunca imaginados e poucos podem usufruí-los; o meio ambiente, que nos permite ter vida, tem sido destruído em ritmo irracional. Em meio a esse turbilhão, a pessoa humana continua a buscar formas de utilizar-se desse ser racional, que, afinal, faz parte de sua própria constituição, sem conseguir alcançar seu objetivo maior que é ser mais feliz e mais gente. Enfim, pode-se dizer que os conflitos, desigualdades, tensões sociais, revoluções no âmbito tecnológico e das comunicações, tudo isso determina a direção que a Filosofia tem de tomar na sua atual relação com o mundo. Trata-se da direção ética. É da melhor fundamentação possível do agir humano, da racionalidade desse agir ético que depende a legitimidade da Filosofia, hoje, porque é disso que depende o futuro do mundo. 4 Além das Confissões, utilizada desde o primeiro capítulo, far-se-á uso nos outros capítulos (segundo e terceiro) A cidade de Deus, pois nela encontra-se a essência do pensamento ético-político-social de Agostinho. Entretanto, como Agostinho é um pensador de gigantesca produção literária tomar-se-á outras de suas obras para enriquecer nosso tema, assim como muitos filósofos comentadores de seu pensamento.

4

porquê dessa dissolução ética.5 A dissolução ética em última instância nos remete para o

problema da dissolução ontológica, pois a maneira como expressamos a realidade depende

do que conhecemos e acreditamos. Mas a questão que o pensamento ético de Agostinho

nos remete é: O que conhecemos? No que acreditamos? Onde está nossa segurança? No

ter? No prazer? No poder? Será que teremos que trilhar penosamente o caminho, para em

última instância voltar para Deus? Haverá ainda tempo de uma regeneração individual e

coletiva?

Estas questões serão esclarecidas, através do pensamento de Agostinho, através do

segundo e terceiro capítulos, onde serão trabalhados os princípios da ética agostiniana e a

sua dimensão social que é o amor. Para ele a força maior da moral interior é o amor,

expresso no duplo preceito da caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo

como a si mesmo”.6 Esse amor terá a dupla função de constituir tanto o peso e a medida de

todos os fundamentos ético-morais do homem: “O meu amor é o meu peso. Para qualquer

parte que vá, é ele que me leva”7, como àqueles relativos à dimensão ético-política do

estado:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória de Deus, testemunha de sua consciência.8

5 Hoje, vive-se uma ditadura do relativismo, há uma ausência de objetividade e uma constante mudança de valores. Pelo excessivo valor que se tem dado nos últimos tempos, à pessoa, suas atividades e sentimentos, tem vindo como conseqüência uma forte dose de subjetivismo e uma perda de objetividade. Se as coisas, as circunstâncias e as opções mudam segundo varia o sentimento da pessoa, não há nada absoluto, nem fixo, nem objetivo. Os valores mudam e são novos sempre, como a moda de temporada. Falta uma fundamentação em tudo; a vida é superficial, valoriza-se as aparências, o contingente e o precário. É a aparição da chamada “cultura light”. E o mais delicado de tudo: a atitude ética se rege pela norma de viver o momento presente. Conseqüências disso: tudo muda, tudo se acelera e nada está em seu lugar. Produz-se assim uma sensação de precariedade, de insegurança, de vazio e insatisfação, de instabilidade. Porque tudo é limitado, contingente, passageiro. Por isso se fala hoje de uma cultura móvel. Não há absolutos. 6 Mt 22, 37-39. 7 AGOSTINHO, Santo. Confissões; tradução Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1997, XIII, 9,10. Nas próximas indicações referentes a esta obra indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo livro, capítulo e parágrafo. 8 AGOSTINHO, santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Trad. Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003. (Coleção Pensamento Humano). XIV, 28. Nas próximas

5

Assim como o amor (caridade) é a fonte da moral interior individual, tendo como meta

a busca da felicidade do homem, da mesma forma acontece na vida social. A caridade gera

a concórdia que num plano social é a base de uma sociedade justa. Portanto, Agostinho faz

da ordem social um prolongamento da ordem moral interior, onde a organização dos

homens em sociedade (Estado), fundamentada no amor, não tem outra finalidade senão

garantir a paz temporal ou a felicidade temporal dos homens, com vista à paz eterna ou

verdadeira felicidade.

Tendo como máxima aristotélica que a maneira como expressamos a realidade depende

do que acreditamos, então é fundamental resgatar o valor dos princípios e fins norteadores

da conduta humana, que para Agostinho é a reta ordem do amor e esta reta ordem do amor

supõe a primazia de Deus. Para que o homem alcance a felicidade, Agostinho propõe uma

moral interior orientada para a reta escolha das coisas a serem usadas e das coisas a serem

fruídas. Para ele, devemos gozar unicamente em Deus. Das coisas terrenas devemos apenas

utilizá-las de forma reta, para merecermos o gozo em Deus. Assim, somente se o homem

viver esta reta ordem do amor poderá atingir a harmonia individual e coletiva e salvar o

planeta, pois da maneira que segue a sociedade, a vida do planeta corre um grande risco de

destruição. Estamos, dessa forma, colocando em perigo a existência de uma vida futura.

Nestes, segundo e terceiro capítulos perceber-se-á que para Agostinho, cabe aos

seres humanos, a livre escolha de construir ou não um mundo mais justo e solidário. Mas

esta escolha deve ser a partir de dentro, do íntimo de cada pessoa. O pensamento cristão

insiste na interiorização da moralidade e especificamente em Santo Agostinho, de tal modo

que os valores cívicos não servem mais como referência fundamental para nossa

indicações referentes a esta obra indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo livro, capítulo e parágrafo.

6

existência.9 Devemos buscar na consciência e em sua relação com a verdade o caminho

para a compreensão de nossa liberdade. Com isto desmorona o ideal da pólis10: “A partir

da descoberta da interioridade da moral passamos a ser membros, em primeiro lugar, de

uma comunidade racional que se constrói a partir de princípios derivados da lei divina,

expressos pela dimensão prática da razão”.11

Trabalhar o tema da ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho,

tem como objetivo buscar uma direção mais segura para o ser humano que constantemente

é bombardeado por agentes externos que provocam inquietações, desajustes estruturais e

conflitos sociais.

O tema aqui proposto e o estudo das obras de Santo Agostinho, que no anexo 1

(um) estão relacionadas em ordem cronológica, são uma oportunidade para compreender

melhor a filosofia, principalmente o início da Idade Média, ver como ocorreu a mudança

do pensamento grego para o pensamento cristão. Além do interesse filosófico que o

pensamento de Santo Agostinho desperta nos estudiosos e filósofos, também é importante

para os que buscam compreender o pensamento cristão, desde suas origens, pois a

influência do pensamento agostiniano foi decisiva na formação e no desenvolvimento da

9 Uma antiga estória cristã sobre as primícias da liberdade na verdade da fé, diz o seguinte: “Quando a Fé liberta a vida, não se presta atenção nas pessoas dignas nem se procuram homens fiéis. Os superiores são como os galhos mais altos das árvores e os inferiores são como os animais da floresta. Honestos e sinceros, os homens nem têm idéia de que são cumpridores de seus deveres. Amam-se uns aos outros, sem saber quem é o próximo nem imaginam que estão cumprindo o maior de todos os mandamentos. Não enganam ninguém e não se têm em conta de pessoas confiáveis. Convivem na liberdade de dar e receber e não se sentem generosos. Pode-se fiar deles e ignoram o que seja fidelidade. Seus feitos não deixam vestígios e suas obras não são alardeadas. A história nem suspeita de suas vidas” Citação encontrada na obra: AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Tradução de Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003. Vol. I – Introdução. p. 19-20. 10 Pólis, para os gregos, referia-se ao conjunto das pessoas que viviam na cidade. A cidade era um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. Os cidadãos ganhavam destaque na hierarquia social, uma vez que cidadão era quem pensava, ocupava-se com a arte, com a filosofia ou com a vida intelectual. Por sua vez, as mulheres, as crianças, os estrangeiros e os escravos não participavam e não decidiam, pois não eram considerados cidadãos. Pólis, também, é a cidade não como conjunto de edifícios, ruas e praças e sim como espaço cívico, ou seja, entendida como comunidade organizada; formada por cidadãos (polítikos), isto é, pelos homens livres e iguais nascidos em seu território, portadores de dois direitos, inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (a igualdade no direito de expor e discutir em público, opiniões sobre ações que a cidade deve ou não realizar). 11 BIGNOTTO, N. O conflito das liberdades: Santo Agostinho. In: Síntese nova fase 19 (58): 343, 1992.

7

filosofia cristã no período medieval. E não só nesse período, mas também na modernidade

muitos pensadores receberam influência de suas obras. Suas obras atravessaram os séculos,

influenciando desde as pessoas mais simples até aos mais eruditos.

Enfim, compreender a filosofia e a teologia de Santo Agostinho será uma

oportunidade única no sentido de uma verdadeira realização pessoal e de uma vida mais

serena e humana.

CAPÍTULO I

SANTO AGOSTINHO: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E OBRAS

Santo Agostinho, embora não conhecesse diretamente os clássicos gregos1, fora,

contudo, um homem de cultura grega no sentido de que seu mundo espiritual era um

mundo essencialmente marcado pela cultura grega. Quando assumiu a fé cristã2, passou

por um formidável desenvolvimento intelectual, no qual, pouco a pouco, às categorias

históricas vão predominar sobre as categorias cósmicas. O cristianismo significou uma

ampliação de sua busca filosófica, uma vez que, do ponto de vista do conteúdo, ele

considera o cristianismo como a verdadeira sabedoria, a filosofia suprema.3 O que há de

original é um caminho novo que conduz ao fim, ou seja, o encontro de um absoluto

transcendente no seio da razão como origem radical e fim da razão mesma. Esse novo

caminho rearticula, pelas raízes, a herança recebida da filosofia grega.

Santo Agostinho, depois de levar uma vida dissoluta, passar por violenta crise

espiritual e se converter à religião cristã, acabou por dar valiosíssima contribuição à

filosofia, ou seja, a fusão do cristianismo e do neoplatonismo.4 Isso não só proporcionou

1 Seu conhecimento do grego era insuficiente de tal modo que ele não teve acesso, no original, às obras dos grandes filósofos gregos. Assim, por exemplo, as posições fundamentais de Platão e Aristóteles lhe chegaram ao conhecimento por intermédio da tradução da obra de Plotino ou de Cícero. 2 Para ele, de nenhuma forma, significa uma renúncia à razão, mas a abertura do espaço para uma compreensão mais profunda de tudo. 3 O cristianismo é o caminho universal de salvação, a filosofia para qualquer um. Fé e razão não só não se separam, mas se condicionam mutuamente (Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião; tradução de Nair de Assis Oliveira, São Paulo: Paulus, 2002, III, 3. Nas próximas indicações referentes a esta obra indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo). 4 Corrente filosófica do séc. III da era cristã, fundada por Antônio Sacas e divulgada por Plotino e seus seguidores Porfírio, Iâmblico e Proclo (séc. V). “O Neoplatonismo se caracteriza por uma interpretação espiritualista e mística das doutrinas de Platão, com influência do estoicismo e do pitagorismo. Segundo o neoplatonismo, o real é constituído por três hipóstases – o Uno, a Inteligência (Nous) e a Alma, sendo que as duas últimas procederiam da primeira por emanação. É considerado um sistema um tanto obscuro, embora tenha tido grande influência no início da formação do pensamento cristão, sobretudo devido a seu

9

uma sólida fundamentação intelectual ao cristianismo, como o vinculou à tradição

filosófica grega.

Neste primeiro capítulo enfocar-se-á que toda filosofia agostiniana é uma resposta

as grandes preocupações vividas pelo homem Agostinho (a vida de Agostinho resume, de

forma precisa, a vida de todos os homens de qualquer tempo e espaço – o homem enquanto

humanidade); as suas inquietações interiores (preocupação ética e antropologia filosófica)

e as grandes questões religioso-político-sociais suscitadas em sua época (filosofia social).

Pode-se dizer que toda a ética filosófica de Santo Agostinho gira em torno do problema da

felicidade do homem, e que esta se confunde com o problema do homem Agostinho, o

problema de sua dispersão, inquietude e busca da felicidade: “Tornei-me um grande

problema para mim mesmo e perguntava à minha alma por que estava tão triste e

angustiado, mas não tinha resposta”.5 O centro de sua especulação filosófica coincide

verdadeiramente com sua personalidade. Sua filosofia é uma interpretação de sua vida.

Pretender-se-á apresentar, a seguir, de forma sintética a vida de Santo Agostinho e

o contexto histórico em que viveu. Ao narrar a sua história singular, Agostinho acaba

falando da história de cada um de nós, de nossas ansiedades e inquietações de nossas lutas

e contradições interiores, de nossas dores e alegrias. “Santo Agostinho é humano como

nós; ‘é homem’. E, como nós, conhece a tragédia de viver longe de Deus, a tristeza do

pecado, a dor da ausência e a festa do regresso. Seu relato obriga-nos a reler o nosso

espiritualismo” (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 194). Quanto aos fundamentos do neoplatonismo, são os seguintes: “1º - caráter de revelação da verdade, que, portanto, é de natureza religiosa e se manifesta nas instituições religiosas existentes e na reflexão do homem sobre si próprio; 2º - caráter absoluto da transcendência divina: Deus visto como o Bem, está além de qualquer determinação cognoscível e é julgado inefável; 3º - teoria da emanação, ou seja, todas as coisas existentes derivam necessariamente de Deus e vão-se tornando cada vez menos perfeitas à medida que se afastam d’Ele; conseqüentemente o mundo inteligível (Deus, Intelecto e Alma do mundo) é distinto do mundo sensível (ou material), que é uma imagem ou manifestação do outro; 4º - retorno do mundo a Deus através do homem e de sua progressiva interiorização, até o ponto do êxtase, que é a união com Deus” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. da 1. edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 710-711). 5 Confissões IV, 4, 9.

10

próprio ser, a dolorosa experiência da difícil arte de viver”.6 Tal empreendimento

apresenta-se, primeiro, como uma contribuição a todo aquele que deseje conhecer a

biografia de Agostinho e, segundo, como forma de contextualizar a temática da ética que é

inequivocamente uma ética do amor, mais precisamente caritas7, que só depois de uma

longa luta interior ele consegue viver e entender:

Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz. 8

1.1 Santo Agostinho: conhecer-se para conhecer a Deus9

6 LUCAS, Miguel. Entrevista com Santo Agostinho: a caminho do novo milênio. São Paulo: Loyola, 1997, p. 06. 7 Charitas, palavra que vem do latim e que quer dizer caridade. “Caridade é o amor para os cristãos, que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus; ágape, amor-caridade” (In: DE BONI, Luiz Alberto. Idade média: ética e política. 2ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996 p. 41). “Este falso amor que se prende ao mundo e que, por este motivo, o constitui, e que, como tal, é mundano, Santo Agostinho chama cobiça (cupiditas), e ao amor justo que aspira à eternidade e ao futuro absoluto, caridade (caritas)” (ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho; tradução Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 24-25). Em grego, o termo usado pelo Evangelista João é único: ágape. Na versão latina manuseada por Agostinho, o termo latino usado era apenas: dilectio. A Vulgata de são Jerônimo traduziu o ágape, ora por dilectio, ora por caritas. Santo Agostinho introduz uma terceira expressão: amor. O sentido que Agostinho utiliza esses três termos são: 1 – Amor: pode ser tomado como amor ao mal ou ao bem. Presta-se a antíteses. Em A Cidade de Deus (XIV, 28) ele fala sobre os dois amores: o amor a Deus e o amor a si mesmo, que estão na origem das duas cidades. Para ele há duas espécies de amor que se excluem mutuamente. São incompatíveis: o amor a Deus e o da criatura; este, se desregrado, é perversão daquele amor que é movimento da alma para Deus. O amor das coisas criadas é legítimo, mas não pode nos afastar de Deus, antes deve conduzir-nos até ele. 2 – Dilectio: este termo para Agostinho designa habitualmente o amor das realidades espirituais, é o amor bom e tem o Espírito Santo por princípio. É amor de benevolência, de oblação; não de cuncupiscência, obsessivo, de posse ou destruição do outro. 3 –

Caritas: Agostinho identifica este termo explicitamente com a virtude teologal, se bem que também o empregue como sinônimo de dilectio. Também chama de caridade ao amor natural e lícito de uns para com os outros, põe em relevo nessa caridade natural a gratuidade e desinteresse, que ele apresenta como característica essencial da verdadeira caridade. 8 Confissões X, 27, 38. 9 Cf. AGOSTINHO, Santo. Solilóquios; tradução, introdução e notas Adaury Fiorótti. São Paulo: Paulus, 1998, II, 1, 1. Nas próximas indicações referentes a esta obra indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo.

11

Podemos conhecer a vida de Santo Agostinho através de diversas obras, dentre

elas, destacam-se: a “Vita Augustinus” (Vida de Santo Agostinho), escrita pelo primeiro

biógrafo do pensador, o bispo Possídio10, um dos amigos com quem Agostinho conviveu

desde o mosteiro de Tagaste, onde escreveu suas centenas de cartas epistolares e,

principalmente, sua obra As Confissões, que aparece sob forma de autobiografia.

Aurélio Augustinus11 (Santo Agostinho) nasceu em Tagaste12, província romana

da Numídia na África romanizada (hoje chamada Souk-Ahrás, na atual Argélia, Norte da

África), em 13 de novembro de 354.

Santo Agostinho nasceu em meio a uma família dividida. Seu pai, Patrício, um

africano romanizado, era um curialis, ou seja, conselheiro municipal do ordo

splendissimus de Tagaste13. Além de funcionário público, era pequeno proprietário de

terras. Era um pagão de caráter duro e difícil, às vezes brutal e violento. Patrício se

converteu ao cristianismo pouco antes de morrer, em 371. Sua mãe, Mônica (Santa

Mônica), mulher humilde e piedosa, teria um papel marcante na vida de Agostinho.

Importante personagem de As Confissões e presente em outras. Na época em que

Agostinho nasceu, sua mãe tinha 22 anos de idade, enquanto seu pai já era um homem

idoso. Além de Agostinho, Patrício e Mônica tiveram mais dois filhos: Navígio, que se

converteu juntamente com Agostinho, mas que morreu jovem, e uma irmã de nome

Perpétua que, depois de enviuvar, entrou para a vida religiosa, chegando à superiora de um

10 POSSÍDIO. A Vida de Santo Agostinho. Trad. Monjas Beneditinas. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. 11 “O Segundo nome de Aurelius nunca aparece nas suas correspondências, mas lhe é dado pelos seus contemporâneos, ou seja, apesar de ter ficado conhecido como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho, este nunca assinava suas cartas e documentos com seu segundo nome Augustinus, mas apenas o primeiro Aurelius” (COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho: um Gênio intelectual a serviço da fé. Porto Alegre: EDIPUCR, 1999, p. 15). 12 Na época de Agostinho, Tagaste era uma cidade próspera culturalmente e economicamente, sendo um dos ricos celeiros de alimentos, especialmente olivas, da África. 13 Cf. HAMMAN, A. G. Santo Agostinho e Seu Tempo. Trad. Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 13. Outros autores dizem que o pai de Agostinho era um tenuis municeps, quer dizer, um pequeno burguês com magros recursos.

12

convento agostiniano feminino em Hipona.14 Alguns autores trazem notícias de uma

segunda irmã, de que não se sabe o nome. Entre esses autores, temos Hylton Rocha, que

assim nos diz: “Eles tiveram pelo menos dois filhos e duas filhas. Entre esses, Navígio, que

se converteu juntamente com Agostinho, e uma irmã que foi superiora do mosteiro de

Hipona”.15

Pelo que tudo indica, a mãe de Agostinho nasceu na Numídia, Norte da África, e

era de descendência bérbere, tendo seu nome, Mônica, atribuído a uma das divindades

autóctones, Monnica.16

Após o nascimento, Agostinho ficou acometido por uma febre muito alta, esteve à

beira da morte. Sua mãe, preocupada em purificar-lhe do pecado original, procurou a

Igreja, e este seria marcado com o sinal-da-cruz, o que significa que fora inscrito na lista

dos catecúmenos. Mas, passado o perigo, o batismo foi adiado. Mais tarde, Agostinho

lamenta ter tornado esse seu primeiro batismo em vão, pois, “como se fosse inevitável que,

vivendo, devesse continuar a corromper-me, sem dúvida porque se pensava que a

responsabilidade pelas faltas cometidas depois do batismo é ainda mais grave e

perigosa”.17

Agostinho falava púnico ou cartaginês, a língua natural de sua terra, e latim, a

língua do Império Romano. Mais do que isso, chegou a escrever e pronunciar sermões em

púnico, para melhor atingir os fiéis, quando bispo de Hipona. Pois, “mesmo cidades como

Hipona falavam púnico, dificilmente conseguindo seguir um sermão em latim”.18

14 RUBIO, Pedro. Toma e Lê!: síntese agostiniana. São Paulo: Loyola, 1995, p. 392. 15 ROCHA, Hylton Miranda. Um Coração Inquieto: vida de Santo Agostinho narrada para o homem de hoje. São Paulo: Paulinas, 1979, (Coleção Cidadãos do Reino) p. 24. 16 Cf. HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 13 e ROCHA, Hylton Miranda. Mônica Uma Mulher Forte: vida de santa Mônica narrada para o homem de hoje. 3. ed. São Paulo: Ed. Paulinas, 1981, (Coleção Cidadãos do Reino) p. 5-6. 17 Confissões I, 11, 17. 18 HAMMAN. A. G. op. cit., 1989, p. 10.

13

Quanto às características físicas de Agostinho: “Não era de grande estatura: o

hábito parecia grande demais para seu físico”.19 Em outra fonte, Carlo Cremona, referindo-

se às palavras agressivas de Juliano de Eclama, bispo pelagiano, vemos o que este disse de

Agostinho: “És um negro, coitado, filho de uma beberrona!”20

Desde criança, Agostinho desenvolveu grande paixão por jogos, o que iria

atrapalhar o gosto pelos estudos: “eu não gostava do estudo e detestava ser obrigado a

ele”.21 Por conta disso, foi obrigado a estudar, sendo muitas vezes castigado para tal.

Agostinho lembra esses momentos e nos diz: “era pequeno ainda, mas era grande o fervor

com que eu te implorava para que me evitasses os castigos na escola (...) Não que nos

faltasse memória ou a inteligência, pois nos dotaste, Senhor, com o suficiente para a nossa

idade. O fato é que gostávamos de nos divertir, e o mesmo faziam, é verdade, aqueles que

nos castigavam.”22

Santo Agostinho recebeu, em Tagaste, seus primeiros estudos de gramática,

aritmética, latim e um pouco de grego, língua esta que nunca chegou a dominar bem.

Vemos na obra As Confissões o lamento por não ter aprendido grego e diz: “Ainda hoje

não sei explicar bem a causa da minha repugnância pelo estudo do grego, que tentavam

inculcar-me desde criança”.23 Um pouco mais adiante afirma: “Outrora, quando menino,

nem mesmo do latim eu conhecia alguma coisa; no entanto, eu aprendi, com um pouco de

atenção, sem temores nem castigos e ameaças, impelido pela necessidade que sentia no

coração de exprimir meus pensamentos”.24

19 CREMONA, Carlo. Agostinho de Hipona: a razão e a fé. Trad. Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 64. 20 CREMONA, Carlo. Op.cit., 1990, p. 240. “O fato de Juliano ter se referido a Mônica como beberrona está, certamente, associado ao fato de que em “As Confissões”, cap. IX, 8, 17-18. Agostinho ter narrado que sua mãe Mônica desde jovem adquiriu o hábito de tomar vinho, e que repassara o mesmo para seus filhos” (COSTA, Marcos Roberto Nunes, op. cit., 1999, p. 20). 21 Confissões I, 12, 19. 22 Ibid., I, 9, 14-15. 23 Ibid., I, 13, 20. 24 Ibid., I, 14, 23.

14

Mesmo com dificuldades em aprender o grego, Agostinho gostava das poesias da

mitologia grega na versão latina, e já na infância sabia de cor muitos versos de Virgílio,

poeta de sua predileção, que seria citado por este em diversas de suas obras. Com o passar

do tempo desenvolveria o gosto pelos poetas e historiadores, especialmente Varrón25, que

teria grande influência no seu pensamento.

No ano de 365, com 11 anos de idade, foi enviado a uma cidade maior (Madaura),

cerca de 30 quilômetros de Tagaste, considerada cidade intelectual da região, para estudar

educação geral (Literatura e Gramática). “De acordo com a tradição, os autores do

programa (dentre eles: Terêncio, Plauto, Sêneca, Salústio, Horácio, Cícero, etc) eram

estudados sob quatro aspectos: lectio (leitura em voz alta com ensino de dicção); enarratio

(explicação dos textos); emendatio (análise gramatical e literária) e judicium (estudo de

conjunto). Ao mesmo tempo, estudavam o grego”.26

Bem sucedido na cidade de Madaura, Agostinho começa a brilhar entre seus

colegas, e os mestres prediziam-lhe um futuro brilhante. Em contrapartida, sua conduta

moral foi, aos poucos, decaindo, na busca de prazeres mundanos. O ambiente intelectual de

Madaura fizera esquecer, pouco a pouco, os ensinamentos cristãos que recebera de sua

mãe. Agostinho lembra esses momentos com pesar e diz:

Eu me encontrava, pobre menino, no limiar dessa escola de moral (...) Eu não percebia o abismo de ignomínia em que me atirava, longe de tua presença. Diante de ti, o que havia mais indigno do que eu? Eu desagradava até mesmo àqueles homens, ao enganar com inúmeras mentiras o pedagogo, os mestres e pais, tão grande era o meu amor pelo jogo, a minha paixão pelos espetáculos frívolos e a mania de imitar os atores. Eu furtava da despensa e da mesa de meus pais, ora impelido pela gula, ora para ter com que pagar aos companheiros, que vendiam seus jogos, mas que se divertiam tanto quanto eu. Muitas vezes eu cometia

25 Marco Terêncio Varrón (116-27 a. C.), amigo de Cícero, grande erudito e escritor latino. Escreveu uma extraordinária quantidade de obras sobre: história, filosofia e sobre as artes e a cultura romana, das quais se conservam poucas atualmente. Agostinho cita diversos escritos de Varrón em algumas de suas obras, principalmente em: A Ordem (2, 12.35; 2, 20.54) e A Cidade de Deus (4, 6-7; 6,3-5; 7; 18 e 19, 1-3). 26 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit., 1989, p. 19

15

fraudes no jogo para conseguir vitórias, dominado pelo tolo desejo de superioridade sobre os outros.27

No início de 370, Agostinho volta para casa dos pais em Tagaste, para um período

de férias, que duraria quase um ano. Seus pais se preparavam economicamente para o

enviar a Cartago onde faria os estudos superiores.

De férias em Tagaste, Agostinho continua sua vida de desfrutes, praticando uma

série de desmandos junto com outros amigos jovens, como por exemplo o famoso “roubo

das pêras” narrado por ele em As Confissões.28

Foi naquela época que iniciou, e manteve

até os trinta anos, um romance com uma mulher de condições modestas, uma vendedora

de violetas, chamada Melânia, com a qual, em 372, um ano após a morte de seu pai, veio a

ter um filho chamado Adeodato (que significa “dado por Deus”). Sobre isso, Agostinho

nos confessa:

No entanto - miserável que sou! – eu me abandonava com furor à torrente das paixões que me afastavam de ti; eu transgredia todas as tuas leis, sem escapar naturalmente de teus castigos. Quem dos mortais conseguiria fazê-lo? Sempre estavas presente em tua severa misericórdia, entremeando de amargos desgostos os meus prazeres ilícitos, a fim de que eu aprendesse a procurar a alegria sem ofender-te.29

No final do ano de 370, com 16 anos de idade, depois de quase um ano de

ociosidade e vícios, Agostinho seria enviado a Cartago, capital de uma das províncias do

Império Romano na África do Norte, para fazer seus estudos superiores, que

contemplavam o seguinte currículo: retórica, dialética, direito romano, música, geometria e

matemática. A ida para essa cidade só foi possível graças à ajuda de um benfeitor amigo da

família, o mecenas Romaniano30.

27 Confissões I, 19, 30. 28 Confissões II, 4, 9. 29 Ibid., II, 2, 4. 30

“Romaniano – Homem rico de Tagaste. Pagou os estudos de Agostinho em Cartago. Mostrando sua gratidão, Agostinho tomou a seu cargo a educação de Trigécio e Licencio, filhos de seu mecenas” (RUBIO, Pedro. Toma e lê! Síntese Agostiniana. Ed. Loyola, São Paulo, 1995, p. 394).

16

Neste território, Cartago era a maior cidade do ocidente latino, depois de Roma.

Sua importância era tal que recebeu o nome célebre de “Carthago Veneris” (Cartago de

Vênus). “Os romanos haviam reconstruído Cartago graças à prosperidade africana. César e

Augusto a haviam povoado com colonos procedentes da capital e das províncias da Itália,

fazendo-a uma verdadeira Roma de ultramar”.31

Em Cartago, Agostinho, chegou totalmente pervertido e logo passou a fazer parte

de um grupo de jovens que se autodenominavam “demolidores”, os quais arrumavam

confusão em toda parte. Seu temperamento fogoso lançou-o à busca dos prazeres:

Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilícitos. Ainda não amava, e já gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por não ser bastante miserável (...) Era para mim mais doce amar e ser amado, se eu pudesse gozar do corpo da pessoa amada. Assim, eu manchava as fontes da amizade com a sordidez da concupiscência e turbava a pureza delas com a espuma infernal das paixões.32

Vivendo uma vida frívola, logo foi arrastado para os teatros, para o prazer

dramático, pelo qual tinha uma certa paixão desde criança quando desenvolveu o gosto

pela mitologia e historiografia grega. “Extasiavam-me os espetáculos teatrais, que

espelhavam copiosamente as minhas misérias e alimentavam a minha fogueira”.33

Embora passando por essa realidade de confusões e desvios, Agostinho dedica-se

aos estudos e, em pouco tempo, já era o primeiro da escola. Com sua inteligência brilhante

e a influência dos pais que lhe desejavam um futuro promissor, Agostinho sonhava em

formar-se em Direito, e sua facilidade de argumentação e de retórica lhe garantiam tal

carreira. Mas a morte do pai, Patrício, em 371, perturbaria os planos de Agostinho, e só

graças à ajuda do seu benfeitor, Romaniano, pôde continuar seus estudos em Cartago.

31 HAMMAN, A. G. op. cit., 1997, p. 11 32 Confissões III, 1, 1. 33 Ibid., III, 2, 2.

17

Pelos poucos escritos dedicados ao pai, percebe-se que Agostinho não o nutria

com grande paixão. Em As Confissões, pouco comenta a morte deste, diferentemente da

morte de sua mãe a quem dedica várias páginas para narrar o fato.

Já tendo completado seus 19 anos, em meio aos estudos em Cartago, conheceu e

leu a obra “Hortensius”34 de Cícero. Neste livro, o velho tribuno, desiludido das suas

ambições políticas, volta-se para a filosofia e exprime suas tristezas e suas alegrias na

meditação dos problemas eternos. Esta obra despertava-lhe o gosto pela filosofia, um amor

intenso pela verdade. Em As Confissões Agostinho fala da importância que teve o

“Hortensius” em sua vida.

Seguindo o programa normal do curso, chegou-me às mãos o livro de tal Cícero, cuja linguagem - mas não o coração – é quase unanimamente admirada. O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas aspirações e desejos. Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria. Começava a levantar-me para voltar a ti.35

Este livro de Cícero teve o poder de despertar Agostinho do marasmo em que

vivia. Foi uma espécie de revelação que o levou a defrontar-se com as verdades eternas;

verdades estas que o perturbariam até sua conversão. Entretanto, naquele momento, o

famoso livro não foi capaz de dar a paz que Agostinho tanto procurava em seu coração

inquieto, pois, por mais que tivesse se desviado da religião cristã, seu coração fora

marcado pelo cristianismo, sua infância fora marcada pelas palavras de Cristo,

pronunciadas pela boca de sua mãe. Por isso, Agostinho, ao ler a obra de Cícero, lamenta

não ter encontrado nela o nome de Cristo: “Mas, no meio de tanto fervor, havia uma

circunstância que me mortificava: a ausência de Cristo no livro”.36

34 Neste livro, em diálogo, de que, hoje, só se conhecem fragmentos, Cícero respondia às dificuldades de Hortênsio contra a filosofia. 35 Confissões III, 4, 7. 36 Ibid., III, 4, 8.

18

Sem o nome de Cristo no “Hortensius” Agostinho vai à procura das Sagradas

Escrituras: “Resolvi por isso dedicar-me ao estudo das Sagradas Escrituras, para conhecê-

las”.37 Fato que o deixou decepcionado, pois diante da majestade da obra de Cícero, a

Bíblia parecia indigna e modesta: “Tive a impressão de uma obra indigna de ser comparada

à majestade de Cícero. Meu orgulho não podia suportar aquela simplicidade de estilo. Por

outro lado, a agudeza de minha inteligência não conseguia penetrar-lhe o íntimo”.38

Naquele momento, a Bíblia não preenchia o coração inquieto de Agostinho. Seu espírito

não encontraria repouso enquanto não encontrasse a verdade.39

Por causa dessa experiência frustrada da leitura da Bíblia, em sua angústia e ânsia

de encontrar a verdade, Agostinho foi procurá-la em outros lugares. Foi aí que entrou para

a seita gnóstica dos maniqueus40, onde permaneceria por nove anos (374-383): “Caí assim

nas mãos de homens desvairados pela presunção, extremamente carnais e loquazes”.41

37 Ibid., III, 5, 9. 38 Id. 39 “A incapacidade de pensar, querendo pensar o meu Deus, como uma coisa diferente de uma massa corpórea, já que me parecia que nada existisse sem um corpo, era a suprema e quase única razão do meu inevitável erro” (Confissões 5, 10, 19). Então, para Agostinho, o materialismo lhe pareceu o único modo de conhecer a realidade. Foi essa razão, entre outras, que o impediu de aceitar a encarnação verdadeira e real de Jesus Cristo. “Nosso próprio Salvador, teu Filho único, eu o imaginava como se proviesse da massa do teu corpo de luz para a nossa salvação (...) Mas eu não conseguia ver como poderia unir-se à carne, e ao mesmo tempo não se contaminar, este ser que eu imaginava” (Confissões 5, 10, 20). Esta concessão do materialismo foi verdadeiramente profunda enquanto não se libertou com a leitura dos neoplatônicos e escutando as pregações de Ambrósio em Milão. Assim encontrou a solução dos dois problemas: a espiritualidade do ser e a origem do mal. Da leitura dos livros dos neoplatônicos, Agostinho trouxe a luz para superar o materialismo e para liberar o problema do mal. Ele superou o materialismo com a distinção proposta entre o mundo sensível e o mundo inteligível, e com o convite à interiorização feita pelos mesmos. Embora a filosofia foi de muita utilidade para Agostinho, foi somente na Igreja, e a partir da autoridade da revelação, que ele encontra o valor absoluto e sempre válido, isto é Deus. “O problema do mal e do livre-arbítrio suscita, pois, no horizonte da reflexão sobre a idéia da ordem e da beatitude, a questão fundamental sobre o fim objetivo último da ordem, que é igualmente seu princípio: a questão de Deus. Como tal, Deus é necessariamente o objeto supremo da beatitude, e é nessa supremacia absoluta, a nós dada a conhecer pela mediação cristológica, cuja ausência é segundo Agostinho, a grande e insanável falha da ascensão neoplatônica (Confissões, VII, 9, 13-14), que a metafísica da ordem e o seu prolongamento ético na doutrina da beatitude encontram o fundamento último” (VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia IV, Introdução à Ética Filosófica 1. Edições Loyola: São Paulo, 1999. p. 192). 40 Do ponto de vista doutrinal, o maniqueísmo é uma seita gnóstica que mistura seitas orientais, filosofia grega e religião judaico-cristã. Sua tese fundamental consiste na afirmação de dois princípios ontológicos originários do mundo. Costa, Marcos Roberto Nunes (op. cit., 1999, p. 35ss), faz um estudo muito profundo sobre o maniqueísmo. 41 Confissões III, 6, 10.

19

Ao fazer a opção pelo maniqueísmo, Agostinho refletia sua angústia na busca de

uma paz de espírito. De certa forma, o maniqueísmo respondia, pelo menos num primeiro

momento, às grandes preocupações de sua vida: encontrar uma explicação ou justificativa

para seus erros e contradições, a força que o impulsionava a praticar o mal.42

O maniqueísmo era uma seita filosófico-religiosa que se originou na Pérsia,

fundada por Mani, que misturava doutrinas de Zoroastro com o cristianismo. Sua tese

fundamental consistia em afirmar a existência de dois princípios eternos, criadores do

Bem e do Mal, que continuam em luta no mundo. Trazendo isso para a prática, o

maniqueísmo afirmava que o mal que está em nós, ou que cada um que o pratica, não é por

responsabilidade própria, mas por culpa do princípio do mal. Na época, essa idéia

satisfazia as angústias de Agostinho, uma explicação fácil para seus problemas morais.

Na obra As Confissões, Agostinho fala do maniqueísmo como uma doutrina

obscura, confusa e enganadora, dizendo:

Suas palavras traziam as armadilhas do demônio, numa mistura confusa do teu nome com o de nosso Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo consolador (...) Repetiam: ‘Verdade, verdade’! E me falavam muito dela, mas não a possuíam; pelo contrário, ensinavam falsidades, não só a teu respeito, que és realmente a verdade, mas também sobre a existência do mundo, criatura tua.43

Voltando para Tagaste no ano de 374, Agostinho abriu uma escola de gramática

para crianças. Um ano depois, mais uma vez ajudado por seu benfeitor Romaniano, abriu

uma escola de retórica em Cartago, destinada a ensinar eloqüência aos jovens daquela

cidade. Os jovens que freqüentavam a escola de Agostinho eram tão vazios quanto ele,

42 Agostinho aceita a doutrina maniqueísta, mais precisamente aceita a antropologia maniqueísta. Eis as suas palavras: “Conservava ainda a idéia de que não éramos nós que pecávamos, mas alguma outra natureza estabelecida em nós. O fato de estar sem culpa e de não dever confessar o mal após tê-lo cometido satisfazia o meu orgulho; desse modo eu não permitia que curasses minha alma que pecara contra ti preferindo desculpá-la e acusar não sei qual outra força, que estava em mim, mas que não era eu” (Confissões V, 10, 18). A solução maniqueísta do problema do mal era fundada na teoria metafísica dos dois princípios coeternos e contrários. Então o dualismo metafísico se tornava necessariamente dualismo antropológico. Duas almas no homem, uma boa e uma outra ruim, em eterno conflito entre elas. A vitória de uma ou de outra é a vitória do princípio do bem ou do princípio do mal operante no homem. 43 Confissões III, 6, 10.

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pois procuravam não a verdade, mas a fama, a glória e o prazer conseguidos com

facilidade. Falando sobre essa experiência de professor em Cartago, Agostinho nos diz:

Durante os nove anos que se seguiram, dos dezenove aos vinte e oito anos de idade, fui muitas vezes seduzido e sedutor, enganado e enganador, em meio às diversas paixões, ensinando, de público, as ciências chamadas liberais e, em particular, praticando uma religião indigna de tal nome.44

Hylton Rocha reforça essa informação ao dizer: “Seus alunos eram, jovens

baderneiros, enviados por seus pais ricos para conseguir uma posição social, por meio de

uma educação ‘esmerada’. Queriam apenas algo que abrisse as portas para uma situação

que fosse fácil e lucrativa”.45

No período que permaneceu como professor em Cartago, dedicou-se aos estudos

de filosofia e foi aí que leu As Categorias de Aristóteles46, bem como alguns autores

latinos, dentre eles: Varrón, Sêneca, Lucrécio, Apuleio, Cornélio Celso e Cícero.

Nesse período e ainda em Cartago, Agostinho fez um grupo de amigos, dentre

eles: Licênio, Alípio, Nebrídio, Eulógio e Fortunato, que formavam a base de sua escola,

com quem discutia questões mais sérias. Dessas discussões nasceu seu primeiro livro, De

Pulchro et Apto47

(Do Belo e Conveniente), que, apesar da influência do materialismo

maniqueísta, já refletia um pouco as desilusões de Agostinho por esta doutrina.

Depois de algum tempo e a partir das leituras dos filósofos gregos e latinos, as

respostas maniqueístas já não satisfaziam mais a Agostinho. Este, depois de muitos debates

com seus colegas, esperava encontrar respostas nas palavras do bispo maniqueu Fausto,

pois este tinha grande fama de eloqüência. Entretanto, quando esteve com o referido bispo,

viu nele uma pessoa amável, mas não obteve dele os esclarecimentos de que precisava.

44 Confissões IV, 1, 1. 45 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit. 1989, p. 27. 46 Confissões IV, 16, 28. 47 Esta primeira obra de Agostinho, tratado de estética se perdeu. Em “As Confissões” ele diz que nem ele mesmo sabe como (Confissões IV, 13, 20).

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Fausto confessou a impossibilidade de responder às suas indagações. Agostinho elogiou a

honestidade de Fausto, mas decepcionou-se com sua limitação. A desilusão instalou-se no

coração de Agostinho, que não abandonaria definitivamente o maniqueísmo, mas entraria,

aos poucos, numa fase de ceticismo.

Apesar de participar do maniqueísmo, Agostinho nunca chegou à classe dos electi

(eleitos), mas apenas de auditor (ouvinte), conforme relato de Carlo Cremona, que nos diz:

É verdade, na seita tinha preferido ficar entre os ‘ouvintes’, não obstante as solicitações dos hierarcas para levá-lo a entrar no rol dos ‘eleitos’. Mas os ouvintes podiam ter uma mulher, enquanto os eleitos, pelo menos explicitamente, não podiam; e aquele jovem, agora bispo, era de uma paixão tão ardente, que não podia dormir sem o amplexo de uma mulher.48

Desiludido por não encontrar no maniqueísmo uma explicação para a questão que

tanto o torturava, ou seja, “Como explicar que a minha vontade tenda para o mal e não para

o bem?”,49 Agostinho é levado, então, a procurar na astrologia uma resposta:

Quis também interrogar as estrelas sobre o mistério e o destino do homem, sempre procurando saber quem, na realidade, faz decidir, nos atos morais, a agir de um modo antes que de outro. Ele sentia que não agia bem e queria jogar a responsabilidade disto sobre um outro ou sobre alguma coisa exterior a si.50

Após a leitura de alguns livros Agostino procurou um famoso astrólogo de nome

Vindiciano, que além de astrólogo era um excelente médico. Este, que já o conhecia desde

a África, em sua honestidade o aconselha: “Meu jovem, joga logo fora esse livro, não

percas tempo (...) Tu tens um bom talento, empreendeste uma carreira de estudos dignos de

respeito que te dará certamente com que viver. A astrologia desviar-te-ia do bom

caminho”.51

Mais tarde, já no ano de 383, aos 29 anos de idade, desgostoso com a indisciplina

dos jovens alunos de Cartago, e atraído pela possibilidade de maiores lucros e honras,

48 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 13. 49 Confissões VII, 3, 5. 50 CREMONA, op. cit., 1990, p. 48 51 Confissões IV, 3, 5.

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resolve transferir-se para Roma, onde abriria uma escola de retórica. A ida para Roma não

seria fácil: sua mãe, percebendo a crise por que estava passando seu filho, procura impedir

de todas as formas sua partida, mas este mentiu para ela e fugiu de Cartago. Em As

Confissões, Agostinho narra o momento em que enganou sua mãe no porto:

Quando me apertou estreitamente, tentando persuadir-me a voltar ou a deixá-la vir comigo, enganei-a (...) Menti à minha mãe – e que mãe! Fugi dela. No entanto, apesar da sordidez execrável de que estava cheio, tu me salvaste, porque me perdoaste misericordiosamente (...) Nessa mesma noite parti escondido, e ela ficou a chorar e a rezar.52

Chegando na cidade de Roma, Agostinho hospedou-se na mansão de um amigo

maniqueu de nome Constâncio. Segundo Carlo Cremona: “Constâncio, como Agostinho e

Alípio, não pertencia à classe dos ‘eleitos’, mas à dos ‘ouvintes’. Era um homem rico que

procurava tornar-se importante pela sua generosidade”.53 Em casa de Constâncio,

Agostinho é acometido por uma febre que o deixou entre a vida e a morte. Passada essa

fase crítica, Agostinho fundou uma escola de retórica em Roma.

Em Roma, numa nova experiência como professor, Agostinho decepciona-se pois,

os alunos eram de melhor nível e disciplinados, mas tinham o mau costume de não

pagarem aos professores. Além disso, a sua estadia na casa de um maniqueu trazia-lhe

alguns constrangimentos, pois já não acreditava mais no maniqueísmo e via-se obrigado a

compartilhar, ou pelos menos a se passar por um maniqueu.

Ainda, em Roma Agostinho recebeu apoio e ajuda solidária de seu grande amigo

Alípio, que àquela altura exercia um cargo público de juiz. Sem este apoio não teria sido

fácil sua sobrevivência. Alípio procurou ajudá-lo em muitos outros momentos.

52 Confissões V, 8, 15. 53 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 39.

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Embora com muitas dificuldades, Agostinho, em pouco tempo, conseguiu grande

fama de retórico, tendo sido procurado por várias autoridades, entre elas Símaco, prefeito

de Roma, que tinha por ele grande admiração.

No ano de 384, início do verão, Símaco procurou Alípio, contou-lhe que fora

encarregado pela corte imperial de escolher um professor (rector) de prestígio para a vaga

de eloqüência do estudo público de Milão, e que pretendia oferecer o cargo a Agostinho:

“Conhecida, através de Alípio, a proposta de Símaco, superada a prova de dicção diante do

prefeito, o próprio Agostinho interessou-se para que a partida fosse apressada. Além do

mais, aquela transferência libertava-o dos maniqueus, que nunca mais freqüentaria”.54

Logo em seguida, no verão de 384, Agostinho e Alípio, que deixou seu cargo

público, partiram de Roma. Em Milão, Agostinho foi recebido pelas autoridades imperiais,

intelectuais e eclesiásticas com grande simpatia e curiosidade.

Nesta época Milão florescia como uma cidade brilhante. Para lá acorria uma

legião de poetas, escritores, oradores e filósofos. A filosofia grega ganhava ali seus adeptos

entre os leigos e o clero. Era Platão, em nova roupagem (neoplatonismo), que dominava o

ambiente cultural. O catolicismo era importante na cidade. O bispo da cidade, Ambrósio,

pronunciava sermões eruditos, elaborados segundo a melhor tradição ciceroniana. Seu

pensamento deixava sentir a forte influência do neoplatonismo reinante.

Desejando e atraído pela fama de orador do Bispo Ambrósio, Agostinho resolveu

ouvi-lo, no início, não pela fé, mas pela curiosidade. As pregações de Ambrósio,

carregadas de conteúdos platônicos, não levaram, de imediato, Agostinho à Igreja Católica,

mas lançaram luz sobre sua alma e, aos poucos, foram acabando com as dúvidas dos seus

tempos de maniqueísmo e ceticismo.

54 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 57.

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Agostinho, em As Confissões, definiu esse período de professor e funcionário do

Império como momentos de profunda ambição e miséria de seu coração, e disse: “Eu

aspirava às honras, à riqueza, ao matrimônio, e tu rias de mim. Nesses desejos amargos eu

sofria dissabores, e tu me querias tanto mais bem quanto menos consentias que eu

experimentasse consolação naquilo que não eras tu”.55 Foi nessa época que aconteceu o

famoso “encontro do mendigo”, quando Agostinho, ao ser encarregado de preparar um

discurso de louvores para o Imperador Valetiniano, tendo consciência de que teria de

mentir, pois este não tinha grandes méritos, encontrou um mendigo bêbado que, na sua

pobreza, parecia feliz, enquanto ele, na sua ambição, vivia angustiado. Agostinho

descobriu sua pobreza de espírito e disse:

É claro que a alegria dele não era a verdadeira; mas o objeto de minha ambição era bem mais falso. Ele, pelo menos, estava satisfeito com sua alegria, e eu, preocupado; ele era livre, estava tranqüilo, e eu, cheio de inquietações (...) Na mesma noite, aquele mendigo teria curado sua embriaguez, enquanto eu havia dormido e acordado com a minha, e ainda com ela tornaria a dormir e acordar; e quem sabe por quanto tempo!56

Depois de chegar a Milão, um ano depois, em 385, Agostinho trouxe sua mãe, sua

mulher, seu filho Adeodato e seu irmão Navígio para viverem com ele. Mônica tinha

grandes preocupações com Agostinho, principalmente por suas posições céticas dos

últimos tempos, mas, ao chegar a Milão, o encontrou mudado, pois, pelo menos, não era

mais maniqueísta. Conforme ele mesmo nos diz: “Ao chegar, encontrou-me em grande

perigo, provocado pela completa falta de confiança em conhecer a verdade. Quando a

informei de que não era maniqueu, embora ainda não fosse cristão católico, não saltou de

alegria (...) Quanto a este aspecto de minha miséria, ela estava tranqüila”.57

55 Confissões VI, 6, 9. 56 Ibid., VI, 6, 9-10. 57 Ibid., VI, 1, 1.

25

Na cidade de Milão, depois de receber a influência do bispo Ambrósio, Agostinho

resolveu convidar dois amigos da África, Alípio e Nebrídio,58 para formarem juntos com

sua mãe, sua mulher, seu filho e seu irmão Navígio uma comunidade. Nessa época, por

inquietações de sua consciência, e pressões de sua mãe que há tempos insistia para que se

casasse, como forma de sair da condição de pecado em que vivia ao conviver com uma

mulher sem matrimônio, Agostinho resolveu casar-se, chegando a pedir em casamento a

mão de uma jovem de família rica. Entretanto, segundo o próprio Agostinho, o casamento

não foi possível, pois, apesar já ter sido feito o pedido de casamento, “faltavam-lhe, ainda

dois anos para a idade núbil,59 mas, por ser do agrado de todos, ia-se esperando”.60

Melânia, sua mulher, vendo-se traída por Agostinho ter pedido uma jovem em

casamento, resolveu abandoná-lo e voltou para África, deixando com este seu filho

Adeodato e fazendo juramento de que nunca mais se juntaria a outro homem.

Agostinho resolveu, então, ampliar seu projeto comunitário e convidou outros

amigos para fazerem parte do grupo que, então, chegava a ser composto de cerca de dez

pessoas. Dentre esses amigos, havia homens ricos e de posição social, como Romaniano,

seu benfeitor, que fazia parte da corte imperial.

Nesse novo estilo de vida o projeto comunitário era radical, pois, “Tínhamos

organizado o nosso retiro, de modo a pôr em comum os bens que possuíamos, formando

assim um patrimônio único. Entendíamos que, diante da sincera amizade que nos unia,

nada deveria pertencer a este ou àquele. Tudo deveria ser de todos e de cada um”.61 Mas o

projeto de Agostinho não foi possível de ser realizado, pois alguns membros do grupo

58 Nebrídio e Alípio eram conterrâneos de Agostinho, filhos de famílias abastadas. Vieram estudar em Cartago e ali, juntaram-se ao grupo de alunos de Agostinho, tornaram-se seus melhores amigos. Acompanharam Agostinho por Roma e Milão, vindo a fazer parte do grupo de convertidos junto a Agostinho. Nebrídio faleceu jovem e Alípio chegou a ser Bispo de Tagaste um ano antes de Agostinho ser bispo. 59 A jovem que Agostinho pediu em casamento tinha cerca de 10 anos de idade, pois, segundo este, faltavam-lhe cerca de dois anos para completar a idade de poder casar-se e a idade núbil em Roma era de 12 anos. 60 Confissões VI, 13, 23. 61 Ibid., VI, 14, 24.

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eram casados e, na impossibilidade de renunciarem a suas esposas, o projeto tornou-se

inviável. O próprio Agostinho, que não era casado, mas que convivia com uma mulher há

quinze anos, não renunciou aos seus desejos carnais.

Sofrendo pelo abandono de sua mulher, e tendo que esperar por dois anos até que

sua noiva completasse a idade núbil, Agostinho não se conteve e procurou outra mulher.

Em As Confissões, ele assim descreveu esses momentos:

Ela voltou para a África fazendo a ti o voto de jamais pertencer a outro homem e deixando para mim o filho que me havia dado. Mas eu, infeliz, fui incapaz de imitar a esta mulher! Eu não conseguia suportar a espera de dois anos para receber a esposa que tinha pedido. Na realidade eu não amava o matrimônio; eu era, sim, escravo do prazer. E tratei de arranjar outra mulher, não como esposa legítima, para manter e alimentar intacta, ou agravar a doença da minha alma até o casamento, e aí chegar sem haver interrompido meus hábitos.62

Ainda em Milão, aos 32 anos de idade, Agostinho conheceu Mânlio Teodoro,

personalidade política, que chegou ao cargo de cônsul. Era um homem culto e orgulhoso,

amante da filosofia neoplatônica. Através deste, conheceu e leu as obras neoplatônicas de

Plotino, escritas pelo seu discípulo Porfírio, especialmente as “Enéadas”, traduzidas do

grego para o latim por Mário Vitorino:

Encontrei escrito, se não com as mesmas palavras, certamente com o mesmo significado e com muitas provas convincentes, o seguinte: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus’ (...) Li escrito nesses livros que o Verbo, que é Deus, nasceu, não da carne nem do sangue, não da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus”.63

Foi através das leituras do neoplatônico Plotino, que Agostinho descobriu que

Deus é a fonte única de todo bem e que o mal não forma uma substância. Bem como o

“nous”, ou razão natural, remonta ao “logos” do Evangelho de São João. Foi um

importante passo para que Agostinho vencesse seu ceticismo e caminhasse para a

especulação filosófico-religiosa.

62 Confissões VI, 15, 25. 63 Ibid., VII, 9, 13-14.

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Mais uma vez Agostinho foi sacudido em seu íntimo, pois as leituras

neoplatônicas lançavam grandes inquietações em seu coração. Este, então, resolveu

procurar o bispo Ambrósio, em cujos sermões ouvira falar, muitas vezes, de Plotino.

Depois de uma longa conversa, o bispo o aconselhou a procurar Simpliciano,64 um cristão

exemplar que poderia trazer-lhe as respostas que precisava.

Quando procurou Simpliciano, Agostinho contou-lhe que havia lido os escritos

neoplatônicos e revelou suas insatisfações. Este reforçou os enganos dos neoplatônicos e,

para exaltar o sentido da humildade e redenção divina, contou-lhe acerca da recente

conversão de Vitorino (o que havia traduzido os escritos de Plotino), como exemplo de

humildade.

Este relato da conversão de Vitorino comoveu Agostinho, como ele mesmo

declarou: “Logo que teu servo Simpliciano me contou esses fatos sobre Vitorino, senti

imenso desejo de imitá-lo”.65

Ao término da conversa, Simpliciano aconselhou Agostinho a ler as Sagradas

Escrituras, especialmente as cartas paulinas: “Lancei-me avidamente à venerável Escritura

inspirada por ti, especialmente à do apóstolo Paulo (...) Começando a leitura, descobri que

tudo o que de verdadeiro tinha encontrado nos livros platônicos, aqui é dito com a garantia

de tua graça”.66 Com uma grande diferença: os livros platônicos, ao identificarem o Verbo

de Deus, ou “logos”, com o “nous”, ou razão, esqueciam de dizer que “o Verbo se fez

homem e habitou entre nós”.67 Por isso Agostinho afirma: “Eu tagarelava como se fosse

64 São Simpliciano era um sacerdote instruído que viera de Roma a Milão para instruir Santo Ambrósio nas Sagradas escrituras, como diretor espiritual. Por isto Agostinho se refere a este como pai de Ambrósio. Mais tarde, em 397, com a morte de Ambrósio, este lhe sucedeu no bispado de Milão. 65 Confissões VIII, 5, 10. 66 Ibid., VII, 21, 27. 67 Jo 1,13.

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competente, mas se não tivesse procurado o teu caminho em Cristo nosso Salvador, não

teria sido perito e sim perecido”.68

Depois da conversa com Simpliciano, Agostinho passou a viver o dilema entre

servir a Deus, a exemplo de Vitorino, ou continuar sua vida devassa. Conflito este que se

agravaria até o momento de sua conversão e que se caracterizava pela luta entre duas

vontades:

A nova vontade apenas despontava; a vontade de servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade segura, ainda não era capaz de vencer a vontade anterior, fortalecida pelo tempo (...) Eu estava certo de que me entregar ao vosso amor era melhor que ceder ao meu apetite. Mas o primeiro agradava-me e vencia-me; o segundo aprazia-me e encadeava-me (...) Deleitava-me com vossa Lei segundo o homem interior, mas em vão, porque em meus membros outra lei repugnava à lei do meu espírito, e me mantinha cativo na lei do pecado que está em meus membros.69

Agostinho continuaria com sua angústia na espera de um momento, mas este

dilema levaria alguns dias até que acontecesse sua conversão.

Não se pode deixar de mencionar outro acontecimento importante para a conversão

de Agostinho que fora o encontro com Ponticiano, um cristão fiel e compatriota africano

que exercia um alto cargo no palácio, que viera visitar Agostinho e seus conterrâneos

Alípio e Nebrídio. Agostinho conta que, ao chegar em sua casa, Ponticiano viu uma Bíblia

sobre uma mesa e acreditando estar numa casa de cristãos, felicitou-os como tal. Em

seguida, falou acerca da vida de Santo Antão, um monge do Egito até então desconhecido

de Agostinho, seus amigos e de seus seguidores. A narrativa de Ponticiano levou

Agostinho a comparar a vida dos jovens que seguiram Santo Antão e a sua, e isso

aumentou ainda mais sua angústia e seu conflito interior.

Agora, no entanto, quanto mais ardentemente amava aqueles dois de quem conhecera a salutar decisão de se entregarem completamente a ti para serem curados, mais profundamente eu me detestava, ao comparar-me com

68 Confissões VII, 20, 26. “Perito” - Verdadeiro saber que leva a salvação. “Perituro” – Perecido, falso saber que leva a morte, ou a condenação. 69 Confissões VIII, 5, 10-12.

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eles (...) Vós, Senhor, enquanto ele falava, me fazíeis refletir sobre mim mesmo (...) Vós me colocáveis a mim mesmo diante de mim, e me arremessáveis para frente de meus olhos, para que, ‘encontrando a minha iniqüidade, a odiasse’. Conhecia-a, mas fingia que não via, procurando esquecê-la. (...) Vós me colocáveis perante o meu rosto, para que visse como andava torpe, disforme, sujo, manchado e ulceroso. Via-me e horrorizava-me; mas não tinha por onde fugir (...) Assim me roía interiormente, confundindo-me com horrível e acentuada vergonha, enquanto Ponticiano falava.70

Após a conversa de Ponticiano, Agostinho ficara profundamente perturbado, sua

alma recusava-se a se escusar, “pois temia que me atendesses logo e me curasses

imediatamente do mal da concupiscência, que eu achava melhor satisfazer do que

extinguir”.71 Depois de discutir com Alípio sobre o que ouviram, Agostinho, perturbado,

retirou-se para os jardins de sua casa a fim de meditar. “Para aí fui levado pelo tumulto do

coração, onde ninguém podia interferir na luta violenta que travava comigo mesmo, e cujo

resultado nem eu mesmo conhecia, somente tu (...) Eu fremia de violenta indignação contra

mim mesmo, por não ceder à tua vontade e à aliança contigo, meu Deus”.72

Muito agitado interiormente, Agostinho, fez diversos movimentos corporais,

conforme nos narra: “Assim, eu arrancava os cabelos, batia na testa, apertava os joelhos

entre os dedos entrelaçados”.73 Mas nada resolvia, pois, o problema não estava no corpo,

mas na alma, na vontade.

Não suportando mais essa luta interior, Agostinho caiu em choro e, em meio às

suas lágrimas, se interrogou:

Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora à minha indignidade? Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção: ‘Toma e lê, toma e lê’.74

70 Confissões VIII, 7, 16-18. 71 Confissões VIII, 7, 17. 72 Ibid., VIII, 8, 19. 73 Ibid., VIII, 8, 20. 74 Ibid., VIII, 12, 28-29.

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Como de impulso, Agostinho lembrou-se da narrativa de Ponticiano acerca do

momento em que Santo Antão recebeu um sinal de Deus, este interpretou sua experiência

como um chamado de Deus para ler a Bíblia. Daí correu ao encontro de Alípio que lhe

entregou o Novo Testamento e este abriu-o espontaneamente e leu o que lhe veio aos

olhos, caindo sobre a Epístola de São Paulo (Rm 13,13s) que dizia:

Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites (Rm 13,13s). Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da minha dúvida fugiram.75

Partilhou a passagem da epístola com Alípio, e juntos, discutiram a experiência; em

seguida, foram ao encontro de Mônica contar o ocorrido: estava decidido a ser católico,

queria batizar-se.

Dava-se assim, o início da conversão de Agostinho e com isso desistiu da idéia de

casar-se e pensou logo em deixar a cadeira de retórica.

Era verão de 386, três semanas antes do término do curso acadêmico. Anteriormente, ele já pensava em pedir demissão do cargo, no final do curso. Sua voz era fraca e alguma enfermidade dos brônquios que iria molestá-lo toda vida, agravada pelo frio da Itália, tinha aumentado e prejudicado seu desempenho como professor de retórica.76

Quando terminou o curso, Agostinho pediu demissão de seu cargo. Um de seus

amigos, Verecundo, colocou à sua disposição uma casa de campo, num lugar chamado

Cassicíaco, perto de Milão, para onde se retirou com os amigos africanos: Alípio, Licênio e

Trigécio, filhos de Romaniano; seus dois primos Rústico e Lastidiano; seu irmão Navígio;

seu filho Adeodato e sua mãe Mônica, para se dedicarem aos estudos e à leitura da Bíblia.

Ali iriam preparar-se para o batismo, sob as orientações do bispo Ambrósio.

75 Confissões VIII, 12, 29. 76 ROCHA, Hylton, op. cit., 1989, p. 36.

31

Mais tarde, já quase no final de sua vida, nas Retratações, Agostinho chama este

retiro em Cassicíaco de “Christianae vitae otium”, “ócio ou lazer da vida cristã”, onde o

grupo se dedica à vida contemplativa, tendo como modelo a vida de Santo Antão77.

Foi a partir desse retiro que nasceram as suas primeiras obras: Contra Acadêmicos

(386), De Beata Vita (386), De ordine (386) e Soliloquia, libri duo (387). Esses tratados,

comumente chamados de “Diálogos de Cassicíaco”, estão ainda profundamente marcados

pela experiência da vida anterior de Agostinho. Neles, Agostinho procurou respostas às

suas inquietações.

No entanto, em 387, Agostinho, seu amigo Alípio e seu filho Adeodato, voltaram

a Milão para receberem o batismo. E, no Sábado Santo (25 de abril) de 387, foram

batizados pelo bispo Ambrósio. Não sabia Ambrósio que, daquela pia batismal, nascia um

dos maiores “gênios cristãos” da razão e da fé: “Quando chegou o momento em que devia

dar o meu nome para o batismo78, deixando o campo, voltamos para Milão (...) Fomos

batizados, e desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada”.79

Agora como cristão, batizado, Agostinho permanece em Milão, onde escreve o

tratado De Immortalitate Animae (387), e começa o projeto, que nunca chegou a realizar,

de escrever uma enciclopédia de artes liberais, à maneira de Varrón. Escreveu, também, De

Gramatica (387) e começou De Musica que só veio a terminar em 39l.

Agostinho tinha como grande meta retornar a Tagaste, sua terra natal, onde

pretendia dedicar-se à vida monástica. Ainda em 387, iniciou o caminho rumo a Tagaste,

mas, em passagem por Óstia, sua mãe faleceu tendo então 56 anos de idade. Mônica foi

sepultada na igreja de Santa Áurea em Óstia. Em 1430, seus restos mortais foram

transferidos para Roma, sendo depositados, primeiro, na Igreja de São Trifão e, em 1455,

77A vida de Santo Antão, narrada por Ponticiano, teria grande influência no modelo de vida contemplativa adotado por Agostinho durante a sua vida religiosa, e em seus mosteiros, ao longo dos séculos. 78 Entenda-se: ser batizado. Os catecúmenos, no início da quaresma, deviam pedir o batismo. 79 Confissões IX, 6, 14.

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transladados para a igreja de Santo Agostinho, construída pelos agostinianos. Em 1566, a

urna que contém os restos mortais de Mônica foi colocada na capela dedicada à Santa, na

mesma igreja de Santo Agostinho. Em As Confissões, no momento em que narra a morte

de sua mãe, Agostinho dedica várias páginas para falar das suas virtudes e qualidades. Na

mesma ocasião, narra o famoso “êxtase de Óstia”80, vivido por ele e sua mãe, poucos dias

antes de esta falecer.

Após a morte da mãe, Agostinho voltou para Roma, onde permaneceu por quase

um ano. Nesse período, escreveu: De Quantitate Animae (388), De Moribus ecclesiae

Catholicae et Manichaeorum (388) e iniciou o De Libero Arbitrio, que só veio a terminar

na África, em 395.

No ano de 388, regressou à África, estabelecendo-se em Tagaste. Ali, seguindo o

preceito evangélico da pobreza, vendeu as modestas propriedades de seus pais, ficando

com apenas a casa paterna, onde estabeleceu uma espécie de mosteiro, vivendo em

companhia de seus amigos e discípulos. Assim, daquela primeira comunidade, nascia o

ideal de vida monástica do Ocidente. Agostinho tinha uma paixão fascinante pela vida

comunitária, pois, desde seus tempos de juventude, vivera em comunidade com amigos e

familiares. Segundo Carlo Cremona, Agostinho “nunca teria sido capaz de viver sozinho

(...) Este homem, imerso nos livros (que gostava de ler e escrever em paz) era incapaz de

viver só”.81 Nessa época escreveu: De Genesi contra manichaeos (388-390), De Magistro

(389), De Vera Religione (388-391), De Diversis Quaestionibus Octoginta Tribus (389-

396).

Depois de um ano que estava em Tagaste, morreu seu filho Adeodato; tinha 17

anos de idade. Em As Confissões, Agostinho assim se refere a seu filho:

80 Confissões IX, 10, 23-26. Aqui se encontra a síntese do pensamento de Agostinho acerca do conhecimento da Verdade-Deus. Ele percorre as etapas do conhecimento humano: análise dos sentidos, conhecimento da alma e da razão superior. 81 CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 17

33

Juntamos também a nós Adeodato, filho carnal do meu pecado, a quem tinhas dotado de grandes qualidades. Com quinze anos apenas, superava em talento muitas pessoas maduras e eruditas (...) Escrevi um livro intitulado O mestre (De Magistro), no qual meu filho conversa comigo. Tu bem o sabes, todos os pensamentos aí manifestados por meu interlocutor são realmente dele, então com dezesseis anos (...) Reconheço os teus dons, Senhor meu Deus, criador de todas as coisas e tão poderoso para corrigir nossas deformidades, pois, de meu, naquele rapaz, nada havia senão o pecado.82

Estabelecido em Tagaste, Agostinho vive seu ideal religioso, uma vida dedicada à

contemplação e aos estudos das Sagradas Escrituras, dosada de uma atividade pastoral,

especialmente escrevendo seus livros e cartas. De sua experiência de vida comunitária,

iniciada já antes de sua conversão, nasceriam as famosas Regras, um ideal de vida

monástica que tinha como máxima: “Ama e faze o que queres! A medida para amar a Deus

é amá-lo sem medida” (Reg. 34, 4,7) que seria seguida pelos mosteiros agostinianos, e que

influenciaria grande parte das Ordens e Congregações Religiosas de outras denominações

espalhadas pelo mundo até hoje.

Agostinho nem pensava em ser sacerdote, chegando, inclusive, a evitar passar por

cidades onde não houvesse sacerdotes, para que não lhe atribuíssem tal encargo. Agostinho

queria contribuir com a Igreja Católica, mas como um intelectual, um pregador da Palavra

de Deus. Em um de seus sermões, encontramos uma confirmação dessa postura, ao

afirmar: “Temia o ofício de bispo de tal forma que não ia a nenhum lugar, onde soubesse

que estava vacante a sede”.83

Sem querer, Agostinho caiu numa armadilha. Segundo Possídio, em sua “Vita

Augustinus”, O bispo Valério, de Hipona, um grego de nascimento, achava-se em

dificuldades para combater as seitas heréticas que se espalhavam em sua diocese, pois,

devido às dificuldades de falar o latim, pouco convencia seus adversários. Sabendo da

82 Confissões IX, 6, 14. 83 Sermão 355, 2. As citações dos Semões e das Epístolas que serão mencionadas nesta dissertação serão extraídas a partir da tradução que encontra-se na seguinte obra: RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. A Idéia de Estado na Doutrina Ético-Política de Santo Agostinho: um estudo do epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. São Paulo: Loyola, 1984, 370 p. (Coleção Fé e Realidade, 15).

34

fama de orador de Agostinho, pede a um amigo, “homem de negócios”, que escrevesse a

Agostinho contando-lhe seu desejo em entrar para a vida monástica pedindo-lhe que viesse

até Hipona para apresentar-lhe sua experiência de vida. Agostinho, desejoso de conhecê-lo,

veio visitá-lo. Em Hipona, Agostinho sentia-se tranqüilo, pois esta não era uma diocese

vacante. Chegando à cidade, o referido “homem de negócios” convidou Agostinho para ir

conhecer a catedral. Era um momento de assembléia e, vendo Agostinho se aproximar, o

bispo Valério começou a explicar ao povo o seu desejo de encontrar alguém, um sacerdote

culto, zeloso e de doutrina segura, que o ajudasse a combater as heresias. Agostinho

avançava pela catedral quando, subitamente, uma multidão de fiéis gritava em coro:

Agostinho! Agostinho! e o arrastou forçosamente até o bispo Valério:

Como um animal manso preso pelo braço, teve medo. Olhou assustado o primeiro que lhe tocou as mãos como lhe implorar piedade. Mas outras mãos vieram sobre ele, levantaram-no e carregaram-no até o presbítero, abrindo passagem entre a multidão, que gritava sempre mais forte: ‘Agostinho! Agostinho!’ Começou então a debater-se e a implorar com as lágrimas (...) Agostinho, sempre pronto a acolher os sinais de Deus quando este estava convencido de que a Graça e somente a Graça, o atraía, disse então, entre lágrimas: ‘Sim, eis aqui”.84

Agostinho foi recebido no dia seguinte pelo bispo Valério. Queria confessar-lhe as

suas hesitações de ser sacerdote, mas, como era da vontade de Deus, aceitaria. Entretanto

queria um tempo para preparar-se, bem como pedia permissão para continuar sua vida

monástica naquela cidade. O bispo concedeu-lhe o tempo desejado e prometeu ajudá-lo a

fundar um mosteiro em Hipona. Na despedida, já se sentindo padre, ciente de suas

responsabilidades, entregou nas mãos do bispo Valério uma carta que havia escrito na noite

anterior. Esta carta é uma verdadeira obra-prima de consciência sacerdotal. Nela,

Agostinho nos fornece o seu conceito de sacerdócio. Vejamos:

Nesta vida e sobretudo neste tempo, não há nada mais fácil e honorífico para um homem do que a dignidade de bispo, de padre ou diácono. Mas

84 POSSÍDIO, Apud. CREMONA, Carlo. op. cit., 1990, p. 146.

35

igualmente não há nada mais miserável, prejudicial e reprovável aos olhos de Deus, se isto é feito com desleixo ou por vil ambição.85

Depois de alguns meses de preparação espiritual, aos trinta e sete anos de idade,

Agostinho foi ordenado sacerdote, pelas mãos do bispo Valério. A partir daí, Hipona seria

a residência definitiva de Agostinho, até o fim de sua vida. Hipona, a Hippo Regius para os

latinos, uma simples cidade portuária, passaria para a História Universal, não por sua

importância, mas por causa da grandeza de Agostinho, que ainda hoje é conhecido como

Agostinho de Hipona. Com o tempo, Hipona passaria a se chamar Bona, hoje é Anabá, na

Argélia.

Depois da ordenação, o bispo Valério, atendendo ao seu desejo monástico,

“entrega-lhe parte de um jardim, junto à residência. Agostinho, presbítero da Igreja,

estabelece aí a continuidade de sua experiência de vida comunitária”.86 Este mosteiro, de

grande importância na história de Agostinho, ficaria conhecido como o “mosteiro do

jardim”.

Agostinho sempre foi muito admirado pelos cristãos de Hipona, pois ele tinha

muito prestígio, não só em Hipona e região, mas em toda África, temiam que, a qualquer

momento, este fosse chamado a servir em outros lugares. O bispo e os clérigos não

gostavam de que ele se afastasse de Hipona. Tinham medo de que o raptassem para fazê-lo

bispo de outra diocese. Por isso, o bispo Valério escreveu ao Primaz da África, pedindo-lhe

que ordenasse Agostinho bispo auxiliar de sua diocese.

Tentou fugir mais uma vez de tal compromisso, mas, diante da insistência de

Valério, no mês de junho de 395, seria sagrado Bispo Coadjutor de Hipona pelas mãos de

Magálio, Bispo Primaz da África. Posteriormente, em sermão, diante dos fiéis, Agostinho

diz: “Cheguei a esta cidade para visitar um amigo com a esperança de ganhá-lo para Deus

85 Epístola 21, 2. 86 ROCHA, Hylton Miranda. op. cit., 1989, p. 94.

36

e para nosso mosteiro. Fui, porém, apreendido, ordenado sacerdote e mais tarde bispo”.87

Um ano depois, com o falecimento de Valério, Agostinho ficaria como Bispo titular de

Hipona.

Sua capacidade não era só um intelectual ou homem de gabinete, mas era um

homem preocupado e envolvido com as grandes questões doutrinais da época. Ele vivia no

meio do seu povo. “Basta percorrer suas obras, particularmente os seus sermões,

pronunciados em Hipona e Cartago, para ver desenrolar-se a vida cotidiana: a habitação e a

alimentação, os jogos e o lazer, a caça e a pesca, as viagens e a acolhida. Nada escapa ao

olhar observador do Bispo”.88

Atuando no ministério episcopal, Agostinho era bastante popular, convivia com

seu povo, conhecia as suas ansiedades, sofrimentos e alegrias. Basta vermos as centenas de

cartas e sermões dirigidos aos seus diocesanos e amigos de outras regiões. Agostinho era

um bispo que participava ativamente da vida política-social de sua época, interferindo,

reivindicando e intercedendo junto às autoridades por seu rebanho. Por isso, é errônea a

imagem que os artistas da Idade Média e dos tempos modernos pintaram de Agostinho,

como um bispo vestido pomposamente com trajes episcopais, com mitra, báculo, anel e um

livro na mão. Agostinho era um bispo humilde que se vestia como um sacerdote do povo.

Ele usava uma túnica de lã branca, sem ornamentos e sandálias, mesmo quando estava

pregando ou celebrando. Em um de seus sermões, ao comentar acerca dos presentes

pessoais que os fiéis lhe ofereciam, diz: “Dá-me, de preferência , uma túnica, bem simples,

que eu possa dar de presente a um pobre, e a um diácono ou a um subdiácono, senão eu

devolverei. Uma veste luxuosa me cobre de vergonha e não convém à minha função, nem a

meu corpo envelhecido, nem a meus cabelos brancos”.89

87 Sermão 355, 2. 88 HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 41 89 Sermão 356, 13.

37

Quanto à linguagem na época em que fora bispo, falavam-se em Hipona duas

línguas: o púnico e o latim. A elite culta falava e escrevia em latim e o povo das cidades

periféricas e do campo falava o púnico: “Roma não apenas suplantou o grego, língua

cultural e internacional até o século III, mas também fez recuar o púnico, trazido pelos

fenícios, que parece ter-se mantido na costa mediterrânea, onde se escalonavam os

entrepostos comerciais”.90 Agostinho gozava do privilégio de falar as duas línguas. Muitas

vezes chegou a traduzir seus sermões para o púnico, como forma de atender aos fiéis que

falavam esta língua.

No ano de 410, Agostinho acompanhava atentamente todos os acontecimentos

acerca do saque de Roma, pelos Godos de Alarico. Diante das acusações dos romanos de

que a debilidade do Império Romano estaria na sua adesão ao cristianismo, Marcelino,

tribuno romano, pediu a Agostinho que escrevesse uma obra a ser intitulada “A Cidade de

Deus” contra tais acusações e em defesa dos cristãos.

Próximo ao final de sua vida, iniciaria outra importante obra Retractationum Libri

Duo com um olhar retrospecto de todas as suas obras anteriores, mas que ficaria inacabada.

Finalmente, em pleno cerco dos invasores vândalos a Hipona, Agostinho faleceu

no dia 28 de Agosto de 430.

1.2 Santo Agostinho: o filosofar na fé através de suas obras literárias

Agostinho, um dos maiores gênios de todos os tempos e o maior de todos os

Padres da Igreja, foi também o maior filósofo dos quinze séculos que separam Aristóteles

de Tomás de Aquino. Escreveu muitíssimas obras, embora sem a intenção de elaborar um

90 HAMMAN, A. G. op. cit., 1989, p. 41.

38

sistema filosófico completo, conseguiu, melhor do que qualquer outro pensador cristão,

estruturar sobre uma base racional marcada pelo platonismo, todas aquelas doutrinas que,

reveladas pelo cristianismo, são também acessíveis à razão.

Não temos a certeza quanto ao número exato de obras escritas por Agostinho.

Alguns comentadores dizem que ele escreveu 94 obras, divididas em 232 livros, mais

algumas centenas de sermões e cartas, além de pequenos tratados. Waldecy Tenório91 nos

fala de 113, já Pedro Rubio92 nos diz que, na Coleção Latina de Escritores Cristãos,

encontram-se mais de 150 títulos diferentes, sem contar as centenas de cartas, sermões e

pequenos tratados.

Para uma melhor visão de suas obras, ao final dessa dissertação, destacar-se-á

uma relação de seus escritos em ordem cronológica.93

91 TENÓRIO, Waldecy. O Amor do Herege: respostas às Confissões de S. Agostinho. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 78. 92 RUBIO, Pedro. op. cit., 1995, p. 398 93 Ver Anexo 1: Relação de Obras de Santo Agostinho.

CAPÍTULO II

PRINCÍPIOS DA ÉTICA AGOSTINIANA

2.1 O PRIMADO DO AMOR

A ética agostiniana, sem equívoco, “é uma ética do amor, mais precisamente

caritas”.1 Para formular uma moral baseada no amor, Santo Agostinho empreende um

estudo, seguindo o que lhe foi transmitido pela tradição: pagã, cristã, grega e latina. Para

Agostinho a força que impulsiona a realização da ordem moral é o sentimento de amor,

que tem como fim a caridade. Sua força orientadora é a vontade, que culmina na liberdade,

tendo como consumação a ordem da caridade. O amor é “a força da alma e da vida”, cuja

sua morada é a virtude.

De acordo com Philotheus Boehner e Etienne Gilson,2 o problema central da ética

agostiniana, é “o da reta escolha das coisas a serem amadas”. Nesta perspectiva o

problema moral não consiste em perguntar-se se há que amar, senão que é o que há que

amar. Para Agostinho, o amor está na própria natureza humana. Trata-se de um apetite

natural, pressuposto pela vontade livre, que deve, iluminada pela luz natural da razão,

orientá-lo finalmente para Deus. O amor é, pois, uma atividade decorrente do próprio ser

humano. Donde se deduz que, tendo-se no fundo do coração a raiz do amor, dessa raiz não

1 Charitas, palavra que vem do latim e que quer dizer caridade. “Caridade é o amor para os cristãos, que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem e procura identificar-se com o amor de Deus; ágape, amor-caridade” (In: DE BONI, Luiz Alberto. Idade média: ética e política. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996 p. 41). Para uma melhor compreensão, deste termo, ver nota 7 (sete) do capítulo I dessa Dissertação. 2 BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. 4. ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988.

40

pode sair senão o bem, o que resulta na tão citada máxima agostiniana: “Ama e faze o que

quiseres”.3

Neste sentido, seria um equívoco querer separar do homem o seu amor. Pois, se há

um problema, este não diz respeito ao amor como tal, nem à necessidade de amar, mas

unicamente à escolha do objeto a ser amado, ou melhor, ao valor ou intensidade que se dá

ao objeto amado, pois em si o objeto é um bem. Portanto, o problema da liberdade é o da

reta escolha das coisas amadas, da intensidade ou medida em que se amam as coisas, isto é,

da reta ordem do amor:

Vive justa e santamente quem é perfeito avaliador das coisas. E quem as estima exatamente mantém amor ordenado. Dessa maneira, não ama o que não é digno de amor, nem deixa de amar o que merece ser amado. Nem dá primazia no amor àquilo que deve ser menos amado, nem ama com igual intensidade o que se deve amar menos ou mais, nem ama menos ou mais o que convém amar de forma idêntica.4

Dentro do princípio da ordem dos seres, o amor é o parâmetro na hierarquia de

valores das coisas a serem amadas: “O amor, que faz com que a gente ame bem o que deve

amar, deve ser amado também com ordem; assim, existirá em nós a virtude que traz

consigo o bem viver”.5 E dentro da hierarquia das coisas a serem amadas, Deus aparece em

primeiro lugar: a Ele deve-se amar com todo o amor: “O Criador, se é verdadeiramente

amado, isto é, se é amado Ele e não outra coisa em seu lugar”,6 aí reside o verdadeiro

amor, que faz do homem um ser reto e feliz. Ao contrário, chegamos, à origem e natureza

do pecado ou mal. Pecado ou mal consiste em submeter a razão humana à paixão; em

desobedecer às leis divinas; em afastar-se do Bem supremo. Portanto, se a perfeição moral

consiste em amar a Deus, em dirigir a vontade a Deus e em pôr todas as potências, os

3 AGOSTINHO, Santo. Comentário da primeira Epístola de São João. Trad. de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989. Livro VII, 8. Nas próximas indicações referentes a esta obra indicar-se-á somente o nome da obra com o respectivo capítulo e parágrafo. 4 AGOSTINHO, Santo. A doutrina Cristã. Trad. Irmã Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. Livro I, Cap. 27, 28. 5 A cidade de Deus XV, 22. 6 Ibid., X, 22.

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sentidos, por exemplo, em harmonia com aquela direção, o mal consistirá em afastar-se da

vontade de Deus. Por isso, que o mal é sempre mal moral e tem como origem a vontade

livre do homem. O homem é o autor do mal moral. O mal moral, nada mais é que um ato

insuficiente da vontade, uma escolha corrupta: para não cair, e portanto para bem usar o

livre arbítrio, é indispensável à intervenção divina. Alcançar a Deus, isto é, conhecer e

amar a verdade, é a única felicidade que pode satisfazer o espírito humano; toda satisfação

nos bens terrenos, imperfeitos e caducos, está destinada a desiludir amargamente a

aspiração inata do homem.

Agostinho, em o Livre Arbítrio e também em a Cidade de Deus, chega à conclusão

que o problema não está nas coisas temporais, que em si são boas, uma vez que foram

criadas por Deus, mas no mau uso dessas coisas pelo homem. O problema está no homem

que, por um ato de liberdade, resolve inverter a ordem estabelecida por Deus, preferindo

amar antes as coisas criadas, inclusive a si próprio, do que ao Criador, a isto Agostinho

chama de má vontade, soberba ou pecado.7

7 O problema do mal perpassa toda a filosofia de Santo Agostinho, pondo em discussão a conduta moral humana e suas implicações éticas. A identificação do mal como sendo pecado (do latim pecus, que significa emperrar, travar), é oriundo do cristianismo. De fato, entre os gregos e outros povos antigos o mal sempre foi pensado de maneira “passiva”, sobretudo entre os povos politeístas, pois acreditavam que fazia parte de uma relação natural com os deuses. Sobretudo, a partir dos escritos paulinos, não temos mais os males humanos como decorrência da vingança dos deuses (como narram os mitos), mas os males do mundo (morais e físicos), como decorrentes do mal ou pecado humano. Mais explicitamente, contrapondo-se a sabedoria, a concupiscência causa males à natureza e, no homem seus efeitos podem ser percebidos, inclusive, no seu próprio corpo (ex: algumas doenças, a morte...). O pecado é então, o mal que se lança do interior do homem não permitindo que o bem prevaleça e, somente é conhecido por ser refletido nas relações com as coisas. Diferentemente do mal metafísico que seria uma realidade externa ao homem, o mal moral parte das paixões humanas; elas são interiores e se concretizam no agente moral que é dotado de consciência, liberdade e vontade. Por ser interior revela-se somente nas ações morais exteriores e reveste-se de coletividade, ou seja, todos partilham seus efeitos, portanto, capaz de determinar o justo e o injusto, o sensato e o insensato, indistintamente. O mal moral tem sua raiz na má vontade humana orientada pelo livre arbítrio, que movida pelos vícios e, não pelas virtudes, não escolhendo corretamente, não proporciona o bem que poderia em potencialidade. Assim, também as más ações cometidas por ignorância, inadvertência e involuntariamente, não deixam de ser males, pois, têm sua origem no primeiro pecado. Esse, com efeito, como antecedente, provocou todos os outros conseqüentes, isto é, os males físicos.

42

Para Agostinho, a força maior da moralidade é o amor, que é a medida e o peso da

vontade humana: “As tendências dos pesos são como que os amores dos corpos, quer

busquem, por seu peso, descer, quer busquem, por sua leveza, subir, pois, como o ânimo é

levado pelo amor aonde quer que vá, assim também o corpo é por seu peso”.8 Para ele o

que pode levar-nos a Deus é a “caritas”, ou seja, o amor indivisível a Deus. A caridade

consiste principalmente num peso interior, que atrai a alma para Deus: “Meu peso é o

amor; por ele sou levado para onde sou levado”.9 Mas esta caridade se diferencia de todas

as outras modalidades de “amor”, pelo fato de referir-se exclusivamente a seres pessoais.

O amor a uma pessoa difere do amor a uma simples coisa. Nós amamos as coisas em atenção à nossa própria pessoa, a cujo serviço elas perdem sua existência, como sucede com outros amores terrenos que se ama, mas que se consome com o passar do tempo. Já o amor: puro, sincero e generoso a um ser pessoal, ao contrário, visa à pessoa como tal, e em si mesma.10

2.2 O AMOR E A NOÇÃO AGOSTINIANA DE ORDEM

A originalidade do pensamento de Agostinho consiste no fato de ele ter realizado

uma síntese entre a filosofia antiga, que lhe foi possível conhecer, e a revelação judaico-

cristã. Só poderemos entender bem sua noção de ordem, se entendermos o que dela

pensaram seus antecessores.

Para a filosofia antiga, isto é, para os gregos, o mundo era inicialmente o imenso

caos que de algum modo passou a ser cosmos. A grande preocupação dos pré-socráticos

era, exatamente, a de saber qual era o arché ou o princípio ordenador do universo. Na

Agostinho, identificando à origem do mal com a liberdade, solidifica seus argumentos, fundamentando na vontade humana (desordenada e depravada), o surgimento de uma realidade não existente, mas, que passa a existir decorrente do mau uso da liberdade, não subsistindo por si própria. 8 A cidade de Deus XI, 28. 9 Confissões XIII, 9, 10. 10 Coment. da 1ª Epístola de São João VIII, 4-5, apud, BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. História

da Filosofia Cristã. 4. ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988. P. 189.

43

verdade, toda filosofia grega procurou esclarecer esta questão. Sabemos, porém, que o

período socrático era mais antropológico e o pós-socrático mais ético, mas foi sem dúvida

o paradigma cosmológico que marcou toda a filosofia grega. Contudo, apesar de

divergências, ficou a idéia da existência de um logos, uma razão universal responsável pela

origem e manutenção da ordem cósmica. O homem, por sua vez, enquanto ser racional,

está submisso a esta ordem e, ao mesmo tempo, ligado ao próprio logos, uma vez que traz

em si uma centelha dele. Esta racionalidade o torna capaz de conhecer a ordem da natureza

e ter a independência de aceitá-la ou rejeitá-la. Decorre daí a noção de que a perfeição

moral consiste na identificação da vontade com a reta ordem da natureza. Portanto, na

visão clássica, a idéia de ordem, tem duas faces: uma ontológica e outra ética.

Santo Agostinho absorve esta noção de ordem e a articula com algumas idéias

fundamentais da revelação judaico-cristã, tais como a de um Deus subsistente, criador de

todas as coisas e, especialmente, do homem. Nesta síntese ele leva a ordem ontológica à

sua perfeição e ao mesmo tempo leva a ordem ética ao seu pleno esclarecimento.

Agostinho, para aperfeiçoar a ordem ontológica, introduz nela a figura do Deus

criador, que em muito ultrapassa tanto o Demiurgo platônico que ordenando o caos faz

surgir o cosmos, como o Uno plotiniano do qual procedem espontaneamente todos os

seres. O Deus da revelação judaico-cristã, diferente e superior, cria, ou seja, faz surgir do

nada: “Ele é o criador... Daí vem ter criado do nada todas as coisas”11, por sua livre e

suprema vontade, tudo o que existe12. Em seu ato criador, Ele dá não só a existência a

todas as criaturas, mas dota-lhes também de uma lei interna e natural que as rege em

harmonia com a sua própria lei eterna13. Além disso, neste mesmo ato, aquele que é o Ser e

o Bem supremo comunica às criaturas seu ser e sua bondade; portanto, estas são

11 O livre arbítrio I, 2, 5. 12 Confissões XI, 4-6 e XII. 13 O Livre Arbítrio I, 2, 4 e 6, 15.

44

ontologicamente boas, não por si mesmas, mas por uma participação na suprema bondade

do seu criador: “Tais seres não conservariam a própria ordem, se não houvessem sido

feitos por Aquele que é em sumo grau, e é sumamente sábio e sumamente bom”.14

Portanto, fica evidente que a ordem ontológica é o fundamento da ordem ética

pois, embora as leis que regem as duas ordens tenham a sua origem no mesmo Deus

criador, a moralidade diz respeito à manutenção ou perturbação da ordem natural. Logo,

enquanto a ordem ontológica aplica-se a todas as criaturas, a ordem ética é específica do

homem, uma vez que somente ele tem o poder de respeitar ou transgredir a lei natural e

eterna. Isto é possível porque, ao criá-lo à sua imagem e semelhança15, Deus o dotou de

vontade livre; tornando-o capaz de uma transgressão culposa ou de uma aceitação

respeitosa da reta ordem dos seres.16 Em um outro momento Agostinho afirma: “Toda

criatura, pois sendo boa, pode ser amada bem e mal. Amada bem, quando observada a

ordem; mal, quando pervertida”.17 Desta forma, a virtude já não pode mais ser concebida

como uma contenção do desejo ou do amor. Portanto, se em seu diálogo sobre A Vida

feliz18, ele havia definido a virtude como moderação da alma, em A Cidade de Deus, ele a

define, de modo mais perfeito, como ordem do amor. “O amor, que faz com que a gente

ame bem o que deve amar, deve ser amado também com ordem; assim, existirá em nós a

virtude, que traz consigo o viver bem. Por isso, parece-me ser a seguinte a definição mais

acertada e curta de virtude: A virtude é a ordem do amor”.19

14 A cidade de Deus XI, 28. 15 Agostinho expõe essa questão em A Trindade XII, 7,12 e XIV, 8,11 e em A Cidade de Deus XII, 23 e 27. 16 Cf. O Livre Arbítrio II, 18,47. 17 A cidade de Deus XV, 22. 18 Nesta obra Agostinho é ainda muito influenciado pelo pensamento grego, principalmente pelos estóicos. Na concepção estóica, os princípios éticos da harmonia e do equilíbrio baseiam-se, em última análise, nos princípios que ordenam o próprio cosmo. Assim, o homem, como parte desse cosmo, deve orientar sua vida prática por esses princípios. A ataraxia, apatia, imperturbabilidade, é o sinal máximo de sabedoria e felicidade, já que representa o estado no qual o homem, impassível, não é afetado pelos males da vida. 19 A cidade de Deus XV, 22.

45

Para Agostinho o amor é a essência e o motor da vida humana, não amar significa

não viver, ser infeliz e contê-lo é o mesmo que viver precariamente ou morrer. Para ele, na

verdade, o coração vive inquieto não porque amamos, mas porque amamos

desordenadamente. Portanto, não será limitando o nosso amor que encontraremos a paz,

mas sim o ordenando: “As coisas que não estão no próprio lugar agitam-se, mas quando o

encontram, ordenam-se e repousam”.20 Ainda uma questão: ao amar, que tipo de ordem o

homem deve seguir? Ora, “a ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais

determina o lugar que lhe corresponde”.21 Assim o homem amará ordenadamente se,

julgando e apreciando todas as coisas com justiça, submeter os bens exteriores ao corpo,

este, por sua vez, à alma, em seguida, na própria alma subordinar os sentidos à razão e esta

a Deus: “Por conseguinte, quando a razão domina esses impulsos da alma, deve dizer-se

que o homem está conformado segundo a norma da ordem”.22

A ordem do amor é a perfeita justiça: “Essa é a perfeita justiça – a que nos leva a

amar mais o que vale mais, e amar menos o que vale menos”.23 Portanto, é somente

quando o homem ama, por sua livre vontade, de acordo com a ordem natural e eterna que o

próprio Deus imprimiu no interior de todas as criaturas, que ele estará vivendo a autêntica

ordem do amor. Além disso, é esta virtude do amor ordenado que, mesmo em meio às

adversidades desta vida que perturbam a paz, nos permite usar ordenadamente os bens e

20 Confissões XIII, 9, 10 e também A cidade de Deus XIX, 13. 21 A cidade de Deus XIX, 13, 1. 22 O livre arbítrio I, 8, 18. Agostinho também diz o seguinte: “Com efeito, quando a mente não se ama como deve é ré de pecado e seu amor não é perfeito. Isso acontece, por exemplo, quando a mente do homem se ama com a mesma intensidade com que ama o seu corpo - pois ela é superior ao corpo. Peca do mesmo modo, e seu amor não é perfeito, se ela se ama mais do que exige o seu ser, como no caso de se amar a si mesma, com o mesmo ardor exigido pelo amor devido a Deus - pois ela é incomparavelmente inferior a Deus. Incorre em pecado de maior malícia e maldade, se ela amar o seu corpo tanto como Deus deve ser amado” (A Trindade IX, 4,4). 23 A doutrina cristã I, 27, 28.

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até os males deste mundo, garantindo-nos assim a verdadeira paz: “Esta paz, ansiada por

todos”.24 Isto se esclarece melhor quando ele nos diz:

Quando nós, mortais, entre a efemeridade das coisas, possuímos a paz que pode existir no mundo, se vivemos retamente, a virtude usa com retidão de seus bens; mas, quando não a possuímos, a virtude faz bom uso até mesmo dos males de nossa condição humana. A verdadeira virtude consiste, portanto, em fazer bom uso dos bens e males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse da perfeita e incomparável paz.25

Como vimos, quando o homem ordena o seu amor encontra a sua paz. E, como em

Agostinho, paz e felicidade se identificam, podemos dizer que amando ordenadamente o

homem será feliz e terá paz: “E tão nobre bem é a paz, que mesmo entre as coisas terrenas

e mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem mais desejável ao desejo, nem superior

em excelência (...) doçura da paz, ansiada por todos”.26

Porém, uma outra questão vem à tona: à medida que o homem ordena o seu desejo

a fim de amar a todos os seres de acordo com o lugar que cada um ocupa na escala

ontológica, vai crescendo nele a consciência de que não há, entre eles, nenhum que seja o

ser supremo, exceto Aquele que os criou. “Sendo, pois, Deus suma essência, isto é, sendo

em sumo grau e, portanto, imutável, pôde dar o ser às coisas que criou do nada, não porém,

o grau sumo, como é Ele”.27 E para conhecê-Lo precisamos transcender com o poder da

razão. “É grande e bem raro esforço transcender com o poder da razão todas as criaturas

corpóreas e incorpóreas, que se apresentam mutáveis, e chegar à substância imutável de

Deus, e dele próprio aprender que toda a natureza que não é Ele não tem outro autor senão

Ele”.28 Ora, a consolidação desta consciência o leva a desejá-Lo, preferencialmente, pois a

própria ordem do amor assim o exige. Falando de maneira diferente, à medida que amamos

ordenadamente as criaturas, percebemos que elas se constituem num convite para que

24 A cidade de Deus XIX, 11. 25 Ibid., XIX, 10. 26 Ibid., XIX, 11. 27 A cidade de Deus XII, 2. 28 Ibid., XI, 2.

47

amemos em primeiro lugar o seu Criador29. Assim, a virtude do amor não apenas faz o

homem amar retamente todas as coisas, mas também desperta e ordena o seu amor-desejo

em direção a Deus.

Para Agostinho, o homem virtuoso ama a Deus não pelo simples cumprimento de

um dever, mas porque O deseja. Porém, mesmo vivendo a ordem do amor e

experimentando toda paz e alegria que esta lhe proporciona, ele ainda não é completamente

feliz. Pois, se deseja Deus, como pode ser feliz, se ainda deseja? “Não é feliz, senão aquele

que possui tudo o que quer...”.30 Também: “Não é feliz aquele que não tem o que deseja”.31

Entretanto, desde então, este homem já é feliz: “Feliz o que Vos ama...”.32, porque ama,

acima de todas as coisas, o Único que pode, realmente, conduzi-lo à plena felicidade.

2.3 O AMOR E A FELICIDADE: O EUDEMONISMO33 ANTROPOLÓGICO EM

SANTO AGOSTINHO

Será que existe alguém que não queira ser feliz? Existirá alguém que não ame?

Amar e ser feliz, dois anseios de todo homem. Mas, em que consiste a felicidade? O que

devemos amar para sermos felizes? Que tipo de amor pode realmente fazer-nos felizes?

Seriam muitas as perguntas e respostas. No entanto, mais do que perguntas, transparecem o

desejo de felicidade e a necessidade de amor. Santo Agostinho, como todo ser humano,

não somente experimentou estas realidades e percebeu a estreita relação que existe entre

29 Cf. Confissões: “Diálogo com as criaturas à procura de Deus” (X, 6,9-10) e “Deus, no poema da criação” (XI, 4,6). 30 A Trindade XIII, 5, 8. 31 Ibid., XIII, 6, 9. 32 Confissões IV, 9, 14. 33 Doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são moralmente boas as condutas que levam à felicidade.

48

elas, mas também se esforçou para compreendê-las e partilhar as suas luzes intelectuais

com seus ouvintes e leitores. Agostinho tinha a certeza e fez isto na esperança de que,

compreendendo-as melhor, nós amaríamos o que realmente necessitamos amar e desse

modo, também neste amor seríamos felizes.

Neste sentido podemos afirmar que toda sua antropologia filosófica gira em torno

do problema da felicidade do homem, e que esta se confunde com o problema do homem

Agostinho; o problema de sua dispersão, inquietude e busca da felicidade: “Tornei-me um

grande problema para mim mesmo e perguntava à minha alma por que estava tão triste e

angustiado, mas não tinha resposta”.34 O centro de sua especulação filosófica coincide

verdadeiramente com sua personalidade. Sua filosofia é uma interpretação de sua vida,

conforme expusemos no primeiro capítulo deste trabalho, através do itinerário de sua vida.

Na obra A Cidade de Deus, Agostinho diz que todos os homens querem ser felizes:

“É pensamento unânime de todos quantos podem fazer uso da razão que todos os mortais

querem ser felizes. Mas quem é feliz, como tornar-se feliz, eis o problema que a fraqueza

humana propõe e provoca numerosas e intermináveis discussões”.35 Esta constatação ele a

põe na base e no início de todas suas argumentações, em resposta às mais variadas

interrogações ou situações. O problema da felicidade humana perpassa toda sua produção

literária, desde os primeiros diálogos filosóficos de Cassicíaco36, passando pelas dezenas

de obras filosófico-teológicas e centenas de cartas e sermões.

Ao escrever uma de suas cartas para aconselhar à rica viúva Proba sobre o que

pedir em oração, Agostinho coloca que a busca da felicidade é algo imanente à natureza do

homem, fazendo, assim, parte da natureza humana; todos os homens, bons e maus, a

desejam: “Todos os homens querem possuir vida feliz, pois mesmo os que vivem mal não

34 Confissões IV, 4, 9. 35 A cidade de Deus X, 1. 36 Cassicíaco, lugar onde Agostinho se retirou junto com seus amigos e sua mãe para se preparar para o batismo. Frutos deste retiro surgiram às obras: A Vida Feliz, Solilóquios, Da Ordem e Contra Acadêmicos.

49

viveriam desse modo, se não acreditassem que, assim, são, ou que podem vir a ser felizes.

Que outra coisa te convém pedir se não o que bons e maus procuram adquirir, ainda que

somente os bons consigam?”37 No final do diálogo, Agostinho chega à conclusão de que a

verdadeira felicidade está em Deus, isto é, só é verdadeiramente feliz quem possui a Deus.

Para ele a busca da felicidade do homem converte-se na procura ou busca de Deus, o único

que pode dar-lhe consistência e estabilidade. A inquietude, as dúvidas, a necessidade de

amor e de felicidade fundamentam a natureza própria do homem. Esta inquietação não é

senão a ânsia por conhecer a si mesmo e a Deus: “Onde estava eu quando te procurava?

Estavas diante de mim, e eu até de mim mesmo me afastava, e se não encontrava nem a

mim mesmo, muito menos podia encontrar-te a ti”.38 Agostinho, de certa forma, renova a

especulação filosófica sobre o homem, ao transformar o princípio filosófico-natural de

Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo” em um princípio filosófico-religioso: “Que eu me

conheça a mim mesmo e que te conheça, Senhor!”.39

Nisso Agostinho introduz um importante elemento para a compreensão de sua

especulação filosófica racional: a fé revelada que daria um caráter original ao seu

pensamento filosófico e que se caracterizaria por uma Filosofia Cristã. Agostinho, neste

sentido, faz uma perfeita conciliação entre a fé e a razão ou filosofia, chegando à sua

máxima de “Crede ut intellegas, intellege ut credas”, ou seja: “Crê para que a fé ajude o

intelecto a entender; entender, para que o intelecto procure a fé”.40 Alguns comentadores

de suas obras afirmam que toda filosofia de Agostinho é filosofia cristã, desenvolvendo-se

no âmbito da fé, não sendo senão esforço para reencontrar, pela razão, a verdade recebida

por via da autoridade. Eles reconhecem que a necessidade de crer para compreender é

37 AGOSTINHO, Santo. Cartas a Proba e a Juliana: direção espiritual. São Paulo: Paulus, 1987. Ep. 130, 4,9. 38 Confissões V, 2, 2. 39 Solilóquios II, 1, 1. 40 Sermão 43, 9.

50

exigência essencial do agostinianismo, completada pelo compreender para melhor crer.41

Para Agostinho, o objetivo da filosofia será sempre a procura da felicidade: “Que o

filósofo tenha amor a Deus, pois se a felicidade é o fim da filosofia, gozar de Deus é ser

feliz”.42 O filósofo procura a verdade, não simplesmente para ser sábio, mas para ser feliz,

e coloca tal felicidade onde realmente ela se encontra, a saber: na posse de um bem

imutável, na verdade, em Deus. Quem procura a felicidade busca a Deus, e só ao encontrar

a Deus encontrará a felicidade. “Ninguém faz feliz o homem senão aquele que o criou”.43

Portanto, para responder aos questionamentos sobre onde encontrar a felicidade ou

como pode o homem ser feliz, Agostinho não tem dúvidas de que uma só é a resposta: a

sabedoria. Sabedoria, entretanto, que é a posse do conhecimento, de verdade tal, capaz de

saciar plenamente a aspiração humana pela beatitude. Ele proclama com convicção, ser a

Sabedoria um dos nomes de Deus, mais precisamente, o nome do Filho de Deus, Cristo.

Ele vincula sabedoria, posse do conhecimento ou da verdade, com a felicidade. Para ele

não é possível a felicidade sem a verdade. Quando, mais tarde ao rever a própria atitude de

inquietação e angústia que dominou toda sua vida, Agostinho dá-se conta de que, na

realidade, nunca desejou outra coisa senão a verdade, e que a verdade é o próprio Deus,

que Deus se encontra no interior do homem, na sua alma. A partir de sua experiência ele

nos diz: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração

do homem”.44

2.4 A MORAL INTERIOR: PRINCÍPIO DO AGIR HUMANO

41 Cf. BROWN, Peter. Apud. OLIVEIRA, Nair de Assis. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. São Paulo: Paulinas, 1993. 42 A cidade de Deus VIII, 9. 43 Epístola 155,2. 44 A verdadeira religião 39, 72.

51

Para Agostinho, como vimos no item anterior, o grande problema do homem é a

busca da felicidade, a qual consiste na plena posse e gozo do amor, da sabedoria, da

verdade. Ou seja, da verdadeira felicidade que se encontra em Deus, “sumo bem do

homem... ser supremo... imutável, ao qual todos os outros bens se referem”.45 A partir

desse pressuposto, Agostinho orienta suas teses morais para a busca da beatitude, e, por

ela, para Deus, que exclusivamente a pode assegurar. Nesse sentido, toda moral

agostiniana se enquadra dentro de seu eudemonismo antropológico, cuja preocupação

primeira e última é a felicidade do homem que, em Agostinho, adquire um caráter cristão,

onde o início e o fim da procura é Deus.

Santo Agostinho chega à certeza de que só em Deus o homem encontra a

verdadeira felicidade. Entretanto, o homem é um ser em concreto, que vive em meio a bens

materiais. Daí, como conciliar a felicidade temporal, proporcionada pelos bens temporais,

mutáveis e corruptíveis, e a verdadeira felicidade que se encontra em Deus, imutável e

eterno? De que forma o homem pode usufruir dos bens temporais em vista dos bens

eternos?

Para ele, viver, segundo os bens temporais, tendo em vista os bens eternos,

constitui o grande drama existencial do homem em busca da felicidade:

Há uma certa vida do homem envolvida nos sentidos carnais, entregue aos gozos da carne (...) A felicidade de tal vida é temporal (...) Mas há outra vida, cujo gozo está na alma, cuja felicidade é interior e eterna (...) O que importa é saber para onde a alma racional prefere dirigir pela vontade o uso da mesma razão ou para os bens da natureza exterior e inferior; isto é, para que goze do corpo e do tempo ou, ao invés, da divindade e da eternidade.46

Buscando resolver tal drama, Agostinho desenvolve sua doutrina moral e ascética,

centrada nas regras da ordem e do amor, ou amor ordenado, que se baseia no princípio

45 Epístola 137. 46 Epístola 140, 2,3.

52

cristão da divina ordem, como vimos no item anterior, e cujo papel fundamental é

desempenhado pela vontade humana, a qual, conhecendo a reta ordem através da razão,

irá escolher, por um ato livre, viver segundo essa ordem ou desrespeitá-la.

Neste sentido, a doutrina moral agostiniana supõe a existência de uma ordem

divina no mundo. O reconhecimento e enquadramento nessa reta ordem pela razão ou

vontade humana é a condição da posse e gozo da verdadeira felicidade do homem.

Reconhecendo essa ordem, a vontade humana evita perturbá-la e respeita-a em

suas ações, mediante a justa apreciação de valores e reta conduta de vida, frente a ela.

Assim, o fim da moralidade é a reta manutenção da ordem, que se identifica com a vontade

divina, ao passo que o mal, desordem, consiste na transgressão culposa desta ordem:

“Deus, Autor das naturezas, não dos vícios, criou o homem reto; mas, o homem,

depravando-se por sua própria vontade e justamente condenado, gerou seres desordenados

e condenados”.47 Mesmo o mal, fruto da livre vontade do homem, passa a fazer parte da

ordem divina, pois, segundo Agostinho, “o Criador permanece bom, usando bem, mesmo

do que é mau. Quem, pois, se põe fora da ordem pela injustiça dos pecados, volta a esta

ordem mediante a justiça dos castigos”.48

Em diversos momentos de A Cidade de Deus, Agostinho insiste em afirmar que

toda natureza é boa, visto que todas as coisas foram criadas por Deus, o problema é o valor

que a vontade humana atribui às coisas criadas: “Nenhuma natureza, absolutamente

falando, é um mal”.49

Por último, ele defende que, na ordem dos valores, não devemos antepor as coisas

superiores às inferiores, mas dar a cada um o que é seu. Para defender essa idéia, ele parte

do conceito ciceroniano de justiça (fundado no direito natural), segundo o qual justo é dar a

47 A cidade de Deus XIII, 24. 48 Epístola 140, 2, 4. 49 A cidade de Deus XI, 27.

53

cada um o que é seu: “E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela, senão a virtude

pela qual damos a cada um o que é seu?”50 Ele lhe dá um caráter religioso, tendo como

fundamento o duplo preceito da caridade: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao

próximo como a si mesmo” 51, ou seja, dar a cada um o amor devido; a Deus em primeiro

lugar e a si mesmo e ao próximo em segundo lugar.

2.5 O AMOR E A EXPERIÊNCIA DE DEUS

Somente o amor a Deus é o único caminho que conduz o homem à perfeita

felicidade; porém, como este amor é ainda um desejo, uma vez despertado em seu coração,

ele não repousará enquanto não possuir a Deus: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso

coração, enquanto não repousa em ti”.52 Quando o desejo de Deus desperta em nós e que,

movidos por ele, resolvemos amá-Lo acima de todas as coisas, a nossa vida transforma-se

num constante exercitar-se e o fim não pode ser outro senão a sua completa satisfação.

Este desejo de Deus marca o início de um novo movimento na caminhada do homem em

busca da felicidade. Antes de sua conversão Agostinho buscava a felicidade fora de si

mesmo e só encontrava insatisfação com a posse das coisas e das criaturas; isto o fez sentir

a necessidade de realizar o movimento de retorno para seu próprio interior, a fim de, pela

prática da virtude, ordenar o seu amor-desejo. Agora, tendo a ordem do amor despertado

nele o desejo de Deus, apresenta-se a ele a oportunidade de encontrar não apenas a si

mesmo, mas ir além de seu próprio espírito a fim de atingir o transcendente, isto é, Deus.

50 O livre arbítrio I, 13, 27. Também em A cidade de Deus XIX, 21 e XXI, 16. 51 Lucas 10, 27. 52 Confissões I, 1, 1.

54

O desejo de Deus não é algo acrescentado culturalmente, mas é algo que já se

encontra no interior do homem, está implícito no desejo de felicidade: “desejam ser felizes,

como a verdade o proclama, como o exige a própria natureza, na qual o Criador inseriu

esse desejo”,53 é algo tão natural e inato quanto ao desejo de autoconservação e o próprio

desejo sexual. O desejo de Deus é parte constitutiva da estrutura psico-ontológica do

homem; e ele o carrega dentro de si, como uma fome interior.54 O homem deve tomar

consciência desse desejo e canalizá-lo para Deus, senão ele permanecerá secretamente vivo

em seu coração, provocando nele uma constante inquietude.55 Para Agostinho Deus

colocou esse desejo no coração do homem não porque precisasse dele, visto que Ele é

imune às necessidades, mas porque queria que ele participasse de sua suprema beatitude.56

Portanto, buscar ser feliz, é buscar a Deus e o desejo universal de felicidade é a

explicitação do desejo de Deus, que secretamente habita todo homem.

Para encontrar a Deus o homem deve encontrar-se a si mesmo, imagem e

semelhança do seu Criador, aí está a dignidade do homem, não no sentido corpóreo, mas

na sua alma “imagem de Deus... se encontra na alma”57 ou precisamente na sua parte mais

nobre, também chamada de razão, mente ou espírito que é diferente dos irracionais58, isto

é, no homem interior.59 Mas, para o pensamento agostiniano, o fato, de Deus habitar no

interior do homem, mesmo que o homem entre em seu interior e conheça sua alma, logo

percebe que mesmo esta parte mais nobre dele ainda não é Deus, será ainda necessário

transcender totalmente a si mesmo e, subindo interiormente, ir para além de seu próprio

53 A Trindade XIII, 8, 11. 54 “Fome de Deus...” Confissões III, 1,1. 55 Confissões I, 1,1. 56 “São felizes aqueles (...) por estarem unidos a Deus, somente Deus é o bem que torna feliz a criatura racional ou intelectual. Assim, embora nem toda criatura possa ser feliz (pois não alcançam nem são capazes de tal graça as feras, as plantas, as pedras e coisas assim), a que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou. Torna-a feliz a posse daquele cuja perda a torna miserável” (A cidade de Deus XII, 1,2). 57 A Trindade XIV, 16,22. 58 Ibid., XV, 1, 1. 59 A Trindade XIV, 8,11 e O livre arbítrio, Livro I, 8, 18

55

espírito: “A Verdade habita no coração do homem (...) vai além de ti mesmo (...) dirige-te à

fonte da própria luz da razão”.60 É na alma, interioridade do homem o lugar onde o homem

experimenta a vida feliz.61 Esta, porém, só fixará morada se o homem encontrar, não

somente a si mesmo, mas também a Deus.

Encontrar Deus é uma necessidade de todo ser humano, é um desejo e o desejo é

um dos afetos básico da vontade, está presente em todas as partes da alma. Portanto, a

mente, enquanto sua parte superior, é dotada não somente da capacidade de conhecer e

contemplar a Deus, mas também de desejá-Lo, amá-Lo e conseqüentemente possuí-Lo:

“Ninguém é capaz de amar a Deus, antes de o conhecer. E o que é conhecer a Deus, senão

o contemplar e perceber com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um corpo para

que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos corporais”.62 Amar a Deus é renunciar a

si mesmo e entregar-se completamente. Quando o homem entrega-se totalmente ao amor

de Deus , entra na posse de Deus, e quem O possui já não tem necessidade de mais nada,

pois Ele é o soberano bem, já que possuí-Lo é tudo possuir. Amando a Deus desta forma é

que o homem estará, de fato, amando a si mesmo, uma vez que somente a posse de Deus o

satisfaz plenamente.63 A este amor que é união com Deus, Agostinho, chama de caridade,

pois é o amor com perfeição, sem inquietudes, porque atingiu o seu Bem supremo e,

portanto, sua completa satisfação.64

Estar unidos a Deus e amá-Lo, é tornar-nos semelhantes a Ele: “Cada um é tal qual

aquilo que ama. Amas a terra? Terra serás. Amas a Deus? Que direi? Serás deus? Não ouso

afirmá-lo por minha conta. Escutemos as Escrituras: ‘Eu disse sois deuses e todos sois

60 A verdadeira religão 39, 72. 61 A vida feliz IV, 25. 62 A Trindade VIII, 4, 6. 63 A Trindade VIII, 8,12 e XIV, 14,18. 64 A verdadeira religião 47,90. Agostinho, também faz uma síntese da moral, baseada no amor, em sua obra: A doutrina cristã, dos capítulos: 22 ao 34.

56

filhos do Altíssimo”.65 Quanto mais estamos unidos a Ele, mais compreendemos que

“Deus é Amor”, e quem O ama realmente participa do seu amor. Portanto, amar a Deus é

tornar o nosso amor semelhante ao Seu; pois, uma vez que a sua essência66 é o Amor, é

somente quando amamos do jeito Dele que nos tornamos semelhantes a Ele.

2.6 O AMOR E A ÉTICA DO DEVER: PRINCÍPIO DA MORALIDADE

AGOSTINIANA

Partindo do pressuposto de que a finalidade da moralidade é garantir a perfeita

ordem, ou a reta ordem dos valores, Agostinho desenvolve os conceitos de “uti-frui” como

princípio da moralidade, através do qual, pela vontade livre, o homem distingue as coisas

a serem gozadas das coisas a serem usadas.

Para Agostinho, a vida moral se traduz, forçosamente, numa seqüência de atos

individuais. Cada um deles implica numa tomada de posição face às coisas; ou fruímos ou

nos utilizamos delas.

“Fruir”,67 significa afeiçoar-se a algo por si mesmo, ou seja, “fruir é aderir a alguma coisa

por amor a ela própria”.68 “Utilizar”, ao contrário, é servir-se de algo para alcançar um

objeto que se ama; ou seja, dizemos “usar, quando buscamos um objeto por outro”.69 Logo,

podemos usar de todas as coisas, desde que as usemos com a finalidade de atingir a fruição

de Deus; pois sendo Ele o nosso sumo bem é também o único que merece ser amado por si

65 Comentário da 1ª Epístola de São João II, 14. 66 Para os gregos a idéia de um Deus que ama era impensável; para eles o amor era um desejo, um eros, próprio de um ser imperfeito; não poderia existir em Deus, ser perfeito e imutável por natureza. Agostinho, porém, é fiel à revelação cristã, para ele Deus não somente ama, mas o amor é a sua própria essência. 67 “Ninguém é feliz, se não goza do que ama” (A Cidade de Deus VIII, 8). 68 A doutrina cristã I, 4. Ou também: “Dizemos gozar, quando o objeto nos deleita por si mesmo, sem necessidade de referi-lo a outra coisa” (A cidade de Deus XI, 25). 69 A cidade de Deus XI, 25. Assim, como: “Usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado” (A doutrina cristã I, 4).

57

mesmo. O uso ilícito, por sua vez, recebe o nome apropriado de abuso, ou seja, “quando se

oferece onde não convém ou o que não convém neste lugar, mas noutro, ou quando se

oferece quando não convém ou o que não convém na ocasião, mas noutra”.70

Assim sendo, Agostinho deixa bem claro que, entre as coisas:

Há algumas para serem fruídas, outras para serem utilizadas e outras ainda para os homens fruí-las e utilizá-las. As que são objeto de fruição fazem-nos felizes. As de utilização ajudam-nos a tender à felicidade e servem de apoio para chegarmos às que nos tornam felizes e nos permitem aderir melhor a elas.71

Considerando-se que nós, homens, “somos peregrinos para Deus nesta vida

mortal”,72 que não podemos viver felizes a não ser na “pátria celestial”, que “se queremos

voltar à pátria, lá onde podemos ser felizes, havemos de usar deste mundo, mas não

fruirmos dele”,73 isto é, por meio dos bens corporais e temporais, devemos procurar

conseguir as realidades espirituais. Disto decorre que, “devemos gozar unicamente das

coisas que são bens imutáveis e eternos. Das outras coisas devemos usar para poder

conseguir o gozo daquelas”.74

Como se vê, através dos conceitos de “uti-frui”, Agostinho estabelece a distinção

entre as coisas das quais o homem pode gozar, que asseguram a verdadeira felicidade e as

coisas que deve usar, e usar bem, como instrumentos para atingir a felicidade:

A alma pode também usar bem da felicidade temporal e corporal, se não se entregar à criatura, desprezando o Criador, mas antes pondo aquela felicidade a serviço do mesmo Criador (...) Assim como são boas todas as coisas que Deus criou (...) a alma racional se comporta bem em relação a elas, se guardar a reta ordem e distinguir, escolhendo, julgando, subordinando os bens menores aos maiores, os corporais aos espirituais, os inferiores aos superiores, os temporais aos sempiternos; evitará de fazer decair em si mesma e ao corpo da sua nobreza, com o desprezo dos bens superiores e o desejo daqueles inferiores.75

70 A cidade de Deus XV, 7. 71 A doutrina cristã I, 3. 72 2Coríntios 3, 6. 73 A doutrina cristã I, 4. 74 Ibid., I, 22. Ou ainda: “Das coisas temporais devemos usar, não gozar, para merecermos gozar das eternas. Não como os perversos, que querem gozar do dinheiro e usar de Deus, porque não gastam o dinheiro por amor a Deus, mas prestam culto a Deus por causa do dinheiro” (A cidade de Deus XI, 25). 75 Epístola 140, 2, 4.

58

Dentro dessa ótica, o homem, não pode ser, por si mesmo, o bem capaz de fazê-lo

feliz,76 o que significa dizer que “ninguém deve gozar de si próprio, porque ninguém deve

se amar por si próprio, mas por aquele de quem há de gozar”77, pois “somente Deus é o

bem que torna feliz a criatura racional (...) pois, embora nem toda criatura possa ser feliz, a

que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou”.78

Com essas palavras, não devemos entender que o homem deva odiar-se a si

próprio, mas, tão somente, que o homem deve amar a si mesmo, mas em função de Deus,

afinal diz o preceito evangélico : “amarás o Senhor teu Deus de todo coração, de toda a

alma e todo entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”.79 Também não

devemos entender que o homem deva odiar o seu próprio corpo, pois “ninguém jamais

quis mal à sua própria carne”.80 Pelo contrário, na epístola 130, Agostinho afirma que,

entre os bens que devemos desejar para vivermos convenientemente, está a saúde do corpo,

pois a conservação da saúde relaciona-se com a própria vida: com a sanidade e integridade

da alma e do corpo.81 O que Agostinho propõe é que devemos “ensinar ao homem a

medida de seu amor, isto é, a maneira como deve amar-se a si próprio para que esse amor

lhe seja proveitoso (...) como deve amar seu corpo, para que tome cuidado dele, com

ordem e prudência”.82 O que Agostinho condena é o amor desordenado ao corpo. Em A

Cidade de Deus, falando a respeito do amor ao corpo das mulheres diz:

A beleza do corpo, bem criado por Deus, mas temporal, ínfimo e carnal, é mal amado, quando o amor a ele se antepõe ao devido a Deus, bem eterno, interno e sempiterno. Assim como o avaro, abandonando a justiça, ama o ouro, o pecado não é do ouro, mas do homem. E assim sucede a toda

76 A doutrina cristã I, 23. 77 Ibid., I, 22. 78 A cidade de Deus XII, 1. 79 Mateus 22, 37. 80 Efésios 5, 29. 81 A doutrina cristã I, 13. 82 Ibid., I, 24.

59

criatura, pois, sendo boa, pode ser amada bem ou mal. Amada bem, quando observada a ordem; mal quando pervertida.83

Vimos que o princípio norteador de toda moral agostiniana é a distinção entre

bens a serem gozados e bens a serem usados. Segundo Manfredo Ramos84, esta separação é

conseqüência da distinção que este faz entre Ser Imutável (Bem ontológico - Deus) e seres

mutáveis (bens éticos - corpos), tendo-se uma dependência destes ao primeiro, resultando-

se que, na ordem moral, o ontológico comanda o ético85, o que resulta numa “moral da

felicidade” e numa “moral do dever”, ambas fundamentadas na busca da felicidade.

Essa distinção, que não é nada mais do que as duas faces de uma mesma moeda,

explica por que Agostinho procura a felicidade não como uma felicidade qualquer, mas a

própria vita beata do homem, aquele bem ao qual devemos dirigir todas as nossas ações,

sem que haja mais nada além dele que procurar,86 ou seja, Deus, verdadeira felicidade, bem

em si mesmo ou Bem ontológico. Nesse sentido, a moral agostiniana fundamenta-se numa

“moral da felicidade” enquanto um bem a ser buscado por si mesmo. Entretanto Agostinho

reconhece que o homem é um ser existencial que vive numa realidade temporal, na qual,

quer queira ou não, precisa dos bens temporais para sobreviver. Daí que, sendo a

preocupação primeira do homem a busca da verdadeira felicidade, este precisa usar os bens

temporais de tal forma que o levem a alcançar os bens eternos. Surge assim o segundo

aspecto da moral agostiniana, que é a “moral do dever”.87

83 A cidade de Deus XV, 22. E ainda: “Não há dúvida de que todas as coisas que podem ser desejadas de modo útil e conveniente, o devem em função daquela vida, na qual se vive com Deus e de Deus” (Epístola 130, 7,14). 84 RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. A Idéia de Estado na Doutrina Ético-Política de Santo Agostinho: um estudo do epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. São Paulo: Loyola, 1984, 370 p. (Coleção Fé e Realidade, 15). 85 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo T. op. cit. p. 62. 86 A cidade de Deus VIII, 8. 87 “O dever é uma categoria fundamental da filosofia prática. Isso, de modo algum, significa que só tenha uma importância técnica filosófica. Na vida cotidiana, expressa o que se tem a obrigação de fazer, o que convém fazer. Serve também para formular e descrever a relação existente entre nossas ações e os objetivos que elas buscam atingir” (COUTO, Sperber Monique (org.). Dicionário de ética e filosofia moral. Vol. I. São Leopoldo: Unisinos, 2003). Para Santo Agostinho, tudo foi criado por Deus segundo ordem, peso e medida, isto é, tudo está sabiamente ordenado numa escala hierárquica: Deus, homem, animal, vegetal e mineral. Essa

60

Assim sendo, a “moral da felicidade”, fundamentada na busca do Bem ontológico

(Deus), orienta ou determina a “moral do dever”, que se caracteriza pela reta utilização dos

bens temporais, pois “os homens não se tornam bons por meio desses bens, mas os que se

fizeram tais por outro meio é que fazem com que estes se tornem bons, usando-os bem (...)

Segue-se que qualquer bem que é desejado útil e convenientemente deve ser sem dúvida

referido àquela única vida que se vive com Deus e de Deus”.88

Como se vê, numa relação de conseqüência, Agostinho mostra que não há

verdadeira felicidade sem vontade reta, isto é, sem a virtude que, usando bem dos bens

temporais, os torna bons (moralmente), ordenando-os para a vida eterna, que é a única

bem-aventurada.

Manfredo Ramos nos chama a atenção para o fato de Agostinho orientar toda sua

moral para a busca da felicidade enquanto Bem ontológico, a ser alcançado na vida eterna,

dando, assim, um caráter teleológico à sua moral. Para ele, essa é uma característica

genuína da moral agostiniana, que nos permite diferenciá-la da dos antigos filósofos, pois,

como na antiguidade não se tinha uma convicção clara de vida eterna, a moral dos antigos

não tinha este caráter teleológico.89

Diante do exposto, ainda, poderíamos nos perguntar: seria o homem capaz, por suas

próprias forças, de alcançar a felicidade perfeita? Agostinho, desde o seu diálogo sobre A

Vida Feliz, apesar da forte influência grega, já começa a delinear o que virá a ser a sua hierarquia é a Lei eterna de Deus, não é uma Filosofia, pois segundo Santo Agostinho a lei eterna é a vontade Divina que manda conservar a ordem natural e não perturbá-la. A Lei eterna Divina é interior à criatura (o objetivo fundamental do ser humano, da sua felicidade, é realizar a vontade de Deus. Por isso o dever moral é definido como a ação em conformidade com a vontade divina). É a conjugação do pensamento de Deus com as criaturas ordenadas, traduzido na escala Cósmica. A “moral do dever” consiste no amor à ordem. Para ele, Deus não está “lá fora”, nas criaturas, nos prazeres, na Filosofia e nem na riqueza (“nem lá em cima, nem lá em baixo”), mas está dentro de nós. Assim, ele consegue encontrar Deus dentro de si através da verdade. Então, a “moral do dever” é tão somente amar a verdade Divina presente em mim. “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão” (A verdadeira religião 39,72). 88 Epístola 130, 2,3,4. Mais adiante diz: “A única verdadeira vida e a única bem-aventurada (...) em vista desta única coisa procuram-se e desejam-se honestamente todas as demais coisas” (Ibid., 130, 14). 89 Cf. RAMOS, Francisco Manfredo T. op. cit. p. 69.

61

filosofia cristã, pois se, de um lado, ele concorda com os estóicos de que a felicidade só se

encontra na posse da sabedoria,90 de outro, os supera quando afirma: “Mas a que devemos

chamar de sabedoria, senão a sabedoria de Deus?”91 E, se ele concorda com os platônicos

de que a autêntica felicidade só se encontra na fruição de Deus,92 também a estes supera

quando diz que há “uma certa admoestação que age em nós, para que nos lembremos de

Deus, para que O procuremos, O desejemos (...) emana até nós da própria fonte da

verdade”.93 É o próprio Deus-uno-e-trino que, agindo em nós, nos conduz à fruição de sua

Verdade e de seu Ser. Mas uma das grandes novidades da ética de Agostinho é,

exatamente, a idéia de que a felicidade perfeita é atingível; porém, não devemos entendê-

lo, como fizeram os gregos, enquanto uma conquista exclusivamente humana.94 Na

verdade, para que alcancemos, faz-se necessário que o próprio Deus seja nosso aliado nesta

busca; de modo que possamos contar com sua ajuda, ou melhor, com a sua graça: “A

graça, mediante a qual, unindo-se a Ele, somos felizes”.95 A felicidade é um dom de

Deus.96 E, mesmo que se diga que ela é um dom merecido, uma vez que é dada em

resposta ao esforço de busca do homem, ela é sempre um dom. É o próprio Deus que,

fazendo-se Ele mesmo dom, quer doar-se inteiramente a nós para saciar completamente o

nosso ser. Feita a experiência da fruição de Deus permanecerá para sempre: “E como

ninguém pode lhe arrebatar, nem a sua virtude nem o seu Deus, tampouco pode lhe ser

tirada a felicidade”.97 Somente a união com Deus nos assegura a nossa fruição Dele e a

nossa imortalidade, condições para sermos plenamente felizes. Nossa união com Deus se

dá através da caridade, então podemos concluir que é somente a caridade que nos garante a

90 A vida feliz IV, 33. 91 Ibid., IV, 34. 92 A cidade de Deus VIII, 8. 93 A vida feliz IV, 35. 94 A Trindade XIII, 7,10. 95 A cidade de Deus VIII, 10, 2. 96 A vida feliz I, 5. 97 A verdadeira religião 47, 91.

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verdadeira felicidade. A caridade, além de nos fazer felizes já nesta vida, é também a

garantia de que ainda maior será a felicidade na vida futura. Embora ainda não saibamos

como será esta vida bem-aventurada que nos espera, já temos convicção de que, por mais

feliz que possamos imaginá-la, a sua realidade supera todas as nossas expectativas:

Pois naquela felicidade, nada desejará que lhe falte e não faltará nada do que desejar. Tudo o que amar estará lá presente e não desejará nada que esteja ausente. Tudo o que ali estará para o gozo de todos os que o amam. E eis o que será o maior grau de felicidade: estará certo de que será assim por toda a eternidade. 98

Quanto à felicidade da vida presente Agostinho afirma: “Segue o mesmo caminho

que a salvação, o da esperança. E como a salvação não a temos já, mas a esperamos futura,

assim se passa com a felicidade”.99 Neste sentido, enquanto se vai adiando a perfeita

felicidade para a vida futura, outro movimento vai se operando no pensamento de Santo

Agostinho. Assim, aquela primazia do conhecimento tão presente no diálogo sobre A Vida

Feliz, vai cedendo lugar nas obras da maturidade a um primado da vontade sobre o

intelecto. E como o desejo é a principal afeição da vontade e é também amor, a partir desta

nova primazia, o amor aparece como a categoria central de todo o seu pensamento e mais

especificamente de sua ética. Portanto, a caridade surge agora como a virtude primeira e o

fundamento de toda a vida ética. Para ele a caridade é a essência da ética e se somarmos a

estas conclusões o fato de que o homem é um ser social e se ele ama a Deus deve também

amar os outros poderemos desenvolver, assim, a dimensão ética e social do amor. Isso é o

que pretender-se-á desenvolver no próximo capítulo.

98 A Trindade XIII, 7,10. Em outro texto Agostinho assim afirma: “Pois a ninguém que a deseja, a beatitude concedida é menor do que a desejada. Logo não poderá sentir-se decepcionado quem a encontrar, pois não será inferior à idéia que dela se fizera. Por mais alta que alguém queira tê-la imaginado, mais preciosa achará quando a abraçar” (A doutrina cristã I, 38, 42). 99 A cidade de Deus XIX, 4, 5. Cf. também: A Trindade XIII, 7,10.

CAPÌTULO III

A DIMENSÃO ÉTICA E SOCIAL DO AMOR

Como já vimos, para ser plenamente feliz, o homem precisa amar a Deus, numa

entrega total de si mesmo; pois somente amando-O deste modo, se unirá a Ele fruindo-O e,

desta forma, experimentará a verdadeira felicidade. No capítulo anterior vimos que toda a

moralidade Agostiniana tem como base a distinção entre as coisas a serem gozadas

(amadas) e as coisas a serem usadas que, em última instância, é uma distinção entre os

seres imutáveis ou superiores, nos quais devemos concentrar todo nosso amor, e seres

mutáveis ou inferiores, dos quais devemos apenas nos utilizar em função das coisas

superiores e que a reta ordem do amor consiste em não amarmos as coisas inferiores em

detrimento das coisas superiores.

No que se refere ao homem individual, classificado entre os seres mutáveis,

Agostinho não tem dúvida de que este não deve amar-se por si mesmo, mas amar a si

mesmo em função de Deus.

Entretanto, no mundo real o homem não vive isolado, ele vive em sociedade, em

relação concreta com os demais homens, seres, também, mutáveis. Daí surge a questão:

como atender ao preceito bíblico de nos amarmos mutuamente? Devemos amar o nosso

semelhante, por ele próprio ou por outro fim? Se for por ele próprio, nós estaremos

gozando1 dele; se for por outro motivo, nós nos servimos2 dele.

1 Pode ser traduzido por fruir. “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela própria” (A doutrina cristã I, 4). Fruir de Deus, em Agostinho significa a interioridade espiritual, encontrar Deus dentro de si, entregar-se inteiramente ao Seu amor e unido a Ele, pela caridade, experimentar todo prazer que esta união pode lhe oferecer. Fruir de Deus é sentir Sua presença em nós a nos satisfazer plenamente; é, enfim, participar de seu

64

Partindo do mesmo preceito evangélico que justifica o amor do homem a si

mesmo: “amarás o Senhor teu Deus de todo coração, de toda a alma e de todo

entendimento e amarás o teu próximo como a ti mesmo”,3 Agostinho recomenda que

devemos amar nossos semelhantes nas mesmas condições em que nos amamos a nós

mesmos, ou seja, que amemos nossos semelhantes não por si mesmos, mas em função de

Deus: “todo homem, enquanto tal, deve ser amado por causa de Deus”.4

Assim, pelo preceito evangélico do amor, Agostinho estabelece que é nosso dever

amar ao próximo como a nós mesmos. E mais do que isso, que esse amor deve ser

universal; deve ser estendido a todos os homens: “todos devem ser amados de forma

igual”,5 inclusive nossos inimigos “devemos amar até nossos inimigos”,6 pois “quem não

vê que ninguém se exclui do preceito e a ninguém pode-se negar o dever da misericórdia?

Esse serviço foi estendido até a nossos inimigos pelo Senhor: ‘amai os vossos inimigos,

fazei bem aos que vos odeiam’ ( Mt 5,44 )”,7 não por nós mesmos, nem por eles mesmos,

mas por “querer acima de tudo que todos amem a Deus conosco”.8 Daí que, em A Cidade

de Deus, Agostinho afirma: “a própria misericórdia que alivia o próximo não é, em

absoluto, sacrifício, se não feita por amor a Deus”.9 E comenta:

A esse Bem devemos ser conduzidos por aqueles que nos amam e conduzir os que amamos, para que, assim, se cumpram os dois preceitos (...) A quem sabe amar a si mesmo, quando lhe manda amar ao próximo como a si mesmo, que outra coisa se lhe manda senão, quando esteja ao seu alcance, encarecer a outrem o amor a Deus? Quem ama ao próximo como a si mesmo, outra coisa não quer senão ser feliz.10

Ser, de sua Bondade e de seu Amor. “É preciso permanecer junto a ele, aderir plenamente a ele, para gozarmos de sua presença” (A Trindade VIII, 4, 6). 2 Também, pode-se dizer usar. “Usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado” (A doutrina cristã I, 4). 3 Mt 22, 37. 4 A doutrina cristã I, 28. 5 Ibid., I, 29 6 Id. 7 Ibid., I, 31. 8 Ibid., I, 29. 9 A cidade de Deus X, 6. 10 Ibid., X, 3.

65

Assim, a partir do duplo preceito evangélico, Agostinho aponta o amor ao

próximo (a caridade) como força que dá movimento de toda socialização entre os homens.

As relações humanas têm como sangue e energia o amor. O amor é a força motriz da

vontade que culmina na liberdade para Deus, supremo Bem, para onde tudo se dirige. Esse

amor dirigido aos semelhantes, em função de Deus, é a caridade. Assim, pela caridade,

Agostinho faz a ponte entre o homem individual e o homem social, pois a realização do

amor em Deus exige a realização do amor entre os homens. Pela caridade, o amor assume

uma dimensão social, enquanto princípio de socialização do homem.

Essa preocupação em ressaltar a dimensão social do amor fez com que, um ano

antes de iniciar A Cidade de Deus (411-412), em carta ao senador Volusiano, respondendo

às objeções deste ao Cristianismo, Agostinho apresentasse ao amigo o duplo preceito do

amor, como única forma possível de se alcançar a paz temporal, ou concórdia, sendo este,

a finalidade imediata do Estado:

Que discussões, que doutrina de qualquer filósofo que seja, que leis de qualquer Estado se podem de algum modo confrontar com os dois preceitos nos quais Cristo diz que se compreendia toda Lei dos Profetas: ‘Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e amarás o teu próximo como a ti mesmo’? Nestas palavras se inclui a filosofia natural, visto que as causas todas de todos os elementos da natureza estão em Deus Criador; está compreendida a filosofia moral, uma vez que uma vida boa e honesta não de outra fonte recebe o seu sacrifício senão quando aquilo que é para se amar, a saber, Deus e o próximo, se ama como se deve; está incluída a lógica, pois a verdade e a luz da alma racional não são senão Deus; está contida também a salvação de um Estado louvável, pois não se funda nem se conserva melhor um Estado do que mediante o fundamento e o vínculo da fé e da sólida concórdia, a saber, quando se ama o bem comum, que na sua expressão mais alta e verdadeira é Deus mesmo, e n’Ele os homens se amam mutuamente com a máxima sinceridade, no momento que se querem bem por amor d’Aquele ao qual não podem esconder o espírito com que amam.11

Assim, dentro do princípio da caridade, o amor a si mesmo e ao próximo em

função de Deus gera a concórdia, que num plano social é base de uma sociedade justa. O

11 Epístola 137, 5, 17.

66

amor próprio, ou o amor ao próximo em função de nós mesmos gera a soberba, que num

plano social é a base de uma sociedade injusta. Por isso, ao iniciar a análise da origem,

natureza, desenvolvimento e fins das “duas cidades” em sua obra: A Cidade de Deus,

Agostinho começa por dizer: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor

próprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si

próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela

busca a glória dos homens, e tem esta por máxima a glória de Deus”12.

Como se vê, pelo duplo preceito do amor, Agostinho faz da ordem social um

prolongamento da ordem moral individual, pois a organização dos homens em sociedade

(Estado), fundamentada na reta ordem do amor, não tem outra finalidade senão garantir a

paz temporal, ou felicidade temporal imediata dos homens; mas, tendo em vista a “paz

eterna” ou “verdadeira felicidade” a ser alcançada em Deus. Neste sentido podemos dizer

que toda a moral, toda a sociologia, toda a política de Santo Agostinho não é senão a

aplicação do primeiro de todos os mandamentos: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o

teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito”.13

Assim sendo, vimos que a pedra angular sobre a qual está assentado todo o

eudemonismo antropológico agostiniano é o desejo do homem de ser feliz, ou seja, a “vita

Vera beata” que não é senão alcançar a vida eterna ou “verdadeira felicidade”. Esses

“Fundamentos Ontológicos do Homem”, vão nortear a vida social dos homens organizados

em sociedade (Estado).14 Vamos, portanto, indicar que há uma continuidade entre o

problema central do homem, a busca da “verdadeira felicidade”, e o problema do Estado,

garantir a paz temporal ou felicidade temporal dos homens, com vista à “verdadeira

felicidade”. Sendo assim, a filosofia moral agostiniana constitui uma ampla e

12 A cidade de Deus XIV, 28. 13 Mt 22, 37. 14 A ética política de Agostinho é, também, coerentemente regida por este mesmo princípio.

67

compreensiva síntese entre o caráter íntimo e pessoal do ético e a imersão do homem na

vida universal da humanidade.

3.1 Ética social , prolongamento da moral individual

Todos nós queremos ser felizes, mas ninguém consegue se imaginar feliz sozinho.

O homem não consegue ser feliz sozinho, porque a sua natureza é intrinsecamente social,

ele tem uma necessidade natural de conviver com os outros e a causa fundamental desta

tendência é exatamente a “natureza comum que une todos os homens entre si”,15 isto é, os

homens têm uma mesma origem, estão ligados por um parentesco comum:

Quanto ao homem, chamado, por criação, natural, a ocupar lugar entre os anjos e os irracionais, Deus criou apenas um (...) Deus fê-lo um e só, não para privá-lo da sociedade humana, e sim para encarecer-lhe sempre mais a unidade social e o vínculo da concórdia, que aumentaria, se os homens não se unissem apenas pela semelhança da natureza, mas também pelos laços de parentesco.16

Não só por causa da unidade ontológica que o homem sente necessidade de viver

em sociedade, mas também por outros motivos: sobrevivência física, aquisição de bens,

satisfação de carências psíquico-afetivas17 etc.

Para Agostinho, o homem é um ser social por natureza, depende dos outros para

nascer, crescer e viver. Sua humanidade estaria comprometida fora desta dimensão social.

Seria racionalmente impensável viver isolado, ausente da convivência com os seus

semelhantes, pois desta forma não poderia ser feliz: “A vida do sábio é vida de

15 Epístola 130, 6, 13. 16 A cidade de Deus XII, 21. 17 “Que consolo melhor encontramos, entre as agitações e amargores da sociedade humana, que a fé sincera e o mútuo amor dos bons amigos?” (A cidade de Deus XIX, 8).

68

sociedade”.18 Ao deixar sua família de origem, o homem forma uma outra família e

assim, as várias famílias, enquanto pequenas sociedades articuladas entre si, formam a

cidade; e estas, unidas uma as outras, o estado ou país; e estes, a grande sociedade humana:

Depois da cidade ou urbe vem o orbe da terra, terceiro grau da sociedade humana, que percorre os seguintes estágios: casa, urbe e orbe.19 Estendida pela terra toda e nos mais diversos lugares, ligada pela comunhão da mesma natureza, a sociedade dos mortais (...) Sociedade que com palavra genérica chamamos cidade deste mundo.20

Sendo uma exigência da natureza racional do homem viver em sociedade, então

para serem felizes eles devem amar-se mutuamente e querer uns para os outros o mesmo

bem que desejam para si próprios. Quando isso não for possível por amor recíproco, ao

menos seja em razão da natureza comum que une todos os homens entre si.21

Reconhecendo a sua natureza social, o homem tem se utilizado da razão para estabelecer

normas de vida que o conduzam à felicidade.22 Ele tem procurado uma conduta, que

ordene todas as partes do seu ser e lhe traga a paz interior.23 Esta procura tem sido não

apenas para criar uma moral individual, mas também para produzir uma ética que seja

capaz de gerar a ordem e a paz entre os homens: “paz dos homens entre si e sua ordenada

concórdia”.24

18 Ibid., XIX, 5 e XIX, 3,2. 19 Ibid., XIX, 7. 20 Ibid., XVIII, 2, 1. 21 Cf. Epístola 130, 6, 13. 22 Agostinho trabalha esta questão em A Cidade de Deus, livro XIX. Nesta obra vemos que para preservar a ordem da paz na sociedade humana é preciso obedecer algumas normas: não fazer mal a ninguém e socorrer a todos os que padecem necessidades. Sobre esta ordem que é condição indispensável para se obter a verdadeira paz, Agostinho nos fala de algumas normas. Estas normas obrigam a cuidar primeiro dos próprios familiares, assegurando assim a paz doméstica. O marido deve cuidar da esposa, os pais dos filhos, os patrões dos criados. Por outro lado, a reta ordem exige que aqueles que são objetos de tais cuidados prestem obediência aos que cuidam deles; assim, as mulheres devem obedecer aos maridos, os filhos aos pais, os criados aos patrões. Contudo, esta relação puramente natural estabelecida pela obediência é grandemente suavizada e enobrecida na casa do justo, que vive da fé. Pois só na família cristã, os que parecem mandar são na realidade os servos dos outros: “Quem manda também serve àqueles que parece dominar. A razão é que não manda por desejo de domínio, mas por dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas por misericórdia de auxiliar” (A cidade de Deus XIX, 14). 23 “Como não há ninguém que não queira sentir alegria, assim também não há ninguém que não queira ter paz” (A cidade de Deus XIX, 12). 24 Ibid., XIX, 13,1.

69

Ainda neste capítulo sobre a Dimensão Ética e social do Amor, desenvolveremos

mais adiante, alguns tópicos sobre estas normas que conduzem à harmonia social, tais

como: finalidade imediata do Estado terreno; a ordenada concórdia ou a paz temporal e,

também, sobre a verdadeira justiça.

3.2 O Amor Enquanto Fundamento Ético de Socialização do Homem

Para Agostinho o que está na base de todas as sociedades humanas, sejam quais

forem, sem dúvida é o amor. O amor é uma força capaz de unir os homens entre si, este os

une em torno daquilo que amam. Quando consideramos algo como um bem supremo, nós o

amamos e logo desejamos que os outros também se unam a nós neste amor, não

propriamente por eles, mas por causa deste bem que elegemos como merecedor de nosso

amor. Vejamos com Agostinho este exemplo:

Nos palcos da iniqüidade, é um fato o espectador gostar, em especial, de um artista e julgar a arte dele como de grande valia ou ainda a considerar isso como o bem supremo. Igualmente, gosta de todos os que partilham dessa sua admiração. Não por causa desses admiradores, mas por causa do ídolo comum. E quanto mais o amor por aquele artista for ardente, tanto mais o admirador esforçar-se-á, por todos os meios a seu alcance, de o fazer admirar por muitos e desejará exibi-lo a uma grande platéia. Se encontrar alguém indiferente, estimula-lo-á quanto pode, com elogios ao artista de sua predileção. Se encontrar um que se oponha, aborrece-se veementemente com o menosprezo a seu favorito. Por todos os meios, procura reparar esse descaso.25

Toda sociedade humana, como vimos no exemplo citado por Agostinho, está

fundada neste amor-desejo. Sendo assim o fundamento da vida social é, exatamente, o fato

de os homens nutrirem desejos pelos mesmos objetos e pressuporem que a associação entre

eles facilitará a sua aquisição. Para Agostinho a avaliação do nível de uma determinada

25 A doutrina cristã I, 29, 30.

70

sociedade pode ser feita, observando-se, a qualidade dos objetos desejados pelos seus

integrantes, isto é, pelo amor-desejo que os mantém unidos.26

Para que se cumpra esse amor-desejo em qualquer sociedade humana é necessário

que nela reine a paz, embora uma paz temporal comum aos bons e maus; pois ela é o maior

bem da cidade.27 “Uma cidade é a dos homens que querem viver segundo a carne, a outra,

a dos que querem viver segundo o espírito, cada qual em sua própria paz. E a paz de cada

uma delas consiste em ver realizados todos os seus desejos”.28 Esta paz da cidade é de

grande valor, porque é ela que garante aos cidadãos a posse e o usufruto dos objetos que

eles amam e desejam. Cabe ressaltar que para Agostinho a paz temporal é fruto da justiça:

“Onde não existe verdadeira justiça não pode existir comunidade de homens fundada sobre

direitos reconhecidos”.29 Sobre este assunto desenvolveremos, mais adiante, um tópico

para fundamentar que a ordenada concórdia entre os homens ou paz temporal é a

verdadeira justiça.

3.3 Amar o Próximo: a Plenitude e as Expressões do Amor-Caridade

A caridade é a perfeição do amor, pela qual o homem se entrega totalmente a Deus,

mas Deus nada pede para si mesmo, já que não há nada que possamos lhe oferecer que O

favoreça: “Não penses que dás algo a Deus. Deus não precisa de servos, mas são os servos

26 “O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados, é preciso, para saber o que é cada povo, examinar os objetos de seu amor. Não obstante, seja qual for seu amor, se não é conjunto de animais desprovidos de razão, mas seres racionais, ligados pela concorde comunhão de objetos amados, pode, sem absurdo algum, chamar-se povo. Certo que será tanto melhor quanto mais nobres os interesses que os ligam e tanto pior quanto menos nobres” (A cidade de Deus XIX, 24). 27 “E tão nobre bem é a paz, que mesmo entre as coisas terrenas e mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem mais desejável ao desejo, nem superior em excelência (...) doçura da paz, ansiada por todos” (A cidade de Deus XIX, 11). 28 Ibid., XIV, 1. 29 Ibid., XIX, 21.

71

que precisam de Deus”.30 Deus é Sumo Bem que de nenhum bem precisa e tudo o que Ele

exige do homem é em vista de seu bem; ao contrário tudo o que o homem oferece a Deus

se reverte em benefício próprio,31 pois, “Deus é aquele que quer ser amado não para obter

para si alguma vantagem, mas para conceder aos que o amam uma recompensa eterna”.32

Como Deus nada quer para si, Agostinho nos diz que Deus quer que amemos aqueles que

Ele ama: nós e nossos semelhantes: “A Deus nós o amamos por ele mesmo, e a nós

mesmos e ao próximo por amor a ele”.33 Esta é uma questão fundamental, porque da Sua

compreensão depende o entendimento de toda a ética de Agostinho. Quanto a nós, já nos

amamos naturalmente,34 resta-nos, pois, que amemos nossos irmãos por amor a Deus e

nisso está a perfeição da caridade: “Todo homem deve ser amado por causa de Deus”.35

Portanto, o amor é perfeito quando chega ao nível da caridade fraterna36:

Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão é mentiroso. Como provar que ele é mentiroso? Escuta: Pois quem não ama seu irmão a quem vê, a Deus que não vê, não poderá amar (1Jo 4, 20). Como assim? Quem ama a seu irmão, também ama a Deus? Sim, se ele ama a seu irmão, necessariamente também ama a Deus, que é o próprio amor.37

Podemos concluir com Agostinho que para amar a Deus não precisamos buscá-lo

muito distante de nós: “Se Deus é Amor, porque caminhar e correr às alturas dos céus ou

às profundezas da terra à procura daquele que está junto de nós, se quisermos estar junto

dele”.38

Como o amor de Deus, a nossa caridade deverá ser benevolente, gratuita e

universal, pois, Deus ama a todos com gratuidade e benevolência39, antes mesmo que

30 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 14. 31 A doutrina cristã I, 32,35. 32 Ibid., I, 29,30. 33 Epístola 130, 7, 14. 34 A doutrina cristã I, 26,27. 35 Ibid., I, 27,28. 36 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 10 e 12. 37 Ibid., IX, 10. 38 A Trindade VIII, 7,11. 39 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 5.

72

existíssemos, O conhecêssemos e O amássemos: “Ele nos amou em primeiro lugar”,40 nos

criou a Sua imagem e semelhança, amando-nos mais do que outras criaturas, dotando-nos

de livre arbítrio41 tornou-nos partícipes de seu ser,42 de sua bondade e de sua felicidade:

“Somente Deus é o bem que torna feliz a criatura racional e intelectual. Assim, embora

nem toda criatura possa ser feliz (...) a que pode sê-lo não pode por si mesma, mas por

Aquele que a criou”.43 Quando por soberba nos afastamos Dele, não nos abandonou, ao

contrário, continuou a nos amar, e usando de misericórdia para conosco, tudo fez para

restaurar a nossa natureza decaída e devolver-nos a dignidade que, por nossa culpa,

perdemos. Neste sentido Deus é o modelo da caridade perfeita ou fraterna.44

Mesmo com todo esforço de ordenar sua vontade a fim de amar os outros com

perfeita caridade, o homem, por suas próprias forças não conseguirá, precisará pedir a

ajuda da graça divina: “Rogai a Deus a graça de vos amar uns aos outros”.45 Esse jeito de

amar, mais do que uma virtude, é o maior dom de Deus e sem a caridade nenhum outro

dom de Deus nos leva até Ele.46 Este dom é o único e verdadeiramente necessário que o

homem deve buscar antes de qualquer outra coisa. “A caridade é a própria essência de

Deus”.47 Portanto, a caridade fraterna é o próprio Deus amando, em nós e através de nós, a

todos os homens, ela é uma realidade tão interior quanto ao próprio Deus. Cada um deve

sempre examinar sua consciência e verificar se possui a caridade, uma vez que,

exteriormente, as suas obras podem confundir-se com as do orgulho.48 Assim, se para

encontrar a Deus e contemplá-Lo é necessário um processo de interiorização, para

40 Ibid., VII, 7 e VII, 9. 41 O livre arbítrio II, 18, 48. 42 A Trindade XIV, 8, 11. 43 A cidade de Deus XII, 1, 2. 44 Comentário da 1ª Epístola de São João IX, 3. 45 Ibid., X, 7 46 A Trindade XV, 17,27; 18,32 e 19,36. 47 Ibid., XV, 17, 31. 48 Cf., Comentário da 1ª Epístola de São João V, 6 e VIII, 9.

73

vivermos a perfeita caridade precisamos, igualmente, acompanhar os movimentos do amor

em nosso coração a fim de percebermos o que ele nos leva a amar.49

Para Agostinho a caridade não pode enclausurar-se somente no nosso interior, pois

é de sua natureza agir e expandir-se em ações de amor fraterno50. Quem a possui, ama

interiormente a Deus com todas as suas forças, ao mesmo tempo, que do mais profundo do

seu coração, transborda um amor benevolente e gratuito em direção a todos os homens: “A

caridade interior nunca se interrompe! As obras da caridade, porém, se exercem conforme

as exigências do tempo”.51 É nestas exigências do tempo que a caridade vai exteriorizar-se,

mas a questão que se coloca é em direção a quem e de que modo? Primeiramente

Agostinho nos responde dizendo que: “todos tem direito a nosso amor e caridade; isso é o

mesmo que dizer que não existe ninguém que não tenha direito ao nosso amor”.52 Ele, de

maneira especial, relaciona quatro tipos específicos de pessoas ou de próximos aos quais

devemos expressar nosso amor-caridade: os parentes, os amigos, os pobres e os inimigos.

Quanto ao modo, além de nos indicar o segundo mandamento: “Amarás o teu

próximo como a ti mesmo”,53 ele nos diz: “Eis a regra da dileção: querer também para o

outro o bem que se quer para si. E não querer para ele, o mal que não se quer para si

mesmo. E isso serve para todos os homens”.54 Neste sentido, devemos buscar para os

outros todo bem que procuramos para nós mesmos; isto quer dizer que nenhum bem

adquirido deveria ser possuído individualmente, ou melhor, todos os bens deveriam ser

socializados. Entendido desta forma, o simples cumprimento deste segundo mandamento já

seria mais do que suficiente para tornar justa e igualitária qualquer sociedade humana.

49 Cf., Confissões XIII, 9, 10. 50 “Se quereis conservar a caridade, irmãos, guardai-vos sobretudo de pensar que ela seja sem iniciativa, sem atividade” (Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 11). 51 Ibid., VIII, 3. 52 Epístola 130, 6,13. 53 Mt 22, 39. 54 A verdadeira religião 46, 87.

74

Dentro dessa compreensão de amar o próximo, de querermos para ele todo o bem que

desejamos para nós, devemos também ajudá-lo a encontrar e possuir o seu Bem supremo;

já que, só a fruição Dele lhe proporcionará a verdadeira felicidade, pela qual ele anseia,

tanto quanto nós.55 Assim, desta forma estaremos cumprindo plenamente o preceito de

amar o próximo como a nós mesmos.

3.3.1 Amar o Próximo – os Parentes

Para Agostinho, em primeiro lugar são os parentes, os que têm direito à nossa

caridade porque Deus nos dotou, assim como aos irracionais, de uma afeição e de um amor

instintivo por eles; de modo que, natural e socialmente eles são o nosso próximo, mais

próximo: “Em primeiro lugar está o cuidado com os seus, porque a natureza e a sociedade

humana lhe dão acesso mais fácil e meios mais oportunos. Por isso diz o Apóstolo: Quem

não provê aos seus, mormente se familiares, nega a fé e é pior que infiel”56

Embora devamos amar e fazer o bem a todos igualmente, em caso de nos

depararmos com duas pessoas necessitadas, uma sendo estranha e a outra um parente,

sendo que nossos recursos nos permitam atender a apenas uma delas, é nosso dever

socorrer, primeiramente, ao nosso parente. Em casos como estes, deve-se aceitar a

proximidade de parentesco como se fosse algo determinado pela sorte:

Todos devem ser amados de forma igual. No entanto, já que não podemos ser úteis a todos indistintamente, devemos atender de modo especial aos que estão mais ligados pelas circunstâncias concretas de tempo e de lugar, ou por quaisquer outras, de ordem diferente. Isso por assim dizer, como se fosse por sorteio. Deves considerar como determinado pela sorte o grau de

55 “Devemos querer acima de tudo que todos amem a Deus conosco, e que toda ajuda que lhes dermos ou que deles recebermos seja orientada para essa única finalidade” (A doutrina cristã I, 29, 30). 56 A cidade de Deus XIX, 14.

75

proximidade que, por razão de circunstâncias temporais, te ligou a cada um deles, de modo mais estreito.57

Agostinho ressalta que o amor aos nossos parentes não deve se basear apenas na

afeição natural própria dos laços consangüíneos, pois, esta não é suficiente para mantê-lo

por muito tempo; prova disso é a situação de instabilidade em que se encontram nossas

famílias. Assim, se quisermos que realmente a estabilidade e a paz reinem nelas, é

necessário que amemos os nossos familiares com um amor que esteja acima dos vínculos

carnais: “É porque, chamando-nos a recobrar a perfeição de nossa primeira natureza, a

mesma Verdade nos admoesta a resistir aos liames carnais e ensina que ninguém é apto

para o reino de Deus se não se desprender desses vínculos carnais”.58 Portanto, além deste

amor natural, devemos amá-los em Deus, porque a união que nasce da “caridade é superior

a todas as outras”.59 Assim, alcançaremos a tão sonhada harmonia familiar, que Agostinho

chama de “a paz doméstica”,60 somente quando amarmos os nossos parentes com

verdadeira caridade.

3.3.2 Amar o Próximo – os Amigos

Para Agostinho, também, os amigos devem ser amados com caridade. Os amigos

são aqueles que estamos ligados, não necessariamente por laços consangüíneos, mas por

afeição. Porém, não basta somente os vínculos afetivos para manter uma verdadeira

amizade, pois esta se manteria somente enquanto durarem as atenções, as ajudas e as

57 A doutrina cristã I, 28, 29. Em outro texto Agostinho diz: “Como não pode aliviar a sorte de todos os homens, a quem ama igualmente, pensaria faltar à justiça se não atendesse de preferência aos que lhe estão mais unidos” (A verdadeira religião 47,91). 58 Ibid., 46, 88. 59 Ibid., 47, 91. 60 A cidade de Deus XIX, 14.

76

gratidões mútuas. Na ausência destes elementos a amizade tenderia a se enfraquecer e

correria o risco de desaparecer. Portanto a caridade deve ser o fundamento consistente na

amizade para que ela permaneça inabalável e faça os amigos felizes: “Só não perde

nenhum amigo aquele a quem todos são queridos n’Aquele que nunca perdemos”.61

Quando a amizade tem Deus como fundamento, independente de quaisquer desequilíbrios,

ela continuará viva porque cada um procurará antecipar-se em seu amor pelo outro, já que,

aquilo que os une, além da afeição própria deste relacionamento, é a mútua caridade.

Os verdadeiros amigos são aqueles que suportam todas as dificuldades próprias da

amizade sem se deixarem abater ou perecer, justamente porque a cultivam e a

fundamentam no amor de Deus. Agostinho sempre buscou e quis viver entre verdadeiros

amigos62, pois estes são os mais doces laços das relações humanas63 e são justamente estes

que necessitamos ou devemos preservar: “Se possuímos tais amigos, é preciso rezar para

os conservar. Se, porém não os possuímos, é preciso orar para os conseguir”.64

3.3.3 Amar o próximo – os pobres

Para Agostinho, os pobres devem ser amados com caridade. Eles, geralmente, não

estão ligados a nós por vínculos naturais e afetivos. Além disso, a própria condição

econômica, social, cultural e até física em que se encontram, mais nos afastam do que nos

aproximam deles. Portanto, se o nosso amor por eles for movido apenas por interesses

deste tipo é sinal que, de fato, jamais os amaremos. Então, só a verdadeira caridade pode

61 Confissões IV, 9, 14. 62 “Qualquer seja sua situação, o homem não pode considerar a vida amiga, se não tiver outro como amigo” (Epístola 130, capítulo 2, 4). 63 Cf. A cidade de Deus XIX, 8. 64 Epístola 130, 6, 13.

77

nos aproximar dos pobres e nos fazer reconhecer neles o próximo, a quem devemos amar

como a nós mesmos. Quem ama a Deus pratica seus ensinamentos e passa a ver em cada

ser humano, carente de misericórdia, o seu próximo.65 É diante dos pobres que somos

provados se realmente amamos a Deus e demonstramos realmente o que move as nossas

ações: “Pode haver obra mais manifesta da caridade do que atender aos pobres?”66

Provamos que encontramos a Deus e estamos em comunhão com Ele se amamos os

pobres, caso contrário resta-nos ainda uma última chance: fazer da misericórdia para com

os indigentes e necessitados o nosso caminho mais seguro para o encontro com Deus. É a

caridade que nos une a Deus.

Agostinho nos diz que não devemos desejar que sempre existam pobres a fim de

que não nos falte esta oportunidade de salvação. Pensar assim, seria o mesmo que admitir

que a nossa misericórdia não é autêntica, visto que ela não brota da verdadeira caridade.

Quem age movido pela caridade não aceita que nenhum homem lhe seja inferior, ao

contrário, tudo faz para torná-los iguais. Assim, aquele que ama com perfeita caridade, não

se contenta apenas em dar do que lhe sobra; uma vez que ela desperta nele uma nova

inquietude, chamada fome e sede de justiça, que o leva a lutar para corrigir as

desigualdades sociais:

Na verdade, não devemos desejar que haja miseráveis para termos ocasião de realizar obras de misericórdia. Tu dás pão a quem tem fome, mas melhor seria que ninguém passasse fome, que não tivesse ninguém para dar! Vestes o que está nu. Aprouvesse ao céu que todos fossem vestidos e que essa necessidade não se fizesse sentir! Todos esses serviços, com efeito, respondem a necessidades. Suprimi as carências e as obras de misericórdia cessarão. E as obras de misericórdia cessarão, quer dizer que o ardor da caridade cessará? Mais autêntico é o amor que dedicas a pessoa feliz, que não precisa de teus dons (...) Isso porque, prestando serviço a um necessitado, talvez deseje te exaltar diante dele (...) Ele está carente, tu lhe dás parte de teus bens, e porque dás, tu te imaginas superior àquele a quem dás. Deseja, ao contrário, que ele te seja igual! Isso para que ambos estejam sujeitos Aquele a quem nada se pode dar.67

65 A doutrina cristã I, 30, 31-32. 66 Comentário da 1ª Epístola de São João VI, 2. 67 Ibid., VIII, 5.

78

No sentido acima proposto percebemos que “muitas coisas podem ser feitas sob a

aparência do bem, mas que não procedem da raiz da caridade”.68 Nos relacionamentos

humanos com aparência de caridade, também reside o egoísmo, e este consiste em querer o

bem somente a si próprio esquecendo-se do outro, mas também há a generosidade que é a

doação de si ao próximo. Egoísmo e generosidade estão misturados no ser do homem:

“Tratava-se de um profundo desgosto pela vida, aliado ao grande medo de morrer. Quanto

mais eu amava, creio eu, tanto mais odiava e temia a morte (...) tal era meu estado de

espírito”.69

Portanto, se amamos a Deus devemos nos aproximar dos pobres e não permitir que

a mendicância os humilhe ainda mais, devemos devolver o que lhes pertence por direito,

isto é, nosso supérfluo. O supérfluo dos ricos é o necessário dos pobres. Possuem bens

alheios os que possuem bens supérfluos.

Agostinho, quase no final da obra A Cidade de Deus fala da paz temporal e da paz

espiritual e afirma que o homem realiza a sua felicidade só quando há equilíbrio entre estas

duas pazes. Vejamos:

Por paz temporal ele entende a satisfação das necessidades do homem; por paz espiritual a da alma. Porém, ele acrescenta que não há paz espiritual sem a paz temporal. Com isto quer dizer que o fundamento, a base ou, melhor, a condição da paz espiritual é a paz temporal, isto é, a satisfação das necessidades materiais do homem. Santo Agostinho pergunta-se: o que é sobra? É o supérfluo. Então o versículo evangélico significa: daí aos pobres o supérfluo. Mas Santo Agostinho não pára aqui: Há que dar aos pobres como se fossem cães, as sobras? Excessivamente cômodo, mas pouco cristão. Santo Agostinho analisa profundamente o conceito de supérfluo. Supérfluo em relação a quem? Todo homem não está só, vive em sociedade; quando o supérfluo define-se dentro da sociedade, então ele não é considerado em relação a mim, como se eu estivesse sozinho no mundo ou se pudesse isolar-me dos demais. O supérfluo é definido em relação a mim porque sou “socius”, membro pertencente a uma sociedade. Por conseguinte, para definir o meu supérfluo, aquilo que para mim é supérfluo, devo definir em relação ao outro, diz Santo Agostinho. Portanto define-se assim: aquilo que é supérfluo para você, é o necessário para o

68 Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 8. 69 Confissões IV, 6, 11.

79

outro. Definido assim, o supérfluo adquire uma enorme importância social, ou seja, cada homem deve definir o seu supérfluo não em relação a si, mas em relação à necessidade da Sociedade em que vive.70

Agostinho nos adverte quanto ao orgulho e a ostentação que, muitas vezes,

aparentemente promovem ações em prol da justiça social e que exteriormente se

confundem com as ações da caridade.71 Devemos distinguir o seguinte: enquanto os que

possuem a perfeita caridade buscam realmente a igualdade entre os homens; os que agem

por ostentação e orgulho, apesar das aparências, de fato, não desejam esta igualdade, visto

que com a chegada dela, desapareceriam as suas oportunidades de autopromoção.

Devemos querer que todos os homens nos sejam iguais, pois a busca sincera e ativa desta

justiça social é uma das mais profundas expressões da verdadeira caridade.

3.3.4 Amar o Próximo – os Inimigos

Agostinho nos diz que a verdadeira caridade nos leva amar os nossos inimigos, pois

eles também estão incluídos naquela categoria de próximo, de modo que amá-los é um

dever dos que amam a Deus: “Homem algum, de fato, está excluído por aquele que nos

disse de amar o próximo”.72 Somente estendendo o nosso amor até o próximo (inimigos) é

que estaremos cumprindo plenamente o preceito da caridade. Agostinho mesmo nos diz:

Estende o teu amor aos que estão próximos, mas, na verdade, ainda não chames a isso estender. Porque é a ti mesmo que amas, quando amas os que te estão estritamente unidos. Estende o teu amor até aos desconhecidos que não te fizeram nenhum mal. E vai mais longe ainda. Chega até amar os teus inimigos. Sem dúvida, é isso o que o Senhor te pede.73

70 SCIACCA, Michele Federico. O Essencial de Santo Agostinho. Tradução, apresentação, comentários e notas do Prof. Dr. José Beluci Caporalini, DCS, UEM. In: Aula Santo Agostinho nº 01, Instituto Filosófico Arquidiocesano de Maringá e Agostinianos Recoletos – Seminário Santo Agostinho. Maringá – PR, 28/08/2002. 71 “Ora, muitos fazem isso por ostentação, não por dileção” (Comentário da 1ª Epístola de São João VI, 2). 72 A doutrina cristã I, 30, 31. “Devemos amar até os inimigos” (Ibid., I, 29, 30). 73 Comentário da 1ª Epístola de São João VIII, 5.

80

Deus nos pede para amá-los, porque Ele é o próprio modelo supremo do Amor e

nos convida a imitá-Lo em sua perfeição. Portanto, assim como Ele ama igualmente a toda

pessoa humana, dando-lhes a vida e distribuindo, igualmente, a bons e maus, os dons da

natureza, será exatamente, quando amamos até os nossos inimigos que O estaremos

imitando em seu jeito de amar.74

Agostinho nos diz que devemos amar os nossos inimigos, não porque nos odeiam,

nos fazem mal e nos causam sofrimentos, não por estes motivos75, mas porque

contemplamos neles algo de mais profundo, isto é, o fato de serem imagem e semelhança

de Deus: “Como não haveria de ser invencível em seu amor, aquele que ama o homem

como homem, isto é, como criatura feita a imagem de Deus”.76 Portanto, os amaremos não

para que continuem sendo nossos inimigos, mas para que se tornem nossos irmãos e um

dia possamos juntos desfrutar de Deus.77 Eles são nossos inimigos porque estão distantes

de Deus e ainda não O conheceram:

Nós não os tememos, na verdade, visto que não podem nos tirar aquele a quem amamos. Mas nós nos compadecemos deles, porque nos odeiam, tanto mais quanto estão distantes do objeto de nosso amor. E se acaso voltassem a ele, necessariamente ama-lo-iam, como o Bem beatificante, e a nós, como co-participantes de tão grande bem.78

Agostinho insiste em todo tempo que devemos alcançar a perfeição da caridade,

não somente pelo nosso esforço humano, mas também, pela ajuda divina, portanto

devemos pedir a Deus a graça de amar sempre e a todos: “Rogai a Deus a graça de vos

amar uns aos outros. Rogai para estardes sempre abrasados do amor fraterno. Seja para

74 Ibid., IX, 3. 75 “O que ama nele, não é o que cai sob seus olhos, ou sob os sentidos corporais. O que é preciso amar é a natureza humana perfeita ou em via de se aperfeiçoar, independentemente de suas condições carnais” (A verdadeira religião 46, 86. 89). 76 Ibid., 47, 90 77 Cf. Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 10 e I, 9. 78 A doutrina cristã I, 29, 30.

81

com o que já é vosso irmão, seja para com o inimigo, afim de que se torne vosso irmão”.79

Para Agostinho só o amor tem o poder de converter um inimigo num irmão: “Teu amor faz

um irmão daquele homem que era teu inimigo (...) Ama-o com amor fraterno. Ainda ele

não é um irmão, mas já o amas como se o fosse”.80 Enfim, para alcançarmos a perfeição da

caridade, devemos preparar um espaço interior para ela, esvasiando o nosso coração do

amor do mundo e enchendo-o do amor de Deus, assim nascerá em nós a caridade fraterna

que deverá ser sempre alimentada nesta perfeição:

Há dois amores: o amor do mundo e o amor de Deus. Se o amor do mundo fixar residência em nós, o amor de Deus não poderá entrar. Que se afaste o amor do mundo e tenha morada em nós o amor de Deus. Não ames o mundo! Afasta de teu coração a má dileção do mundo, para o deixar encher-se do amor de Deus. És um vaso, mas ainda estás cheio. Derrama o que está em ti, para receberes o que não está.81

Agindo assim, nos tornaremos fortes o suficiente para, se necessário for, darmos a

nossa própria vida por aqueles a quem amamos.

3.3.5 Amar o próximo – os frutos

Para Agostinho, a caridade não gera benefícios apenas para os que são amados, ela

também produz frutos maravilhosos na vida e no ser daqueles que amam, pois, se o que

está na base de um relacionamento é a perfeita caridade, todos os envolvidos nele se

beneficiam: “essa misericórdia, que exercemos para com um homem necessitado, Deus

não a deixa sem recompensa”.82 Os maiores agraciados não são os que recebem da

caridade alheia, mas sim aqueles que, amam com caridade, ou seja, os que partilham,

79 Comentário da 1ª Epístola de São João X, 7. 80 Id. 81 Ibid., II, 8-9. 82 A Trindade XV, 17,28.

82

servem e doam-se aos outros, porque, se aceitamos que Deus é caridade, a lógica nos

obriga a admitir que quem possui a caridade também possui a Deus. Quando o homem

possui a Deus se torna plenamente livre, a ponto de Agostinho nos dizer: “Ama e faze o

que quiseres”.83 Neste sentido, quando a raiz das ações é a caridade não poderá surgir o

mal84 e sim somente o bem:

Não se distingam as ações humanas a não ser pela raiz da caridade. Uma vez por todas, foi-te dado somente um breve mandamento: Ama e faze o que quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor; se falas em tom alto, fala por amor; se perdoas, perdoa por amor. Tem no fundo do coração a raiz do amor: dessa raiz não pode sair senão o bem!.85

Quando amamos desta forma, somos realmente livres, porque a nossa vontade já

não quer outra coisa senão o bem de todos aqueles que são o nosso próximo.

Temos que acrescentar, com Agostinho, que a grande realização da caridade é a de

tornar-nos semelhantes a Deus, já que ela nos faz capazes de amar os outros, não somente

como a nós mesmos, mas do modo como Deus os ama. A caridade nos permite amá-los

com o amor do próprio Deus; pois a caridade não é outra coisa senão Deus amando,

através daqueles que acolheram o dom do seu Amor: “O Espírito Santo, que procede de

Deus, quando é outorgado ao homem, inflama-o de amor por Deus e pelo próximo, sendo

ele mesmo o Amor”.86 Para Agostinho, a questão da semelhança do homem com Deus tem

dois aspectos. O primeiro, diz respeito ao momento da criação quando Deus faz o homem à

sua imagem e semelhança; neste sentido todo homem carrega dentro de si esta imagem

divina. Um segundo momento é quando o homem, por sua livre vontade, deve esforçar-se

para imitar o modo de amar de Deus; neste último aspecto tornam-se semelhantes a Deus

os que O buscam e O amam verdadeiramente. Este segundo momento é, na verdade, uma

83 Comentário da 1ª Epístola de São João VII, 8. 84 “Quando esvaziares o coração do amor terreno, haurirás o amor divino. E nele logo começa a habitar a caridade da qual nenhum mal pode proceder” (Ibid., II, 8). 85 Ibid., VII, 8. 86 A Trindade XV, 17, 31.

83

restauração do primeiro, visto que ao assemelhar-se a Deus pela caridade, o homem não

está fazendo outra coisa senão restaurando em si a imagem divina deteriorada pelo

egoísmo. Assim, ao tornar-nos semelhantes a Deus, a caridade nos faz também filhos seus:

“A caridade é o único sinal que distingue os filhos de Deus dos filhos do demônio”.87 Pois,

assim como entre os homens é a semelhança física o que caracteriza alguém como filho de

outrem; do mesmo modo, o sinal distintivo dos verdadeiros filhos de Deus é, exatamente, a

vivência da caridade. Embora muitos aleguem ser filhos de Deus, somente os que amam

com caridade, de fato, o são. Portanto, se quisermos ser realmente felizes, não devemos

perder tempo com amores particulares, egoístas e passageiros; ao contrário, amemos, sem

reservas, a todos: parentes, amigos, inimigos e, especialmente os pobres deste mundo.

Seremos felizes nesta vida e por toda eternidade, se todas as nossas ações forem movidas

pelo amor, mas não por qualquer amor, e sim por aquele que chamamos de amor fraterno

ou de perfeita caridade.

Para alcançar esta meta do amor eterno precisamos nos amparar através dos meios

do poder temporal: a Justiça e o Estado. Passaremos a descrever, nos itens seguintes, ainda

dentro deste capítulo, como Santo Agostinho pensa estes meios em relação a dimensão

ética e social do amor.

3.4 Fundamento da Verdadeira Justiça no Estado: O Amor

87 Comentário da 1ª Epístola de São João V, 7.

84

Uma das quatro virtudes cardeais (ou cristãs) apresentadas por Agostinho é a

justiça pela qual “nos uniremos com suma retidão ao bem ao qual com toda razão

deveremos nos submeter”.88

Analisar-se-á agora a importância do conceito de justiça no eudemonismo ético-

político de Santo Agostinho; seus fundamentos e determinações.

Para denunciar o estado de corrupção em que se encontravam os romanos, fruto

dos vícios espalhados pelos deuses pagãos, e demonstrar que o Império Romano, por sua

adesão aos cultos pagãos e promoção desses, já não podia ser mais chamado de República

(ou Estado), Agostinho, num primeiro momento89, vai buscar em Cícero, tribuno romano,

os argumentos necessários para afirmar que um dos elementos essenciais para que haja

uma república é a Justiça, virtude que ele não encontra mais no Império Romano de seu

tempo.

Cícero, falando pela boca de Cipião, afirma: “República é coisa do povo, e povo

não é um ajuntamento qualquer de indivíduos, mas uma associação de homens baseada no

consenso do direito e na comunidade de interesses”.90 E coloca a justiça como fundamento

da concórdia, ao dizer que “aquilo que no canto os músicos chamam de harmonia, na

cidade é a concórdia, o mais suave e estreito vínculo de consistência em toda república;

que sem justiça não pode, em absoluto, subsistir”.91 Assim sendo, no dizer de Cícero:

Só existe república, isto é, coisa do povo, quando a mesma é governada com honestidade e justiça, seja por um rei, seja por um grupo de nobres, seja ainda, pelo povo todo inteiro. Ao contrário, se tais governantes forem injustos, já não existe mais república, pois não existirá a coisa do povo (...) E o povo mesmo não seria mais um povo se ele fosse injusto.92

88 Epístola 155, 1. 89 A cidade de Deus II, 21. 90 A República I, Apud. A cidade de Deus II, 21. 91 Id. 92 Id.

85

No final de sua obra “A República”, Cícero lamenta a perda dos costumes antigos

e as instituições dos antepassados que garantiam a continuidade da República romana: “por

causa de nossos vícios, não por causalidade, da república nos fica o nome apenas, pois na

realidade tempo faz que a perdemos”.93 Servindo-se das últimas palavras de Cícero,

Agostinho comenta: “Se tais coisas fossem afirmadas depois da encarnação de Cristo,

certamente não faltariam pagãos para atribuí-las à religião cristã!”.94 E vai mais além: “de

acordo com as definições de Cícero, em que resumidamente consignou que era a república

o que era do povo, nem mesmo ao tempo daqueles costumes e varões antigos, a romana

jamais foi república, porque jamais conheceu a justiça”.95 Apesar de admitir que o que se

chama de república romana foi mais bem administrada pelos antigos do que pelos de seu

tempo.

Assim como em Cícero, para Santo Agostinho a justiça é a pedra angular da

sociedade civil, pois, “desterrada a justiça, que é todo reino senão pirataria? Pois, também

é punhado de homens, rege-se pelo poderio do príncipe, liga-se por meio de pacto de

sociedade, reparte a presa de acordo com certas convenções”.96 No entanto, não podemos

chamar a pirataria de República. Entretanto, para este, enquanto pensador cristão, a justiça

não se encerra no puro conceito filosófico natural, mas adquire um sentido filosófico

religioso, o qual tem uma estreita relação com a “verdadeira justiça”, cujo objetivo

principal é o sumo bem do homem, ou a “verdadeira felicidade”, a ser alcançada em Deus.

Assim sendo, apesar de concordar com Cícero que a justiça fundamenta o Estado,

Agostinho vai além da visão ciceroniana (fundada no direito natural) e, dentro de uma

perspectiva filosófico-religiosa, transforma a justiça em “verdadeira justiça”,

fundamentada no princípio da “divina ordem”, ou Lei eterna, cujo caminho para alcançá-la

93 Id. 94 Id. 95 Id. 96 A cidade de Deus IV, 4.

86

é o duplo preceito evangélico da “verdadeira caridade” (amar a Deus sobre todas as coisas

e ao próximo como a si mesmo).

O conceito ciceroniano de justiça foi retrabalhado por Agostinho inicialmente

em O Livre Arbítrio, onde adquiriu um caráter religioso, tendo como fundamento o

princípio da “divina ordem”. Diz ele: “Com efeito, nenhuma força, nenhum acontecimento,

nenhuma catástrofe nunca conseguirá fazer com que não seja justo que todas as coisas

estejam conformes a uma ordem perfeita”.97

Na referida obra, diante das interrogações apresentadas por seu interlocutor

Evódio acerca da justiça praticada na sociedade (Cidade terrena), interpretada por este

como lei (jus), Agostinho reconhece que existem, de fato, leis na sociedade. Entretanto

esclarece que devemos distinguir dois tipos de leis: A “Lei temporal” e a “Lei Eterna”. A

Lei temporal é a lei dos homens, mutáveis e subordinados ao tempo; conseqüentemente,

uma lei também mutável e sujeita a mudanças. A esta chamamos de “jus”, ou seja, “a lei

que, embora justa, pode legitimamente ser mudada ao longo do tempo”.98 A outra, ao

contrário, “é chamada Razão suprema de tudo, à qual é preciso obedecer sempre e em

virtude da qual os bons merecem a vida feliz e os maus vida infeliz, é ela o fundamento da

retidão e das modificações daquela outra lei que justamente denominamos temporal”.99

Essa é a lei eterna e imutável.

Assim sendo, apesar de reconhecer que a lei temporal pode (ou não) ser justa, fica

claro que esta, para ser justa, deverá submeter-se à Lei eterna.100 Em outras palavras, a Lei

temporal (jus) não tem vida própria, ou não se constitui em um bem em si mesmo; ao

97 O Livre Arbítrio I, 6, 15. 98 Id. 99 Id. 100 “Na primeira, a temporal, só é justo e legítimo o que os homens para si tenham feito derivar da segunda, a eterna (...) aquela, em virtude da qual é justo que todas as coisas sejam inteiramente conformes à norma absoluta da ordem” (Id.).

87

contrário da Lei Eterna (verdadeira justiça) que se constitui em um bem em si mesmo (bem

onto).101

Mais adiante, ainda em O Livre Arbítrio, Agostinho conclui o diálogo com Evódio

definindo que, “no tocante à justiça, que diremos ser ela senão a virtude, pela qual se dá a

cada um o que é seu?”.102

Esta é a “verdadeira justiça”, “que faz com que o único e supremo Deus, segundo

sua graça, impere à obediente cidade que não se sacrifique a ninguém senão a Ele”,103 pela

qual “nos uniremos com suma retidão ao bem ao qual com toda razão deveremos nos

submeter”.104 Pois, “quando a alma está submetida a Deus, impera com justiça sobre o

corpo e, na alma, a razão, submetida a Deus, manda com justiça a libido e as demais

paixões. Portanto, quando o homem não serve a Deus, que justiça há nele?”.105

E para alcançarmos ou possuirmos a “verdadeira justiça”, Agostinho aponta a

caridade ou “verdadeira caridade” como virtude pela qual escolhemos, com justiça, as

coisas a serem fruídas e as coisas a serem utilizadas.106

Aqui reside o fundamento da “verdadeira justiça” que consiste em dar a Deus,

“Sumo Bem”, todo o nosso amor, no qual se encontra a justa medida a todos os outros

valores criados, concordando com a definição já vista anteriormente de que, “a justiça não

101 Em outra oportunidade, em carta a Consêncio, Agostinho chega a identificar a Justiça com o próprio Deus, quando diz: “A justiça que vive em si mesma, sem dúvida, é Deus; essa vive imutavelmente. Assim como, porém, sendo ela a vida em si mesma, torna-se também a nossa vida, quando dela de qualquer maneira participamos, do mesmo modo enquanto justiça perfeita torna-se também nossa justiça, quando aderimos a ela vivamente. E seremos mais ou menos justos, conforme a nossa adesão a ela seja maior ou menor” (Epístola 120, 1). 102 O Livre Arbítrio I, 13, 27. Esse conceito reaparecerá mais tarde em A Cidade de Deus quando, comentando acerca dos castigos eternos, por ocasião do juízo final, diz: “Não se deve, porém, negar que o fogo será, segundo a diversidade de merecimentos maus, para uns mais brando e para outros mais vivo, quer varie sua intensidade e violência segundo a pena merecida, quer arda por igual, mas nem todos lhe sintam por igual o sofrimento que causa” (A cidade de Deus XXI, 16). Pois, “a justiça é a virtude que dá a cada um o que é seu” (Ibid., XIX, 21). 103 A cidade de Deus XIX, 23. 104 Epístola 155, 1. 105 A cidade de Deus XIX, 2. 106 “A justiça não é outra coisa senão amar o que deve ser amado... O que, porém, devemos escolher como objeto mais digno de nosso amor, senão aquilo que é o melhor que podemos encontrar, isto é, Deus?” (Epístola 155).

88

é, senão, a virtude pela qual se dá a cada um o que é seu”.107 A justiça “que submete no

homem a alma a Deus, a carne à alma e, por conseguinte, a alma e a carne a Deus”,108 pois

“somente quem criou o homem pode torná-lo bem-aventurado”,109 ou verdadeiramente

feliz.

E este mesmo princípio ético-moral individual que recomenda que devemos amar

a Deus sobre todas as coisas, também recomenda que “cuidemos, pois, com todo esforço,

de que cheguem a Ele também aqueles que amamos como a nós mesmos”,110

transformando-se em um princípio ético-político social, segundo o qual:

Como um só justo vive da fé, assim também o conjunto e o povo de justos viverão dessa fé que age pela caridade, que leva o homem a amar a Deus como deve e ao próximo como a si mesmo”,111 pois “uma coisa não é a ventura da cidade e outra do homem, pois toda cidade não passa de sociedade de homens que vivem unidos.112

Assim, ao introduzir o amor (ou a caridade cristã) como fundamento ético-político

capaz de levar o homem e o Estado a alcançar a “verdadeira justiça”, Agostinho reformula

o conceito de povo proposto por Cícero (fundado no direito natural), redefinindo-o como

“o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos

amados”.113 Daí que, para sabermos o que é um povo, basta examinarmos os objetos de seu

amor.114 Por isso, no final do Livro XIV, de A Cidade de Deus, ao analisar a origem, a

107 O livre arbítrio I, 13, 27. 108 A cidade de Deus XIX, 4. 109 Epístola 155. 110 Id. 111 A cidade de Deus XIX, 23. 112 Ibid., I, 15. Por isso, um ou dois anos antes de começar a escrever A Cidade de Deus, em passagen já anteriormente citada, Agostinho interrogava o Senador Volusiano sobre “quais leis de qualquer Estado se podem de algum modo confrontar com os dois preceitos nos quais Cristo diz que se compreendia toda a Lei e os Profetas: ‘Amarás o teu Deus (...) Amarás o teu próximo (...) Nelas se encontra a salvação de um Estado digno de louvor, pois não se funda nem se conserva melhor o mesmo do que mediante o fundamento e o vínculo da fé e da sólida concórdia, a saber, quando se ama o bem comum, que na sua expressão mais alta e verdadeira é Deus mesmo, e n’Ele os homens se amam mutuamente com a máxima sinceridade” (Epístola 137). 113 A cidade de Deus XIX, 24. 114 Os nossos costumes, diz Agostinho: “são julgados não pelo que cada um conhece, mas pelo que cada um ama; nem se tornam bons ou maus os costumes, senão pelos bons ou maus afetos” (Epístola 155).

89

natureza, o desenvolvimento e os fins das duas cidades, Agostinho toma como medida o

amor:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens, e tem esta por máxima a glória de Deus, testemunha de sua consciência.115

Ao colocar o amor como fundamento da justiça, Agostinho transforma não só o

conceito de justiça, mas repensa a visão negativa que tinha do Império Romano. É por isso

que agora, treze anos mais tarde ao que havia escrito no Livro II, Agostinho reaparece mais

conciliador, e buscando um conceito próprio de povo, afirma: “O povo é o conjunto de

seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados”,116 reformulando

parcialmente as afirmações negativas que fizera no início da obra (Livro II) acerca do

Império Romano, com a seguinte colocação: “Não diríamos que não é povo ou que seu

governo não é República, enquanto subsista o conjunto de seres racionais unidos pela

comunhão concorde de objetos amados (...) de acordo com isto o povo romano é um povo

e seu governo, República”.117

Entretanto, paralelamente a esta nova visão, Agostinho lamenta que, ao longo dos

tempos, a República Romana se haja corrompido. E, mais uma vez, retoma a sua posição

de que a República Romana já não merece tal nome, pois não possui a “verdadeira justiça”,

ao afirmar que, “em geral, a cidade dos ímpios, refratária às ordens de Deus, que proíbe

sacrificar a outros deuses afora Ele, e, por isso, incapaz de fazer a alma prevalecer sobre o

corpo e a razão sobre os vícios, desconhece a verdadeira justiça”.118

115 A cidade de Deus XIV, 28. 116 A cidade de Deus XIX, 24. 117 Id. Ele já havia dito isso no Livro V, quando servindo-se dos relatos de Salústio, afirma: “Os antigos e primitivos romanos, segundo nos ensina e lembra a História, como outros povos (...) eram ávidos de louvor, liberais em dinheiro e queriam a glória imensa e riqueza honesta. Amaram-na com ardente amor, por ela quiseram viver e não vacilaram em morrer por ela. Pelo amor à liberdade, primeiro, depois pelo amor ao domínio, e pelo desejo de louvor e glória, levaram a cabo diversas façanhas” (Ibid., V, 12 ). 118 Ibid., XIX, 24.

90

Agostinho conclui sua denúncia sobre a República Romana, dizendo:

A justiça consiste em que Deus mande no homem obediente, a alma no corpo e a razão nos vícios (...) e em que se peça a Deus a graça do merecimento e o perdão dos pecados e se dêem graças pelos favores recebidos”.119 Pois, “a verdade é que, se o homem não serve a Deus, a alma não pode com justiça imperar sobre o corpo, nem a razão sobre as paixões. E, se no homem individualmente considerado não há justiça alguma, que justiça pode haver em associação de homens composta de indivíduos semelhantes?”.120 Logo, “onde não existe semelhante justiça não existe tampouco a congregação de homens, fundada sobre direitos reconhecidos e comunidades de interesses. E, se isso não existe, não existe o povo.121

3.5 Finalidade Imediata do Estado Terreno: A Ordenada Concórdia ou A “Paz

Temporal”

Vimos anteriormente, quando da exposição do fundamento da justiça no Estado,

que Agostinho apresenta um certo “vínculo da concórdia” como elemento determinante na

concepção de Estado: “O que é, por outro lado, o Estado senão uma multidão de pessoas

unidas entre si por um certo vínculo de concórdia?”,122 concórdia esta que não será

alcançada sem a “verdadeira justiça”: “onde não existir verdadeira justiça não pode existir

comunidade de homens congregados em concordes interesses”.123

E, superando o conceito filosófico-natural ciceroniano de justiça, fundado no

direito natural, transforma a justiça em um conceito filosófico-religioso, fundado no amor

(a caridade):

Então, para saber o que seja cada povo, deve-se ter em conta o que amam. Pois, o povo é uma multidão de seres racionais associados pela concorde participação nos bens que eles amam”,124 que não é senão o amor ou busca do bem comum: “um Estado louvável, não se funda nem se conserva

119 Ibid., XIX, 27. 120 Ibid., XIX, 21. 121 Ibid., XIX, 23. 122 Epístola 138. 123 A cidade de Deus XIX, 21. 124 Ibid., XIX, 24.

91

melhor do que mediante o fundamento da fé e da sólida concórdia, a saber, quando se ama o bem comum.125

Assim sendo, fica evidente que a tarefa ou finalidade imediata do Estado terreno

é proporcionar o bem comum, conforme nos atesta Agostinho ao interpelar Ceciliano,

Comissário imperial da África: “O que, porém, fazeis de bom em meio a tantas

preocupações e fadigas, senão procurar o bem dos cidadãos? Com efeito, se não fazeis isto,

então será melhor dormir noite e dia do que vigiar nas fadigas impostas pelo Estado, se

estas não fossem de nenhum proveito para os cidadãos”.126 Isso leva a dizer que um dos

fundamentos ético-políticos do Estado em Agostinho é a concórdia ou “paz temporal” que,

por sua vez, se enquadra em seu eudemonismo ético-político, uma vez que promover o

bem comum é o mesmo que promover a paz ou felicidade temporal do homem.

Além de identificar a concórdia ou “paz temporal” com o bem comum, Agostinho

classifica esta como o maior de todos os bens temporais que os homens almejam,

afirmando que: “tão grande, com efeito, é o bem da paz que, mesmo nos negócios terrenos

e perecíveis, nada se possa ouvir de mais agradável, nada procurar de mais desejável, nada

encontrar de melhor. Podemos dizer da paz o que dissemos da vida eterna, a saber, que é o

fim de nossos bens”.127

Para Agostinho, a paz é um bem imanente à natureza humana. Todos a desejam:

bons e maus128, com efeito, “a paz é aspiração última de toda natureza e de todos os

homens, mesmo os maus”129 e, conseqüentemente, o maior bem temporal que um Estado

pode proporcionar: A paz, diz Agostinho: “é o bem supremo da cidade”.130

125 Epístola 137. 126 Epístola 151. 127 A cidade de Deus XIX, 11. 128 “Quem quer que repare nas coisas humanas e na natureza delas reconhecerá comigo que, assim como não há quem não queira ser feliz, assim também não há quem não queira a paz” (A cidade de Deus XIX, 12). 129 Id. 130 Id.

92

Sendo a paz um desejo imanente a todos os homens, a vida social aparece como

uma necessidade imanente ao homem; está na própria natureza humana viver em

sociedade, e que ainda em estado de inocência os homens haviam buscado sua companhia

mútua. Daí ter dito Agostinho que “nenhum animal é mais feroz por vício, nem mais social

por natureza que o homem”.131 Agostinho acrescenta ainda que todos os homens aspiram à

paz, e que ninguém pode ser tão perverso que não queira viver em paz. Até os animais

ferozes que vivem solitários, que brigam pela sobrevivência e pela alimentação e evitam a

companhia dos outros animais da mesma espécie, em determinadas épocas do ano se

juntam para a procriação e para proteger seus filhotes. Quanto mais não é o homem que é

racional, que sabe distinguir o bem do mal e que levado pelas leis da sua natureza a formar

sociedade, deverá conviver o mais pacificamente possível com todos.132

3.6 Fundamento da Ordenada Concórdia ou Paz Temporal no Estado: A Verdadeira

Justiça

Sendo a paz um bem natural almejado por todos os homens, bons e maus,

Agostinho, alerta-nos para os perigos na interpretação ou concretização deste tão sublime

bem, pois muitos, por vontade ou livre arbítrio, subvertendo a “divina ordem”, constroem

a paz a partir de interesses próprios e, não tendo em vista o bem comum.133 Para ele a

sociedade não cumpre a sua função se nela não reinar a paz ou a ordenada concórdia; e esta

131 Ibid., XII, 27. 132 Cf. A cidade de Deus XIX, 12. 133

“Os maus combatem pela paz dos seus e, se possível, querem submeter todos, para todos servirem um só. Odeiam a justa paz de Deus e amam a sua própria, embora injusta. Impossível é que não se ame a paz, seja qual for” (A cidade de Deus XIX, 12). Mas “quem sabe antepor o reto ao torto e a ordem à perversidade reconhece que, comparada com a paz dos justos, a paz dos pecadores não merece sequer o nome de paz” (Ibid., XX, 12).

93

não será possível enquanto não imperar a justiça entre os seus cidadãos. Neste sentido a

justiça é o fundamento da sociedade.

Daí que, para evitar tal risco, Agostinho faz uma íntima relação entre a paz e a

justiça, fundada no princípio da “divina ordem”, “que não é senão a virtude pela qual se dá

a cada um o que é seu”.134 Assim sendo, “a ordem é a disposição que às coisas diferentes e

às iguais determina o lugar que lhes corresponde”.135

Da mesma forma que ao falar da justiça, enquanto “justa associação de homens

concordes”, Agostinho não está falando de uma justiça qualquer, mas da “verdadeira

justiça”. Também, ao relacionar a justiça com a concórdia, ele não está falando de uma

concórdia qualquer, mas da “ordenada concordia”, ou seja, a paz temporal que garanta a

justa ordem, aquela que “subordina as coisas somente às dignas, as corporais às espirituais,

as inferiores às superiores, as temporais às sempiternas”.136

Seguindo esse princípio, Agostinho afirma que, “a paz entre o homem mortal e

Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua

ordenada concórdia. A paz da cidade, a ordenada concórdia entre os governantes e os

governados”.137

E partindo do princípio de que a paz é o melhor de todos os bens temporais,

quando fundamentada na justiça, Agostinho admite até a guerra como instrumento justo de

realização da paz, ou ser a paz o verdadeiro fim da guerra, pois, “com efeito, os próprios

amigos da guerra, apenas desejam vencer e, por conseguinte, anseiam, guerreando, chegar

à gloriosa paz. O homem, com a guerra, busca a paz, mas ninguém busca a guerra com a

paz”.138 Não que Agostinho defenda ser a guerra um bem em si mesma, mas que devemos

134 O livre arbítrio I, 13, 27. 135 A cidade de Deus XIX, 13. 136 Epístola 140. 137 A cidade de Deus XIX, 13. 138 Ibid., XIX, 12.

94

fazer bom uso até das coisas más para alcançarmos o bem139, desde que em nome de uma

causa justa, ou seja, as “guerras justas” são permitidas, mas só devem empreender-se por

necessidade e por bem da paz.

E para que o Estado faça “guerra justa”, Agostinho apresenta o amor como

princípio regulador; ou seja, que o mesmo tenha como finalidade não a vingança e a

maldade, mas o amor, ou o desejo de salvação do inimigo pecador:

Se o Estado terreno observasse os preceitos de Cristo, nem mesmo as próprias guerras se fariam sem benevolência (...) Aquele, de fato, a quem se tira a possibilidade de fazer o mal é vencido com benefício dele mesmo. Assim, com tal espírito de misericórdia, se fosse possível, os bons fariam também as guerras, a fim de que, prevalecendo sobre as paixões licenciosas, fossem eliminados estes vícios que um justo governo deveria extirpar ou reprimir.140

E, mais uma vez, Agostinho adverte que a “guerra justa” não é um bem em si

mesmo. Ela é apenas um instrumento que nos leva à paz (bem comum ), que devemos usá-

la em última necessidade: “A paz deve residir na vontade, e a guerra deve ser apenas uma

necessidade, para que Deus nos livre da necessidade e nos conserve em paz!”.141 E sempre

dentro de seu espírito pacificador, recomenda antes o poder da palavra que o da guerra:

“Mas, título maior de glória é matar a guerra com a palavra, antes de matar os homens com

a espada; é procurar manter a paz com a paz e não com a guerra”.142

Como se vê, a “ordenada concórdia” está fundamentada na “verdadeira justiça” e

esta, por sua vez, deverá estar assentada no princípio do amor. Mais uma vez, Agostinho

apresenta o preceito da “verdadeira caridade”, expressão maior do amor ou do duplo

preceito da caridade (amor de Deus e do próximo por causa de Deus) como caminho para

se alcançar a “paz temporal” ou “ordenada concórdia”: “na falta da piedade ou da caridade,

a paz deste mundo não passa de uma isca, um convite ou um reforço para a luxúria e a 139 “A verdadeira virtude consiste, portanto, fazer uso dos bens e dos males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse de perfeita e incomparável paz” (Ibid., XIX, 10). 140 Epístola 138. 141 Epístola 189. 142 Epístola 229.

95

perdição”.143 O amor guarda a ordem do ser: “A piedade, pois, a saber, o culto do

verdadeiro Deus, é útil para tudo: ela, de fato, nos ajuda a afastar ou avaliar as moléstias

desta vida e nos conduz àquela vida de salvação em que não devemos mais sofrer nenhum

mal, mas somente gozar do sumo e eterno Bem”.144

3.7 A Paz e a “guerra justa” na história

Desde Santo Agostinho, a questão da guerra justa é um desafio constante, até hoje,

para a teologia, para a moral e para a praxe política das Igrejas. A formulação clássica da

doutrina medieval sobre a guerra justa, recordada pelo Catecismo da Igreja Católica,

publicado em 1992,145 procede de Tomás de Aquino,146 e de Santo Agostinho. São quatro

as condições estabelecidas para que uma guerra possa ser considerada justa: 1ª) que seja

declarada pela autoridade legítima; 2ª) que haja uma intenção e uma causa justas: instaurar

a justiça, restaurar a paz, castigar os culpados e defender a comunidade dos ataques

injustos; 3ª) que a guerra seja o último recurso, uma vez esgotadas outras formas de

solução; 4ª) que haja proporção entre os meios a serem utilizados e o fim para conseguir.147

143 Epístola 231. 144 Epístola 155. 145 Embora o Catecismo da Igreja Católica desenvolva nos parágrafos, 2302 ao 2317, toda uma teologia da paz: a paz é a tranqüilidade da ordem, não é somente ausência de guerra, não pode ser obtida sem o respeito pela dignidade das pessoas e dos povos, sem a prática da justiça e da caridade, ele ainda recorda os elementos tradicionais enumerados na assim chamada doutrina da “guerra justa”. 146 Tomás de Aquino, assim como Agostinho e outros teólogos medievais, considera a guerra justa último recurso da suprema autoridade, legitimamente constituída. A guerra é um meio para defender ou reconstruir a paz interna e externa, a ordem e a justiça. O fim da guerra e sua reta intenção não é o castigo do inimigo, mas o bem comum da paz e da justiça. Citando Agostinho diz: “Removida a justiça o que são os Reinos, senão

grandes latrocínios?” (Tomás de Aquino, 1, II/2, q. 34; q. 40, art. 1). 147 Neste item o Catecismo, assim se expressa: “Que o emprego das armas não acarrete males e desordens mais graves do que o mal a eliminar. O poderio dos meios modernos de destruição pesa muito na avaliação desta condição” (CIC, 2309).

96

Atualmente questiona-se esta doutrina clássica da guerra justa e cresce a convicção

de que, no marco das armas nucleares, não há possibilidade de que nenhuma guerra possa

ser justa; todas as guerras são injustas e injustificáveis. O Concílio Vaticano II condena, na

sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança - 1965), a defesa com o

uso de meios nucleares de aniquilação de massa como crime contra Deus e os homens:

“Pelo progresso das armas científicas, o horror e a perversidade da guerra cresceram sem

medida. Com o emprego destas armas as operações bélicas podem causar destruições

enormes e indiscriminadas, que portanto, ultrapassam de muito os limites da legítima

defesa”.148 O Papa João XXIII em sua carta encíclica sobre a paz, Pacem in Terris (1963),

declara: “no nosso tempo, que se vangloria de possuir a força atômica, é irracional

continuar a considerar a guerra como meio apropriado para restabelecer direitos

feridos”.149 Esta encíclica Pacem in Terris marca a substituição da doutrina da guerra justa

pela doutrina da paz justa, que é entendida como desenvolvimento social. A paz não pode

mais ser definida a partir do conceito de guerra, mas determina-se, apoiando-se

estritamente na tradição bíblica, como justiça em favor dos injustiçados socialmente, os

pobres e famintos. Numerosos moralistas católicos resumem esta visão nos seguintes

termos: “As armas nucleares exigem uma nova ética da paz em que as distinções

tradicionais entre pacifismo e guerra justa deixem de ter vigência. A oposição, por

princípio, a todas as guerras é, hoje, a única posição ética cristã e humana”.150

A nova ética tem uma proposta: a paz justa. Nesta, o trabalho pela paz se apresenta

como indissociável da luta pela justiça e, por fim, da opção pelos pobres. A paz justa é a

condenação sem reservas da corrida armamentista como loucura, injustiça, crime e erro

contra os pobres.

148 GS 80 149 PT 127 150 Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. Coleção dicionários. São Paulo: Paulus, 1999, p.590.

97

O contraste manifesto entre superprodução profusa de material de guerra e a multidão de necessidades vitais não satisfeitas (países em desenvolvimento, os pobres que vivem à margem da sociedade de bem estar) representa em si e por si uma agressão que pode tornar-se crime: mesmo quando não usadas, as armas matam, por seus altos custos151, os pobres ou os fazem passar fome.152

A busca da paz requer questionamento sobre as raízes dos atentados contra a paz

em forma de guerra. Uma das raízes mais profundas costuma ser a diferença entre ricos e

pobres e as assombrosas desigualdades socioeconômicas entre países desenvolvidos e

subdesenvolvidos. A ética da paz tem sua base em uma ética da justiça, que implica a

proposta de nova ordem econômica internacional igualitária e um modelo de

desenvolvimento solidário com os povos do Terceiro Mundo e com os marginalizados do

Quarto Mundo e o respeito da natureza como morada da humanidade.

A proposta moral de uma paz justa não pode compartilhar com a moral judaica do Antigo Testamento que pede a Deus extermínio dos inimigos e fala de ‘guerra de Iahweh’, ou com a moral grega bélica, ou com a moral imperialista da paz romana, ou com a moral medieval das guerras justas, ou com a ética ilustrada e burguesa da paz, que considera a mesma como irrevogável mandato da razão prática, mas que defende também a guerra entendida como fator de promoção do progresso civilizador.153

Construir a paz é um dever de todos nós. Hoje, a guerra perde o apelo de ato

heróico e passa a ser vista pelo seu lado trágico e desumano. Há que se construir uma

cultura da paz.

Complemento: A “Paz justa” e o caráter social do Estado

151 Quanto aos gastos bélicos, o mundo começa a ficar indignado. Surgem instituições em defesa da paz em muitos países. “Essas instituições fazem pesquisas e divulgam dados que têm impacto sobre a opinião pública mundial. Por exemplo: para cada dólar que a ONU gasta em missões de paz, o mundo investe 2 mil dólares em guerra; em 1997 foram gastos 740 bilhões de dólares em armas, o que representa 1 milhão e 400 mil dólares por minuto; em 2003, o total mundial de gastos militares chegou a 960 bilhões de dólares, o que representa mais de US$ 30 mil (cerca de R$ 100 mil) por segundo! Esses e outros dados alimentam uma indignação nova, e a população mundial é convidada a tomar posição” (Texto Base da Campanha da Fraternidade – 2005 Ecumênica, 51). 152 Comissão Pontifícia Justiça e Paz – A Santa Sé e o desenvolvimento, 1977. 153 Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. Coleção dicionários. São Paulo: Paulus, 1999, p. 591.

98

A paz é um valor, um dever universal e encontra seu fundamento na ordem racional

e moral da sociedade que tem as suas raízes no próprio Deus, “fonte primária do ser,

verdade essencial e bem supremo”.154 A paz não é simplesmente ausência de guerra e

tampouco um equilíbrio estável entre forças adversárias, mas se funda sobre uma correta

concepção de pessoa humana e exige a edificação de uma ordem segundo a justiça e a

caridade.155

A paz é fruto da justiça, entendida em sentido amplo como o respeito ao equilíbrio

de todas as dimensões da pessoa humana. A paz está em perigo quando ao homem não lhe

é reconhecido o que lhe é devido enquanto homem, quando não é respeitada a sua

dignidade e quando a convivência não é orientada em direção ao bem comum. Para a

construção de uma sociedade pacífica e o desenvolvimento integral de indivíduos, povos e

nações, é essencial a defesa e a promoção dos direitos humanos. Quando não há paz é

essencial a busca das causas e, em primeiro lugar, as que se ligam a situações estruturais de

injustiça, de miséria, de exploração, sobre as quais é necessário intervir com o objetivo de

removê-las: “Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento. Como existe a

responsabilidade coletiva de evitar a guerra, do mesmo modo há a responsabilidade

coletiva de promover o desenvolvimento”.156

Hoje, o atual sistema sócio-político-econômico mundial em vigor, de forma

hegemônica é internalizado em cada país e tende a destruir a democracia, liquidar com a

ética e tornar supérfluos os parlamentos das nações.157 Sabe-se que todas as sociedades

154 João Paulo II, Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz 1982. 155 Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 51. 156 Ibid., 52. 157 “Domina cada vez mais, em muitos Países americanos, um sistema conhecido como ‘neoliberalismo’; sistema este que, apoiado numa concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de mercado como parâmetros absolutos a prejuízo da dignidade e do respeito da pessoa e do povo. Por vezes, este sistema transformou-se numa justificação ideológica de algumas atitudes e modos de agir no campo social e político que provocam a marginalização dos mais fracos. De fato, os pobres são sempre mais numerosos, vítimas de determinadas políticas e estruturas freqüentemente injustas” (João Paulo II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in América. São Paulo: Ed. Paulinas, 1999, p. 92, nº 56).

99

modernas e as democracias nasceram sustentadas pela tríade: cidadania, solidariedade e a

construção comum do bem comum. Mas esses valores estão sendo sistematicamente

mudados por um outro sistema: o "deus do mercado", que é a liberalização, a

desregulamentação e a privatização,158 em todos os campos da sociedade, não só na

economia.

A lógica fundamental que preside o processo atual e que não encontra quase

resistências obedece à lógica do capital. Essa lógica orienta-se fundamentalmente por

valores e critérios colocados como referência exclusiva, fundados no individualismo

(egolatria) e na concorrência. O processo hoje mundial, hegemonizado pelo capital, coloca

a economia como eixo estruturador das relações mundiais. A lógica não é cooperativa; é a

lógica competitiva. A crise reside em colocar os valores e os critérios dessa lógica como

referências e critérios exclusivos daquilo que é bom, que é útil, que é desejável para toda a

sociedade.

Essa lógica está criando uma dupla cultura. A cultura da conquista: trata-se de

conquistar novos mercados, conquistar posições, conquistar mais dinheiro, conquistar mais

"status" pessoal; tudo é objeto de conquista, numa luta de todos contra todos, porque se

trata de individualismo. É uma cultura, também, dos meios, dos instrumentos. O fim desse

processo não é o ser humano, não são os povos. O fim é a acumulação cada vez mais

crescente de bens e serviços, é a criação de riqueza e, por isso, o desenvolvimento da

economia tem de ser viável , esquecendo que tudo isso, economia, mercado, mercadoria, é

da natureza dos meios. São meios para atender necessidades coletivas dos povos ou

necessidades pessoais e individuais, porque esses são os fins. O ser humano não tem

centralidade. A centralidade é ocupada pela busca acelerada e maximizada da riqueza.

158 O ponto principal da desestatização consiste em vender empresas públicas aos capitalistas particulares, com o pretexto de reduzir a participação do Estado na economia, aumentar a eficiência e a rentabilidade das empresas.

100

As pessoas são indivíduos e não pretendem mais viver juntas, mas buscam

assegurar seu bem-estar material individual e maximizar sua utilidade individual. Em

função disso, não se dá prioridade à solidariedade, à erradicação da pobreza, à luta contra

as exclusões, contra o racismo, contra a xenofobia, mas ela é concedida à eficácia

produtiva e à rentabilidade financeira em curto prazo. Essa lógica dominante está

destruindo os laços de sociabilidade e a possibilidade de uma real democracia.159

Onde reside a crise do capitalismo? Na ordem do capital, hoje mundializada, tudo

se transformou em mercadoria, desde o sexo à mística e até à mercadoria mais direta, como

produção material de bens e serviços. Não há mais espaço para as dimensões da gratuidade

e da sociabilidade. A crise é esta: a razão utilitarista, aproveitadora, acumuladora, está

ocupando todos os espaços da sociedade. Na sociedade onde todos dizem "eu", onde há a

guerra dos "eus", destroem-se os laços de sociabilidade.

Portanto, a questão não é discutir se esse ou aquele procedimento é ético ou não; é

discutir se este projeto é absolutamente antiético, porque ele se orienta por formas de

relação de produção e de destruição e não de construção coletiva que implica a introdução

de uma máquina de morte,160 que atinge as sociedades, as classes, as pessoas, a

humanidade; que atinge a natureza, pilhada sistematicamente; e destrói o nosso futuro, o

futuro comum da terra, como planeta, como casa comum, e a humanidade, como filhos e

159 Tais conceitos, expostos acima, quando vivenciados no cotidiano social se traduzem no chamado darwinismo social que quer dizer, desenvolvimento social baseado na luta e na seleção natural dos mais fortes sobre os mais fracos. É desta forma que o mercado - “sagrado” para os neoliberais - nos divide entre “ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”. E esse grande grupamento humano caminha à margem da própria cidadania, surgem então aqueles que chamamos de excluídos. São os que estão fora das políticas públicas, não produzem para o sistema e não se enquadram nos padrões dominantes do sistema. 160 Para os “excluídos” o sistema neoliberal preparou uma nova política: a morte. Seja pelo extermínio direto ou seja pela ausência de políticas básicas que garantam condições de vida. Este nefasto projeto político de morte visa eliminar este “excedente social”, sem lugar no mundo. São imigrantes, crianças, jovens, velhos, mulheres e homens que tem a morte como destino certo. Eles não são bonitos, não freqüentam os shopping center, geralmente são migrantes e desabrigados, carregam a expressão de dor, da revolta e do sofrimento, não se enquadram nos nossos padrões. Para quem os vê é difícil crer que haja vida por dentro deles. Para o sistema eles são números.

101

filhas da terra. Há quem diga que se não superarmos a crise desse capitalismo selvagem,

poderemos ir ao encontro do pior. Poderemos conhecer, quem sabe dentro da nossa

geração ainda, o destino dos dinossauros, onde possa haver uma devastação fantástica de

seres vivos, humanos e não humanos.

Cidadania, solidariedade, bem comum eram os princípios fundadores da sociedade

moderna, que desaparecidos, agora importa resgatá-los. Quanto à cidadania, nas suas três

dimensões já conhecidas: a cidadania civil: garantir os direitos, as liberdades básicas de

falar, de se comunicar, de se expressar; a cidadania política: garantir os meios de

participação do poder por partidos, sindicatos, imprensa etc, e a cidadania social: garantir

os meios de uma dignidade mínima para os seres humanos, em termos do trabalho, da

saúde, da relação social, da qualidade de vida.

A realidade nos mostra alguns dados: 1,9 bilhões de pessoas vivem com menos de

um dólar por dia e 2,8 bilhões vivem com menos de dois dólares por dia; isto é, para mais

da metade da humanidade a vida não é sustentável. Essa economia é uma máquina de

morte que os tritura, que os devora. Os cálculos já foram feitos. O sistema hoje integrado

da economia e da política funciona bem, e muito bem, para 1,6 bilhões de pessoas. Ocorre

que somos quase 7 bilhões, para as quais a vida é um purgatório ou um inferno.

Essa economia política é desastrosa para a humanidade, é absolutamente antiética,

desde que a ética é a forma de os seres humanos buscarem aquilo que é bom para todos,

aquilo que é útil para as comunidades, aquilo que é desejável, para estar conforme a

natureza social do ser humano.

Essa estratégia, hoje mundializada, impossibilita a democracia, destrói a ética. E

um dos passos importantes dela é desacreditar o Estado e o mundo político, porque o

Estado, e esta é a sua função, é o promotor e a garantia do bem comum. Hoje é criticado e

condenado, não o Estado burocrático ou Estado corrupto, mas o Estado em si, pura e

102

simplesmente. Por quê? Porque ele impede, coloca barreiras à voracidade do capital e aos

itinerários meramente individuais às pessoas que buscam o seu bem-estar individual; e

também aos políticos, que representam finalmente a coletividade. Então, procura-se

desacreditar essas instâncias, desmantelar o Estado, tornar ridícula a política.

Precisamos estar atentos às críticas contundentes e contínuas que se fazem ao

Estado e ao mundo político por toda a mídia. Há uma segunda intenção, que não é só a

busca do combate à corrupção, o que é legítimo, mas é a busca da invalidação do Estado e

das políticas, para deixar o campo limpo à voracidade individualista. O bem comum é

entendido assim: o interesse daquele que ganha, de forma individual, converte-se em

interesse geral, em bem comum; mas não deixa de ser individual. É preciso reordenar as

prioridades, isto é, submeter a economia à política e a política à ética.

Hoje a economia tem uma natureza perversa que contradiz toda reflexão filosófica e

a reflexão social dos últimos dois mil anos. Desde Platão e Aristóteles a economia era

sempre e a palavra filologicamente diz isto: o atendimento das necessidades da casa. A

economia não tem mais essa natureza. Transformou-se na técnica de enriquecimento linear

e cada vez mais crescente às custas das classes e da natureza. A economia deve voltar a ser

um capítulo da política, porque é na política que os seres humanos decidem as formas de

produzir, as maneiras de distribuir e estabelecem os consensos de como, juntos, viver e

sobreviver.

A economia é da ordem dos meios e não da ordem dos fins. A política estabelece os

fins para os cidadãos viverem em paz, na seguridade e alimentar a seguridade da sua

existência coletivamente garantida. Submeter a economia à política e a política à ética. A

ética com aquela dimensão, aquele senso dos seres humanos de buscarem a justa medida, o

comportamento reto que se adapta à nossa natureza de seres sociais e que faz com que

103

nossa convivência não seja uma trégua e um processo de guerra de todos contra todos, mas

seja a construção coletiva da paz, como algo perene nos seres humanos.

Reafirmar a primazia do ético e do político-democrático sobre o financeiro-

econômico. Isso se faz ao reforçar a fonte de todo o poder que pode controlar esses

processos, que é reforçar a sociedade civil com todos os seus movimentos.

O segundo ponto é promover novas formas de representação política. Não bastam

os partidos, porque partido é sempre parte de algo. É preciso estabelecer uma nova ponte

entre o Congresso, governo e sociedade, que mais e mais se organiza em mil movimentos

para que haja novas formas de poder e antipoder. Que o poder se descentralize. Que o

consenso não seja negociado e construído só dentro do Parlamento, mas seja

continuamente frutificado e amadurecido no diálogo com a sociedade civil e com todos os

seus movimentos.161

Em terceiro, através desse novo diálogo, com essa interação do poder social com o

poder político, pode-se garantir, postular e reforçar a busca do acesso a bens e serviços

necessários e indispensáveis para uma vida minimamente digna a todos os cidadãos. Essa

vida não vem por si mesma; vem através de muita pressão e negociação.

Através dessa pressão e negociação da sociedade com esse poder social e político,

deve-se resgatar uma dimensão básica do Estado: a dimensão ética. O Estado não é só

mecanismo de poder. Representa valores, sonhos e ideais que a sociedade quer ver

realizados nos portadores de poder, que não devem ser corruptos, mas pessoas altamente

161 O caminho é a participação. Engajar-se às organizações do movimento social, fortalecer a democracia participativa por meio de conselhos populares, incentivar a gestão coletiva governo e sociedade, rever os padrões e quebrar preconceitos. O grande desafio que temos pela frente é a busca da plena cidadania para todos e o resgate dos Direitos Humanos. Temos, também, que investir numa representação política que venha defender os interesses dos trabalhadores e dos mais pobres e fazer com que o Estado garanta a justiça, a dignidade e os direitos fundamentais da pessoa humana. É fundamental que se fortifique a consciência e a organização política. Só assim os direitos dos trabalhadores e dos cidadãos e cidadãs, em geral, podem ser respeitados.

104

éticas que apresentam, nas suas próprias vidas, nos seus percursos biográficos, na forma

como manejam e gerenciam o poder, os valores da solidariedade, os valores éticos da

colaboração e da transparência do poder. Hoje, mediante a recuperação do estatuto ético, o

Estado ganha credibilidade.

Resgatar o caráter social do Estado, porque o próprio Estado, por sua natureza

social, está sendo privatizado, grande instrumento que ainda sobra para ser manipulado nos

interesses das grandes corporações multinacionais que querem o Estado para garantir o

mínimo de segurança para poderem circular dentro dos espaços econômicos. Recuperar o

caráter social do Estado, isto é, que as políticas sociais do Estado não sejam relegadas a um

só departamento: à Comunidade Solidária. Que as políticas sociais sejam imperativo e

presença de todos os Ministérios, de todas as políticas, porque o Estado é instância

delegada do poder popular e do poder social.162

Se a luta por essa sociedade que quer mais ética é resgatar o sentido da democracia

como solidariedade e como busca do bem comum hoje globalizado e de uma cidadania

mais integrada, ela não é só desejável mas é possível e produz frutos. Ela inviabiliza as

artimanhas dos poderosos que, de costas à humanidade, reúnem-se para defender

privilégios, estabelecer políticas que garantam os seus ganhos e continuam sacrificando e

martirizando mais da metade da humanidade.

Não é impossível que os caminhos estejam abertos para resgatarmos a democracia

com o sentido de cidadania plena, com sentido ético nas suas relações, com horizonte

aberto em que não somos condenados a sermos lobos uns dos outros, mas sermos cidadãos

concidadãos que não são condenados a viver e a sofrer num vale de lágrimas, mas que

podem ser filhos e filhas da alegria.

162 Cf. BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? Petrópolis: Vozes, 2000.

105

Enfim, a paz justa é aquela que possibilita a segurança, a tranqüilidade e a unidade.

O trabalho pela paz se apresenta como indissociável da luta pela justiça e, por fim, da

opção pelos pobres. A busca da paz requer questionamento sobre as raízes dos atentados

contra a paz em forma de guerra. E a raiz, pelo menos, uma das raízes mais profundas

costuma ser a assimetria entre ricos e pobres, as assombrosas diferenças socioeconômicas

entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Por conseqüência, a ética da paz tem sua

base em uma ética da justiça, que implica a proposta de nova ordem econômica

internacional igualitária e um modelo de desenvolvimento solidário com os povos do

Terceiro Mundo e com os marginalizados do Quarto Mundo e o respeito da natureza como

morada da humanidade.163

3.8 Instrumento Garantidor da Ordenada Concórdia ou Paz Temporal no Estado: O

Poder Temporal

O poder temporal, para Agostinho, é um dos elementos essenciais para

preservação da “ordenada concórdia” ou “paz temporal”, e está fundamentado no princípio

da “verdadeira justiça”, ou da “divina ordem”,164 ou seja, que haja a subordinação das

coisas inferiores (os mandados) às superiores (aos que mandam). Assim, no caso da paz

doméstica, por exemplo, Agostinho nos diz que é justo que “mandem os que cuidam, como

o homem à mulher, os pais aos filhos, os patrões aos criados e obedeçam quem é objeto de

cuidados, como as mulheres aos maridos, os filhos aos pais, os criados aos patrões”.165

163 Cf. Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 590-591. 164 Princípio segundo o qual é justo que se “subordine as coisas somente às dignas, as corporais às espirituais, as inferiores às superiores, as temporais às sempiternas” (Epístola 140). 165 A Cidade de Deus XIX, 14. O mesmo princípio da justiça doméstica seria aplicado à cidade, fazendo da família um protótipo do Estado: “A casa deve ser o princípio e o fundamento da cidade. Por isso (...) deve a

106

Mais do que isso, a “verdadeira justiça” justifica também o uso do poder como

força coercitiva (castigo), como punidora dos que desrespeitam a justa ordem, ou a

“ordenada concórdia” entre os homens, segundo a qual além de ser justo que uns mandem

e outros obedeçam, é também justo que se castigue o infrator; ou seja, aquele que não quer

obedecer ao que manda: “se em casa alguém turba a paz doméstica por desobediência, é

para sua própria utilidade corrigido com a palavra, com pancadas ou com qualquer outro

gênero de castigo justo e lícito admitido pela sociedade dos homens, para reuni-lo à paz de

que se afastara”.166

Não que o castigo seja um bem em si mesmo, mas um instrumento da justiça, pelo

qual se aplica o princípio de “dar a cada um o que é seu”. Daí que “o jugo da fé impõe-

se com justiça ao pecador”.167

E entre os castigos sociais admitidos pela sociedade, e justamente aplicados para

preservação da “ordenada concórdia”, está a escravidão.

Agostinho, não justifica a escravidão como um direito natural, como o fez

Aristóteles. Deus não criou os homens para que dominassem seus semelhantes, mas,

somente os animais. Se a escravidão existe deve ser vista como um castigo infligido à

humanidade por conta de seus pecados. Assim sendo, quando os vencedores transformam

seus vencidos em servos, ou seja, numa classe socialmente inferior, isto acontece por

merecimento do pecado.168

ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem relacionar-se com a ordenada concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem” (Ibid., XIX, 16). 166 Ibid., XIX, 16. 167 Ibid., XIX, 15. 168 “A primeira causa da servidão, é, pois, o pecado, que submete um homem a outro pelo vínculo da posição social. Por natureza o homem não é escravo, mas por causa do pecado a escravidão penal está regida e ordenada por lei, que manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la” (Id.).

107

Agostinho afirma que as relações de poder devem ter, como princípio, a caridade,

sem a qual o poder não será justo, ou seja, “que não mande por desejo de domínio, mas por

dever de caridade, não por orgulho de reinar, mas por misericórdia de auxílio”.169

Para Agostinho, a legitimidade do poder está na sua relação com Deus, de onde

provém todo poder: “Não há autoridade que não venha de Deus”,170 então:

Se, por conseguinte, se rende culto ao Deus verdadeiro, servindo com sacrifícios sinceros e bons costumes, é útil que os bons reinem por muito tempo e onde quer que seja. E não o é tanto para os governantes como para os governados. Quanto a eles, a piedade e a bondade, grandes dons de Deus, lhes bastam para felicidade verdadeira, que, se merecida, permite a gente viver bem nesta vida e conseguir depois a vida eterna.171

Assim sendo, Agostinho faz uma estreita relação entre o uso do poder e a

caridade, ao dizer que “nada é mais feliz para as coisas humanas que o fato de virem a

obter o poder, por bondade de Deus, homens que vivem bem, dotados de uma verdadeira

piedade”.172

Já em 390, muito antes de escrever A Cidade de Deus, Agostinho, apesar de

elogiar o amor patriótico do pagão Nectário, governador de Calama, preocupado “em

deixar, ao morrer, sua pátria incólume e florescente”,173 lamentava faltar-lhe o preceito

da “divina caridade”, a única capaz de garantir a “verdadeira felicidade” dos cidadãos, que

não é senão levá-los a alcançar a pátria celeste. Ele nos diz:

Também pelos serviços prestados à pátria terrena, se fizeres com amor vero e religioso ganharás a pátria celeste (...) deste modo, proverás, de verdade, ao bem de teus concidadãos a fim de fazê-los usufruir não da falsidade dos prazeres temporais, nem da funestíssima impunidade da culpa, mas da graça da felicidade eterna. Suprimam-se todos os ídolos e todas as loucuras, convertam-se as pessoas ao culto do verdadeiro Deus e a pios e castos costumes; e então verás a tua pátria florir não segundo a falsa

169 A cidade de Deus XIX, 14. 170 Rm 13, 1. 171 A cidade de Deus IV, 3. 172 Ibid., V, 19. E acrescenta: “Quem não é cidadão da cidade eterna, que em nossas Sagradas Letras chama-se cidade de Deus, é mais útil à cidade terrena quando tem, pelo menos, essa virtude que se carece dela. Os verdadeiramente piedosos, que à vida moral unem a ciência de reger os povos, constituem verdadeira bênção para as coisas, se, por misericórdia de Deus, gozam do poder. Tais homens, sejam quantas forem as virtudes que podem ter nesta vida, atribuem-nas à graça de Deus” (Id.). 173 Epístola 90.

108

opinião dos estultos, mas segundo a verdade professada pelos sábios, quando esta pátria, em que nasceste para vida mortal, será uma porção daquela pátria para a qual se nasce não com o corpo, mas pela fé, onde, após o inverno cheio de sofrimentos desta vida, florescerão na eternidade que não conhece ocaso (...) pois, o amor mais ordenado e mais útil pelos cidadãos consiste em levá-los ao culto do sumo Deus e à religião. Este é o amor verdadeiro e pio da pátria terrestre, que te fará merecer a pátria celeste.174

Como se vê, para Agostinho todas as instituições da sociedade, dentre elas o poder,

tem por fim último fazer arder no coração do homem o desejo expresso no Pai-Nosso:

“Venha a nós o vosso reino”. Por isso, visto que amar a Deus e amar os homens é a

mesma coisa, é necessário que as instituições sociais sejam moldadas pela caridade.

Concluindo, pode-se afirmar que a ética agostiniana, realiza-se à medida em que se

realiza a ordem moral, isto é, o amor. Orientando-se pela razão o homem pode conhecer o

bem, mas a vontade pode rejeitá-lo, porque embora pertencendo ao espírito humano, a

vontade é uma faculdade diferente da razão, tendo uma autonomia própria em relação à

razão, embora seja a ela vinculada. A razão conhece e a vontade escolhe, podendo escolher

inclusive o irracional, ou seja, aquilo que não está em conformidade com a razão, por

exemplo, evitando fazer o bem e praticando somente o mal. Portanto, para vivermos bem,

precisamos aspirar ao desejo da paz e da tranqüilidade. Agostinho nos ensina a invocar o

nome de Deus para conseguir essa tão sedenta paz:

Senhor Deus, concede-nos a paz, tu que tudo nos deste. Concede-nos a paz do repouso, a paz do sábado, uma paz sem ocaso. Essa belíssima ordem das coisas muito boas, uma vez cumprindo o seu papel, toda ela passará; porque terão tido um amanhecer e uma tarde.175

174 Epístola 104. 175 Confissões XIII, 35, 50.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Santo Agostinho foi um pensador que conseguiu ser, ao mesmo tempo, poeta,

filósofo, teólogo e sábio. Suas obras permanecem atuais embora os séculos que nos

separam. Seus ensinamentos filosóficos e suas virtudes são exaltados por muitos: “Pelo

gênio agudíssimo, pela riqueza e sublimidade de doutrina, pela santidade da vida e pela

defesa da verdade, ninguém ou certamente pouquíssimos, de quantos floresceram desde o

início do gênero humano até hoje, podem ser comparados a ele”1. Todo o esforço

intelectual e pastoral de Agostinho foi o de mostrar que a força da Razão e da Fé é que leva

o homem a conhecer mais sobre a totalidade do ser humano. Sendo que os primeiros

séculos do cristianismo representam um momento forte da relação fé e razão,

principalmente quando os cristãos entraram em contato com o pensamento filosófico

grego, período das grandes questões teológicas e momento de desestruturação dos antigos

valores que sustentavam a sociedade no Império Romano. Santo Agostinho se destaca

neste ambiente e foi o grande baluarte da fundamentação filosófica do cristianismo até a

Idade Média.

O caminho da sua conversão é bastante conhecido mediante as suas próprias obras,

obras estas evidenciadas, principalmente no primeiro capítulo dessa dissertação.2 Mas é

sobretudo mediante as célebres Confissões, obra que é ao mesmo tempo autobiografia,

filosofia, teologia, mística e poesia, na qual homens sequiosos da verdade e cônscios dos

próprios limites se encontraram e se encontram a si mesmos. Também hoje as Confissões

de Santo Agostinho estimulam e comovem não só os crentes; também aquele que não tem

1 Pio XI, Encíclica Ad salutem humani generis. Apud, João Paulo II. Carta Apostólica Augustinum Hipponensem: pelo 16º centenário da conversão de Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 5. 2 As que ele escreveu no retiro de Cassicíaco antes do batismo (A vida feliz, Contra Acadêmicos e Solilóquios) e principalmente As Confissões.

110

fé, mas está à procura de uma certeza, que pelo menos lhe permita compreender a si

mesmo, as suas aspirações profundas e os seus tormentos. A conversão de Santo

Agostinho, dominada pela necessidade de encontrar a verdade, tem muito a ensinar aos

homens de hoje, com freqüência, tão desorientados ante o grande problema da vida.3

Aquela harmonia constante entre fé e razão vivida na Idade Média se vê ameaçada

na época moderna que marca um período de progressiva separação entre a fé e a razão,

atingindo seu apogeu com o iluminismo e teve como conseqüência a deformação da razão,

levando-a a se tornar uma “razão instrumental ao serviço de fins utilitaristas, de prazer e de

poder”.4 Como resultado desta caminhada histórica do homem, o que se evidencia hoje é

que tudo aquilo que sustentava nossa forma de viver está em plena deteriorização no que

tange à religião, à economia, ética, sociologia e política; as mudanças são cada vez mais

bruscas. Nesta crise de civilização cultural não se fortalece a tradição e cada pessoa se vê

chamada a criar um projeto de vida muito particular. Percebe-se então que a tentativa da

humanidade em criar uma cultura nova e racional, rejeitando toda e qualquer ligação entre

fé e razão e entre Deus e os homens, ou seja, tirar Deus como possibilidade, princípio e

fim, gerou uma cultura de morte, sem horizonte e sem sentido. Neste sentido pode-se dizer

que não haverá encontro com a verdade para aquele que se detém apenas nos estreitos

limites da razão e despreza a fé como possibilidade de transcendência. A razão, por si só,

não alcança a plenitude do mistério.

Santo Agostinho, com o auxílio do pensamento platônico, libertou-se do conceito

da vida material obtido do maniqueísmo: “Instigado por esses escritos a retornar a mim

mesmo, entrei no íntimo do meu coração sob tua guia (...) Entrei e, com os olhos da alma

3 Cf. João Paulo II. Carta Apostólica Augustinum Hipponensem: pelo 16º centenário da conversão de Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 7. 4 João Paulo II. Carta Encíclica Fides et Ratio. São Paulo: Paulinas, 1998, nº 47.

111

(...) e acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável”.5 Foi esta luz imutável que

lhe abriu os horizontes imensos do espírito e de Deus. Compreendeu que a grave questão

do mal, que constituía o seu grande tormento,6 a primeira pergunta a ser feita não era de

onde ele provém, mas que coisa é,7 e intuiu que o mal não é uma substância mas uma

privação do bem.8 Deus portanto, concluía ele, é o criador de todas as coisas e não existe

substância alguma que não tenha sido criada por Ele.9 Ele também compreendeu que o

pecado se origina da vontade do homem, uma vontade livre e defectível: “era eu quem o

queria, e ao mesmo tempo era eu quem não o queria: sempre eu. Não tinha uma vontade

plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo mesmo, deixando-me

dilacerado”.10 Agostinho, a partir dessa experiência, tem consciência de que os maiores

obstáculos no caminho para a verdade não são de ordem teórica, mas de ordem prática, isto

é, de ordem moral: “Admirava-me de agora amar a ti, e não a um fantasma em teu lugar.

Mas, ao mesmo tempo, eu não era estável no gozo do meu Deus. Atraído por tua beleza,

era logo afastado de ti por meu próprio peso, que me fazia precipitar gemendo por terra.

Esse peso eram os meus hábitos”.11 Compreendeu, então, que uma coisa é conhecer a meta

e outra alcançá-la, deduz assim que o homem não pode salvar-se a si mesmo, tão pouco no

âmbito intelectual: tem que começar pela fé na autoridade da Palavra de Deus, para que a

inteligência, liberta dos erros, assim como o coração do orgulho e da soberba, possa logo

exercitar sua razão no caminho da verdade revelada. Foi, então, nas cartas de Paulo que ele

descobriu Cristo Mestre, como sempre o tinha venerado, mas também Cristo Redentor,

5 Confissões, VII, 10, 16. 6 “Minha juventude cheia de vícios estava morta. Caminhava para a maturidade, e quanto mais avançava em anos, tanto mais vergonhosamente me deixava contaminar pelas coisas vãs” (Confissões VII, 1, 1). 7 “Eu pesquisava mal a origem do mal, e não enxergava o mal que havia na própria busca” (Confissões VII, 5, 7). 8 “Em ti o mal não existe de forma alguma; e não só em ti, mas em quaisquer criaturas tomadas em sua universalidade. Porque, fora da tua criação nada existe que possa invadir ou corromper a ordem por ti estabelecida” (Confissões VII, 13, 19). 9 Cf. Confissões VII, 12, 18. 10 Ibid., VIII, 10, 22. 11 Ibid., VII, 17, 23.

112

Verbo encarnado, único Mediador entre Deus e os homens. Agora em diante Agostinho vê

o esplendor da filosofia, era a filosofia do Apóstolo Paulo que tem como centro Cristo,

poder e sabedoria de Deus, e que tem outros centros: a fé, a humildade, a graça; a filosofia

que ao mesmo tempo é sabedoria e graça, pela qual se torna possível não só conhecer a

pátria, mas também alcançá-la.12

Para Agostinho, todos os homens querem ser alegres e felizes, mas a verdadeira

alegria só vem de Deus. A carne e seus apelos, a matéria, podem levar o homem a

confundir-se e fazer aquilo que pode fazer, mas não aquilo que realmente quer fazer. Deus

é a felicidade porque é a verdade. E a alegria reside na verdade. Esta é uma só, e Deus é a

sua fonte. O homem deve invocar a Deus, mas este já habita nele. Para voltar a encontrar a

verdade, tem de purificar sua alma, livrando-se principalmente do orgulho e da soberba,

das comoções da carne, seguindo exemplo de Jesus Cristo, que foi ao mesmo tempo Deus

e homem, verbo imortal e carne perecível. Este morreu para salvar o homem do pecado

original.

Depois da experiência com a Palavra de Deus, Agostinho reconduz toda sua

doutrina e toda sua vida cristã à caridade, entendida como adesão à verdade para viver na

justiça.13 A caridade constitui a alma de tudo, o centro de irradiação, a mola secreta do

organismo espiritual, na caridade ele pôs a essência e a medida da perfeição cristã como foi

exposto no segundo e terceiro capítulos dessa dissertação onde constatou-se que o sentido

da existência humana passa pela vertente do mistério do amor: “Meu peso é o amor; por

ele sou levado para onde sou levado”.14 Para Agostinho, o amor é o peso do coração capaz

de fazê-lo inclinar-se para um lado ou para outro, e cujo objeto da busca é sempre o bem,

não no sentido moral, mas no sentido ontológico, isto é, o bem comum. Quanto ao fim

12 Cf. Confissões VII, 21, 27. 13 Cf. A Trindade VIII, 7, 10. 14 Confissões XIII, 9, 10.

113

último dessa tendência amorosa do homem é a felicidade, isto é, o gozar do bem supremo,

que é gozar do próprio Deus. “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,

enquanto não repousa em ti”.15 Quanto a isto todos concordam que todos os homens

querem ser felizes, mas nem todos estão de acordo em que consiste a felicidade: nos

prazeres, nas vanglórias, no poder, na fama, em Deus. Santo Agostinho ensina, portanto,

que o amor em si é neutro, e que pode ser bom ou mau, segundo seja ordenado ou

desordenado. E ele será ordenado ou não, segundo se coloque ou não às exigências

objetivas da ordem real e ontológica dos bens. Esta ordem consiste na primazia absoluta de

Deus, que é o Bem Supremo. Pode-se concluir, então, que o amor ordenado é o amor que

ama a Deus acima de todas as coisas, pelo mesmo Deus a todos os demais e, portanto, de

acordo com sua lei.

É desordenado o amor que coloca acima de Deus algum bem criado, por amá-lo

fora ou em contradição às leis de Deus. Mas o que ama com amor ordenado, e somente

este, tem a lei divina interiorizada no seu coração, gravada de tal maneira que para ele, e só

para ele, vale a máxima de Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”.16

É, pois, na filosofia e teologia do amor que Santo Agostinho fundamenta a sua

concepção filosófica e teológica da história. Quando na sua obra A cidade de Deus, ele

apresenta toda a história da humanidade como a história da luta entre duas cidades, a

cidade de Deus e a cidade do mundo ou dos homens as quais estariam como que

constituídas fundamentalmente por dois amores: “Dois amores fundaram, pois, duas

cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus,

levado ao desprezo de si próprio, a celestial”.17 Portanto, sem a graça de Deus, o amor

humano necessariamente acaba voltando-se ilicitamente sobre as criaturas, sob o peso da

15 Ibid., 1, 1, 1. 16 Comentário da Primeira Epístola de São João 7, 8. 17 A cidade de Deus 14, 28.

114

herança de Adão. Para Agostinho, é a morte de Jesus Cristo, Filho de Deus, na cruz, a que,

abrindo as portas da graça celestial, torna possível o amor humano por cima de todos os

seus próprios limites existenciais, fazendo-o participar, pela fé e pela esperança da caridade

divina, “Porque Deus é Amor”.18

Pelo amor pode-se chegar a uma atitude ética para com os outros. Este é o primeiro

passo para o altruísmo e a fraternidade social, cujo resultado é a harmonia no convívio

entre as pessoas.

18 1João 1, 8.

ANEXO 1

RELAÇÃO DE OBRAS DE SANTO AGOSTINHO EM ORDEM CRONOLÓGICA

116

RELAÇÃO DAS OBRAS:

Guilherme Fraile1 nos apresenta a seguinte relação, em ordem cronológica, de

obras escritas por Santo Agostinho:

01 - De Pulchro et Apto (374)

02 - Contra Academicis (386)

03 - De Beata Vita (386)

04 - De Ordine (386)

05 - Soliloquia (386/387)

06 - De Immortalitate Animae (387)

07 - De Grammatica (387)

08 - De Quantitate Animae (387-388)

09 - De Musica (388-391)

10 - De Moribus Ecclesiae Catholicae et Manichaeorum (388)

11 - De Libero Arbitrio (388-395)

12 - De Genesi Contra Manichaeos (388-390)

13 - De Magistro (389)

14 - De Vera Religione (388-391)

15 - De Diversis Quaestionibus Octoginta Tribus (388-396)

16 - De Utilitate Credendi (391-392)

17 - De Duabus Animabus Contra Manichaeos (391-392)

18 - Contra Fortunatum Manichaeos (392)

19 - De Fide et Symbolo (393)

20 - De genesi ad litteram Liber Imperfectus (393)

21 - Psalmus Abecedarius Contra Partem Donati (393)

22 - De Sermone Domini in Monte (393-396)

23 - Contra Adimantum Manichaei Discipulum (393-396)

24 - Expositio 84 Propositionum ex Epistola ad Romanos (394-396)

25 - Expositio Epistolae ad Galatas (394 - 395)

26 - De Mendacio (394)

27 - De Continentia (394)

1 FRAILE, Guillerme. San Agustín. In: Historia de la Filosofia II: El Judaísmo, el Cristianismo, el Islam y la

Filosofia. 2. ed. Madrid: B.A.C., 1966, p. 191-231.

117

38 - Expositio in Epistolam ad Romanos Inchoata (394-396)

29 - Contra Mendicacium (395)

30 - De Agone Christiano (396)

31 - De Diversis Quaestionibus ad Simplicianum (396-397)

32 - Contra Epistolam Manichaei Quam Vocant Fundamenti (396-397)

33 - De Doctrina Christiana (397)

34 - Annotationes in Iob (397-400)

35 - Contra Hilarium (399)

36 - De Divinatione Deamonum (399)

37 - De Catechizandis Rudibus (400)

38 - Confessionum (400)

39 - Contra Faustum Manichaeum (400)

40 - De Concensu Evangelistarum (400)

41 - Ad Inquisitiones Iaunaurri (400)

42 - De Opere Monachorum (400)

43 - De Fide Rerum Quae Non Videntur (400)

44 - Quaestiones Evangeliorum (400)

45 - Contra Epistolam Parmeniani (400)

46 - De Baptismo Contra Donatistas (400)

47 - De Trinitate (412 - 420)

48 - De Bono Coniugali (401)

49 - De Sancta Virginitate (401)

50 - Contra litteras Petiliani (401)

51 - De Unitate Ecclesiae (401)

52 - De Genesi ad litteram (401-415)

53 - De Actis Cum Felice Manichaeo (404)

54 - De Natura Boni (405)

55 - Contra Secundinum Manichaeum (405-406)

56 - Contra Cresconium Grammaticum Partis Donati (406)

57 - Sex Questiones Expositae Contra Paganos (409)

58 - De unico Baptismo Contra Petilianum (411)

59 - Breviculus Collationis Cum Danatistis (411)

61 - De Gratia Novi Testamenti ad Honoratum (412)

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62 - Contra Donatistas Post Collationem (412)

63 - De Peccatorum Meritis et Remissione et de Baptismo Parvulorum (412)

64 - De Fide et Operibus (413)

65 - De Spiritu et littera ad Marcellinum (413)

66 - De Videndo Deo (413)

67 - De Civitate Dei (412-426)

68 - De Bono Viduitatis (414)

69 - De Octo Quaestionibus ex Veteri Testamento (414)

70 - De Natura et Gratia (415)

71 - De Patientia (415)

72 -Contra Priscillianistas et Origenistas ad Orosium (415)

73 - De Origine Animae Animis ad Hieronymum (415)

74 - De Setentia Jacobi ad Hieronymum (415)

75 - De Perfectione Justitiae Himinis ad Eutropium et Paulum (415)

76 - Enarrationes in Psalmos (415 - 422)

77 - Tractatus in Joannis Evangelium (416-417)

78 - Tractatus in Epistolam Joannis ad Parthos (416)

79 - De Gestis Pelagii in Synodo Diospolitano (416)

80 - De Corretione Donatistarum (417)

81 - De Prasentia Dei (417)

82 - De Gratia Christi et Peccato Originali (418)

83 - De Gestis Cum Emerito Caesareensi Donatistorum Episcopo (418)

84 - Contra Sermones Arianorum (418)

85 - De Coniugiis Adulterinis (419)

86 - Locutionum in Heptateuchum (419)

87 - Questiones in Heptateuchum (419)

88 - De Nupitiis et Concupiscentia (419-420)

89 - De anima et eius Origine (419-420)

90 - Contra duas Epistolas Pelagianorum (420)

91 - Contra Gaudentium Donatistarum Episcopum (420)

92 - Contra Adversarium legis et Prophetarum (420)

93 - Contra Julianum Haeresis Pelagianae Defensorem (421)

94 - Enchiridium ad Laurentium (421)

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95 - De Cura pro Mortuis Gerenda (421)

96 - De Octo Dulcitii Quaestionibus (422)

97 - Regula ad Servos Dei (423)

98 - De Gratia et Libero Arbitrio (426-427)

99 - De Correptione et Gratia (426-427)

100 - Retractationum (426-427)

101 - Speculum de Scriptura Sacra (427)

102 - Collatio cum Maximino Arianorum Episcopo (428)

103 - Contra Maximinum Arianorum Episcopo (428)

104 - Tractatus Adversus Judaeus (428)

105 - De Dono Perseverantiae (428-429)

106 - De Praedestinatione Sanctum (428-429)

107 - Opus Imperfectum Contra Juliano (430)

108 - Questionum Septemdecim in Ev. Secundum Mathaeum (data Incerta)

109 - Expositio Epistolae ad Duodecim Tribus (data incerta).

REFERÊNCIAS Primárias

01 - AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. A Doutrina Cristã: manual de exegese e formação cristã. Trad. e not. Nair de Assis Oliveira, rev. H. Dalbosco e P. Bazaglia. São Paulo : Paulus, 2002, 284 p. (Patrística; 17).

02 - ______. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Trad. Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003. 2v. v. I, 414; v. II, 589 p. (Coleção Pensamento Humano).

03 - ______. Cartas a Proba e a Juliana: direção espiritual. 2. ed. Trad. e not. Nair de Assis Oliveira, rev. E. Gracindo. São Paulo : Paulus, 1987, 100 p. (Série Espiritualidade).

04 - ______. A Trindade. 2. ed. Trad. e int. Agustinho Belmonte; rev. e not. Nair de Assis Oliveira. São Paulo : Paulus, 1994, 726 p. (Coleção Patrística).

05 - ______. Confissões. 2. ed. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo : Paulus, 1997, 450 p. (Coleção Patrística; 10).

06 - ______. O Livre Arbítrio. 3. ed. Trad, org, introd. e not. Nair de Assis Oliveira; rev. Honório Dalbosco. São Paulo : Paulus, 1995, 296 p. (Coleção Patrística).

07 - ______. Solilóquios e a Vida Feliz. 2. ed. Solilóquios: Trad. e not. Adaury Fiorótti. A Vida Feliz: Trad. Nair de Assis Oliveira; introd. e not. Roque Frangiotti; rev. H. Dalbosco. São Paulo : Paulus, 1998, 160 p. (Patrística; 11).

08 - ______. A Verdadeira Religião. O cuidado devido aos mortos. Trad. e not. Nair de Assis Oliveira, rev. Honório Dalbosco. São Paulo : Paulus, 2002, 196 p. (Patrística; 19).

09 - ______. Comentário da Primeira Epístola de São João. Trad, org, introd. e not. Nair de Assis Oliveira; ver. José Joaquim Sobral. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989, 219 p. (Coleção Espiritualidade).

10 - _______ . Comentário aos Salmos. Trad. das Monjas beneditinas. São Paulo: Paulus, 1997. v. 1 – Salmos 1 a 50, v. 2 – Salmos 51 a 100 e v. 3 – Salmos 101 a 150.

11 - BIBLIOTECA DE AUTORES CRISTIANOS (B.A.C) Obras de San Agustín. Madrid : La Editorial Catolical. 1950, (Tomo I a XVII).

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Secundárias Comentários Sobre Santo Agostinho: 01– ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de

interpretação filosófica. Trad. de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, 189 p.

02 - CREMONA, Carlos. Agostinho de Hipona: a razão e a fé. Trad. Pergentino Stefano Pivatto, apres. Cardeal Carlo Maria Martini Petrópolis : Vozes, 1990, 262 p. (Coleção Vidas Famosas).

03 – FITZGERALD, Allan D. (Dir.). Diccionario de San Agustín: San Agustín a traves del tiempo. Burgos: Monte Carlo, 2001, 1352 p.

04 - GUERRINI, Maria Rosa. Tarde te Amei: Santo Agostinho um homem de Deus... um homem para o homem. Trad. João Paixão Netto, rev. Lígia Silva, ilust. Maria Rosa Guerrini. São Paulo : Paulinas, 1988, 150 p.

05 - HAMMAN, A.G. Santo Agostinho e seu Tempo. Trad. Álvaro Cunha, rev. Nair de Assis Oliveira. São Paulo : Paulinas, 1989, 365 p. (Coleção Patrologia).

06 – JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Augustinum Hipponensem: pelo 16º centenário da conversão de Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 1986, 48 p.

07 - _______. Carta encíclica Fides et Ratio: sobre as relações entre fé e razão. São Paulo: Paulinas, 1998, 143 p.

08 - LUCAS, Miguel. Concentra-te em Ti Mesmo: a felicidade está dentro de nós. São Paulo : Loyola, 1987, 85 p.

09 - _______. Conhecer-se; um caminho para ser feliz. Trad. João Augusto Pereira. São Paulo: Paulus, 1996, 107 p.

10 - OLIVEIRA, Nair de Assis (Org, Apres. e Trad.). Orando com Santo Agostinho. São Paulo : Paulus, 1996, 155 p.

11 – POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. Trad. Monjas beneditinas. São Paulo: Paulus, 1997, 95 p.

12 - RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. A Idéia de Estado na Doutrina Ético-Política de Santo Agostinho: um estudo do epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. São Paulo: Loyola, 1984, 370 p. (Coleção Fé e Realidade, 15).

13 – REINARES, Tirso Alesanco. Filosofia de San Agustín: Síntesis de su pensamiento. Madrid: Editorial AVGVSTINVS, 2004, 511 p.

14 – RETA, José Oroz y RODRIGO, José A. Galindo (Dir.). El pensamiento de San Augustín el hombre de hoy. Tomo I: la filosofia agustiniana. Valencia: Edicep, 1998, 759 p.

15 - ROCHA, Hylton Miranda. Um Coração Inquieto: vida de santo Agostinho narrada para o homem de hoje. 5. ed. São Paulo : Edições Paulinas, 1979, 147 p. (Coleção Cidadãos do Reino).

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16 - ______. Pelos Caminhos de Santo Agostinho. São Paulo : Loyola, 1989, 269 p.

17 - ______. Mônica Uma Mulher Forte: vida de santa Mônica narrada para o homem de hoje. 3. ed. São Paulo : Paulinas, 1981, 126 p. (Coleção Cidadãos do Reino).

18 - RUBIO, Pedro. Toma e Lê!: síntese agostiniana. 2. ed. São Paulo : Edições Loyola, 1995, 399 p.

19 – SCIACCA, Michele Federico. O Essencial de Santo Agostinho. Trad. José Beluci Caporalini. In: Aula Santo Agostinho nº 01. Maringá: IFAMA e Agostinianos Recoletos, 2002, 38 p.

20 - SCIADINI, Patrício (Org.). Santo Agostinho: coração inquieto. São Paulo : Cidade Nova, 1990, 179 p. (Coleção Clásicos da Espiritualidade).

21 - TACK, Theodore. Se Agostinho Estivesse Vivo: ideal religioso de Agostinho para os nossos dias. Trad. Elizabeth Leal Barbosa, rev. H. Dalbosco. São Paulo : Paulinas, 1993, 175 p. (Série Espiritualidade).

22 - TENÓRIO, Waldecy. O Amor do Herege: respostas às Confissões de S. Agostinho. Sào Paulo: Paulinas, 1986, 92 p.

23 - TONNA-BARTHET, A. Síntese da Espiritualidade Agostiniana. Trad. Matheus Nogueira. São Paulo: Paulus, 1996, 213 p.

Outras obras de apoio:

01 - ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. da primeira edição brasileira coordenada e revisada por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, 1014 p.

02 - ARISTÓTELES. Ética a Nicômoco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural. 1987, 240 p.

03 - ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred. Agostinho. In: Patrologia: vida, obras e doutrinas dos padres da Igreja. 2. ed. Trad. Monjas Beneditinas. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 412-449. (Coleção Patrologia).

04 - BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002, 2206 p.

05 - BIGNOTTO, Newton. O Conflito das Liberdades: Santo Agostinho. Síntese: Nova fase. Belo Horizonte, 19 (58): 237-359, 1992.

06 - BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. Santo Agostinho, o Mestre do Ocidente. In: História da filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. 3. ed. Trad. e not. Raimundo Vier. Petrópolis : Vozes, 1985, p. 139-208.

07 – BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? Petrópolis: Vozes, 2000, 127 p.

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08 - CICHER, Peter (Dir.) Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1993, 1036 p.

09 - CIPRIANO, Nelio. Agostinho. In: LATOURELLE, René; FISCHELLA, Rino (Dirs). Dicionário Teologia Fundamental. Trad. Luiz João Baraúna. Petrópolis : Vozes; São Paulo : Editora Santuário, 1994, p.37-44.

10 – COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, 209 p. (Coleção Filosofia, 91).

11 - _____. O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. (Tese de Doutorado).

12 - _____. Os fundamentos Ético-políticos do Homem e do Estado em “A Cidade de Deus” de Santo Agostinho. Recife: UFPE, 1996, 168 p. (Dissertação de Mestrado).

13 - CRUZ, Marcus. Virtudes Romanas e Valores Cristãos: um estudo acerca da ética e da política na Antiguidade tardia. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Idade Média: ética e política. 2. ed. Porto Alegre : EDIPUCRS, 1996, (Coleção Filosofia n. 38), p. 21-40.

14 - DANIEL-ROPS. O Santo dos Novos Tempos. In: A Igreja dos tempos Bárbaros. Trad. Emérico da Gama. São Paulo : Quadrante, 1991, p. 9-62 .

15 – DE BONI, Luiz Alberto (Org.). Idade Média: ética e política. 2ª ed. Porto alegre: EDIPUCRS, 1996, 502 p. (Coleção Filosofia; 38).

16 - FIGUEIREDO, Fernando Antonio. Santo Agostinho. In: Curso de Teologia Patrística III: a vida da Igreja primitiva (idade de ouro da patrística) Petrópolis : Vozes, 1990, p. 131-160.

17 – FRAILE, Guillerme. San Augustín. In: Historia de la filosofia II: el Judaísmo, el Cristianismo, el Islam y la filosofia. 2. ed. Madrid: B.A.C., 1966.

18 - FRANCA, Leonel. Santo Agostinho. In: Noções de História da Filosofia. 9. ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1943, p. 115-119.

19 - FRANGIOTTI, Roque. Santo Agostinho: o maior teólogo da Antiguidade. In: História da teologia: período patrístico. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 79-102. (Coleção Patrologia).

20 - GILSON. Etienne. Dos Apologistas a Santo Ambrósio. In: A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. 3. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1995, p.105-129.

21 - GOMES, Cirilo Folch. Santo Agostinho. In: Antologia dos Santos Padres: páginas seletas dos antigos escritos eclesiásticos. 3. ed. São Paulo : Paulinas, 1979, p. 332-667. (Coleção Patrologia).

22 – HIRSCHERGER, Johannes. Agostinho: O mestre do ocidente. In: História da filosofia na Idade Média. 2. ed. Trad. Alexandre Correia. São Paulo: Herder, 1966, 320 p.

23 – JALES, Francisco V. de Oliveira. Amar e ser feliz: uma análise do conceito de amor em Agostinho a partir do De beata vita e à luz de algumas obras da maturidade.

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Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2004, 126 p. (Dissertação de Mestrado).

24 – JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. 296 p.

25 – LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no Ocidente: a filosofia nas suas origens gregas. v. 1, Petrópolis: Vozes, 1989, 231 p.

26 - ______. Curso de História da Filosofia: a filosofia nos tempos e contratempos da cristandade ocidental. v. 2, Petrópolis: Vozes, 1999, 240 p.

27 - MATHIEU - ROSSAY, Jean. Agostinho. In: Dicionário do Cristianismo. Trad. Sieni Maria Campos . Rio de Janeiro : Ediouro, 1992, p. 18-19.

28 - MONDIN, Battista. Agostinho de Hipona. In: Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. 7. ed. Trad. Benôni Lemos, rev. João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo : Paulus, 1995, v. 1, p. 135-150. (Coleção Filosofia).

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30 - NASCIMENTO, Carlos Arthur. O que é Filosofia Medieval. São Paulo : Brasiliense, 1992, 86 p. (Coleção Primeiros Passos n. 261).

31 – OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Diálogos entre razão e fé. São Paulo: Paulinas, 2000, 224 p. (Coleção Pensamento Filosófico).

32 - PADOVANI, Umberto; CASTANGNOLA, Luis. Aurélio Agostinho. In: História da Filosofia. 13. ed. São Paulo : Melhoramentos, 1981, 209-214 p.

33 – PERNOUD, Régine. Idade Média: o que não nos ensinaram. Trad. Maurício Brett Menezes. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1994, 189 p.

34 - PIERRAND, Pierre. História da Igreja. 4. ed. Trad. Álvaro Cunha. rev. Luiz João Gaio. São Paulo : Paulus, 1982, 297 p.

35 - REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Santo Agostinho e o Apogeu da Patrística. In: História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média.3. ed. rev. H Dalbosco e L. Costa. São Paulo: Paulus, 1990, v. I, p. 428-462. (Coleção Filosofia).

36 - RICOUER, Paul. O Mal: um desafio à filosofia e à teologia. Trad. Maria da Piedade Eça de Almeida. Campinas, Papirus, 1988, 53 p.

37 – SAMANES, Cassiano Floristán e TARNAYO-ACOSTA, Juan-José. Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. Trad. Isabel Fontes leal Ferreira e Ivone de Jesus Barreto. São Paulo: Paulus, 1999, 917 p. (Coleção dicionários).

38 - SANSON, Victorino Félix. Santo Agostinho. In: Textos de Filosofia. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 1974, p. 161-167.

39 – SANTOS, Antônio Raimundo. Ética: caminhos da realização humana. 3. ed. São Paulo: Ave-Maria, 2001, 107 p.

40 – SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

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41 - SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto. Agostinho de Hipona. In: Dicionário Enciclopédico das religiões. Petrópolis : Vozes, 1995, Vol. I, A-J, p. 90-91.

42 - SÉRVULO, Mariano. A Ética em Agostinho a Partir de Duas Similitudes Trinitárias: A Filosofia (Física, Lógica, Ética) e a Trindade do Conhecimento de Si (Memória, Intelegentia, Voluntas ). In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Idade Média: ética e política. 2. ed. Porto Alegre : EDIPUCRS, 1996, (Coleção Filosofia; 38) p. 57-62.

43 – SGARBOSA, Mario. GIOVANNINI, Luigi. Um Santo para cada dia. Trad. Onofre José Ribeiro. São Paulo: Paulinas, 1983, 431 p.

44 - SOUZA NETTO, Francisco Benjamin. Agostinho: a ética. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Idade Média: ética e política. 2. ed. Porto Alegre ; EDIPUCRS, 1996, (Coleção Filosofia; 38), p. 41-56.

45 – STORCK, Alfredo. Filosofia Medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, 64 p. (Passo-a-passo; 30).

46 – STRATHERN, Paul. Santo Agostinho em 90 minutos. Trad. Maria Helena Geordane. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 75 p.

47 - TEIXEIRA, Faustino. Agostinho de Hipona. In: Teologia das Religiões: uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995, p.23-26. (Coleção Caminhos de Diálogos).

48 – TRAPÈ, Agostino. Agostinho de Hipona. In: Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Trad. de Cristina Andrade; org. Ângelo Di Berardino. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 54-59.

49 – ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino: um estudo das Enéadas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, 319 p. (Coleção Filosofia; 134).

50 - VAZ, Henrique C. Lima. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991, 291 p. (Coleção Filosofia, 15).

51 - _____. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002, 483 p. (Coleção Filosofia, 47).

52 – VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 23. ed. Trad. João Dell’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, 302 p.